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I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO NÚCLEO DE PESQUISA EM PINTURA E ENSINO – NUPPE Instituto de Arte / Universidade Federal de Uberlândia – IARTE/UFU
MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 10 a 13 de setembro de 2012, Uberlândia – MG – Brasil
DE UM ASPIRANTE A ARTISTA PARA UM ASPIRANTE A HISTORIADOR:
ANÁLISE DE UM PROCESSO DE PESQUISA
Vitor Marcelino
Em francês, há uma velha expressão, ‘la patte’, que significa o toque do
artista, seu estilo pessoal, sua pata. Eu quero fugir da ‘patte’ e de toda pintura
retiniana.
Marcel Duchamp
Durante minha graduação em Artes Plásticas pela Universidade Federal de
Uberlândia tive um contato maior com a pintura, talvez pela antiga estrutura do curso.
Durante as disciplinas de Pintura I, II e III, ministradas pelos professores Ms. Afonso
Lana, Esp. Alexandre França e Dra. Aninha Duarte, acabei desenvolvendo uma
determinada poética artística que veio tornando-se mais efetiva em disciplinas
anteriores, como as de desenho e as de gravuras. Era comum entre os alunos essa busca
de uma poética própria, um “estilo” único que diferenciasse o seu trabalho dos trabalhos
dos outros estudantes. Era quase incessante essa busca da “pata” a que Duchamp refere-
se.
Lembro-me perfeitamente de ficar incomodado, e acredito que isso deve ter
acontecido e ainda acontece com muitos outros artistas ou estudantes, quando algumas
pessoas falavam que meu “estilo” era parecido com o de algum outro colega. Encarava
aquilo como uma provocação para que a busca incessante e romântica da minha “pata”
se concretizasse.
Essa minha busca por um “estilo” acabou tornando- se mais concreta ao
descobrir ironicamente duas questões que ajudaram a defini-lo: a forte influência dos
meus amigos mais próximos que também estavam em processo de graduação e a forte
influência da cultura global como um todo no meu trabalho, a partir não só do trabalho
de outros artistas visuais, como também do trabalho de cineastas, músicos, escritores,
jornalistas e profissionais (ou não) da televisão, da propaganda e da internet. Foi nesse
momento que descobri que minha principal característica enquanto artista não era criar,
mas sim roubar aquilo que já estava criado e organizar todos esses delitos no plano
pictórico.
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Minha coleção de delitos era enorme, e ainda é, e se configurava
majoritariamente no âmbito imaterial das lembranças. Vez por outra, algumas dessas
coleções materializava-se em listas de palavras ou em pinturas. O critério de
catalogalização dessas listas e pinturas era fundamentalmente mnemônico e temporal.
Cada lista de palavras ou coleção de imagens referia-se a determinado momento da
minha vida. Esse momento escolhido era o momento atual que por sua vez ligava-se a
inúmeros outros momentos anteriores, montando uma espécie de rede na qual o fio
condutor se dava pela memória. A memória por sua vez, materializava-se em palavras e
imagens. Assim era necessária uma “tradução” da palavra falada, que ecoava em minhas
lembranças, para uma palavra não só escrita como também visual na qual a tipografia
(industrial ou manuscrita), o tamanho e a cor utilizada mantinham importantes aspectos
não só poéticos como também composicionais.
Entretanto, era no campo próprio da imagem que a apropriação e o próprio
trabalho ganhavam maior expressividade. Um número não muito criterioso de imagens
habitava o plano pictórico. Número esse que se estendia entre fotografias pessoais de
família e amigos, cenas e cartazes de cinema, imagens publicitárias e televisivas,
reproduções de obras de arte visuais e padrões de estampas encontrados basicamente em
vestuário e decorações internas de ambientes.
Todas as imagens eram então escolhidas e digitalizadas, poucas delas eram
produzidas manualmente. Posteriormente elas eram organizadas em um editor de
imagens. A partir desse momento, as imagens tornavam-se elementos unicamente
visuais e sua disposição obedecia a critérios basicamente composicionais. Dentro dessa
construção composicional, todas as imagens eram planarizadas com tons únicos de
cores que respeitavam as cores dos tubos de tinta acrílica. Praticamente não se criava
cores novas. Esse achatamento da imagem e a base colorida da tinta acabavam
formando uma imagem altamente colorida e que revelavam excessivamente a influência
da art pop sobre o meu trabalho.
Após a criação dessa imagem digital, eu projetava esse resultado na tela, fazia
a marcação das linhas e então começava o processo de pintura propriamente dito. Eu
respeitava fielmente as minhas marcações e a escolha das cores, afinal de contas as
pinturas eram a princípio de grandes dimensões o que, de certo modo, amedrontava-me
a propor alguma mudança da composição. Nesse momento, não agregaria nenhuma
diferença significativa à obra se ela fosse pintada por mim, por um robô ou por um
grupo de artesões.
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Hoje percebo que todo esse processo altamente industrial foi um dos principais
causadores da crise que me impede de “pintar” há algum tempo. Afinal de contas, eu
sempre falava de questões do universo pessoal que não eram efetivamente traduzidas
nessa feitura industrial da obra. Obviamente que não se pode negar a forte influência
que a indústria exerce não apenas sobre mim, como sobre qualquer outra pessoa, mas
ela acabou se tornando um grande peso na minha obra que não se justificava
visualmente. Não propunha nenhuma discussão mais complexa sobre o papel da
indústria no cotidiano que fundamentasse essa utilização maciça de procedimentos
industriais, muito menos analisava qual a influência desses procedimentos na imagem
de modo geral.
Muito se discute se a art pop tinha uma postura crítica ou complacente perante
a cultura de massa, no caso das minhas pinturas essa dúvida não existe: sempre fui
complacente perante tal indústria, na verdade, era muito mais que complacência, era um
fascínio. Esse processo de planificação gráfica das pinturas acabou homogeneizando
todas as imagens que me apropriava, desse modo fotografias pessoais importantes para
a minha memória estavam no mesmo patamar que imagens publicitárias, e isso para
mim é inadmissível atualmente. Essa “massificação” e planarização das imagens não
tinham nenhum propósito que não fosse puramente retiniano e técnico. Não existia
maturidade suficiente em meu trabalho capaz de discutir e analisar as questões das
próprias imagens apropriadas, elas eram simplesmente apresentadas ao espectador.
Embora eu desejasse falar de questões como memória, de âmbito tanto pessoal como
coletiva, as minhas imagens, pela apresentação que eu propunha, acabavam vendo suas
histórias sendo dizimadas pelo aspecto publicitário, sedutor e asséptico que as pinturas
apresentavam. Manchas, marcas de pincel, linhas tortas, tons terciários, o aspecto
envelhecido das fotografias, os pequenos defeitos das imagens, eram todos
inadmissíveis. A imagem se apresentava quase que robótica ao espectador. Vejamos
uma dessas pinturas:
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MARCELINO, Vitor. Eu sou tudo isso nº3. 2007. Acrílica sobre tela. 143 x 192 cm. Coleção do artista.
Mas nesse processo, nem tudo é espinho. A estrutura do curso exigia que não
apenas produzíssemos “obras de arte”, mas também reflexões teóricas sobre a produção.
Esse trabalho escrito acabou tornando-se um instigante processo de pesquisa. Na
monografia, busquei elencar todos os elementos que eram mais determinantes no meu
trabalho e buscar reflexões sobre eles a partir da análise de obras e textos de teóricos.
Uma tímida história de alguns desses elementos também foi traçada.
A leitura de alguns textos para essa escrita acabou se mostrando prazerosa, pois
me encantava não apenas o que os autores discutiam, como também a maneira como
eles discutiam, o modo como eles descreviam as obras, como relacionavam-nas com
outras obras, com outros autores, com outros momentos. Gostava das palavras e
expressões típicas de cada autor, a capacidade de que alguns tinham de não somente
escrever, mas também de conversar com o leitor. Passei a ver a história, a teoria e crítica
como uma espécie de “outra” arte.
Passei a entender aquilo que já tinha ouvido falar inúmeras vezes antes, mas
que nunca tinha refletido o suficiente: que o pesquisador é detetive, é aquele que
investiga determinadas questões em busca de determinadas respostas, que facilmente
tornam-se outras questões. Os elementos norteadores de minha pintura eram então
minhas pistas, a minha própria pintura era a cena do crime, as pessoas que vinham
comentar minha obra eram minhas testumunhas, o cruzamento das análises dos textos
era meu método de investigação, a minha monografia era meu dossiê, a banca de defesa
da monografia era meu júri e eu ocupava os complexos papéis de detetive, vítima, réu,
advogado de defesa e juiz.
Foi desse modo que passei a entrar no universo da teoria da arte e entendê-lo
como algo autônomo da minha produção como artista. A história da arte passou a ser
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vista pra mim como um organismo vivo que matinha inúmeras questões próprias e não
mais como uma muleta. Dentro desse processo de pesquisa para a monografia, o
elemento norteador de toda minha produção poética, a apropriação de imagens, acabou
mostrando-se inóspito enquanto estudo teórico, embora se apresentasse extremamente
simples. O máximo que meu fôlego permitiu foi uma concisa análise dos movimentos
artísticos da art pop e do dadá com enfoque na produção de Marcel Duchamp. É sabida
da revolução que ambos os movimentos proporcionaram a história da questionando
inclusive o próprio conceito de arte. Mas uma análise mais pontual da prática de
apropriação de imagens não foi plenamente percebida das discussões pop e dadaísta.
Foi a partir dessa lacuna, que minha pesquisa teórica foi se concretizando.
Propus então, um projeto de pesquisa para o programa de pós-graduação em Artes da
Universidade Federal de Uberlândia, a nível de mestrado, que investigasse a prática de
apropriação de imagens, especialmente na arte produzida no Brasil. Fui aceito no
programa e sob a orientação do professor Dr. Marco Antônio Pasqualini de Andrade,
desenvolvi a dissertação “Desvios de linguagem: as contribuições de Rubens Gerchman
e Nelson Leirner para a prática de apropriação de imagens na arte contemporânea no
Brasil” defendida em março de 2012.
Inicialmente, nessa pesquisa, eu tinha o objetivo de descobrir quais eram as
origens da prática da apropriação de imagens no Brasil. Objetivo esse que rapidamente
se mostrou ingênuo para não dizer utópico. Definimos melhor nossos objetivos e
focamos no estudo sobre a arte no Brasil nos anos 1960 que se mostrou, tanto pela
produção artística como crítica, um terreno propício para que a apropriação de imagens
se efetivasse no Brasil.
Gostaria, antes de tudo, de informar que esta dissertação não teve a pretensão
de esgotar todo o assunto, mas sim propor alguma contribuição. Pouca coisa foi escrita,
especialmente no Brasil, por isso tivemos que recorrer a muitos estudos e ensaios
estrangeiros. Majoritariamente, esses estudos trouxeram a noção de que a apropriação
de imagens é uma prática essencialmente de âmbito cultural que se reflete na produção
artística, afinal de contas considerável parte dos artistas que se apropriam e se
apropriaram de imagens produziram seus trabalhos a partir da forte influência que a
televisão, o cinema e a publicidade, por exemplo, exerceram e exercem sobre suas
vidas. Vejamos como exemplo desses estudos a seguinte declaração do crítico norte-
americano Douglas Crimp:
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Apropriação, pastiche, citação – esses métodos estendem-se virtualmente a
todos os aspectos de nossa cultura, dos produtos mais unicamente calculados
da indústria da moda e do entretenimento às atividades críticas mais
comprometidas dos artistas; das obras mais claramente retrógradas [...] às
práticas aparentemente mais progressistas. (CRIMP, 2005: 115)
Crimp é um nome indispensável para qualquer estudo sobre a apropriação na
arte contemporânea devido a sua prática curatorial e crítica que, no final dos anos 1970
e início dos anos 1980, revelou importantes nomes da chamada appropriation art como
Cindy Sherman, Sherrie Levine e Richard Prince. O autor vê a prática da apropriação
como essencialmente pós-moderna, pois não lida com o ideal de novidade típica da
produção modernista. Entretanto, os estudos de Douglas Crimp não devem ser
entendidos como base para o estudo da apropriação. Para isso, devemos nos voltar a
dois teóricos conhecidos: Roland Barthes com suas teorias do mito (1980) e da morte do
autor (1988: 49-53) e Walter Benjamin (1994: 165-196) com sua teoria do fim da aura
na obra de arte.
* * *
A produção artística brasileira dos anos 1960 foi marcada por uma
efervescência que gerou um interessante debate por meio não só das obras como
também pela extensa produção teórica dos artistas e críticos. Vejamos uma exemplar
declaração do artista Sérgio Ferro, apresentada originalmente no seminário Propostas 65
no ano de 1965, que sintetiza importantes questões:
Os problemas que a pintura nova examina são os do subdesenvolvimento,
imperialismo, o choque direita-esquerda, o (bom) comportamento burguês,
seus padrões, a alienação, a ‘má-fé’, a hipocrisia social, a angústia
generalizada etc. Política, relações econômicas e suas ressonâncias
internacionais, ideologias são decompostas, expostas em suas dubiedades,
seu vazio, sua crueldade. As respostas oscilam entre a desesperança niilista,
as utopias e o engajamento crítico. A nova pintura arma-se com todos os
instrumentos disponíveis. Recorre para responder às suas necessidades, a
quaisquer veículos úteis: ao academismo, a maneirismos de mil espécies, a
artifícios mais ou menos elaborados; importa, empresta, rouba e cria seu
vocabulário com a liberdade indispensável para o reexame profundo que
efetua. [...] Inexiste a preocupação (mau-acabamento) com a unidade, a
correção, a elegância de linguagem: para dizer o novo, com a crueza
necessária, há que esquecer as boas maneiras e as limitações gramaticais.
(FERRO, 1979: 26)
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O país passava por um crítico período político que inevitavelmente se refletiu
na produção artística. O termo “nova pintura”, utilizado por Ferro, transmite a ideia de
renovação e reexame que os jovens artistas almejavam, uma renovação que tem em sua
base importações, empréstimos, roubos e criações.
A movimentação e subversão de valores que esta década produziu fez com que
os próprios artistas e críticos dos anos 1960, denominassem esse período da história da
arte no Brasil como “vanguarda brasileira”. Ao buscar uma conceitualização do termo,
os críticos Ferreira Gullar (1978), Frederico Morais (1978) e os artistas Pedro
Escosteguy (1978) e Hélio Oiticica (1978), perceberam importantes características
como a busca de uma linguagem nova, a participação ativa do espectador, um
engajamento político nas obras com preocupações de ordem coletiva e a retomada do
conceito de antropofagia de Oswald de Andrade (1995). Entendendo política como “[...]
habilidade no relacionar-se com os outros tendo em vista a obtenção de resultados
desejados” (HOUAISS, 2007), percebe-se de modo geral, que a figura do outro era
essencial para a elaboração de uma teoria da vanguarda brasileira. Uma alteridade que
se manifesta tanto no papel do espectador participante como no papel daquele que foi
deglutido simbolicamente no retorno a antropofagia. Um outro geral e complexo que
orbita a obra do artista e que se configura tanto como espectador, linguagem ou até
como outro artista.
Outra importante questão percebida nesse período foi a aproximação da arte
com a cultura de massa que crescia, por sua vez, ao mesmo passo que os grandes
centros urbanos do país. Aqui destaco as reflexões de Mário Pedrosa. O crítico cunha
prematuramente o conceito de “arte pós-moderna” (PEDROSA, 1975: 87-92) para se
referir à produção artística na qual a tecnologia e a cultura de massa passam a ter efetiva
participação formadora para a criação de um novo estado da arte. A forte relação que foi
se criando entre arte e cultura de massa, fez com que, segundo Pedrosa, nascesse uma
dominação visual sobre a cultura em detrimento a questões de ordem verbal. Vejamos o
lamento do crítico sobre essa situação:
A substituição do verbal pelo visual apresenta-se como uma derrota do saber em face
das conseqüências da participação do real. Faltam-lhe todos os meios culturais de que
dispunha outrora. No mundo dos artistas existe por isso mesmo o desconforto. [...] Esta
– [a representação] do mundo – já não é mais elaborada pelos artistas, mas pela
informação visual e outras. Eis o drama da arte contemporânea. As técnicas de
comunicação avançam sobre a imaginação deles, num desenvolvimento cada vez mais
autônomo. Os artistas debatem-se dentro de uma representação sobre que não fizeram,
nem receberam faixa, mas que se elabora sem eles. (PEDROSA, 1975: 151)
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É, portanto na percepção dessa dominação visual que os artistas brasileiros
começam a voltar o seu olhar para o tipo de imagem que vem sendo produzida com o
intuito de subvertê-la. Essa subversão não se deu apenas na apropriação dessas imagens,
mas também e principalmente pela apropriação de processos semelhantes à própria
produção industrial para a construção de obras que passam a questionar tradicionais
valores da arte assim como essa própria dominação. Importante ressaltar que o contexto
político-militar do país também influiu de maneira maciça nessa relação, pois mesmo
censurados, os meios de comunicação refletem o estado de repressão que nosso país
passava.
Tendo todos esses apontamentos como norte, não é de se espantar o porquê de
artistas da segunda metade da década de 1960 utilizarem frequentemente o recurso da
apropriação em suas obras.
Dentro desse complexo momento da história da arte no Brasil, proponho a
análise da obra Lindonéia – a Gioconda do subúrbio produzida no ano de 1966 por
Rubens Gerchman e a série Homenagem a Fontana, produzida por Nelson Leirner no
ano de 1967 que é constituída por três trabalhos, Homenagem a Fontana I, II e III para
que se compreenda pontualmente essas questões.
GERCHMAN, Rubens. Lindonéia – a Gioconda do subúrbio. 1966.
Vidro, colagem e metal sobre madeira. 60 x 60 cm. Coleção Gilberto
Chateaubriand do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Brasil.
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Fonte: imagem cedida pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Crédito: Pesquisa e Documentação do Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro.
Embora pareça ser diretamente apropriada de uma fotografia de jornal,
Lindonéia é na verdade uma personagem inventada por Rubens Gerchman. O espelho
de aspecto kitsch denuncia sua origem de uma classe social mais baixa e os dizeres
anunciam o fim precoce de sua vida. Podemos perceber uma “objetualidade” na obra
não apenas pela moldura utilizada, mas também na própria imagem de Lindonéia, que
para o historiador Paulo Sérgio Duarte (1998, p. 42) não é um retrato, mas sim um
fragmento de uma nova paisagem que começava a se formar e que já não era mais
contemplada na natureza, mas nas primeiras páginas dos jornais.
A pose de Lindonéia é a pose padrão do retrato para carteiras de identidade que
neutraliza o retratado, destacando assim o anonimato de Lindonéia que passa a ser
confundida com qualquer outra pessoa. Essa imagética da obra e os jargões jornalísticos
utilizados fazem com que Gerchman transmita narrativamente um sentimento coletivo
através de fatos particulares usando como meio para isso a apropriação da linguagem do
jornal. Embora remeta a coletividade, em Lindonéia é também percebida determinada
solidão. Uma solidão vista tanto na figura representada, como na construção da obra que
se assemelha de certo modo, a uma espécie de bibelô de uma personagem já morta, algo
parecido com uma lápide.
É nítida, portanto, a relação entre Lindonéia e o jornal. Mas na obra, a
linguagem jornalística é muito mais desconstruída do que reproduzida. Os jargões
sensacionalistas se mostram ao mesmo tempo irônicos e melodramáticos. O aspecto
gráfico da construção do rosto se mostra canhestro e altamente simplificador da forma
tornando quase impossível o reconhecimento do rosto de Lindonéia, caso ela realmente
existisse. As retículas que Gerchman produz são disformes e irregulares, tão distantes
daquele padrão que Roy Lichtenstein entronizou.
Toda essa desconstrução do código do jornal remete a uma postura crítica do
artista que procura ruir a posição dominadora e transformadora da sociedade brasileira
que a mídia vem historicamente impondo. Isso se dá também através da apropriação da
frágil figura de uma das personagens da qual a mídia utiliza tanto como protagonista
como leitora: o cidadão “comum”.
Outra questão importante em Lindonéia é a presença da estética kitsch
percebida na utilização da popular moldura. O filósofo italiano Umberto Eco busca uma
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relação do kitsch com a vanguarda histórica européia, uma vez que as artistas
vanguardistas se opuseram a comestibilidade sem fadiga que segundo o filósofo era
almejada pelos artistas kitsch do início do século XX. Para Eco, os artistas kitsch
pretendiam apenas simular facilmente determinados efeitos em suas obras. E essa busca
de efeitos simulados levou a estética kitsch a se apropriar de alguns elementos da
vanguarda. Dessa maneira, Eco coloca a apropriação como cerne do kitsch, uma vez que
para o autor, o kitsch “[...] é a obra que, para justificar sua função de estimuladora de
efeitos, pavoneia-se com os espólios de outras experiências, e vende-se como arte, sem
reservas.” (ECO, 2004, p. 112)
Deste modo, o kitsch aparece em Lindonéia não apenas na apropriação da
moldura de vidro, como também na apropriação da linguagem do jornal impresso.
Obviamente, Gerchman não almejava simular efeitos superficialmente, muito menos
pavonear sua obra, mas sim apropriar-se daquilo que já estava “pavoneado” refletindo
por sua vez a melancolia, a solidão e o luto da população brasileira. Sem querer definir
kitsch como algo inferior à condição da arte, Gerchman traz para sua produção a estética
declaradamente popular desse tipo de objeto e linguagem de massa.
Analisemos então a partir de agora, a série Homenagem a Fontana de Nelson
Leirner:
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LEIRNER, Nelson. Homenagem a Fontana I. 1967. Lona e
zíper. 180 x 125 cm. Coleção Pinacoteca do Estado de São
Paulo.
Fonte: Chiarelli, 2002, p. 74.
Homenagem a Fontana é uma série composta de três trabalhos: Homenagem a
Fontana I, Homenagem a Fontana II e Homenagem a Fontana III. As três obras se
diferenciam pelas disposições dos zíperes que alteram suas composições, assim como
pela quantidade de camadas de tecido utilizados e pelas cores dos mesmos.
À primeira vista, Homenagem a Fontana não é uma série figurativa
questionando assim o conceito de nova figuração dado para esse período da arte no
Brasil. A série marca uma consistente relação com o concretismo brasileiro, seja pelo
rigor das composições geométricas como pela incitação à participação do público que
dá ao espectador a possibilidade de criar composições que acabam por desmanchar esse
rigor que poderia vir a existir.
Na série, Leirner apropria-se claramente da obra do artista ítalo-argentino
Lucio Fontana. Fontana foi um artista que produzia em suas telas violentos cortes com a
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intenção de que o espaço localizado entre a obra e a parede fosse incorporado ao
trabalho. Tais cortes e incorporações espaciais acabavam discutindo, segundo o artista,
questões de ordem imaterial e transcendental.
Entretanto, Leirner não se apropria da imagem das obras de Lucio Fontana,
mas sim de sua visualidade e de seu conceito para depois subvertê-los e extrapolá-los.
O corte seco e preciso de Fontana se torna maleável em Leirner. A principal marca do
artista ítalo-argentino, a sua autografia, é questionada num simples movimento de abrir
e fechar os zíperes. O público pode, sem medo de ferir profundamente a “pintura”,
simular a incisão do corte assim como cicatrizá-la novamente. Desse modo, Leirner
questiona o status de autoria que uma obra de arte carrega, matando a figura do autor.
Onde estaria o principal “ato criador” nessa obra, na estrutura que o artista constrói ou
na composição cromática que espectador produz?
Homenagem a Fontana ganhou um prêmio na IX Bienal de Tóquio em 1967.
Esse prêmio acabou colocando a obra em destaque no cenário brasileiro, fazendo com
que se criasse em torno da mesma determinada “aura” que acabou sendo dizimada em
pouco tempo, vejamos como.
Após a conquista do prêmio, Leirner apresenta a exposição Da produção em
massa de uma pintura (quadros a preço de custo) composta por várias cópias de
Homenagem a Fontana. Essa produção em série foi feita a partir de um projeto no qual
as características técnicas dos originais se mantiveram fielmente, questionando assim a
própria noção de originalidade assim como a de unidade da obra artística. É como se
Leirner se apropriasse de sua própria obra e a reproduzisse em escala industrial
atacando agora a unidade de seu próprio trabalho e não mais apenas a de Lucio Fontana.
A ironia de Leirner não termina ai. O artista estabelece um preço único para
cada trabalho de 112 cruzeiros novos. Preço esse gerado pelo cálculo sistemático dos
gastos com material e mão de obra, além da porcentagem de lucro destinada à galeria e
ao artista.
Desse modo, Leirner mimetiza todo o processo industrial, desde a produção em
massa de algo a partir de um projeto, passando pela apresentação do “produto” e um
claro estabelecimento de seu preço final, de acordo com o que foi gasto durante o
processo de construção. O preço final de cada obra é, devido à soma justa dos gastos,
acessível à população denotando a obra inevitável caráter político e democrático. Assim
a aproximação com o público ocorre novamente, pois o preço de Homenagem a
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Fontana é bem mais baixo que o preço que, geralmente, se dá a uma obra reconhecida
internacionalmente.
Leirner não compartilha da intenção utópica dadaísta de destruir a arte
enquanto instituição, mas sim infiltra-la para estremecê-la de dentro para fora tomando
como principal alvo o seu núcleo: a unidade da obra. O método que o artista utiliza para
atingir seu objetivo é inserir os impessoais procedimentos da produção industrial dentro
da prática artística, que sempre teve como uma de suas grandes características a
expressão da subjetividade.
Provocação é a palavra de ordem em Homenagem a Fontana. Leirner provoca
o objeto de arte, o status do artista, o sistema de arte, a indústria e o espectador. O
caminho de toda essa provocação é dado pelo ato de apropriar. A apropriação em
Leirner rompe os limites entre arte, público e indústria, mistura seus papéis, questiona
suas importâncias, estremece suas definições. A subversão anárquica de Leirner
demonstra que toda seriedade totêmica pode ser revirada do avesso assim como toda
simplicidade pode ser muito mais complexa e incisiva.
Vimos como Gerchman e Leirner deixam de lado questões tradicionais da arte
como autoria, originalidade e unidade tendo como meio para assim o procedimento de
apropriação. Ao negar essas tradições, tais artistas mostram um desligamento completo
da tradição modernista e embarcam na produção contemporânea, ou se preferirem, pós-
moderna da arte.
Mesmo com minha dissertação defendida e aprovada, ainda me encontro em
pleno processo de pesquisa na qual inúmeros questionamentos pululam aos meus olhos.
Mas de fato, o que percebo agora com o devido distanciamento, é que minha
experiência como “artista” foi de suma importância para esse começo de formação
enquanto historiador da arte. O processo de construção de minha pesquisa teórica é
extremamente semelhante a meu antigo processo de produção das minhas pinturas.
Comecemos pela forte influência que companheiros de mestrado, professores,
orientador, amigos íntimos e familiares. Esses influenciadores do campo acadêmico,
mesmo falando diretamente de minha pesquisa ou apresentando as próprias pesquisas,
foram importantes para que eu pensasse sobre minha produção acadêmica. Não era
importante apenas o que eles falavam, mas, sobretudo o modo como falavam, como
cada um tinha uma capacidade própria de relacionar tudo aquilo que fervilhava suas
cabeças e nos apresentar de modo tão claro e conciso. O modo como cada um tinha de
perceber os seus problemas e solucioná-los, fazendo com que assim eu também
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descobrisse problemas que até então passaram desapercebidos. Já os meus amigos
íntimos e familiares, influenciadores que estavam do lado de fora do programa de
mestrado, também ajudaram para que eu percebesse o quão complexa pode ser tornar
uma pesquisa. Inúmeras vezes me vi debatendo com eles sobre questões que acabara de
ler e eles, com a sabedoria de quem não estava no olho do furacão, mostravam questões
que também estavam passando desapercebidas. Sem falar, nos inúmeros acontecimentos
e conversas que ajudaram a destrinchar muito da abstrata teoria de alguns autores.
Essas influências, aliadas às minhas leituras e a influência geral da cultura
global, fez-me perceber que eu enquanto pesquisador, também sou um legítimo
apropriador. As tantas citações utilizadas são a prova mais cabal disso, mas inúmeras
outras referências são provas de meus delitos. A maneira como pensava na escrita de
determinado autor para produzir a minha própria, a minha organização de dados que se
assemelhava a outras organizações, o modo como buscava descrever cada obra e até em
elementos mais banais como a escolha da fonte tipográfica do texto final. Tudo foi
pautado em algo que já estava pronto. Barthes, em 1968, já havia percebido esses
apontamentos na produção de textos:
Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir
um sentido único, de certa maneira teológica (que seria a ‘mensagem’ do
Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se
contestam escrituras variadas, das quais nenhum é original: o texto é um
tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura. (BARTHES, 1988, p. 68)
Vimos como Rubens Gerchman e Nelson Leirner questionaram o conceito de
autoria e essa não foi uma constatação que descobri apenas na obra dos artistas, mas
também na minha própria escrita. O meu texto já foge do conceito tradicional de autoria
e levanta outros questionamentos sobre essa minha experiência que podemos também
ampliá-la a um contexto maior: o que é um historiador atualmente? O que é um artista
atualmente? Por que esses papéis devem estar, dentro do estudo em e sobre artes tão
definidos? Será que o historiador não cria, não se expressa? Será que o artista não se
volta ao passado, não analisa e não se apropria? O que tem de artista no historiador e o
que tem de historiador no artista?
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BIBLIOGRAFIA:
ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 1995.
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