De Profundis - Oscar Wilde

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Livro de Oscar Wilde

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • INTRODUO AO DE PROFUNDIS

    Em 1905 foi publicada em Londres a obra pstuma de Oscar Wilde, De Profundis. Noprefcio da primeira edio, Robert Ross, grande amigo do autor, escreveu: Este livro quaseno necessita de introduo ou explicaes. S quero deixar registrado que foi escrito pelomeu amigo Oscar Wilde durante os ltimos meses que passou na priso, sendo a nica obraque escreveu enquanto esteve preso e tambm seu ltimo trabalho em prosa.

    A edio de 1905 do De Profundis era composta por trechos de um trabalho bem maislongo, redigido sob a forma de uma carta dirigida a Sir Alfred Douglas. Eram oitenta pginasescritas em letra mida, em vinte folhas de papel azul encimado pelas Armas da Coroa,fornecidas pela direo do presdio. Wilde s podia receber uma folha de cada vez, e esta,uma vez preenchida, era retirada e substituda por outra. Assim, ele no chegou a revisar odocumento final, sendo portanto extraordinria a maneira como este flui naturalmente, j que omanuscrito original quase no apresenta correes.

    Wilde desejava que o documento fosse enviado diretamente da priso para Robert Ross,acompanhado por uma carta contendo instrues sobre o destino que deveria ter. Oregulamento da priso no permitiu que isso acontecesse e, assim, a carta foi enviada sem omanuscrito. De acordo com o regulamento do Presdio, nada que tivesse sido escrito por umprisioneiro enquanto cumpria pena poderia sair da priso, exceto cartas que, mesmo assim,eram cuidadosamente examinadas e censuradas pelas autoridades carcerrias. O diretor daPriso de Reading, entretanto, consentiu em entregar a Wilde o manuscrito quando ele foilibertado, na manh de 19 de maio de 1897. Naquele mesmo dia Wilde deixaria a Inglaterrapela ltima vez. Ao chegar a Dieppe, foi recebido por Robert Ross, a quem entregou omanuscrito, sendo esta a ltima vez em que o viu ou teve algo a ver com ele.

    A carta contendo as instrues fora escrita um ms antes da libertao de Wilde eaparece in extenso na primeira edio completa de sua obra, publicada por Methuen e Cia. em1908. Os trechos que se referem diretamente ao livro so os que seguem:

    Meu querido Robbie,Estou enviando um manuscrito que, espero, chegar so e salvo s suas mos. To logo

    o tenha lido, quero que mande algum copi-lo para mim. H vrias razes pelas quais desejoque isso seja feito, mas uma s ser suficiente: quero que voc seja meu executor literriocaso eu venha a morrer e que assuma total controle sobre minhas peas, livros e papis. E claro que, como meu executor, deve ter em seu poder o nico documento capaz de explicar omeu extraordinrio comportamento. Quando tiver lido a carta, conhecer a explicaopsicolgica para uma conduta que, vista de fora, pareceria ser apenas uma combinao damais absoluta idiotice com a mais vulgar bravata. Algum dia a verdade ser conhecida nonecessariamente enquanto eu for vivo... Mas no estou disposto a permanecer para sempre nagaleria grotesca em que me colocaram, pela simples razo de que herdei dos meus pais umnome da mais alta distino na literatura e nas artes e no posso permitir que esse nome sejaenxovalhado para toda a eternidade. No pretendo defender minha conduta. Explico-a,apenas...

    Quanto ao mtodo utilizado para a cpia, no quero que ela seja feita em papel de seda,

  • mas em folhas de boa qualidade, como as que so usadas para copiar peas teatrais, deixandosempre uma larga margem rubricada para as correes... A datilgrafa poder ser alimentadaatravs de uma fenda na porta, como acontece com os Cardeais enquanto escolhem o Papa, ato momento em que chegar janela e anunciar ao mundo: Habet mundus Epistolam! Pois queesta carta na verdade uma encclica e, assim como as bulas do Santo Papa recebem o nomede suas palavras iniciais, poder ser conhecida como: Epistola: in Carcere et Vinculis.

    Uma cpia foi feita segundo as instrues de Wilde. Robert Ross no permitiu que acarta ficasse fora do alcance de suas mos e ditou-a a uma datilgrafa, que fez um original euma cpia a carbono. Este detalhe importante para que possamos entender a histriasubsequente. Em vez de enviar o manuscrito para Alfred Douglas, Ross guardou-o, enviando aDouglas uma cpia datilografada. Fez bem ao agir assim. A verdade que conhecia muito bemo carter de Douglas. Este, depois de ler as primeiras pginas, julgou aquilo tudo bem maiordo que o que sua vaidade poderia suportar e deixou-as de lado, destruindo-as mais tarde, pois,num daqueles acessos de ingenuidade que s vezes o acometiam, acreditou que aquela deveriaser a nica cpia existente e que seu gesto resolveria definitivamente uma situaoembaraosa.

    Alguns anos mais tarde, Alfred Douglas romperia com Robert Ross. A esta altura ele jhavia descoberto que este possua o manuscrito original e pediu que ele lhe fosse entregue,argumentando que, como fora endereado a ele, na verdade lhe pertencia. No h dvida deque pretendia obter uma bela soma com sua venda, como j acontecera com a venda de todasas cartas que Wilde lhe escrevera. Mas Ross decidiu a questo, lacrando o manuscrito edoando-o ao Museu Britnico, sob a condio de que este deveria mant-lo lacrado durante osprximos sessenta anos, findos os quais seria de esperar que todas as pessoas mencionadas nacarta j estivessem mortas.

    Isto aconteceu em 1909 e o assunto poderia ter permanecido encerrado at 1969. Masem 1912 Alfred Douglas aborreceu-se com certos trechos de um estudo sobre Oscar Wildeescrito por Arthur Ransome. Embora seu nome no tivesse sido mencionado, qualquer pessoaque conhecesse as circunstncias do caso no teria a menor dificuldade em identific-lo, eAlfred Douglas decidiu entrar com uma ao contra Ransome, na esperana de que, atravsdeste, pudesse prejudicar tambm a Robert Ross.

    O caso foi julgado em abril de 1913, durante quatro dias, diante do Juiz Justice Darlinge de um jri especial. A principal prova era a carta guardada no Museu Britnico, que foiportanto aberta e apresentada pelo bibliotecrio do Museu, por intimao do Tribunal. Vriostrechos foram lidos no Tribunal e transcritos no Times. O jri decidiu que as palavras quehaviam motivado a queixa eram realmente injuriosas, mas verdadeiras. O veredito, que incluao pagamento das custas do processo, foi favorvel a Arthur Ransome e o manuscrito voltou aoMuseu.

    Como a defesa baseava-se quase inteiramente na carta que Wilde escrevera na priso,era natural que Alfred Douglas recebesse uma cpia dessa carta. Imediatamente, Douglasanunciou a inteno de public-la na Amrica (j que os direitos de publicao na Inglaterra oimpediam de faz-lo), com seus prprios comentrios. A cpia feita em 1897 ainda seencontrava em poder de Ross. Assim, para impedir que Douglas realizasse o seu intento, Ross

  • a enviou para Nova York no primeiro navio e l Paul Reynolds fez imprimir rapidamente 16cpias, com o nico objetivo de garantir os direitos de publicao na Amrica. No houvetempo de corrigir as provas tipogrficas, j que a principal preocupao era assegurar odireito de edio antes que Alfred Douglas pudesse faz-lo.

    Com a preciosa ajuda de Reynolds, o livro ficou pronto em dez dias. Dos dezesseisexemplares impressos, quinze foram enviados para a Inglaterra, sendo distribudos entre osamigos do autor e doados a vrias bibliotecas. A dcima sexta cpia foi posta venda na salade exposies do responsvel pela impresso, de acordo com a lei americana que rege ocopyright. Seu preo foi fixado em cinco mil dlares, para desencorajar os curiosos, mas notardou a aparecer algum disposto a pagar esta alta soma e a obra foi retirada sem que sedescobrisse o nome do comprador. Tal como apareceu, o livro estava cheio de erros deimpresso e lacunas, mas era suficientemente exato para o propsito a que se destinava.

    A cpia a carbono original (se que podemos cham-la assim) voltou Inglaterra e,com a morte de Robert Ross em 1918, veio ter s minhas mos. O texto a seguir tirado dessacpia. O manuscrito original ainda permanece no Museu Britnico, pois as autoridades doMuseu jamais permitiram que algum tivesse acesso a ele, embora seu contedo j no sejamais segredo e portanto no exista mais qualquer razo para que permanea lacrado.

    Em 1936 foi sugerido que chegara o momento de publicar a carta na ntegra. AlfredDouglas nunca admitira antes a sua publicao, mas decidiu retirar suas objees, percebendoque mais cedo ou mais tarde ela teria que aparecer e que talvez fosse melhor se issoacontecesse enquanto ele ainda estava vivo. Mas quando as negociaes j iam adiantadas,Douglas retirou seu consentimento e o projeto teve que ser arquivado. Alfred Douglas morreuem 1945, e o ltimo obstculo que impedia a publicao desapareceu com ele.

    Em 1908, Robert Ross permitiu que o Dr. Max Meyerfeld traduzisse a carta para oalemo e ela foi publicada pela Editora S. Fisher, de Berlim. O ttulo que o Dr. Meyerfeldescolheu foi o mesmo que o prprio Wilde sugerira em tom de brincadeira, ou seja: Epistola:in Carcere et Vinculis. Em 1914, Frank Harris publicou uma biografia de Oscar Wilde em queaparecem trechos da carta, copiados das transcries no muito exatas que o Times fizeradurante o julgamento. Henry Daviel tambm publicou algumas passagens em francs. Houve,alm dessas, uma verso no autorizada em espanhol, traduzida do alemo, e uma outra versopirata, totalmente ridcula, que circulou na Amrica, to completamente diferente do originalque bem poderia ser uma traduo da verso espanhola feita a partir da traduo alem!

    Seja como for, esta a primeira verso completa e exata da ltima obra em prosa deOscar Wilde. Atravs dela, Wilde esperava que a posteridade e at mesmo seus inimigospudessem entender seus sofrimentos. Neste documento ele tentou como ele prprio haviadeclarado explicar sua conduta sem tentar defend-la.

    Vyvyian Holland[1]Junho de 1949

    [1]Segundo filho de Oscar Wilde, responsvel pela publicao da verso completa do De Profundis. (N.E.)

  • EPISTOLA:

    Priso de Sua Majestade, Reading.

    Querido Bosie[1]:

    Depois de longa e infrutfera espera decidi escrever-lhe, tanto para o seu prprio bemquanto para o meu, pois no me agradaria pensar que suportei dois longos anos de crcere semreceber uma s linha sua, ou mesmo qualquer recado ou notcia, salvo algumas que s metrouxeram sofrimento.

    Nossa malfadada e lamentvel amizade acabou levando-me runa e ao descrditopblico e, no entanto, a lembrana da antiga afeio que nos unia est sempre comigo e bemtriste para mim pensar que o dio, o desprezo e o rancor tomaro para sempre em meucorao o lugar antes ocupado pelo amor. Creio que, no ntimo, voc tambm sentir que bem melhor escrever-me enquanto amargo a solido do crcere do que publicar minhas cartassem meu consentimento ou dedicar-me poesias que no solicitei, embora o mundo jamaisvenha a conhecer quaisquer palavras de remorso ou paixo, de dor ou indiferena que vocdecida enviar-me como resposta ou apelo.

    No tenho nenhuma dvida de que nesta carta, em que preciso que eu escreva sobre asua vida e a minha, sobre o passado e o futuro, sobre coisas boas que se transformaram emamargura e amarguras que poderiam transformar-se em alegrias, haver muita coisa capaz deferir profundamente a sua vaidade. Se isso acontecer, leia e releia a carta at conseguireliminar essa vaidade. Se encontrar nela alguma acusao que lhe parea injusta, lembre-seque devemos ser sempre gratos por qualquer falta da qual possamos ser injustamenteacusados. E se encontrar nela uma s passagem capaz de fazer com que seus olhos se enchamde lgrimas, chore como ns choramos na priso, onde tanto o dia quanto a noite foram feitospara as lgrimas. Esta a nica coisa que pode salv-lo. Se, porm, for procurar sua me paraqueixar-se, como fez quando eu me referi a voc com tanto desprezo na carta que escrevi aRobbie, para que ela possa adul-lo e lisonje-lo, fazendo retornar todo o seu orgulho e a suasatisfao consigo mesmo, estar completamente perdido. Pois se conseguir encontrar uma sjustificativa para o seu comportamento, no tardar a encontrar mais de cem e voltar a serexatamente o que era antes. Ainda diz, como disse a Robbie em resposta carta que ele lheescreve, que eu atribua a voc motivaes bem pouco dignas? Ah, mas se a sua vida notinha qualquer motivao! Uma motivao um objetivo intelectual e voc tinha apenasapetites. Que voc era muito jovem quando a nossa amizade comeou? Mas se o seu malno era que soubesse to pouco sobre a vida, mas que soubesse tanto! Ao me conhecer, jhavia deixado para trs o amanhecer da infncia com seu delicado vio, sua luz pura e clara,sua alegre inocncia to plena de esperanas. Com passos rpidos e apressados, haviapassado do Romance ao Realismo. O esgoto, e tudo o que nele vive, j tinha comeado aexercer sobre voc o seu fascnio. Esta foi a causa do problema que fez com que voc meprocurasse em busca de auxlio, quando eu, to imprudentemente e indo contra a sabedoria domundo, por compaixo e bondade, decidi auxili-lo. preciso que voc leia esta carta,

  • embora cada palavra possa feri-lo assim como o fogo ou o bisturi do cirurgio fazem arder esangrar a carne delicada. Lembre-se que h uma grande diferena entre aquele a quem osdeuses julgam tolo e aquele que parece tolo aos olhos dos homens. possvel ignorarinteiramente todas as formas que a arte pode assumir em suas diversas manifestaes ou osprocessos de evoluo do pensamento, o esplendor de um verso latino, a musicalidade tocheia de vogais do idioma grego, da escultura toscana ou da cano elizabetana e ainda assimestar cheio da mais doce sabedoria. O verdadeiro tolo, de quem os deuses zombam e a quemtentam destruir, aquele que no conhece a si prprio. Durante muito tempo eu fui um deles.Voc tambm: deixe de s-lo. No tenha medo. O supremo pecado a superficialidade. Tudoque realizado certo. Lembre-se tambm que por mais que sofra ao ler esta carta, eu sofrimuito mais ao escrev-la. Os Poderes Invisveis foram generosos com voc. Permitiram-lhever os aspectos mais estranhos e trgicos da vida como quem v as sombras refletidas nocristal. Permitiram-lhe como uma imagem vista atravs do espelho. Voc pode caminharlivremente por entre as flores, enquanto eu me vi privado do maravilhoso mundo das cores edo movimento.

    Comearei por dizer-lhe que me julgo terrivelmente culpado. Aqui na minha celaescura, envergando este uniforme de prisioneiro, um homem desgraado e totalmentearruinado, eu me julgo culpado. Nas agitadas noites cheias de angstia, nos longos emontonos dias cheios de sofrimento, a mim que eu culpo. Culpo a mim mesmo por terpermitido que uma amizade que nada tinha de intelectual, uma amizade cujo objetivo principaljamais foi a criao ou a contemplao do belo, dominasse inteiramente a minha vida. Desdeo incio, sempre houve um abismo muito grande a separar-nos. Voc fora indolente durante ocurso secundrio e bem mais do que isso na universidade. Nunca foi capaz de entender que umartista, e especialmente um artista como eu, para quem a qualidade das obras que cria dependede uma intensificao da personalidade, necessita, para que sua arte possa desenvolver-se, deum ambiente onde haja perfeita comunho de ideias, de uma atmosfera intelectual, de silncio,paz e solido. Voc s admirava o meu trabalho depois de v-lo terminado. Apreciava obrilhantismo das noites de estreia e dos banquetes que se seguiam. Sentia-se orgulhoso o que muito natural por ser o amigo mais ntimo de um artista to famoso. Mas era incapaz deperceber as condies necessrias criao de uma obra artstica. No estou lanando mo defrases cheias de exagero retrico, mas apenas de palavras que expressam a mais absolutafidelidade aos fatos, quando afirmo que durante todo o tempo em que estivemos juntos eu noescrevi sequer uma linha. Fosse em Torquay, Goring, Londres, Florena ou qualquer outrolugar, enquanto esteve ao meu lado minha vida foi totalmente estril e improdutiva. E lamentodizer que, exceto por breves intervalos, voc esteve sempre a meu lado.

    Lembro-me, por exemplo, de setembro de 1893 para citar s um caso entre muitos ,quando aluguei alguns aposentos mobiliados com o nico propsito de poder trabalhar semser perturbado, pois havia quebrado meu contrato com John Harc, a quem prometera escreveruma pea e que me pressionava, insistia para que eu cumprisse o prometido. Durante aprimeira semana voc se manteve afastado. Tnhamos discutido a propsito da qualidadeartstica de sua traduo da Salom, o que era alis bastante compreensvel. Seja como for,naquela primeira semana voc se limitou a me enviar cartas bastante tolas sobre o assunto.

  • Durante este tempo, eu escrevi e completei com todos os detalhes, tal como seria mais tardeencenado, o primeiro ato de Um Marido Perfeito. Mas na segunda semana voc voltou eminha obra foi praticamente abandonada. Eu chegava a St. James todas as manhs s onze emeia para ter uma chance de refletir e escrever sem as interrupes sempre presentes emminha prpria casa, embora esta fosse bastante silenciosa e tranquila. Mas a tentativa eraintil: s doze horas voc chegava e ficava conversando e fumando at as treze e trinta,quando eu devia lev-lo a almoar no Caf Royal ou no Berkeley. O almoo, sempre regado avinho, prolongava-se at as quinze e trinta. Durante uma hora voc se retirava, indo at oClube White. Voltava na hora do ch, permanecendo a meu lado at o momento de vestir-separa o jantar. Jantvamos no Savoy ou na Rua Tite e normalmente s nos separvamos depoisda meia-noite, pois era preciso que uma ceia no Willis encerrasse mais um dia encantador.Esta foi a minha vida durante aqueles trs meses, exceto durante os quatro dias que vocpassou no continente quando eu, naturalmente, tive que ir busc-lo em Calais para traz-lo devolta. Deve convir que, para algum com a minha natureza e temperamento, a situao era aum tempo ridcula e trgica.

    Certamente capaz de entender tudo isso agora. Deve perceber que a sua incapacidadede ficar sozinho, seu temperamento voluntarioso, sempre a exigir a ateno e o tempo dosoutros; sua total impossibilidade de manter qualquer tipo de concentrao por perodos maislongos; o infeliz acidente pois agrada-me pensar que aquilo no fosse mais que um simplesacidente de que ainda no tivesse conseguido adquirir o temperamento oxfordiano emassuntos intelectuais, no conseguindo jamais ser algum que pudesse jogar graciosamentecom as ideias mas apenas defend-las com violncia. Todas essas coisas, combinadas ao fatode que o seu interesse concentrava-se no na Arte mas na Vida, eram fatores to prejudiciaisao seu desenvolvimento cultural quanto ao meu trabalho como artista. Quando comparo minhaamizade com voc que mantive com homens ainda mais jovens, como John Gray e PierreLouys, sinto-me envergonhado. A minha verdadeira vida, a minha vida superior, foi vividajunto a eles e a outros iguais a eles.

    No vou falar agora das terrveis consequncias da nossa amizade. No momento, pensoapenas no que ela foi enquanto durou. Do ponto de vista intelectual, algo sem dvidadegradante para mim. Voc possua o germe de um temperamento artstico, certo. Mas averdade que eu o conheci demasiado tarde ou demasiado cedo, no sei. Quando vocestava longe, eu voltava ao normal. Lembro-me que nos primeiros dias de dezembro do ano aque j me referi eu conseguira convencer sua me a mand-lo para fora da Inglaterra e maisuma vez pude recolher a dilacerada teia da minha imaginao e assumir outra vez o controlesobre a minha prpria vida, conseguindo no apenas terminar os trs ltimos atos de UmMarido Perfeito, como conceber e quase completar duas outras peas de gneros totalmentediferentes, a Tragdia Florentina e La Sainte Courtisane. Mas, subitamente, sem que euesperasse ou desejasse, e em circunstncias que provariam ser fatais para a minha felicidade,voc voltou. No consegui retomar as duas obras ainda imperfeitas, nem voltei a recuperarjamais o mesmo estado de esprito que me levara a cri-las. Agora que publicou um volumede poesias, voc mesmo ser capaz de reconhecer a verdade de tudo o que acabo de dizeraqui. Seja como for, ela permanece como uma terrvel verdade no prprio cerne da nossa

  • amizade. Enquanto esteve a meu lado voc provocou a runa absoluta da minha arte, e eu mecubro de culpa e de vergonha por ter permitido que isso acontecesse. Voc no podia saber,no podia entender, era incapaz de perceber e eu no tinha nenhum direito de esperar quepudesse faz-lo. Voc s pensava em si mesmo, nos seus divertimentos, nos seus prazeresmais, ou menos, requintados. Era deles que seu temperamento necessitava ou pensavanecessitar naquele momento. Eu deveria ter proibido sua entrada em minha casa e em meuestdio salvo quando especialmente convidado, e hoje me culpo sem reservas pela minhafraqueza. Pois era apenas uma fraqueza, j que meia hora em contato com a arte sempresignificou muito mais para mim do que um longo perodo passado a seu lado. Na verdade,nada, em qualquer poca da minha vida, teve a menor importncia para mim quandocomparado arte. E quando se trata de um artista, toda a fraqueza capaz de embotar o poderde criao nada mais nada menos do que um crime.

    Culpo-me por ter permitido que voc me levasse mais completa e absolutadecadncia. Lembro de uma manh de outubro de 1892, em que eu e sua me conversvamos,sentados sob as rvores de folhas amarelecidas do bosque de Bracknell. Naquela poca euainda conhecia muito pouco da sua verdadeira ndole. Tnhamos passado um fim de semanajuntos em Oxford e voc permanecera dez dias a meu lado em Cromer, jogando golfe durante amaior parte do tempo. Comeamos a conversar sobre o seu carter e sua me revelou-me oque julgava ser dois de seus maiores defeitos: a excessiva vaidade e a falta de habilidadepara assuntos financeiros. Lembro-me bem como eu ri ao ouvi-la. No tinha ento a menorideia de que o primeiro deles acabaria por levar-me priso, e o segundo, bancarrota. Via asua vaidade como uma espcie de graciosa flor que todo jovem deveria usar como adorno;quanto prodigalidade pois pensei que era a isso que sua me estivesse se referindo ,virtudes tais como a prudncia e a economia no faziam parte do meu temperamento, nem daminha prpria raa. Mas antes que um ms se tivesse passado, comecei a entender overdadeiro significado das palavras de sua me. Sua insistncia em levar uma vidadesregrada, seus incessantes pedidos de dinheiro, a ideia de que eu deveria pagar por todos osseus prazeres, mesmo quando no tomava parte neles, levaram-me em breve a enfrentar sriasdificuldades econmicas. E o que tornava toda aquela extravagncia to monotonamentedesinteressante, pelo menos aos meus olhos, medida que seu domnio sobre a minha vida seia fazendo cada vez mais forte, era o fato de que quase todo aquele dinheiro fosse gastoapenas em comidas, bebidas e coisas do gnero. Concordo que uma vez ou outra um prazerter a mesa adornada pelo vermelho das rosas e do vinho, mas voc conseguia ultrapassartodos os limites do bom gosto e da moderao. Exigia sempre, sem o menor escrpulo, erecebia sem ao menos uma palavra de agradecimento. Aos poucos, foi levado a pensar quetinha o direito de viver s minhas custas num luxo ao qual jamais fora acostumado e que, porisso mesmo, servia para aguar ainda mais seus apetites. No final, quando perdia grandessomas em algum cassino da Algria, limitava-se a enviar-me um telegrama para Londres, namanh seguinte, avisando que eu deveria depositar a quantia perdida na sua conta bancria eno voltava a tocar no assunto.

    Quando eu lhe disser que entre o outono de 1892 e a data da minha priso gastei comvoc e em voc mais de cinco mil libras em moeda corrente, alm das dvidas que contra por

  • sua causa, ter uma ideia da vida que insistia em levar. Acha que exagero? Minhas despesascom voc num dia comum em Londres em almoos, jantares, ceias, diverses, cabriols e oresto iam de dez a vinte libras, e as despesas semanais, que eram naturalmenteproporcionais, chegavam a oitenta ou cento e trinta libras. Durante os trs meses que passamosem Goring, gastei mil trezentas e quarenta libras (incluindo, claro, o aluguel). Vi-me foradoa revisar cada item da minha vida com o sndico da massa falida, e foi horrvel. Sei que vidasimples e pensamentos elevados eram naturalmente um tipo de ideal que voc teria sidoincapaz de apreciar na poca, mas tamanhas extravagncias acabaram sendo a nossa desgraa.Uma das refeies mais deliciosas de que tenho lembrana aconteceu certa noite em que eu eRobbie jantamos num pequeno caf do Soho, e que me custou em shillings tanto quantocostumavam custar-me em libras os meus jantares com voc. Naquele jantar com Robbienasceu o primeiro e melhor de todos os meus dilogos. A ideia, o ttulo, o tratamento, o estilo,tudo foi planejado durante um jantar cujo couvert custou-me apenas trs libras e meia,enquanto que daquelas descuidadas noitadas com voc nada restou, alm da lembrana de quecomamos e bebamos em excesso. E o fato de que eu cedesse sempre aos seus caprichos slhe fazia mal, voc sabe disso agora, pois fazia com que voc exigisse cada vez mais, quasesempre com muito poucos escrpulos e sempre sem nenhuma delicadeza. Senti, comdemasiada frequncia, muito pouca honra ou alegria em ser seu anfitrio. Voc costumavaesquecer j no direi a delicadeza formal de um agradecimento, pois tais delicadezas nocabem numa amizade ntima mas simplesmente as doces virtudes da camaradagem, o encantode uma conversa agradvel, aquele como os gregos costumavam cham-lo etodas as gentis qualidades humanas que tornam a vida mais bela e que, tal como a msica,servem-lhe de acompanhamento, mantendo a harmonia e enchendo de melodia os lugares maisrudes e silenciosos. E embora talvez parea estranho que algum na terrvel situao em queme encontro agora possa achar diferenas entre uma e outra desgraa, ainda assim devoadmitir francamente que a loucura de ter gasto toda essa quantia com voc, e permitido quedilapidasse a minha fortuna com to grandes prejuzos tanto para voc quanto para mim, fazcom que a minha bancarrota adquira, aos meus olhos, um ar de mera extravagncia e eu mesinta duplamente envergonhado. Fui feito para outras coisas.

    Mas, mais do que tudo, culpo-me por ter permitido que voc me levasse maiscompleta degradao moral. A vontade a base do carter e a minha vontade estavatotalmente submetida sua. Sei que o que acabo de afirmar pode soar ridculo aos seusouvidos, mas nem por isso menos verdadeiro. Aquelas cenas constantes, que pareciam ter-setornado para voc uma necessidade quase fsica, durante as quais tanto a sua mente quanto oseu corpo como que se deformavam, fazendo com que voc se transformasse em algo todesagradvel aos olhos quanto aos ouvidos; a terrvel mania que herdou de seu pai deescrever cartas odiosas e abominveis; a total falta de controle sobre as prprias emoesdemonstrada durante os longos perodos em que mergulhava num silncio rancoroso etaciturno e nos sbitos ataques de fria quase epiltica; todas essas coisas sobre as quaischeguei a escrever-lhe uma carta (que voc acabou esquecendo no Savoy ou em outro hotelqualquer e que pde assim ser apresentada ao jri pelos advogados de seu pai), carta quecontinha uma solicitao no de todo desprovida de um certo tom pattico se voc naquela

  • poca pudesse reconhecer o que havia de pattico em seu contedo ou na forma de express-lo , essa foi, repito, a origem e a causa da minha fatdica submisso a voc e s suasexigncias, que se tornavam a cada dia maiores. Voc me venceu pelo cansao. Foi o triunfode uma natureza menor sobre uma maior, um caso tpico de ditadura do mais fraco sobre omais forte, que eu descrevo em uma de minhas peas como sendo a nica ditadura capaz demanter-se.

    Era inevitvel que isso acontecesse: em todos os relacionamentos, sempre precisoencontrar um moyen de vivre. No meu caso no havia outra alternativa: ou eu cedia, oudesistia de voc. E levado pela profunda, embora imerecida, afeio que lhe dedicava; pelagrande piedade que me inspiravam as falhas do seu temperamento; pela minha proverbial boavontade; pela preguia que herdei dos meus antepassados celtas; pela averso que, comoartista, sempre senti diante das cenas vulgares e das palavras grosseiras; pela incapacidade deguardar rancor que era, na poca, uma das caractersticas do meu temperamento; pelo meudesagrado ao perceber como a vida podia transformar-se em algo feio e deselegante porcoisas que, para mim que vivia com os olhos fixos em objetivos mais altos, pareciam sermeras tolices, demasiado mesquinhas para que pudessem merecer mais do que um minuto daminha ateno; por todas essas razes, por mais simples que elas possam parecer, eu acabavacedendo sempre. E como consequncia natural, suas exigncias, seus esforos para dominar-me, suas reivindicaes foram se tornando cada vez mais irracionais. Para voc, os motivosmais vis, os mais baixos apetites, as paixes mais vulgares tornavam-se leis que deviam regera vida daqueles que o cercavam e aos quais eles poderiam ser sacrificados, sem o menorescrpulo, sempre que necessrio. Sabendo que, se fizesse uma cena, conseguiria fazer valer asua vontade, era apenas natural que se lanasse inconscientemente, acredito a todos osexcessos da mais vulgar violncia. Nos ltimos tempos, j nem mesmo voc sabia a causa detais cenas, ou qual o objetivo que tinha em mente ao inici-las. Tendo se apossado do meugnio, da minha vontade e da minha fortuna, exigia agora, na cegueira provocada por umaambio inesgotvel, apossar-se da minha vida inteira. E foi o que fez. No momento maistragicamente crtico de toda a minha vida, um pouco antes que eu concordasse em dar olamentvel passo, iniciando aquela ao absurda, eu tinha, de um lado, o seu pai que meatacava com cartes hediondos entregues no meu clube e, do outro, voc, que me atacavatambm com cartas no menos odiosas. A carta que recebi na manh do dia em que permiti quevoc me levasse Delegacia de Polcia para solicitar a ridcula ordem de priso contra seupai foi uma das piores que escreveu e pela mais vergonhosa das razes. Entre os dois,acabei por perder a cabea. Minha capacidade de julgar abandonou-me totalmente, substitudapelo terror. E, se me permite a franqueza, direi que, sem saber como escapar a ambos, eucambaleava s cegas como um boi a caminho do matadouro. Cometera um gigantesco erropsicolgico ao pensar que o fato de submeter-me a voc nas pequenas coisas no significassenada, pois quando o grande momento enfim chegasse eu seria capaz de reafirmar a minhavontade graas minha natural superioridade. Mas no foi isso que aconteceu: quando ogrande momento chegou, minha vontade havia me abandonado. Na verdade, na vida no hcoisas grandes ou pequenas: todas tm o mesmo valor e o mesmo tamanho. Meu hbito noincio devido principalmente indiferena de ceder sempre a voc em tudo transformara-se

  • insensivelmente em parte da minha verdadeira natureza, fixando em mim um estado de nimopermanente e fatal. No sutil eplogo primeira edio de seus ensaios, Pater diz queFracassar formar hbitos. Quando afirmou isso, os obtusos intelectuais de Oxfordpensaram que a frase era simplesmente a deliberada inverso de um texto um tanto maante datica aristotlica, mas na verdade ela contm uma verdade terrvel e maravilhosa: eu haviapermitido que voc minasse o meu carter, e para mim a formao de um hbito acabara portransformar-se no apenas num fracasso mas na prpria runa. A verdade que, para mim,voc fora muito mais destruidor do ponto de vista tico do que artstico.

    Depois de ter obtido a ordem de priso, foi a sua vontade que naturalmente prevaleceu eassim, no momento em que eu deveria estar em Londres, ouvindo os sbios conselhos de umadvogado e examinando calmamente a hedionda armadilha em que me deixara prender armadilha digna de uma criana, como seu pai a chama at hoje , entre todos os lugaresterrveis que existem neste mundo de Deus, voc insistiu para que eu o levasse a Montecarlo,onde passou os dias e as noites jogando. Quanto a mim para quem o bacar no tinhaqualquer encanto , ficava abandonado e entregue aos meus pensamentos. Voc se recusava adiscutir, mesmo que por apenas cinco minutos, a situao em que voc e seu pai me haviamcolocado. Minha nica funo era pagar a conta do hotel e suas perdas no jogo. A menoraluso provao que me esperava aborrecia-o. Qualquer nova marca de champanha que nosrecomendassem tinha mais interesse para voc.

    Ao voltarmos a Londres, aqueles entre os meus amigos que realmente se preocupavamcom o meu bem-estar imploraram para que eu deixasse o pas e no enfrentasse um julgamentoabsurdo. Voc atribuiu-lhes os motivos mais torpes para que me tivessem dado tais conselhose chamou-me de covarde por dar-lhes ouvidos. Obrigou-me a ficar em Londres para enfrentara situao no banco dos rus e venc-la, se possvel lanando mo de mentiras e falsostestemunhos totalmente absurdos e tolos. Quando tudo acabou, eu fui para a priso, claro, eseu pai tornou-se o heri do dia, e mais do que isso at: por estranho que possa parecer, suafamlia ocupa agora um lugar ao lado dos Imortais e, graas ao toque absurdo que se constituino elemento gtico da Histria e faz de Cleo a menos sria entre todas as Musas, seu paiviver para sempre entre os bondosos e ntegros pais de que nos falam os textos da EscolaDominical, voc sentar ao lado do Infante Samuel enquanto que eu, mergulhado na lama maissrdida de Malebolge, serei colocado entre Gilles de Retz e o Marqus de Sade.

    Sei que deveria ter me libertado de voc. Deveria t-lo enxotado da minha vida talcomo o homem que sacode de suas vestes qualquer inseto que o tenha picado. Na maisextraordinria de todas as suas peas, squilo nos conta a histria de um grande senhor queleva para casa um filhote de leo e a ele se afeioa porque o animal atende ao seuchamado com os olhos brilhantes e o cobre de carcias sempre que deseja ser alimentado; at o dia em que, j adulto, mostra averdadeira ndole da espcie , destruindo no apenas o seu senhor, como asua casa e tudo o que ele possua. Sinto que agi tal qual esse grande senhor. Mas o meu errono foi que no tivesse me separado de voc, mas que o tivesse feito com demasiadafrequncia. Tanto quanto posso lembrar-me, eu terminava a nossa amizade a cada trs meses,regularmente. E a cada vez que isso acontecia, voc conseguia induzir-me a aceit-lo de volta,

  • lanando mo de splicas, cartas, telegramas, intercesso dos seus e dos meus amigos e outrasmedidas semelhantes. Quando, em fins de maro de 1893, voc deixou a minha casa emTorquay, decidi que jamais voltaria a v-lo, a falar com voc ou a permitir, fossem quaisfossem as circunstncias, que voltasse a estar comigo, to repugnante fora a cena que haviafeito na noite anterior sua partida. Mas ao chegar a Bristol, voc j enviava uma carta e umtelegrama, suplicando que eu o perdoasse e fosse ao seu encontro. Seu tutor, CampbellDodgson, que havia permanecido em minha casa, disse-me ento que s vezes chegava apensar que voc no era inteiramente responsvel pelas suas palavras e atos e que a maioria se no todos dos homens de Magdalen compartilhavam da sua ideia. Consenti em encontr-lo e, naturalmente, acabei perdoando mais uma vez. Quando voltvamos a Londres, voc mepediu que eu o levasse ao Savoy e aquela foi, sem a menor dvida, uma visita fatdica paramim. Trs meses depois, em junho, estvamos em Goring. Alguns amigos seus vieram passar ofim de semana conosco. Na manh do dia em que partiram, voc fez uma cena de tal modohorrvel e penosa que eu declarei que deveramo-nos separar definitivamente. Lembro-memuito bem da nossa conversa no campo de croquet, cercados pelo belo gramado verde,quando eu procurei faz-lo entender que estvamos estragando as nossas vidas, que vocarruinava a minha e que era evidente que eu tambm no o fazia feliz e que, nessascircunstncias, a atitude mais sbia seria uma separao total e definitiva. Voc partiu com umar sombrio, deixando com o mordomo uma de suas cartas mais ofensivas, que ele deveriaentregar-me depois da sua partida. Antes que se passassem trs dias, telegrafava-me deLondres suplicando o meu perdo e pedindo para voltar. E eu, que havia alugado a casa spara agrad-lo, que contratara a seu pedido seus prprios empregados para servir-nos, quesempre sentira uma pena enorme daquele gnio terrvel de quem voc era na verdade escravo,eu, que gostava de voc, permiti que voltasse e perdoei-o. Trs meses depois, em setembro,novas cenas provocadas pelo fato de eu ter apontado os erros dignos de um escolar que vochavia cometido ao tentar traduzir Salom. provvel que agora j conhea francs o bastantepara saber que aquela traduo era to indigna de um egresso de Oxford quanto da obra queprocurava traduzir. Mas claro que naquela poca ainda no sabia disso e, numa das violentascartas que me escreveu sobre o assunto, chegou a afirmar que no tinha qualquer tipo decompromisso intelectual comigo: lembro-me que ao ler essa declarao senti que aquela tinhasido a nica coisa verdadeira que j me havia escrito durante todo o tempo que durava a nossaamizade. Percebi tambm que teria sido mais feliz se possusse um esprito menos cultivado.E no digo isso com rancor, mas por simples companheirismo. Basicamente, o dilogo onico vnculo capaz de unir duas pessoas, seja no casamento ou na amizade. Mas, para quehaja dilogo, necessrio que existam interesses comuns. E entre duas pessoas de nvelcultural totalmente diverso, o nico interesse comum possvel s pode existir ao nvel maisbaixo. A simplicidade de pensamentos e aes pode ser encantadora. Eu fiz dela a base deuma brilhante filosofia, expressa em peas e paradoxos. Mas a frivolidade e a insensatez danossa vida tornavam-se muitas vezes cansativas para mim: ns s nos encontrvamos em meio lama, e embora o nico assunto em torno do qual invariavelmente girasse a sua conversapudesse ser terrivelmente fascinante, ele acabou por tornar-se bastante montono para mim.Muitas vezes cheguei a sentir um tdio mortal ao ouvi-lo e aceitava-o, assim como aceitava a

  • sua paixo pelo teatro musicado, a mania por extravagncias absurdas no comer e no beber ouqualquer outra de suas caractersticas menos atraentes, como algo que simplesmente tivesse deser suportado, parte do alto preo que era preciso pagar por t-lo conhecido. Quando, depoisde deixar Goring, passei uma quinzena em Dinard, voc ficou extremamente zangado por euno ter querido lev-lo comigo e antes da minha partida fez algumas cenas bastantedesagradveis no Hotel Albemarle e enviou-me telegramas igualmente desagradveis parauma casa de campo onde estive hospedado durante alguns dias. Lembro-me de lhe ter dito quejulgava que voc tinha o dever de ficar um pouco com sua famlia, pois passara toda atemporada longe deles. Mas na verdade, para ser totalmente franco, eu no desejava t-lo aomeu lado. Tnhamos passado quase doze semanas juntos e eu necessitava descansar, libertar-me da terrvel tenso que a sua companhia me causava, ficar um pouco sozinho era umanecessidade intelectual. E assim, confesso que vi em sua carta, qual j me referi, uma timaoportunidade para encerrar a funesta amizade que havia surgido entre ns e encerr-la semamargura, como na verdade j havia tentado fazer naquela bela manh de julho, em Goring,trs meses antes. Entretanto, um de seus amigos, ao qual voc recorrera naquele momentodifcil, descreveu-me e devo dizer que o fez com muita franqueza o quanto voc ficariamagoado, talvez at mesmo humilhado, ao ver devolvida a sua traduo como se ela no fossemais do que a tarefa de um colegial. Afirmou que eu esperava demais de voc do ponto devista intelectual e que, no importa o que escrevesse ou dissesse, a verdade que voc me erainteiramente devotado. Eu no queria ser aquele a impedir ou desencorajar os seus primeirospassos na vida literria. Sabia muito bem que, a menos que tivesse sido feita por um poeta,nenhuma traduo poderia reproduzir adequadamente a cor e a cadncia da minha obra. Almdisso, essa devoo total que voc me dedicava parecia-me ento, como ainda hoje, algomaravilhoso demais para que eu pudesse desprez-lo. E acabei por aceitar a voc e traduode volta. Foi assim que, exatamente trs meses mais tarde, depois de uma srie de incidentesque culminaram com uma discusso mais chocante do que as habituais, numa noite de segunda-feira quando voc chegou ao meu estdio acompanhado por dois amigos, eu me vi de repentefugindo, na manh seguinte, para escapar de voc. Inventei uma razo absurda para explicarminha sbita partida minha famlia e deixei com meu criado um endereo falso, temendo quevoc me seguisse no primeiro trem. Viajei para Paris. Lembro-me que naquela tarde, enquantoo trem avanava rapidamente, eu pensava na situao terrvel, absurda e totalmente errada emque me encontrava. Eu, um homem conhecido em todo o mundo, via-me obrigado a fugir daInglaterra para tentar livrar-me de uma amizade que estava destruindo o que de melhor haviaem mim, tanto do ponto de vista intelectual quanto moral. E a pessoa da qual eu fugia no eraum monstro terrvel que tivesse surgido de um esgoto ou do lodo para o mundo em que euvivia, mas um jovem do meu prprio nvel, da mesma classe social, que frequentara a minhaescola em Oxford e era presena constante em minha casa. Seguiram-se os costumeirostelegramas, cheios de splicas e de remorso. Ignorei-os. Finalmente voc me fez uma ameaa,afirmando que, se eu no consentisse em encontr-lo, no viajaria ao Egito, para onde, comseu conhecimento e concordncia, eu mesmo suplicara sua me que o enviasse, afastando-oda Inglaterra, pois soubera que voc arruinava a sua vida em Londres. Imaginei que se talcoisa acontecesse ela ficaria terrivelmente desapontada e foi por ela que decidi encontr-lo e,

  • sob a influncia de uma grande emoo, da qual at mesmo voc no pode ter esquecido,acabei por perdoar o passado, embora no tivesse dito uma s palavra sobre o futuro. Aovoltar a Londres no dia seguinte, lembro de ter ficado s em meu quarto tentando,melancolicamente, e com toda a seriedade, decidir se voc seria realmente o que me pareciaser, to cheio de terrveis defeitos, com tal capacidade para destruir tanto a si prprio como atodos aqueles que o cercavam, um homem cuja amizade e at mesmo a simples companhia poderia ter consequncias to funestas. Durante uma semana pensei sobre o assunto e indagueia mim mesmo se no estaria afinal sendo injusto e equivocado na minha avaliao. Ao fimdeste tempo, recebi uma carta de sua me em que ela expressava, na ntegra, todos os meussentimentos a seu respeito. Na carta, sua me falava sobre a sua vaidade cega que fazia comque voc desprezasse seu prprio lar e tratasse seu irmo mais velho aquela candidissimaanima como um filisteu; do seu temperamento violento e do temor que a impedia de falarcom voc sobre a sua prpria vida, a vida que, ela sentia, voc estava levando; sobre a suaconduta em assuntos de dinheiro, to penosa para ela por vrias razes, sobre as mudanas e adegenerao que observava em voc. Ela era capaz de perceber, naturalmente, que fatoreshereditrios haviam colocado sobre os seus ombros o peso de uma herana terrvel e oadmitia francamente, cheia de terror: Ele o nico dos meus filhos que herdou otemperamento dos Douglas. Ao final, afirmava sentir-se obrigada a dizer que, na sua opinio,a nossa amizade intensificara de tal forma a sua vaidade que esta acabara por se tornar aorigem de todos os seus erros e me implorava, angustiada, para que eu no fosse encontr-lono continente. Respondi dizendo que concordava inteiramente com cada uma das palavras queacabara de ler. E disse mais, fui to longe quanto me foi possvel ir: disse-lhe que a nossaamizade tinha comeado quando voc, ainda estudante em Oxford, me procurara suplicandopara que eu o ajudasse a resolver um problema de carter extremamente particular. Afirmeique sua vida fora continuamente perturbada por problemas semelhantes. Que vocresponsabilizara seu companheiro de viagem pela ida Blgica e que, naquela ocasio, elaprpria me havia incriminado por t-lo apresentado a voc, mas que agora eu recolocava aculpa sobre os ombros certos: os seus. Ao encerrar, assegurei que no tinha a menor intenode encontr-lo no exterior e supliquei que ela tentasse mant-lo fora da Inglaterra comoattach honorrio de alguma embaixada, se isso fosse possvel, ou sob o pretexto de aprenderlnguas modernas ou qualquer outro que ela escolhesse, durante pelos menos dois ou trs anos,tanto para o seu prprio bem quanto para o meu. Durante todo esse tempo, cada mala decorreio que chegava do Egito me trazia uma carta sua. No tomei conhecimento delas: eu aslia e rasgava, sem respond-las. Estava decidido a me afastar de voc. Tendo tomado essadeciso, passei a dedicar-me com entusiasmo minha arte, cujo progresso eu havia permitidoque voc interrompesse. Ao fim de trs meses, sua me, com aquela lamentvel fraqueza devontade que a caracteriza e que, na tragdia que foi a minha vida, desempenhou um papel nomenos funesto que a violncia de seu pai, voltou a me escrever no tive qualquer dvida quepor ordem sua dizendo-me que voc mostrava-se extremamente ansioso por notcias minhas.Para que eu no tivesse qualquer pretexto, mandou-me tambm seu endereo em Atenas, o qualeu, claro, j conhecia muito bem. Confesso que fiquei totalmente assombrado diante destacarta. No conseguia entender como sua me fora capaz de tomar qualquer iniciativa para

  • reatar nossa infeliz amizade, depois do que me havia escrito em dezembro e da minharesposta. Acusei o recebimento da carta, naturalmente, e mais uma vez insisti para que elatentasse arranjar-lhe um posto qualquer em alguma embaixada no exterior, impedindo quevoltasse Inglaterra. Mas no escrevi a voc e continuei ignorando os seus telegramas.Finalmente, voc chegou ao cmulo de telegrafar minha esposa, suplicando que ela usassetoda a sua influncia para que eu lhe escrevesse. Nossa amizade a fizera sofrer muito, noapenas porque ela jamais havia gostado de voc como pessoa, mas porque percebia como asua presena constante a meu lado era capaz de me transformar e no para melhor. Aindaassim, do mesmo modo como sempre fora delicada e hospitaleira com voc, tambm nosuportava a ideia de que eu pudesse ser indelicado pois era essa a impresso que a minhaatitude lhe causava com qualquer dos meus amigos. Julgava ou melhor, sabia muito bem que tal atitude era completamente estranha ao meu carter. A seu pedido, concordei emcomunicar-me com voc. Lembro-me muito bem das palavras do telegrama que enviei. Nele,eu dizia que o tempo curava todas as feridas, mas que durante muito tempo ainda eu nodesejaria v-lo. Mas sem mais demora voc viajou para Paris, enviando-me telegramasapaixonados pelo caminho, nos quais rogava que eu concordasse em receb-lo ao menos umavez. Chegando a Paris tarde da noite, num sbado, voc recebeu no hotel uma curta mensagemna qual eu reafirmava a minha inteno de no tornar a v-lo. Na manh seguinte, recebi umtelegrama de dez ou onze pginas, onde dizia que, no importava o que me tivesse feito, nopodia acreditar que eu me recusasse terminantemente a receb-lo. Lembrava-me que, paraencontrar-me por uma hora que fosse, havia atravessado a Europa, viajando seis dias e seisnoites sem parar uma s vez. Devo admitir que foi um apelo bastante pattico, que terminavacom o que me pareceu ser uma ameaa mal velada de suicdio. Voc mesmo me havia faladomuitas vezes nas vrias pessoas da sua famlia que haviam manchado as mos com o prpriosangue: seu tio certamente o fizera, seu av, provavelmente, entre outros integrantes daquelaperversa e doida linhagem a qual voc pertence. Assim, por piedade, pela velha afeio queeu sentia por voc, por sua me, para quem a sua morte sob to terrveis circunstncias teriasido um golpe quase insuportvel, pelo meu horror ante a ideia de que uma vida to jovemque, apesar de todos os seus graves erros, ainda guardava uma promessa de beleza, pudesseacabar de forma to horrvel, por uma questo talvez at de humanidade, todas essas razes se que h necessidade delas devem servir como desculpa para o fato de eu ter concordadoem conceder-lhe uma ltima entrevista. Quando cheguei a Paris, as lgrimas que voc no secansou de derramar durante toda a noite e que corriam pelo seu rosto como gotas de chuvaenquanto jantvamos no Voisin e cevamos mais tarde no Paillard; a sincera alegria quedemonstrou ao ver-me, segurando minha mo sempre que podia como uma criana terna econtrita; seu arrependimento to sincero, tudo isso fez com que eu consentisse em renovarnossa amizade. Dois dias depois da nossa volta a Londres, ao ver-me almoando no CafRoyal, seu pai sentou-se a minha mesa, bebeu do meu vinho e, naquela mesma tarde, em umacarta endereada a voc, lanou o seu primeiro ataque contra mim.

    Pode parecer estranho, mas mais uma vez eu me via diante, j no direi daoportunidade, mas do dever de me separar de voc e nada fiz. Creio no ser preciso lembr-lo de que me refiro sua conduta para comigo em Brighton, de 10 a 13 de outubro de 1894.

  • Sei que trs anos demasiado tempo para que voc possa recordar o que aconteceu. Mas ns,que vivemos na priso e em cujas vidas no acontece outra coisa a no ser o sofrimento,somos forados a medir o tempo pelo latejar da dor e a lembrana dos momentos amargos.No temos mais nada em que pensar. O sofrimento curioso como talvez lhe possa parecer o nosso meio de vida porque o nico meio atravs do qual temos conscincia de existir, alembrana dos sofrimentos passados nos necessria como um testemunho, uma prova de quecontinuamos a manter a nossa identidade. Entre eu e a lembrana da felicidade passada existeum abismo no menos profundo do que aquele que me separa da presena real da felicidade.Se a nossa vida tivesse sido como o mundo a imaginava, uma vida de prazeres, libertinagem erisos, eu hoje certamente no seria capaz de lembrar um s momento dela. Por ter sido tocheia de dias e momentos trgicos, amargos, sinistros em seus pressgios, melanclicos oudesagradveis pelas suas cenas montonas e violncias indecorosas, que eu posso revivercada incidente nos seus mnimos detalhes, e na verdade quase no consigo ver e ouvir outracoisa alm deles. De tal modo os homens que aqui habitam vivem atravs da dor e dosofrimento que a amizade que nos uniu, tal como sou forado a lembr-la, aparece aos meusolhos como um preldio em que se harmonizam os vrios tons de angstia que a cada dia eudevo reviver e at mesmo exigir, como se a minha vida, o que quer que ela tenha parecido seraos meus prprios olhos e aos dos outros, no tivesse sido mais do que uma sinfonia de dorque se desenvolvesse atravs de vrios movimentos ritmicamente encadeados at atingir suaresoluo final, com aquela inevitabilidade que caracteriza na arte o tratamento de todos osgrandes temas.

    J falei sobre a sua conduta durante trs dias, h trs anos, no? Eu estava s, emWorthing, tentando terminar minha ltima pea. Voc j me havia feito duas visitas e derepente apareceu pela terceira vez trazendo um companheiro e propondo que eu o hospedasseem minha casa. Recusei-me terminantemente a faz-lo e voc deve admitir que eu estavacerto mas recebi a ambos, claro, embora no em minha casa. No dia seguinte, umasegunda-feira, seu amigo retornou aos deveres da sua profisso mas voc ficou. Entediadocom Worthing e, mais ainda, no tenho a menor dvida, com meus infrutferos esforos paraconcentrar minha ateno na pea, a nica coisa que realmente me interessava no momento,voc insistiu em ser levado para o Grande Hotel de Brighton. Na noite em que chegamos voccaiu doente, o seu segundo ou terceiro ataque daquela terrvel febre to tolamente chamada deinfluenza. No preciso lembr-lo de como eu o cumulei de atenes, proporcionando-lhetodos os luxos que o dinheiro pode comprar, como frutas, flores, presentes, livros e maisafeio, ternura e amor, coisas que pense voc o que pensar no podem ser obtidas comdinheiro. Exceto por um passeio a p pela manh e uma volta de carro tarde, eu no sanunca do hotel. Mandei vir uvas de Londres, pois voc no gostava daquelas que o hoteloferecia, inventei coisas para agrad-lo, permaneci a seu lado ou no quarto contguo, sentavajunto ao seu leito todas as noites para acalm-lo ou diverti-lo. Depois de quatro ou cinco diasvoc se recuperou e eu aluguei aposentos mobiliados para poder acabar a minha pea. Voc,naturalmente, instalou-se comigo. Na manh seguinte nossa mudana, senti-me extremamentemal. Voc teve que ir para Londres a negcios, mas prometeu voltar naquela mesma tarde. EmLondres encontrou um amigo e s voltou a Brighton bem tarde no dia seguinte, quando eu j

  • estava com uma febre terrvel e o mdico descobrira que havia pegado a influenza de voc.Nada poderia ser menos confortvel do que a casa que eu acabara de alugar; meu quartoficava no terceiro andar, a sala no primeiro. No havia nenhum criado para me atender, nemsequer algum que eu pudesse mandar rua com um recado ou para comprar os remdios queo mdico prescrevera. Mas tendo voc a meu lado, isso no chegava a me causar qualquerpreocupao. Durante os dois dias que se seguiram, voc me deixou inteiramente sozinho, semcuidados, sem qualquer tipo de atendimento, sem nada. No se tratava apenas da falta de uvas,flores, presentes encantadores, mas das necessidades mais elementares. Eu no podia sequerbeber o leite que o mdico recomendara; limonada foi considerada algo impossvel de obter; equando suplicava que me trouxesse um livro e, caso no conseguisse encontrar o volume quedesejava, escolhesse qualquer outro, voc nem se dava ao incmodo de ir at l. E quando,por causa disso, eu ficava sem ter nada para ler, voc me assegurava, com a maior calma, quecomprara o livro e que a livraria prometera entreg-lo, uma afirmativa que mais tardedescobri, inteiramente por acaso, ser totalmente mentirosa. Durante todo esse tempo voccontinuou, claro, vivendo s minhas custas, indo a toda parte, jantando no Grande Hotel e saparecendo no meu quarto para pedir mais dinheiro. Na noite de sbado, como tivesse medeixado completamente abandonado e sem qualquer atendimento desde a manh, pedi quevoltasse depois do jantar para ficar um pouco a meu lado. Com um tom de voz irritado edemonstrando contrariedade voc prometeu vir. Esperei em vo at as onze. Deixei um bilheteem seu quarto, apenas para lembr-lo da promessa que me havia feito e de como a haviacumprido. s trs da manh, sem poder dormir e torturado pela sede, enfrentei a escurido e ofrio descendo at a sala, na esperana de l encontrar alguma coisa para beber. Mas foi a vocque encontrei e que logo me atacou com todas as mais horrveis palavras que umtemperamento descontrolado e indisciplinado e um humor totalmente alterado podem sugerir.Graas terrvel alquimia da vaidade, voc transformou o remorso em raiva. Acusou-me deegosmo por pretender que ficasse a meu lado enquanto estivesse doente, de me colocar entrevoc e seus divertimentos, de tentar priv-lo dos seus prazeres. Disse-me, e sem dvidafalava a verdade, que tinha voltado meia-noite apenas para mudar de roupa e tornar a sair,em busca de um lugar onde encontrasse novos prazeres sua espera, mas que ao deixar-lheuma carta em que o lembrava de que me havia abandonado durante todo o dia e toda a noite,eu o tinha privado da disposio para desfrutar dessas delcias e na verdade tinha eliminadoat mesmo sua capacidade para goz-las. Voltei para os meus aposentos enojado e no pudeconciliar o sono at o amanhecer, quando consegui finalmente beber alguma coisa para aplacara sede que a febre me provocava. s onze horas da manh voc veio at o meu quarto.Durante a cena da vspera, eu no pude deixar de observar-lhe que a minha carta tinhaconseguido, ao menos, impedi-lo de continuar uma noitada de excessos ainda maiores que oshabituais. Naquela manh voc parecia ter voltado ao normal. Naturalmente fiquei naexpectativa, esperando ouvir quais seriam as suas desculpas e que palavras usaria para pediro perdo que, no seu ntimo, voc sabia estar sempre sua espera, no importando o quetivesse feito, sendo na verdade aquela sua confiana absoluta no meu perdo o trao que eumais apreciava em voc, talvez a sua maior qualidade. Mas, em vez disso, comeou a repetir amesma cena da noite anterior, com renovada nfase e redobrada violncia. A certa altura,

  • pedi-lhe que sasse do meu quarto: fingiu obedecer-me, mas quando ergui a cabea dotravesseiro onde a havia enterrado voc continuava l e, subitamente, com um riso satnico euma fria histrica, avanou em minha direo. Nem eu mesmo sei por que razo, mas fuitomado de uma sensao de terror e, atirando-me da cama com os ps descalos, tal comoestava, desci os dois lances da escada at a sala e l permaneci at que o senhorio a quemhavia chamado tocando a campainha me assegurou que voc j tinha abandonado os meusaposentos, ao mesmo tempo em que prometia permanecer ao alcance da minha voz, caso eunecessitasse dele. Decorrida uma hora durante a qual o mdico veio visitar-me, encontrando-me claro num estado de absoluta prostrao e com uma febre mais alta do que no incioda doena, voc voltou silenciosamente procura de dinheiro. Apanhando tudo o que pdeencontrar sobre a mesa de cabeceira e o aparador da lareira, deixou a casa rapidamente,levando toda a sua bagagem. Ser preciso que eu lhe diga tudo que pensei a seu respeitodurante os dois miserveis e solitrios dias de doena que se seguiram? Ser necessrio dizercomo pude perceber claramente que seria uma desonra para mim se continuasse a manter umaamizade mesmo superficial com uma pessoa como a que voc revelara ser? Como pude verque o fim havia chegado e a sensao de alvio que isso me provocou? Como fui capaz deentender, ento, que no futuro tanto a minha vida quanto a minha arte seriam mais livres,melhores e mais belas, sob todos os aspectos? Embora bastante enfermo, senti uma grandepaz. O fato de que a separao fosse definitiva tranquilizava-me. Na tera-feira j no tivemais febre e pela primeira vez pude jantar na sala. Era dia do meu aniversrio e entre ostelegramas e recados que encontrei sobre a mesa havia uma carta com a sua letra. Abri-a comuma sensao de tristeza. Sabia j haver passado o tempo em que uma expresso de afeto, umapalavra de arrependimento teriam feito com que eu o aceitasse de volta. Mas estava totalmenteenganado. Eu o havia subestimado. A carta que me enviou no dia do meu aniversrio era umaverso cuidadosamente elaborada das duas cenas anteriores, reproduzidas habilidosamente empreto e branco! Voc zombava de mim com gracejos vulgares. Sua grande satisfao em todaaquela histria, dizia, fora a de ter almoado no Grande Hotel e mandado colocar o almoo naminha conta antes de partir para a cidade. Cumprimentava-me pela prudncia que eudemonstrara ao deixar meu leito de enfermo e pela minha repentina fuga escada abaixo:Aquele foi um momento de perigo para voc, um perigo bem maior do que voc possaimaginar. Ah, mas eu podia imagin-lo at bem demais! No entendia exatamente osignificado das suas palavras: no sabia se naquela noite voc trazia a pistola que haviacomprado para amedrontar seu pai e que, certa vez, julgando estar descarregada, tinhadetonado num restaurante quando jantava em minha companhia; ou se sua mo esboara umgesto em direo faca que por acaso se achava sobre a mesa entre ns dois; se, na sua fria,esquecendo a baixa estatura e a pouca fora fsica, havia pensado em lanar-me um insultoparticularmente ofensivo, talvez at mesmo uma agresso fsica, enquanto eu jazia inerte sobrea cama. No saberia diz-lo. Ainda hoje no sei realmente o que aconteceu. S sei que fuitomado por um sentimento de intenso terror e senti que se no sasse imediatamente do quartoe fugisse, voc teria feito ou pelo menos tentado fazer alguma coisa que teria sido motivode vergonha para o resto da sua vida, at mesmo para voc. S uma vez havia experimentadotal sentimento de horror diante de outro ser humano: aconteceu num dia em que me encontrava

  • na minha biblioteca da rua Tite quando seu pai entrou, agitando as mozinhas no ar, numataque de fria epiltica e, tendo seu guarda-costas ou um amigo a separar-nos, proferiu todasas palavras mais imundas que a sua mente imunda poderia imaginar e gritou as repugnantesameaas que iria mais tarde cumprir com tanta astcia. Neste caso, foi ele quem teve queabandonar o recinto: eu o expulsei. No seu caso, eu sa. No foi esta a primeira vez em que mevi forado a salv-lo de si mesmo.

    Voc conclua sua carta dizendo: Quando desce do seu pedestal, voc no nadainteressante. Da prxima vez em que adoecer, eu irei embora imediatamente. Ah, que cartergrosseiro esta frase revela! Que total falta de imaginao! Quo insensvel e vulgar se haviatornado o seu temperamento! Quando desce do seu pedestal, voc no nada interessante. Daprxima vez em que adoecer, eu irei embora imediatamente. Quantas vezes essas palavras mevoltaram lembrana na ignbil cela solitria das vrias prises pelas quais passei! Repetiaquelas palavras para mim mesmo vezes sem conta e julguei ver nelas injustamente, espero parte do segredo do seu estranho silncio. Que voc me escrevesse aquilo, quando a prpriadoena e a febre que me afligiam eram consequncia dos cuidados que eu lhe havia dedicadoera, naturalmente, algo revoltante por sua baixeza e grosseria; mas teria sido um pecado semperdo para qualquer ser humano que vivesse neste imenso mundo escrev-las se na verdadehouvesse algum pecado sem perdo.

    Confesso que ao acabar de ler sua carta eu me sentia quase poludo, como se pelo fatode ter me associado a um ser dotado de tal ndole eu me tivesse conspurcado e enchido aminha vida de uma vergonha irreparvel. E na verdade era exatamente o que havia feito, masno chegaria a perceb-lo claramente seno seis meses mais tarde. Decidi comigo mesmo quevoltaria a Londres na sexta-feira e procuraria Sir George Lewis reservadamente, pedindo-lheque escrevesse a seu pai para comunicar-lhe que eu havia determinado no voltar jamais apermitir, sob qualquer circunstncia, que voc entrasse em minha casa, sentasse minha mesa,falasse comigo, ou em qualquer tempo ou lugar voltasse a ser visto em minha companhia. Feitoisso, eu lhe teria escrito, apenas para inform-lo da minha deciso, pois voc mesmo teriasido capaz de entender as razes que a haviam determinado. Tinha tomado todas asprovidncias na quinta-feira noite quando, ao sentar-me mesa para o desjejum na sexta demanh, abri por acaso o jornal e li um telegrama que noticiava que seu irmo mais velho, overdadeiro chefe da famlia, o herdeiro do ttulo, o sustentculo da casa, fora encontradomorto, cado no fundo de um valo, tendo a seu lado um revlver com todas as balas detonadas.O horror das circunstncias em que ocorrera a tragdia que agora sabemos ter sido umacidente , o pattico de morte sbita de um ser to amado por todos aqueles que o conheciame quase s vsperas do casamento; minha ideia da dor que voc estaria ou deveria estar sentindo naquele momento; minha percepo do sofrimento de sua me diante da perdadaquele a quem ela se agarrava em busca de conforto e alegria. Um filho que ela prpria mehavia contado desde o dia do nascimento jamais a fizera derramar uma nica lgrima; anoo do isolamento em que voc deveria se encontrar, j que seus dois irmos estavam longeda Europa, sendo voc, consequentemente, o nico a quem sua me e sua irm poderiamrecorrer no apenas em busca de um companheiro com quem pudessem compartilhar a dor quesentiam, mas tambm de algum capaz de tomar todas aquelas medonhas providncias e

  • responsabilidades que a morte sempre traz consigo; a simples ideia das lacrimae rerum, daslgrimas de que o mundo feito e da tristeza das coisas humanas do afluxo de todos essespensamentos e emoes que enchiam meu crebro, surgiu uma infinita piedade por voc e pelasua famlia. Esqueci o sofrimento e a amargura que me haviam causado. O que voc havia sidopara mim durante a minha enfermidade, eu no poderia ser para voc no seu momento de dor.Telegrafei imediatamente, expressando minha profunda solidariedade, e na carta que se seguiuconvidei-o a vir at a minha casa to logo fosse possvel. Senti que abandon-lo naquelemomento, e formalmente, atravs de um advogado, teria sido demasiado cruel.

    Ao voltar para a cidade, depois de ter sido chamado ao local da tragdia, voc meprocurou imediatamente, vestindo ainda seus trajes de luto, os olhos marejados de lgrimas,todo doura, em busca de consolo e ajuda. Abri-lhe as portas do meu lar e do meu corao.Fiz da sua a minha dor para que voc pudesse suport-la. Nunca, nem mesmo por uma simplespalavra, aludi sua conduta para comigo, s cenas violentas e s cartas revoltantes. Sua dor,to verdadeira, parecia aproxim-lo mais de mim. As flores que voc tirou de mim paracolocar sobre o tmulo de seu irmo deveriam ser um smbolo no apenas da beleza queenchera a sua vida mas da beleza que permanece oculta em todas as vidas e que pode sertrazida luz.

    Os deuses so estranhos: no apenas dos nossos erros que eles se utilizam comoinstrumentos para atormentar-nos, mas levam-nos runa atravs daquilo que temos de bom,gentil, compassivo e terno. No fosse a piedade e afeio que senti por voc e os seus, noestaria agora chorando neste lugar horrvel.

    claro que em tudo o que houve entre ns no vejo apenas a mo do destino, mas a dafatalidade, essa fatalidade que sempre caminha a passos ligeiros em busca dos lugares onde osangue est sendo derramado. Atravs do seu pai, voc pertence a uma raa com a qual todo ocasamento horrvel, toda amizade fatal, uma raa que usa as prprias mos para investircom violncia contra a prpria vida e a vida alheia. Em cada pequena circunstncia em quenossos caminhos se cruzaram, a cada vez que, levado por motivos srios ou aparentementetriviais, voc me procurou em busca de auxlio ou de prazer, nos pequenos acasos, nosacidentes banais que em relao vida parecem no ser mais do que os gros de poeira quebailam num feixe de luz ou da folha que cai da rvore, seguiu-se sempre a runa, como o ecode um grito de amargura ou a sombra que segue a fera em suas caadas. Nossa amizadecomeou realmente quando voc me suplicou, numa carta escrita em tom pattico masencantador, que eu o ajudasse numa situao que teria sido horrvel para qualquer um, mas queera duplamente horrvel para um jovem estudante de Oxford. Concordei em faz-lo e, comoconsequncia de voc ter usado meu nome junto a Sir George Lewis, afirmando ser meuamigo, comecei a perder sua estima e amizade, uma amizade que j durava quinze anos. E aome ver privado da ajuda e dos conselhos deste homem, me vi privado da segurana que haviaem minha vida.

    Voc enviou-me um poema bastante bonito, embora pertencendo escola dos iniciantesna poesia, para submet-lo minha aprovao. Respondi com uma carta repleta dos maisfantsticos conceitos literrios, na qual eu o comparo a Hylas, Jacinto, Jonquilho ou Narcisoou qualquer um daqueles a quem o deus da poesia favorecesse e honrasse com seu amor. A

  • carta era como uma passagem de um dos sonetos de Shakespeare transposta para um tommenor e s podia ser entendida por aqueles que leram o Simpsio de Plato ou conseguiramcaptar o esprito de um certo clima grave que aprendemos a admirar nos mrmores gregos.Era, deixe-me dizer-lhe francamente, o tipo da carta que eu teria mandado num momento dealegria, embora um tanto voluntarioso, a qualquer jovem gracioso de qualquer Universidadeque me tivesse enviado um poema de sua prpria lavra, certo de que ele teria suficienteinteligncia ou cultura para interpretar corretamente as minhas frases fantsticas. Mas olhe ahistria dessa carta! Ela sai das suas mos para as mos de um de seus odiosos companheiros;dali, para as de um bando de chantagistas. Logo cpias comeam a circular por toda Londres,sendo enviadas aos meus amigos e ao administrador do teatro onde est sendo encenada umadas minhas peas. Recebe as mais variadas interpretaes, salvo a nica verdadeira. Asociedade vibra com os absurdos rumores de que eu teria sido obrigado a pagar uma enormesoma por ter-lhe escrito uma carta infamante e ela acaba servindo de base a um dos pioresataques que seu pai lana contra mim. Apresento o original Corte, para mostrar suaverdadeira natureza. Os advogados de seu pai consideram-na uma revoltante e insidiosatentativa de corrupo da inocncia. Ela passa a ser uma das provas da acusao. A Corte aaceita como tal e o juiz, ao fazer o sumrio das provas e argumentos apresentados, discorresobre a carta demonstrando ter muito pouca cultura e demasiado moralismo. Finalmente, souenviado priso por t-la escrito. Eis o resultado de lhe ter enviado uma carta encantadora!

    Enquanto estou hospedado com voc em Salisbury, voc fica terrivelmente assustado aoreceber um recado ameaador enviado por um antigo companheiro e me suplica que, paraajud-lo, eu veja o autor da mensagem. O resultado a minha runa: sou forado a assumirtodos os seus atos e a responder por eles. Quando se v obrigado a deixar Oxford sem terconseguido obter seu diploma, manda um telegrama para Londres suplicando-me que v ao seuencontro. Parto imediatamente: voc me pede que eu o leve a Goring, pois, naquelascircunstncias, no desejava de modo algum voltar para casa. Em Goring v uma casa que oencanta: eu a alugo, para agrad-lo. O resultado, sob qualquer ponto de vista, a minha runa.Certo dia voc me procura para pedir-me, como um favor pessoal, que eu escreva qualquercoisa para uma revista de estudantes de Oxford que seria lanada por um certo amigo seu, doqual eu jamais ouvira falar e sobre o qual nada sabia. Para agrad-lo e o que no faria eupara agrad-lo? mandei-lhe uma pgina de paradoxos que se destinava originalmente aoSaturday Review. Alguns meses mais tarde vejo-me sentado no banco dos rus do Old Baileydevido ao carter da tal revista. Ela passa a ser uma das peas de acusao da Coroa contramim. Sou solicitado a defender a qualidade da prosa do seu amigo e os seus prprios versos.A primeira, no consigo atenuar quanto aos seus versos, eu, leal at o amargo fim tanto ao seuestilo juvenil quanto sua prpria juventude, defendo-os vigorosamente e no admito v-lotachado de autor pornogrfico. Mas acabo indo para a priso, tanto pela revista do seu amigoquanto pelo Amor que no ousa dizer seu nome. No Natal, dei-lhe o que voc considerouser um presente bem bonitinho, na carta de agradecimento que me escreveu. Era algo que, eusabia, voc h muito desejava ter e que valia no mximo de quarenta a cinquenta libras.Quando sobrevm a runa total da minha vida, o bailio que confisca a minha biblioteca paravend-la o faz para pagar aquele presente bonitinho. Foi por ele que a minha casa acabou

  • indo a leilo. Naquele derradeiro e terrvel momento, quando sou pressionado e acaboconcordando em apresentar queixa contra seu pai, exigindo que o mandem para a priso, altima tbua em que me agarro no meu abjeto esforo para escapar o enorme gasto que talao acarretaria. Diante de voc, digo ao advogado que no tenho recursos, que no poderiaarcar com os espantosos custos de tal ao, que no dispunha de fundos para tal. O que afirmeiento era verdade e voc sabe disso. Se naquela sexta-feira funesta eu tivesse conseguidodeixar o Hotel Avondale em vez de permanecer no escritrio de Humphrey assistindopassivamente minha prpria runa, eu poderia agora estar livre e feliz na Frana, longe devoc e de seu pai, ignorando tanto os odiosos cartes que ele me enviou quanto as suas cartasigualmente odiosas. Mas o pessoal do hotel recusou-se terminantemente a permitir que eupartisse. Tnhamos ficado l durante dez dias, voc chegara mesmo a trazer um amigo para sehospedar conosco, para minha grande e deve admiti-lo justificada indignao. Minha contanaqueles dez dias chegara a quase cento e quarenta libras. O proprietrio declarou que nopoderia permitir que eu retirasse a minha bagagem at que essa conta tivesse sido paga. Foiisso que me reteve em Londres. Se no fosse pela conta do hotel, eu teria partido para Paris namanh de quinta-feira.

    Quando disse ao advogado que no tinha meios para enfrentar as enormes despesas,voc imediatamente interrompeu afirmando que sua famlia ficaria simplesmente encantada empagar todos os gastos necessrios; que seu pai sempre fora um pesadelo para todos vocs; quemuitas vezes haviam discutido a possibilidade de intern-lo em um asilo de loucos paramant-lo afastado; que ele era uma fonte de aborrecimentos e aflio para sua me e paratodos vocs; que se eu consentisse apenas em ser o instrumento que permitiria a suainternao, a famlia passaria a ver em mim um benfeitor; que os prprios parentes ricos desua me considerariam uma grande alegria se lhes fosse permitido pagar todas as despesas ecustos de tal ao. Diante de tais argumentos, o advogado aceita imediatamente a causa e eusou levado a toda pressa para a delegacia. No tinha mais nenhuma desculpa para no ir atl. Fui forado a faz-lo. Naturalmente, sua famlia no pagou as custas e, quando foideclarada a minha falncia, foi o seu pai o solicitante. Tudo para que eu pagasse as custas doprocesso, a miservel soma de setecentas libras. No momento, minha esposa de quem estouseparado discute comigo sobre a importante questo de saber se eu devo dispor de trslibras ou trs libras e dez shillings para os meus gastos semanais e prepara uma ao dedivrcio para a qual, naturalmente, seriam necessrias novas provas, um novo julgamentoseguido talvez de medidas legais ainda mais srias. Eu, claro, desconheo os detalhes.Conheo apenas o nome da testemunha de cujo depoimento dependem os advogados de minhamulher. aquele criado que voc tinha em Oxford, o mesmo que, a seu pedido, eu contrateipara o nosso vero em Goring.

    Mas, na verdade, no preciso que eu me estenda mais, relatando outros exemplos daestranha maldio que voc parece ter lanado sobre a minha vida, tanto nas grandes quantonas pequenas coisas. Tenho s vezes a impresso de que voc apenas um fantoche guiado pormo secreta e invisvel para desencadear os terrveis acontecimentos que culminaram nestetrgico desfecho. Mas os prprios fantoches tm sentimentos: eles podem introduzir novoselementos nas histrias que apresentam e deturpar o desfecho previamente determinado para

  • satisfazer seus prprios caprichos ou vontades. O eterno paradoxo da alma humana, de quenos apercebemos a cada momento, que ela possa ser a um s tempo inteiramente livre einteiramente dominada pelas leis; e penso muitas vezes ser esta a nica coisa capaz deexplicar o seu temperamento se na verdade existe alguma explicao possvel para osterrveis e profundos mistrios da alma humana, exceto aquela que torna esse mistrio aindamais incrvel.

    claro que voc tinha suas iluses, na verdade vivia imerso nelas e via a realidadeatravs de uma nvoa cambiante e de vus coloridos. Lembro muito bem que pensava que ofato de dedicar-se inteiramente a mim, esquecendo sua prpria famlia e o convvio familiar,era uma prova maravilhosa da admirao e do afeto que me dedicava. E no h dvida de queparecia ser assim. Mas lembre-se que eu representava o luxo, os prazeres sem limites, odinheiro sem restries. Sua vida familiar o aborrecia. Para citar uma de suas frases, vocno apreciava o vinho frio e barato de Salisbury. A meu favor eu tinha, alm das minhasqualidades intelectuais, todos os prazeres sensuais do Egito. E quando no conseguia meencontrar, os companheiros que escolhia para substituir-me no eram nem um poucolisonjeiros.

    Pensou tambm que, ao enviar a seu pai uma carta escrita por seu advogado, na qualcomunicava que, a desistir da nossa amizade, preferia abrir mo das duzentas e cinquentalibras anuais que recebia dele das quais, suponho, era deduzida uma certa quantia parasaldar as dvidas que contrara em Oxford , estava encarnando o prprio esprito magnnimoda amizade, atingindo o ponto mais alto do desprendimento. Mas o fato de que se mostrassedisposto a renunciar sua pequena penso no significava que estivesse pronto a desistirtambm de um s dos seus luxos mais suprfluos ou da mais desnecessria das extravagncias.Ao contrrio, seu apetite por uma vida de fausto nunca foi to aguado: durante os oito diasem que eu, voc e o seu criado italiano passamos em Paris, minhas despesas chegaram a quasecento e cinquenta libras, das quais oitenta e cinco gastas apenas no Paillard. Com o nvel devida que desejava manter, o total de seus rendimentos anuais mal teria sido suficiente paracobrir seus gastos durante trs semanas, mesmo que fizesse todas as refeies sozinho e fosseparticularmente cuidadoso na sua busca de prazeres, escolhendo sempre os menosdispendiosos. Porm, o fato de que tivesse perdido a sua penso, num gesto que no passouafinal de uma fanfarronice, deu-lhe uma desculpa plausvel ou pelo menos o que pensou seruma desculpa plausvel para viver s minhas custas, e voc se aproveitou dela ao mximo.O fardo que isso representava, para mim especialmente, claro, mas tambm, eu sei, para suame, nunca foi to penoso, porquanto pelo menos no meu caso totalmente desacompanhadoda menor palavra de agradecimento ou senso de limite.

    Pensou tambm que, ao atacar seu prprio pai com cartas terrveis, telegramasofensivos e cartes postais cheios de insultos, estaria lutando as batalhas de sua me,defendendo-a como um paladino e vingando os sofrimentos e erros sem dvida terrveis doseu casamento. Foi uma grande iluso de sua parte, na verdade uma de suas piores iluses. Amaneira pela qual poderia ter vingado os sofrimentos de sua me, se na verdade considera sera vingana um dever filial, teria sido tornar-se para ela um filho melhor do que fora at ento,fazendo com que ela no tivesse medo de falar com voc sobre assuntos srios; no assinando

  • contas cujo pagamento recairia sobre os ombros dela; sendo mais gentil e no enchendo seusdias de mgoas e sofrimentos. Durante seus breves anos de vida, que se assemelharam vidade uma flor, seu irmo Francis tentou, com bondade e doura, compens-la por tudo que elahavia sofrido. Deveria t-lo tomado como modelo. Errou at mesmo ao imaginar que elaficaria absolutamente deliciada e feliz se voc tivesse conseguido mandar seu pai para apriso por meu intermdio. Tenho a certeza de que estava errado. E se voc quiser saber o queuma mulher realmente sente ao ver seu marido e o pai de seus filhos metido num uniforme depresidirio, dentro de uma cela, escreva minha mulher e ela lhe dir. Eu tambm tive asminhas iluses. Pensei que a vida seria uma comdia brilhante e que voc seria um dos seusamveis protagonistas. Descobri que no passava de uma chocante e desagradvel tragdia eque a sinistra causa da grande catstrofe, sinistra pela concentrao de seus desgnios e pelaintensidade da limitada fora de vontade, era voc mesmo, despojado daquela mscara dealegria e prazer que nos havia enganado a ambos e graas qual nos havamos desviado docaminho.

    Agora pode entender no pode? um pouco do meu sofrimento. Um jornal qualquer,creio que o Pall Mall Gazette, ao descrever o ensaio geral de uma das minhas peas falou emvoc como de algum que me seguia como uma sombra. A lembrana da nossa amizade asombra que me segue aqui, que parece no me abandonar nunca, que me acorda no meio danoite para contar sempre a mesma histria, at que a montona repetio faz com que o sonome abandone at a madrugada, quando tudo recomea; que me segue at o ptio da priso e mefaz falar sozinho enquanto ando em crculos. Sou forado a reviver cada detalhe queacompanhou cada terrvel momento. No h nada que tenha acontecido durante aquelesmalfadados anos que eu no seja capaz de recriar naquela cmara do meu crebro reservadapara a dor e o desespero. Cada inflexo de sua voz, cada gesto de suas mos nervosas, cadapalavra amarga, cada frase envenenada me volta memria. Lembro a rua ou o rio por ondepassamos, o muro ou o bosque que nos cercava, a posio dos ponteiros do relgio, de quelado sopravam as asas do vento, a forma e a cor da lua.

    Sei que h uma resposta para tudo aquilo que eu lhe disse e essa resposta que voc meamava: que durante aqueles dois anos e meio em que a sorte tecia um pano escarlate, unindoos fios de nossas vidas divididas, voc realmente me amava. Sim, sei que me amava. Noimporta qual tenha sido a sua conduta para comigo, sempre senti que, no fundo do seu corao,voc me amava. Embora percebendo claramente que a posio que eu ocupava no mundo daarte, o interesse que a minha personalidade sempre despertou, meu dinheiro, o luxo em quevivia, as mil e uma coisas que contribuam para tornar a minha vida to encantadora emaravilhosamente inverossmil, eram, foram, cada uma e todas elas, elementos que ofascinaram e o fizeram apegar-se a mim. E, no entanto, alm de tudo isso, havia qualquer coisamais, qualquer coisa que exerceu uma estranha atrao sobre voc: voc me amava muito maisdo que a qualquer outra pessoa. Mas, tal como eu, tambm teve uma terrvel tragdia em suavida, embora inteiramente diferente da minha. Quer saber qual era? Ei-la: em voc, o diosempre foi mais forte do que o amor. O dio que sentia por seu pai era to grande queconseguia ofuscar, sobrepujar e aniquilar inteiramente o amor que sentia por mim. No haviaqualquer conflito entre esses dois sentimentos, ou quase nenhum, tais eram as dimenses e a

  • intensidade do seu dio. No percebia que a mesma alma no pode abrigar duas paixes todiferentes: elas no podem habitar ao mesmo tempo aquela bela casa. O amor alimentadopela imaginao, atravs da qual nos tornamos mais sbios do que sabemos, melhores do quenos sentimos, mais nobres do que somos, capazes de ver a vida como um todo; atravs daqual, e s atravs dela, chegamos a entender os outros tanto em sua relao real quanto ideal.S o que superior e superiormente concebido pode alimentar o amor, mas qualquer coisaalimentar o dio. No houve uma s taa de champanhe que voc tivesse bebido, uma s dasfinas iguarias que tivesse provado durante todos aqueles anos que no tivesse servido paraalimentar e engordar seu dio. E, para gratific-lo, voc jogou com a minha vida tal comojogou com o meu dinheiro: descuidadamente, estouvadamente, indiferente s consequncias.Imaginava que, se perdesse, os prejuzos no seriam seus. E, se ganhasse, sabia que asvantagens e as alegrias da vitria lhe pertenceriam.

    O dio cega. Voc no percebia isso. O amor capaz de ler o que est escrito na maisremota estrela, mas o dio deixou-o to cego que voc j no conseguia ver nada alm doestreito, fechado e estiolado jardim dos seus desejos mais vulgares. Sua terrvel falta deimaginao, nico defeito realmente fatal do seu carter, era causada exclusivamente pelodio que trazia dentro de si. Sutil, silenciosa e secretamente esse dio ia aos poucos roendo asua essncia, tal como o lquen vai corroendo a raiz do salgueiro, at que voc no conseguiadistinguir nada alm dos mais mesquinhos interesses e dos objetivos mais medocres. O dioenvenenou e paralisou aqueles dons que voc possua e que o amor teria nutrido. Quando seupai comeou a lanar seus primeiros ataques contra mim, foi como seu amigo particular enuma carta particular enviada a voc. Assim que acabei de ler aquela carta repleta de ameaasobscenas e violncias grosseiras, percebi imediatamente o terrvel perigo que acabava desurgir no horizonte dos meus atribulados dias. Eu lhe disse ento que no estava disposto aservir de instrumento na antiga guerra de dio que existia entre vocs; que, naturalmente, euem Londres era uma presa muito mais atraente para seu pai do que um Secretrio paraAssuntos Estrangeiros em Homberg; que seria injusto colocar-me, mesmo que por um instante,em tal situao e que eu tinha coisas melhores a fazer da minha vida do que brigar com umhomem bbado, dclass e meio louco como seu pai. Mas voc no queria entender, o dio otornara cego. Insistia em afirmar que a briga no tinha realmente nada a ver comigo; que nopermitiria que seu pai mandasse nas suas amizades particulares; que seria uma grandeinjustia da minha parte interferir na discusso entre ambos. E antes mesmo de me procurarpara falar sobre o assunto j havia enviado a seu pai um telegrama tolo e vulgar. Os erros maisterrveis da vida de um homem no acontecem porque ele um ser irracional um momentode irracionalidade pode tornar-se o mais belo momento da vida , mas porque ele um serlgico. H uma grande diferena. Aquele telegrama determinou todo o seu relacionamentosubsequente com seu pai e, consequentemente, toda a minha vida. E o que havia de ridculonele era o fato de ser aquele um telegrama que teria envergonhado o mais grosseiro dosmoleques de rua. Passar dos telegramas atrevidos s pedantes cartas escritas por seusadvogados foi um processo natural, e o resultado dessas cartas foi naturalmente obrig-lo a ircada vez mais longe. Voc no lhe deixou qualquer escolha seno avanar. Para que seu apelosurtisse mais efeito voc o forou a isso, como se se tratasse de um ponto de honra ou talvez

  • fosse melhor dizer de desonra. Assim, da prxima vez em que ele me atacou, j no o fez maisatravs de uma carta particular em que investia contra mim como seu amigo particular, mas empblico e na minha qualidade de homem pblico. Vi-me obrigado a expuls-lo da minha casa.Ele, ento, andava de restaurante em restaurante minha procura para insultar-me diante detodo mundo e de tal maneira que, revidando ou no, eu estaria igualmente arruinado. Aqueleteria sido certamente o momento para que voc viesse em minha defesa para dizer que noconsentiria que eu sofresse to hediondos ataques, to infame perseguio por sua causa e quedesistiria imediatamente e de bom grado a qualquer pretenso que ainda pudesse ter minhaamizade. Creio que pode entender isso agora. Mas, na poca, a ideia nem chegou a ocorrer-lhe: o dio o deixara cego. S pde pensar alm, claro, de continuar enviando a seu paicartas e telegramas cheios de insultos em comprar aquela pistola ridcula que acaboudisparando enquanto jantvamos no Berkeley, em circunstncias que criaram um escndalopior do que qualquer outro de que j tivesse ouvido falar. Na verdade, a ideia de ser o objetode uma terrvel disputa entre seu pai e um homem na minha posio parecia delici-lo.Suponho que, como muito natural, ela satisfizesse a sua vaidade e lisonjeasse a suapretenso. Que seu pai pudesse ter ficado com o seu corpo, que no me interessava, e medeixado sua alma, que no tinha para ele o menor interesse, teria sido, na sua opinio, umasoluo infeliz para a questo. Voc farejou a oportunidade para um escndalo e aproveitou-a.Deliciava-o a perspectiva de uma batalha na qual voc estaria a salvo. No lembro de t-lojamais visto com melhor disposio do que a que demonstrou durante o resto da temporada.Sua nica decepo parece ser a de que no chegou a acontecer mais nada, nem sequer umnovo encontro ou rixa entre ns, mas voc se consolava enviando-lhe telegramas de um talteor que por fim o infeliz escreveu comunicando ter dado ordens aos criados para que no lheentregassem nenhum telegrama, sob qualquer pretexto. Isso no chegou a desencoraj-lo, poisvoc havia descoberto as imensas possibilidades oferecidas pelos cartes-postais eaproveitou-as ao mximo. Voc o incitou a prosseguir na caada. No creio que ele tivessechegado realmente a desistir, pois o dio que sentia por voc era to tenaz quanto o seu e euno era mais do que um pretexto para ambos, servindo tanto de elemento de ataque quanto dedefesa. A prpria paixo pela notoriedade no era nele apenas uma caracterstica individual,mas racial. E mesmo que o interesse dele tivesse esmorecido por um instante, suas cartas ecartes-postais logo teriam conseguido reacender a antiga chama. Foi o que aconteceu e,naturalmente, ele foi ainda mais longe: tendo me atacado em particular, como cidado comum,e em pblico, como homem pblico, decidiu afinal lanar um ltimo e decisivo ataque contramim na minha qualidade de artista e no prprio local onde a minha arte estava sendoapresentada ao pblico. Assim, conseguiu obter por meio de um artifcio qualquer um lugarpara a estreia de uma das minhas peas e criou um plano para interromper a apresentao.Primeiro, um discurso srdido a meu respeito para a plateia; depois, insultos dirigidos aosmeus atores e, finalmente, msseis ofensivos ou indecentes lanados contra a minha pessoaquando eu fosse chamado ao palco ao fim da apresentao, causando a minha runa definitivaatravs do meu trabalho. Por pura sorte, graas a uma breve e acidental sinceridadeprovocada por um esprito mais intoxicado do que de hbito, ele vangloriou-se de suasintenes diante de terceiros, a polcia foi informada e impediu a sua entrada no teatro. Foi

  • neste momento que voc teve a sua chance, aquela foi a sua oportunidade. No entende agoraque deveria ter se apercebido disso e tomado a iniciativa de protestar, no admitindo que porsua causa a minha arte fosse prejudicada? Sabia bem o que ela significava para mim: ela era aminha principal caracterstica, atravs da qual eu tinha me revelado, primeiro a mim mesmo edepois ao mundo; a grande paixo da minha vida; o amor diante do qual todos os outrosamores eram como a gua barrenta diante do vinho tinto ou como o vaga-lume do pntanodiante do espelho mgico da lua. Entende agora que a falta de imaginao era o nico defeitorealmente fatal do seu carter? O que voc deveria ter feito era bastante simples e apareciaclaramente diante dos seus olhos. Mas, cego de dio, no conseguiu ver nada. Eu no podiapedir desculpas a seu pai por ele ter me insultado e perseguido da forma mais odiosa durantequase nove meses. No conseguia livrar-me de voc, expuls-lo