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Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 6, ago./dez. 2014
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RELAÇÕES INTERSEMIÓTICAS E TRANSTEXTUAIS EM A OBRA-PRIMA IGNORADA,
DE HONORÉ DE BALZAC
Deivis Jhones Garlet1
RESUMO
As relações entre o campo literário e o campo pictural são bastante estreitas, operando-se traços intersemióticos e transtextuais assiduamente. Neste breve trabalho, temos a proposta de perceber essas relações na obra literária de Balzac, A obra-prima ignorada, e analisar o modo como o discurso de Balzac apreende a realidade concreta da França no início do século XIX, sobremaneira as querelas envolvendo o pensamento sobre a arte, recorrendo ao tema da pintura, posto que é um conto sobre o artista e sua arte, e empreender uma leitura possível do projeto artístico advogado pelo escritor nesse contexto.
Palavras-chave: Transtextualidade. Literatura. Pintura.
ABSTRACT
The relations between the literary field and the pictorial field are really narrow, operating intersmiotic and transtextual traits assiduously. In this brief paper, we have the proposal to notice these relations in the literary work of Balzac, The Unknown Masterpiece, and to assess the manner in which the discourse catches the “reality” of France in the early XIX century, greatly the quarrels involving the thought about art, appealing to the theme of the painting, once it is a tale about an artist and his art, and attempt a possible reading of the artistic project advocated by writer in this context.
Keywords: Transtextuality. Literature. Painting.
Literatura e pintura, desde a antiguidade clássica, constituem campos artísticos
mantenedores de uma estreita relação, ora conferindo-se prioridade à representação
verbal, ora à representação pictural, como no período do Renascimento, na Idade
Moderna, com a tese horaciana do Ut pictura poesis interpretada de forma a conferir à
pintura o status de arte liberal, condição já conquistada pela literatura em sua forma
poética, conforme Lichtenstein (2005).
No entanto, esses dois campos se alimentaram reciprocamente, em variados
espaços e tempos, em diferentes modos de ralação de transposição intersemiótica e,
mesmo, de transtextualidade. Os conceitos presentes nessas duas formas de relação
entre literatura e pintura, obtidos pelas obras Poéticas do visível, ensaios sobre a escrita e
1 Doutorando em Letras, Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]
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a imagem, organizada por Marcia Arbex, e Palimpsestos, de Gerard Genette, fornecem um
referencial para nosso exercício de análise do conto A obra-prima ignorada, de Honoré
de Balzac, publicado em 1831. Nossa proposta consiste em analisar o modo como o
discurso de Balzac apreende a realidade concreta da França no início do século XIX,
sobremaneira as querelas envolvendo o pensamento sobre a arte, recorrendo ao tema
da pintura, posto que é um conto sobre o artista e sua arte, e empreender uma leitura
possível do projeto artístico advogado pelo escritor nesse contexto.
A França do início do século XIX, sobremodo Paris, a qual “torna-se a capital
artística da Europa” (GOMBRICH, 1985, p.399), evidencia o predomínio, na pintura, da
arte acadêmica e institucionalizada, atrelada a regras e normas preestabelecidas. Porém,
paralelamente, é em Paris que os movimentos de ruptura se manifestam pioneiramente.
Para compreenderemos mais apuradamente essa aparente contradição, retornemos no
tempo para efetuarmos uma breve contextualização.
No século XVI, além da inovação da técnica da perspectiva, a pintura estava
envolta pelo debate entre a valoração, de um lado, do desenho, de cunho tradicional, e de
outro, da cor e da luz, de postura inovadora. Essas duas posturas persistiram até o
século XIX, no qual o academicismo preservava a tradição e, por conseguinte, o primado
do desenho, ao passo que a postura inovadora apostava na cor e na luz, no claro-escuro
como determinantes na técnica pictural.
Ao longo do século XVII, a ênfase recaiu sobre o uso da cor e a incidência da luz,
como o atestam pintores como Rubens e Rembrandt. No entanto, as duas posturas eram
coexistentes, bastando citar o pintor Nicolas Poussin, adepto do desenho, mais que na
cor e no claro-escuro da luz. Essas tendências, podemos afirmar, mantiveram-se desde o
seu surgimento e persistem inclusive na arte pictórica do século XXI.
No final do século XVIII e início do XIX, o romantismo edificou-se como uma
valoração da fantasia, da falta de disciplina e da negação do racional, opondo-se às
regras ditadas pela Academia, fundada na França em 1678. Assim, temos a ruptura com
a norma acadêmica, excessivamente policialesca na preservação do classicismo e da arte
institucionalizada. De acordo com Bourdieu:
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... os pintores oferecem aos escritores, à maneira de uma “profecia exemplar” no sentido de Max Weber, o modelo do artista puro que eles tentam, por outro lado, inventar e impor; e a pintura, pura, liberada da obrigação de servir a alguma coisa ou, muito simplesmente, de significar, que se opõem à tradição acadêmica, contribui para materializar a possibilidade de uma “arte pura”. (BOURDIEU, 2005, p. 157, grifos do autor)
Assim, na Paris do início do século XIX, a arte romântica preparava o terreno para
transformações vindouras, seja na pintura, seja na literatura, e a discussão sobre um
projeto de arte, para toda manifestação estética, era uma tendência. É, pois, nesse
contexto que Balzac compõe A obra-prima ignorada. Um contexto de antagonismos e
debates entre a tradição acadêmica e a ruptura, a busca por uma liberdade de criação.
O conto de Balzac transcorre em Paris, no ano de 1612, e não na Paris de 1831,
mas o fato de situar temporalmente o conto em 1612 pode ser lido como uma forma de
acomodar os pintores reais que circulam no conto, como Poussin (1594-1665) e Porbus
(1569-1622), além dos apenas citados, contemporâneos desses, como Rubens (1577-
1640). Há, nessa marcação temporal com pintores reais, o objetivo de tornar a narrativa
mais realista. Já o pintor Frenhofer é fictício e pode, portanto, circular por qualquer
espaço-tempo, sem comprometer o realismo da narrativa.
A narrativa, dividida em dois subcapítulos, Gillette e Catherine Lescault, principia
com Poussin indo ao atelier de Mestre Porbus. Entra com o velho Frenhofer, o qual batia
à porta e era recebido por Porbus. Nessas primeiras páginas já vemos a citação de uma
obra de arte real, concreta executada por Porbus, o retrato de Henrique IV. Embora o
quadro não seja descrito, ou seja, transposto do pictórico para o verbal, como na
ekphrasis clássica, é importante para situar Porbus dentro de uma postura pictural,
reforçada mais adiante no episódio em que Frenhofer critica outra obra que
representava a Maria do Egito, esta ficcional. Enquanto Poussin admira a obra,
Frenhofer tece sua crítica:
Vocês acham que fizeram tudo quando desenham corretamente um rosto e colocam cada coisa em seu lugar conforme as leis da anatomia! Preenchem com cor as linhas do rosto num tom preparado na paleta, tendo o cuidado de deixar um lado mais escuro que o outro, e pelo fato de observarem de vez em quando uma mulher nua em pé sobre uma mesa acreditam que estão copiando a natureza, imaginam-se pintores e estão crentes que roubaram o segredo de Deus! (BALZAC, 2003, p. 18)
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E, mais adiante, arremata sua crítica:
entre o desenho e a cor...”
pintura, ensinando como dar a impressão de vida na obra.
Nesses trechos podemos perceber a postura de Porbus, atrelado às normas,
embora indeciso, uma vez que maneirista
conforme a tradição. Para corroborarmos esta afirmação, observemos o retrato citado
na narrativa, feito realmente por Porbus, de Henrique IV:
FIGURA
Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Henry_IV_of_france_by_pourbous_younger.jpg
Porbus, pela critica de Frenhofer e pela visualização que podemos apreciar do
retrato acima, enquadra
conforme as normas da Academia.
linguagem pictural, ou seja, vocabulário corrente entre os pintores, podendo
uma relação de transposição para a literatura. Nesse mesmo episódio, Poussin, após
crítica severa de Frenhofer
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E, mais adiante, arremata sua crítica: “Você pairou indeciso entre dois sistemas,
cor...”, (Balzac, 2003, p. 20); e prossegue numa verdadeira aula de
pintura, ensinando como dar a impressão de vida na obra.
Nesses trechos podemos perceber a postura de Porbus, atrelado às normas,
, uma vez que maneirista. Todavia, a narrativa o situa como u
conforme a tradição. Para corroborarmos esta afirmação, observemos o retrato citado
na narrativa, feito realmente por Porbus, de Henrique IV:
FIGURA 1 - Henrique IV, de Porbus, 1610.
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Henry_IV_of_france_by_pourbous_younger.jpg
15 fev. 2014.
Porbus, pela critica de Frenhofer e pela visualização que podemos apreciar do
retrato acima, enquadra-se como um artista tradicional, essencialmente icônico,
conforme as normas da Academia. O parágrafo da narrativa é impregnado de uma
u seja, vocabulário corrente entre os pintores, podendo
uma relação de transposição para a literatura. Nesse mesmo episódio, Poussin, após
crítica severa de Frenhofer à obra fictícia da Maria do Egito, toma o partido de Porbus,
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“Você pairou indeciso entre dois sistemas,
numa verdadeira aula de
Nesses trechos podemos perceber a postura de Porbus, atrelado às normas,
narrativa o situa como um artista
conforme a tradição. Para corroborarmos esta afirmação, observemos o retrato citado
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Henry_IV_of_france_by_pourbous_younger.jpg. Acessado em:
Porbus, pela critica de Frenhofer e pela visualização que podemos apreciar do
se como um artista tradicional, essencialmente icônico,
O parágrafo da narrativa é impregnado de uma
u seja, vocabulário corrente entre os pintores, podendo-se perceber
uma relação de transposição para a literatura. Nesse mesmo episódio, Poussin, após
, toma o partido de Porbus,
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exclamando: “Mas esta santa é sublime!
enquadrado também nos limites da arte d
osso, de fato era um adepto do desenho e do classicismo. Vejamos uma obra de Poussin,
Os pastores de Arcádia, que colabora para nossa forma de caracterizá
FIGURA
Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Et_in_Arcadia_ego#mediaviewer/File:Nicolas_Poussin_052.jpgem 15 fev. 2014.
A obra remete aos ideais da arte ac
regras da pintura tradicional: perspectiva, harmonia das formas, simetria, desenho e um
claro-escuro. Porbus e Possin, então, podem ser caracterizados no interior da narrativa
como representantes do academicismo e
alegoria representativa dos pintores atrelados às normas,
concreta francesa de início do século XIX. Frenhofer, por outro lado, repudia essa
postura e pleiteia uma arte mais livre e que possibili
natureza, mas essencialmente expressá
discípulo de Mabuse (147?
perspectiva, da luz e da sombra para dar uma sensação
palavras de Frenhofer: “Só Mabuse detinha o mistério de dar vida aos rostos
teve um aluno, eu.”, (Balzac
representa a antítese da postura tradicional, acad
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s esta santa é sublime!”, (Balzac, 2003, p.24).
enquadrado também nos limites da arte ditada pela Academia e, o pintor real, de carne e
, de fato era um adepto do desenho e do classicismo. Vejamos uma obra de Poussin,
, que colabora para nossa forma de caracterizá
FIGURA 2 - Os pastores da Arcádia, de Poussin, 1638
http://en.wikipedia.org/wiki/Et_in_Arcadia_ego#mediaviewer/File:Nicolas_Poussin_052.jpg
A obra remete aos ideais da arte acadêmica e institucionalizada, com todas as
regras da pintura tradicional: perspectiva, harmonia das formas, simetria, desenho e um
escuro. Porbus e Possin, então, podem ser caracterizados no interior da narrativa
como representantes do academicismo e funcionam no plano ficcional como uma
alegoria representativa dos pintores atrelados às normas, do plano
de início do século XIX. Frenhofer, por outro lado, repudia essa
postura e pleiteia uma arte mais livre e que possibilite ao pintor não apenas copiar a
natureza, mas essencialmente expressá-la. Além disso, Frenhofer se arvora como o único
discípulo de Mabuse (147?-1532), pintor histórico holandês, o qual utilizava
perspectiva, da luz e da sombra para dar uma sensação de realidade viva às figuras. Nas
palavras de Frenhofer: “Só Mabuse detinha o mistério de dar vida aos rostos
Balzac, 2003, p. 27). Até aqui podemos inferir que Frenhofer
representa a antítese da postura tradicional, acadêmica; representa na narrativa
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Poussin, portanto, é
itada pela Academia e, o pintor real, de carne e
, de fato era um adepto do desenho e do classicismo. Vejamos uma obra de Poussin,
, que colabora para nossa forma de caracterizá-lo:
Os pastores da Arcádia, de Poussin, 1638
http://en.wikipedia.org/wiki/Et_in_Arcadia_ego#mediaviewer/File:Nicolas_Poussin_052.jpg. Acessado
adêmica e institucionalizada, com todas as
regras da pintura tradicional: perspectiva, harmonia das formas, simetria, desenho e um
escuro. Porbus e Possin, então, podem ser caracterizados no interior da narrativa
funcionam no plano ficcional como uma
o plano da realidade
de início do século XIX. Frenhofer, por outro lado, repudia essa
te ao pintor não apenas copiar a
la. Além disso, Frenhofer se arvora como o único
holandês, o qual utilizava-se da
de realidade viva às figuras. Nas
palavras de Frenhofer: “Só Mabuse detinha o mistério de dar vida aos rostos. Mabuse só
2003, p. 27). Até aqui podemos inferir que Frenhofer
êmica; representa na narrativa, e numa
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realidade concreta francesa do século XIX, uma postura inovadora, adepto da luz e da
cor na denominada técnica do sfumato, inventada por Leonardo Da Vinci:
Esse recurso só pôde ser alcançado com o uso da luz e da sombra, obtido pelo jogo gradativo de cores e tons entre o claro e o escuro, resultando em contornos de objetos e figuras pouco definidos, no intuito de transmitir leveza e movimento, um lineamento esbatido e cores adoçadas que permitem uma forma fundir-se com outras. (CAVALCANTI 2010, p. 84)
De fato, a narrativa confirma a teoria da arte do sfumato no discurso de
Frenhofer:
A linha é o meio pelo qual o homem representa o efeito da luz sobre os objetos. Mas na natureza, onde tudo é plenitude, não existem linhas; é modelando que se desenha, quer dizer, que se isola uma coisa do meio onde ela está. A distribuição da luz é que dá forma ao corpo! Assim, não fixo o delineamento dos rostos, espalho sobre os contornos uma nuvem de semitons amarelados e quentes que tornam impossível colocar com exatidão o dedo ali onde os contornos mesclam-se com o fundo. De perto, o trabalho parece borrado e carente de precisão mas a dois passos de distância tudo se reforça, se imobiliza e se destaca; o corpo gira, as formas tornam-se salientes, sente-se o ar circulando ao redor do resto. (BALZAC, 2003, p. 33)
Dessa forma, Frenhofer adquire os contornos do artista rebelde, contrário aos
dogmas, tanto na narrativa ficcional quanto na realidade concreta francesa do início do
século XIX. Ele é “... o pintor que se afirma contra a academia, e que a hostilidade das
instituições oficiais não faz mais do que engrandecer, representa a encarnação por
excelência do “criador”, natureza apaixonada, enérgica, imensa por sua sensibilidade
fora do comum e seu poder único de transubstanciação.”, (BOURDIEU, 2005, p.156, grifo
do autor). E, efetivamente, na segunda parte do conto, quando Frenhofer mostrar sua
obra, na qual trabalha por dez anos, quem poderá dizer que não se trata de um “criador”,
de um “apaixonado”?
Nessas primeiras impressões, percebemos um grau de transtextualidade, definida
como “... tudo que o coloca [o texto] em relação, manifesta ou secreta, com outros
textos.”, (GENETTE, 2010, p. 11). O texto de Balzac aponta para outros textos, sejam
biografias dos pintores, sejam textos de história ou de teoria da arte pictórica; ou mesmo
uma relação com os textos icônicos dos pintores reais apresentados. Balzac vivia a Paris
do início do século XIX, um espaço de debates e trocas entre os artistas dos mais
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diversos campos; conhecia, portanto, algo sobre a pintura
Delacroix –, mas, para escrever este conto
estudar textos sobre pintura, suas regras, sua história, pintores, obras, concretizando na
narrativa uma relação transtextual. Quanto à arte defendida por Frenhofer, é possível
que Balzac tenha visto ou lido algo sobre o pintor
se aproxima do relato de Frenhofer.
... poderia ter visto uma tela de Turner, em Paris, ou numa de suas viagens ao exterior: uma tela de Turner ao vivo ou alguma reprodução. Ou poderia ter ouvido um comentário sobre uma tela deque não tivesse se impressionado muito com o que vira ou, nada improvável, que tivesse francame
O fato é que assim teríamos uma possibilidade de transtextualidade, env
Turner e Balzac. Por certo
da arte de Turner, como O Exército de Aníbal cruzando os Alpes
FIGURA 3 - O exército de Aníbal cruzando os Alpes, de Turner, 1812
Disponível em http://abstracaocoletiva.com.br/wp
Além dessas relações de transtextualidade, podemos inferir também que a
narrativa apresenta relações do pictural ao verbal, nem tanto de forma explícita, como
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conhecia, portanto, algo sobre a pintura – era amigo e admirador de
, mas, para escrever este conto, parece-nos que inevitavelmente precisou
textos sobre pintura, suas regras, sua história, pintores, obras, concretizando na
narrativa uma relação transtextual. Quanto à arte defendida por Frenhofer, é possível
que Balzac tenha visto ou lido algo sobre o pintor inglês Turner (1775
se aproxima do relato de Frenhofer. Segundo Coelho, Balzac:
poderia ter visto uma tela de Turner, em Paris, ou numa de suas viagens ao exterior: uma tela de Turner ao vivo ou alguma reprodução. Ou poderia ter ouvido um comentário sobre uma tela de Turner, um comentário de alguém que não tivesse se impressionado muito com o que vira ou, nada improvável, que tivesse francamente rejeitado o que havia visto. (COELHO
O fato é que assim teríamos uma possibilidade de transtextualidade, env
Por certo, a explanação de Frenhofer sobre a arte pictórica se aproxima
O Exército de Aníbal cruzando os Alpes, de 1812:
O exército de Aníbal cruzando os Alpes, de Turner, 1812
http://abstracaocoletiva.com.br/wp-content/uploads/2012/12/44.jpg. Acessado em 15 fev. 2014.
essas relações de transtextualidade, podemos inferir também que a
narrativa apresenta relações do pictural ao verbal, nem tanto de forma explícita, como
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amigo e admirador de
nos que inevitavelmente precisou
textos sobre pintura, suas regras, sua história, pintores, obras, concretizando na
narrativa uma relação transtextual. Quanto à arte defendida por Frenhofer, é possível
Turner (1775-1851), cuja arte
poderia ter visto uma tela de Turner, em Paris, ou numa de suas viagens ao exterior: uma tela de Turner ao vivo ou alguma reprodução. Ou poderia ter
Turner, um comentário de alguém que não tivesse se impressionado muito com o que vira ou, nada improvável,
(COELHO, 2003, p. 84)
O fato é que assim teríamos uma possibilidade de transtextualidade, envolvendo
explanação de Frenhofer sobre a arte pictórica se aproxima
, de 1812:
O exército de Aníbal cruzando os Alpes, de Turner, 1812
. . Acessado em 15 fev. 2014.
essas relações de transtextualidade, podemos inferir também que a
narrativa apresenta relações do pictural ao verbal, nem tanto de forma explícita, como
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na denominada ekphrasis clássica. Porém, há uma transposição de arte, uma vez que o
texto de Balzac tem um referencial pictural. Inclusive podemos afirmar que Balzac, no
longo episódio no qual Frenhofer critica a obra Maria do Egito, atribuída na narrativa a
Porbus, e corrige-a, como um professor, efetua uma transposição intersemiótica, mesmo
que o quadro Maria do Egito seja ficcional e mais sugerido do que propriamente
descrito. É possível atribuirmos a essa forma específica de transposição da pintura para
a literatura uma função estrutural, no interior da narrativa, pois:
Le Chef-d’aeuvre inconnu refere-se a um quadro de Porbus intitulado La Marie Egyptienne; ora, a imagem de Maria, que se prostitui para poder pagar uma travessia de barco, demonstra ser uma mise en abyme de Gillette, que também se prostitui ao se oferecer como modelo para o pintor Frenhofer. Trata-se de uma mise en abyme predicativa. (ARBEX, 2006, p. 176)
Chegamos, assim, à segunda parte do conto, no qual o ponto nevrálgico consiste
na apresentação da obra-prima de Frenhofer, na qual trabalha há dez anos, aos pintores
Porbus e Poussin. Evidentemente, há uma tensão dramática até o velho pintor de fato
mostrar sua obra, pois há como que uma troca: Poussin mostraria sua amante Gillette,
de beleza incomum e, em troca, Frenhofer mostraria sua obra, Catherine Lescault. O
velho pintor resiste, mas acaba cedendo e, enfim, mostra sua obra, considerada por ele
viva, uma mulher. Todavia, os dois pintores, ao mirarem a obra decepcionam-se: “Você
está vendo alguma coisa?, perguntou Poussin a Porbus. Não, e você? Nada.”, (Balzac,
2003, p. 52-53). Enquanto isso, o velho Frenhofer admirava, extasiado, sua criação. Os
dois pintores aproximam-se e distanciam-se da tela buscando ver aquilo que Frenhofer
via:
O velho tratante está zombando de nós, disse Poussin, voltando a olhar o suposto quadro. Só estou vendo cores confusamente espalhadas umas sobre as outras, contidas por uma multidão de linhas bizarras que formam uma muralha de pintura. Acho que não estamos entendendo, continuou Porbus.Aproximando-se, perceberam num canto da tela um pedaço de pé que se projetava para fora daquele caos de cores, tons e matizes indecisos, uma espécie de neblina sem forma. Mas, aquele era um pé delicioso, um pé vivo! Ficaram petrificados de admiração diante daquele fragmento que escapara de uma incrível, lenta e progressiva destruição. (BALZAC, 2003, p. 53)
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Nessa passagem, percebemos, pelo olhar dos dois pintores, que a obra de
Frenhofer poderia se assemelhar às obras de Turner, o qual eles não conheceram, pois a
narrativa se dá no século XVII e Turner foi contemporâneo de Balzac. Muitos creditam a
esse trecho da narrativa a posição tomada pelo escritor Balzac ante a arte de Frenhofer,
posição contrária e, paralelamente, favorável aos pintores Porbus e Poussin. Inclusive
credita-se a essa tomada de posição do autor como um sinal do fracasso e da demência
de Frenhofer. No entanto, não compartilhamos dessa opinião, pois conforme Coelho
(2003, p. 86, grifo do autor), “... essa é a passagem onde Balzac aparentemente toma o
partido dos dois pintores porque mesmo ela pode pretender propor-nos como a mera
descrição dos pensamentos e sensações dos dois pintores, eles mesmos, não do autor.”
Assim, como expressão das sensações dos dois pintores, a passagem aponta para nosso
modelo de análise anterior: Porbus e Poussin, pintores da tradição acadêmica,
essencialmente icônicos, não percebem que estão diante de uma obra-prima, de
Frenhofer, pintor da ruptura com a tradição acadêmica e inexoravelmente icônica. Os
dois pintores, atrelados aos dogmas de uma forma de arte pictórica, somente conseguem
ver quando encontram na tela um referencial icônico: um pé! Dessa forma, ignoram, pois
não o podem saber, que estão diante de uma obra-prima, construída com liberdade, com
paixão, com sentimento e com uma técnica que lhes é estranha. Na fala dos pintores:
“Porbus tocou no ombro do velho, dizendo para Possin: Sabe que temos aqui um grande
pintor? Um poeta, mais que um pintor, respondeu Poussin, sério. Aqui, continuou
Porbus, acaba a arte deste mundo.”, (Balzac, 2003, p. 55). De fato, para os dois pintores,
aprisionados pelas convenções da pintura academicista, Frenhofer tornara-se poeta e
acabara com a arte até então conhecida. Na sequência da narrativa, Poussin, mais
enraizado no classicismo do que Porbus, este mais dinâmico, posto que maneirista,
afirma: “Mas, cedo ou tarde, vai perceber que nessa tela não existe nada, comentou
Poussin.”, (Balzac, 2003, p. 55), trazendo como consequência o desfecho trágico no qual
o velho pintor faz com que se retirem e, no dia seguinte, descobre-se que havia morrido
durante a noite, após queimar suas telas.
Em todo o conto há uma narrativa verbal que se utiliza de um referencial pictural,
e nesse desfecho é possível percebermos relações intersemióticas, mesmo que a obra-
prima de Frenhofer não seja descrita na ekhprasis clássica. Balzac, em sua narrativa,
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toma de empréstimo o tema da pintura, o situa na Paris de 1612, mas remete à França
do início do século XIX, ou seja, um contexto de discussões sobre a arte em geral. Então,
temos a conexão da narrativa com a realidade concreta e, por extensão, ao tema central
da obra: os processos recíprocos entre a vida e a arte. As relações transtextuais
corroboram uma postura do Balzac escritor mais próxima da postura de Frenhofer. Num
conceito de paratextualidade, definido por Genette (2010), o título é afirmativo: A obra-
prima ignorada. A obra de Frenhofer é, portanto, sem dúvida uma obra-prima, a qual é
ignorada pelos dois pintores. Ainda no quesito paratextual, o conto é inserido na obra
maior de Balzac, intitulada Comédia Humana, na categoria de Estudos Filosóficos. Ora, é
justamente uma reflexão crítica sobre a arte e sobre a vida que a narrativa propõe, em
múltiplas possibilidades. Nossa proposta de análise atesta a narrativa como uma
alegoria construída por Balzac para discutir e propor um projeto para a arte, no contexto
francês do início do século XIX. Como já afirmamos, Paris era o centro cultural do mundo
na época, escritores, pintores e artistas de um modo geral circulavam pela cidade, com
suas ideias, seus projetos, seus medos em relação ao viver a arte. Também, no caso de
Balzac, não podemos excluir uma relação transtextual com o escritor alemão E. T. A.
Hoffmann, pois
Sua obra tematiza com frequência a relação entre literatura, música pintura, ela traz formulações importantes sobre as correspondências entre os diferentes sentidos e as diferentes artes, e põe em cena, das mais variadas maneiras, personagens artistas. Tais aspectos encontram eco, na França, em criações literárias que trazem figurações de artistas e refletem sobre as aspirações e os fracassos da arte no período, isso pode ser visto na obra de Baudelaire e Balzac. (KAWANO, 2008, p. 1)
Assim, A obra-prima ignorada pode ser lida como uma proposição para o pensar
sobre a arte. Balzac, já o afirmamos, utiliza-se do tema pictural para erigir sua forma
verbal. Ao fazê-lo realiza uma transposição de arte e tece relações transtextuais para
exprimir sua postura diante dos dilemas entre uma arte mais padronizada, no caso da
pintura institucionalizada e academicista, e uma arte com maior liberdade criadora,
posições simbolizadas no plano de sua ficção por Porbus e Poussin, de um lado, e
Frenhofer, de outro. Esperamos ter atingido o propósito de evidenciar a relação da
ficção com a realidade concreta, na qual o escritor opera uma estetização de elementos
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extraestéticos, e as relações intersemióticas e de trasntextualidade na obra. E, por fim,
acreditamos que nesse estudo filosófico, no qual Balzac incluiu A obra-prima ignorada,
fazem-se presentes suas dúvidas sobre a arte em geral, a qual não pode estar totalmente
desvinculada de certas regras, mas tampouco deve estar petrificada pelas normas.
Balzac, parece-nos, toma o partido de Frenhofer, o qual afirma: “Para tornar-se um bom
poeta não basta conhecer a fundo a sintaxe e observar as regras da linguagem.”, (Balzac,
2003, p. 18), ou seja, para ser artista é preciso também sentimento, paixão, liberdade,
características presentes na arte de Frenhofer e nele próprio. Evidentemente, o debate
sobre as relações recíprocas entre o fazer artístico, a recepção da obra e a vida, contida
em A obra-prima ignorada ultrapassam o contexto do século XIX e possuem pertinência
no fazer artístico da atualidade.
REFERÊNCIAS
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Artigo aceito em dez. /2014