De cidades para pessoas a cidades educadoras | TFG | FAUUSP | 2014
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De ciDaDes para pessoas a ciDaDes eDucaDoraspor uma estratégia De Desenvolvimento De projeto político-peDagógico De bairro
Universidade de Sâo Paulo
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
De cidades para pessoas a cidades educadoraspor uma estratégia de desenvolvimento de projeto político-pedagógico de bairro
Trabalho Final de Graduação
Luis Fernando Villaça Meyer
Orientação: Fábio Mariz Gonçalves
São Paulo | 2014
A Luis, Nanci e Felipe. Família querida, sem a qual não me encontro no mundo.
A todos aqueles que buscam a profundidade da vida, o significado do viver, a intensidade de ser.
Agradeço a vida.
A simplicidade de tal colocação talvez esconda a profundidade de seu sentido. Mesmo ar-
riscando me afastar de sua beleza sintética, sinto-me no dever de me aproximar da pureza
de descrever seu significado.
“Eu sou o resultado consciente da minha própria experiência: a experiência daquele que
tem vivido toda a intensidade de todos os instantes da sua própria vida. A experiência
daquele que assistindo ao desenrolar sensacional da própria personalidade deduz a apo-
teose do homem completo”.
Minha vida me transborda, me transpassa. Não existo sem aquilo e sem aqueles que me
rodeiam e sem as experiências que proporcionam. Agradecer a vida não é simplesmente
agradecer a todos ou a tudo, é agradecer a cada um. Obrigado por existirem, por serem
precisamente o que são e por tornarem possíveis as palavras impressas nestas páginas.
A meus pais por me trazerem à vida, por me ensinarem a andar, a falar, a conhecer um
mundo tão surpreendente. A meus amigos, por compartilharem um viver de experiências
simples e complexas, banais e significativas, superficiais e profundas. A grandes paixões,
por me levarem onde nunca imaginei existir dentro de mim. A meus professores, por cada
nova pergunta e pelo apoio na busca pelas respostas. A cada desconhecido, em seus olha-
res, seus movimentos, suas ideias, suas ações.
Agradeço a vida por poder falar sobre ela. Por saber que sua beleza é presente e profunda,
disponível a quem se dispuser a olhá-la.
É vivendo que se aprende a viver a vida
Apresentação 15
Parte I Carta ao Mediador
Capítulo 1 23
Crítica à sociedade distendida 25
Capítulo 2 35
Considerações sobre hegemonia e distensão 37
Cidade 41
Política 49
Educação 57
Vertentes contra hegemônicas 65
Capítulo 3 71
Consciência e mediação 73
Capítulo 4 83
Experiência 85
Capítulo 5 105
Estratégia 107
Parte II Estratégia
I Movimento: Orquestração 123
1. Prelúdio: percepção do desconforto e vontade de ação 126
2. Articulação: alinhamento de conceitos, estratégia e formação da equipe 126
3. Plano de ação de aproximação 126
II Movimento: Aproximação 133
4. Sensibilização 136
5. Leitura do bairro 136
sumário
6. Refinamento e interação 136
7. Plano de ação de contato 136
III Movimento: Contato 149
8. Apresentação 152
9. Alinhamento 152
10. Avaliação da situação do bairro 152
11. Plano de ação de difusão 152
IV Movimento: Difusão 167
12. Estabelecimento de bases 170
13. Experiências pontuais 171
14. Grupos temáticos 171
15. Plano de ação de integração 171
V Movimento: Integração 185
16. Experiências integradas 188
17. Fóruns deliberativos 189
18. Articulação com vizinhos 189
19. Plano de ação de desenvolvimento 189
VI Movimento: Desenvolvimento 205
20. Acompanhamento 208
21. Fóruns e assembleias 209
22. Projeto político-pedagógico 209
23. Ensaio 209
Referências 222
15
Caro leitor,
É com carinho que lhe escrevo esta carta, que mais parece um livro, e conto a história de uma
vontade. Não sei quais são suas intenções ou expectativas ao começar a ler estas primeiras
palavras, nem se todas que ainda estão por vir lhe serão interessantes e significativas. Mas
escrevo procurando organizar uma resposta a um desconforto profundo que cresce dentro de
mim; um grito incontido frente ao que vemos na vida e que engolimos a seco, cada vez mais
calejados pelas mazelas que acabam nos parecendo inevitáveis e se tornam invisíveis.
Eu não aceito. Não posso aceitar. E tudo que estiver ao meu alcance para reagir ao fatalismo
do desnecessário sofrimento é bem vindo. Espero que nos identifiquemos e que ao longo das
conversas nos sucessivos capítulos encontremos alinhamento entre nossas energias e convic-
ções. Antes de tudo, espero que esse texto seja útil, tanto do ponto de vista reflexivo quanto
prático, e que possa ajudar a gerar transformações que nossas sociedades precisam.
Neste sentido, não é minha intenção redigir um texto demasiadamente acadêmico ou com-
apresentação
16
VII De cidades para pessoas a cidades educadoras
plexo. A profundidade do tema faz com que seja preciso algum rigor na definição de conceitos,
mas isso não significa sermos incompreensíveis a quem quer que seja. É preciso que sejam dis-
cussões acessíveis. Espero que a leveza o acompanhe nas páginas que se sucedem, assim como
me acompanhou durante sua redação.
Contudo, preciso dizer que no desenvolvimento deste trabalho nem sempre a leveza esteve
presente. Os primeiros questionamentos foram marcados pela angústia e pelo desconforto de
quem percebe que algo está errado, mas ainda não consegue verbalizar uma crítica ou sintetizar
uma maneira de agir. Esta situação evidentemente não é exclusiva a mim. Muitas são as questões
e instabilidades de nossas sociedades e seus consequentes desconfortos gerados a cada pessoa.
Invariavelmente nos vemos criticando o Estado; a má gestão dos recursos públicos; o mercado;
a má qualidade de serviços; a má qualidade de nossas cidades; a insegurança; o consumismo;
a falta de respeito e de empatia social; a falta de significado e valor em nossos trabalhos; as
desigualdades; injustiças; desrespeito a direitos; e tantas outras questões que nos tocam no dia-
-a-dia. Muito nos incomoda e muito permanece nos incomodando, como se fossem condições
imutáveis de realidade.
Talvez parte de nós não se sinta em posição de responder a estas críticas e angústias, como se
uma reação frente à distância entre o mundo em que vivemos e o mundo no qual gostaríamos
de viver não nos competisse. Mas se isso fosse verdade e não coubesse a nós definir e lutar viver
a vida que queremos viver, a quem poderia caber? Os estudos, discussões e propostas que dão
corpo a este trabalho foram desenvolvidos com base na convicção de que não podemos outor-
gar esta definição a ninguém além de nós mesmos. Nossas vontades dizem respeito ao conjunto
complexo que define quem somos, sendo inapreensíveis plenamente por terceiros.
Mas como reagir a este afastamento entre o que vivemos no cotidiano e a vida que queremos
viver? E mais, de fato sabemos profundamente qual é esta vida? Não são respostas simples no
caminho da consciência e da autonomia para reagir a este afastamento, mas a complexidade da
pergunta não justifica deixarmos a busca pela resposta de lado, ou permaneceremos consentin-
do viver o que nos fazem viver. Mas se não cabe a terceiros definirem a maneira como vivemos,
como encontrar tais respostas e como traçar nosso próprio caminho?
17
Apresentação
Propomos aqui uma estratégia para incentivar e potencializar o desenvolvimento de consciên-
cia e autonomia em comunidades, a partir da ação inicial de agentes externos. Para alcançar tal
objetivo sem sermos contraditórios, foram abordadas diversas perspectivas e metodologias de
vertentes variadas de intervenção – notavelmente urbanísticas, políticas e educativas – traba-
lhando com conceitos de participação, deliberação, consciência, mediação, etc. A articulação
de tal variedade de ideias talvez só tenha sido possível dado o contexto onde estive inserido
nos últimos anos.
A proposta que aqui apresentaremos foi desenvolvida como Trabalho Final de Graduação na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, apresentada no inverno
de 2014. Meu percurso na FAU foi marcado pela abordagem da arquitetura em suas facetas
transversais. Minha crise com a ação centrada no arquiteto e o projeto distante do canteiro
e das pessoas me fizeram questionar a função do próprio arquiteto, crise que pôde ser tanto
acolhida nos estúdios e salões da faculdade quanto em minhas atividades fora dela.
A FAU é uma instituição muito propícia à experimentação e à autorreflexão, mesmo sendo
difícil explicar os motivos destas características. Talvez sejam seus amplos espaços, suas pro-
menades, suas empenas, o piso caramelo profundo, as pessoas que ali convivem ou, muito
provavelmente, a soma das experiências que passamos nestes espaços. Refletir (aproveitan-
do a ambiguidade do termo) na FAU sobre o papel do arquiteto nos leva a perceber que a
arquitetura não se restringe à construção de edifícios ou a definição de diretrizes ou políticas
urbanísticas. Ela pode ser tão ampla quanto um projeto pode gerar experiências a quem vive
no espaço.
O arquiteto talvez seja um mediador. Aquele na posição de conhecer e colocar em contato
grande variedade de elementos do universo, projetando em um futuro tangível os espaços,
tempos e materialidades do mundo com o qual e no qual pessoas (con)vivem. O arquiteto su-
gere um viver que está por vir, uma vida diferente daquela que vivemos e precisa realizar uma
escolha sobre como realizará tais projetos.
A arquitetura permite que a tenhamos como universo aberto. Seus limites são desconhecidos,
suas possibilidades são infinitas, seus potenciais são variados. É assim que a estratégia e a abor-
18
VII De cidades para pessoas a cidades educadoras
dagem que aqui desenvolvemos se fazem profundamente frutos de um trabalho arquitetônico.
Mesmo agregando muitos outros elementos para além das disciplinas clássicas da arquitetura,
a estratégia busca a harmonização, o alinhamento, o equilíbrio, uma arquitetura de experiências
de vida. A utopia carregada por estes termos não significa sua negação, pelo contrário, norteia
nossos movimentos.
O texto percorre o caminho destas utopias. Dividido em duas grandes partes: a carta ao me-
diador e a estratégia. Na primeira, definiremos os grandes conceitos e a linha de raciocínio que
irá fundar nossa proposta prática de ação, presente na segunda parte. A carta ao mediador é
iniciada com uma crítica à sociedade que reproduz um mundo e condições do viver cotidiano
distintos de suas vontades reais. Discutimos no segundo capítulo sobre como modelos institu-
cionais se mantêm hegemônicos através desta situação, abordamos suas correspondentes ver-
tentes contra-hegemônicas e como estas propõem experiências que buscam envolver o sujeito
integralmente, tomando-o em sua complexidade.
Em seguida, debatemos como se pode desenvolver consciência sobre o afastamento entre as
experiências que vivemos e aquelas que gostaríamos de viver, definindo uma figura central no
processo: o mediador. O elemento que mediará, a experiência, será definido no quarto capítulo,
discutindo que pode ser simultaneamente uma intervenção e um recurso de desenvolvimento
de consciência e autonomia. Finalmente, articulamos mediadores e experiências em uma pro-
posta de estratégia, primeiramente delineada em linhas gerais, mas em seguida abrindo a se-
gunda parte deste texto. Nela, abordaremos cada um dos seis movimentos da meta-estratégia
que propomos ao mediador. Após estes seis movimentos, temos o conjunto da presente obra,
o VII Movimento, que agrega as duas partes presentes neste livro, assim como a constelação de
experiências e ensaios de intervenção, em seus livretos.
Esperamos que o VII colabore para intervenções significativas nas comunidades onde for utili-
zado e que não seja apenas mais um volume inerte em prateleiras empoeiradas. Sua vida, como
toda vida, é dinâmica e seus conceitos, mutáveis. Cada nova intervenção e cada novo questiona-
mento o modifica e deve atualizá-lo. Se suas intenções caminharem, mesmo que de forma sutil
e gradual, em direção a uma sociedade que vive a vida profundamente, teremos certeza de que
fomos bem sucedidos.
21
parte i carta ao meDiaDor
capítulo 1crítica à socieDaDe DistenDiDa
25
crítica à socieDaDe DistenDiDa
Palavras podem confundir. Somos bombardeados dia após dia com palavras que nos oferecem
saúde melhor através de planos de saúde mais abrangentes; melhor educação em escolas mais
inovadoras; mais segurança com policiamento mais bem equipado; dentre tantas outras res-
postas de instituições que dizem suprir nossas necessidades e vontades. O que na maior parte
das vezes não questionamos é que estas palavras não são sinônimas.
Tratamento médico não é equivalente a saúde; escola não é equivalente a educação; poli-
ciamento não é equivalente a segurança. As primeiras são apenas respostas institucionais a
questões muito mais amplas que dizem respeito a todos nós como sociedade. O problema é
confundirmos as duas coisas, processo com substância, e acabamos questionando apenas as
instituições ao invés de nos questionarmos sobre nossas necessidades mais profundas.
Nas palavras de Ivan Illich,
“saúde, aprendizagem, dignidade, independência e faculdade criativa são definidas
como sendo um pouquinho mais do que o produto das instituições que dizem servir
26
VII Carta ao mediador
a estes fins; e sua promoção está em conceder maiores recursos para a administração
de hospitais, escolas e outras instituições semelhantes” 1 .
Talvez tenha sido um movimento natural da sociedade moderna essa cultura de “instituciona-
lização” ou talvez tenha sido uma série de conjunturas históricas muito específicas. O que im-
porta é que nossas necessidades, por mais simples que possam ser, passam a ter uma resposta
institucional que as transformam em serviços e “bens” que possam ser consumidos. Deixamos
a cargo das próprias instituições e sistemas a responsabilidade e direito de dizer o que é me-
lhor para nós e de dar contorno a estas necessidades na forma de produtos.
Mas elas não são produtos. São vontades profundas de experiências humanas: a experiência
da saúde, a experiência da aprendizagem, a experiência da segurança. Questões mais comple-
xas do que uma instituição poderia compreender e dar uma resposta completa em qualquer
forma de estímulo, bem como tantas outras experiências que dizem respeito à vida de cada
indivíduo como um todo; a vida em sua integralidade.
Um hospital, por melhor e mais avançado que seja, não é equivalente à minha experiência de
saúde; uma escola não é equivalente à minha experiência de aprender; um aparato policial de
última geração não é equivalente à minha experiência de segurança. Mesmo assim, sua rela-
ção é inegável. Não poderíamos fechar os olhos para a experiência de um ente querido que
seja curado de uma grave doença com um tratamento médico; um filho que chega da escola
contando com brilho nos olhos o que aprendeu; ou à sensação de segurança que uma base
policial pode nos dar em alguma situação de perigo.
Contudo, as experiências de vida em si são essencialmente complexas, na medida em que
“é complexo o que não se pode resumir numa palavra-chave, o que não pode ser re-
duzido a uma lei nem a uma ideia simples” 2.
Por outro lado, para conseguirem atuar, as instituições precisam simplificar essa complexidade
de forma que se nomeie o problema a ser resolvido. Portanto, complexidade e simplificação
convivem de alguma maneira.
1. Ilich, Ivan. Sociedade sem escolas (p21)
2. Edgar Morin. Introdução ao pensamento complexo (p5)
27
Crítica à sociedade distendida
Para discutirmos este convívio, precisamos começar sintetizando que são duas dimensões dis-
tintas e complementares: as experiências que as instituições oferecem em forma de serviço,
simplificando a complexidade; e a experiência da vida propriamente dita, complexa; onde a
primeira é uma resposta parcial à segunda, que é mais ampla e a engloba. Só com esta cons-
ciência podemos transformar os estímulos práticos da sociedade para estarem mais alinhados
com estas experiências profundas que buscamos.
Neste sentido, precisamos discutir o que na sociedade interfere neste alinhamento, facilitan-
do-o ou dificultando-o. Incorporando termos de Habermas, o domínio social onde passamos
por experiências do primeiro caso, ou seja, estímulos que simplificam a complexidade, é o que
poderíamos chamar de sistema, enquanto do segundo, nossa busca pelas experiências de vida
complexas, mundo da vida.
Para o sistema, a lógica é a da reprodução material da sociedade, onde
“o mundo e os atores sociais são tomados não como sujeitos dotados de opiniões,
visões de mundo e crenças, mas como meros objetos” 3,
de forma a neutralizar os conflitos entre esses atores. Em outros termos, não são tomados
como sujeitos que discutem e buscam compreender as experiências da vida, mas como consu-
midores e usuários de produtos e serviços que dizem satisfazer essa busca de maneira simples
e eficiente. Habermas chama este tipo de ação de instrumental. Seria a lógica do Mercado e do
Estado, por exemplo.
Do outro lado, no mundo da vida, estaríamos lidando com as experiências em sua complexida-
de, provavelmente maior do que nossa própria razão poderia compreender completamente.
“O pensamento complexo aspira ao conhecimento multidimensional. Mas ele [o pen-
samento complexo] sabe desde o começo que o conhecimento completo é impossí-
vel: um dos axiomas da complexidade é a impossibilidade, mesmo em teoria, de uma
onisciência” 4.
Se tivéssemos pleno conhecimento da complexidade da vida através da razão, não precisaría-
3. Nobre, Marcos. Direito e Democracia (p20)
4. Edgar Morin. Introdução ao pensamento complexo (p6)
28
VII Carta ao mediador
mos buscar respostas e experiências profundas, talvez elas já estivessem dadas.
É através do pensamento complexo que procuramos o entendimento mais profundo, mesmo
que ainda parcial, de angústias e questões das mais diversas ordens da vida em um tipo de
ação que Habermas chama de comunicativa, uma vez que ela se daria no confronto de ideias.
Essa ação seria regida por regras estabelecidas pelos próprios participantes de uma discussão
racional onde buscariam lidar com o conflito e o dissenso entre seus pontos de vista. A ação
comunicativa deveria reformar constantemente as instituições de acordo com as conclusões.
O sistema e o mundo da vida são indissociáveis, partes de um mesmo todo, de forma que não
há domínio social onde poderíamos encontrá-los em “estado puro”. Assim, ambos convivem
em relação não necessariamente equilibrada, principalmente pelo fato da ação instrumental,
em sua busca de reprodução material da sociedade, entrar em conflito com o potencial trans-
formador da ação comunicativa. Este conflito pode ser visto, por exemplo, no embate entre
a democracia representativa e os ambientes políticos essencialmente participativos, onde o
primeiro tende a ser mais eficiente na tomada de decisões, mas menos profundo no entendi-
mento da complexidade dos temas que discute.
Em outras palavras, a ação instrumental busca reproduzir condições que já estão dadas na so-
ciedade, o que a possibilita fazê-lo de forma eficiente, enquanto a ação comunicativa questio-
na e critica estas condições e suas premissas, o que tende a ser mais trabalhoso e reformador.
Neste embate, pela força dos sistemas consolidados na sociedade e em um esforço de auto-
preservação, pode ocorre o que se chama de “colonização do mundo da vida pelo sistema” 5 ,
ou seja, o espaço de discussão em nossas vidas sociais onde buscaríamos o entendimento so-
bre questões e experiências complexas da vida – como a da saúde, educação e segurança –
seria menos valorizado e até deixado de lado, “colonizado”, quando há instituições que dizem
estar lidando com elas.
Sem valorizar este movimento de conscientização do sujeito através da ação comunicativa,
geram-se menos respostas sobre como de fato deveriam ser as experiências do viver cotidiano
e, consequentemente, menos pressão nas instituições. Assim, nossa busca por experiências de
vida, complexas, e sua resposta prática, institucional, distendem-se: quanto menos buscamos
5. Marcos Nobre. Direito e democracia (p22)
29
Crítica à sociedade distendida
o entendimento das experiências, individualmente e em sociedade, menor nosso impulso e in-
fluência na transformação das instituições para darem respostas à altura de sua complexidade
e maior o afastamento entre ambas.
Por exemplo, se formos questionar e discutir a experiência de segurança que queremos em
nossas cidades, podemos questionar se muros mais altos em nossas casas e policiamento mais
armado nas ruas realmente nos aproximam de nosso objetivo. Talvez muros baixos possibi-
litem que todos os vizinhos olhem e vigiem o que acontece nas ruas; e talvez quanto mais
armados estiverem nossos policiais, mais armados estarão aqueles que devem combater.
Então o que será que interfere no aprofundamento da consciência e na força de intervenção
da sociedade? Provavelmente a distensão seria constantemente reduzida se houvesse equilí-
brio entre o sistema e o mundo da vida, mas há como que uma cultura de afastamento entre a
experiência complexa e a resposta institucional na sociedade moderna, não apenas nas insti-
tuições, movidas pelo paradigma de simplificação para viabilizarem sua própria sobrevivência
e a reprodução material da sociedade, mas também na própria sociedade. “A patologia moder-
na da mente está na hipersimplificação que não deixa ver a complexidade do real” 6.
Passa pelo movimento de colonização do mundo da vida pelo sistema a instauração e ma-
nutenção dessa patologia da mente: o esvaziamento dos discursos críticos, próprios da ação
comunicativa, e a reclusão silenciosa da sociedade, sua aceitação. Talvez a instituição escolar
tradicional seja a que mais coloque este movimento em relevo: o educando é ensinado a ab-
sorver informações que não deve criticar, mas apenas reproduzir. É o que Paulo Freire chama
de uma educação “bancária”, onde, quanto aos educandos,
“quanto mais se lhes imponha passividade, tanto mais ingenuamente, em lugar de
transformar, tendem a adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada dos depósitos
recebidos [de conhecimento]” 7.
Assim, em experiências como a da educação bancária, onde o sujeito é reduzido a uma forma
menos crítica e complexa, o sistema consolida a hegemonia de certos modelos institucionais
que proporcionam boa parte das experiências cotidianas na sociedade, como hospital, escola
ou policiamento. Usamos, portanto, o termo “hegemonia” no sentido definido por Gramsci,
6. Morin. Idem (p14)
7. Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido (p34)
30
VII Carta ao mediador
onde está implicado o consenso e consentimento do conjunto social a instituições que o diri-
gem, mais do que a forças que o dominam 8.
Quanto maior o afastamento entre o entendimento e busca pelas experiências complexas da
vida e as experiências oferecidas pelas instituições, menor a sua crítica, maior a sua hegemonia
e mais modelos promoverão este estiramento, mesmo considerando-se que há modelos cuja
hegemonia não dependa da redução do sujeito, como veremos no capítulo seguinte. Em ou-
tras palavras, há modelos modernos que mantem sua hegemonia gerando experiências que
reforçam a distensão entre as experiências do viver cotidiano e a integralidade da vida com-
plexa.
Mas como estes modelos conseguiriam fazer isso sem que as pessoas os rejeitassem? Para re-
alizar este estiramento e fazer a sociedade aceitá-lo sem maiores problemas, os produtos e
serviços produzidos pelas instituições que reforçam o que chamo de sociedade distendida
geram experiências para apenas um recorte do sujeito. São experiências cuja intenção, afas-
tando-se da compreensão da complexidade da vida, gera o envolvimento da pessoa apenas
até o ponto em que sua hegemonia se mantenha e o sistema se reproduza. Estímulos que por
suprirem o sujeito de experiências que lhe sejam mínima e suficientemente significativas 9,
ofuscam a consciência da conexão indissociável entre as experiências do viver cotidiano e as
experiências da vida, consciência que pode colocar em risco a manutenção das instituições
como estão constituídas.
Então, se a sociedade já for profundamente consciente de suas vontades complexas de experi-
ências humanas e da necessidade de vínculo delas com as oferecidas no cotidiano, os modelos
hegemônicos terão que responder à altura ou serão superados. Ou seja, inversamente, se a
consciência social é superficial e não se busca ampliá-la, a visão crítica quanto à distensão se
esfacela e as instituições responderão a essa altura, produzindo experiências que a mante-
nham neste estado superficial de consciência. É como se para nossa busca pela experiência de
aprendizado, nos contentássemos com escolas que não consideram e não exploram nossos
gostos, críticas e opiniões; ou em nossa busca de segurança nos satisfizéssemos com câmeras
espalhadas pelas ruas.
8. Coutinho, Carlos Nelson. De Rousseau a Gramsci (p145)
9. Vamos explorar a ideia de experiência significativa mais profundamente nos capítulos subsequentes, discutindo os conceitos de interação e continuidade de Dewey.
31
Crítica à sociedade distendida
Mas a experiência ofertada e o que a pessoa vivencia também não são sinônimos. Há um pro-
cesso fenomênico de experimentação do estímulo cuja interpretação e resposta só podem vir
da própria pessoa. Ninguém pode viver por ela e avaliar o quanto as experiências lhe são sig-
nificativas. Então, uma vez que quem vive a experiência é o sujeito complexo, independente-
mente de o estímulo ter sido criado considerando-o em sua totalidade ou parcialidade, temos
um elemento a mais na discussão da distensão: como posso dizer quão profundamente uma
pessoa vive e interpreta uma experiência, mesmo que ela seja fruto de um estímulo produzido
considerando apenas um recorte do sujeito?
Além da busca pelo entendimento sobre as experiências da vida, de um lado, e dos estímulos
práticos trazidos pelas instituições no cotidiano, do outro, há também a experiência em si,
a percepção da experiência pela pessoa. A distensão entre os dois primeiros só poderia ser
verificada considerando-se o terceiro, ou seja, só poderíamos confirmar sua validade e escala
se tivéssemos acesso à reflexão e consciência de cada indivíduo sobre as questões profundas
da experiência humana, seu questionamento sobre as experiências cotidianas do viver e seu
julgamento se ambas estão alinhadas, acesso que não podemos ter.
Vemo-nos então frente a uma questão: se queremos nos colocar no movimento de aproximar
as experiências do viver à consciência e busca das experiências da vida, precisamos conseguir
avaliar o grau de distensão entre elas? Se a resposta fosse positiva, estaríamos de mãos atadas.
Contudo, nosso papel não é tentar realizar este julgamento pela sociedade e chegar a um
veredito verdadeiro, ele não seria possível e nem é necessário. Cabe a cada individuo e a cada
discussão na sociedade este papel – no domínio social da ação comunicativa – de buscar as
melhores respostas possíveis e desenvolver consciência sobre a distensão para exercer influ-
ência na transformação das instituições.
Então, em um primeiro momento, a nós cabe especular, a partir de critérios basicamente sub-
jetivos, que em algum grau a distensão existe e nos colocarmos no movimento de reação a ela.
Neste movimento, os limites de verdadeiro e falso da especulação nos são importantes: na me-
lhor das situações estamos errados, a sociedade é profundamente consciente e as experiências
produzidas pelas instituições estão alinhadas com as demandas por experiências de vida, em
um vetor de aproximação entre ambas; enquanto na pior das situações não há consciência do
32
VII Carta ao mediador
conjunto social e nem influência frente às instituições, deixando que respondam à altura desta
superficialidade, acabando por reforçá-la. No segundo caso o afastamento é total e potencia-
lizado por uma situação de complacência e alienação, onde vivemos experiências que dizem
respeito apenas a uma pequena parte de nós, deixando inexploradas questões, angústias e
vontades humanas profundas.
Tentando então articular as ideias colocadas até aqui: o aprofundamento da busca pela vivên-
cia e compreensão das experiências da vida, como a experiência humana da aprendizagem;
a percepção da experiência pelo sujeito que a vivencia, cuja interpretação lhe é exclusiva; e
as intenções de experiências contidas nos estímulos de produtos e serviços formatados por
instituições, não são sinônimos entre si.
Estas últimas, ações instrumentais do sistema, tendem a responder à altura da consciência da
sociedade quanto a suas vontades de experiências humanas. Quanto mais profunda a consci-
ência e mais articulada a sociedade, mais as instituições precisam se adaptar para se reprodu-
zirem; do contrário, se reproduzem mantendo a sociedade em seu estado de entendimento
superficial. Contudo, estes dois tipos de ação não coexistem necessariamente em equilíbrio,
podendo o primeiro se sobrepor ao segundo caso não haja reação por parte da sociedade, de
forma que as experiências do viver cotidiano e a busca por experiências complexas de vida não
se mostram alinhadas, pelo contrário, afastam-se, distendem-se.
Essa distensão é realizada e reforçada pelas próprias ações instrumentais através de experiên-
cias que satisfazem o sujeito de sua busca, sendo-lhe minimamente significativas. Contudo,
uma vez que a percepção e interpretação da experiência são exclusivas do sujeito, o julgamen-
to do grau de distensão da sociedade é inapreensível em sua totalidade. No que cabe a cada
sujeito o papel de realizar este julgamento, voltamos a questionar nosso papel debatido neste
trabalho.
Nossas comunidades e sociedades se encontram em algum estado intermediário entre os li-
mites discutidos acima, do mais consciente e politicamente ativo ao mais alienado e compla-
cente. Mas uma vez que modelos respondem à altura da consciência da sociedade para mante-
rem sua hegemonia sobre outros e se reproduzirem, quanto mais superficial esta consciência,
33
Crítica à sociedade distendida
maior a dificuldade de reação. Não se pode esperar que modelos institucionais se transformem
sozinhos, indo contra sua própria lógica sem a ação humana, de forma que é preciso inserir
algum elemento novo no processo para inverter o vetor que reforça a distensão e valorizar
seu inverso: a integração. Desta maneira, nosso movimento de reação ao afastamento entre as
experiências da vida e do viver independe do grau de distensão.
Então, para reagir à lógica de reprodução do sistema através de experiências de distensão,
é preciso trazer seu oposto, experiências de integração, proporcionando em nossas comuni-
dades: espaços de interação livre e multidimensional; experiências que sejam significativas e
considerem a complexidade do sujeito para levá-lo à reflexão, questionamento e debate; e de-
senvolvimento e difusão de autonomia das estruturas de ação que conduzam as comunidades
a intervirem e promoverem experiências que integrem a vida e o viver.
Podemos ler estes três campos de proposta da seguinte forma: o espaço da cidade, as práticas
educativas e as ações políticas. Cidade, educação e política aparecem então como campos de
experiências fundamentais para a reação à distensão, mas em vertentes de formatos muito dis-
tintos daqueles que chamamos de hegemônicos. São movimentos que seguem exatamente
a lógica inversa, buscando desenvolver experiências integrais ao invés de distensão, em mo-
delos que por sua reação à hegemonia daqueles instituídos, chamo de contra hegemônicos.
Curiosamente, existem muitas vertentes contra hegemônicas destas três áreas com mais ou
menos ênfase no movimento de reação. Talvez ainda mais curioso seja observar a sinergia e
convergência que há entre elas, inclusive utilizando termos muito semelhantes para descrever
suas propostas de ação. Para que investiguemos uma estratégia de reação através de experi-
ências integrais, precisamos discutir alguns destes modelos.
35
capítulo 2consiDerações sobre hegemonia e Distensão
37
As experiências do viver cotidiano e as experiências profundas de vida, diferentemente do que
se poderia assumir, não são sinônimas entre si, podendo estar próximas ou distantes e refor-
çando sua integração ou distensão. As primeiras são baseadas em modelos, como a instituição
escolar, que dizem suprir nossa busca pelas segundas, como a experiência de aprender, mas
muitos destes modelos se reproduzem e mantem sua hegemonia sobre outras vertentes através
da própria distensão, ofuscando a conexão entre o viver e a vida e se preservando de questiona-
mentos que os ameacem.
Para uma discussão sobre vertentes que mantem sua hegemonia por estes meios, e suas equiva-
lentes contra hegemônicas, que fazem o inverso, precisamos começar fazendo algumas conside-
rações. É fácil nos perdermos na discussão se partirmos de discursos e argumentos ideológicos.
Conservadorismo, liberalismo, socialismo, são algumas de tantas correntes que carregam visões
particulares de mundo e que forjam representações, construções epistemológicas e crenças dis-
tintas entre si. Essas distinções claramente geram oposições que poderiam nos levar a crer que
de um lado teríamos experiências de distensão e experiências de integração do outro.
consiDerações sobre hegemonia e Distensão
38
VII Carta ao mediador
Infelizmente, nem tudo é simples assim. É fundamental considerarmos as ideologias e os pa-
radigmas onde estão ancorados os modelos, tanto hegemônicos como contra hegemônicos,
mas talvez tão importante quanto seja observarmos que não é exclusividade de nenhum de-
les a promoção de experiências de distensão ou integração. Em todas as correntes podemos
encontrar a defesa de experiências de ambos os tipos, dependendo do contexto histórico e
político em que estavam inseridas.
A não ser que seus paradigmas sejam fundados exatamente em uma destas formas de expe-
riência, como muitas vezes ocorre em relações de dominação, toda vertente responde fun-
damentalmente à suas lógicas internas, podendo permutar entre integração e distensão de
acordo com as circunstâncias. Então, mesmo que seja inevitável observar a prevalência de um
lado ou outro em determinadas ideologias, nossa discussão se permeia e emaranha entre elas
ao invés de se partidarizar.
Uma vez não sendo possível medir o grau de distensão de uma sociedade, também não é pos-
sível medir objetivamente o grau de integração ou distensão das experiências propostas por
uma vertente institucionalizada, cujo formato esteja enraizado no inconsciente coletivo. Por
exemplo, não consigo dizer com clareza o quanto a experiência da escolarização está ou não
gerando a experiência profunda da aprendizagem, por mais que em muitos casos possamos
ter indícios positivos ou negativos. É a dificuldade que temos quando contamos com métodos
e critérios objetivos de avaliação para medir algo tão complexo que não poderia ser contem-
plado em todas suas nuances, uma vez que englobaria a dimensão integral da pessoa, suas
características racionais, emocionais, físicas, sociais, culturais, etc.
Essa dificuldade nos coloca na posição de avaliarmos as vertentes como proponentes de expe-
riências de distensão ou integração não pela sua consequência, mas por sua intenção, enten-
dendo intencionalidade como o propósito de uma ação, a que finalidade ela foi trazida. Como
já discutimos no capítulo anterior, a intenção de vertentes que reforçam a distensão gera expe-
riências para apenas um recorte do sujeito, de forma que lhe sejam mínima e suficientemente
significativas. Em contraposição, experiências de integração seriam significativas buscando
envolver o sujeito em sua integralidade, dando-lhe espaço à ação, à crítica, à exploração de
suas angústias, pontos de vista e especificidades, à percepção do vínculo com experiências
39
Considerações sobre hegemonia e distensão
anteriores de sua vida e à ampliação de seu “mundo” de experiências futuras.
Então, esta dualidade faz parte de nossa forma de avaliação: vertentes cuja intenção não con-
siste em envolver profundamente o sujeito e geram experiências minimamente significativas,
tendem a reforçar a distensão; enquanto vertentes cuja intenção parte deste envolvimento e
da busca por experiências cada vez mais significativas, tendem a reforçar a integração. Uma
vez que o entendimento da complexidade do sujeito é sempre parcial, estas últimas sempre
precisam se reinventar para aprofundarem seu entendimento da pessoa, ou acabam também
estagnadas na distensão. Em outros termos, em um extremo temos experiências de distensão,
cujo mínimo envolvimento é suficiente; enquanto no outro temos experiências de integração,
cujo máximo envolvimento não é suficiente.
Mas então o discurso de uma instituição que explicite suas intenções nos seria suficiente para
avaliá-la? Não é como se as instituições que reproduzem experiências de distensão deliberas-
sem envolver minimamente o sujeito para que não veja a separação entre a forma como elas
atuam e o que ele realmente busca. A intenção não reside em envolver profundamente as
pessoas porque o foco e energia destas vertentes estão canalizados para outros fins, sejam
quais forem, passando pela busca de sua manutenção e da reprodução material da sociedade.
Sendo assim, nossa avaliação da intenção não parte de discursos ou propostas, mas do forma-
to da ação posta em prática. O que observamos é a intencionalidade impressa em seus atos,
não em sua “boa intenção” descrita em discursos oficiais 10.
Finalmente, é preciso falar sobre a ideia de hegemonia. Em primeiro lugar, lembrando-se da
definição de Gramsci, vale ressaltar que dela faz parte o consentimento social quanto à institui-
ção de determinada maneira de se responder a uma questão. Por exemplo, a escolarização é
uma vertente hegemônica de educação na medida em que praticamente todas as outras for-
mas de lidar com o processo educativo são vistas como inadequadas ou com relutância pela
sociedade, como se fossem “menores” 11. A escola é vista de tal forma como o domínio por
excelência da educação, que outros ambientes e momentos acabam sendo negligenciados.
Em segundo lugar, nem toda vertente socialmente hegemônica produz experiências de dis-
tensão e nem toda vertente contra hegemônica gera experiências de integração. Não há equi-
10. Mesmo considerando-se que há um processo de tradução da vontade à ação prática, ou seja, qual formato de experiência se propõe a partir de uma intenção.
11. Ver Ivan Illich, Sociedade sem Escolas
40
VII Carta ao mediador
valência simples entre estes termos e nem são excludentes, muito pelo contrário, convivem
mutua e sincronicamente. Assim, a “hegemonia” presente no título deste capítulo é específica:
estamos lidando com a oposição entre vertentes hegemônicas que reproduzem experiências
de distensão e suas vertentes opostas, que buscam a integração. Ao fazermos este recorte,
procuramos deixar clara nossa premeditada procura por uma estratégia de reação às vertentes
que se reproduzem através da distensão.
Dito isso, retomemos a apresentação dos campos de experiência que encerraram o capítulo
anterior. A reação à distensão parte de experiências que explicitem que é possível – e muito
desejável – a integração entre as experiências do viver cotidiano e da profundidade da vida,
de forma que aprofundem a consciência da relação entre ambas, desenvolvam a autonomia
crítica e articulação política da sociedade para promover sua aproximação.
Nestes termos, temos o espaço de uso público, notadamente da cidade, como propício – e em
grande medida, inevitável – para interações livres e justaposição de experiências diversas, uma
vez que toda experiência se apresenta de alguma forma no espaço; o papel fundamental da
educação no desenvolvimento da compreensão do mundo, aprofundamento da consciência
e da autonomia; e a potência da política para formação de espaços comunicativos, de debate,
posicionamento e articulação da sociedade.
Estes três domínios, a cidade, a educação e a política, por suas características fundantes, co-
meçam a dar contornos a nosso campo de ação. Contudo, são áreas que, como tantas outras,
apresentam-se em vertentes de diversos formatos e intenções que se reproduzem como hege-
mônicas ou contra hegemônicas na acepção que apresentamos previamente. Não por acaso,
talvez pela posição “estratégica” destes três campos em potenciais reações à distensão, a opo-
sição entre vertentes que se reproduzem pela distensão e vertentes que buscam a integração
muitas vezes é intensa e conflituosa.
Para uma aproximação mais cuidadosa, precisamos definir o objeto destes domínios; explorar
as origens e características das vertentes hegemônicas; e contrapô-las a algumas vertentes
contra hegemônicas, lembrando que todas respondem às suas lógicas e intenções particula-
res, de forma que nos cabe realizar a crítica e não juízo de valor sobre sua prática.
41
ciDaDeAmbientes urbanos nascem e se organizam respondendo a necessidades específicas antes de
produzirem instituições que buscam controlar seu padrão de desenvolvimento e as experiências
que seus habitantes terão no espaço. As origens históricas das cidades, alguns milênios antes de
nossa Era, remontam à transformação de aldeias em espaços de especialização do trabalho; local
de distribuição de excedente de produção e desenvolvimento de tecnologias; oposição ao am-
biente agrário; e espaço de concentração do poder 12. Estas são algumas características das novas
sociedades que passam a gerar normativas que podemos chamar de “urbanísticas”, por mais que
esta área como ciência venha a se desenvolver apenas poucos séculos atrás.
Os modelos que passam a dominar o desenvolvimento de nossas cidades contemporâneas sur-
gem com a gradual transformação das cidades na era industrial, a partir do século XVIII. A veloci-
dade das transformações sociais, que vão da explosão demográfica às novas formas de organiza-
ção do trabalho refletem-se nas experiências de viver na cidade de formas cada vez mais críticas:
a precarização da moradia, exemplificada na clássica publicação de Engels 13; o agravamento das
condições sanitárias, que geram epidemias de doenças como a cólera; o aprofundamento das
desigualdades nas relações sociais e no acesso a bens e serviços básicos; entre tantas outras.
12. Benevolo, Leonardo. História da Cidade (p26)
13. Ver Engels, Friedrich. A situação da classe operaria na Inglaterra
42
VII Carta ao mediador
O descontentamento com as condições do viver passa a motivar revoltas e críticas cada vez
mais contundentes aos sistemas instituídos, cuja proporção começa a ameaçá-los. Para que se
mantenham no poder, ao longo do século XIX uma série de leis sanitaristas e modelos urba-
nísticos teóricos
“nascem do protesto pelas condições inaceitáveis da cidade existente e procuram
pela primeira vez romper seus vínculos recorrendo à análise e à programação racio-
nal. [...] Antecipam, portanto – como tentativas isoladas – a pesquisa coletiva da ar-
quitetura moderna que terá início no século seguinte” 14.
Neste processo, passa-se do que Benevolo chama de cidade liberal, na qual sob os preceitos do
liberalismo não há controle da administração pública sobre a transformação e uso da cidade,
à cidade pós-liberal, onde a liberdade da iniciativa privada e a regulação e execução de obras
públicas pelo Estado começam a ganhar contornos e limites bem definidos. À administração
pública cabe gerir o espaço mínimo para fazer funcionar o conjunto da cidade, enquanto à
iniciativa privada cabe administrar o restante, servida por estes equipamentos e serviços públi-
cos. Este contexto coloca em relevo a figura do técnico como responsável em estudar a cidade
através do método científico, operando sobre regulamentos estabelecidos.
O arquiteto urbanista chega ao centro da discussão em uma nova forma de encarar a questão
urbana: a união entre o técnico, que opera com regulamentos e funções, e o artista, que lida
com as relações entre espaços e volumes em busca da qualidade estética, inaugura a cidade
moderna. O modernismo concebeu métodos para o desenho da cidade moderna em um mo-
mento histórico de vanguardas artísticas, grandes guerras e enormes avanços tecnológicos.
Seu modelo institucionalizado funda-se na negação da cidade tradicional e baseia-se em uma
sociedade ideal através da racionalização das dinâmicas e funções urbanas, para Le Corbusier,
expoente do movimento: habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito, circular.
A responsabilidade da formação da cidade é colocada nas mãos de especialistas e sob os inte-
resses políticos e autonomia administrativa do Estado. Institui-se o zoneamento, que segrega
as diferentes funções urbanas; a dimensão do planejamento urbano destaca-se na forma de
políticas públicas; instauram-se normas e parâmetros de uso e ocupação do solo; estruturam-
14. Benevolo, Leonardo. História da Cidade (p568)
43
Cidade
-se sistemas viários de acordo com o paradigma industrial da eficiência, com grandes projetos
para a escala da cidade, etc. Conceitos que são apropriados profundamente em alguns casos,
criando cidades inteiramente novas como Brasília, e parcialmente em outros, intervindo com
maior ou menor intensidade nas cidades existentes.
Esta breve aproximação histórica contextualiza o modelo institucional que funda a maneira
de conceber e lidar com a cidade contemporânea. O modernismo vai trazer no começo do
século XX uma série de conceitos e instituir diversos paradigmas que, associados às vicissitu-
des político-econômicas, formatam ainda hoje a maneira de ordenar as cidades. Mesmo que
superficial, este preâmbulo nos é suficiente para levantarmos algumas questões sobre as quais
gostaríamos de discutir.
Na cidade moderna, a prerrogativa do planejamento urbano é de autoridade do Estado, en-
quanto ao Mercado cabe investir em empreendimentos que respondam às demandas econô-
micas. Para além de extensas discussões, trazidas a partir da situação hegemônica do Estado
e do Mercado na formação da cidade, sobre a relação entre ambos e sobre a lógica do capital
versus o direito à cidade, uma questão resta latente: quem é o sujeito para esta vertente hege-
mônica de desenvolvimento urbano?
Tanto a administração pública, quanto a administração privada, nos termos de Habermas, são
ações instrumentais que buscam a reprodução material da sociedade. Do ponto de vista ur-
bano, no modelo hegemônico apresentado, as intenções fundamentais destas ações instru-
mentais estão em manter a condição urbana mínima suficiente para a execução das funções
sociais; e dar resposta às demandas econômicas, gerando maiores lucros, respectivamente. A
iniciativa em ambos os casos vem de instituições que mantém sua hegemonia na formação ur-
bana através do poder político e econômico, de maneira que movimentos que buscam formas
alternativas de transformação da cidade – como aqueles por moradia, por transporte público
e trabalho – encontram enormes barreiras para suas ações.
Neste modelo, o sujeito é tomado pelo Estado como ator de determinadas funções urbanas
– aquele que habita, aquele que trabalha, aquele que se diverte, aquele que circula – e pelo
Mercado como consumidor de bens e serviços. Para ambos, há a consideração da pessoa em
44
VII Carta ao mediador
suas supostas necessidades e vontades. É assim que o “bairro” moderno se forma, agrupando
hospitais, escolas, centros comerciais, etc. a conjuntos habitacionais e articulando bairros de
zonas diferentes, com funções diferentes, através de grandes avenidas. Teoricamente, espera-
-se uma determinada forma de apropriação destes bairros pela sociedade, de maneira que seu
resultado final seria ideal.
As intenções das ações do Estado e do Mercado residem antes em conformar a cidade mínima
para o cumprimento das funções urbanas, de um lado, e de oferecer produtos e serviços que
gerem maiores lucros, de outro, de forma que a consciência e busca real dos sujeitos por expe-
riências profundas de vida são padronizadas em forma de necessidades básicas e demandas
de consumo. A hegemonia se mantém, então, sem que o sujeito em sua integralidade e com-
plexidade precise ser envolvido. Portanto, chegamos à avaliação de que esta vertente se repro-
duz como hegemônica através de experiências de distensão, conclusão que muitas vezes é
reforçada pelo fracasso retumbante de conjuntos urbanos que teoricamente seriam perfeitos,
como o emblemático caso de Pruitt Igoe, em St. Louis, nos Estados Unidos 15.
A primeira crítica contundente a este modelo é de Jane Jacobs, na década de 60. Nas palavras
da autora canadense, “num número cada vez maior de cidades, tornam-se decadentes justa-
mente as regiões onde menos se espera que isso aconteça, à luz da teoria do planejamento
urbano”. E completa:
“fenômeno menos percebido, mas igualmente significativo, num numero cada vez
maior de cidades, as regiões mais suscetíveis à decadência, segundo a mesma teoria,
recusam-se a decair” 16.
Jacobs diz que arquitetos do desenho urbano e planejadores não desprezam conscientemente
a importância de conhecer a realidade das coisas. Suas intenções são muitas vezes exemplares,
contudo, entregam-se com tal devoção aos postulados modernistas sobre como a sociedade
e a cidade deveriam funcionar que,
“quando uma realidade contraditória se interpõe, ameaçando destruir o aprendiza-
do adquirido a duras penas, eles colocam a realidade de lado” 17 .
15. Para mais informações, recomenda-se o documentário “The Pruitt Igoe Mith”, de Chad Freidrichs (2011), ressaltando que não estamos aqui discutindo o declínio do modernismo, mas seu desalinhamento com questões mais complexas da sociedade.
16. Jacobs, Jane. Morte e vida de grandes cidades, 1961 (p.4)
17. Idem (p.6)
45
Cidade
A autora da força ao movimento que opõe o idealismo moderno à realidade complexa e inau-
gura a vertente que lidará com experiências baseadas na diversidade, na nutrição de relações
sociais densas e de estímulo à vitalidade urbana.
O conhecimento da realidade, das especificidades e vontades da comunidade onde se realiza-
rá uma intervenção passa a ser central nessa nova forma de lidar com o desenvolvimento da
cidade. Não se pode partir de uma conformação a priori das necessidades sociais, uma vez que
sua realidade é muito mais complexa e coloca em xeque qualquer proposta de experiência
que a ignore. O pós-modernismo nasce não como
“um estilo singular, mas, antes, a percepção de integrar um período marcado pelo
pluralismo” 18.
A multiplicidade de visões caminha em diversas direções nas décadas subsequentes, das mais
próximas ao modernismo às mais radicais, chegando ao desconstrucionismo pós-estruturalis-
ta de Eisenman e Tschumi, por exemplo, que dissolve fronteiras disciplinares e defende que o
significado preciso de qualquer signo é impossível de ser determinado, ou seja, a análise da
própria realidade não seria precisa.
Mesmo que concepções menos radicais dentro do pós-modernismo sejam parcialmente apro-
priadas por administrações públicas, que gradualmente se abrem à consulta e participação
popular na redação dos planos de suas cidades, paradigmas modernos permanecem hege-
mônicos.
“Essa prática corrente, que acentua a síntese, a harmonia, a composição de elemen-
tos e a aparente coincidência de partes potencialmente distintas, se torna alienada
da sua cultura externa, das condições culturais contemporâneas” 19
e permanece reproduzindo o afastamento entre experiências do viver cotidiano e da profun-
didade da vida enquanto suas instituições promotoras, Estado e Mercado, não tiverem de se
adaptar frente à consciência e mobilização social.
É nesta linha que Richard Sennet analisa a história da cidade sob a perspectiva da experiência
18. Nesbitt, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura (p16)
19. Tschumi, Bernard. Architecture and disjunction (p.206)
46
VII Carta ao mediador
corporal do povo, dizendo logo na introdução de seu livro que urbanistas e arquitetos moder-
nos tinham de alguma maneira perdido a conexão com o corpo humano 20. As novas vertentes,
fundadas na consciência desta perda de conexão não apenas com o corpo, mas com muitas
dimensões da complexidade do sujeito, buscam a reconexão em sua prática. A partir dessa li-
nha de raciocínio, é fácil fazer o paralelo com nossa análise de que são vertentes que tendem a
realizar experiências de integração em resposta àquelas de distensão realizadas pelos modelos
que permanecem hegemônicos.
Apoiando a colocação de Sennet, Jan Gehl, arquiteto dinamarquês algumas vezes chamado de
“Jane Jacobs nórdico”, diz que, por décadas, a dimensão humana fora negligenciada no plane-
jamento urbano. Seu conceito de cidades para pessoas 21 se opõe à ideologia dominante que
coloca pouca prioridade ao encontro social, ao espaço público e à experiência do pedestre,
bem como gradualmente desloca a atenção do conjunto urbano e de espaços comuns a edifí-
cios individuais e introvertidos.
Cidades para pessoas ressalta a vida entre edifícios e as experiências urbanas que se pode criar
por intervenções na escala da pessoa e pela pessoa. Gehl cria em Copenhagen uma série de
critérios para avaliar as experiências geradas por suas intervenções, realizando contagens de
fluxo, medições de tempo de permanência, avaliação de tipos de interação, etc. Mesmo sendo
uma vertente ainda bastante focada na figura do técnico, este é colocado em posição equi-
librada ao usuário, que participa do processo de concepção, cada qual em seu papel. Desta
forma, Gehl também propõe metodologias de leitura urbana e participação da comunidade
da definição das possíveis experiências que poderiam ocorrer no local.
A intenção colocada nas intervenções propostas por estas vertentes está, como se vê, na busca
pelo máximo envolvimento do sujeito, que até certo ponto poderia ser mensurado por crité-
rios como os apresentados. A pergunta “cidades para quem?” é respondida nas práticas trazi-
das pela resposta “para pessoas e pelas pessoas”. Assim, pressuposições dão espaço ao enten-
dimento e determinações técnicas dão espaço à concepção colaborativa, de forma que alguns
fenômenos inesperados passam a ocorrer, como o aumento significativo no uso da bicicleta
como meio de transporte em Copenhagen, mesmo nos meses de extremo frio.
20. Sennet, Richard. Carne e pedra
21. Gehl, Jan. Cities for people
47
Cidade
Desta forma, são vertentes que reagem à hegemonia das vertentes que se reproduzem pela
distensão, propondo metodologias e intervenções urbanas que sejam significativas ao sujeito,
de forma que este se apropria da cidade com maior profundidade e cuidado. Parte-se da esca-
la da pessoa e de suas vontades de experiências de vida à escala global da cidade, modifican-
do-se o paradigma modernista de justaposição de funções urbanas 22 . De forma semelhante,
intervenções pontuais com este mesmo intuito começam a ser realizadas por movimentos da
própria sociedade, ocupando espaços públicos de formas alternativas às tradicionais e colo-
cando em pauta a maneira como construímos nossas experiências urbanas. Não a toa o pro-
cesso urbanístico contra hegemônico pode ser visto como democrático e afinado com a ver-
tente contra hegemônica discutida a seguir.
22. Importante ressaltar que há avanços na aproximação entre algumas administrações públicas e vertentes que buscam experiências de integração, como vem ocorrendo na parceria entre a prefeitura de São Paulo e o escritório de Jan Gehl para o desenvolvimento do novo Plano Diretor do município.
49
É nas palavras de Aristóteles que o ser humano passa a ser compreendido como ser político, dotado
de desejos e afecções colocados em contato direto no espaço múltiplo da cidade, onde pode desen-
volver suas potencialidades. O filósofo considerava a complexidade do sujeito em suas discussões
sobre a ética e o Estado, procurando respostas para a natureza da moral que explicariam os rumos
de uma sociedade e a busca pelo melhor governo. O objetivo da política seria, então, descobrir em
primeiro lugar a maneira de viver que levaria à felicidade e em seguida o formato das instituições
capazes de assegurar aquelas formas de viver.
Não à toa o raciocínio aristotélico se encaixa em nossa discussão sobre a relação entre experiências
de vida e viver, bem como a oposição de Habermas entre sistema e mundo da vida. Enquanto por
um lado a vida diz respeito à integralidade do sujeito em sua dimensão metafísica; por outro, seu
entendimento, desenvolvido através da oposição racional de ideias, busca modelos para experiências
cotidianas que o levariam a viver essa integralidade, ou felicidade, para Aristóteles. Fundamental en-
tão perceber a conexão indissociável entre política e cidade, ideia básica tanto para a filosofia grega
quanto para nossas especulações acerca de uma reação às experiências de distensão.
política
50
VII Carta ao mediador
A cidade viria antes do indivíduo, uma vez que o todo identificaria as partes pelas suas diferen-
ças: só me reconheço como “eu” a partir de minha diferenciação para com o “outro”.
“A cidade não é constituída somente de numerosos seres humanos, mas é também
composta de seres humanos especificamente diferentes” 23.
Assim, é na cidade que as diferentes posições sobre os caminhos à experiência da integrali-
dade da vida, a saber, as melhores instituições, inevitavelmente se encontram e entram em
oposição, colocando-se politicamente em busca de um governo único que responda a essa
multiplicidade de visões.
Muitos foram os formatos e estruturas políticas desenvolvidas ao longo da história das socie-
dades. Modelos mantidos por instituições dotadas de recursos e grande poder para se repro-
duzirem. Relembrando termos já apresentados, as ações instrumentais dos Estados buscam a
reprodução material da sociedade e precisam ser balizados pela ação comunicativa para que
gerem experiências de vida. Estas duas formas de ação, instrumental e comunicativa, possuin-
do lógicas diferentes, são distintas e muitas vezes opostas, cuja relação precisa ser mediada.
Em outros termos, de um lado temos a política presente na discussão racional entre sujeitos
complexos e do outro temos a política presente na ação administrativa dos governos e legis-
ladores.
Buscando discutir as vertentes hegemônicas de nossos tempos, façamos um salto que atra-
vessa historicamente a formação de reinos, feudos, estados nacionais, colônias, passando da
sociedade tradicional à nossa sociedade moderna. De acordo com Nobre, a sociologia entende
a sociedade tradicional como aquela em que todos os domínios da vida social estão baseados
em valores e dogmas incontestáveis, que dão referência às ações sociais em uma moral única.
Desta forma, a ordem social existente é inquestionável e a unidade política estabelecida é tida
como a única possível, de forma que o dissenso e a discordância resultam na exclusão daquele
que questiona a comunidade.
A passagem da sociedade tradicional para a moderna se dá quando parcelas significativas da
sociedade começam a discordar e questionar essa moral única, expressando-se das mais diver-
sas formas e nos mais variados domínios sociais, o que força sua reorganização. Desta maneira,
23. Aristóteles. Política (Livro II, Capítulo I)
51
Política
na sociedade moderna – capitalista – há a convivência de uma pluralidade de pontos de vista
e morais muitas vezes incompatíveis, o que vai causar conflitos entre visões diferentes sobre
quais seriam as instituições adequadas para gerar as experiências cotidianas mais afinadas às
vontades de experiências de vida. Para responder a estes problemas, a sociedade moderna
instaura mecanismos de legitimação baseados no contrato (ou pacto) social, instalando-se
desta forma a sociedade civil e a figura do cidadão, “membro de um corpo político fundado no
consentimento de todos” 24 .
Vivemos nessa situação política instável de consensos e dissensos sobre o formato das institui-
ções que geram experiências cotidianas a cada sujeito, levando à criação de diversos formatos
de governo e regras que
“não podem ter outra base de legitimidade do que a vontade destes indivíduos iguais.
Este poder e estas regras são suportados por todos os membros da sociedade e res-
tringem a todos. Podem, portanto, ser legítimas apenas enquanto nascem da vonta-
de de todos e representam a vontade de todos” 25.
Esta seria a essência do modelo democrático, realizado pelo e para o povo.
Chegamos à vertente que gostaríamos de discutir, por mais que ela se mostre em uma grande
variedade de modelos e instituída em uma parte específica do mundo, que muitas vezes busca
difundi-la como se fosse um ideal a ser alcançado por todas as sociedades, instaurando mode-
los muitas vezes inadequados a comunidades totalmente distintas e criando mais problemas
do que de fato experiências de integração entre o viver e a vida.
Analisando a natureza das regras e práticas das instituições que dão forma às democracias
modernas – legislaturas, tribunais, partidos, etc. – Arend Lijphart separa estas democracias em
dois modelos: o majoritário e o consensual. Enquanto no primeiro a maioria simples é suficien-
te para que o governo se forme e possa governar, o segundo busca o consenso entre a maior
parte da população, tendendo a sua totalidade. Dois extremos que balizariam a posição de
todos os modelos democráticos.
O autor defende explicitamente o modelo consensual, dizendo que este tende a ser mais de-
24. Nobre, Marcos. Direito e democracia (p18)
25. Manin, Bernard. On legitimacy and political deliberation (p340) - Tradução livre
52
VII Carta ao mediador
mocrático – ou seja, legítimo – e mais “generoso e benevolente”, tendo maior probabilidade de
constituir um estado de bem-estar; melhor proteção ao meio ambiente; menores índices pri-
sionais; e menor chance de adotar a pena de morte 26. Contudo, assume que “existe na ciência
política uma tendência surpreendentemente forte e persistente de se associar democracia so-
mente ao modelo majoritário, e de não reconhecer a democracia de consenso como uma alter-
nativa igualmente legítima” 27.
Dadas as variáveis consideradas pelo autor para defender sua tese, o modelo consensual “puro”
de democracia contaria com: distribuição do Poder Executivo em amplas coalizões; relações
equilibradas entre poder Executivo e Legislativo; sistemas multipartidários; sistemas eleitorais
com representação proporcional; sistemas coordenados e “corporativistas” visando formar
pactos de coalizão; governo federal e descentralizado; Poder Legislativo dividido em duas ca-
sas igualmente fortes; Constituições rígidas; existência de uma Suprema Corte judiciária res-
ponsável pela salvaguarda da Constituição; Bancos Centrais independentes.
Curioso e quase inevitável pensar no caso brasileiro a partir destas características e questionar-
mos os resultados políticos que vemos no Brasil, chegando por fim a uma pergunta: a política
brasileira é consensual entre quem? Nesta discussão, precisamos começar nos perguntando
quem está envolvido na busca pelo consenso e, quanto a isso, temos uma diferença funda-
mental entre democracia representativa e democracia participativa. A noção de sujeito e de
cidadão para uma e para a outra são muito diferentes e fazem as instituições democráticas
caminharem em direção a experiências práticas – políticas públicas, obras estatais, leis, etc. –
profundamente distintas, de forma mais ou menos legítima.
Como discutimos, a sociedade moderna lida com sua instabilidade – causada pelo contato
entre diversos pontos de vista contrastantes – através do pacto social que instaura a sociedade
civil, um corpo político onde todos consentem e legitimam o governo como conjunto de insti-
tuições que devem gerar experiências cotidianas afinadas à vontade de experiências profun-
das de vida. Sendo assim, e lembrando-se das palavras de Manin de que “a unanimidade é base
da legitimidade” 28, a democracia deveria considerar a busca de cada cidadão por experiências
profundas de vida, a soma e o consenso entre todas as vontades individuais.
26. Lijphart, Arend. Modelos de democracia (p.309)
27. Idem (p.21)
28. Manin, Bernard. On legitimacy and political deliberation (p341) - Tradução livre
53
Política
Para viabilizar esta difícil tarefa,
“a maior parte das teorias democráticas, contudo, são preocupadas não apenas com
legitimidade, mas também com eficiência” 29.
A extrema dificuldade de conciliar legitimidade pela unanimidade com as necessidades práti-
cas da vida política faz com que as democracias variem entre níveis de participação direta da
sociedade e de estruturas de representação. Assim, a rigor, podem existir modelos majoritários
representativos e participativos; bem como modelos consensuais representativos e participa-
tivos. Os participativos, envolvendo diretamente o sujeito, fazem com que ele se posicione
politicamente com toda sua complexidade, explorando e expondo suas nuances e vontades.
Por outro lado, os representativos incluem um interlocutor entre o sujeito e o processo político,
preocupados não apenas com a questão da legitimidade, mas também com questões práticas
da decisão e eficiência política.
As dificuldades de conciliação nos levam a uma abordagem mais crua e prática sobre o pro-
cesso de tomada de decisões, retórica típica da ação instrumental de um sistema político que
busca sua própria manutenção e a reprodução da sociedade. Não à toa essa abordagem tende
a defender modelos majoritários e representativos: sua ação é mais “simples” e eficiente uma
vez que as decisões não precisam partir da complexidade e vontade de experiências de vida de
cada cidadão. O sujeito, uma vez tomado pelo sistema em sua faceta de “eleitor”, desmascara
que a intenção do modelo democrático representativo não está em envolvê-lo profundamen-
te no processo, mas tê-lo como recurso de legitimação.
Desta maneira, o modelo consensual representativo envolve e responde ao eleitor apenas até
o nível em que este procura autonomamente se envolver, questionar e demandar. Sendo que
quando busca um envolvimento mais profundo, a intervenção política da sociedade organiza-
da encontra uma série de barreiras à sua participação direta na democracia representativa ins-
titucionalizada, onde o consenso é procurado fundamentalmente entre os grupos de repre-
sentantes. Portanto, este modelo democrático se resguarda em sua hegemonia, por um lado
através de mecanismos de defesa legitimados pelo pacto social, sob a prerrogativa da eficiên-
cia e da viabilidade prática; e por outro através da produção de experiências de participação
29. Idem
54
VII Carta ao mediador
mínima do sujeito, a saber, o voto e no máximo a consulta popular, acabando por reforçar a
distensão 30.
Contudo, como toda vertente hegemônica tende a ter seu avesso, surgem na sociedade mo-
derna ideologias e vertentes de democracia que podemos chamar de contra hegemônicas,
baseadas fundamentalmente no princípio da participação. Talvez uma destas primeiras vozes
seja a de Rousseau, em seu texto sobre o contrato social, onde rejeita qualquer representação,
formação de partidos ou mesmo de grupos de interesse. Sua defesa intransigente é da legi-
timação pela unanimidade, afastando-se até certo ponto da realidade que limita a ação dos
sujeitos, principalmente no que diz respeito ao acesso a informação.
Manin, questionando a ideia do filósofo iluminista, diz que quando o indivíduo toma uma de-
cisão sobre a sociedade, nunca pode recorrer a toda informação necessária. Seu acesso é sem-
pre fragmentado e incompleto e, mesmo assim, deve levar a uma decisão dentro de um espa-
ço limitado de tempo. Desta forma, a ação política permanece baseada na incerteza e o
momento deliberativo pela coletividade envolve a troca de evidências relativas às soluções
propostas, de forma que a “deliberação é em si um procedimento para tornar-se informado” 31.
Se os indivíduos não teriam uma vontade definida antes do debate e da deliberação, e seu
acesso à informação será sempre parcial para escolher qual instituição vão defender – acredi-
tando que esta ou aquela gerará experiências cotidianas alinhadas às suas vontades de expe-
riências de vida – então como pode a legitimidade ser baseada na vontade, tão instável quan-
to a própria variedade de vontades na sociedade? Manin responde, dizendo que “a fonte de
legitimidade não é a vontade pré-determinada dos indivíduos, mas sim o processo de sua
formação, isto é, a deliberação em si. [...] Uma decisão legítima não representa a vontade de
todos, mas é um dos resultados da deliberação de todos” 32.
Portanto, a intenção destas vertentes contra hegemônicas de democracia baseia-se no maior
envolvimento possível do sujeito, chegando ao ponto do objetivo do processo deliberativo
estar mais na argumentação e na ação comunicativa do que exclusivamente na decisão final.
Desta forma, não excluem a representação ou o voto, tendo neles recursos para lidar com as
limitações práticas do processo político, contudo, estes se fazem subordinados e conectados
30. Talvez por isso tenhamos tanto no Brasil leis que “não pegam”.
31. Manin, Bernard. On legitimacy and political deliberation (p.349) - Tradução livre
32. Idem (p.352)
55
Política
diretamente à participação direta de cada cidadão no processo deliberativo.
Sendo assim, os representantes e instituições democráticas não são de forma alguma dissol-
vidos, permanecem como ações instrumentais e administrativas fundamentais ao desenvolvi-
mento de experiências cotidianas na sociedade, mas são destituídas de sua hegemonia sobre a
deliberação e o consenso. A consequente necessidade de mediação entre a ação instrumental
do Estado e a ação comunicativa da sociedade, de forma que não haja a “colonização” da se-
gunda pela primeira, como apresentado no capítulo anterior, faz com que Habermas defenda
procedimentos mediadores, dando destaque ao direito como seu promotor.
No que cabe o desafio de encontrar as estruturas tanto de mediação entre a sociedade e o
Estado quanto entre os próprios sujeitos em fóruns deliberativos, fica clara a oposição entre os
modelos hegemônicos e contra hegemônicos apresentados, com um agravante: uma vez que
a legitimidade política é baseada na unanimidade, dois sistemas distintos não podem conviver.
Assim, a reação aos modelos que reforçam experiências de distensão através do fraco envol-
vimento do sujeito nos processos políticos envolve a necessidade de ruptura. O desafio então
se potencializa em democracias representativas muito fechadas. Contudo, pela inevitável crise
de legitimidade destes modelos, muitos incorporam gradualmente aberturas à participação
direta da sociedade como forma de se manterem hegemônicos. Lembrando que vertentes que
reforçam a distensão geram experiências minimamente significativas ao sujeito, só até o ponto
de viabilizarem seu consentimento.
Este, por exemplo, é o caso do Brasil depois da Constituição de 1988. Mesmo sendo um mo-
delo democrático representativo com poucas aberturas cotidianas de participação direta da
sociedade, a democracia brasileira tem muitos mecanismos que permitem esta participação,
mas muitas vezes são pouco utilizados ou mesmo desconhecidos. Portanto, vertentes e proce-
dimentos contra hegemônicos podem utilizar estes mecanismos para iniciarem movimentos
de reação à hegemonia do modelo mais puramente representativo.
Certamente, os fóruns necessários neste caso pressupõem um conjunto social que consiga
dialogar. Como atesta Manin, estes fóruns “também requerem certo grau de instrução e cultu-
ra por parte do público”, e continua: “mas eles constituem processos de educação e treinamen-
56
VII Carta ao mediador
to em si mesmos. Ampliam os pontos de vista dos cidadãos para além da perspectiva limitada
de seus negócios privados. [...] As pessoas educam a si próprias” 33. Esta perspectiva de educa-
ção para cidadania e através da cidadania, para a formação da consciência da vontade comple-
xa do indivíduo por meio da própria deliberação, será, como se verá, constituinte da vertente
contra hegemônica de educação discutida a seguir.
33. Manin, Bernard. On legitimacy and political deliberation (p.354) - Tradução livre
57
Enquanto o aprendizado talvez seja uma característica humana baseada na transformação do
indivíduo ao passar por experiências ao longo de sua vida – e neste sentido pode ser também
observado em outras espécies – sua relação com o ensino é essencialmente social. Jaeger diz
que a educação é uma consequência natural de comunidades humanas que sentem necessi-
dade de se conservarem, buscando formas de transmitirem e perenizarem sua peculiaridade
física e espiritual.
“A estrutura de toda a sociedade assenta nas leis e normas escritas e não escritas que
a une e une seus membros. Toda educação é assim o resultado da consciência viva de
uma norma que rege uma comunidade humana” 34.
A transformação dos valores de uma dada comunidade condiciona as formas de se reproduzir,
transformando sua educação e a inserindo em um contexto histórico, podendo ser periodiza-
da. Momentos históricos de transformações radicais da ordem e dos valores sociais, cuja rup-
tura com as tradições instaura todo um novo conjunto de paradigmas, inviabilizam qualquer
34. Jaeger, Werner. Paidéia: o lugar dos gregos na história da educação (p4)
eDucação
58
VII Carta ao mediador
ação educativa até que a nova ordem se solidifique e busque se perenizar. De maneira contrá-
ria, a rigidez excessiva de uma cultura pode atestar uma falsa estabilidade que acaba gerando
contradições internas até o seu colapso.
Discutindo o caso grego clássico, Jaeger diz que ao longo de seu desenvolvimento, que dará
origem à história ocidental, a sociedade grega aprofunda cada vez mais a consciência de que
sua finalidade última e particular seria a “formação de um elevado tipo de Homem” 35. Desta
forma, na medida em que suas especificidades e valores estão no aprofundamento do autoco-
nhecimento, perenizar a sociedade significa permitir este desenvolvimento cada vez mais pro-
fundo, de maneira que a educação representa o sentido de todo seu esforço como comunida-
de, sendo a cultura a totalidade desta obra.
Mas, mesmo para os gregos, a noção de sociedade como corpo político baseado em um con-
junto de normas e valores que cria e legitima suas instituições – e sua educação – para fazer
valer sua finalidade e se perenizar, não é imune a relações de desigualdade e dominação entre
grupos sociais. Mesmo em seu auge, a democracia ateniense não deixou de ser aristocrática e
baseada em uma profunda segregação entre cidadãos e não-cidadãos. A educação, portanto,
faz-se essencialmente política na medida em que é de interesse das classes dominantes repro-
duzir uma estrutura social e um conjunto de valores que as conservem em sua posição.
A cultura que se cria e a ação pedagógica que se institui são então dependentes destas rela-
ções de dominação. A força daqueles que dominam permite o que Bourdieu chama de “violên-
cia simbólica” na reprodução de valores, normas e especificidades convenientes às camadas
dirigentes. “A ação pedagógica é, objetivamente, violência simbólica na medida em que é a
imposição de uma cultura arbitrária por um poder arbitrário” 36. Esta arbitrariedade decorre da
seleção dos significados ser imposta ao invés de residir em uma “natureza das coisas” ou em
uma “natureza do homem”, de forma que o reconhecimento de sua legitimidade como autori-
dade pedagógica – fundamental para reproduzir o conjunto social sob determinado prisma –
está baseado no consentimento da sociedade a autoridade de instituições especializadas até
certo ponto autônomas, legitimadas por prerrogativas específicas.
Ao longo da história da pedagogia, estas instituições educacionais e seus respectivos corpos
35. Idem (p.7)
36. Bourdieu, Pièrre. Reproduction (p5) - Tradução livre
59
Educação
de especialistas ganharam posição privilegiada e central no processo educativo por uma série
de fatores. Sua periodização nos conta dos vários momentos da cultura ocidental, passando
da superação do modelo clássico antigo ao medieval, baseado na fé cristã; a criação da esco-
lástica; as primeiras universidades e os primeiros sistemas de ensino formais; o “renascimento”
da centralidade no Homem e das ciências; as primeiras ideias de universalização da educação
no iluminismo, até a consolidação dos modelos que chegaram a nós, pós Revolução Francesa
e formação do Estado burguês.
Cada um destes momentos da pedagogia traduz situações distintas de relações de poder e de
intenções de reprodução de valores sociais. Neste processo, a escola e o professor vão garan-
tindo sua hegemonia como autoridades pedagógicas inquestionáveis, ou pela incorporação
– inculcação, para Bourdieu – de sua legitimidade através da submissão do sujeito a mecanis-
mos como o diploma; ou de exclusão de outras formas educativas como igualmente legítimas.
Intenções como a “formação do melhor tipo de Homem”, educação para a vida ou para a sabe-
doria, em acepções mais humanistas, emancipatórias e igualitárias são deixadas em segundo
plano, enquanto
“tudo tende a mostrar que [o sistema escolar] é um dos fatores mais eficazes de con-
servação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e
sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural” 37.
Neste sentido, a prerrogativa liberal do Estado burguês e a defesa das liberdades individuais
vêm reforçar a legitimidade da ação do mestre na escola como viabilizador de uma pretensa
igualdade aspirada por todos.
Se por um lado o corpo de profissionais garante autonomia para a escola realizar suas ações,
dando uma falsa impressão de independência, por outro ela permanece dependente dos va-
lores e do conjunto de normas nos quais está inserida. Assim, a sociedade capitalista vai valo-
rizar a instituição escolar em sua face instrutiva e técnica, gerando leis de obrigatoriedade es-
colar já no século XVIII, universalizando seu acesso pela sociedade nos séculos subsequentes e
difundindo mundialmente estruturas nacionais de planejamento educacional, buscando am-
pliar o desenvolvimento de tecnologias, favorecendo sua posição estratégica; ampliar a quali-
37. Bourdieu, Pièrre. Escritos da educação (p41)
60
VII Carta ao mediador
ficação da mão-de-obra, aprimorando sua competitividade; e, especialmente em um contexto
de economias avançadas já no século XX, maximizar o produto interno bruto da nação 38.
Nas palavras de Bourdieu:
“um dos efeitos menos notados da escolarização obrigatória é que ela consegue ob-
ter das classes dominadas um reconhecimento de legitimidade de conhecimento e
know-how, implicando a desvalorização do conhecimento e do know-how que elas
efetivamente dominam, proporcionando assim mercado para materiais e produtos
especialmente simbólicos dos quais os meios de produção são virtualmente mono-
polizados pelas camadas dominantes” 39.
As camadas dominadas (ou dirigidas) acabam por desvalorizar seu próprio conhecimento,
consentindo à manutenção de sua dominação.
Neste sentido, um dos autores mais críticos da escolarização no século XX, já citado no capítulo
anterior, é Ivan Illich. O autor discute que a maioria das pessoas na sociedade tem seu direito
de aprender cortado pela obrigação de frequentar a escola, de forma que o aluno é
“‘escolarizado’ a confundir ensino com aprendizagem, obtenção de graus com edu-
cação, diploma com competência” 40.
Illich defende que o ethos social – conjunto de valores implícitos e profundamente internaliza-
dos pela sociedade – precisaria ser ‘desescolarizado’. Corroborando com a crítica de Bourdieu,
diz que
“qualquer simples necessidade, para a qual foi encontrada resposta institucional,
permite a invenção de nova classe de pobres e nova definição de pobreza” 41.
Vemos que as vertentes educacionais que historicamente se consolidam como hegemônicas,
quando vinculadas a relações sociais de desigualdade, reproduzem internamente os mes-
mos padrões de desigualdade, tese apoiada por Bourdieu. Estes padrões ficam explícitos, por
exemplo, na tradicional distância entre o professor e o aluno; a autoridade do mestre e a subor-
dinação do aprendiz; o controle do ambiente escolar e a liberdade quase anárquica do espaço
38. Ver Almeida, Ana Maria. O assalto à educação pelos economistas
39. Bourdieu, Pièrre. Reproduction (p42) - Tradução livre
40. Illich, Ivan. Sociedade sem escolas (p21)
41. Idem (p.24)
61
Educação
público; o procedimento da técnica didática e a fluidez da investigação; a heteronomia da
explicação e a autonomia da pesquisa, etc.
Em outras palavras, a intenção das ações realizadas por estas vertentes reside antes em repro-
duzir valores que, não por acaso, são convenientes às classes dominantes do que em envolver
profundamente o sujeito em seu próprio processo de aprendizado. A “ordem explicadora” pre-
sente nestas vertentes, como colocado por Rancière, retira do aluno a autonomia de aprender
por sua própria inteligência e institui a necessidade da explicação do professor, como se o su-
jeito fosse incapaz de aprender sem ela. A desigualdade se instaura como se houvesse uma
inteligência maior, a do mestre, e uma menor, a do aluno, sendo uma subordinada a outra. Este
seria o princípio do “embrutecimento” apresentado por Rancière, causado pela internalização
por parte do aluno da ideia de que “nada compreenderá, a menos que lhe expliquem” 42, legi-
timando a ação do mestre como explicador imprescindível. Há, então, proximidade entre as
ideias de embrutecimento para Rancière e escolarização para Illich.
A autoridade pedagógica, a relação de dependência e a legitimação da desigualdade geram
experiências educativas que embrutecem e ofuscam a inata autonomia do sujeito em apren-
der. Mesmo que o mestre culto não gere o embrutecimento intencionalmente, e sim apenas
pela reprodução de sua tradicional “ordem explicadora”, a ação pedagógica fundada nestas
relações de desigualdade toma o aluno como recipiente de conhecimento, onde seriam depo-
sitados os saberes do mestre. Quem desenvolve esta metáfora é Paulo Freire, denominando
essa vertente educativa de “bancária”, como apresentado no capítulo anterior 43.
Inevitável concluirmos avaliando, segundo critérios previamente expostos, que estas verten-
tes reforçam a distensão entre as experiências educativas que promovem e o potencial de
experiências profundas de aprendizado, com um agravante: no cerne de sua ação reside o
enfraquecimento do sujeito como agente ativo de transformação, potencializando ainda mais
a distensão.
A sociedade escolarizada reforça a hegemonia de suas instituições não apenas pelo consenso
passivo do conjunto social, que aceita inconscientemente a reprodução das distensões, mas
principalmente através da internalização de sua aceitação acrítica e de seu embrutecimento,
42. Rancière, Jacques. O mestre ignorante (p21)
43. Ver Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido.
62
VII Carta ao mediador
conformando-se em sua posição passiva, sujeitada mais facilmente às reproduções inerentes
ao sistema. Desta maneira, a educação se transforma num poderoso mecanismo de reprodu-
ção da hegemonia de vertentes que reforçam a distensão.
São muitas as vertentes que apresentam, há séculos, formas de reação a estas vertentes hege-
mônicas fundadas na desigualdade e na heteronomia. De maneira geral, as ideias pedagógi-
cas sempre foram permeadas de um lado pela instrução ou formação técnica, mas por outro
o desenvolvimento humano mais profundo do sujeito. Mesmo pensadores da educação que
muitas vezes são vistos como tradicionais – e que de fato acabam ajudando a reforçar práticas
educativas embrutecedoras, como é o caso de Herbart ou Skinner – discutiam em seus escritos
que o sujeito é maior do que um receptáculo inerte de conhecimento. Ao menos nas pedago-
gias fundadas na centralidade do Homem, essa constatação nunca deixou de ser considerada
com maior ou menor carga de importância.
Contudo, vertentes cuja proposta de experiência educativa envolve o sujeito integral em seu
próprio processo de aprendizado, não como uma consideração periférica, mas como essên-
cia de sua intenção pedagógica, resultam em todo um processo inverso àquele gerado pelas
vertentes que reforçam a distensão. Enquanto estas levam o sujeito ao embrutecimento e fa-
cilitam o consentimento passivo à hegemonia das instituições consolidadas, aquelas levam o
sujeito a sua emancipação intelectual, aprofundamento de sua autonomia crítica e desenvol-
vimento de suas características e qualidades específicas.
Coelho, comentando Jaeger, diz que se pode encontrar já entre os gregos uma concepção
ampliada de educação, onde
“há um sentido de completude que forma, de modo integral, o Ser do que é humano
e que não se descola de uma visão social de mundo” 44.
Outras concepções de educação do Ser integral podem ser encontradas em escritos de Rous-
seau, chegando até anarquistas como Bakunin. Ao longo do século XX, uma série de correntes
pedagógicas, passando pela educação democrática de John Dewey, pela Escola Nova e por
educadores como Anísio Teixeira, caminha a uma consolidação do conceito de educação in-
tegral.
44. Coelho, Lígia Martha. História da educação integral. In INEP, Em aberto 80 (p85) Brasília, 2009.
63
Educação
Este conceito será desenvolvido em algumas linhas, desde as mais incorporadas pelo sistema
e levadas a cabo em políticas públicas que promovem atividades complementares no contra
turno escolar – como é o caso do Programa Mais Educação, no Brasil – até noções mais am-
pliadas, que entendem a “integralidade” como transcendente ao espaço e à instituição escolar,
bem como a qualquer relação de subordinação a currículos ou professores.
Neste sentido, mesmo sem ser identificado como parte de qualquer corrente de educação in-
tegral, Paulo Freire, ao defender a educação para a libertação e para a autonomia, reforça a
relação democrática e essencialmente participativa que deve permear o processo educativo. A
ideia de educação democrática, começando no caso emblemático de Summerhill (mesmo que
esta nunca tenha se identificado como uma “escola democrática”), passa a reformatar o próprio
sentido de escola, que em muitos casos deixa de ser sinônimo de dominação, como é o caso
da Hadera Democratic School, em Israel, onde salas de aula dão lugar a centros de aprendiza-
gem 45.
Esta, por sua vez, também é representativa de outro movimento que rompe com a lógica tra-
dicional da escola. O Movimento das Cidades Educadoras traz à pauta a ideia de Dewey de que
a educação ocorre ao longo de todas as experiências que passamos em vida, logo, educação
e vida se confundem em suas relações temporais e espaciais de experiências. Sendo assim, as
cidades educadoras colocam como perspectiva de que todo espaço e todo momento pode ser
educativo e devem ser considerados como tal.
A Rede das Cidades Educadoras foi criada em Barcelona, na década de 1990,
“concebido como instrumento gerador de um processo de participação cidadã que
possibilite a criação de um consenso sobre prioridades educativas e a assunção de
responsabilidades coletivas em matéria de educação, já que entende a participação
como base da convivência democrática” 46.
Sua pedagogia urbana envolveria todo um conjunto de atores para além daqueles tradicional-
mente constituídos e hegemônicos, inclusive reconhecendo a legitimidade de momentos
educativos informais e não-formais, como expõe Jaume Trilla 47.
45. Hecht, Yaacov. Democratic Education (p61)
46. Gadotti, Moacir. Cidade Educadora (p28)
47. Ver Trilla, Jaume. Educação não-formal.
64
VII Carta ao mediador
Observa-se que o conceito de cidade educadora é complementar ao de educação demo-
crática, e considera o ser integral como sujeito ativo e participativo. Enquanto, apoiado por
Dewey, toda cidade seria educativa enquanto toda experiência geraria algum aprendizado,
nem toda cidade seria educadora na medida em que a intenção educadora implica decisão
política quanto àquilo que se educa, conforme já discutimos. O envolvimento do sujeito na de-
liberação da educação que se quer, logo de qual sociedade se reproduz, insere todo um novo
conjunto de paradigmas no processo educativo.
Não à toa Bourdieu diz que a legitimação da autoridade pedagógica envolve a exclusão de
outras formas educativas como igualmente legítimas 48. Estas vertentes contra hegemônicas,
ao levar o educando ao esclarecimento e ao desenvolvimento de sua autonomia, tende a gerar
um sujeito crítico, ativo e consciente, que passa a poder reconhecer o afastamento entre as
experiências do viver cotidiano geradas pelas instituições hegemônicas e suas vontades pro-
fundas de vida, tornando-se um potencial questionador e inimigo do sistema, colocando-o em
risco.
48. Interessante notar que, dada a autonomia escolar, de maneira geral apenas escolas privadas, destinadas às camadas dominantes, é que conseguem legitimidade para desenvolver práticas educativas emancipatórias. Raros são os casos de escolas públicas que o fazem.
65
Após abordarmos estes três campos de experiência e discutirmos sobre suas respectivas ver-
tentes hegemônicas e contra hegemônicas, fundamental percebermos a proximidade e ali-
nhamento entre eles. A definição dos objetos dos três campos, a cidade, a política e a educa-
ção, já nos mostra profunda proximidade: a cidade seria o espaço onde ocorre o contato e a
convivência entre muitas pessoas diferentes, cada qual em sua complexidade, de forma que
esta diversidade implica a necessidade política de encontrarem um governo único que res-
ponda à vontade de experiências de vida de todos, criando sistemas que buscam reproduzir
e aprofundar, através da educação, os valores e a cultura cujos consensos – sejam ativos ou
passivos – foram alcançados pelo conjunto social.
A cidade seria essencialmente política, a política seria profundamente educativa e dependente
da educação, a educação ocorreria em todas as experiências na cidade, de maneira inevitavel-
mente política e as três seriam componentes inseparáveis no desenvolvimento de experiên-
cias de vida. Se continuássemos discutindo campos de experiência, como saúde, economia ou
técnica, poderíamos observar que elas também fazem parte desta unidade, o que corrobora
vertentes contra hegemônicas
66
VII Carta ao mediador
com nossa tese inicial da necessidade de integração entre as experiências do viver cotidiano,
geradas por cada campo de experiência, e as vontades de experiências de vida.
Esta natural proximidade é ofuscada pela especialização das instituições hegemônicas que
dizem lidar com estes campos, de maneira que seu potencial como unidade é esfacelado. Isso
ocorre em função de cada vertente hegemônica, quando reproduz experiências de distensão,
estar tomando o sujeito em uma face distinta. Como discutimos, a cidade acaba tomando o
sujeito como executor de funções; a política o toma como recurso de legitimação em sua face
de eleitor; e a educação o toma como receptáculo de conteúdos já existentes. A pessoa é re-
cortada, de forma que cada instituição lida com uma parte distinta dela.
Contudo, ao nos debruçarmos sobre vertentes contra hegemônicas, cujas intenções partem
do maior e mais profundo envolvimento possível do sujeito, observa-se que este passa a ser
um só, independentemente do campo de experiência em questão. As vertentes contra hege-
mônicas, ao proporem experiências de integração, lidam com o mesmo sujeito complexo, de
maneira que seus contornos como “especialidades” se ampliam e acabam por englobar umas
às outras. Mesmo que suas propostas práticas de experiências sejam distintas, dependendo
das especificidades de cada campo, sua igual busca por gerar experiências integrais de vida faz
com que realizem propostas de ação muito próximas e com grande sinergia, muitas vezes as
apresentando inclusive em termos semelhantes, como “participação”, “autonomia”, “liberdade”,
etc.
Então, nos resta uma dura questão: se muitas destas vertentes contra hegemônicas existem há
muito tempo e entre elas há grande sinergia, o que falta para que ganhem vulto e, no mínimo,
concorram em igualdade com aquelas que aqui consideramos hegemônicas e promotoras da
distensão? Levantamos duas hipóteses para a resposta desta questão.
Em primeiro lugar, uma vez que a principal intenção das vertentes hegemônicas seria conser-
var a sociedade como ela está constituída, mantendo sua posição dominante (lógica coerente
à ação instrumental apresentada por Habermas), as experiências que geram já barram politi-
camente a concorrência de outras vertentes que as ameaçariam. Uma forma simples e clara de
verificar esta estratégia de defesa é o discurso, tanto do urbanismo moderno, quanto da demo-
67
Vertentes contra hegemônicas
cracia representativa e da escolarização, de que vertentes que buscam o envolvimento mais
profundo do sujeito não seriam viáveis ou eficientes. O fatalismo desta “inviabilidade” e a con-
cordância por parte da sociedade corroboram para a perpetuação das práticas hegemônicas.
Em segundo lugar estão os processos que garantem e aprofundam o consentimento da so-
ciedade em se manter vivendo experiências cotidianas que não respondem às suas vontades
profundas, que também não necessariamente sabe quais são. Estes mecanismos são mais en-
fáticos do que a dominação através da força, pois envolvem o desenvolvimento da aceitação
interna e inconsciente do sujeito. Vamos aprofundar a discussão destes mecanismos.
Há diferença entre o mundo de experiências cotidianas que o sujeito já conhece, sobre o qual
sabe operar, e o mundo de experiências que não lhe são conhecidas e não lhe parecem dizer
respeito. Entre o mundo conhecido e o mundo desconhecido está a zona onde o sujeito pode
se desenvolver com auxílio de algum tipo de apoio ou sugestão. É através desta zona que
o mundo conhecido pela pessoa se expande, podendo ampliar sua consciência crítica, sua
autonomia e reflexão e encontrar quais são suas vontades profundas de experiências de vida.
Se entendermos o mundo conhecido como o mundo das experiências das vertentes hege-
mônicas e o desconhecido como o das contra hegemônicas, podemos concluir que o sujeito
não terá motivos para lutar pelas segundas enquanto estas lhe forem muito distantes e incom-
preensíveis. Enquanto não houver instrumentos ou recursos que permitam apresentar estas
experiências ao sujeito, poder se envolver com elas, estas não estarão em sua zona de desen-
volvimento e não lhe farão sentido.
Também podemos entender este distanciamento, que faz com que o sujeito não veja significa-
do nas experiências de integração até que efetivamente se arrisque a passar por elas, na ideia
de continuidade para Dewey 49. O autor diz que uma experiência de aprendizado, para ser
efetiva e cative o aluno, precisa ter sequência com relação às experiências vividas anteriormen-
te pelo sujeito, só assim ela lhe fará sentido. Sendo assim, as vertentes contra hegemônicas
precisam desenvolver estratégias para se aproximarem gradualmente do sujeito que não reco-
nhece ainda sua legitimidade.
Apenas quando o sujeito desenvolver sua própria autonomia e reflexão crítica quanto à dis-
49. Ver Dewey, John. Experience and education
68
VII Carta ao mediador
tância, antes consentida inconscientemente, entre o que vive no cotidiano e o que gostaria de
viver, é que passará efetivamente a criticar vertentes que promovem a distensão e defender
aquelas que buscam a integração entre o viver e a vida. Como exemplo, só quando o sujeito
perceber que a escola não lhe gera o aprendizado que outras experiências podem gerar e
perceber o que ela de fato faz, é que poderá passar a questionar a essência do próprio sistema
escolar.
Dada a complexidade da pessoa, o desenvolvimento da consciência da distensão é exclusiva-
mente interno a ela e não é algo que lhe possa ser depositado como um conteúdo pré-exis-
tente, como tentavam fazer as pedagogias tradicionais. Não é possível a um agente externo
intervir objetivamente nessa complexidade, “enformando” a pessoa a ser o que deveria ser.
O sujeito precisa aprender a reconhecer a distensão e a mediar a relação entre as experiên-
cias que se propõe a viver no dia-a-dia e suas vontades por experiências de vida, de forma a
integrá-las: é preciso aprender a viver a vida.
Quando consciente desta inalienável liberdade, o sujeito pode individualmente buscar as
respostas institucionais mais adequadas às suas vontades, realizando a mediação interna e
buscando sua integração: ao invés de aceitar viver a cidade hora como cada função que lhe
“convém” (morador, trabalhador, familiar, etc.), pode passar a viver outros momentos e espaços
que lhe sejam significativos, inclusive passando a intervir sobre eles; da mesma forma, ao invés
de aceitar viver o período eleitoral como momento onde pode exercer seu direito político,
pode passar a se organizar politicamente em sua comunidade; e ao invés de aceitar colocar
seus filhos em escolas que repetem o mantra de que a formação é importante para entrarem
em uma boa faculdade e serem bem sucedido, pode colocá-los em instituições que ampliem
sua ação, participação e reflexão crítica quanto à vida, bem como introduzi-los a experiências
culturais e educativas externas às escolas.
Mas e quando essa mediação interna e a integração entre o viver e a vida não lhe fazem parte
da consciência, quando a pessoa ainda não desenvolveu autonomia para integrá-los e ainda
não se libertou do fatalismo da distensão? Mesmo que não haja agente externo, distinto da
própria pessoa, que possa objetivamente emancipá-la deste falso fatalismo, a reação à disten-
são precisa esperar que a vida a leve ao esclarecimento ou partir de uma intenção externa ao
69
Vertentes contra hegemônicas
sujeito até que passe a realizá-la autonomamente. Enquanto essa reação é realizada através
das próprias experiências das vertentes contra hegemônicas, na medida em que geram ex-
periências de integração envolvendo ao máximo o sujeito, é preciso que haja a ação de um
mediador externo que busque colocar a pessoa e as vertentes integradoras em contato através
da sugestão.
Nas palavras de Carlos Nelson, em sua abordagem de urbanismo presente no livro “A cidade
como jogo de cartas”:
“O especialista tem de assumir um novo papel dentro de tal perspectiva. Ele é aquele
segue a partida com interesse, procura esclarecer dúvidas e pontos obscuros e funcio-
na como mediador, aconselhando a atualização de estatutos e modos de agir, à me-
dida que verifique sua superação” 50.
Nesta, como em outras vertentes contra hegemônicas, os papeis dos profissionais passam a
mudar de figura, tornando-se cada vez mais próximos da figura de mediador. Este vai unir os
campos de experiência e promover sugestões ativas de envolvimento da sociedade em ex-
periências que integram o viver e a vida, em uma escala crescente de participação do sujeito,
buscando chegar à autonomia plena deste.
Para realizar essa sugestão ativa, aquele que se identifica como mediador precisa desenvolver
estratégias coerentes com seu local de atuação e especificidades da comunidade, de forma a
sugerir experiências que instiguem e façam sentido a ela. Sendo assim, definiremos nos capí-
tulos seguintes as figuras centrais desta forma de atuação: o próprio mediador; a experiência
que irá sugerir; e a estratégia que pode desenvolver.
50. Nelson, Carlos. A cidade como jogo de cartas (p55)
capítulo 3consciência e meDiação
73
As três figuras que vamos definir a seguir, o mediador, a experiência e a estratégia, são prove-
nientes das reflexões realizadas até aqui e dão forma à nossa proposta de (re)ação à distensão:
o VII Movimento.
A consciência da aproximação e do afastamento entre as experiências que vivemos no coti-
diano, bem como a consciência de nossas vontades profundas de experiências de vida, nossa
busca pela felicidade, não são inatas. Aprendemos ao longo da vida que precisamos encontrar
quais são estas vontades profundas, aquilo que nos mobiliza plena e completamente, e a bus-
car experiências práticas que estejam alinhadas a estas vontades. Desenvolvemos a capacida-
de de realizar esta mediação entre o viver e a vida, podendo realizar escolhas, intervenções e a
nos colocar no mundo de forma a alcançá-las.
Uma vez que a consciência destas vontades – que transcendem o desejo efêmero ou simples
hedonismo – e de sua proximidade ou afastamento às experiências práticas do viver só pode
ser criada pelo próprio sujeito, precisamos discutir as maneiras pelas quais ela se desenvolve e
consciência e meDiação
74
VII Carta ao mediador
o que entendemos por “mediação”. A partir da teoria sociointeracionista de Vygotsky, ressalta-
mos dois conceitos centrais: de um lado, que o desenvolvimento e a formação da consciência
se dão na interação social; de outro, que este desenvolvimento é mediado por instrumentos
e signos.
Sobre esta teoria,
“o ser humano, por sua origem e natureza, não pode nem existir nem conhecer o de-
senvolvimento próprio de sua espécie como uma mônada isolada: ele tem, necessa-
riamente, seu prolongamento nos outros; tomado em si, ele não é um ser completo” 51.
Seu desenvolvimento como ser social parte da interação com outros integrantes de sua so-
ciedade, que lhe transmitem a cultura existente através de instrumentos como a linguagem.
Uma vez apropriados os instrumentos pelo sujeito, transformam-se em mecanismos de sua
própria organização psicológica interna – tomados os termos próprios de Vygotsky em seu
livro Pensamento e Linguagem – passando a interagir com outras funções mentais, como o
pensamento. Como resultado desta interação, as funções se reestruturam e outras se desen-
volvem, dando contornos à individualidade complexa do sujeito e o fazendo lidar com o mun-
do de maneiras diferentes e particulares. Sem o aporte da cultura, esta transformação ocor-
reria de forma natural e distinta, mas o sujeito propenso a ela aprende a carregar seus traços,
perpetuando-a e tornando-se um sujeito sócio-histórico.
Sendo assim, principalmente para o desenvolvimento nos primeiros estágios da vida, o adulto,
notadamente o professor, seria o sujeito social que se utilizaria de instrumentos, principal-
mente a linguagem, que mediariam a relação do sujeito com a realidade e lhe transmitiriam
as mensagens da cultura. A intenção pedagógica do professor reside na seleção e organização
destes instrumentos de forma a possibilitar o desenvolvimento do aluno. No que cabe a im-
possibilidade de “enformar” o sujeito, a intenção pedagógica constitui ação fortemente polí-
tica uma vez que inclui certos signos e instrumentos e exclui outros, selecionando quais faces
da cultura serão reproduzidas. Podemos aqui pensar na autonomia, na reflexão, articulação
verbal e na criticidade que podem (ou não) ser desenvolvidas pela pessoa.
51. Ivic, Ivan. Lev Semionovich Vygotsky (p16)
75
Consciência e mediação
Na perspectiva sócio-histórica,
“a relação do homem com o real não é direta e mecânica, mas mediatizada pela ati-
vidade que, por sua vez, tem a mediação da linguagem e das relações sociais, em um
movimento dinâmico e dialético” 52.
Aquele que propõe e seleciona intencionalmente este recorte da cultura e o formata em uma
atividade, toma então a figura de mediador. Altenfelder, falando do papel de professores como
mediadores, em seu estudo sobre o desenvolvimento da linguagem, diz ser
“um sujeito que, em sua atividade profissional, faz uso de signos e instrumentos pro-
duzidos socialmente, na interação e comunicação com os alunos, refletindo sobre si
mesmo e a sua prática” 53.
Portanto, a mediação é um processo que envolve um agente que carrega determinada in-
tenção. Contudo, se falamos em desenvolvimento de forma genérica, independente da idade
ou aprofundamento cultural do sujeito, podemos pensar que a partir do momento em que
incorpore a autonomia de investigar e selecionar signos e instrumentos presentes na cultura,
o sujeito se torna seu próprio mediador, podendo propor suas próprias atividades. Esta media-
ção interna e autônoma pode levá-lo a novos estados de desenvolvimento dependendo de
sua intenção, que deixa de ter a característica pedagógica do professor em transmitir a cultura
e lhe confere nova disposição política.
Sendo assim, o sujeito que desenvolveu por um lado consciência sobre suas vontades profun-
das e específicas e, por outro, consciência da distensão entre elas e suas experiências práticas,
pode atuar como mediador entre seu cotidiano e sua vontade por experiências significativas.
Esta intenção mediadora será efetivada na escolha, intervenção ou desenvolvimento de ativi-
dades que lhe integrem o viver e a vida: experiências cotidianas significativas, simultaneamen-
te práticas e profundas, envolvendo plenamente sua complexidade como ser humano único.
Nossa proposta de reação à distensão – aquela causada pelas experiências produzidas por
vertentes hegemônicas cuja intenção não envolve o sujeito em sua integralidade – parte desta
definição de mediação. Sendo assim, considerando que não existe sujeito com características
52. Altenfelder, Anna Helena. O papel da olimpíada da língua portuguesa (p20)
53. Idem (p21)
76
VII Carta ao mediador
“puras”, temos dois extremos teóricos a definir: aquele que não desenvolveu consciência de
suas vontades e da possível (ou provável) distensão; e aquele que desenvolveu esta consciên-
cia e sua autonomia como mediador.
O primeiro, enquanto no obscurantismo da inconsciência, consente viver experiências que
não lhe são significativas, reproduzindo uma cultura que pode subjugá-lo e explorá-lo. O se-
gundo, uma vez autônomo para mediar sua própria reação à distensão, pode atuar no desen-
volvimento da autonomia daquele que ainda não a realiza. Nas palavras de Rancière,
“é preciso e suficiente que sejamos, nós mesmos, emancipados. Isto é, conscientes do
verdadeiro poder do espírito humano” 54.
Entretanto, importante ressaltar que este sujeito não está – e nem poderia estar – entre a pes-
soa e o desenvolvimento de sua consciência uma vez que não constitui barreira e nem é im-
prescindível a este desenvolvimento.
Da mesma forma que, como discutimos sobre a sociedade distendida, não se pode avaliar o
grau de distensão de experiências, também não se pode avaliar o grau de inconsciência da
distensão por parte de qualquer pessoa. Sendo assim, a ação do mediador, quando externa
ao sujeito, não deve partir do pressuposto ou necessidade de avaliar o nível de inconsciência
ou “subdesenvolvimento” deste, mas deve ser baseada em sua intenção – agora fundamental
e não periférica como nas vertentes hegemônicas baseadas na distensão – de envolver inte-
gralmente a pessoa em atividades que a coloquem em contato com signos e instrumentos que
possam leva-la a se desenvolver.
Estas atividades, cuja proposta deve partir da aproximação profunda 55 do mediador na reali-
dade e cultura da comunidade na qual está atuando, tomam essencialmente a forma de “su-
gestões”, prescindem de qualquer tipo de obrigatoriedade e são válidas tanto àqueles em vias
de desenvolver a consciência da distensão quanto àqueles que já a desenvolveram, uma vez
sendo projetadas com base na cultura identitária daquele conjunto social 56. O mediador rom-
pe o silêncio da distensão ao fazer a “pergunta” da integração entre o viver e vida em forma de
experiência que demonstre esta integração. Sua atuação é, assim, semelhante à do mestre ig-
norante de Rancière, na medida em que
54. Rancière, Jacques. O mestre ignorante (p27)
55. Por isso os três primeiros Movimentos: ver I Ato
56. Ver perímetro de aproximação na estratégia.
77
Consciência e mediação
“são esses os dois atos fundamentais do mestre: ele interroga, provoca uma palavra,
isto é, a manifestação de uma inteligência que se ignorava a si própria, ou se descui-
dava; [e] ele verifica que o trabalho dessa inteligência se faz com atenção, que essa
palavra não diz qualquer coisa para se subtrair à coerção” 57.
Desta forma, em primeiro lugar, a expressão manifesta uma consciência desenvolvida, pois,
voltando a Vygotsky, a palavra da forma ao pensamento. Em segundo, a verificação não é rea-
lizada pelo resultado, mas pelo processo de envolvimento, de forma que o mestre “não verifi-
cará o que o aluno descobriu, verificará se ele buscou [...]. O que o mestre ignorante deve exigir
de seu aluno é que ele prove que estudou com atenção”. No caso do mediador, ele verifica
através da resposta do sujeito à experiência proposta – resposta esta que não necessariamente
precisa ser verbal, mas também por comportamentos ou ações – se este de fato se envolveu
integralmente e se a experiência lhe foi significativa 58.
Para viabilizar que suas propostas causem tal envolvimento, o mediador externo (ao qual nos
referiremos apenas por “mediador”) precisa considerar que dentro do núcleo social cada pes-
soa permanece diferenciada das outras, mesmo que compartilhem a mesma identidade cultu-
ral. Sendo assim, como veremos, o trabalho do mediador precisa ser ao mesmo tempo difuso e
abrangente por um lado e, por outro, gradual e progressivo. Estes princípios serão explorados
em mais detalhes no capítulo sobre a estratégia, mas antes precisamos discutir mais a fundo o
pressuposto de ambos de que o desenvolvimento da consciência se dá em um processo.
Entre os dois limites teóricos apresentados anteriormente – da inconsciência total à consci-
ência plena – há um andamento que não necessariamente é linear, no qual cada pessoa se
encontra em movimento contínuo de transformação. Seu estado neste movimento diz res-
peito a sua individualidade e faz parte de suas características específicas, que vão definir seu
maior ou menor envolvimento com determinada atividade. Podemos entender este estado
da seguinte forma: configura-se para cada pessoa uma esfera que comporta sua consciência
já desenvolvida, com a qual opera no mundo, e que por sua vez está inserida em um universo
que ainda desconhece.
Para que uma atividade faça sentido à pessoa, permitindo-lhe se envolver profundamente a
57. Rancière, Jacques. O mestre ignorante (p40)
58. Ver o momento de avaliação no III Movimento.
78
VII Carta ao mediador
ela, é preciso que a experiência gerada esteja na superfície da “esfera” de consciência, de forma
que o sujeito a identifique como contínua ao que ele já conhece. Esta continuidade permite
que a consciência englobe (ou envolva) a nova experiência vivida, ampliando os limites da
esfera. Se a experiência estiver muito inserida no interior da consciência já desenvolvida, esta
não engloba novos aprendizados, se muito para longe de sua superfície, o sujeito não iden-
tifica sentido e não se envolve. Sendo assim, o desenvolvimento da consciência da distensão
precisa partir desta interface entre o conhecido e o desconhecido.
A metáfora da superfície da esfera é semelhante ao que Vygotsky chama de zona de desenvol-
vimento proximal, que seria a
“distância entre o nível de desenvolvimento atual – determinado pela capacidade de
solução, sem ajuda, de problemas – e o nível potencial de desenvolvimento” 59,
onde o sujeito pode se desenvolver com auxílio de agentes externos. Finalmente, retornamos
ao mediador: para que exerça sua função, é preciso que as experiências que propõe consi-
derem simultaneamente que as características específicas e o estado de desenvolvimento da
consciência de cada pessoa são particulares, ou seja, que cada um possui algum grau de cons-
ciência da distensão.
Só assim o mediador poderá propor experiências que envolvam ao máximo o sujeito e, ao
fazê-lo, tender ao desenvolvimento da autonomia deste como mediador interno. Neste
processo, uma vez que não parte da avaliação do estado de consciência profundo de todo
conjunto social no qual irá intervir, inicia sua “sugestão” de experiências em atividades que
dependem mais de sua própria ação e menos da ação da comunidade. Assim, permite-lhe
partir de situações extremas, onde a inconsciência da distensão é profunda no conjunto social.
Gradualmente, verificando a intensidade e a forma de envolvimento da comunidade em de-
terminadas experiências, o mediador passa progressivamente a incluí-la cada vez mais direta e
dialeticamente no processo de sugestão, objetivando sua plena autonomia, momento em que
o mediador externo cumpre sua função e deixa de ser necessário.
Neste ponto, o grupo de indivíduos do conjunto social pode ter desenvolvido tal autonomia
em suas mediações internas – leia-se reflexão crítica quanto à proximidade ou afastamento
59. Davis, Cristina. A psicologia na educação (p37)
79
Consciência e mediação
entre as experiências do viver cotidiano e as vontades por experiências de vida – que passa a
buscar politicamente a integração entre o viver e a vida em vertentes de experiências que lhe
proporcionem máximo envolvimento. Aqui, a ação comunicativa entre estes sujeitos configura
reação à colonização do mundo da vida pelo sistema, retomando termos de Habermas, uma
vez que a hegemonia da distensão pelo consentimento passivo perde força.
Ao primeiro olhar, talvez isso tudo pareça complexo, mas na prática pode ser de grande simpli-
cidade, por exemplo 60:
Todos os anos, a diretoria de uma escola realiza em seu pequeno pátio interno uma já tradicio-
nal festa junina, para a qual apenas a comunidade escolar é convidada. Um ano, uma pessoa
sugere e articula-se com outras pessoas para atuarem na viabilização da ideia de realizarem a
festa na praça em frente à escola, abrindo-a para a comunidade e aproveitando as oportunida-
des do espaço maior. A diretoria, tradicionalmente sobrecarregada com as tarefas para realizar
a festa, agradece por dividir a responsabilidade com outros atores.
Desenvolvem com os professores um projeto pedagógico para realizarem com os alunos, ten-
do a festa como tema: cada conjunto de estudantes pode escolher o assunto que quer estudar
e propor sua atuação no dia do evento. Podem pesquisar a decoração; as formas de montar e
acender uma fogueira; comidas regionais típicas; raízes históricas da tradição; ensaiar danças
e músicas; redigir cordéis, etc.
Ao mesmo tempo, o grupo que se organiza para realizar a festa entra em contato com a as-
sociação de moradores do bairro e com os moradores vizinhos da praça para que realizem
juntos a programação e execução do evento. Criam uma série de atividades que cobrem o dia
inteiro e que sejam interessantes para a comunidade, incluindo diversas faixas etárias e espe-
cificidades, mas ao mesmo tempo respeitando seus limites. Para o período noturno, evitando
sons muito altos, um morador propõe que deixem a festa mais intimista, com pessoas tocando
violão ao redor da fogueira.
São exemplos do que poderia ocorrer, lembrando-se de que para cada comunidade podem
parecer mais ou menos factíveis em uma primeira abordagem, dependendo de seu potencial
de envolvimento. O que importa é que se abriu a oportunidade de transformar um evento
60. Como se verá nos próximos capítulos, esta é uma narrativa de experiência.
80
VII Carta ao mediador
tradicional, com o qual a comunidade escolar já tem algum vínculo, em uma experiência sig-
nificativa e de maior envolvimento. A festa deixou de ser um acontecimento simplesmente
programático para se tornar uma atividade que pode ser desenvolvida por todos. Além disso,
sua abertura para a cidade proporciona novos tipos de relacionamento entre a comunidade
vizinha e escolar, de forma que ambas passam pela experiência do contato direto no espaço
público.
Neste caso, portanto, aquela primeira pessoa propôs uma atividade que, conjugando diversos
elementos, deu acesso e liberdade para cada sujeito se envolver da forma como lhe fizer sen-
tido, sem coerção. A mesma atividade que por um lado os envolve da forma como se sentem
confortáveis, por outro os colocam em contato com experiências novas, como um aluno que
vê seu aprendizado concretizado em um evento; um familiar que descobre que sua mobiliza-
ção com outras pessoas da comunidade escolar, inclusive a diretoria, pode realizar grandes
transformações na escola e no bairro; um vizinho que vê que a escola não é uma instituição
isolada e tem muito a agregar para atividades interessantes nos espaços públicos, etc. É impos-
sível imaginar a variedade de experiências que podem ser geradas, cada pessoa terá as suas
próprias.
Sendo assim, aquela pessoa atuou como mediadora, mas fez isso intencionalmente? Todos
podem mediar experiências de integração propondo atividades que partam da busca pelo
máximo envolvimento do sujeito, na medida em que a “sugestão” prescinde de qualquer tipo
de preparo. Neste caso, ela se configura como uma ideia pontual e pode ser desenvolvida. Con-
tudo, quando a pessoa, consciente da distensão, deixa de ter a intenção focada na atividade
específica e isolada, mas em trabalhar para que cada membro da comunidade seja seu próprio
mediador interno, sujeito crítico e reflexivo, então a mediação depende de um procedimento
que encadeie diversas ações.
Ambos atuam como mediadores, mas aqueles focados na ação prática, conscientes ou não
do estiramento entre o viver e a vida, carregam o perfil pessoal de sustentação sobre o qual
as atividades são geradas. São pilares das sugestões de experiência, muitas vezes líderes co-
munitários, pessoas comunicativas, críticas e ideativas. Por outro lado, mediadores focados na
estratégia, articulando experiências em busca de um objetivo que as transpassa, precisam tra-
81
Consciência e mediação
balhar com pilares, uma vez que estes possuem conhecimento de causa e maior aproximação
às questões da comunidade.
Tanto pilares quanto mediadores são fundamentais neste processo, mas apenas se configuram
como atuantes na intervenção se optarem por isso. São figuras que possibilitam que o trabalho
seja realizado em qualquer circunstância, independentemente das características iniciais da
comunidade. Mesmo quando se tem uma situação polarizada, na qual não há abertura ao diá-
logo ou há relações assimétricas de poder, o ponto de partida da intervenção depende destas
características, que não necessariamente a inviabilizam.
Essa invariabilidade decorre da inserção profunda dos pilares, de um lado, e da visão articulada
dos mediadores, do outro, fazendo com que o encadeamento entre as experiências propostas
abarque simultaneamente as especificidades da cultura e o estado de consciência da comuni-
dade. Uma atividade isolada pode representar uma boa experiência, mas não configura pro-
cesso de conscientização e autonomização do conjunto social frente à distensão. Como discu-
tirmos, é preciso que se tenha a consideração de que a transformação se dá em um processo,
logo, que há movimentos e momentos subsequentes – por mais que não necessariamente
lineares – de desenvolvimento da consciência.
Sendo assim, mediadores e pilares precisam desenvolver uma estratégia de atuação para as-
sociarem forças e lidarem com a soma de todas as variáveis de sua empreitada. Uma vez esta
estratégia sendo baseada em ações cuja intenção está em gerar experiências através do envol-
vimento profundo do sujeito, precisamos definir e dar contornos claros ao que entendemos e
propomos ser “experiência”.
capítulo 4experiência
85
experiência
Percebe-se que na procura por uma estratégia de mediação, uma vez buscando reagir à dis-
tensão entre as experiências do viver cotidiano e as vontades profundas por experiências de
vida, precisa-se partir exatamente do oposto às experiências que reproduzem esta distensão.
A estratégia começa a se configurar como uma proposta de encadeamento de experiências
que integrem o viver e a vida, articulada e sugerida pelo mediador. Para que isso seja possível,
precisamos não apenas entender a ideia de experiência, mas principalmente aprofundar a dis-
cussão de suas características práticas e dar seu necessário contorno.
Relembrando o que já discutimos, experiências do cotidiano e experiências profundas de vida
não são sinônimos entre si. As primeiras, presentes no viver do dia a dia, são em grande parte
geradas por modelos institucionais, como a escola ou o hospital, que dizem lidar com as se-
gundas, como o aprendizado e a saúde. Experiências de vida dizem respeito ao sujeito em sua
integralidade complexa, a todas suas dimensões e especificidades, sejam emocionais, físicas,
racionais, culturais, sociais, etc., inapreensível em sua totalidade. Por outro lado, experiências
do viver cotidiano simplificam essa complexidade do sujeito de maneira a dar uma resposta a
86
VII Carta ao mediador
suas vontades profundas em forma de produtos e serviços.
Sendo assim, em primeiro lugar precisamos considerar que a experiência diz respeito exclusi-
vamente ao sujeito. Se pelo lado da vida apenas ele pode ter contato com a complexidade de
suas vontades e particularidades, uma vez sendo isso exatamente aquilo que o individualiza,
pelo lado do viver apenas ele passará pelas experiências práticas de sua maneira própria, de
acordo com suas características. Cada indivíduo tem, assim, uma experiência distinta e parti-
cular gerada por uma mesma atividade. Podemos perceber que corroboramos com uma defi-
nição de experiência que diz que
“é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca” 61.
Portanto, enquanto a atividade pode ser proposta por um agente externo, como uma insti-
tuição, a experiência só pode ser vivida pelo próprio sujeito, o que nos leva a uma segunda
constatação: experiência e atividade também não são sinônimos. A segunda carrega signos,
instrumentos, mensagens e todo tipo de estímulo que, ao entrarem em contato com o sujeito,
o levarão a ter determinada experiência, mesmo que esta não possa ser antevista com clareza
pelo agente externo. Desta forma, aquele que propõe a atividade o faz baseado em alguma
intenção, gerando experiências em certo espectro de possibilidades.
Uma vez que experiências do viver e experiências de vida são distintas entre si, há então uma
distância entre elas, de maneira que as intenções impressas nas atividades propostas podem
fazer com que se aproximem ou distanciem. Esta intencionalidade é carregada nas ações da-
quele que propõe a atividade, por sua vez assentado em modelos que dizem respeito aos
campos de experiência – por exemplo, o modelo escola para o campo educação, ou o modelo
hospital para o campo saúde – podendo gerar experiências práticas que se integrem ou se
distendam das vontades profundas do sujeito que passa por elas.
Enquanto a intenção das experiências de integração está em envolver ao máximo o sujeito,
dando-lhe abertura para viver suas vontades e enxergar significado profundo no que está vi-
vendo, a intenção de experiências de distensão está em outras motivações, notavelmente na
manutenção e reprodução de seu promotor, de forma que a busca pelo envolvimento do sujei-
61. Larrosa. Notas sobre a experiência (p21)
87
Experiência
to é mínima e suficiente para gerar sua aceitação. Assim, experiências de distensão lidam com
um recorte do sujeito, tomando-o em uma faceta específica, como consumidor, por exemplo.
Os modelos fundam vertentes institucionais que carregam experiências de integração ou dis-
tensão, abrindo a possibilidade de serem hegemônicos em seus campos de experiência, por
um lado através da força, mas principalmente através do consentimento da sociedade.
Procurando uma forma de reação a estas vertentes que se mantêm hegemônicas através do
estiramento entre o viver e a vida, definimos a figura do mediador, que é o sujeito que desen-
volve consciência da distensão e autonomia para reagir a ela, unindo campos de experiência
através de suas respectivas vertentes contra hegemônicas e promovendo sugestões ativas de
envolvimento da sociedade em experiências de integração.
Através delas, a sociedade pode desenvolver ou aprofundar sua consciência, independente-
mente de seu estado atual, aprendendo a reconhecer a distensão e a se mobilizar individual e
socialmente de forma a intervir e gerar experiências do viver cotidiano afinadas às suas vonta-
des profundas por experiências de vida. Sendo através da vivência das próprias experiências
de integração que se pode desenvolver tal consciência, ampliamos nosso postulado anterior:
é vivendo que se aprende a viver a vida.
Uma vez que o desenvolvimento da consciência através de experiências é distinto da simples
aquisição de informações, é necessários separar o saber de experiência do saber coisas. Mes-
mo quando passamos a conhecer o que antes não conhecíamos,
“podemos dizer também que nada nos aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo
o que aprendemos nada nos sucedeu” ,
ou seja, que aquilo pelo que passamos não nos foi significativo. Larrosa defende que o sujeito
moderno busca ser profundamente informado para opinar, está permanentemente agitado
e em movimento e trabalha incessantemente, procurando conformar o mundo a seu gosto.
Contudo, este sujeito estaria pouco propenso a experiências significativas exatamente por es-
tar inserido nessa sociedade de excessos, cultura perenizada pelas vertentes hegemônicas que
se reproduzem pela distensão.
62. Idem (p.22)
88
VII Carta ao mediador
Então qual seria o sujeito da experiência? Uma vez que ela é o que nos passa, o que nos acon-
tece, o que nos toca, diz respeito à integralidade da pessoa em sua dimensão complexa. O
indivíduo, por sua vez, precisa estar receptivo e disponível para se deixar passar pela por ela.
Nas palavras de Larrosa, o sujeito da experiência é um sujeito exposto, no sentido de contar
com uma
“passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma
receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental” 63.
É aquele que desenvolve consciência e autonomia para realizar a mediação interna entre suas
atividades práticas e suas vontades profundas, possibilitando-o integrar o viver e a vida.
A definição de experiência para o autor corrobora com o que chamamos de experiências signi-
ficativas, aquelas que envolvem o sujeito em sua complexidade. Mas então aquelas de disten-
são, que envolvem apenas um recorte do sujeito, não seriam nem ao menos experiências? En-
tendemos que toda pessoa está exposta, sujeita a vulnerabilidade e risco do imprevisível uma
vez que seu contato com o mundo nunca deixa de ser complexo e integral, ou seja, a receptivi-
dade do sujeito é inerente a sua complexidade. Contudo, expor-se a interações e intervenções
que lhe proporcionem experiências significativas, reagindo àquelas de distensão, é uma ação
posterior à simples exposição e variável conforme a consciência e autonomia do sujeito.
Sendo assim, nossa abordagem difere um pouco daquela de Larrosa. Em contraposição à ideia
de que, uma vez a experiência sendo o que nos passa e não passar por experiências seria não
passar por nada, entendemos que elas nos são inevitáveis. Diferentemente, a distinção que
fazemos está em serem experiências significativas ou não significativas, de integração ou dis-
tensão. Portanto, não desenvolver consciência e autonomia como mediador interno, ou seja,
não ser sujeito de experiências, não significa não estar exposto ou disponível a elas, pois não
se pode evitar tal disponibilidade, mas não ter consciência e ação frente a esta exposição. A
inconsciência e inatividade fazem parte do embrutecimento que possibilita a reprodução con-
sentida e a manutenção da hegemonia de vertentes de experiências de distensão.
Então, entendemos o sujeito da experiência não apenas como receptivo, mas fundamental-
mente ativo, revelando que
63. Idem. (p.24)
89
Experiência
“experiência não é, portanto, alguma coisa que se oponha à natureza, pela qual se
experimente, ou se prove a natureza. Experiência é uma fase da natureza, é uma for-
ma de interação, pela qual os dois elementos que nela entram – situação e agente –
são modificados” 64.
Nesta perspectiva, a experiência envolve uma transformação mutua por uma interação em
um dado momento presente, tendo em ambos os envolvidos a exposição e a ação. Em outras
palavras, a situação precisa se expor ao agente enquanto o agente deve se expor à situação;
da mesma forma, a situação precisa agir frente ao agente, enquanto o agente deve agir frente
à situação.
Na interação, ambos se transformam. Para o sujeito, quando a situação é uma atividade cuja
intenção está em envolvê-lo integralmente, gerando experiências significativas, a transforma-
ção leva ao gradual desenvolvimento de consciência da distensão entre o que vive e a vida que
gostaria de viver. Como diz Anísio Teixeira,
“quanto mais é o homem experimentado, mais aguda se lhe torna a consciência das
falhas, das contradições e das dificuldades de uma completa inteligência do univer-
so. É isso que dá ao homem a divina inquietação, que o faz permanentemente insa-
tisfeito e permanentemente empenhado na constante revisão de sua obra” 65,
lembrando que em nossa discussão sobre educação e política, discutimos que para uma socie-
dade esta obra seria sua cultura.
O mediador – consciente da distensão e agregador de diversos campos de experiência – tem
em sua intenção de envolver integralmente o sujeito este princípio da interação mutua. Uma
vez que não pode antever com precisão para onde e como o sujeito irá se transformar, e sim
apenas observar seu envolvimento, a exposição à experiência envolve um risco. Como bem
nos lembra Larrosa 66, a própria etimologia da palavra nos remete a este perigo, a travessia de
um espaço indeterminado e desconhecido. Em nossa metáfora da esfera como consciência do
sujeito, esta travessia perigosa e desconhecida seria a transposição de sua superfície, indo da-
quilo que se conhece àquilo que se desconhece.
64. Teixeira, Anísio. A pedagogia de Dewey (p34)
65. Idem (p36)
66. Experiri, do latim, provar; ex, latino, o mesmo de exterior e de exílio; periri, radical latino, o mesmo de perigo; per, grego de atravessar, ir além. Larrosa (p25)
90
VII Carta ao mediador
Anísio, comentando o termo experiência para a pedagogia de Dewey, vai dizer que nesta tra-
vessia, ou seja, na transformação gerada pela interação,
“a experiência alarga os conhecimentos, enriquece o nosso espírito e dá, dia a dia,
significação mais profunda à vida” 67.
Esta profundidade amplia as possibilidades do sujeito se dirigir a novas experiências, em uma
noção de educação onde ela seria
“o processo de reconstrução e reorganização da experiência, pelo qual lhe percebe-
mos mais agudamente o sentido, e com isso nos habilitamos a melhor dirigir o curso
de nossas experiências futuras” 68,
em uma sequência de experiências que se confunde com a própria vida.
Para Dewey, ao passar pela experiência, transformando-se e ampliando sua consciência e co-
nhecimento, o sujeito modifica seus hábitos, partindo de uma concepção de hábito que diz
respeito à formação de
“atitudes que são emocionais e intelectuais; que cobre nossa sensibilidade básica e as
formas de responder a todas as condições com as quais entramos em contato no vi-
ver” 69.
Portanto, estando inevitavelmente expostos a interações com o mundo que nos cerca, cada
experiência está ancorada nas experiências anteriores que transformaram o sujeito e ancora
suas experiências seguintes. Na conclusão de Dewey:
“por este ponto de vista, o princípio de continuidade da experiência significa que toda
experiência tanto toma algo daquelas que ocorreram antes quanto modifica de al-
guma forma a qualidade daquelas que vierem depois” 70.
Desta forma, cada experiência influencia as seguintes. O princípio da continuidade pode ser
exemplificado no caso do desenvolvimento da fala: uma criança, ao aprender a língua, tanto
adquire novas facilidades e novos desejos, quanto amplia suas condições para passar por no-
67. Teixeira (p37)
68. Idem
69. Dewey, John. Experience and education (p13)
70. Idem
91
Experiência
vas experiências, como aprender a ler, que por sua vez também ampliará seu campo de apren-
dizado através de livros, e assim por diante. Quanto mais familiarizado com a língua e com a
leitura, mais a experiência do livro lhe será agradável e motivadora.
Neste raciocínio, Illich ressalta que
“a maior parte da aprendizagem ocorre casualmente e, mesmo, a maior parte da
aprendizagem intencional não é resultado de uma instrução programada” 71.
Ou seja, desenvolvemos consciência e conhecimento através de experiências que não neces-
sariamente possuem um caráter “instrutivo”, mas que ao serem contínuas às experiências que
já possuíamos nos motivam e envolvem de forma a vermos significado nelas. Ou seja, a criança
que não desenvolveu a língua não verá significado em ler, assim como o sujeito que não de-
senvolveu consciência da distensão não será autônomo para reagir a ela.
Em nosso caso, o princípio de continuidade testemunha que, ao passar por experiências de in-
tegração propostas pelo mediador externo, o sujeito pode desenvolver sua consciência da dis-
tensão e autonomia para mediar sua própria maneira de aproximar o viver e a vida, passando
a se expor a experiências que lhe sejam significativas. O mediador, para realizar suas sugestões
de atividades com as quais o sujeito irá interagir,
“deve saber como utilizar as condições físicas e sociais que existem para extrair delas
tudo o que tiverem a contribuir para criar experiências que sejam significativas” 72.
Esta maneira do mediador atuar, sugerindo experiências envolventes por interação e continui-
dade buscando que a comunidade desenvolva (caso já não tenha) ou aprofunde sua autono-
mia para mediar a integração entre o viver e a vida, não se funda
“em um novo propósito que ‘faça’ as pessoas aprenderem; é antes a criação de um
novo estilo de relacionamento educacional entre o homem e o seu meio-ambiente.
Concomitantemente com a promoção deste estilo devem mudar as atitudes para
com o crescimento, os instrumentos da aprendizagem, a qualidade e estrutura da
vida cotidiana” 73.
71. Illich, Ivan. Sociedade sem escolas (p38)
72. Dewey, John. Experience and education (p15) - Tradução livre
73. Illich, Ivan. Sociedade sem escolas (p124)
92
VII Carta ao mediador
Illich chama este estilo de teias de aprendizagem.
Os princípios definidos por Dewey, com os quais vemos relação com a perspectiva de Illich, vão
nos definir as características basilares das experiências que vamos propor.
“Os dois princípios de continuidade e interação não são separados um do outro. Eles
se interceptam e se unem. São, por assim dizer, os aspectos longitudinais e laterais da
experiência” 74.
Uma vez a interação sendo um princípio que pressupõe ação bilateral, decompomo-nos em
dois: a interação da atividade com o sujeito, ou “Meio”, e a interação do sujeito com a atividade,
ou “Ação”. Da mesma forma, o princípio de continuidade pressupõe experiências anteriores e
posteriores ao momento presente, de forma que também o dividimos em dois: o conhecimen-
to e consciência anterior, ou “Cultura”, e aqueles que estão por vir, ou “Visão”.
Os dois eixos que se interceptam, longitudinal e transversal; a dualidade presente em cada um
deles, gerando as quatro características; as diferentes abordagens que cada uma pode tomar,
uma vez sua interpretação podendo ser realizada exclusivamente pelo sujeito que a vive; e a
sobreposição das quatro, que não deixam de ser partes sempre presentes de um mesmo todo
indivisível são os aspectos que geram o signo síntese do VII Movimento, onde o marrom repre-
senta o Meio, o laranja a Ação, o lilás a Cultura e o anil a Visão. Este signo nos ajuda a sempre
recordarmos dos aspectos fundamentais das experiências com as quais vamos atuar.
Estas quatro características descrevem a natureza da experiência que se propõe, dizendo res-
peito a como a intenção de envolver integralmente o sujeito pode ser realizada em ativida-
des práticas. Toda experiência presente em toda atividade possui as quatro características, por
mais que imprimindo em cada uma delas pesos diferentes de acordo com a intenção daquele
que a propõe. Obviamente estas quatro componentes não esgotam uma definição da nature-
za de experiência, mas elas nos serão fundamentais e suficientes para viabilizar a intenção do
mediador, possibilitando utilizá-las em sua estratégia.
74. Dewey, John. Experience and education (p17) - Tradução livre
93
Experiência
94
VII Carta ao mediador
Quanto mais o mediador for capaz de sugerir atividades que contenham dentro de si inten-
ções de envolvimento profundo das quatro componentes, equilibrando-as, mais a experiência
poderá ser significativa. A necessidade de conjugar diversas atividades decorre tanto da veri-
ficação da forma deste envolvimento, de maneira que se ajuste as propostas seguintes com
intenções nas quatro componentes de maneiras mais alinhadas às características da comu-
nidade, quanto da possibilidade de uma experiência apoiar outra buscando equilibrarem as
quatro características entre si.
Para que se compreenda as componentes da experiência, faz-se fundamental, portanto, que
as definamos com mais clareza. Para tanto, vamos expor atividades que carregam intenções
fundamentais em cada componente e em seguida discutir como poderíamos buscar seu equi-
líbrio para serem potencialmente mais significativas.
MEIO
O Meio diz respeito às características físicas e ambientais da atividade que propomos. São
componentes e signos dispostos no espaço que interagem com o sujeito através dos sentidos,
fazendo-lhe passar pela experiência de reconhecer elementos que já conhecia, como uma
vaga de automóvel, e elementos ou possibilidades que desconhece, como fazer desta vaga um
pequeno parque 75.
Atividades e intervenções cuja intenção de envolvimento da experiência que carregam tem a
característica Meio como preponderante não levam em conta as especificidades da comuni-
dade, nem qual será sua reação ou qual novidade está colocando em pauta, o que não signi-
fica que não poderão gerar envolvimentos por estas características também. Podem ser, por
exemplo, intervenções artísticas baseadas na personalidade do artista ou obras públicas muito
impessoais e instrumentais, baseadas nas intenções políticas do governo.
Uma vez que a característica Meio diz respeito à experiência gerada pelo meio físico da ativi-
dade, então toda atividade possui esta característica. Contudo, nem toda proposta tem sua
intenção de envolvimento centrada nesta face da experiência, residindo ai a diferença para
com outras sugestões que tenham outras características preponderantes. Sem ter intenção no
75. Ver a experiência dos Parklets.
95
Experiência
Meio, a atividade pode ocorrer em qualquer lugar ou em um perímetro genérico, podendo ser,
por exemplo, um processo ou uma organização como uma associação comercial, onde o Meio
é todo o perímetro de atuação.
AÇÃO
A Ação diz respeito às sugestões de interação da pessoa com a atividade, principalmente no
que tange sua participação ativa, física e exposição de suas vontades e opiniões. A intenção
de envolver o sujeito pela experiência da Ação abre possibilidades para que ele seja parte de
sua própria construção, ou seja, que a atividade se faça completa apenas no momento em que
houver participação.
O envolvimento se dá no grau em que a pessoa estiver disposta a participar, de maneira que
a Ação não pressupõe ou depende da máxima participação, mas sim uma escala de atividade
crescente que tende a autogestão. Contudo, dependendo da personalidade da comunidade,
nos primeiros momentos da proposta de atividades com intenção na Ação, esta será muito
mais passiva e independente, mas não menos participativa. Por exemplo, para a proposta de
criação de uma associação comunitária, espera-se participação de grande parte da comunida-
de, por mais que não necessariamente com a manifestação de cada sujeito individualmente.
De forma semelhante, a construção de um parquinho para crianças em uma praça sugere que
estas brinquem nele, por mais que não precisem participar de sua construção.
Na medida em que a experiência é gerada pela integração da pessoa através de sua própria
atividade, propostas cuja intenção de envolvimento está preponderantemente na Ação não
partem da especificação do Meio onde ocorrerão, nem da Cultura da comunidade ou da novi-
dade frente às condições existentes. Uma conversa despretensiosa entre dois desconhecidos
pode ser entendida como uma atividade deste tipo, lembrando que as outras componentes da
experiência não deixaram de existir, apenas não imprimem intenção.
Uma vez que toda atividade pressupõe que o sujeito entre em contato com ela, toda atividade
possui, assim, a característica Ação, mesmo que de forma distinta daquelas onde a proposta
depende da intervenção direta do sujeito. Uma peça de teatro, por exemplo, depende da pre-
96
VII Carta ao mediador
sença do público, por mais que este, de forma geral, deva permanecer em silêncio e sentado.
Sua Ação, neste caso, está tanto em se deslocar até o teatro, quanto em se manter concentrado
durante o espetáculo.
CULTURA
A Cultura diz respeito ao interior da “esfera” de nossa metáfora da consciência, ou melhor, todo
o conjunto de experiências, aprendizados e características que o sujeito já carrega em sua in-
dividualidade. Este conjunto conforma o mundo no qual ele sabe operar autonomamente, o
mundo que conhece e no qual tem confiança. A Cultura olha para dentro deste mundo, pro-
curando compreender na personalidade da comunidade os primeiros traços de sua cultura,
aquela que dá forma a seus hábitos, valores e posturas.
Esta característica, para ser colocada como intenção de envolvimento na atividade, deve estar
de tal forma afinada com a Cultura do conjunto social, que este veja continuidade e se sinta
confortável a passar por ela. A experiência que envolve pela Cultura convida o sujeito a vivê-la
ao fazê-lo perceber que ela lhe diz respeito, que lhe é familiar. Quando não lhe diz respeito, a
comunidade não se identifica e não vê motivos para se envolver, podendo até responder com
desconfiança.
Daqui decorre outra motivação para a variedade na proposição de experiências, pois podemos
nos aproximar de parte da cultura do bairro, mas só vamos ter algum acesso à cultura de cada
sujeito que dele faz parte ao longo da estratégia. Sendo assim, a variedade de campos de
experiência nos possibilita atingir mais tipos de personalidade, mesmo que não as tenhamos
conhecido previamente.
Aos poucos vamos propondo atividades que carregam intenções de envolver as pessoas pela
sua percepção da conexão com o que já conhecem, como uma festa tradicional do bairro,
por exemplo: uma comunidade pode realizar todos os anos uma festa de fim de ano em um
parque do bairro. Se propusermos outra festa, em moldes semelhantes, mas com organização,
proposta e momento diferentes, ela poderá gerar o envolvimento da sociedade por ver seme-
lhança com o evento tradicional.
97
Experiência
Atividades com intenção de envolvimento apenas nesta característica da experiência talvez
tendam a apenas reproduzir o que a comunidade já conhece, mas sem ela não temos bases
para propor qualquer experiência diferente. Sem olhar para dentro da Cultura estabelecida
e das especificidades da comunidade, não podemos propor experiências que lhe ampliem a
consciência da distensão. Esta deve partir do mundo já conhecido. Para tanto, o mediador
depende de se aproximar cada vez mais profundamente, se envolver cada vez mais e gradual-
mente trazer os próprios sujeitos da comunidade para proporem experiências de integração.
VISÃO
A Visão talvez seja a característica mais complexa da experiência e ao mesmo tempo mais
fundamental para a estratégia. Dizendo respeito à continuidade com relação a experiências
futuras, logo, a consciência que o sujeito pode desenvolver, não é fácil o mediador gerar envol-
vimento uma vez que estas experiências não estão presentes na esfera consolidada de cons-
ciência da pessoa. Sendo assim, a visão é essencialmente a proposta da transposição entre o
mundo conhecido e o mundo desconhecido e envolve um risco, um “perigo”.
Sendo assim, para que o sujeito possa se envolver a ela, é preciso que esteja em sua zona
de desenvolvimento proximal, como discutimos anteriormente. Isso significa que a Visão diz
respeito a todas as outras três características, na medida em que ela é a intenção de envolver
o sujeito em experiências que estão na superfície da esfera que lhe comporta o mundo co-
nhecido e o universo desconhecido. Enquanto a Cultura olha para dentro desta esfera, a Visão
olha para fora, buscando posicionar a atividade nesta tênue linha que separa as experiências já
conhecidas e aquelas que podemos conhecer.
Uma vez as experiências geradas por vertentes hegemônicas que se reproduzem pela disten-
são serem boa parte de consciência estabelecida da sociedade, aquelas de integração, pro-
postas pelas vertentes contra hegemônicas e pelo mediador, podem não lhe ter continuidade.
Sem caminhar de proposta em proposta no sentido de ampliar a consciência e o envolvimento
do conjunto social com experiências que se fundam na intenção de envolvê-lo, o mediador
não cumpre sua função. A Visão então é o que faz a estratégia se desenrolar, sendo que seu
objetivo final é o mesmo objetivo final da estratégia, desenvolver a consciência e autonomia
98
VII Carta ao mediador
de reação da comunidade à distensão entre o viver e a vida.
Quanto mais distante da superfície, menos a pessoa verá qualquer tipo de significado na expe-
riência e não modificará sua consciência. Uma palestra, mesmo que ministrada por um profis-
sional muito didático e atencioso com a compreensão da plateia, se realizada a um público que
não entende o que está sendo falado, não lhe gerará envolvimento. Vemos este tipo de dinâ-
mica em escolas tradicionais, onde os alunos perguntam qual a função de aprender aquele ou
aquele assunto e não recebem uma resposta que lhes satisfaça. Não à toa não veem significa-
do neste ensino e se dispersam 76.
A intenção do professor pode nem ter sido ruim, ele realmente pode saber que aquele assunto
é importante, mas desconsiderou as vontades e especificidades dos alunos, não sabendo nem
olhar para sua Cultura, nem posicionar a atividade educativa em sua zona de desenvolvimento
proximal. Por outro lado, uma atividade cuja intenção de envolvimento reside na Visão precisa,
assim como a Cultura, conhecer profundamente o sujeito e pode ser, por exemplo, uma aula
baseada em projeto ou em temas e pesquisas propostos pelos próprios alunos.
Pois bem. Quanto mais a atividade sugerida tiver dentro de si a intenção de envolver o sujeito
através das quatro características da experiência, maior a chance dela lhe ser significativa e
envolvê-lo profundamente em sua integralidade. Mesmo com a limitação do mediador em
conhecer a complexidade do sujeito, sua intenção de envolvê-lo, impressa na proposta equi-
librada das quatro características, faz com que o conhecimento não precise ser integral, mas
possibilita que a experiência o seja, lembrando que o mediador não está “entre” a experiência
e a pessoa.
Desta forma, uma atividade com as quatro componentes da experiência equilibradas, deve ser
planejada pensando em como o Meio, a Ação, a Cultura e a Visão envolverão o sujeito: uma
festa tradicional do bairro (Cultura) pode ser realizada na praça em frente à escola (Meio), pro-
pondo que sua execução seja realizada pela comunidade escolar em parceria com a associação
de moradores (Ação), possibilitando que a escola abra seus portões para o bairro (Visão). Este
é um exemplo teórico de busca pelo equilíbrio das quatro componentes da experiência, mas
76. Isso vai gerar uma escala crescente em diagnósticos de distúrbios de déficit de atenção e prescrição de medicamentos como a ritalina, como nos comenta Ken Robinson em seu TED Talk “How schools kill creativity”
99
Experiência
cada caso depende das características e personalidade da comunidade onde se está atuando.
Cada proposta contém, além da natureza da experiência em suas quatro componentes, a sua
identidade em diversos campos de experiências possíveis. Aqui, podemos identificar as ativi-
dades não pela sua forma de apresentação, mas pelo assunto que carrega. Ou seja, podemos
categorizar as experiências de acordo com sua identidade: intervenções urbanas, planejamen-
to, educação, política, economia, saúde, transporte, meio ambiente, patrimônio histórico, etc.
Esta categorização nos ajuda quando conhecemos uma comunidade e identificamos nela ali-
nhamento com determinados campos de experiência. Por exemplo, um bairro com muitas áre-
as verdes e pouco tráfego de veículos provavelmente se preocupa em manter sua qualidade
ambiental.
Como já discutimos nos capítulos anteriores, cidade, educação e política são três campos de
experiência que nos acompanharão em todos os nossos movimentos. Vão aos poucos dando
forma às ações estratégicas que vamos propor, uma vez estando muito próximos entre si em
suas abordagens contra hegemônicas e próximos, também, das quatro características da ex-
periência. Por exemplo, podemos observar a cidade no Meio, a política na Ação e a educação
na Cultura e Visão, por mais que todas se apoiem mutuamente.
A categorização não depende de qualquer tipo de rigor e pode inclusive avaliar uma mesma
atividade em vários campos de experiência, por exemplo, uma proposta de projeto educativo
para escolas que envolva as crianças plantarem árvores pontos do bairro pode estar tanto ca-
tegorizada como educação, quanto como meio ambiente e intervenção urbana. Mesmo que
haja preponderância de algum campo, os outros não deixam de estarem presentes.
É muito interessante observar que existem diversos repertórios de atividades e intervenções,
de uma grande variedade de organizações. Estes repertórios variam de personalidade de caso
para caso, mas de forma geral todos categorizam as “boas práticas” que elencam. Encontramos
exemplos destas bases no site da Rede de Cidades Educadoras, por exemplo, ou no Centro de
Referência em Educação Integral, ou no Cidades Sustentáveis. Todos eles nos são úteis e são
bases fundamentais de consulta, uma vez que o universo de experiências é infinito.
Contudo, enquanto este universo é um só, não diferenciando a priori atividades e estímulos
100
VII Carta ao mediador
por características ou campos de experiências, a seleção de atividades que serão realizadas
pelo mediador e pela comunidade configura uma constelação neste universo. O ato de “cons-
telar”, portanto, é a ação de partir da aproximação à complexidade do conjunto social para
selecionar e projetar experiências com componentes equilibradas em das atividades que serão
propostas. Para que esta ação seja simplificada, pode-se realizar uma avaliação prévia das ativi-
dades discutindo as quatro componentes da experiência que carrega.
Para nossa proposta de estratégia, realizaremos esta avaliação e criaremos nosso próprio re-
pertório, a partir do qual se facilita a criação da constelação. Espera-se que este repertório se
expanda naturalmente através do próprio uso dos mediadores. Nele, cada atividade é apre-
sentada em suas diversas faces, mesmo que brevemente. O intuito não é que cada elemento
da constelação seja um tratado sobre o tema, mas sim um conjunto de reflexões úteis para
que o mediador utilize e transforme a atividade descrita, de forma a utilizar uma versão mais
adequada em sua estratégia.
Sendo assim, é interessante que o livreto de cada experiência contenha:
1. Introdução. Apresentação e contextualização da atividade em seu modelo padrão,
bem como alguns possíveis exemplos de usos realizados.
2. A experiência. Discutindo a quem a atividade se destina, ou seja, seu principal público
alvo; breve discussão sobre as quatro características e onde reside a intenção principal,
ou seja, é uma atividade de experiência predominantemente Meio, Ação, Cultura ou
Visão; avaliação do equilíbrio entre as características e possibilidades de aprimorar este
equilíbrio.
3. Narrativa de uso. Apresentado quais são as condições consolidadas que a comuni-
dade precisa ter para que se possa propor a experiência, por exemplo, não faz sentido
propor intervenção em praças se a comunidade não tem praças; sugestão de em que
momento da estratégia utilizar a experiência e por que; como relacioná-la entre as qua-
tro redes sociais; considerações sobre operacionalização e legislação; possíveis formas
de verificar o envolvimento da comunidade com a atividade.
4. Referências e fontes de estudo. Todas as referências que possam ajudar aquele que
101
Experiência
pegar o livreto a aprofundar seu estudo e pesquisa.
As discussões realizadas no livreto são livres e podem ser agregadas organicamente pelos me-
diadores que forem utilizando as respectivas atividades. Deixamos aqui apenas algumas con-
siderações sobre estas discussões.
Como nos comenta Gadotti, citando Vasconcellos77, as atividades, além de sua natureza e iden-
tidade, podem ter diversos perfis: podem ser ações concretas, ou projetos; linhas de ação, ou
orientações gerais; atividades permanentes, ou rotinas; e normas ou determinações. Eles vão
dizer respeito as característica da experiência que promovem, por exemplo, um projeto pode
ser uma intervenção no Meio; da mesma forma, uma linha de ação pode ser uma forma de
atuação de associação de moradores, etc. Na introdução do livreto, quando vamos apresentar
a atividade, é interessante discutir sobre estes perfis.
Também na introdução é importante que se defina um modelo padrão da atividade. Conside-
rando que ela não possui uma forma fechada de ser, determinamos aquele que vamos discutir.
Neste sentido, é interessante procurar relatar a variedade potencialmente mais significativa e
com características mais equilibradas. Sempre que formos fazer esta avaliação, precisaremos
delimitar quem é o “público” daquela atividade. Por exemplo, o público de uma manifestação
política é quem se manifesta, quem a assiste ou a quem ela procura pressionar? Esta definição
será fundamental, pois o mediador só pode realizar sua intenção d envolver ao máximo o su-
jeito se ele é capaz de identificá-lo. Sem identificar o interlocutor, não há como se aproximar a
ele e lhe sugerir experiências potencialmente significativas.
Identificando-o, posso discutir como cada uma das quatro componentes da experiência en-
volve o sujeito e responder a pergunta: a intenção está em envolvê-lo predominantemente
através de qual característica? Encontrar qual é a central nos pode ser importante para utilizar
a atividade em determinado movimento. Por exemplo, aquelas mais centradas no Meio e não
na Ação, podem ser melhores para serem utilizadas pelo mediador em momentos onde não
possa depender da participação e execução da comunidade.
Quanto mais a atividade tiver abertura à intenção de envolvimento nas quatro componentes,
maior sua chance de ser significativa. Devo então me questionar de como posso verificar este
77. Gadotti, Moacir. Cidades educadoras (p88)
102
VII Carta ao mediador
envolvimento, buscando avaliar não se a pessoa que passou pela experiência se transformou
ou desenvolveu a consciência que buscamos desenvolver, mas se ela de fato se envolveu nas
quatro dimensões como esperávamos, lembrando nossa discussão anterior sobre o mediador:
uma vez não sendo possível medir o grau de distensão ou de inconsciência, podemos avaliar o
processo nos atos, não o resultado de um desenvolvimento.
Estas definições de experiência nos colocam, finalmente, no ponto de desenhar as linhas mes-
tras de nossa estratégia de reação à distensão entre o viver e a vida.
105
capítulo 5estratégia
107
“Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só fal-
tava uma coisa – salvar a humanidade” 78. Almada Negreiros, já no começo do século XX, afirma
algo que perdura até nossos tempos: sem ação, boas ideias não bastam. Muita coisa mudou
desde que o poeta e artista escreveu que “tudo está em tudo”, e nunca poderemos saber ao
certo como era a vida naqueles duros tempos entre duas grandes guerras mundiais.
De lá para cá, inegáveis os avanços e as grandes transformações que ocorreram nas socieda-
des, mas, assim como a frase do português permanece atual, algumas questões restam into-
cadas: como sociedade, estamos reagindo melhor à distensão entre o viver e a vida? Estamos
mais conscientes e autônomos para viver a vida que queremos viver? Ao menos sabemos, mais
profunda e plenamente do que no tempo de Almada, afinal qual é a vida que queremos viver
e porquê?
A conclusão deste trabalho, tão pautado na discussão e exposição de ideias e na definição de
conceitos, não poderia tomar outra forma do que efetivamente uma proposta prática de ação.
78. Negreiros, Almada. A invenção do dia claro (p8)
estratégia
108
VII Carta ao mediador
Não podemos aceitar a possibilidade de não sabermos quais são nossas vontades profundas,
nem de viver uma vida que não queremos viver. O fatalismo nos discursos que justificam a he-
gemonia de vertentes baseadas na distensão, gerando situações de desigualdade e domina-
ção, consentida ou não, através de quaisquer que sejam os meios, faz parte de uma sociedade
com grandes dificuldades de reagir.
A vontade de reagir existe e cada vez mais as sociedades parecem buscar intervir naquilo que
as interessam.
“É como se a civilização moderna, com seus enormes complexos industriais e empre-
sariais e com seus meios eletrônicos de comunicação massiva, tivesse levado os ho-
mens primeiro a um individualismo massificador e atomizador e, mais tarde, como
reação defensiva frente à alienação crescente, os levasse cada vez mais à participa-
ção coletiva” 79.
Mas esta vontade não se transforma em ação se estiver apenas no campo da percepção. Sem
se tornar consciência e sem haver instrumentos que a possibilitem intervir, permanece silen-
ciada.
Pois bem, sintetizemos o discutido e façamos a conclusão deste trabalho em uma estratégia
– evidentemente não exclusiva ou fechada – de reação à lógica de distensão que apresenta-
mos, criticando a hegemonia de vertentes consolidadas de experiências. Se, como dissemos,
é vivendo que se aprende a viver a vida, a estratégia deve ser um encadeamento de experi-
ências de integração. Tendo sempre em mente que devemos buscar o máximo envolvimento
do sujeito, sem esperar que possamos “enformá-lo”, as ações da estratégia são essencialmente
sugestões e não compreendem qualquer tipo de coerção.
Seus objetivos devem, portanto, em primeiro lugar favorecer que o sujeito desenvolva ou
aprofunde a consciência de suas próprias vontades profundas de vida; em seguida, desenvol-
ver reflexão crítica quanto às experiências existentes do viver cotidiano; assim, pode-se de-
senvolver consciência da distensão entre o viver e a vida; com esta consciência, desenvolver
autonomia da comunidade reagir à distensão.
79. Bordenave. O que é participação (p7)
109
Estratégia
Mas se temos objetivos assim claros, a proposta de reação seria um método? Talvez este termo
pressuponha uma relação de causa e efeito de tal forma precisa que seria possível reproduzi-
-lo, alcançando sempre os mesmos resultados. Em realidade, nossa proposta não pode assumir
tais expectativas. Não temos como prever o que será gerado ao longo e ao final de nossa tra-
jetória, ainda mais por não termos formas de avaliar com clareza e precisão as transformações
que estão ocorrendo e muito menos antevermos as instabilidades no decorrer do processo.
Diferentemente da rigorosidade do método, nossa proposta é uma estrutura aberta, uma vez
que “o ambiente pode se tornar tão turbulento que mesmo as melhores técnicas de planeja-
mento perdem seu uso pela impossibilidade de prever o tipo de estabilidade que eventual-
mente emerge.” E Mintzberg continua:
“em resposta a este tipo de inconsistência no ambiente, padrões de mudança estraté-
gica nunca são estáveis, mas sim irregulares e ad hoc, com uma complexa combina-
ção de períodos de continuidade, transformação, fluxo, limbo e assim por diante” 80.
Sendo assim, o que propomos é uma estrutura dinâmica de encadeamento, como se fosse
uma meta-estratégia. A estratégia em si deve ser formulada e reformulada constantemente
pelo próprio grupo de mediadores em conjunto com a comunidade, de acordo com as especi-
ficidades e transformações que forem encontrando e ocorrendo ao longo da intervenção. Des-
ta forma, seguindo a definição de Mintzberg, temos que a meta-estratégia é um “padrão em
uma sequência de decisões” 81, nas quais a formulação completa depende das circunstâncias e
condições do ambiente.
Desta definição já concluímos que a estratégia não pode estar engessada em alguma institui-
ção, dependente de qualquer tipo de estrutura. Pelo contrário, é interessante que o mediador
possa pressupor de total liberdade e independência institucional. Esta liberdade não precisa
significar aversão ao apoio, pelo contrário, significa que o mediador pode tanto atuar indivi-
dualmente como amparado por qualquer organização. Este amparo pode inclusive ser funda-
mental para viabilizar sua atuação e disponibilidade.
Desta forma, a estratégia se solta de amarras e permite que seja desenvolvida de forma profun-
damente flexível e multidisciplinar, ou “adhocrática”, seguindo a linha de raciocínio de Mintz-
80. Mintzberg, Henry. Patterns of strategy formulation (p943) - Tradução livre
81. Idem (p935)
110
VII Carta ao mediador
berg. Segundo Gutierrez,
“estamos aterrissando com tudo na era do poder (cracia) ad hoc (aqui e agora). [...]
Esse roteiro do novo milênio privilegia as conexões em detrimento dos objetos, pesso-
as ou produtos. Os fios de ligação são mais importantes que a existência física de
elementos isolados” 82.
Esta liberdade vai fazer com que a estratégia tenha apenas uma dependência para que seja
desenvolvida e executada: a escolha consciente daqueles que serão responsáveis por ela. Pois
então, quem são eles? A estratégia depende de mediadores – pessoas que desenvolveram
consciência e autonomia frente à distensão, sendo suas próprias mediadoras internas entre
o viver e a vida – optarem por desenvolvê-la. Muitas vezes vemos indivíduos realizarem esta
escolha, mas não saberem por onde iniciar ou como desenvolver o trabalho. A meta-estratégia
e a abordagem aqui propostas terão esta função de suporte, descortinando outra figura im-
portante no processo, os monitores.
Estes são mediadores que já estão familiarizados com a estrutura geral da estratégia, já de-
senvolveram suas próprias formas de intervenção em outras comunidades e podem auxiliar
novos mediadores em suas empreitadas. Sendo assim, é interessante que novos mediadores
conheçam as ações realizadas por (possíveis) monitores, que vejam como desenvolveram suas
estratégias e que possam compartilhar experiências semelhantes entre si. Por exemplo, uma
pessoa que atuou em um bairro com determinadas características, pode ajudar muito outra
pessoa que vá iniciar sua atuação em um bairro semelhante, mesmo que evidentemente sem-
pre sejam muito distintos.
Mediadores e monitores, a partir de sua mútua decisão de atuarem juntos, passam a intera-
gir com pilares, que serão fundamentais para as intervenções práticas tomarem vulto. Mas as
ações de mediadores, monitores e pilares não serão significativas se permanecerem distancia-
das da comunidade onde estão intervindo. Esta é a mais importante das considerações, pois
sem envolver cada vez mais profundamente os sujeitos que formam o conjunto social, toda a
busca por desenvolver experiências significativas cai por terra.
Sendo assim, as ações da estratégia, realizadas por todas as figuras que nela se envolvem, de-
82. Ver Gutiérrez, Bernardo. A era adhocrata. In select.art
111
Estratégia
vem estar permanentemente pautadas na busca pela consciência e autonomia do conjunto
social onde atuam. Ao final do processo, a integração entre as experiências do viver cotidiano e
as vontades profundas por experiências de vida deixa de depender daqueles que arquitetaram
a estratégia inicial de mediação.
Contudo, não devem esperar que no curto tempo de intervenção, a totalidade da comunidade
se torne consciente e autônoma frente à distensão, mesmo porque seria impossível verificar tal
transformação. Devem buscar que o corpo social, como unidade, aumente seu envolvimento
em experiências de integração e tenha autonomia para permanecer reagindo à distensão: o
mediador busca que a comunidade passe a ser sua própria mediadora. Sendo assim, este é seu
objetivo final, que será concretizado na sugestão de desenvolvimento de um projeto político-
-pedagógico.
Esta permanente busca pelo envolvimento do sujeito, de forma que sua complexidade este-
ja contemplada e o possibilite ver significado nas experiências propostas, não permite que
alienemos desta integralidade sua dimensão física. Ou seja, o sujeito está sempre presente
no espaço. Desta forma, paralela e simultânea a todas suas outras características, não se pode
desconsiderar uma pergunta fundamental: qual é o espaço do sujeito e qual é o espaço de sua
comunidade?
Mesmo se discutirmos o espaço virtual na perspectiva de Pierre Levy, veremos que a desterri-
torialização não implica a redução do sujeito, em realidade pode até potencializar a expressão
de algumas de suas características ao se virtualizar e se tornar “não-presente”. Não podemos
deixar de lado as possibilidades que os recursos do ciberespaço oferecem, e, como local tam-
bém passível de gerar experiências, deve ser considerado na estratégia, seja compartilhando
informações ou de fato interagindo. Como diz Levy, “a virtualização do corpo não é, portanto,
uma desencarnação, mas uma reinvenção” 83 onde há uma mudança de identidade e não per-
da dela.
Contudo, o “limite jamais está definitivamente traçado entre a virtualização e a amputação” 84.
Sem a existência física do sujeito que se faz virtual ou do substrato que permite a virtualização,
não há este novo espaço. Mesmo sendo real e até multiplicando a presença da pessoa, o espa-
83. Levy, Pierre. O que é virtual (p17)
84. Idem
112
VII Carta ao mediador
ço virtual é uma extensão, ou parte dependente, do atual. O corpo, assim como o lugar, é ine-
vitável à própria existência. Sendo assim, a estratégia não pode ser fundada na experiência da
virtualização, por mais que deva englobá-la, mas precisa nascer da possibilidade de envolvi-
mento completo e complexo do sujeito, cuja dimensão física é inexorável.
Uma vez que é através deste envolvimento do sujeito em experiências no espaço da comuni-
dade – leia-se, de forma geral, o bairro – que o mediador busca o desenvolvimento da consci-
ência da distensão, a estratégia toma a forma de intervenção. Simultaneamente a “aprender a
viver a vida”, busca-se o próprio “viver”, da mesma forma que Paulo Freire dizia que é “decidindo
que se aprende a decidir” 85. Sendo assim, ao transformar o espaço, modificamos a consciência,
e ao modificar a consciência, transformamos o espaço. Portanto, se falamos do lugar do sujeito
na comunidade, estamos falando de um perímetro de intervenção, logo, quais parâmetros o
delineiam?
Em primeiro lugar, para viabilizar que o mediador encontre elementos que dizem respeito a
todo conjunto social – sua identidade, mesmo que múltipla – este perímetro não deve ser
muito extenso. Quanto maior o espaço abarcado pela estratégia, maior a complexidade com a
qual estaremos lidando, pois maior será a diversidade entre grupos e pessoas e maior a dificul-
dade em propor experiências que envolvam e sejam significativas a todos. Esta multiplicidade
é muito bem vinda e inevitável, mas cada intervenção, para ser viável, deve lidar com uma
identidade apreensível, relacionando-se com áreas vizinhas de forma própria e adequada. Ou
seja, se mediadores estiverem atuando em diversos perímetros justapostos, teremos uma in-
tervenção completa em perímetros muito mais amplos.
De forma oposta, o perímetro não deve ser muito restrito, pois ao mesmo tempo em que pre-
cisamos encontrar características gerais da comunidade abrangida, não podemos conhecê-
-la em toda sua complexidade, pois todas as pessoas que a compõem permanecem distintas
entre si. Ou seja, para que também seja viável propormos experiências que possam ser signi-
ficativas e envolver o máximo possível do conjunto social, precisamos que as propostas sejam
variadas. Esta variedade só pode ser alcançada se as experiências forem sugeridas em espaços
e circunstâncias diversas e se neles estiverem presentes pessoas distintas, do que decorre a ne-
cessidade de um perímetro não muito pequeno. A estratégia, se desenvolvida em apenas um
85. Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia (p41)
113
Estratégia
trecho de rua, por exemplo, terá menos oportunidades de intervenção e de gerar experiências
que sejam significativas de diversas formas.
A este princípio de abrangência, que nos diz que o perímetro deve ter uma escala que viabilize
a estratégia, soma-se outro princípio que diz respeito à forma de atuação do mediador. Uma
vez que o desenvolvimento da consciência é progressivo, como discutimos anteriormente, e
que não podemos avaliar com clareza o estado de consciência de uma pessoa, muito menos
de uma comunidade, a estratégia deve partir da possibilidade de pior situação, mesmo que
toda comunidade possua algum grau de consciência da distensão.
Considerando que o objetivo do mediador está no desenvolvimento ou aprofundamento des-
ta consciência e da autonomia, então temos um princípio de gradação: iniciamos a estratégia
considerando a possibilidade mais crítica, onde a comunidade não tem qualquer consciência
e consente passivamente à manutenção da hegemonia de vertentes de experiências que se re-
produzem pela distensão. Da possível inconsciência total à consciência do conjunto, teremos
então uma série de momentos aonde gradativamente vamos buscando cada vez mais direta e
profundamente a participação do sujeito.
Passamos, assim, de momentos onde a sugestão da experiência é centrada na figura do me-
diador a momentos onde essa sugestão deixa de ser realizada por um agente externo e passa
a ser feita pelo conjunto social, de forma autônoma.
“A participação fixa-se o ambicioso objetivo final da ‘autogestão’, isto é, uma relativa
autonomia dos grupos populares organizados em relação aos poderes do Estado e
das classes dominantes. Autonomia que não implica uma caminhada a anarquia,
mas, muito pelo contrário, implica o aumento do grau de consciência política dos ci-
dadãos, o reforço do controle popular sobre a autoridade e o fortalecimento do grau
de legitimidade do poder público quando este responder às necessidades reais da
população” 86.
O princípio de gradação, coerente com o conceito de zona de desenvolvimento proximal que
exploramos na metáfora da superfície da esfera, nos mostra que os diferentes momentos da
estratégia, logo seus diferentes graus de participação, não deixam de buscar o máximo envol-
86. Bordenave. O que é participação (p20-21)
114
VII Carta ao mediador
vimento do sujeito,
“pois a participação, mesmo quando concedida, encerra em si mesma um potencial
de crescimento da consciência crítica, da capacidade de tomar decisões e de adquirir
poder” 87.
Ou seja, se o mediador iniciasse sua intervenção dependendo de que a comunidade já tivesse
capacidade de se autogerir, e de propor suas próprias experiências de integração, caso esta
suposição esteja incorreta, a estratégia corre sério risco de falhar.
Bordenave define uma escala de graus de participação. Mesmo considerando que sua escala é
baseada em relações de subordinação, diferentemente da presente proposta, podemos tomar
emprestados alguns conceitos.
88
O mediador inicia sua trajetória independente do grau de consciência participativa da comuni-
dade. Ou seja, seus primeiros passos são de se aproximar da realidade dela, buscando compre-
ender a situação na qual irá intervir. Em seguida, para começar a compreender a especificidade
e identidade do conjunto social, depende do contato e consulta aos primeiros interlocutores.
Aprofundando seu envolvimento e estabelecendo vínculos com membros ativos da comu-
nidade, a equipe se expande, de forma que mediadores e pilares passam a atuar em parceria
horizontal.
Até este ponto, lembrando-se do princípio de abrangência, ainda não entramos na difusão
das experiências a todo o perímetro de intervenção. A partir da formação da equipe, passa-se
a sugerir as primeiras atividades à comunidade como um todo, mas ainda sem depender de
sua participação. Gradualmente a comunidade passa a assumir a autonomia na proposta de
experiências e a se mobilizar como conjunto.
87. Idem (p.29)
88. Idem (p31)
115
Estratégia
Identificamos, assim, dois grandes atos da estratégia. No primeiro, mediadores e pilares apro-
fundam seu envolvimento e sensibilização com a comunidade, buscando os primeiros direcio-
namentos de como propor experiências que possam ser significativas; enquanto no segundo,
estas experiências são realizadas e caminha-se para que sejam propostas e realizadas cada vez
mais autonomamente pela própria comunidade. Podemos dividir cada ato em ao menos três
movimentos.
I: Orquestração
O primeiro movimento da estratégia precisa partir da decisão do mediador em desenvolvê-
-la. Esse momento muitas vezes é negligenciado e desvalorizado, mas sem nos preocuparmos
com ele, facilmente o mediador pode se desmotivar ou estar inseguro a ponto de interromper
a estratégia no meio. A Orquestração é o momento em que se passa a conhecer a meta-estra-
tégia, buscando-se estar amparado e seguro para desenvolver o processo com uma intenção
focada e bem embasada. Aqui, mediadores formarão sua equipe inicial com outros mediado-
res e com monitores.
II: Aproximação
O segundo movimento é o início do envolvimento de fato dos mediadores com a comunidade.
Para começar a se aproximar da situação específica com a qual irá lidar, procurando observar o
perímetro com olhos mais críticos e sensíveis, o mediador realiza uma série de leituras e mape-
amentos do perímetro de intervenção. O objetivo final desta aproximação deve ser, ao entrar
interagir com os primeiros interlocutores, abrir caminho ao contato com pilares.
III: Contato
O último movimento do primeiro ato é este contato com as pessoas ativas do bairro. Pilares
serão fundamentais em todo o processo, pois são as pessoas que já estão envolvidas com o
desenvolvimento de atividades e as mais diversas experiências. O que propomos a eles é o
aprofundamento desta intervenção. Terminamos o Contato tempo ampliado nossa equipe
para, juntos, propormos as primeiras experiências à comunidade.
116
VII Carta ao mediador
IV: Difusão
O primeiro movimento do segundo ato inicia a intervenção propriamente dita, sugerindo ex-
periências em todo o perímetro abrangido. Inicialmente, as atividades propostas ainda são
muito centradas nas figuras de mediadores e pilares, devendo ser compreendidas como um
momento de avaliar o grau de envolvimento e potencial participação da comunidade. As pro-
postas que são realizadas são pontuais e devem ser viáveis do ponto de vista de recursos e
execução, de forma que possam atingir os objetivos do movimento.
V: Integração
Da mesma maneira que a Difusão, a Integração permanece sendo um movimento propositivo
de experiências, mas já buscando e dependendo de maior participação da comunidade. For-
mam-se grupos que viabilizam projetos maiores, bem como realizam discussões sobre ques-
tões do bairro. Os grupos sociais que formam a comunidade começam a ser mais articulados
entre si nas propostas de experiência, e os bairros vizinhos começam a ser envolvidos.
VI: Desenvolvimento
A busca pela participação cada vez mais difundida e pela mediação cada vez mais autônoma
da comunidade culmina, para a estratégia, no Desenvolvimento. Este é o último movimento
de intervenção, o que não significa o final da busca pela mediação entre experiências de viver
e de vida. Neste ponto, espera-se que a comunidade, como conjunto, esteja atuando autono-
mamente frente à distensão e desenvolvendo projetos e atividades cada vez de maior vulto,
dadas as vontades por experiências de vida dos sujeitos que a compõe. Aqui, o mediador sairá
de cena, sintetizando com o conjunto social um projeto que dê sequência à mediação e su-
marize as estratégias de integração entre as experiências práticas e as vontades profundas por
experiências de vida da comunidade.
117
Estratégia
Os seis movimentos da estratégia são subdivididos em uma série de momentos, os quais se-
rão detalhados na segunda parte deste trabalho. Como meta-estratégia, nossa proposta não
pressupõe que o mediador se utilize necessariamente de todos os momentos, nem que deixe
de incluir outros que considerar importantes. Nossa intenção é de ajudá-lo a encontrar seu
caminho, ou seja, a meta-estratégia é uma sugestão reflexiva.
Após os seis movimentos, chegamos a esta sugestão como um VII Movimento, cuja intenção
fundamental é possibilitar que mediadores desenvolvam suas próprias formas de atuação.
Para tanto, o VII é composto dos textos de fundamentação, aqueles que findam neste capítulo;
a meta-estratégia, em seus seis movimentos e diversos momentos; a constelação de experi-
ências, onde refletimos sobre o repertório que o mediador pode vir a utilizar; e nos ensaios
realizados ao final da intervenção dos mediadores, onde se narra o percurso da estratégia.
A sugestão de percurso da meta-estratégia, em seus diversos momentos, seis movimentos
e dois atos, é composta de dois tipos de ação: estratégicas e integradas. As estratégicas são
aquelas que formam o encadeamento da meta-estratégia, ou seja, cuja articulação depende
uma da outra. De forma distinta, as ações integradas são as experiências que o mediador “cons-
tela”, como discutimos. Sua seleção depende diretamente das especificidades da comunidade.
Busca-se que o final do percurso do mediador seja simultâneo à consolidação da autonomia
plena da comunidade em buscar suas experiências de integração. Por este motivo, o movimen-
to final é denominado Desenvolvimento e não “conclusão”, ou algo assim. O Desenvolvimento
diz respeito à última ação do mediador, que é sugerir a experiência de síntese das discussões
dos grupos formados e das propostas de experiências em um projeto. Esta síntese toma tanto
a face política, nos termos da democracia deliberativa que discutimos, quanto pedagógica, no
sentido da proposta de experiências de integração e do desenvolvimento contínuo e perma-
nente da consciência da distensão e respectiva autonomia de reação a ela.
Assim como indicado na Lei de Diretrizes e Bases para a educação do Brasil, onde se diz que
os projetos pedagógicos das escolas devem ser realizados por toda a comunidade escolar, em
um processo participativo e político, provocamos que o bairro, na perspectiva apresentada,
também realize seu projeto político-pedagógico como síntese do trabalho do mediador. Nas
118
VII Carta ao mediador
palavras de Vasconcelos, ele
“pode ser entendido como a sistematização, nunca definitiva, de um processo de Plane-
jamento Participativo, que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que define cla-
ramente o tipo de ação educativa que se quer realizar. É um instrumento teórico-meto-
dológico para a intervenção e mudança da realidade. É um elemento de organização e
integração da atividade prática da instituição neste processo de transformação” 89.
Contudo, diferentemente de um projeto político-pedagógico de uma escola, o que aqui propo-
mos integra diversos campos da experiência, principalmente os três expostos anteriormente: a
cidade, a política e a educação. Sendo assim, sua síntese será uma união, provocada pelo media-
dor, entre ideias de plano de bairro, micro-pools deliberativos, e projetos pedagógicos democrá-
ticos fundados no conceito de cidade educadora.
Esperamos que as a meta-estratégia e todo o conjunto do VII Movimento sejam bases suficien-
temente sólidas, mas permanentemente flexíveis sobre as quais possamos construir formas de
reagir à distensão entre as experiências do viver cotidiano e nossas vontades profundas por ex-
periências de vida. Todos merecemos viver plenamente. Viver a profundidade que a vida nos
traz. Ver a beleza que o mundo nos oferece.
“Eu sou o resultado consciente da minha própria experiência: a experiência do que nas-
ceu completo e aproveitou todas as vantagens dos atavismos. A experiência e a preco-
cidade do meu organismo transbordante. A experiência daquele que tem vivido toda a
intensidade de todos os instantes da sua própria viva. A experiência daquele que assis-
tindo ao desenrolar sensacional da própria personalidade deduz a apoteose do ho-
mem completo” 90.
89. Vasconcelos, Celso. Coordenação do trabalho pedagógico (p169)
90. Negreiros, Almada. Ultimatum futurista.
parte ii estratégia
i movimento: orquestração
125
orquestração
Olá! Seja muito bem vindo.
A Orquestração é o movimento inicial da estratégia. Ela parte do desconforto da pessoa com
as experiências que a circundam e de sua vontade de reagir a esta situação. Seu objetivo é que
o mediador se sinta devidamente seguro e amparado para iniciar sua reação com consistência
e tranquilidade. Sem dúvidas, é um movimento que pode acontecer de maneira natural, sem
precisar ser instigado pelo VII. É normal que pessoas que sentem o desconforto e conseguem
enxergá-lo como “causa”, comecem a atuar de alguma forma frente a ele, organizando-se de
maneira semelhante como aqui se sugere.
Este movimento é equivalente ao momento em que nos reunimos com amigos para encontrar
uma forma de resolver problemas cotidianos de nossa sociedade, do mais tangível ao mais
utópico. De qualquer forma, a Orquestração pode ser útil tanto àqueles que já iniciaram algu-
ma atividade e começaram a encontrar seu caminho de atuação, quanto àqueles que se sen-
tem sem saber por onde começar. De uma forma ou outra, é interessante observar a estratégia
126
VII Estratégia
proposta, criticá-la e complementá-la, e fundamental o momento de Articulação para que se
entenda a estrutura geral da estratégia e seus conceitos.
Os momentos da Orquestração:
1. Prelúdio: percepção do desconforto e vontade de ação
2. Articulação: alinhamento de conceitos, estratégia e formação da equipe
3. Plano de ação de aproximação
1. PRELÚDIO
Qualquer um, jovem ou idoso, pobre ou rico, com muitos anos de estudo ou sem nenhum,
pode passar pelo momento de criticar algo de seu cotidiano, a condição de seu bairro, a situ-
ação da rua onde viveu quando era mais jovem, etc. encontrando incoerências entre o que se
vive e o que se gostaria de viver. Passamos por este tipo de desconforto praticamente todos
os dias de nossas vidas, mas nem sempre percebemos os absurdos que nos envolvem, como
se estivéssemos viciados ou cegos para aceitar coisas com as quais definitivamente não con-
cordamos.
Como discutimos no capítulo sobre a sociedade distendida, este é o momento em que perce-
bemos a separação entre as experiências do viver cotidiano (como a que temos na cidade, nos
hospitais, nas escolas...) e a vontade que temos de experiências profundas da vida (como a de
que a cidade nos acolha, a saúde, o aprendizado...) e nos questionamos se na realidade estas
experiências de vida e viver não deveriam estar muito próximas, quase como uma coisa só,
de forma que cada dia vivêssemos profundamente o que a vida tem de melhor. Perceber que
ambos, o viver e a vida, estão de alguma forma afastados e não parecem tender a se aproximar
é um ótimo ponto de largada para alguma reação, onde você pode atuar como mediador.
Relembrando alguns exemplos práticos, podemos sentir este desconforto: quando nossos fi-
lhos não gostam da escola e sentimos que ela é mais uma prisão do que de fato um espaço
educativo; quando passamos horas no trânsito em nossas cidades para chegar ao trabalho e
horas para voltar, em transportes públicos precários e lotados; quando planos de saúde são
127
I Movimento
muito caros, a saúde pública é péssima e tudo que fazemos e comemos parece prejudicar nos-
sa saúde; quando tropeçamos nas calçadas mal cuidadas, não podemos olhar para os pássaros
ou para o céu e não há áreas agradáveis que nos acolham para encontrarmos nossos amigos;
quando trabalhamos horas a fio, todos os dias e não ganhamos o suficiente para adquirir o que
a sociedade diz que devemos ter e que na realidade nem achamos de fato que precisamos, ou
mesmo para comprar o mínimo que nossa família precisa... Cada um de nós tem seus próprios
desconfortos, que muitas vezes compartilhamos.
O Prelúdio é o momento em que ganhamos esta consciência e, ao invés de nos resignarmos a
aceitar fatos que não gostaríamos de aceitar e que nos fazem sofrer, nos propomos a agir para
mudar a situação. É claro que entre se propor a agir e de fato agir há uma série de dificuldades
que vão da disponibilidade de tempo – rara em tempos tão frenéticos como o nosso – para
além de nossas responsabilidades já assumidas, até saber por onde começar. Quantas vezes
não temos uma ideia excelente, uma vontade profunda de realizar algo, e acabamos deixando
de lado por um motivo qualquer?
Mas estamos aqui para não deixar isso acontecer. Fique tranquilo meu amigo, fique tranquila
minha amiga, anime-se, um mundo de grandes experiências está a sua frente e esperamos
ajuda-lo a encontrar o caminho de sua estratégia de ação. Se você está aqui conosco, você já
está realizando seu Prelúdio. Para percorrer o caminho até o fim, talvez você tenha que fazer
algumas mudanças no seu cotidiano, incorporando diversos momentos e dinâmicas que hoje
não realiza. Mas aconselhamos a tentar, mesmo que pareça difícil de início, a embarcar em tal
experiência, as transformações que pode fazer no mundo tendem a ser incríveis.
2. ARTICULAÇÃO
O passo inicial já foi dado, comecemos então a nos preparar. A Articulação busca ampará-lo
de todas as formas possíveis para que se sinta seguro de desenvolver sua própria estratégia.
• Forme a equipe
É muito importante que você não trabalhe sozinho como mediador, de forma que tenha sem-
128
VII Estratégia
pre com quem confrontar suas ideias e que esteja no mesmo barco que você. Idealmente, su-
gerimos uma equipe de três mediadores , que você pode encontrar principalmente entre seus
amigos e vizinhos, que compartilham com você os mesmos desconfortos e vontade de ação.
É muito possível que este time já tenha sido formado no Prelúdio, o que é muito saudável. A
construção coletiva desde o início do percurso é sempre mais rica, lembrando que cada mo-
mento da estratégia incorpora mais pessoas e mais interesses, de forma que é fundamental
permanecer aberto a novidades e modificações de percurso. Cuidado para não personificarem
o trabalho.
• Leiam a ‘Carta ao Mediador’ até o final
É importante que vocês entendam os conceitos, a intenção e a estrutura de cada passo estraté-
gico sugerido no VII. Não temos a menor pretensão de negar qualquer ação que esteja fora do
método apresentado, muito pelo contrário, encorajamo-los ao máximo inclusive para ampliar
e aperfeiçoar o próprio método, contudo cada momento de cada movimento tem uma razão
de ser sobre a qual, no mínimo, gostaríamos que refletisse e conscientemente incorporasse ou
não, afinal, a estratégia é sua, o VII é apenas um guia.
• Integrem-se à rede de mediadores
Outras pessoas já passaram por experiências semelhantes à que você está prestes a passar, de
diversas formas diferentes, desenvolvendo de projetos pontuais a estratégias completas de
intervenções em comunidades, nos mais diversos formatos. Procure estas pessoas e integre-se
à rede de mediadores na plataforma online do VII. Esta plataforma compila todas as informa-
ções, conexões e contatos necessários para seu trabalho, incluindo este texto.
Ao integrar-se à rede, poderá observar o que é possível realizar e conhecer pessoas que podem
auxiliá-lo em sua estratégia. Neste sentido, recomendamos que se busquem na rede as pesso-
as que serão os Monitores de seu trabalho de mediação. São pessoas que já tem experiência
com a estratégia e atuaram como mediadores, conhecendo-a não só em alguma profundidade
teórico-conceitual, mas principalmente prática, e podem ajudar você em orientação, suporte,
crítica e acompanhamento. É interessante que se crie um vínculo com o Monitor para que ele
129
I Movimento
conheça razoavelmente bem a situação e andamento dos trabalhos, por mais que possa atuar
de forma remota.
3. PLANO DE AÇÃO DE APROXIMAÇÃO
Concluímos a Orquestração com um Plano de Ação para o II Movimento, a Aproximação.
• Narrativa de Orquestração
As narrativas são importantes para contar a história do que aconteceu e está acontecendo no
bairro onde se resolveu atuar, mas são narrativas dos mediadores sobre a sua estratégia, pos-
teriormente é muito importante que a comunidade escreva sua própria história. As narrativas
serão importantes tanto para que se possa realizar uma avaliação posterior do percurso tra-
çado, quanto para futuramente apoiar novos mediadores em suas estratégias, em momentos
onde você poderá atuar como Monitor.
A narrativa de orquestração conta, brevemente, cada momento deste primeiro movimento: o
que os motivou a agir, quais desconfortos, como a equipe de mediadores se formou, como foi
o contato com o monitor, como foi o primeiro contato com a VII, criticas e comentários. Tudo o
que quiserem contar é bem vindo.
• Perímetro de aproximação
O VII propõe o desenvolvimento de estratégias na escala de bairros, entendendo que a comu-
nidade se desenvolve de diversas formas neste nível de proximidade, a escala das experiências
humanas, da pessoa. Pode-se variar bastante a dimensão do bairro, englobando de poucas
ruas a muitas quadras, de forma que cada estratégia se desenvolve de uma forma específica,
contudo, o importante é que se considere uma área coerente com a escala do sujeito, do per-
curso a pé, da justaposição próxima de experiências que irão ser propostas.
O perímetro de aproximação é a primeira delimitação espacial realizada na estratégia. É um
perímetro arbitrado pela equipe de mediadores, com base em seu conhecimento prévio do
bairro. É importante que os limites sejam prioritariamente barreiras urbanas físicas, como gran-
130
VII Estratégia
des avenidas, rios, linhas férreas, ou qualquer outra que separe áreas distintas. Muitas vezes se
percebe limites delimitados por diferenças de personalidade entre bairros. Nestes casos é pre-
ciso tomar cuidado em definir um perímetro de aproximação que não acabe segregando uma
mesma comunidade, assumindo-se ser diferentes por sua variedade de personalidades e usos.
Não se preocupe com o rigor deste perímetro, ele será superado por outros no decorrer da
estratégia. No momento, preocupe-se em definir a área que vão se aproximar, conhecer com
mais profundidade e analisar para dar início ao contato direto propriamente dito, não deixan-
do de observar com cuidado os bairros vizinhos também, eles terão papel importante nos
movimentos subsequentes.
É fundamental que se tenha este perímetro desenhado em um mapa básico com ruas e praças
que englobe parte do entorno do bairro de intervenção, de forma que possam marcar pontos,
eixos, percursos e todas as informações pertinentes ao movimento de aproximação. Esta leitu-
ra espacial do bairro será fundamental para toda a estratégia.
• Metas e objetivos
Leia o próximo movimento, entenda do que ele se trata e de acordo com as características do
bairro de intervenção, defina suas metas e objetivos para a Aproximação. Planeje seus passos,
o que considerar na deriva, o que registrar na visão seriada, quais leituras e mapeamentos
realizará e onde conseguirá as informações.
As metas serão, a princípio, cumprir este plano e levantar o que se planejou levantar, mas parte
fundamental da aproximação é baseada em aprofundar leituras e, a partir do conhecimento
do bairro, encontrar informantes e mapear os pilares, atividades cuja dinâmica e tempo não se
pode prever com precisão.
• Cronograma
Assim, com base nos objetivos e metas de deriva, visão seriada e levantamentos; e na estimati-
va de tempo para aprofundar a leitura, encontrar os informantes e mapear os pilares, pode-se
estipular um cronograma de ação. Todos os cronogramas são importantes para que se coloque
131
I Movimento
a ação em uma linha do tempo, de forma que não se perca a noção de estar caminhando a um
objetivo.
O cronograma de aproximação depende muito das características do bairro de intervenção,
suas dimensões e complexidades, e da disponibilidade da equipe de mediadores, podendo
tomar de uma semana a mais de oito.
Feche o Plano de Ação de Aproximação em um documento único composto das partes descri-
tas e de quais mais considerar adequadas. Feito isso, partimos para o movimento de Aproxima-
ção ao bairro de intervenção, o II Movimento.
ii movimento: aproximação
135
Na Aproximação, começamos a nos aproximar de fato do bairro, buscando compreendê-lo
com um olhar mais cuidadoso e analítico. Muitas vezes moramos ou trabalhamos por muito
tempo em uma área e nunca olhamos com calma para ela ou acabamos parando de olhar,
quando se torna muito “familiar”. Quando fazemos a Aproximação, passamos a prestar atenção
em elementos que não percebíamos antes, que aos poucos nos ajudam a compreender nosso
desconforto, e em seguida a encontrar as pessoas com quem vamos trabalhar na intervenção.
Este movimento parte do I Movimento, o Prelúdio, aquele onde nos preparamos para começar
a atuar e formamos a equipe de mediadores e monitores. Conclui-se a aproximação quando
temos levantadas as informações sócio-econômicas e urbanas do bairro; levantamos e mape-
amos as experiências que já foram e são desenvolvidas pela comunidade; e, principalmente,
mapeamos os “pilares” do bairro, que são as pessoas que se destacam pela vontade de inter-
venção, pela facilidade de comunicação e articulação.
A Aproximação propõe o envolvimento profundo dos mediadores na percepção da área, as-
aproximação
136
VII Estratégia
sim, em alguns momentos sugere-se aproximação mais sensível, mais racional e analítica em
outros, em outros, silenciosa, comunicativa em outros, etc. A soma dos momentos propostos
busca um envolvimento integral dos mediadores ao espaço que estão se propondo a intervir,
favorecendo o conhecimento empírico de situações sobre as quais vão discutir com a comu-
nidade posteriormente.
Os momentos da Aproximação:
4. Sensibilização
5. Leitura do bairro
6. Refinamento e interação
7. Plano de ação de contato
4. SENSIBILIZAÇÃO
A sensibilização é baseada nos conceitos de deriva; visão seriada; e etnografia. Percorre-se o
bairro observando alguns elementos, dando tempo ao tempo, buscando ambientar-se naque-
le desconforto que deu início a estratégia. Como você provavelmente já deve ter algum víncu-
lo com a área – seja por ser morador, trabalhar ou por qualquer outro motivo – é fundamental
observá-lo com um olhar diferente do que está habituado antes de passar ao momento de
Leituras.
Sugere-se que este momento seja realizado em duas partes na sensibilização do espaço de
uso público: a Deriva, profundamente sensível e descritiva, e a Visão Seriada, mais analítica e
com muitos registros. Uma terceira parte poderia envolver a sensibilização do espaço privado,
lembrando ideias mais complexas de etnografia e do “urbenauta”. Contudo, não nos parece
fundamental para a estratégia este tipo de abordagem, principalmente considerando as po-
tenciais dificuldades em se executar tal forma de aproximação.
• Deriva
Debord chamou a deriva de uma “técnica de passagem rápida por ambiências variadas”. Diz
91. Debord, Gui. Teoria da deriva
137
II Movimento
que é oposto à noção de viagem ou passeio por seu reconhecimento de efeitos da nature-
za do espaço na pessoa. Esta se entrega livremente ao terreno, sem qualquer tipo de roteiro,
deixando-se levar pelas experiências que encontra nele: seus micro-climas, seu movimento
e turbilhões, seus centros de atração ou afastamento, etc. Estas experiências é que formam a
imagem simbólica da área, de forma que “um bairro urbano não é determinado somente pelos
fatores geográficos e econômicos, mas pela representação que seus moradores e os de outros
bairros têm dele”.
Quem faz?
A deriva pode ser realizada por um mediador individualmente, mas é muito mais interessante
realizá-la no grupo de mediadores. Quando realizada em duas ou três pessoas, as discussões
posteriores sobre sua experiência tendem a ser mais proveitosas e chegar a conclusões mais
profundas.
Quanto tempo?
Sugere-se que ela seja realizada em várias horas em um ou alguns dias, de preferência sem
preocupação com horário de término. A conclusão da deriva está em quando os mediadores
sentem que já sentiram o suficiente, e não quando um relógio toca seu alarme ou quando
chegamos a algum lugar específico do espaço.
Qual perímetro?
Definimos o perímetro de aproximação, mas é importante não olhar com muita profundida-
de para o mapa antes de realizarmos a deriva. O perímetro nos ajuda a reconhecer os limites
do terreno onde vamos derivar, de maneira que precisamos apenas de referências para saber
quando chegamos a seu limite. Este é um dos motivos pelos quais sugerimos definir estes
limites em importantes barreiras urbanas, pois elas são mais fáceis de reconhecer quando che-
gamos a elas derivando. Assim, se nos depararmos com estes limites, devemos tomar uma
decisão para onde continuar: se derivamos brevemente fora do perímetro, o que pode ser
interessante para vermos os problemas causados pela barreira e as diferenças com os vizinhos,
ou voltamos para o interior do bairro através de quais espaços.
138
VII Estratégia
Onde começo?
Pode-se partir de qualquer ponto no interior do bairro. Uma boa sugestão é tomar o transporte
público e descer em algum ponto desconhecido. Mesmo quando o bairro é muito familiar aos
mediadores, escolham um ponto de partida relativamente arbitrário, não pensem muito em
motivos para partir deste ou daquele lugar.
O que faço?
Primeiro, fique em silêncio, observe com carinho, ouça os sons, sinta os cheiros, as temperatu-
ras, não registre ou tire fotos, procure expandir seus sentidos. A sensibilização exige tempo e
cuidado com seus próprios sentidos. Faça a pé, dê tempo a seu percorrer. A tendência de nossa
sociedade é de executar todas as tarefas de forma acelerada, não se deixe levar por isso. Ande
devagar, deixando-se passar pelas experiências que o bairro lhe traz.
Perceba o que está acontecendo com você, o que aquele lugar lhe diz e lhe faz. Pense se fosse
um idoso, um cadeirante ou uma criança, como aquele espaço poderia lhe afetar. Para onde o
espaço te convida ou não a ir? Desbrave, deixe as sensações de vontade, curiosidade ou rejei-
ção por outros espaços lhe guiarem os passos. As encruzilhadas são suas amigas, seus sentidos
dirão qual caminho tomar. Sente em bancos, observe o movimento, veja as pessoas que vem e
vão e que ficam. Pare em pontos curiosos, observe com mais calma.
• Visão Seriada
Após a sensibilização pela deriva, passamos a uma sensibilização mais criteriosa e baseada em
registros. Buscamos em Cullen a ideia de Visão Seriada, quando diz que “embora o transeunte
possa atravessar a cidade a passo uniforme, a paisagem urbana surge na maioria das vezes
como uma sucessão de surpresas e revelações súbitas”, entendendo a cidade como “uma ocor-
rência emocionante no meio-ambiente”.
Sendo assim, no mesmo passo lento e sensível da deriva, a visão seriada vai percorrer as ruas
e espaços do bairro com um olhar cuidadoso. Contudo, agora utilizaremos o perímetro de
aproximação não apenas em seus limites, mas como traçado e desenho urbano. Levem o mapa
92. Cullen, Gordon. Paisagem Urbana
139
II Movimento
com vocês quando forem fazer a visão e marquem tudo quanto possível nele: fotos, anotações,
contagens, vídeos, etc. e o percurso que fizeram.
A visão seriada busca registrar a sensibilização do bairro pelos mediadores, para que depois
sirva de subsídio para discutirem entre si e com os pilares sobre a situação das experiências
cotidianas de onde estão partindo.
O que olho?
Preste atenção em pontos, eixos e ruas típicas que simbolizam a personalidade de uma deter-
minada área do bairro. Olhe os espaços públicos, ruas, calçadas, praças, parques, como são,
como estão cuidadas, como são usadas, qual a sensação que dão? Encontre rótulas sociais no
bairro: bares, padarias, esquinas, praças, lugares onde as pessoas se concentram e onde há
bastante movimento. Pare nelas e observe o movimento.
Como registro?
Anotações nunca são demais, mas precisam ter um motivo de ser. Podem dividir o trabalho
e enquanto um marca os pontos e percurso no mapa, outro vai anotando informações sobre
estes pontos e o que encontraram no percurso.
Fotografias ajudam a captar momentos e situações específicas. Olhe para as calçadas e imagi-
ne como se fosse um quarto formado por piso, teto, a parede dos edifícios e a parede da rua.
Esta metodologia foi desenvolvida na intervenção das calçadas de Nova York, com projetos
coordenados pela arquiteta Sky Duncan. Tire fotos destes “quartos” que simbolizem como é
a personalidade das calçadas das áreas do bairro, prestando atenção em cada um dos quatro
planos.
Fotografe o movimento, quem está no espaço e o que estão fazendo, o que está acontecendo.
Detalhes de espaços específicos e visões amplas. Preste atenção em cheios e vazios, locais
mais apertados e mais abertos. Que visuais a sequencia destes espaços e das construções que
existem nele geram? Registre essas visuais. O que chama atenção?
Outra forma de registro interessante são os vídeos. Uma câmera posicionada estática durante
140
VII Estratégia
algum tempo em um ponto pode registrar informações interessantes quanto a seu uso, sensa-
ção e seu fluxo. Pode-se acelerar posteriormente esse vídeo e observar o aumento e redução
do movimento.
Contagens também podem ser interessantes. Chegando a um ponto que se reconhece como
importante do bairro, podem-se medir fluxos e permanências de qualquer elemento significa-
tivo para se observar aquele local. As contagens não precisam, neste ponto, ser feitas com uma
amostragem significativa. Como estamos apenas buscando a sensibilização do local, conta-
gens simples, com períodos de um a cinco minutos em alguns momentos diferentes, nos são
suficientes.
Jan Gehl trabalha muito com contagens. Em suas intervenções urbanas, invariavelmente reali-
za medições na situação original, registrando o fluxo e a permanência de pessoas, crianças,
idosos, carros, etc. bem como a quantidade de pessoas conversando, sentadas ou realizando
alguma atividade específica, e compara com as mesmas contagens feitas depois de realizada a
intervenção. Suas conclusões são muito interessantes, verificando aumentos ou reduções de
determinados tipos de comportamento. Para nós, buscamos ter acesso a esse tipo de análise
em nossos bairros.
5. LEITURA DO BAIRRO
Tendo realizado as primeiras sensibilizações do espaço real, passamos a uma leitura mais téc-
nica do bairro, baseada em informações urbanísticas e socioeconômicas do espaço. O intuito
deste momento não é esgotar o levantamento das informações do bairro, mas situar de for-
ma concisa os mediadores em dados que muitas vezes nos passam despercebidos mesmo se
vivemos o bairro todos os dias. Estes dados serão fundamentais para darem referências aos
indicadores desenvolvidos com os pilares no movimento seguinte.
É importante ressaltar que se sugere que o aprofundamento dessa leitura seja realizado poste-
riormente pela e com a própria comunidade, podendo ser desenvolvido dentro de grupos de
trabalho e até em projetos pedagógicos de escolas da região. No momento, estamos apenas
nos aproximando, não precisamos de leituras excessivamente profundas.
93. Gehl, Jan. Cities for people; Life between buildings
141
II Movimento
• Informações gerais e dados sociais
Qual a história do bairro? O que havia antes no local? Quem o fundou? Como foi o loteamento
e qual a história dos primeiros habitantes?
Quais os principais usos e qual a personalidade do bairro? Quais suas condições sociais? As
pessoas que ali moram, trabalham onde? E as pessoas que trabalham ali, moram onde? Exis-
tem pesquisas de Origem e Destino para informar sobre os deslocamentos?
Quais as principais instituições que existem no bairro? Há associação de moradores, Igreja,
centro comunitário, ONGs, ou algo assim?
O que podemos levantar de dados estatísticos sobre a população do bairro? Existem Censos
(IBGE) que nos digam sobre sua demografia? É um bairro mais jovem ou mais idoso? Podemos
ter informações sobre as transformações do bairro ao longo das décadas?
Um dado fundamental é quantas pessoas moram e quantos domicílios existem no bairro. Se
possível, é interessante sabermos também quantas pessoas trabalham ali.
Qual a distribuição de renda e diversidade socioeconômica do bairro? É uma área socialmente
vulnerável ou apresenta ilhas de vulnerabilidade? Existem levantamentos como o Índice Pau-
lista de Vulnerabilidade Social (IPVS, do SEADE), que busque nos mostrar isso no território?
Quais outros dados são importantes sobre o bairro? Pesquisando sobre ele, o que podemos
levantar de peculiaridades? Como o bairro está se transformando? Como ele era há alguns
anos e décadas?
• Mapeamento sensível
Após a sensibilização, temos informações para montar nossos mapas sensíveis, que podem ser
sobrepostos como camadas e começar a contar a história sensível do bairro. É sempre interes-
sante pensar, antes de começar a montar as camadas, no que cada cor de post-it, formato e
cor tachinha representam. Isso vai nos ajudar muito em uma leitura mais direta e simples dos
mapas quando estiverem com muitas informações.
142
VII Estratégia
Identificamos ruas e praças importantes que conhecemos. Podemos marcar com tachinhas
coloridas ou como acharem mais conveniente os espaços e locais que merecem destaque,
eventualmente fazendo anotações em post-its colados ao mapa.
Localizamos o que levantamos na visão seriada. Separando em post-its de cores diferentes as
informações mais objetivas, por exemplo, “bueiro aberto”, “posto policial”, “lixo espalhado”, etc.;
nossas sensações positivas, como “praça acolhedora”; e sensações negativas, como “rua muito
escura à noite”.
Um elemento fundamental de ser ressaltado são as rótulas sociais e pontos notáveis. Isso nos
será básico para as posteriores sugestões de experiências. De forma semelhante, mas talvez
em cores diferentes, sejam mapeados aqueles pontos que poderiam ser rótulas e locais inte-
ressantes de encontro da comunidade do bairro, mas que por algum motivo não o são. Talvez
seja o caso da maior parte das construções públicas ou de alguma relevância pública.
Podemos fazer fotomontagens, colar fotos sobre os mapas, desenhar círculos de diâmetros
variados para representar diferenças de fluxos e permanências de pessoas e desenhos para
representar a morfologia ou outras informações que acharmos significativas. Neste sentido, é
interessante ter uma imagem de satélite do bairro também.
O céu é o limite para o mapeamento sensível. Mesmo se você não for urbanista, geógrafo ou
algo assim, divirta-se.
• Mapeamento técnico
Os mapeamentos técnicos são principalmente levantados junto a órgãos públicos. A princí-
pio, os mediadores não precisam gerar estes mapas, o que facilita bastante o trabalho. Mas
pesquisar por eles já pode ser um desafio. Assim, procure bastante na internet, mas entre em
contato também com secretarias de urbanismo da prefeitura ou outras que possam ter estes
mapeamentos. O Monitor pode auxiliá-lo a encontrar as fontes destas informações.
Inserção política. Ele faz parte a qual distrito, subprefeitura de qual cidade? Esta informação
é importante para sabermos quais interlocutores públicos e quais legislações dizem respeito
143
II Movimento
ao bairro.
Zoneamento. Quais é a legislação que incide sobre o território em questão? Algumas cidades
possuem leis de zoneamento que regulam os parâmetros de uso e ocupação do solo, inter-
ferindo em maior ou menor grau nas formas de construção da cidade. Estes mapas possuem
várias cores para as diferentes zonas e representações para eixos, informando o que se pode e
o que não se pode fazer. Este mapa é importante, pois nos diz quais as diretrizes públicas para
o desenvolvimento de experiências cotidianas em nossos bairros.
Rede de equipamentos. Temos mapeados os pontos de estabelecimentos de saúde, educação,
cultura, assistência social e outros que possam ser importantes. É interessante dividir a repre-
sentação entre públicos e privados e em outros critérios que possam ser convenientes – por
exemplo, no caso de escolas públicas: círculos para estaduais e quadrados para municipais.
Este mapa é fundamental e, mesmo que seja difícil de encontrá-lo ou montá-lo, é importante
que procure ser o mais completo possível. Ele vai ser básico para observarmos carências de
equipamentos da comunidade e encontrarmos quais são as instituições que supostamente
são responsáveis por gerar determinadas experiências, bem como desenvolvermos projetos
que integrem suas potencialidades através do território.
Eixos de circulação e transporte. Quais os equipamentos de transporte que suprem as deman-
das do bairro? Possui linhas de trem, metro, ônibus? Por onde passam essas redes? Este mapa
nos ajuda a entender os fluxos de entrada e saída e internos do bairro, compreendendo suas
conexões com outras áreas e as condições de deslocamento na cidade.
Recursos hídricos. Onde passam rios e córregos no bairro? Mesmo que estejam canalizados
e tamponados, as informações deste mapa são importantes para sabermos como as águas
escorrem e qual a bacia hidrográfica estamos inseridos. Isso será interessante não apenas do
ponto de vista de responsabilidade ambiental, como também para possíveis desenvolvimen-
tos de experiências com a água ou nas margens dos rios, práticas pedagógicas sobre recursos
hídricos e responsabilidade, opções alternativas de transporte, etc.
144
VII Estratégia
6. REFINAMENTO E INTERAÇÃO
Articulando os momentos anteriores de sensibilização e leitura, temos bases para voltar a inte-
ragir com o bairro e podemos discutir um pouco melhor sobre ele. Neste momento, buscamos
completar as informações que percebemos deixar passar despercebidas ao longo da leitura e
da sensibilização, bem como mapear os pilares do bairro.
• Refinamento
Antes de voltar a percorrer o bairro, planeje suas ações. Quais informações faltaram serem
levantadas; quais pontos deixamos de visitar; e quais pontos pode ser interessantes de serem
conhecidos? O que vamos revistar? Percursos agora são rotas. Por onde vamos passar? Impor-
tante fazer percursos, mesmo que curtos, pelos bairros vizinhos. Lembre-se sempre de que o
bairro de intervenção não é uma ilha isolada.
Os momentos anteriores eram de muita observação, agora entraremos em interação direta
com as pessoas do bairro. Nosso foco começa a ser este contato. Para começar, sugere-se que
sejam procurados os “olhos” do bairro, que serão nossos primeiros informantes. São pessoas
que permanecem presentes e olhando o espaço público, como guardas, comerciantes, pesso-
as sentadas em praças, taxistas, etc.
Para isso, precisamos nos planejar: pensem nas rótulas sociais que mapearam e onde mais po-
demos encontrar estes “olhos”. Como vamos abordá-los? O que vamos dizer? Quais as nossas
perguntas? Neste ponto da estratégia em que passaram pela sensibilização e leitura, só vocês,
mediadores, que conseguem encontrar as respostas para estas perguntas, dependendo do
que já sabem do bairro.
Nossos objetivos são:
1. Levantar informações e sensações do bairro que não tínhamos detectado antes;
2. Encontrar quais experiências já acontecem no bairro;
3. Encontrar quem são os “pilares”, potenciais líderes comunitários e articuladores da co-
munidade.
94. Ver Jabobs, Jane. Morte e vida de grandes cidades
145
II Movimento
Voltamos a percorrer o bairro com as metodologias de visão seriada e completamos as in-
formações que faltaram em nossos levantamentos e mapeamentos, completando em nossas
bases.
• Interação
O contato com as pessoas que são os “olhos” do bairro, aquelas que acompanham seu dia-
-a-dia. Agora, com muita conversa. Pensem em como registrar, sem que pareça que estão
aplicando um questionário. É melhor que sejam abordagens leves e despretensiosas. Estas
pessoas, que atuarão como nossas informantes, geralmente acompanham o que acontece na
região, seja pelo contato com muitas pessoas, seja por serem vetores importantes de difusão
de informação.
Em primeiro lugar, procuramos com elas informações que ainda não levantamos sobre o bair-
ro, inclusive sua opinião particular; em segundo buscamos mapear as experiências que já são
desenvolvidas, como festas tradicionais em praças, eventos de escolas, organização de mora-
dores, etc. Sobre estas experiências, precisamos saber onde ocorrem, quando ocorrem e quem
as promove.
Finalmente, em terceiro lugar podem nos contar sobre pilares, caso ainda não os tenhamos
encontrado no levantamento de informações sobre o bairro. Pilares são pessoas que muitas
vezes já são líderes comunitários ou desempenham este papel informalmente. Não são neces-
sariamente extrovertidas, mas tendem a ser críticas, muito comunicativas e ativas. De maneira
geral estão envolvidas com as experiências que já existem no bairro, podendo fazer parte de
qualquer uma das redes que forma a comunidade através de vínculos:
1. Pela moradia.
2. Pelo trabalho. Seja em entidades públicas, privadas ou membros do governo.
3. Pela educação, através de entidades educativas.
4. Pelo uso diversificado. Como lazer ou outros.
146
VII Estratégia
É interessante que foquemos em encontrar pilares em cada uma destas redes, de forma que
tenhamos interlocutores vinculados às diferentes características de experiências existentes no
bairro.
7. PLANO DE AÇÃO DE CONTATO
Concluímos a Aproximação com um Plano de Ação para o III Movimento, o Contato.
• Narrativa de Aproximação
A narrativa de Aproximação é mais completa e densa do que a de Orquestração, mas lembre-
-se de redigi-la de forma sucinta. Ela apresenta não apenas a visão dos mediadores sobre como
foi desenvolvido o Movimento, quais dinâmicas e escolhas fizeram, como também compila as
informações sobre o bairro, levantadas ao longo dos momentos.
Contudo, é interessante que a narrativa de aproximação não seja apenas um levantamento
distanciado. Utilize as informações que levantaram para discutir sobre o bairro, mostrando se
estas informações reforçam ou contradizem o que sentiram sobre ele e levantando hipóteses
sobre os motivos.
• Mapeamentos sensíveis e técnicos
A narrativa de Aproximação é reforçada pelos mapeamentos técnicos e sensíveis desenvolvi-
dos. É interessante que se complete os mapas com explicações e legendas, referenciando as
discussões nos textos da narrativa.
• Registro de pilares
O II Movimento se encerra antes de realizarmos um contato formal e extenso com os pilares
que levantamos, este será o principal intuito do movimento seguinte. Aqui, chegamos ao re-
gistro de quem são os pilares que nos foram citados na aproximação, ressaltando que este le-
vantamento com certeza será ampliado ao longo dos movimentos seguintes, a começar pelas
sugestões dos próprios pilares.
147
II Movimento
Se possível, é interessante que saibamos em qual ou quais das quatro redes eles estão vincu-
lados e possamos mapeá-los pelas ruas ou instituições nas quais estão relacionados, de forma
que possamos observar se estamos lidando com pilares espalhados no bairro ou concentrados
em uma área ou outra. Mas estes registros precisam também de telefones ou e-mails, para que
se possa entrar em contato com estas pessoas no movimento seguinte.
• Metas e objetivos
Leia o III Movimento, entenda do que ele se trata e, de acordo com o que aprenderam na
Aproximação, defina suas metas e objetivos para o movimento de Contato. Vocês já devem ter
uma ideia bastante clara dos próximos passos, de onde encontrar os primeiros pilares, como
caminhar com eles para as discussões e sensibilizações conjuntas do bairro, quais questões já
querem encaminhar, etc.
• Cronograma
Assim, com base nos momentos de vinculação e avaliação, definam um cronograma básico.
Como as apresentações e visitas vão depender muito mais das agendas dos pilares e de quan-
tos são, então não conseguimos estipular exatamente o tempo que tomaremos. Mas podemos
contar com pelo menos um mês para o Contato.
Lembrando que todos os cronogramas são importantes para que se coloque as ações em uma
linha do tempo real, não deixando a estratégia se perder e dando possibilidade do Monitor
verificar como estão os andamentos dos trabalhos.
iii movimento: contato
151
O Contato é um movimento crucial para a estratégia. Assim como ampliamos a equipe no
primeiro movimento, que passou a contar com alguns mediadores e pelo menos um monitor,
aqui vamos ampliá-la buscando agrupar ou nos incorporando a grupos de pilares em uma
equipe única de trabalho. Pilares são pessoas que, assim como os mediadores, têm alguma
consciência ou sentem o afastamento entre as experiências que passamos no dia-a-dia, gera-
das por instituições como a escola, a polícia ou os sistemas de saúde, e aquilo que realmente
gostaríamos de ter como experiência de vida, como aprendizado, segurança e saúde.
Contudo, Pilares não são apenas pessoas que percebem este afastamento, mas de forma ge-
ral são também pessoas que buscam atuar em seus núcleos sociais de alguma maneira para
reverter esta situação. Sendo assim, são identificadas como líderes comunitárias ou represen-
tantes naturais das vontades da comunidade. Sem eles, nosso trabalho não tem base, nem
legitimidade para seguir em frente. Eles são fundamentais para que transformações ocorram
no bairro, uma vez que conhecem a situação da área mais profundamente; muitas vezes já tive-
rem experiências práticas de intervenção, conhecendo problemas e facilidades; de forma geral
contato
152
VII Estratégia
são bem articulados e relacionados, o que potencializa encontrarmos outros interlocutores
fundamentais na comunidade; e são vistos como vozes legítimas de ação.
Não podemos nunca achar que nosso trabalho é maior do que o deles. Enquanto estamos
buscando incorporar um raciocínio estratégico de transformação integral da situação do bair-
ro, eles possuem o conhecimento de causa da situação e seus laços são mais profundos que
os nossos. Nossos esforços devem se somar, logo, precisamos explicar com clareza aos pilares
o que estamos fazendo, quais nossos objetivos e nossa forma de ação. Precisamos ouvir deles
todas as críticas e sugestões com abertura para modificarmos nossa proposta, inclusive ao
próprio VII, se necessário. Nenhuma rigidez nos ajuda.
É interessante observar que temos uma divisão clara de posições. O pilar é essencialmente
ativo, sua gana é por ver as coisas acontecerem, enquanto o mediador é essencialmente estra-
tégico e planejador. Estes perfis dependem das características da personalidade e variam de
pessoa para pessoa, de situação para situação, de forma que é preciso agrupar diferentes perfis
que se complementem para dar prosseguimento ao trabalho completo. Importante observar,
também, que por vezes os pilares podem parecer não dar atenção à estratégia, mesmo que
não a estejam desvalorizando. Sua vontade de ação pode fazer com que seu foco esteja mais
no momento presente do que no objetivo global. Isso não é um problema, a função do media-
dor é ir sugerindo de momento em momento os próximos passos.
Sendo assim, o III Movimento termina quando consolidamos a equipe de mediadores, monito-
res e pilares em um plano de ação único de ação, quando passaremos ao 2º Ato da estratégia,
momento em que iniciamos profundamente a intervenção na comunidade no Movimento de
Difusão, o IV Movimento.
Os momentos do Contato:
8. Apresentação
9. Alinhamento
10. Avaliação da situação do bairro
11. Plano de ação de difusão
153
III Movimento
8. APRESENTAÇÃO
Você acabou de completar a Aproximação, já conhece um pouco melhor o bairro e tem subsí-
dios mais completos para discutir sobre ele. Da mesma forma, mapeou alguns pilares conhe-
cidos no perímetro de aproximação, agora é hora de entrar em contato com eles, conhecê-los,
se apresentar e introduzi-los à estratégia que está começando a desenvolver.
Mesmo que já tivesse informações sobre alguns pilares antes de realizar a Aproximação, é im-
portante que a realize para mapear aqueles que desconhecia. Muitas vezes o impulso para
começar a desenvolver a estratégia pode partir da iniciativa de um pilar, seja querendo realizar
a intervenção ele mesmo, seja incentivando outros mediadores, como você, a fazê-lo. Nestes
casos, aproveite o contato do primeiro pilar para que através dele possa encontrar outros. Pi-
lares geralmente se conhecem.
É fundamental notar que pilares podem ter interesses e posições políticas distintas, muitas
vezes até conflituosas. É preciso tomar cuidado para não potencializar algum tipo de atrito que
desvirtue o desenvolvimento da estratégia. Procure ter uma boa interlocução com todos os
lados. Caso não consiga trazê-los para o diálogo em uma equipe única, pense em criar alguns
grupos de trabalho distintos, com focos mais específicos.
• Visita
Entramos em contato com os pilares e marcamos uma conversa, primeiro com cada um indi-
vidualmente. Apresentamo-nos, contamos sobre nossa angústia inicial para introduzir o que
nos motivou a fazer o que estamos fazendo. Explicamos como funciona a estratégia que es-
tamos desenvolvendo, a aproximação que já realizamos e perguntamos sobre a experiência e
percepção dele do bairro.
Nossa maior função neste momento é ouvir tudo quanto possível, procurando entender as
motivações de suas ações, as facilidades e dificuldades de execução do que realizou na comu-
nidade, e encontrar outros pilares e forças sociais importantes de ação na região, bem como
o relacionamento com bairros vizinhos. Impossível prever como transcorre a conversa. Não se
prenda a roteiros.
154
VII Estratégia
Fundamental concluir a conversa procurando encaminhar a proposta de trabalharem juntos e
formarem um grupo de intervenção com outros pilares, caso já não exista, ou dos mediadores
se incorporarem a grupos já existentes. Explicamos nosso objetivo, a busca pelo desenvolvi-
mento de autonomia da comunidade e o projeto político-pedagógico do bairro, explicamos a
metodologia na qual estamos baseados e como funcionam os seis movimentos.
Não é caso de aprofundarmos muito em detalhes na conversa individual com os pilares sobre
nossa proposta de encaminhamento nos três movimentos seguintes da estratégia. Antes, é in-
teressante realizar um encontro conjunto entre vários pilares, lembrando-se de tomar cuidado
com suas potenciais desavenças, e neste grupo expor a proposta de trabalho.
• Ampliação do grupo
Pilares muitas vezes conhecem outros pilares que não conhecemos. Quanto maior o grupo,
mais força e energia temos disponível para que o grupo de trabalho seja efetivo. É interessante
buscarmos completar esta equipe, prestando atenção por um lado se estão presentes pilares
de todas as áreas do bairro e do outro se estão presentes pilares cujo vínculo é formado por
uma das quatro redes que aqui consideramos.
Caso não haja algum representante público responsável pelo bairro, como um subprefeito,
pode ser interessante que o grupo formado por mediadores e pilares entre em contato com
este. Interlocução com o poder público será fundamental em uma série de momentos, é indis-
pensável, então, saberem quais são os canais abertos para participação da população e rela-
cionamento com o governo, seja do ponto de vista político, administrativo ou financeiro para
execução de projetos.
9. ALINHAMENTO
Sugere-se que se alinhe, da melhor maneira possível, a forma como os participantes do grupo
formado por pilares e mediadores percebem o bairro. É importante que todos saibam da posi-
ção de cada um, mesmo que sejam diferentes, de forma a encontrarem um discurso único que
possibilite consolidar um plano de ação. Os momentos que se sugere são semelhantes àqueles
155
III Movimento
realizados exclusivamente pelos mediadores no II Movimento.
• Percepção
Percorram o bairro, de maneira semelhante à sugerida na deriva, mas desta vez com os pilares
e ouvindo suas opiniões sobre cada elemento e espaço no bairro. Os diálogos que podem
surgir entre eles e as pessoas nas ruas podem ser muito enriquecedores e interessantes, princi-
palmente com aqueles que em outro momento chamamos de “olhos” da rua.
Converse bastante, observe muito, ouça muito, anotem e registrem. Se possível, utilizem os
recursos apresentados pela visão seriada para registrar em mapas e fotos as discussões que
podem surgir. Este material será muito importante para posteriormente sintetizarem em gru-
po quais são as primeiras prioridades, os planos que desenvolverão e a experiência piloto de
difusão.
• Concepções
O alinhamento da percepção do bairro não é para ser uma discussão sobre “o bairro que que-
remos”. Cuidado para não caminharem neste sentido. Esta resposta só poderá ser alcançada
posteriormente pela comunidade como um todo, do contrário, não será legítima. Todo o intui-
to do trabalho caminha para esta autonomia e deliberação coletiva da comunidade, buscando
pelo projeto político-pedagógico no final do processo. Sendo assim, atente-se que o momento
atual é de afinar os discursos entre a equipe sobre o desconforto e a sensação que cada um
tem do bairro.
Neste sentido, é importante desenvolver gradualmente com os pilares os consensos sobre a
importância da unanimidade na deliberação da comunidade, a avaliação e a escala de parti-
cipação, alinhando intenções que caminhem no sentido de aprofundar o significado e legiti-
midade das experiências que serão desenvolvidas. Nem todo pilar, assim como nem todo me-
diador, tem necessariamente a concepção de que é preciso buscar a coesão da comunidade, a
participação do máximo possível de seus membros, que estes podem ser desde moradores até
trabalhadores, pois todos compartilham o mesmo tempo e espaço. Se esta ideia não estiver
clara e afinada, é preciso discuti-la e encontrar o consenso.
156
VII Estratégia
Qualquer estratégia baseada na utilização da comunidade como mero recurso de legitimação
para alguma ação, acaba por reproduzir as mesmas experiências de distensão contra as quais
deveria lutar, perdendo seu propósito fundante. Da mesma forma, busque, com cuidado e pa-
ciência, discutir outras questões e conceitos que lhe pareçam fundamentais, buscando afinar
visões sobre as quais não pode haver muita discrepância para que o grupo tenha coesão .
• O bairro
O que é o bairro? Após alinharmos a percepção e alguns conceitos fundamentais, é preciso
entrar em acordo sobre o que é acreditamos dar corpo ao bairro. Neste sentido, precisamos
definir com os pilares, no mínimo:
1. O perímetro que usaremos para a difusão, que provavelmente será diferente daquele
que usamos para a aproximação. Este perímetro, definido com os pilares, deve dizer res-
peito à identidade e unidade do bairro como espaço de uma comunidade. Será dentro
deste perímetro que vamos propor as experiências no movimento seguinte e as formas
de avaliação do impacto que estão gerando.
2. Qual acreditamos ser a identidade do bairro, baseados em sua história e características
específicas. Esta resposta será muito importante para quando formos definir a proposta
das primeiras experiências no movimento de difusão. Uma vez que a experiência, para
ser significativa, precisa ter continuidade e ser apropriada pelo sujeito que a vivencia,
é fundamental buscarmos aprofundar e aprimorar cada vez mais a busca por envolver
este sujeito através de suas próprias especificidades.
3. Para além dos contornos definidos no perímetro, quais são os vizinhos do bairro e onde
ele está inserido? Muitas vezes, uma comunidade que começa a ser muito coesa, mas
desconsidera o que há fora dela, como se o resto da cidade lhe fosse estranho, acaba
por gerar uma vontade de isolamento que desconsidera a própria essência da cidade
como espaço de contato da diversidade, criando até movimentos como os NIMBs (“not
in my backyard”). Procurando entender os vizinhos, buscamos não incorrer neste tipo
de isolamento.
4. Procuramos identificar quais são as características e de quem são compostas as redes
157
III Movimento
sociais formadas por vínculos específicos, que somadas e justapostas constituem a
comunidade. A princípio, buscamos entender estas redes como aquela formada por
vínculos de moradia, os moradores; por vínculos de trabalho, os trabalhadores, sejam
empregados ou empregadores; por vínculos de educação, sejam aqueles que estudam
quanto aqueles que trabalham com educação (esta rede terá uma importância especí-
fica, por isso é diferente da formada pelo trabalho); e aquela formada por vínculos mais
fluidos de usos diversos, seja lazer, comércio, serviços, ou outros.
10. AVALIAÇÃO DA SITUAÇÃO DO BAIRRO
Após alinharmos nossas percepções, intenções e concepções sobre qual bairro estamos fa-
lando, realiza-se pela equipe de mediadores e pilares a avaliação da situação do bairro. Este
momento busca primeiramente mapear a situação atual das experiências que já são ou foram
realizadas e desenvolver critérios e indicadores de verificação. Esta buscará manter acompa-
nhamento contínuo por um lado do envolvimento da comunidade (lembrando-se que a inten-
ção reside na busca pelo máximo envolvimento) e por outro das transformações geradas em
decorrência direta ou indireta das experiências propostas.
Alguns indicadores são fundamentais para avaliarmos a legitimidade e dimensão da transfor-
mação que está sendo gerada. Por exemplo, um dos grandes problemas na interlocução entre
o poder público e a sociedade civil é que muitas vezes os representantes desta sociedade, or-
ganizados em associações ou em outra forma institucional, não contam com a legitimidade da
comunidade que dizem representar. É preciso passar a incorporar mecanismos de participação
e aferição desta participação, bem como de sua apropriação por parte da comunidade.
• Experiências existentes
Toda comunidade, de forma geral articulada pela ação de seus pilares, desenvolve experiên-
cias significativas com características das vertentes que chamamos de contra hegemônicas.
Podem tomar forma de festas tradicionais, atividades em praças, eventos, intervenções, mo-
bilizações em conselhos, organizações ou qualquer tipo de experiência cuja intenção esteja
baseada na busca por envolver ao máximo as pessoas da comunidade, de alguma maneira.
158
VII Estratégia
O trabalho do mediador não pode partir da comunidade como se fosse um bairro destituído
destas experiências pré-existentes, como se já não houvessem boas práticas em andamento
e muita energia despendida para sua viabilização. A estratégia busca fundamentalmente ar-
ticular estas experiências com outras que serão desenvolvidas, de forma a caminharem em
unidade ao objetivo da autonomia, consciência e coesão articulada da comunidade.
Realizamos no movimento anterior um primeiro levantamento destas experiências. Aprofun-
dem este levantamento com os pilares, buscando informações sobre quais são e onde ocor-
rem estas experiências que já foram desenvolvidas. O mapa gerado será parte do plano de
ação de difusão. Escrevam um breve relato, se possível com as mesmas reflexões das experiên-
cias presentes na constelação, de forma que se possa agregar novas experiências a ela. É muito
importante que se saiba sobre estas experiências: onde ocorrem, quando ocorrem, como são
viabilizadas, quem as promove, qual sua intenção e qual sua proposta prática.
• Situação
A definição de quais questões vamos avaliar depende especificamente das características da
comunidade e vai decorrer das discussões entre mediadores e pilares. Sugerimos aqui alguns
tópicos que consideramos fundamentais em todos os casos, tomando-se em conta que temos
os dados da leitura do movimento de aproximação como bases comparativas, mas que deve-
mos buscar sempre dados mais confiáveis.
1. Envolvimento. O mapeamento das experiências existentes já nos dá os primeiros indi-
cativos para este ponto. São elementos fundamentais a serem verificados, pois, como
discutimos, não se pode avaliar a experiência ou a transformação que ocorrem dentro
do sujeito, mas sim seu envolvimento. Tomamos então as quatro características da ex-
periência, o Meio, a Ação, a Cultura e a Visão. Cada uma nos diz como a comunidade se
envolve de uma forma específica.
2. Canais de comunicação. Quais canais já existem, qual a abrangência e rotatividade
deles? Atingem quantas pessoas, transmitem quais informações, quem os opera, etc.
Para que cheguemos a toda comunidade e para que saibamos quem está informado
das experiências que estão sendo desenvolvidas, precisamos destas informações. Sem
159
III Movimento
tomarem conhecimento mínimo da existência das experiências, não há como as pesso-
as entrem em contato com elas, a não ser por acaso.
3. Representatividade e participação. Há instituições ou vozes que se colocam como
representativas dos interesses da comunidade, como líderes comunitários, conselhos,
associações de moradores, fundações ou entidades sem fins lucrativos? Quantas pesso-
as conhecem, apoiam e legitimam estas iniciativas? Muitas vezes estas não possuem a
legitimidade que acreditam ter, seja por falta de canais de comunicação, por interesses
políticos ou qualquer outro motivo.
4. Coesão da comunidade. Os vizinhos se conhecem? As pessoas que trabalham no bair-
ro conhecem o que há nele? Há algum tipo de atividade que já ocorra que coloque a
comunidade em contato? Quantas pessoas vão a eventos ou atividades organizadas
pela comunidade no bairro? As diversas redes e os diversos grupos que formam a co-
munidade interagem entre si, ou há isolamento entre eles? Podemos encontrar situa-
ções de grande segregação em comunidades divididas por uma série de fatores, sejam
diferenças socioeconômicas, diferenças de interesses entre formas de uso do bairro,
diferenças políticas, etc.
5. Vínculo e transformação. A comunidade é antiga ou há grande rotatividade, com mo-
radores se mudando frequentemente e trabalhadores permanecendo pouco tempo
em seus empregos? As pessoas que moram, trabalham e usam o bairro ou realizam
suas atividades em outros bairros? Quais são estes outros bairros? São próximos ou
distantes? Os padrões de uso do bairro são antigos ou estão em transformação?
6. Apropriação dos espaços públicos. A comunidade utiliza e se encontra nos espaços
do bairro? Como utiliza? Como é a manutenção deles? Informações como estas nos
serão importantes para avaliarmos em um segundo momento se o envolvimento da
comunidade com seus espaços foi alterado, bem como observarmos o impacto realiza-
do no momento da execução das experiências que vamos propor.
7. Qualidade dos espaços públicos. Gehl nos ajuda a pensar em três grupos de critérios
de avaliação do espaço na escala da pessoa. Proteção: contra tráfego e acidentes; con-95. Gehl, Jan. Cities for people
(p.238)
160
VII Estratégia
tra crimes e violência; contra sensações sensoriais desagradáveis. Conforto: oportuni-
dades para andar; oportunidades para permanecer; oportunidades para sentar; opor-
tunidades para ver; oportunidades para falar e ouvir; oportunidades para se exercitar.
Prazer: se construções e espaços estão de acordo com a escala humana; oportunidades
de apreciar as características do clima; experiências sensoriais positivas.
• Indicadores e metodologias
Todos os pontos que definirmos como importantes de serem acompanhados sobre a situação
do bairro devem ter indicadores para que sejam avaliados. Não precisamos realizar nada exces-
sivamente complexo, mesmo por que nenhuma avaliação incorpora toda complexidade das
situações, mas sem estas informações não saberemos a transformação que estamos gerando,
o que é um dado fundamental para os próximos movimentos.
Os indicadores podem ter muitos formatos, sejam quantitativos ou qualitativos, objetivos ou
subjetivos. Neste momento, não precisamos ainda operacionalizar boa parte deles, mas pro-
jetá-los para que sejam utilizados em seguida. Podemos, por exemplo, realizar contagens de
quantas pessoas estão em certo espaço público em determinados momentos; quantas estão
sentadas, quantas estão andando, quantas estão conversando; podemos realizar entrevistas
para saber por amostragem de onde elas vêm; podemos realizar eventos de diagnóstico para
avaliarmos a abrangência de meios de comunicação, bem como a pró-atividade da comunida-
de para participar da execução, etc.
Além dos indicadores que projetamos e operacionalizamos com os pilares, sempre compreen-
dendo suas finalidades, precisamos incluir aqueles dados que levantamos na leitura da apro-
ximação, que dizem respeito à demografia, condições de vulnerabilidade, entre outros. Todos
os indicadores nos serão importantes, mas é fundamental que todos tenham razão de ser bem
fundamentada. Do contrário, estaremos gastando tempo e energia para gerar informações
que não nos ajudam.
Desenvolvidos os indicadores, podemos realizar as primeiras avaliações para tirar uma “foto”
da situação do bairro antes de iniciarmos o movimento de difusão.
161
III Movimento
11. PLANO DE AÇÃO DE DIFUSÃO
Concluímos o Contato com um Plano de Ação para o IV Movimento, a Difusão. Este plano,
diferentemente dos anteriores, deve ser realizado com os pilares, então todos precisam estar
de acordo sobre seus objetivos, o que implica que discutamos com clareza e alguma profundi-
dade como funcionam os próximos movimentos e toda a metodologia.
O movimento seguinte inaugura a proposta e execução de experiências no bairro, ainda sem
precisar contar com participação profunda da comunidade. Seu objetivo fundamental é atin-
gir toda a comunidade, o que poderemos avaliar com os indicadores desenvolvidos, e iniciar
a “sugerir” a vivência de certas experiências integrais que identificamos com os pilares como
potencialmente significativas para a comunidade.
• Narrativa de contato
A narrativa de contato, como todas as narrativas, conta a história do movimento. No caso, é in-
teressante relatarmos como foi nosso primeiro contato com os pilares, como foi a formação do
grupo de trabalho com os mediadores, se houveram barreiras ou problemas para unir pilares
em uma equipe única e como lidaram com isso.
É muito interessante relatar como foi o momento de alinhamento, se houveram ideias e con-
cepções muito distintas das que esperavam, se modificaram as suas próprias e como foram as
discussões. Muito provavelmente, não houve consenso imediato, é interessante relatar como
encontraram o consenso ou como posições distintas se relacionaram. É possível que o alinha-
mento não possa ter sido encontrado, seja em função de diferenças políticas, pelos pilares não
verem valor no trabalho que vocês, mediadores, estão desenvolvendo ou simplesmente por
diferenças de personalidade. É interessante relatar estes conflitos, inclusive se tiverem sido
significativos a ponto de interromper a estratégia antes de chegar ao Movimento de Difusão.
• Avaliação da situação do bairro
Mostramos as informações que determinamos como importantes de serem avaliadas e seus
respectivos indicadores desenvolvidos, explicando como funcionam, como são gerados, e
162
VII Estratégia
qual sua finalidade.
Com estes indicadores, a partir das avaliações já realizadas no movimento de contato, mostra-
mos as primeiras conclusões que tiramos.
• Perímetro de difusão
Refazemos o mapa base desenvolvido no primeiro movimento, agora com o perímetro de-
finido em conjunto com os pilares. Esta será a área onde vamos concentrar nossos esforços,
lembrando-se sempre de não excluir os bairros vizinhos, com os quais o trabalho irá procurar
o vínculo no V Movimento.
Nossa preocupação no Contato, de encontrar pilares que estejam vinculados ao mesmo espa-
ço, por mais que por motivos diferentes, reside em definirmos este perímetro de difusão com
contornos que não recortem a comunidade. Se a equipe tiver sido formada por pilares de áreas
específicas, a tendência pode ser de excluirmos do perímetro de difusão áreas que comparti-
lham as mesmas identidades e tem muita proximidade.
• Mapeamento das experiências existentes
No Movimento de Aproximação começamos a mapear as experiências existentes e aprofunda-
mos este levantamento no Movimento de Contato. Desenhamos estas experiências no novo
mapa base desenvolvido com o perímetro de difusão, para que sirva de ponto de partida para
nossas novas experiências.
Pense em como representar estas experiências, pode-se pensar em cores ou ícones diferentes
para experiências de tipos diferentes, lembrando-se de nossa discussão sobre a intenção cen-
trada em uma das quatro características da experiência: meio, ação, visão ou afinidade.
• Experiência piloto de difusão
Qual será nosso primeiro passo dentro da difusão? Sugerimos que este seja dado na forma de
uma experiência piloto, que coloque em prática os indicadores, as concepções e as estruturas
que criamos até aqui. Se chegamos ao IV movimento, esta primeira experiência é inevitável,
163
III Movimento
dado que nosso trabalho seguirá desenvolvendo uma série de experiências.
O que propomos é que esta “quebra de gelo” seja realizada como teste da metodologia pro-
posta pelo VII. Que se teste os indicadores e as metodologias de avaliação, as concepções de
identidade, os canais de comunicação, as equipes operacionais, a discussão sobre o envolvi-
mento que a experiência promove com a comunidade e sua intenção fundamental em uma
das quatro características, etc.
Use esta experiência para testar o que será desenvolvido ao longo do movimento de difusão.
Toda experiência terá esta função de readequar toda a estratégia, a piloto, por ser a primeira,
com certeza pode mudar 180 graus o que vocês, mediadores e pilares estão pensando. Não se
assustem e não desmotivem. Entendam esta e as primeiras experiências como experimentais.
Se não funcionarem de certas formas, experimentem de outros, que gradualmente vão en-
contrando as melhores formas de sensibilizar a comunidade e fazê-la se envolver no processo.
Para realizar o projeto desta experiência piloto, veja o momento 14, “Experiências pontuais”, no
movimento seguinte e lembre-se do que foi discutido no capítulo 5, “Experiência”.
• Metas e objetivos
Como em todo final de plano de ação, lembramos: leia e estude o próximo movimento, enten-
da suas finalidades e propostas estratégicas, só assim poderá definir suas metas e objetivos
para ele.
Os próximos movimentos não comportam cronogramas, dado que as experiências que serão
desenvolvidas são profundamente dependentes dos momentos da comunidade, de suas ma-
turações, envolvimento e dedicação. Da mesma forma, não podemos antever as transforma-
ções da comunidade e quando atingiremos nossos objetivos.
Contudo, conseguimos definir algumas metas específicas para períodos temporais, no sentido
de trabalhos a serem cumpridos. Por exemplo, podemos definir a meta de executar n experiên-
cias de intenção predominantemente meio em n meses; envolver x% da população infantil do
bairro em uma série articulada de eventos voltados a elas, com duração n semanas; incentivar
164
VII Estratégia
a criação de n grupos temáticos com envolvimento de x% da população; etc.
Paralelamente, definimos nossos objetivos gerais que, quando cumpridos a contento, nos in-
dicam que é momento de passar de movimento. Estes objetivos precisam de indicadores que
possam ser aferidos pelas estruturas que desenvolvemos no Movimento de Contato e que
reformatamos ao longo do Movimento de Difusão. Os objetivos que definirmos para o IV Mo-
vimento devem estar alinhados com as finalidades da Difusão, de forma que, quando alcança-
dos, reforcem a passagem ao V Movimento.
Nossa estratégia deve sofrer algumas alterações ao longo do tempo, caso avaliemos que mes-
mo realizando experiências interessantes, não estamos caminhando em direção a nossos ob-
jetivos. Nestes casos, talvez precisemos mudar de abordagem, seja incentivando e sugerindo
experiências de outros tipos, seja focando em outras redes da comunidade. Esta possível situ-
ação será melhor discutida no movimento seguinte.
iv movimento: Difusão
169
Enquanto o primeiro ato da estratégia, em seus três movimentos, é baseado no estabeleci-
mento do grupo de mediadores e pilares, ou seja, sujeitos com alguma consciência da dis-
tensão e que se mobilizam para reagir a ela, o segundo ato, que se inicia neste IV Movimento,
busca difundir a sugestão de experiências de integração ao conjunto social. O Movimento de
Difusão parte da aproximação e do contato que tivemos e busca chegar à comunidade como
um todo, de forma livre e articulada.
Sendo o primeiro movimento no qual vamos propor experiências, nosso objetivo ainda não é
que a comunidade tome para si a prerrogativa de planejá-las e viabilizá-las, não dependemos
obrigatoriamente de sua participação para isso. Seu projeto e execução ainda estão pautados
mais na ação de mediadores e pilares. Isso não significa, de forma alguma, que deixamos de
lado nossa fundamental intenção de envolver ao máximo os sujeitos a quem sugerimos as
atividades. Sem esta intenção, nosso trabalho perde seu sentido.
Esta característica de as experiências no IV Movimento ainda serem muito baseadas em agen-
Difusão
170
VII Estratégia
tes “externos” decorre de não podermos partir da avaliação do estado de consciência da co-
munidade frente à distensão. Sendo assim, partimos da possibilidade mais negativa, onde não
há qualquer consciência e autonomia do conjunto social. Desta maneira, a Difusão tem uma
segunda função essencial: verificar o nível e forma de envolvimento da comunidade com as
experiências sugeridas, avaliação realizada através dos indicadores de situação desenvolvidos
no movimento anterior e baseada nas quatro características da experiência – meio, ação, cul-
tura e visão.
A avaliação do envolvimento nos será fundamental para verificarmos se estamos caminhando
no sentido certo e se estamos propondo atividades que de fato geram experiências significa-
tivas. Esperamos criar uma escala crescente de envolvimento, chegando ao ponto de media-
dores e pilares concordarem em passar para o próximo movimento, a Integração, onde iremos
sugerir experiências mais baseadas e dependentes da autonomia da comunidade, articulan-
do-se as diversas redes que a compõe.
Sendo assim, descortina-se a terceira função básica do Movimento de Difusão, que é estabe-
lecer os canais de comunicação e as bases de relacionamento em cada uma das redes sociais
que, em um primeiro momento, consideramos formar a comunidade, a saber: aquela gerada
por vínculos de habitação; por vínculos de trabalho; por vínculos de educação; e por vínculos
de uso livre, como lazer. Com estas bases estabelecidas, esperamos chegar a toda comunidade,
em todo o perímetro de difusão.
A grande diferença entre o Movimento de Difusão e o de Integração, portanto, reside na forma
de atuação da comunidade. O IV Movimento ainda está nas primeiras fases da escala de parti-
cipação definida por Bordenave . Estamos avaliando a “personalidade” e a forma de envolvi-
mento das pessoas através de atividades propostas em redes específicas. De forma distinta, no
V Movimento a sugestão das experiências dependerá muito mais da ação da comunidade; es-
taremos avaliando conjuntamente suas vontades e propondo estruturas deliberativas; e as
atividades propostas serão muito mais focadas na articulação de redes sociais.
Os momentos da Difusão:
12. Estabelecimento de bases
96. Ver Bordenave. O que é participação
171
IV Movimento
13. Experiências pontuais
14. Grupos temáticos
15. Plano de ação de integração
12. ESTABELECIMENTO DE BASES
Antes de iniciarmos as propostas das experiências, inclusive aquela definida como piloto de di-
fusão, precisa-se estabelecer as bases sobre as quais elas serão desenvolvidas. Sem isto, perde-
-se força na articulação e encadeamento entre as atividades que serão executadas e que preci-
sam buscar o máximo envolvimento da comunidade. No plano de ação desenvolvido com os
pilares no III Movimento, é preciso ter considerado o estabelecimento destas bases como inicio
da difusão propriamente dita.
Assim, as bases compreendem ao menos duas dimensões: a comunicação e o relacionamento.
• Comunicação
Depois de levantados os canais existentes e verificada sua abrangência e efetividade, preci-
samos avaliar se conseguimos alcançar toda a comunidade e estabelecer satisfatoriamente
interlocução com ela. Se os canais estabelecidos não forem suficientes, é preciso planejar quais
seriam suas modificações ou se precisamos desenvolver novos canais.
A comunicação não diz respeito simplesmente a seu caráter informativo, mas sim à instalação
de estruturas de diálogo com a comunidade, onde o contato com o interlocutor é bilateral.
Sendo assim, é preciso informar como ser informado; levar informação e receber sua resposta;
bem como receber uma informação e responder com outra mensagem.
No momento, ainda não estamos preocupados com o estabelecimento de fóruns, esta será
uma busca do movimento seguinte. Agora, nossa procura é, em primeiro lugar, ter canais para
conhecermos cada vez mais profundamente a comunidade; em seguida fazer visíveis as expe-
riências que iremos sugerir; receber as primeiras respostas às intenções, antes, durante e após
a comunidade entrar em contato com as atividades; e finalmente verificar a abrangência desta
172
VII Estratégia
comunicação, se atinge todo o bairro, de forma que as respostas que chegam dizem de fato
respeito à voz da comunidade como um todo.
É fundamental saber que comunicação é um campo de experiência e, como tal, está presente
no universo de experiências, podendo fazer parte da constelação da estratégia. Ou seja, po-
demos nos utilizar de uma vasta variedade de opções de canais de comunicação, optando de
acordo com as especificidades da comunidade onde estamos realizando a intervenção. Alguns
exemplos clássicos envolvem jornais locais, publicações e sites, mas também podemos pensar
em totens dispostos nas calçadas, parcerias com canais abrangentes de comunicação, pesqui-
sas, plataformas sociais online, etc.
Há uma série de plataformas já existentes na internet que colhem os mais diversos tipos de
informações, como vontades da população de intervenções na cidade; opiniões sobre gestão
pública; mapeamento de violência e assaltos; colaboração na proposta de melhores serviços
públicos; entre outras. É preciso pesquisar quais já operam no perímetro de intervenção.
Todas estas informações, tanto as que vamos comunicar quanto as que vamos receber, pre-
cisam de algum tipo de manutenção de banco de dados. Mesmo que estabelecendo canais
de comunicação ainda simples no inicio da difusão, é preciso que esta responsabilidade seja
atribuída a alguém ou a algum grupo de trabalho entre mediadores e pilares. Não é preciso
formar logo de inicio canais muito complexos ou complicados de serem mantidos, apenas pre-
cisamos daqueles fundamentais para atingir os objetivos que traçamos. Exercitem seu poder
de síntese e criatividade.
• Relacionamento
Paralelamente e reforçado pelo estabelecimento de meios de comunicação, precisamos come-
çar a formar nossas bases de relacionamento na comunidade. Isto será de extrema importância
para todas as experiências que vamos sugerir, pois sem conhecermos e nos aproximarmos
mais diretamente das especificidades dos grupos que compõem o conjunto social e buscar-
mos envolver agentes presentes nele, estaremos mantendo uma distância que dificulta nossa
intenção básica.
173
IV Movimento
Ou seja, sem conhecermos e sem sermos conhecidos pela comunidade, não poderemos atu-
ar juntos na sugestão de experiências cada vez mais significativas, tendendo a sua completa
autonomia. Mediadores, pilares e comunidade devem buscar ser uma só unidade. Para tanto,
precisamos encontrar interlocutores nas quatro redes, formadas pelos vínculos de habitação,
trabalho, educação e uso diversificado. Nos movimentos anteriores, procuramos pilares já
nestas quatro redes. Então, se tivermos sido bem sucedidos, já temos na equipe pessoas que
fazem parte de cada um destes grupos e podem nos abrir contatos em cada uma das redes.
Importante ressaltar a importância de universidades públicas, por exemplo. Nelas podemos
encontrar parceiros muito importantes para grupos temáticos e para momentos específicos
da estratégia. Por exemplo, se um dos indicadores visto como interessante de ser acompanha-
do estiver ligado a questões econômicas, podemos entrar em contato com pesquisadores da
faculdade de economia; se quisermos indicadores georreferenciados, podemos falar com a
faculdade de geografia, etc.
É muito interessante estabelecer o entrelaçamento entre os canais de comunicação e as bases
de relacionamento que estabelecemos. Por exemplo, podemos ter na equipe um pilar que é
professor do ensino médio. Ele pode abrir o contato com o diretor e com a equipe de coor-
denação da escola, com a qual podemos fazer uma parceria para desenvolver propostas de
experiências e divulgar outras experiências que vamos sugerir no bairro. Da mesma forma,
podemos entrar em contato com ONGs que atua na região; com unidades de saúde pública;
empresas; associações de moradores; juntas comerciais, etc.
Estamos aprofundando nosso envolvimento, aquele que começamos no movimento de apro-
ximação e estreitamos no de contato. Quanto mais conhecermos a realidade e a personalidade
da comunidade, mais poderemos propor experiências com características que possam envol-
vê-la profundamente e serem significativas. Lembrando que no movimento atual a sugestão
de atividades ainda é muito centrada na figura dos mediadores, este relacionamento com as
redes sociais é fundamental para que se possa caminhar ao movimento seguinte, onde os
mediadores começam a deixar de ser centrais.
É interessante que este relacionamento seja estabelecido despretensiosamente, sem prome-
174
VII Estratégia
ter grandes transformações. Podemos oferecer uma parceria e explicitar nossas intenções, in-
clusive mostrando como funciona a estratégia, o que temos planejado e o que já realizamos.
Gradualmente podemos aprofundar este relacionamento, de acordo com as necessidades, e
realizar pesquisas, aplicar questionários, realizar experiências de avaliação, desenvolver novos
indicadores de situação, etc.
13. EXPERIÊNCIAS PONTUAIS
Cada ação estratégica descrita até aqui é fundamental para que nos aproximemos e envol-
vamos com a comunidade na qual estamos atuando. Sem elas, não poderíamos ter chegado
aonde chegamos, podendo propor experiências com intenção que devemos ter. A estratégia
gira em torno das atividades que vamos sugerir à comunidade e da constelação que formare-
mos pela conexão das mais diversas experiências. Serão estas que possibilitarão caminharmos
no sentido do desenvolvimento da consciência e da autonomia da comunidade frente à dis-
tensão.
• Constelando experiências
Sendo assim, chegamos ao primeiro momento de constelar, ou seja, de encontrar quais serão
nossas sugestões de experiências para a comunidade, baseado no que já sabemos dela. Para
iniciar este momento e “quebrar o gelo”, temos a proposta da experiência piloto, descrita no
plano de ação de difusão por mediadores e pilares. É importante que esta primeira proposta
seja simples e muito factível. Se começarmos com uma atividade muito complexa e passível
de não ser executada, podemos tanto nos desmotivar, quanto desmotivar os pilares e fazer o
trabalho como um todo perder força.
As atividades propostas neste momento diferem em uma série de aspectos daquelas que va-
mos propor no V Movimento. Como estamos começando a de fato intervir na comunidade e
ainda não sabemos qual será sua reação, por mais que já tenhamos nos envolvido em algum
grau com ela, as primeiras experiências propostas serão muito prospectivas. Fundamental ter
os indicadores e as metas em pauta, sabendo que devemos verificar o envolvimento da comu-
nidade nas quatro características das experiências que vamos sugerir.
175
IV Movimento
Pois então, para selecionar, remodelar e planejar as primeiras atividades, precisamos nos per-
guntar: quais temas mobilizam a comunidade? Esta questão diz respeito tanto ao que une este
conjunto social, ou parte dele, quanto ao que ele já considera “normal”. A resposta a esta per-
gunta nos ajudará a buscar atividades em determinados campos de experiência, com identi-
dades do tipo meio ambiente, saúde, educação, etc. Em comunidades com redes sociais muito
segregadas, como naquelas em que moradores não gostam do tráfego gerado pelo comércio,
temos de levar em consideração que há diferenças e similaridades entre grupos, sabendo que
nossas propostas podem ser mais ou menos significativas para uma ou outra rede.
Selecionamos, assim, já algumas possíveis atividades e intervenções dentro do universo de
possibilidades que nos cerca. Dentre elas – e sempre tendo em mente que devemos modificar
os modelos padrões, de acordo com as especificidades do bairro de atuação – devemos pensar
em como a intenção de envolvimento através de cada uma das quatro características da expe-
riência poderá ser significativa para a comunidade.
Por exemplo, se pensamos em propor a construção de uma horta comunitária: devemos nos
questionar em como ela pode envolver o sujeito através da interação com o Meio, ou seja,
como o ambiente da horta, o estar no espaço público, a terra remexida, a água, as mudas a
serem plantadas podem envolver e instigar a pessoa. Da mesma forma, como a Ação sugerida
ao sujeito pode lhe envolver, ou seja, seu trato com a terra, o cuidado com a manutenção dos
vegetais, o rodizio de trabalho com outros moradores, o planejamento das colheitas, etc.
Quanto à continuidade, do ponto de vista da Cultura podemos ter identificado que alguns
grupos de moradores já se dividem para fazer a manutenção de praças do bairro, então lidar
com o plantio e cuidado dos espaços públicos verdes pode fazer sentido para uma parte da
comunidade. Finalmente, por já realizarem esta manutenção, propor hortas pode ser um passo
além da ação que já realizam, mas sem ser uma quebra de paradigma muito profunda, mos-
trando envolvimento com Visão.
Esta avaliação nos mostrará algumas coisas: em primeiro lugar, devemos saber onde reside a
intenção preponderante de envolvimento da atividade, aquela que pode ter mais força. No
caso descrito, talvez possamos dizer que está na Ação, pois sem ela não há horta comunitária,
176
VII Estratégia
pode até fazer sentido para a comunidade e ser instaurada, mas sem manter sua interação
ativa, ela deixa de existir. Em segundo lugar, precisamos avaliar como cada característica da
experiência pode envolver a comunidade como um todo. Por exemplo, percebemos que a
Cultura, ou seja, a afinidade com experiências anteriores, talvez seja de poucos grupos que
já lidam com a manutenção das praças, mas e todo o conjunto que não realiza tal atividade?
Este questionamento, buscando equilibrar a componente Cultura, nos levará a remodelar a
atividade procurando envolver aqueles que não atuam na manutenção dos espaços públicos.
Por exemplo, podemos passar de casa em casa do entorno das hortas apresentando o que
estamos fazendo e suas possibilidades, como o consumo de vegetais frescos produzidos no
próprio local, sem agrotóxicos; podemos realizar oficinas para começar a mostrar aos vizinhos
que nunca trabalharam com a terra como esta atividade pode lhes ser interessante e significa-
tiva; ou podemos articular a experiência das hortas com aquela de organização de represen-
tantes de rua, sugerindo a eles que realizem em suas respectivas vizinhanças conversas sobre
agricultura urbana.
Desta forma, discutindo sobre cada característica da experiência, buscamos compreender
como e quem elas envolvem e como podemos aprofundar este envolvimento. Nossa intenção
fundamental é fazer com que as quatro componentes envolvam a comunidade a ponto de a
experiência ser significativa.
Todas as experiências que sugerimos devem ser desenhadas no mapa base com o perímetro
de difusão definido no movimento anterior. Este mapa será a síntese do IV Movimento e um
dos principais elementos do plano de ação de integração.
• Viabilidade
No Movimento de Difusão, a proposta ainda centrada na ação de mediadores e pilares faz
com que as atividades devam ser completas em si do ponto de vista de recursos e execução.
Antes de tudo, elas devem ser viáveis e simples de serem executadas na comunidade. Nos
movimentos seguintes, cada vez mais o próprio ato de propor, sendo tomado cada vez mais
autonomamente pela comunidade, possibilita que a viabilização das atividades também seja
uma atividade significativa. Contudo, no momento atual, se as experiências não chegarem a
177
IV Movimento
ser executadas, perdem seu sentido e função.
Outro aspecto desta viabilização centrada na ação de mediadores e pilares diz respeito à inte-
gração entre redes e grupos sociais que formam a comunidade. Uma vez que ainda estamos
formando nossas bases de relacionamento e que não sabemos ao certo como as diversas re-
des se relacionam entre si, não podemos depender de sua (possível) articulação. Proporemos
atividades com públicos mais pontuais.
Por exemplo, a Ação na horta será num primeiro momento sugerida mais especificamente
à rede de moradores. Num futuro momento podemos articular moradores com a escola, su-
gerindo que os primeiros organizem oficinas aos pais e alunos da comunidade escolar, bem
como que os professores preparem com os moradores projetos pedagógicos sobre meio am-
biente, agricultura ou biologia. É preciso ter cautela na articulação entre redes para que não
sejam gerados conflitos previsíveis e desnecessários.
Por estes dois aspectos das atividades no IV Movimento, da viabilidade de recursos e execu-
ção, por um lado, e por outro a preocupação de avaliar as potencialidades de articulação en-
tre redes, denominamos suas experiências de pontuais. Isto não significa, de forma alguma,
que devamos nos limitar em qualquer aspecto, apenas estarmos atentos a não darmos passos
maiores do que devemos dar, não conhecendo a comunidade na profundidade que devemos
conhecer.
• Funções e objetivos
Desta forma, as experiências deste movimento possuem algumas funções iniciais e específicas.
Em primeiro lugar, presente em todas as ações, tanto estratégicas quanto integrais: desenvol-
ver consciência e autonomia através do máximo envolvimento. Em segundo lugar, descor-
tinar possibilidades de experiências que antes a comunidade desconhecia, ou seja, mostrar
que elementos de vertentes contra hegemônicas podem ser realizados, como se alimentar de
vegetais plantados na praça ao invés de comprá-los no supermercado.
Quanto a este ponto, pode-se pensar no caso dos centros de aprendizado democrático da ci-
dade de Hadera, em Israel. Os alunos, uma vez não conhecendo as possibilidades de experiên-
178
VII Estratégia
cias que estão fora de suas esferas de consciência, são conduzidos por educadores a vivencia-
rem brevemente atividades em diversos centros espalhados pela cidade, locais com atividades
práticas e específicas, como uma usina de energia elétrica. Nestes locais, realizam oficinas para
entrarem em contato com as possibilidades educativas daquele centro, passando em seguida
aos próximos. Se gostarem daquela atividade, podem voltar e se aprofundar mais no que ela
tem a oferecer, realizando atividades com educadores locais.
Em seguida, experiências pontuais buscam modificar ativamente a realidade: as intervenções
propostas neste momento precisam mostrar transformações práticas, mesmo que simples, de
forma a motivar e instigar a comunidade a ver que mudar a realidade estabelecida é possível e
pode ser muito interessante. Outra função fundamental é possibilitar conexões e formação de
laços sociais, caso já não existam, de maneira a consolidar tanto nossas bases de relacionamen-
to quanto potencializar a sobreposição de redes, que permitirão executarmos experiências
integradas entre elas posteriormente.
Sabendo que a transformação do sujeito toma tempo e que não chegaremos ao final da estra-
tégia com a totalidade da comunidade consciente e autônoma frente à distensão, precisamos
lembrar também que nosso objetivo não é este. Nossa meta fundamental é que a comunidade
como um todo desenvolva tal consciência e autonomia, de forma que permaneça realizando
a mediação externa àqueles que em vias de desenvolver suas respectivas consciências e auto-
nomias. Ou seja, o mediador que atua pela VII sai de cena antes de ver a totalidade dos sujeitos
realizando suas mediações internas entre o viver e a vida, mas observando a comunidade ca-
minhar sozinha neste sentido.
• Verificações de envolvimento
Em nossa atuação, formaremos ao longo do tempo a constelação da comunidade. Este mo-
mento de constelar pode tomar o tempo que for, mas é importante que atentemos a nossos
objetivos e indicadores. Se verificarmos que a comunidade não está se envolvendo com as
atividades executadas, precisamos mudar nossas abordagens, seja alterando a identidade das
atividades propostas; modificando as formas de envolvimento pelas quatro componentes;
aprofundando nosso conhecimento das especificidades da comunidade através de nossas ba-
179
IV Movimento
ses de comunicação e relacionamento, etc.
As verificações que vamos realizar por experiência são fundamentais e darão base à avaliação
geral da situação do bairro, que por sua vez nos dirá quando atingimos nossas metas de Difu-
são para passarmos ao movimento seguinte. Precisamos pensar de antemão em como reali-
zar estas verificações de envolvimento por componente da experiência. Ou seja, se propomos
uma atividade com intenção de envolvimento muito baseada na experiência pela Ação, vamos
procurar verificar se de fato as pessoas foram ativas; se a intenção estava no Meio, procura-
remos verificar se as intervenções instigaram e atraíram a comunidade; se estava na Cultura,
verificamos se as pessoas se identificaram com a atividade; se na Visão, se a experiência lhes
agregou algo novo.
14. GRUPOS TEMÁTICOS
Paralelamente às experiências propostas pelos mediadores, o estabelecimento das bases de
relacionamento e nosso contato cada vez mais difuso com a comunidade podem começar a
gerar inquietações e vontades de mobilização de algumas pessoas. Devemos incentivar que
através destas inquietações se criem grupos temáticos, organizando pessoas que começam
a ver motivação em se unirem para realizar algum tipo de atividade, seja estudo e pesquisa;
planejamento; ou intervenção.
Do ponto de vista de estudo e pesquisa, lembramo-nos da ideia de encontros educativos de
Illich, onde as pessoas “poderão reunir-se em torno a um problema escolhido e definido por
elas mesmas. A aprendizagem criativa e pesquisadora requer que os participantes todos este-
jam igualmente perplexos perante os mesmos termos ou problemas” . Questões como quais as
melhores formas de lidar com o lixo; como lidar com os recursos hídricos do bairro; o que sig-
nifica o plano diretor da cidade; assim como qual o perfil das empresas do bairro; quantas fa-
mílias compõe a comunidade; onde trabalham as pessoas que ali moram, entre tantas outras
motivações, podem formas grupos como este.
De maneira semelhante e complementar, grupos de planejamento tomam vontades demasia-
damente complexas da comunidade como metas a serem planejadas. Por exemplo, se pelas
97. Illich, Ivan. Sociedade sem escolas (p.47)
180
VII Estratégia
bases de comunicação se descobrir que uma das questões do bairro for o transporte públi-
co, pode ser uma vontade que se instale uma estação de metrô ou algumas linhas a mais de
ônibus no perímetro. Contando que tais intervenções dependem do poder público, cabe ao
grupo articular tudo possível em torno de um plano e proposta ao governo. Esta forma de atu-
ação será a base do VI Movimento e a consolidação do projeto político-pedagógico do bairro.
De forma também complementar às duas apresentadas, grupos formados em torno da pro-
posta de intervenções são os que gradualmente vão fazendo o papel inicialmente praticado
pelo mediador e pelos pilares. São grupos que identificam determinadas vontades de expe-
riências de vida por parte da comunidade e procuram propor atividades práticas que deem
respostas adequadas e afinadas a elas. Grupos como estes podem ser facilitados pelos media-
dores ao apresentarem a VII e trabalhar com o conceito de envolvimento pelas quatro caracte-
rísticas da experiência.
A atuação do mediador nestes grupos está em facilitá-los, viabilizar sua gestação e propor
formas de organização. É interessante que todo grupo tenha um objetivo prático, do contrá-
rio, facilmente os envolvidos podem perder motivação. Gradualmente, assim como para as
propostas de experiências, o mediador vai deixando de ser central conforme outros sujeitos
tomem para si a responsabilidade de facilitar e viabilizar a atividade do grupo. Neste ponto, o
mediador passa a ter cada vez mais a função de integrá-los e articulá-los entre si.
Alguns grupos temáticos fundamentais já podem ser incentivados desde o início pelos me-
diadores, mesmo que de fato eles devam ser organizados pela mobilização daqueles que os
formarão. Estas propostas básicas vão depender de comunidade a comunidade, mas podemos
citar alguns como: grupo para manutenção de banco de dados e ampliação dos canais de co-
municação da comunidade; grupo de avaliação e indicadores da situação do bairro; e grupo
de difusão de experiências.
Quanto mais os grupos consigam executar trabalhos práticos e o mediador possa articulá-los
com experiências e atividades que irá propor, mais estaremos gerando envolvimento. Cada
mobilização destas abrirá diversas possibilidades e canais para os movimentos seguintes.
181
IV Movimento
15. PLANO DE AÇÃO DE INTEGRAÇÃO
Como primeiro movimento do segundo ato, não temos como estimar quanto tempo pode
durar a Difusão, uma vez que, a princípio, a passagem ao V Movimento dependeria de atingir-
mos estágios suficientes de autonomia de reação da comunidade frente à distensão. Sendo
assim, lembramos que os indicadores e as verificações são fundamentais à Difusão. Sem eles,
passaremos ao próximo movimento sem saber de fato se o IV Movimento foi bem sucedido.
Quando verificarmos que parte satisfatória do conjunto social está se envolvendo nas ativida-
des, que outros tantos grupos temáticos se formaram, e que as bases de relacionamento estão
se aprofundando, podemos avaliar que está no momento de passarmos ao Movimento de
Integração. Para tanto, como em todo Movimento, vamos realizar seu plano de ação.
O desenvolvimento deste plano deve agregar, além dos mediadores e dos pilares, também
aqueles que passam a se envolver no processo da estratégia e se mostram ativos nas propos-
tas de atividades, principalmente aqueles que formam grupos temáticos. Para tanto, devemos
ampliar a discussão sobre a metodologia geral do VII, podendo modificar nossa estratégia e
encontrar formas distintas de atuação no movimento seguinte.
A Integração, diferentemente da Difusão, não terá a função de propor experiências pontuais
a redes específicas e muito centradas na ação dos mediadores, mas sim de trabalhar em con-
junto com atores que começam a despontar ativamente no conjunto social como propositores
de experiências de integração. Sendo assim, o V Movimento será baseado nestas parcerias, na
articulação de redes sociais, na consolidação e ampliação de grupos temáticos e no estabele-
cimento de fóruns deliberativos, caminhando para o VI Movimento.
• Narrativa de difusão
A narrativa de difusão conta a história do IV Movimento. Depois de realizadas as diversas ex-
periências, estabelecido relacionamento com as redes e criados os vários grupos temáticos,
poderíamos ter uma narrativa muito extensa. Contudo, não é o caso de narrarmos cada por-
menor de todas as atividades que foram executadas. O interessante é discorrer em linhas ge-
rais, ressaltando pontos importantes de experiências específicas que digam respeito ao anda-
182
VII Estratégia
mento do movimento.
Pense em como a narrativa pode ajudar futuros mediadores que estiverem atuando no IV Mo-
vimento. É fundamental explicar como as verificações realizadas através dos indicadores se
relacionam com as escolhas que fizemos por determinadas atividades. Quanto mais explicitar-
mos as conexões entre o estabelecimento de bases, as experiências e os grupos, mais a ligação
com o V Movimento ficará explícita, pois nele passaremos a integrar estes elementos e outros
novos.
• Avaliação da situação de difusão
Com os indicadores e as verificações que vamos realizando ao longo do movimento, é impor-
tante sintetizar uma avaliação do processo entre a situação inicial e final da Difusão. Esta será a
avaliação que explicará o motivo pelo qual acreditamos que chegamos a um ponto satisfatório
para passar ao movimento seguinte.
Por exemplo, no plano de ação de difusão e ao longo do trabalho podemos ter definido como
metas: que os meios de comunicação atingissem adequadamente x% da comunidade; que as
informações veiculadas por estes meios tivessem retorno de y% do conjunto social; que esta-
belecêssemos contato com determinados atores sociais, representativos de suas respectivas
redes; realizar n atividades e que nelas o envolvimento e presença da comunidade sejam de
determinadas formas, etc.
Para dar base a estas avaliações gerais da situação do bairro, precisamos ter em mente as veri-
ficações específicas por experiência, que também podem ser interessantes de serem explicita-
dos nesta parte do plano de ação. Neste caso, o fundamental são as maneiras que criamos para
verificar como os sujeitos que entraram em contato com as atividades e grupos se envolveram
através de cada uma das características da experiência, como discutimos na seção sobre via-
bilidade.
Outros indicadores fundamentais de serem avaliados e explicitados dizem respeito a aspectos
indiretos de transformação, como socioeconômicos ou ambientais. Nem sempre poderemos
avaliar a associação entre as experiências que propomos e as transformações ocorridas em
183
IV Movimento
uma relação de causalidade. Mesmo assim, sem fazer conjecturas baseadas em fatos que não
podemos comprovar, mostrar como o bairro está se transformando por pontos de vista mais
amplos tanto descortina sua situação quanto reforça nossa base de envolvimento com ele.
• Mapeamento de experiências de difusão
Após termos, nos movimentos anteriores, mapeado as experiências existentes antes de come-
çarmos nossa intervenção, agora vamos agregar as que propomos na Difusão e as que ocor-
reram autônoma e organicamente durante este período. Este mapa sintetiza o IV Movimento,
mostrando como e onde as experiências ocorreram.
• Experiência piloto de integração
Assim como fizemos com a experiência piloto de difusão, qual será nossa primeira proposta
de atividade na Integração? Desenvolve-se a ideia já com maior participação da comunidade,
o que pode ser potencializado pela mobilização dos grupos temáticos, e buscando articular
grupos e redes sociais. Reiterando a importância de desenvolver de antemão para a experi-
ência que vão propor as maneiras de verificar o envolvimento das pessoas através das quatro
componentes.
• Metas e objetivos
Como dissemos, os movimentos do segundo ato não comportam cronogramas, pois depen-
dem muito mais dos tempos e dinâmicas da comunidade. Mas isso não significa que não pos-
samos estipular metas de sugestão, como quantas atividades esperamos realizar em tanto
tempo. De forma semelhante, podemos ter metas para nossos indicadores, por mais que eles
sofram alterações ao longo do trabalho integrado à comunidade.
Leiam e discutam o V Movimento com pilares e os grupos que começaram a se envolver. Sugi-
ram encaminhamentos e formas de organização. Definam juntos as metas para os indicadores
e os objetivos dos próximos períodos. Cada vez mais mediadores serão facilitadores e deixarão
de ser centrais no processo de sugestão de experiências, encontrem quais são as melhores
formas de dividirem o trabalho e permanecerem desenvolvendo a estratégia.
v movimento: integração
187
Pode ser simples vislumbrarmos nossas ações até a Difusão, pois a execução das atividades
e as propostas das experiências ainda são muito baseadas em nossa própria ação. Em outras
palavras, podemos considerar que todo esforço que dedicarmos se reverterá, de alguma ma-
neira, em intervenção. O lado positivo da Difusão está nesta potencial segurança de depender
da vontade de mediadores. Contudo, a estratégia não pode parar por ai.
A passagem à Integração é dura, pois mediadores começam a deixar de ter centralidade no
processo para dar espaço à autonomia da própria comunidade. Porem, esta tomada de força
não depende do agente externo, depende essencialmente das pessoas que formam o conjun-
to social escolherem passar a realizar cada vez mais a sugestão e encadeamento de experiên-
cias integradoras. Sendo assim, não podemos negar o risco de não atingirmos o ponto de esta
escolha ser realizada.
A Integração envolve considerarmos esta possibilidade. Os movimentos anteriores buscam
com muito cuidado que não se haja uma interrupção precoce dos objetivos básicos da es-
integração
188
VII Estratégia
tratégia, abortando-a na passagem da Difusão à Integração. Desta forma, o V Movimento ain-
da não pressupõe plena autonomia da comunidade, sabendo que o processo de tomada de
consciência passa por diversos momentos de maturação. Aqui, mediadores devem buscar não
apenas envolver os sujeitos na atividade já proposta, mas também sugerir envolvimentos e
articulações entre pessoas e redes para que, juntos, realizem as propostas.
Tendo estabelecido as bases de comunicação e relacionamento no movimento anterior, espe-
ra-se que tenhamos suficiente para que parte significativa da comunidade esteja informada e
já demonstrando interesse em participar – ou já efetivamente participando – das propostas.
Podemos, então, instigar grupos mais ativos e mais engajados a constelarem as experiências
conosco ou observar grupos que atuam autonomamente. Nosso papel, assim, será cada vez
mais de facilitar a organização de encaminhamento de grupos do que de assumir papel central
no processo.
Desta maneira, vemos que a Integração tem uma função fundamental que é de articular – ou
integrar – a comunidade como um todo. No movimento anterior, atuamos ainda de forma
pontual em determinados grupos que compõem o conjunto social, buscando viabilizar as ati-
vidades. Aqui, uma vez que buscamos que a comunidade seja mais ativa em suas próprias
sugestões, precisamos instigar o relacionamento entre redes distintas.
Esta articulação, potencializada quanto melhor estabelecidas nossas bases de relacionamento,
abre dois outros momentos: em primeiro lugar, deve-se facilitar a organização de fóruns co-
munitários. Estes, que possivelmente já começaram a se formar informalmente ao longo das
experiências sugeridas no movimento anterior e das discussões dos grupos temáticos, serão
os espaços de discussão e deliberação em um primeiro momento para buscar intervenções
mais amplas e em um segundo para viabilizar a passagem ao último movimento. Em segundo
lugar, a articulação começa a dizer respeito aos espaços e comunidades vizinhas a nosso perí-
metro de intervenção.
Os momentos da Integração:
16. Experiências integradas
189
V Movimento
17. Fóruns deliberativos
18. Articulação com vizinhos
19. Plano de ação de desenvolvimento
16. EXPERIÊNCIAS INTEGRADAS
Na Difusão, de acordo com os objetivos daquele movimento, desenvolvemos principalmen-
te experiências pontuais, focadas em sua viabilidade e realizadas em determinadas redes. Na
Integração, passamos a sugerir e realizar experiências integrando grupos e redes sociais, tor-
nadas possíveis do ponto de vista de recursos e execução através desta articulação de atores.
Não teremos uma ruptura com as atividades que constelávamos anteriormente, pelo contrá-
rio, aprofundamos e agregamos novos elementos na maneira de constelar. Queremos criar
uma cultura de reprodução de experiências integradoras, de maneira que a comunidade se
sinta no direito e poder de realizar as mais diversas atividades nos espaços de uso coletivo,
buscando reagir ao afastamento entre a vida que querem viver e a vida que vivem.
É preciso sempre ter em mente que a ação de constelar experiências e conduzir discussões
deve ser pautada na multiplicidade de visões e pontos de vista, de forma que se possa cami-
nhar a respostas e consensos abrangentes. A consciência a ser desenvolvida sobre a vida que
se quer viver não deve ser superficial. Se incorrermos nesta superficialidade, corre-se o risco
da comunidade desconsiderar e ignorar questões que lhe dizem respeito profundamente. Por
exemplo, se um bairro chega à conclusão de que a vida que quer viver é segregada do resto
da cidade, talvez esteja assumindo que não possui conexão ou identificação com esta cidade,
que em realidade o engloba.
Mesmo que neste exemplo estejamos pré-julgando que a conclusão por parte da comunidade
seja superficial – julgamento que não podemos de fato realizar, apenas a título de especulação
– muitos poderiam ser os argumentos que a levariam tanto à busca pelo isolamento, quanto a
sua crítica contundente. Acreditamos que na oposição racional de ideias diversas, possibilitada
pela integração entre sujeitos distintos e de grupos variados, pode-se caminhar a respostas
190
VII Estratégia
mais profundas e significativas. Esta é a convicção das estruturas políticas deliberativas e estará
sempre presente no V Movimento.
Por este motivo, à estratégia não é suficiente buscar exclusivamente autonomia ou consciên-
cia. Se a comunidade gradativamente aprofunda, através do debate e do contato com ativi-
dades significativas, sua consciência de quais são as experiências de vida que quer viver, mais
pode se mobilizar para tornar estas vontades realidade. Assim, as experiências desenvolvidas
na Integração tendem a ser mais significativas do que aquelas da Difusão, uma vez que são
propostas mais diretamente pelo próprio conjunto social ao qual são destinadas.
• Constelando experiências
Pois então, como constelar com maior participação da comunidade? Qual passa a ser o papel
do mediador neste processo?
Entrando na Integração, assim como fizemos no movimento anterior, realizamos uma ex-
periência piloto para testar a nova forma de atuação. Antes, mediadores e pilares buscavam
compreender ainda com alguma distância as especificidades da comunidade para poderem
selecionar atividades, buscando sintetizar propostas que pudessem ser envolventes através
de cada uma das quatro características da experiência. Já na experiência piloto de integração,
devemos ampliar esta forma de atuar e realizar tal seleção e síntese diretamente com a comu-
nidade.
Ao final da Difusão, espera-se que grupos estejam se organizando para realizar atividades di-
versas ou discutir sobre assuntos específicos. Por termos instigado grupos temáticos e busca-
do colocar pessoas em contato em situações diversas, naturalmente sujeitos com questões
próximas podem começar a se conhecer e se mobilizar. É nosso papel facilitar que os descon-
fortos de cada um se transformem em grupos de discussão, estudo e ação. Por exemplo, sobre
a situação das calçadas; a má gestão das praças; a péssima qualidade e baixo atendimento dos
estabelecimentos públicos de saúde; o isolamento das escolas e a falta de professores, etc.
Sendo assim, a ação de constelar experiências de integração é baseada nesta energia que se
concentra. Muitos são os grupos que normalmente se formam para discutir questões dos bair-
191
V Movimento
ros, mas muitas vezes – muito mais vezes do que gostaríamos – acabam se desmantelando
por não saberem como operar e encaminhar suas ações ou manter seus membros motivados.
Mediadores e pilares entram neste ponto, facilitando e instigando os encaminhamentos que
começam a se delinear, mostrando opções de intervenção.
Mas não é apenas através destes grupos que iremos constelar as experiências no V Movimento.
Sugerimos outras duas formas: podemos ampliar a equipe de mediadores e pilares, englo-
bando outros pilares que não conhecíamos ou pessoas que passam a se mostrar ativas e inte-
ressadas; e podemos trabalhar com nossas bases de relacionamento, propondo a elas novas
possibilidades de ação.
Seja qual for a maneira de estarmos mais próximos da comunidade, a constelação será forma-
da com ela. Isso significa que mediadores, pilares, grupos e indivíduos passam a selecionar,
pesquisar, projetar o envolvimento nas quatro características e planejar as atividades colabo-
rativamente. Mediadores, então, passam a ser fundamentais não para selecionar sozinhos as
experiências e formar a constelação, mas sim para:
1. Compartilhar seu repertório e mostrar possibilidades de experiências
2. Discutir e abordar o conceito de experiências de integração
3. Sugerir a abordagem baseada na intenção de máximo envolvimento
4. Viabilizar a articulação entre grupos distintos com motivações semelhantes
Não se espera que na Integração todos os sujeitos atuem permanentemente juntos na pro-
posta de cada atividade. Esta união geral será centralizada nos fóruns. Diferentemente, para
constelar com a comunidade formamos e reformamos associações de grupos, instituições e
pessoas de acordo com as circunstâncias e vontades, de forma “adhocrática”, como discutido
anteriormente.
Por exemplo, se um grupo de moradores se une na crítica a um equipamento de saúde do
bairro, que não atende de forma satisfatória, cabe ao mediador discutir as possibilidades que
podem ter de intervenção e viabilizar o contato deste grupo com outros, como a subprefeitura
e outros equipamentos públicos, para formarem uma unidade que buscará modificar a situa-
192
VII Estratégia
ção que consideram inadequada. Evidentemente que esta integração e ação podem ocorrer
independentemente do mediador. Inclusive, é muito mais favorável que assim o seja, mas se
não for o caso, cabe a ele favorecer para que ocorram.
Assim, mediadores e pilares passam a atuar em diversas frentes, com maior variedade de inter-
locutores, para discutirem e viabilizarem atividades significativas. Permanecendo, assim como
no Movimento de Difusão, a mapear estas experiências e verificar o envolvimento do conjunto
social através dos indicadores de situação.
• Viabilidade
Na Integração, podemos buscar intervenções de maior complexidade do que na Difusão. An-
tes, ainda muito centradas em mediadores e pilares, propostas de vulto corriam maior risco
de não conseguirem se sustentar. A tendência, então, era de realizarmos experiências mais
simples e completas em si mesmas. Aqui, a maior tomada de ação diretamente da comunidade
potencializa a viabilização de intervenções mais abrangentes, complexas e, inclusive, legíti-
mas.
A conexão que mediadores possibilitam envolve o caminho que recursos podem fazer até a
execução de determinadas atividades. Por exemplo, uma empresa que quer realizar algum
projeto no bairro, procurando se inserir com maior visibilidade, pode ser um potencial parceiro
para uma associação de moradores que queira construir seu centro comunitário. Neste caso,
como em muitos outros, precisamos sempre nos manter atentos se não estamos nos deixando
levar pelos interesses e intenções das vertentes hegemônicas contra as quais procuramos lu-
tar. Ou seja, podemos atuar em parceria, mas não nos submetermos a elas.
Contudo, a viabilidade não depende de empresas privadas procurando melhorar seus planos
de marketing, ou algo que o valha. Podemos pensar na viabilidade pela perspectiva das cone-
xões sociais também pelo lado do microfinanciamento, ou “crowdfunding”. Se tivermos uma
boa base de relacionamento, canais de comunicação bem estabelecidos e uma comunidade
gradualmente mais coesa, viabilizar através da doação de indivíduos e instituições uma expe-
riência que lhes soe significativa, pode ser muito mais sólido do que encontrar um parceiro
exclusivo.
193
V Movimento
Da mesma forma, no time adhocrático formado para uma atividade, podemos ter grupos e
entidades que se dispõe a colaborar, seja com recursos, material ou mão de obra. Importante
ressaltar que a viabilidade das atividades não depende a prior de recursos financeiros. Cada
ator pode participar com os recursos que tiver disponível.
• Funções e objetivos
Experiências integrais, assim como aquelas pontuais desenvolvidas no movimento anterior,
têm os objetivos de desenvolver consciência e autonomia da comunidade reagir frente à dis-
tensão e desenvolver experiências integrais que sejam intervenções significativas ao bairro.
Contudo, aqui focamos muito mais na articulação das quatro redes sociais.
Importante relembrar que estas redes – formadas por vínculos de moradia, educação, trabalho
e uso diverso – não esgotam uma definição de comunidade, apenas nos dão suficiente abran-
gência para que a estratégia considere a maior parte dela. Sempre que nos depararmos com
redes que não podem ser configuradas como nenhuma destas quatro primeiras, assim como
se não conseguirmos identificar uma delas, podemos remodelar esta definição.
O importante é saber que grupos que formam o conjunto social são formados por vínculos de
alguma natureza, o que lhes modifica a vivência das atividades do bairro e lhes altera a forma
de ver significado em uma experiência ou outra.
• Verificações de envolvimento
A constelação que vamos formando com a comunidade também deve ser constantemente
avaliada segundo os critérios e indicadores desenvolvidos. É importante que discutamos com
os grupos de intervenção estes indicadores e os alteremos se identificarmos necessidade,
considerando-se que sempre devemos prever de antemão as formas como vamos verificar o
envolvimento dos sujeitos com a atividade que foi executada.
Passamos ao próximo movimento se verificarmos que atingimos estados satisfatórios de en-
volvimento nas quatro características da experiência. Redundando o exposto no movimento
anterior: se propomos uma atividade com intenção de envolvimento muito baseada na ex-
194
VII Estratégia
periência pela Ação, vamos procurar verificar se as pessoas agiram; se a intenção estava no
Meio, verificamos se as intervenções instigaram a comunidade; se na Cultura, verificamos se as
pessoas se identificaram com a atividade; se na Visão, se a experiência lhes agregou algo novo.
17. FÓRUNS DELIBERATIVOS
Um dos objetivos do movimento anterior é motivar através da intervenção prática a comu-
nidade a intervir, vendo que pode tomar a ação para si. As questões que vão surgindo com
o gradual alinhamento de interesses podem formar grupos temáticos, como discutimos, que
podem tanto ser de pesquisa, planejamento ou ação. Estes grupos, quanto mais envolvidos e
abrangentes no bairro, podem se tornar fóruns deliberativos. Esta transformação não exclui
os grupos temáticos, que podem tanto permanecer ativos quanto serem ampliados e novos
serem criados. Contudo, dependendo das questões que tratam, é interessante que se tornem
representativos e legítimos a comunidade como um todo.
Grandes mobilizações muitas vezes já são motivadas por grandes questões: a falta de habita-
ção adequada; a escassez de equipamentos públicos; a falta de infraestrutura urbana; a explo-
ração do trabalho assalariado; etc. Sejam quais forem as questões, por vezes pode-se organizar
grupos para intervir, ou seja, para constelar experiências integradas. Contudo, outras vezes
podemos verificar que faltam consensos sobre qual intervenção realizar, ou mesmo a falta de
unidade ao conjunto social para que propostas sejam definidas e viabilizadas.
Sendo assim, os fóruns deliberativos nascem, de forma geral, dos grupos temáticos e buscam
integrar a comunidade em discussões que lhe digam respeito. Mediadores podem atuar na
facilitação dos encontros e no apoio para a definição das pautas que alinhem os interesses das
pessoas. É importante considerar que grupos temáticos muito focados em reivindicações de
grupos sociais específicos, mas que à primeira vista não dizem respeito à unidade da comuni-
dade, devem ser trabalhados com muita cautela e cuidado. Precisamos evitar ao máximo gerar
conflitos destrutivos no conjunto social, com grupos rompendo relações.
Temos, então, uma questão: os fóruns precisam da intermediação de mediadores para que
integrem e não segreguem interesses de grupos distintos. Sendo assim, no V Movimento os
195
V Movimento
fóruns que procuraremos formar ainda dizem respeito explicitamente ao conjunto do bairro,
com oposições que se agreguem. Evidentemente, sempre haverá oposição nas exposições de
ideias sobre como se intervir. O que precisamos evitar são interesses diametralmente contra-
ditórios e opostos entre grupos.
Por exemplo, a situação de um bairro onde convive população de classe média alta e de classe
baixa, em uma ocupação irregular, com altos índices de vulnerabilidade. Se ainda não houver
aproximação e empatia entre estes dois grupos, corre-se o risco de haver um conjunto de pes-
soas que lute pela reintegração de posse da ocupação e expulsão dos moradores. O fórum que
pode ser formado para lidar com a questão deve ser mediado com muita cautela para que não
se torne um espaço de simples agressão e não debate. Para que seja um espaço de acolhimen-
to, é preciso que haja consciência social e já algum sentimento de unidade, o que podemos e
devemos procurar desenvolver através da constelação de experiências que criamos.
Contudo, fóruns mais gerais tendem a unir mais a comunidade, como aqueles que dizem res-
peito a questões do espaço público e dos equipamentos urbanos existentes. É interessante
que mediadores se foquem e facilitar e viabilizar estas pautas, pois são válidas inclusive para
integrarem grupos sociais distintos.
• Organização dos fóruns
Não vamos, aqui, sugerir organizações muito rígidas. Procuraremos sugerir apenas algumas
diretrizes e reflexões para que mediadores realizem o que parecer mais adequado de acordo
com suas circunstâncias.
Fóruns, assim como o espaço para os romanos antigos e de forma semelhante à Ágora grega,
são as praças centrais da cidade, onde estão presentes os edifícios principais da vida pública.
Em nosso caso, sugerimos que se organizem em espaços extensos, visíveis e importantes do
bairro. Seja uma praça central, um auditório, um teatro, ou qualquer local que tenha fácil aces-
so e que chame a atenção daqueles que por ali passam.
É de se refletir sobre a validade do local do fórum não ser fixo, rodando entre espaços distintos
de um encontro ao outro. Pelo lado positivo, temos a comunidade entrando em contato com
196
VII Estratégia
vários locais que estão presentes em seu perímetro; pelo lado negativo, não criamos a centra-
lidade e a cultura do local do fórum, o que pode ser muito importante. Neste sentido, é muito
interessante que a comunidade caminhe na direção de construir um local para suas assem-
bleias, seja um anfiteatro ao ar livre em uma praça, com o básico de equipamento de som, se
necessário, seja dentro de uma sede comunitária.
Fóruns precisam ter pauta definida, sugerimos que organizada pelo grupo temático que vem
estudando sobre seu tema, horários claros de início e término, e serem muito bem comunica-
dos. Contamos com as boas bases de comunicação que estabelecemos. Sugerimos que a parte
inicial conte com informes e discussões em pauta, mas que se chegue de fato ao momento
deliberativo, buscando decisões e encaminhamentos. Estes podem ser inclusive as pautas das
próximas reuniões, mas devemos sempre evitar terminar uma reunião sem saber quais serão
nossos próximos passos.
Sugerimos também que se definam relatores, que ficam encarregados de redigir a ata dos
encontros, revisores, que revisam a ata e, dependendo das dinâmicas que são propostas, mo-
deradores para organizarem grupos menores dentro do fórum.
Uma questão fundamental é verificarmos, de forma semelhante ao que fazemos com os in-
dicadores para as experiências, o envolvimento da comunidade nos momentos de encontro
deliberativo. Precisamos desenvolver critérios que nos ajudem a verificar se o que ali se discute
e define é representativo e legítimo frente à comunidade. Quantas pessoas podem falar por
todas? Podemos pensar em maneiras de transmitir online a discussão; de verificar quantas
pessoas foram informadas do encontro; observar a porcentagem de participação da comuni-
dade, etc.
• Alinhamento
Dois são os elementos que sugerimos de alinhamento entre fóruns: em primeiro lugar, a orga-
nização de uma assembleia geral da comunidade, unindo todos os fóruns; em segundo, uma
aproximação da comunidade a si própria.
Quanto ao primeiro elemento, mesmo sendo valorizado que todos os fóruns tenham toda a
197
V Movimento
comunidade presente, muito provavelmente unirão pessoas com interesses e intenções próxi-
mas aos temas que discutem. Contudo, a comunidade não deixa de ser uma só. Sendo assim,
mediadores devem levar aos fóruns que se formarem a ideia de se unirem entre si em assem-
bleias gerais.
Estas, que muitas vezes já são realizadas por associações de moradores, por exemplo, assim
como os fóruns, precisam ter pauta, relatores, revisores e encaminhamentos. Uma excelente
opção para os primeiros encontros é a exposição dos trabalhos dos grupos temáticos e dos
fóruns, de forma que a comunidade toda possa se informar com mais profundidade sobre o
que vem ocorrendo no bairro. Mediadores e pilares também podem expor suas atividades, as
experiências que vem desenvolvendo e as verificações que realizaram.
A assembleia do bairro será fundamental para o VI Movimento, pois sem ela não temos como
chegar a uma síntese das vontades e propostas do bairro como um todo. Fóruns precisam se
unir, e para tanto, a assembleia é o local fundamental aonde podemos alinhar nossas expecta-
tivas e planos de ação. Nela, outros grupos podem se formar para embasar este alinhamento,
dentre os quais acreditamos ser o mais fundamental o de aproximação da comunidade a si
mesma.
Neste segundo elemento de alinhamento, sugerimos que se faça algo semelhante ao que
mediadores e pilares realizaram nos Movimentos de Aproximação e Contato, com momentos
de sensibilização, leitura, mapeamentos e avaliações de situação. Contudo, devemos integrar
diversos atores para que se possa ampliar a profundidade destas aproximações. Assim, pode-
mos realizar pesquisas e questionários mais extensos e abrangentes, pesquisar dados sobre o
bairro em mais fontes, avaliar sua situação com mais olhos, etc.
Com estes dados, podemos realizar um primeiro diagnóstico efetivamente colaborativo, ava-
liando qual é a situação do bairro, quais suas carências, quais seus desconfortos, qual seu es-
tado de consciência, autonomia e coesão. Em outras palavras, o diagnóstico envolve a am-
pliação das verificações que mediadores e pilares já realizam e dos indicadores e dados que já
levantavam. Este diagnóstico será fundamental para sintetizar um documento que mostre o
“bairro que temos”, ainda neste V Movimento, desenvolvido e sintetizado em assembleia, cuja
198
VII Estratégia
legitimidade e representatividade devem ser verificadas.
São diversas as metodologias que nos apoiam para realizar este diagnóstico. Jan Gehl e a Se-
cretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, por exemplo, iniciam a definição
de suas diretrizes para um plano de intervenção no centro da cidade através de workshops
com a população. Os três momentos destes workshops: a identificação de problemas e poten-
cialidades; avaliação em campo da situação; levantamento de hipóteses de transformação .
De forma semelhante ao mapeamento de experiências que mediadores realizam, o diagnósti-
co pode ser realizado a partir do levantamento de informações por grupos organizados entre
fóruns, embasando discussões temáticas em grupos separados em assembleia. Mapeamos
pontos positivos, negativos, potencialidades e carências não apenas no espaço público, mas
com relação a todas as experiências do viver que nos dizem respeito. Todas elas estão presen-
tes no espaço, logo, podemos mapeá-las. Mesmo quando um desconforto é com a subpre-
feitura, por exemplo, podemos pontuá-lo no mapa, assim como se tivermos problema com
equipamentos esportivos, policiamento, saúde, etc.
Sendo assim, fóruns específicos compartilham suas discussões; aproximamo-nos com olhar
mais cuidadoso ao bairro; avaliamos nossa situação; e levantamos hipóteses de transforma-
ção. São partes que constituem o diagnóstico que dará base ao plano a ser desenvolvido na
sequencia, no VI Movimento.
18. ARTICULAÇÃO COM VIZINHOS
O bairro com o qual estamos atuando não é, de forma alguma, uma ilha. A não ser que esteja-
mos lidando com uma comunidade de fato isolada, sempre teremos de lidar com os vizinhos
ao perímetro de intervenção. Estes não são menos importantes do que o próprio bairro onde
estamos, muito pelo contrário.
Em primeiro lugar, são nossos vizinhos que fazem com que possamos ter um “perímetro”. Em
segundo, boa parte das atividades que realizamos envolvem bairros vizinhos, seja pela sobre-
posição de redes sociais – por exemplo, moro em um bairro e trabalho ou estudo no vizinho
98. PMSP - Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano. Centro diálogo aberto (p.17)
199
V Movimento
– seja pela simples circulação urbana, quando temos de atravessar outros bairros para chegar
a um destino. Em terceiro, o conjunto de bairros é que forma uma cidade. Na medida em que
a cidade é a maior unidade comunitária agregada no espaço, então todos dizem respeito a
todos. A segregação pela identidade bairrista é uma farsa, pois desconsidera sua inevitável in-
serção. Em quarto, bairros vizinhos possuem outros tantos potenciais distintos de experiências
que também podem ser significativas para nós, e vice versa.
Estes, entre outros tantos motivos, já nos ajudam a perceber que precisamos de uma maneira
específica para lidar com os bairros justapostos a nosso perímetro. Em momento algum deve-
mos considerar nossa delimitação como uma barreira rígida. Contudo, nosso foco de atuação
nunca esteve de fato para fora da área de intervenção. Um dos desdobramentos dos grupos
temáticos pode ser lidar com esta limitação, questionando qual é a história e situação dos
bairros próximos.
Por um lado, pessoas podem optar atuarem como mediadoras, iniciarem todo o processo do
VII e desenvolverem suas estratégias para atuarem nestes bairros. Esta é a melhor opção, es-
praiando e difundindo a mediação na cidade. Mas podemos também trabalhar de forma ainda
distanciada. Neste caso, é interessante que se realize boa parte do primeiro ato do VII, que se
conheça os pilares daquelas comunidades; que se realize a aproximação dos bairros, mesmo
que superficial; e que se proponham experiências em seus espaços.
Quanto mais estabelecermos contato com os bairros vizinhos, maior a possibilidade de de-
senvolverem suas próprias estratégias e gradualmente passarmos a atuar juntos. Podemos
ampliar muito as possibilidades de experiências se agregarmos nossos potenciais e nossas
reações à distensão entre o viver e a vida. Muitas vezes vemos este tipo de contato entre asso-
ciações de moradores de bairros vizinhos.
O relacionamento e as informações que levantaremos serão fundamentais para o VI Movimen-
to, pois se tivermos propostas de impacto muito amplo, devemos procurar agregar as assem-
bleias de vários bairros.
200
VII Estratégia
19. PLANO DE AÇÃO DE DESENVOLVIMENTO
Chegamos ao último plano de ação da estratégia. Uma vez que as ações estão muito menos
centradas em mediadores e pilares, este plano não terá como foco o desenvolvimento de ex-
periências, como fizemos nos últimos movimentos. Diferentemente, estamos planejando nos-
sa saída de cena, o momento final em que vamos atuar no bairro dentro da estratégia que
delineamos. Evidentemente que o final da estratégia não significará qualquer impedimento
à ação de mediadores no bairro, nem que este terá alcançado sua plena autonomia e consci-
ência. Sendo assim, o plano de ação de desenvolvimento caminha à conclusão de uma etapa,
mas inaugura outra.
• Narrativa de integração
Temos muito para contar sobre a Integração. A história do relacionamento entre redes, do
desenvolvimento cada vez mais integrado e autônomo de experiências pela comunidade, a
organização dos primeiros fóruns, o estabelecimento da assembleia e o relacionamento com
bairros vizinhos são momentos de tal magnitude que sua narrativa deve ser valorizada. Conte
esta história com calma, valorize as especificidades da comunidade.
Antes de tudo, valorize muito os momentos mais críticos da estratégia no V Movimento. Um
dos que mais pode ser complicado é o da experiência piloto de integração e das primeiras pro-
postas realizadas em conjunto com grupos da comunidade. Nunca podemos antever como o
conjunto social se portará nesta ação, logo sempre corremos o risco de que ele não se envolva
ou de que seu envolvimento não perdure. Mesmo que façamos de tudo para mitigar tais riscos,
buscando ampliar a cultura de envolvimento e ação, sempre há a possibilidade de termos de
interromper a estratégia no V Movimento.
Se este for o caso, não desanime, acredite que muito foi feito e muitas transformações ocor-
reram. A narrativa de integração vale para contar esta história também e para refletir se vale
a pena voltar alguns passos atrás, eventualmente voltando ao IV Movimento. Entretanto, se o
V Movimento tiver corrido adequadamente, mesmo que sem passar por todos os momentos
propostos no VII, conte como ocorreram as transformações e os envolvimentos da comunida-
201
V Movimento
de e como chegaram à conclusão de passar ao Desenvolvimento.
• Avaliação da situação de integração
Com os indicadores que já tínhamos definido, permanecendo verificando a situação do bairro.
Contudo, aqui também precisamos agregar o documento do “bairro que temos”, desenvolvi-
do em assembleia. São duas avaliações distintas e complementares, uma vez que mediadores
sempre permanecem com olhar analítico distinto.
Através desta avaliação que justificamos nossa passagem ao VI Movimento. Mesmo que a as-
sembleia não esteja profundamente estabelecida ou que o diagnóstico da situação do bairro
não tenha sido concluído, podemos chegar a conclusão de que é hora de passar ao Desenvol-
vimento, caso tenhamos atingido os objetivos de envolvimento e integração que traçamos
previamente.
• Mapeamento de experiências de integração
Assim como no movimento anterior, mapeie as experiências que foram realizadas no V Movi-
mento no mapa base, mostrando em cores ou formas distintas as diferenças entre elas. Este
mapa sintetiza a Integração. É interessante mostrar onde ocorrem os fóruns e assembleias.
• Planejamento de assembleia
Planeja-se os próximos passos da facilitação e mediação nas assembleias que estão por vir.
O mediador terá ainda menos centralidade no movimento seguinte, quando buscará que a
comunidade sintetize em assembleia uma resposta ao “bairro que temos”, em uma proposta
integrada de o “bairro que queremos”.
Estes dois documentos, que serão as partes iniciais do projeto político-pedagógico que vamos
buscar desenvolver, são análogos à consciência desenvolvida sobre as experiências que temos
no viver cotidiano (bairro existente) e as vontades profundas de experiências de vida (bairro
que queremos). As outras partes do projeto que será realizado propõem formas práticas e am-
pliadas de reação à distensão entre estas situações, o viver e a vida.
202
VII Estratégia
Contudo, nosso planejamento sobre as assembleias fala exclusivamente de nossa forma de ação,
não a qualquer outro elemento que seja determinante a elas. A assembleia não nos pertence,
ela é a voz própria da comunidade e apenas à comunidade diz respeito. O que nos cabe é su-
gerir a ela que caminhe em determinados caminhos, mostrando as opções que se abrem neste
percurso.
• Metas e objetivos
Nossas propostas de projeto político-pedagógico será uma união final de tudo o que realizamos
e de conceitos de várias vertentes contra hegemônicas que estão presentes, mescladas na es-
tratégia. Para tanto, revise todos os seis movimentos que realizou, lembre-se de suas intenções
fundamentais, dos diversos momentos e transformações realizadas até aqui, das narrativas e
pessoas que conheceu.
Leia o próximo e último movimento e defina suas metas. Elas não serão mais tão relacionadas
ao que espera de transformação da comunidade, baseadas nos indicadores que desenvolve-
ram com os pilares. Diferentemente, elas dirão respeito a sua própria atuação novamente, como
eram no primeiro ato. O único objetivo que pode esperar da comunidade é a síntese em um pla-
no articulado de desenvolvimento. Todos os seus esforços estarão canalizados para este fim, que
terá sua expressão máxima e ponto conclusivo quando o plano começar a ser de fato executado.
Não sairemos de cena quando o projeto político-pedagógico for apenas um projeto. Em realida-
de, ele estará sendo escrito como uma síntese de algo que já está em andamento: a comunidade
já estará realizando experiências de integração, desenvolvendo consciência e aprofundando sua
autonomia, mobilizando-se em grupos temáticos, fóruns e assembleias. O projeto é um patamar
galgado. Um ponto de chegada para um salto maior.
Planejamos, neste último plano de ação, sair de cena e concluir a estratégia na narrativa final, o
ensaio, quando o projeto político-pedagógico estiver completo e começar a se tornar realidade.
Quando as frentes de ação começarem a atuar, quando as atividades centrais começarem a ser
executadas, quando a pressão no governo por intervenções de maior porte passarem a ser reali-
zadas, quando redes sociais distintas estiverem se mobilizando juntas em torno de fins comuns,
etc.
vi movimento: Desenvolvimento
207
Desenvolvimento
Chegamos ao último movimento da estratégia. Nossa caminhada até aqui foi longa e com
certeza muitas transformações ocorreram. Não podemos prever quais foram e quais serão os
percursos traçados por cada comunidade. Estes cabem exclusivamente a elas e aos aconteci-
mentos que vierem a ocorrer. Não à toa a estratégia é distinta de caso a caso e deve ser formu-
lada para acompanhar a fluidez das transformações que encontramos pela frente.
Neste trajeto, o VI Movimento não é o final da intervenção ou o encerramento do encadea-
mento de experiências. É um marco conclusivo apenas para o mediador, aquele que iniciou
sua atuação no já distante prelúdio, o primeiro momento da Orquestração, e que vem encerrar
sua atuação no ensaio, o último do Desenvolvimento. Isso não significa que precise se distan-
ciar ou romper laços com o bairro com o qual tanto se envolveu. Pelo contrário, pode muito
bem aprofundar este envolvimento e permanecer parte da comunidade.
Mas para o conjunto de pessoas que formam o bairro, o último movimento da estratégia é uma
síntese, uma passagem de um patamar a um patamar seguinte. Quanto mais os objetivos da
208
VII Estratégia
mediação forem alcançados, ou seja, quanto mais a comunidade desenvolver e aprofundar sua
consciência e autonomia de reação frente à distensão entre as experiências do viver cotidiano
e suas vontades profundas por experiências de vida, mais as ações e intenções do mediador e
as da comunidade se mesclam e se confundem.
Quanto melhor a mediação, mais se terá a impressão de que o mediador foi secundário no
processo, pois o conjunto social estará em posição de destaque, ativo e coeso. Mesmo que
pilares e boa parte da comunidade – principalmente sujeitos mais envolvidos nas atividades
realizadas – saibam desde sempre da função e importância dos mediadores, não podemos nos
deixar levar nunca pela vaidade. Se chegarmos ao Desenvolvimento com as ações ainda muito
centradas em nós ou em pessoas específicas, é muito possível que a autonomia não tenha de
fato sido desenvolvida e que o projeto político-pedagógico não se desdobre em novas expe-
riências de integração.
Precisamos lutar profundamente durante a Difusão e a Integração para que esta autonomia
seja desenvolvida, facilitando e viabilizando tudo que estiver ao nosso alcance. Entretanto,
chegado ao Desenvolvimento, não podemos ter a expectativa de que a totalidade das pessoas
que formam a comunidade tenha desenvolvido consciência da distensão. Mas podendo veri-
ficar que o conjunto, como unidade, permanece desenvolvendo experiências de integração e
mantendo o acompanhamento da verificação de envolvimento, podemos vislumbrar a media-
ção sendo perenizada.
Em outras palavras, lembrando que experiências de integração entre o viver e a vida são simul-
taneamente educativas (do ponto de vista de desenvolvimento de consciência da distensão) e
propósito da reação a esta distensão, pois é vivendo que se aprende a viver a vida, o objetivo
do Desenvolvimento como conclusão da intervenção do mediador é que a comunidade crie
sua própria estratégia de reação, de maneira semelhante ao que realizamos com o VII. Esta es-
tratégia da comunidade pode tomar muitas formas, mas iremos sugerir o formato de projeto
político-pedagógico.
Os momentos do Desenvolvimento:
20. Acompanhamento
209
VI Movimento
21. Fóruns e assembleias
22. Projeto político-pedagógico
23. Ensaio
20. ACOMPANHAMENTO
No IV Movimento as experiências eram consteladas e executadas por mediadores e pilares; no
V, já eram consteladas com a comunidade, integrando-se atores e grupos e sugerindo formas
de constelar e de se organizarem; no VI, por sua vez, nossa ação toma outra dimensão e pers-
pectiva. Grupos e equipes já devem se formar adhocratica e autonomamente para realizarem
intervenções e definir projetos. Se tivermos sido realmente bem sucedidos, a comunidade terá
internalizado de tal maneira a cultura de mediação, que cada vez mais veremos experiências
sendo realizadas sem estejam vinculadas a nossa ação.
Contudo, como o processo maturação é contínuo, podemos escolher entre três frentes de ação
ligadas a experiências: em primeiro lugar, podemos constelar experiências com pequenos gru-
pos, como fazíamos na Difusão, acreditando que são atividades importantes para o repertório
de possibilidades da comunidade; em segundo, podemos permanecer realizando experiên-
cias integradas, como fazíamos no V Movimento, atuando como facilitadores de grupos adho-
cráticos; e podemos atuar em experiências que já são realizadas autonomamente.
Esta última, mais vinculada ao VI Movimento, diz respeito a nosso acompanhamento externo.
Aqui, ficamos na posição de expectadores, discutindo com os grupos executores suas formas
de atuação, verificação de envolvimento, maneiras de constelar e envolver a comunidade de
forma participativa para realizar tal constelação, e todas outras informações que podem apri-
morar nossa metodologia e futuras estratégias.
O aprendizado que podemos ter com este acompanhamento é ímpar. Como diz o dito popu-
lar, “muitas cabeças pensam melhor do que uma”. Pois bem, podemos nos surpreender muito
com o que pessoas diferentes podem criar. Este repertório de novas possibilidades deve ser
compartilhado com futuros mediadores, sendo parte fundamental do ensaio final. Ao mesmo
210
VII Estratégia
tempo, podemos também partilhar estes aprendizados que temos na comunidade, com a pró-
pria comunidade, mostrando para uns o que outros estão fazendo.
Permanecemos, então, acompanhando a atuação dos grupos que se organizam e as expe-
riências que são propostas, mapeando-as como sempre fizemos. Contudo, a verificação de
envolvimento toma outra forma. Não podemos assegurar ou esperar que toda a comunidade
realize as avaliações da maneira como realizávamos. Por mais que seja de interesse do próprio
conjunto social permanecer fazendo tais verificações, nosso acompanhamento pode ser inte-
ressante para ressaltar tal importância.
Assim, os contatos que temos nas bases de relacionamento e com pilares são fundamentais.
Através deles, podemos instigar a comunidade a se monitorar e ter atenção se não está deixan-
do de lado alguma questão importante da mediação. É interessante que permaneçam verifi-
cando o envolvimento com os indicadores que utilizamos desde o III Movimento, de forma que
se possam gerar séries históricas e observar a evolução e transformação do bairro.
21. FÓRUNS E ASSEMBLEIAS
No V Movimento, valorizamos a criação de fóruns que tivessem pautas que não colocassem
grupos em conflitos destrutivos, com ideais ou valores profundamente contraditórios, mesmo
que não os evitássemos. No Desenvolvimento, não podemos garantir que a comunidade te-
nha desenvolvido consciência social suficiente para que todos considerem as reivindicações
de todos e que o consenso seja alcançado de forma pacífica. Mesmo assim, espera-se que se
tenha caminhado significativamente neste sentido.
Desta forma, podemos instigar grupos mais polêmicos e dar atenção a pautas difíceis de serem
discutidas. Uma vez que as experiências já estiverem sendo desenvolvidas com mais autono-
mia pelo conjunto social, podemos despender mais energia para atuar em fóruns. Passamos
a agir potencialmente como mediadores de conflitos, o que pode exigir algum preparo, que
podemos buscar com monitores, em ensaios de outras estratégias, e em bibliografia de apoio.
A variedade de possibilidades de tipos de conflito que podem surgir é de tal forma extensa que
211
VI Movimento
não nos cabe buscar uma metodologia pasteurizada para lidar com eles. É preciso pesquisar de
acordo com as circunstâncias. Por exemplo, se estivermos lidando com oposições entre grupos
de classes sociais distintas, talvez devamos ter uma abordagem diferente da que teríamos se a
oposição fosse entre grupos religiosos.
De qualquer forma, permanecemos sugerindo que sejam realizadas as verificações de legiti-
midade e participação nos fóruns, bem como sua organização com relatores, revisores e mo-
deradores. Indicadores e atas sempre serão fundamentais, inclusive frente à opinião pública e
ao governo, caso a comunidade tenha de tomar uma posição sobre alguma questão pública.
Muitas vezes governos tomam a voz de uma associação que leva o nome do bairro como se
por definição ela detivesse legitimidade, contudo, o que vemos é que na maior parte das ve-
zes isto não é verdade, com associações sendo muito pouco conhecidas por suas respectivas
comunidades .
A unidade de voz entre fóruns e entre todos os grupos e indivíduos do bairro deve ser cada vez
mais reforçada na figura da assembleia. Se no movimento anterior ela ainda estava em suas
primeiras fazes de instauração, aqui precisamos buscar sua autonomia e atividade. Não é uma
tarefa simples termos conseguido redigir no V Movimento o diagnóstico participativo do “bair-
ro que temos”. Podemos, eventualmente, ter passado ao VI sem ter este documento completo.
Isto não é um problema. Nossa maior preocupação é que a assembleia seja forte. Uma vez
sendo, torna-se mais fácil a realização do diagnóstico, bem como seu desdobramento na de-
finição das diretrizes do “bairro que queremos”. Sendo assim, nosso primeiro maior desafio no
Desenvolvimento é que a assembleia seja organizada, visível à comunidade e bem comunica-
da, e que passe a gerar internamente novos fóruns e grupos temáticos. Assim, pode-se associar
frentes como aquela de comunicação, que precisa permanecer ativa e operante; bem como
criar uma que realize verificações de envolvimento.
A união de diversas frentes de trabalho e intervenção talvez dê a melhor forma ao que po-
deríamos chamar de uma associação comunitária, onde a busca pela integração entre atores
de diversas redes distintas é permanente. Esta associação pode tanto ser oficializada como
uma pessoa jurídica, quanto permanecer informal, o que não significa estar menos organizada.
212
VII Estratégia
Contudo, é de se pensar na possibilidade de se formar uma associação formal, pois para diver-
sos contratos com o poder público, por exemplo, exige-se vínculo institucional. Uma opção a
esta necessidade é realizar tal vínculo com o governo através de parceiros institucionais.
Mas esta associação – fundada no seio da assembleia, e não o inverso – depende de intenções
e motivação para atuar. Muitas vezes vemos associações de moradores definharem ao verem
seus objetivos serem atingidos ou a comunidade perder sua motivação para se mobilizar. Pre-
cisamos evitar isto, de forma que experiências de integração permaneçam sendo realizadas,
potencializadas e viabilizadas pela assembleia e pela associação, escalando cada vez mais em
profundidade e força na integração entre o viver e a vida.
Fóruns podem chegar a conclusões de que as experiências que a comunidade quer não es-
tão em sua alçada, como intervenções urbanas muito amplas; instalação de infraestrutura de
transporte público; melhoria de equipamentos de saúde; instalação de novos equipamentos
sociais; etc. Pautas desta magnitude precisam se tornar planos e projetos a serem articulados
com os interlocutores adequados, seja o Estado, empresas ou qualquer outro.
Temos, então, por um lado o diagnóstico realizado pela comunidade, o “bairro que temos”, e
demandas e projetos do outro, que vão dar forma ao “bairro que queremos”. Assim como reali-
zamos com a assembleia anteriormente, devemos buscar o alinhamento destas duas aborda-
gens, formando as bases do projeto político-pedagógico.
22. PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO
Finalmente, chegamos ao objetivo sintético da estratégia. Podemos dizer que o projeto políti-
co-pedagógico seria um “objetivo pelo processo”, ou seja, é mais uma síntese de toda a trans-
formação ocorrida ao longo dos seis movimentos do que de fato um objetivo. Muitas vezes
vemos metodologias que tem como meta a definição de projetos como este, tendo-o como
justificativa para mobilizações. Não é o nosso caso. Nossas intervenções e atividades são reali-
zadas com intenções e motivações específicas e independentes.
O projeto político-pedagógico (ou PPP), para que possa ser concebido, depende de termos
213
VI Movimento
caminhando com alguma consistência na estratégia. As bases de relacionamento e a integra-
ção que é realizada; as bases de comunicação; os grupos temáticos; os fóruns; a assembleia e a
potencial associação são suas fundações. Sem elas, a redação do PPP corre o risco de ser vazia
tanto do ponto de vista de consciência das vontades profundas da comunidade; quanto de
potencial autonomia para ação e legitimidade.
O documento que vamos formar é uma combinação de elementos de diversos tipos de planos
encontrados em vertentes contra-hegemônicas de educação, política e urbanismo. A dimen-
são educacional reside na constelação que estará contida no projeto; a política, a forma como
vamos defini-lo e suas seções operacionais; e a urbanística, nas dimensões de espaço e tempo
que dão forma às propostas de transformação.
Como síntese do que realizamos até aqui e como proposta de estrutura, estaremos mesclando
conceitos de plano de bairro, de projeto político-pedagógico de escolas democráticas e de
micro pools deliberativos. Como discutimos no capítulo sobre vertentes contra-hegemônicas,
conceitos como estes, ao partirem da busca pelo máximo envolvimento do sujeito, lidam com
ele em sua dimensão complexa e integral. Ao falarem com o mesmo interlocutor, acabam com
estar muito próximos.
Adotamos uma definição próxima a de Padilha, citando Gadotti, para projeto político-pedagó-
gico, onde ele seria “um situar-se num horizonte de possibilidades na caminhada, no cotidiano,
imprimindo uma direção que se deriva de respostas a um feixe de indagações” . O projeto se
situa no futuro, ancorado no presente, fundado em consensos. Sendo assim, contem muitos
elementos semelhantes a nossa estratégia e ao VII.
Para que seja possível redigir o PPP, precisamos definir algumas linhas gerais para seu desen-
volvimento e como mediadores podem atuar nesta que pode ser sua última ação estratégica.
• Desenvolvimento
O processo que sugerimos para o desenvolvimento do PPP é muito semelhante aos movimen-
tos do VII.
214
VII Estratégia
Como ressalta Padilha, seu processo de desenvolvimento depende de estabelecermos regras
claras de participação e de operarmos um bom sistema de comunicação. É interessante que
todas as ações do grupo de trabalho que tomar a frente na elaboração do projeto sejam muito
bem veiculadas e estejam públicas para a comunidade, inclusive verificando o melhor possí-
vel se a informação está efetivamente chegando às pessoas. Realizar eventos de divulgação e
workshops de envolvimento é sempre boa ideia.
Cada ator e cada grupo presente na assembleia pode tomar frente em uma dimensão do traba-
lho, de acordo com sua posição e facilidades. A divisão do trabalho pode ser muito proveitosa,
uma vez que o processo pode ser um pouco extenso. Sugerimos que este processo de elabo-
ração contemple cinco partes:
1. Elaboração do marco referencial
2. Diagnóstico da situação: o bairro que temos
3. Constelação de experiências: o bairro que queremos
4. Potenciais de articulação e viabilização: autogestão
5. Indicadores e verificações
O marco referencial explicita “qual é a visão de mundo, os valores e compromissos” que a co-
munidade esta assumindo e “expressa a sua própria ‘cara’, sua identidade e a direção, o rumo
que deseja tomar daqui para frente” . É no marco que estarão sumarizadas as intenções e obje-
tivos que a comunidade assumir como condizentes com suas características e convicções, ou
seja, é o documento correspondente à síntese da consciência da comunidade.
Sugerimos que coloquemos em pauta alguns pressupostos e objetivos que utilizamos em nos-
sa estratégia, para que sejam discutidos e eventualmente englobados no marco referencial.
Alguns que consideramos fundamentais:
• Intenção de máximo envolvimento
• Valorização da identidade do conjunto social e de cada indivíduo
215
VI Movimento
• A busca pela consciência profunda das próprias vontades
• A busca pela consciência da distensão
• Autonomia da comunidade e de cada indivíduo
• Busca da autogestão
Padilha sugere que a definição do marco seja realizada a partir de perguntas que instiguem o
debate, como “como compreendemos o mundo atual” ou “quais são os seus principais proble-
mas e suas maiores necessidades”. Acreditamos ser uma boa abordagem, por mais que seja
muito difícil definir tais perguntas. É preciso cuidado para não incorrer tanto em superficia-
lidades quanto em questões demasiado profundas, que acabem por desmotivar as pessoas.
Organizar a assembleia em grupos de discussão, cada um tendo um moderador e um relator,
pode ser uma boa sugestão de organização, para em seguida abrir o debate ao plenário.
O diagnóstico do bairro, sintetizado no documento “o bairro que temos”, realizado no movi-
mento anterior através de metodologias do II e III Movimentos, pode ser aprofundado se a
assembleia acreditar ser necessário fazê-lo. É importante que estejam sempre contempladas
as dimensões de personalidade e identidade do bairro, de forma que de fato se identifique
com os problemas e as qualidades expostas no documento. Quanto mais envolvermos atores
para realizar o diagnóstico, melhor. Crianças, idosos, estudantes, comerciantes, todos podem
desempenhar papel fundamental nas leituras, pesquisas, levantamentos, etc. O diagnóstico
sumariza a consciência da comunidade frente às experiências do viver cotidiano.
Em seguida a esta consciência, sugerimos sintetizar, também, a consciência do conjunto sobre
suas vontades profundas por experiências de vida, ou seja, “o bairro que queremos”. Aqui, o
debate procura o consenso em torno de artigos que englobem as vontades, em um ambiente
democrático deliberativo. Como nos dizia Manin, todos podem se envolver na deliberação,
colocar seus pontos de vista e, juntos, buscarem as melhores respostas.
Esta dinâmica pode tomar um tempo. Para que seja mais organizado e eficiente, sugerimos
que o mediador, ou outra pessoa que atue como moderadora, exponha as regras do “jogo” e
216
VII Estratégia
recolha as vontades por experiências de vida das pessoas individualmente em cartões, o que
já nos possibilita verificar sinergias, oposições e criar um quadro geral. A partir deste quadro,
pode-se formar grupos com relatores, que debaterão sobre os temas levantados e outros que
considerarem adequados.
Os temas que são levantados são abertos à assembleia ou aprofundados em grupos temáticos.
Caminhamos para que as discussões sejam sumarizadas por relatores, que junto com um gru-
po de trabalho designado em assembleia tratarão de sumarizar as vontades por experiências
de vida em artigos. Estes são colocados novamente em pauta na assembleia e discutidos um a
um, modificando-os de acordo com os debates. Todo este processo deve ser muito bem comu-
nicado para fora da assembleia e procurar permanentemente envolver novos atores e grupos,
inclusive em workshops espalhados pelo perímetro do bairro.
Chegaremos a um documento que nada mais é do que um plano de constelação de experi-
ências. Podemos inclusive sugerir que seja realizado um mapeamento das propostas contidas
nos artigos, mesmo ressaltando que eles não dizem respeito apenas a intervenções, mas po-
dem ser também linhas de ação, propostas de novas instituições e empreendimentos sociais,
ações práticas, etc.
Temos, assim, por um lado as experiências do viver – o bairro que temos – e as vontades de ex-
periências de vida – o bairro que queremos. A consciência da distensão é inerente à oposição
entre estas duas situações. O que precisamos agora é delinear quais são as potencialidades
do bairro para reagir a esta distensão. Aqui, procuraremos encontrar os canais e agentes que
articulados viabilizam a execução das experiências de integração.
Finalmente, debatemos e refletimos sobre quais são os elementos da situação do bairro que
manteremos acompanhamento e avaliação, como definimos no III Movimento com os pilares.
É fundamental que tenhamos bem definidas as formas de verificação. Sugerimos que sejam
colocadas em pauta aquelas que discutimos no Movimento de Contato e que seja abordada
a dimensão da verificação do envolvimento através das quatro características da experiência:
meio, ação, cultura e visão.
A verificação e as avaliações de transformação do bairro permitirão que o PPP seja um docu-
217
VI Movimento
mento em constante revisão, o que também deve ser colocado em pauta. Não podemos achar
que sua redação é definitiva e estática. Precisamos saber que as avaliações constantes devem
ter impacto sobre suas diretrizes.
• Estrutura
Não há qualquer estrutura que seja maior do que aquela que a comunidade definir com a
adequada. Aqui, vamos sugerir algumas seções de síntese, baseadas no desenvolvimento re-
alizado anteriormente:
1. Identificação e justificativa. Explica brevemente as motivações e os antecedentes que
levaram a comunidade a realizar o projeto.
2. Marco referencial. Explica os fundamentos teóricos e os valores que norteadores.
3. Objetivos gerais. Explicita os objetivos do PPP e sua finalidade.
4. Diagnóstico participativo: o bairro que temos. Introduz a aproximação profunda das
características, identidade e situação do bairro, inclusive delimitando os contornos de
sua comunidade, seu perímetro e seus vizinhos.
5. Constelação de experiências: o bairro que queremos. Sumarizado na série de arti-
gos que dizem respeito às ações, atividades e intervenções que se quer desenvolver.
6. Articulação e viabilização: autogestão. Quais os recursos necessários; quais os atores
que podem ser envolvidos; quais as necessidades de contatos externos, como com o
Estado e como serão viabilizadas. Como viabilizar a constelação articulando atores.
7. Estratégia. Qual metodologia integrará todas as etapas de planejamento à execução
das experiências? Quais são prioritárias, de acordo com os objetivos? Sugerimos que se
siga uma estrutura semelhante à do VII.
8. Avaliação e verificação. Quais elementos de situação serão avaliados; quais os indica-
dores; quais as verificações e suas formas de serem realizadas; quem são os responsá-
veis por realizar relatórios.
9. Comunicação. Quais as formas de manter todo o processo transparente e comunicado,
218
VII Estratégia
buscando permanentemente agregar mais grupos e pessoas da comunidade.
10. Metas e cronograma. Quais as metas dentro da estratégia; quantas e quais experiên-
cias pretendemos desenvolver em quais períodos de tempo; quem são os responsáveis
por cada etapa e cada parte do trabalho; qual a meta para cada um deles; qual o rela-
cionamento com avaliação e verificação.
11. Anexos. Mapas; livretos de experiências planejadas; imagens e relatórios de dinâmicas
de desenvolvimento do PPP; verificações de envolvimento no desenvolvimento; e todo
tipo de dado de apoio para a execução do projeto.
• Acompanhamento
Quanto o projeto político-pedagógico estiver concluído, o mediador estará a um passo de
poder considerar sua estratégia finalizada. A última ação que pode ser importante é começar
a transformar o PPP em realidade. O mediador deve ajudar a comunidade a “quebrar o gelo”
e colocar o projeto em prática. Este acompanhamento, mesmo que simples, pode ser de toda
diferença.
Se o processo de definição do PPP tomar muito tempo e energia, corre-se o risco de se esva-
ziar sua execução posterior. É muito importante que a deliberação em torno no projeto não
signifique interromper a execução de outras experiências e da ação de grupos temáticos e
fóruns. Tudo deve ocorrer simultaneamente e ser revigorado com o suporte do projeto. Cabe
ao mediador ajudar a comunidade nesta derradeira articulação.
23. ENSAIO
Finalmente, a estratégia pode ser considerada finalizada. Como última ação, propomos que
mediadores sumarizem seu percurso, desde o início do I Movimento até aqui em uma grande
narrativa que agregue as cinco narrativas realizadas ao longo da estratégia. A função deste
ensaio é tanto ser uma autorreflexão sobre a estratégia que foi desenvolvida, quanto de apoio
para futuros mediadores e reformulação do VII. Sua síntese é de grande valia para todos que
partilham da vontade de reagir a distensão entre o viver e a vida. Sua estrutura é aberta, pode-
219
VI Movimento
-se relatar as experiências da forma como se achar mais adequado. Finalizamos com uma su-
gestão geral de estrutura:
1. Introdução: I Movimento.
• Quais foram minhas motivações
• Grupo formado de mediadores
2. Aproximação e contato: II e III Movimentos
• Leitura sensível do mediador. As primeiras impressões; a deriva; visão seriada; co-
mentários localizados; objetivo é apresentar como se sente o bairro numa primei-
ra abordagem. Interessante apresentar um mapa grande com esta sensibilização.
• Leitura técnica do mediador. As informações que podemos ler friamente, de fora,
aquelas que numa abordagem distanciada dizem o que é o bairro.
• Mapas. Zoneamento e uso do solo; equipamentos e espaços públicos; sistema
viário e recursos hídricos; outros que considerar importantes para o caso.
• Contato com pilares. Como os encontramos. Como foi o contato. Como foi a dis-
cussão.
• Avaliação do bairro: sintético e descritivo. Experiências pré-existentes. Situações
a avaliar. Indicadores desenvolvidos
3. Narrativa de difusão: IV Movimento.
• Canais de comunicação: quais eram, quais foram as discussões, como foram am-pliados ou desenvolvidos.
• Estabelecimento de bases por rede
• Grupos temáticos desenvolvidos
• Narrativa de experiências pontuais mais interessantes e descrição de suas quatro características
4. Narrativa de integração: V Movimento.
• Narrativa das experiências integradas mais interessantes e descrição de suas qua-tro características
220
VII Estratégia
• Estruturação dos fóruns e da assembéia
• Articulação com outros bairros
5. Mapa síntese de experiências
• Pré-existentes: III Movimento.
• Pontuais: IV Movimento
• Integradas: V Movimento
6. Projeto Político-Pedagógico
• Processos de debate e discussão
• PPP desenvolvido
• Mapa síntese do plano de constelação de experiências
7. Resenha crítica
• Discutindo sua avaliação pessoal da estratégia que foi traçada e do percurso que foi percorrido.
8. Contato dos mediadores (podem ser monitores para novos trabalhos)
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referências
universiDaDe De são paulo
faculDaDe De arquitetura e urbanismo
Trabalho final de graduação
São Paulo | 2014
luis fernanDo villaça meyer
orientação: prof. Dr. fábio mariz gonçalves