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PÁGINA 37 A echarpe e o babado da camisa eram sempre o que havia de mais imaculadamente branco; as roupas, as mais negras e requintadas; a corrente do relógio de ouro, das mais pesadas, e os lacres, dos maiores. As botas, sempre muito reluzentes, rangiam com seu andar (...) e, enquanto os pacientes detalhavam seus sintomas, ele tinha um jeito peculiar de dar estalidos com os lábios e dizer "Ah" a intervalos, o que inspirava grande confiança. Charles Dickens (1812-1870), Martin Chuzzlewit (descrição do Dr. Jobling, clínico geral) Ao emergir num ambiente coalhado de doenças, a civilização buscou formas de propiciação e alívio. As pessoas sempre tentaram proteger a si mesmas e a suas famílias — isso é parte integrante da autopreservação e da função parental. Desde os primórdios, no entanto, curar também se tornou ofício de adivinhos e feiticeiros, que combatiam os distúrbios vindos do alto e ofereciam remédios. Antigas pinturas rupestres, feitas em cavernas há cerca de 17.000 anos, retratam homens mascarados com cabeças de animais executando danças ritualísticas; essas talvez sejam nossas imagens mais antigas dos curandeiros. Com a evolução de sociedades estabelecidas e mais complexas, seguiram-se os herboristas, os auxiliares de parto, os consertadores de ossos e os sacerdotes curandeiros. PÁGINA 38

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A echarpe e o babado da camisa eram sempre o que havia de mais imaculadamente branco; as roupas, as mais negras e requintadas; a corrente do relógio de ouro, das mais pesadas, e os lacres, dos maiores. As botas, sempre muito reluzentes, rangiam com seu andar (...) e, enquanto os pacientes detalhavam seus sintomas, ele tinha um jeito peculiar de dar esta-lidos com os lábios e dizer "Ah" a intervalos, o que inspirava grande confiança.— Charles Dickens (1812-1870), Martin Chuzzlewit (descrição do Dr. Jobling, clínico geral)

Ao emergir num ambiente coalhado de doenças, a civilização buscou formas de propiciação e alívio. As pessoas sempre tentaram proteger a si mesmas e a suas famílias — isso é parte integrante da autopreservação e da função parental. Desde os primórdios, no entanto, curar também se tornou ofício de adivinhos e feiticeiros, que combatiam os distúrbios vindos do alto e ofereciam remédios. Antigas pinturas rupestres, feitas em cavernas há cerca de 17.000 anos, retratam homens mascarados com cabeças de animais executando danças ritualísticas; essas talvez sejam nossas imagens mais antigas dos curandeiros. Com a evolução de sociedades estabelecidas e mais complexas, seguiram-se os herboristas, os auxiliares de parto, os consertadores de ossos e os sacerdotes curandeiros.

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Entre os curandeiros indígenas distingue-se o xamã, comum na Sibéria e no Novo Mundo, com seu repertório de magia e rituais contra as doenças. Exibindo fetiches, amuletos para proteger contra a magia negra e talismãs da sorte, os xamãs combinavam os papéis de curandeiro, feiticeiro, vidente, professor e sacerdote, alegando ter poderes espirituais para curar os doentes, combater a feitiçaria e garantir a fertilidade. Os antropólogos de hoje atri-buem habilidades valiosas, tanto médicas quanto sociais, aos xamãs e curandeiros populares semelhantes.

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Com a ascensão das civilizações fixadas na terra, as práticas de tratamento tornaram-se mais sofisticadas e passaram a

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ser escritas. Na antiga Mesopotâmia (Iraque), surgiu um siste- ma médico oficial, baseado numa estrutura diagnóstica que recorria a augúrios e técnicas divinatórias, entre elas a hepatoscopia — o exame do fígado de animais sacrificados. Os tratamentos combinavam ritos religiosos e terapias empíricas. Dirigidos por um.médico-chefe, três tipos de profissionais da cura exerciam a profissão: o vidente (bârú), que era perito em adivinhações; o sacerdote (âshipu), que fazia exorcismos e encantamentos, e o médico (âsü), que utilizava drogas e fazia cirurgias e curativos.

Como na Mesopotâmia, também no Egito dos faraós (do terceiro milênio a.C. em diante) o swnu (médico) era integrante de uma divisão pública tríplice de curandeiros, na qual os ou-tros dois eram os feiticeiros e os sacerdotes. Um desses médicos foi Iri, Guardião do Reto Real, especialista do faraó em enemas; outra foi Peseshet, a médica-chefe — confirmando a presença de curandeiras, como no Oriente Médio. O mais famoso foi Imhotep, grão-vizir do faraó Djoser (2980-2900 a.C.), renomado como médico, astrólogo, sacerdote, sábio e arquite-to de pirâmides. Seus "provérbios" foram redigidos posteriormente, e, em poucas gerações, ele foi deificado. Como mostram os papiros que chegaram até nós, a medicina egípcia combinava crenças religiosas e técnicas mágicas com um leque impressionante de tratamentos medicamentosos práticos e habilidades cirúrgicas.

Entre os gregos, vários deuses e heróis eram identificados com a saúde e a doença, sendo Esculápio (Aesculapius, em latim) o principal deles — uma figura semelhante a Imhotep, Homero retratou-o como um curandeiro tribal de ferimentos, embora ele tenha passado a ser largamente aclamado como filho de Apolo, o deus da cura. Alçado à condição de padroeiro da medicina, o barbudo

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Fígura

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Esculápio era retratado com um cajado e uma cobra — origem do moderno símbolo do caduceu, com suas duas serpentes enroscadas como uma hélice dupla num bastão alado. Era costume retratá-lo acompanhado de suas filhas, Hígia (a saúde) e Panacéia (a que tudo cura), e, supostamente, seus filhos varões ter-se-iam tornado os primeiros médicos (Asclepíades). O

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culto de Esculápio disseminou-se e, por volta de 200 a.C.,toda cidade-Estado (pólis) grega tinha seu templo erigido a esse deus, sendo os mais famosos deles o da ilha de Cós, suposta terra natal de Hipócrates, e o de Epidauro, a pouco menos de 50 quilômetros de Atenas. Ali, tal como no Egito, os peregrinos enfermos passavam a noite em câmaras especiais de incubação, nas quais, diante de uma imagem de Esculápio, esperavam receber em sonho uma visão que os curasse.

Rompendo com essas práticas sagradas, o aparecimento inicialmente de uma medicina essencialmente secular no Ocidente veio com os médicos hipocráticos, surgidos no mundo de língua grega no século V a.C. Desacreditando os curandeiros tradicionais e religiosos, eles criaram um ideal elitista de identidade profissional. Elevando-se acima dos colhedores de raízes, dos adivinhos e de outros a quem descartavam como ignorantes e charlatães, os hipocráticos promoveram teorias naturais sobre a saúde e a doença (baseadas num conhecimento natural superior) e formas de cura naturais. Não mais tendo a pretensão de ser um intercessor junto aos deuses, o verdadeiro médico seria o amigo sensato e confiável junto ao leito do enfermo.

Diz a lenda que Hipócrates (c. 460-377 a.C.) nasceu na ilha de Cós e foi uma fonte de saber médico, bem como um homem honrado. Os cerca de sessenta livros que compõem o chamado corpus hipocrático foram escritos por ele apenas no sentido em que a Ilíada é atribuída a Homero, ou o Pentateuco, a Moisés.

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As discrepâncias internas mostram que os textos provieram de uma multiplicidade de mãos, ao longo de um certo período temporal.

Mais ou menos como na medicina aiurvédica indiana, esse corpus explicava a saúde e a doença, em linhas gerais, em termos dos humores. O corpo estaria sujeito a ritmos de desenvolvimento e mudança determinados por fluidos essenciais (os humores), confinados dentro do envoltório cutâneo; a saúde ou a doença resultariam de seu equilíbrio mutável. Esses sumos cruciais, mantenedores da vitalidade, eram o sangue, a bile amarela, a fleuma e a bile negra. Os quatro serviriam a diferentes propósitos mantenedores da vida. O sangue seria a fonte da vitalidade. A bile amarela (ou cólera) era o suco gástrico, indispensável à digestão. A fleuma, categoria ampla que incluía todas as secreções incolores, era um lubrificante e resfriador. Também visível no suor e nas lágrimas, fazia-se notar ao máximo quando aparecia em excesso — nas ocasiões de frio e febre. O quarto líquido, a bile negra ou melancolia, era mais problemático. Sendo um líquido esçuro, quase nunca encontrado em estado puro, era tido como responsável pelo escurecimento de outros fluidos, como quando o sangue, a pele ou as fezes tornavam-se salobros.

Juntos, os quatro grandes humores respondiam pelos fenômenos visíveis e tangíveis da existência física: temperatura, cor e textura da pele. O sangue deixava o corpo quente e úmido; a cólera o deixava quente e seco, a fleuma, frio e úmido, e a bile negra produzia

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sensações de frio e secura. Traçavam-se paralelos com os quatro elementos discernidos pela ciência grega no universo em geral. Sendo quente e agitado, o sangue se parecia com o ar; a bile amarela (cólera) assemelhava-se ao fogo (quente e seco); a fleuma sugeria a água, e a bile negra (melancolia) parecia-se com a terra (fria e seca). Essas analogias apontavam ainda para outras facetas

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do mundo natural e se misturavam com elas, incluindo-se nisso as influências astrológicas e as variações sazonais. Frio e úmido, portanto, o inverno tinha afinidades com a fleuma; era a época em que as pessoas se resfriavam.

Cada líquido tinha também uma cor característica — vermelho para o sangue, amarelo para a bile amarela, pálido para a fleuma e escuro para a bile negra ou melancolia. Essas tonalidades eram responsáveis pela coloração do corpo, fornecendo indícios vitais sobre a razão de diferentes pessoas serem nitidamente brancas, negras, vermelhas ou amarelas, e sobre a razão de alguns indivíduos serem mais pálidos, mais morenos ou mais corados que outros.

O equilíbrio humoral também era responsável pela forma e constituição corporais: os fleumáticos, por exemplo, tendiam a ser gordos, enquanto os coléricos eram magros. Isso explicava também os temperamentos, ou o que, em séculos posteriores, viria a ser chamado de personalidade e inclinações psicológicas. Assim, uma pessoa generosamente dotada de sangue apresentaria uma compleição rosada e teria um temperamento otimista, sendo ani-mada, enérgica e robusta, embora talvez dada a uma impetuosidade impulsiva. A pessoa amaldiçoada com um excesso de cólera ou bile amarela poderia ser colérica ou acrimoniosa, irritadiça e marcada por uma língua ferina. O mesmo se daria com a fleuma (pessoas pálidas e fleumáticas, preguiçosas, inertes e de temperamento frio) e com a bile negra (pessoas de aparência amorenada e inclinação taciturna, isto é, sarcásticas, desconfiadas e propensas a ver o lado negro das coisas). Em suma, havia um potencial explicativo infinito e flexível nesses ricos vínculos holísticos entre a fisiologia, o temperamento e a aparência, até porque se sugeriam ligações convincentes entre os estados constitucionais internos (temperamento) e as manifestações físicas externas (compleição

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ou, nos doentes, sintonias patológicos); essas crenças eram não apenas plausíveis, mas realmente indispensáveis, uma vez que a ciência e a medicina tinham um escasso conhecimento direto do que se passava abaixo da pele.

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O humoralismo também dispunha de explicações prontas quando as pessoas adoeciam. Tudo corria bem quando os líquidos vitais coexistiam em equilíbrio adequado. Entretanto, quando um deles se acumulava (tornava-se pletórico) ou diminuía, o resultado era a doença. Quando, talvez por uma dieta inadequada, o corpo produzia um excesso de sangue, seguiam-se distúrbios sangüíneos, à medida que a pessoa ficava superaquecida e febril. Por conseguinte, ela podia ter uma convulsão, um ataque apoplético, ou ficar maníaca. A defici-ência sangüínea ou a qualidade precária do sangue, em contraste, significavam redução da vitalidade, enquanto a perda de sangue decorrente de ferimentos levava a desmaios, ao coma e até à morte.

Felizmente, afirmavam os autores hipocráticos, esses desequilíbrios eram passíveis de prevenção ou correção, mediante um estilo de vida (regime) sensato ou através de meios médicos ou cirúrgicos. A pessoa cujo fígado produzia um excesso de sangue, ou cujo sangue era tido como poluído por toxinas, precisava passar por uma sangria. A mudança da dieta também podia ajudar. Faziam-se recomendações detalhadas para regular os exercícios e a dieta (coletivamente conhecidos como "dietética"): prevenir era melhor do que remediar.

O atrativo do humoralismo, que dominou a medicina clássica e formou a herança dela, estava em seu esquema explicativo abrangente, que se calcava em contrastes arquetípicos confiantes (quente/frio, úmido/seco etc.) e abarcava o natural e o humano, o físico e o mental, o sadio e o patológico. Ao mesmo tempo em que

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era tranquilizadoramente inteligível para o leigo, ele era um instrumento flexível nas mãos do médico atento, à cabeceira do enfermo, e acessível a novas elaborações teóricas.

Os médicos hipocráticos não tinham a pretensão de realizar curas milagrosas, mas se comprometiam, acima de tudo, a não prejudicar (primum non nocere), e se apresentavam como amigos fiéis dos doentes. Essa disposição humanitária demonstrava uma dedicação

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maior do médico a sua arte do que à fama ou à fortuna e consolava os pacientes angustiados. As preocupações éticas com a conduta médica foram abordadas no juramento hipocrático.

O juramento

Juro por Apoio Médico, por Esculápio, Hígia, Panacéia e por todos os deuses e deusas, a quem tomo como testemunhas, que cumprirei este Juramento e Compromisso conforme o melhor de minha capacidade e discernimento.

Respeitarei meu mestre nesta Arte como respeito meus pais, e com ele compartilharei minha vida e proverei com meus recursos o que lhe faltar. Considerarei seus filhos varões como meus irmãos e lhes ensinarei esta Arte, se desejarem aprendê-la, sem remuneração nem compromissos escritos. Transmitirei os preceitos, as instruções orais e todos os demais ensinamentos a meus filhos varões, aos de meu mestre e aos discípulos que forem aceitos como aprendizes e prestarem o devido juramento, e a ninguém mais.

Utilizarei meu conhecimento para ajudar os enfermos, com o melhor de minha capacidade e discernimento, e jamais o empregarei para causar dano ou malefício a pessoa alguma.

A ninguém darei um veneno letal, se me for solicitado, nem

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sugerirei tal procedimento. Do mesmo modo, não darei a mulher alguma substâncias para provocar um aborto.

Com pureza e santidade conduzirei minha vida e exercerei minha arte.

Não usarei da faca, nem mesmo em doentes com cálculos, mas deixarei tais procedimentos a cargo dos habilitados nessa arte.

Em quantas casas entrar, entrarei para socorrer os enfermos, e jamais com a intenção de causar dano ou prejuízo. Não abusarei de minha posição para praticar atos libidinosos com o corpo de mulheres ou de homens, sejam eles livres ou escravos.

Tudo o que eu vir ou ouvir, no exercício de minha profissão ou na vida privada, que não deva ser divulgado, guardarei em segredo e não revelarei a ninguém.

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Portanto, se cumprir este Juramento e não o violar, possa eu prosperar em minha vida e minha arte, granjeando fama entre todos os homens e para sempre. Mas, se o transgredir e perjurar, que me aconteça o contrário.

Como fica claro, o juramento tanto pretendia proteger os médicos, através de uma espécie de sindicato semelhante a uma guilda, quanto salvaguardar os pacientes. Com seu pressuposto de uma sagacidade benévola, ele subscreveu o paternalismo duradouro da medicina.

Apesar de todo o seu status sagrado posterior, pouco se sabe sobre a origem do juramento ou sua utilização inicial. Todavia, é óbvio que ele prenunciou o modelo de uma profissão (aquela que presta um juramento) como disciplina eticamente auto-reguladora entre as que compartilhavam conhecimentos especializados e tinham um compromisso com o ideal de servir. Como o texto deixa claro, a medicina hipocrática era um monopólio masculino, embora os médicos tivessem a expectativa de colaborar com parteiras e enfermeiras.

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A medicina hipocrática tinha seus pontos fracos. Pouco sabia de anatomia ou fisiologia, já que a dissecação humana seria contrária ao respeito dos gregos pelos seres humanos, e não dispunha de tratamentos eficazes. Seu ponto forte, no entanto, e seu atrativo permanente, estava em situar a doença como uma perturbação do indivíduo, que com isso receberia atenção médica pessoal. "A vida é curta, a arte é longa, a oportunidade é fugaz, a experiência é falaciosa, o discernimento é difícil", proclama o primeiro dos aforismos hipocráticos, com isso resumindo a vocação exigente mas honrosa do médico. Até hoje esse ideal altivo impõe respeito, como paradigma da identidade e da conduta profissionais.

Se Hipócrates é obscuro, Galeno, o "imperador" da medicina no Império Romano, tem um perfil destacado. Seu egoísmo e onisciência, assim como o simples volume de textos seus que chegaram até nós, garantiram que sua autoridade dominasse a medicina por quase um milênio e meio.

Filho de um arquiteto abastado, Galeno (129-C.216 d.C.) nasceu em Pérgamo (a moderna Bergama, na Turquia). Dizem-nos que, quando ele tinha 16 anos, seu pai foi visitado em sonho por Esculápio e, a partir daí, o filho foi devotamente orientado para a medicina. Em 162, Galeno partiu para Roma, onde a exibição deslumbrante de seus talentos anatômicos disseminou sua fama. Ele não tardou a ser chamado para o serviço imperial.

Perito na arte de afirmar a própria superioridade, Galeno ocultou sua presunção sob o manto da dignidade da medicina, ao mesmo tempo em que repreendia os colegas e rivais

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como bufões ignaros. A filosofia, ensinava ele, era essencial para dotar a medicina da base teórica que esta exigia. O médico não devia ser um mero debelador prático de doenças (empírico), mas dominar a lógica (arte de pensar), a física (ciência da natureza) e a ética (nor-ma de conduta). O profissional não-filosófico da cura era como

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um construtor remendão: o verdadeiro médico devia ser como um arquiteto, munido das plantas apropriadas.

A confiança do paciente, essencial para a cura, podia ser conquistada mediante uma conduta adequada junto ao leito e o domínio do prognóstico, arte que exigia observação, lógica e experiência. Aliás, Galeno se orgulhava de ser mais do que um esplêndido clínico: era um cientista, hábil na execução de dissecações — não de cadáveres humanos, admitamos, mas de macacos, ovelhas, porcos e cabras, e até do coração de um elefante. Desenvolveu a anatomia do esqueleto e uma certa compreensão dos nervos, mas, como a dissecação humana era sumamente controvertida, pouco da anatomia interna humana. Exatamente como ele esperava, a medicina galênica marcou época. "Fiz tanto pela medicina", gabou-se Galeno, quanto fez Trajano pelo Império Romano, ao construir pontes e estradas por toda a Itália. Fui eu, e unicamente eu, quem revelou o verdadeiro caminho da medicina. Convém admitir que Hipócrates já havia demarcado essa trilha (..).) ele preparou o terreno, mas eu o tornei transitável.

Com a cristianização do Império Romano, a medicina e a religião superpuseram-se, fundiram-se e, vez por outra, entraram em choque. Alguns dos primeiros Padres da Igreja condenaram a medicina pagã e, durante muito tempo, foi uma chacota espirituosa dizer que ubi tre physici, due athei (onde há três médicos, há dois ateus). Fazendo eco ao culto grego de Esculápio, floresceram santuários cristãos de cura e os santos e mártires eram invocados para trazer saúde. Cada órgão do corpo e cada moléstia ganhou seu santo específico — Santo Antônio para a erisipeia, São Vito para a coréia, e assim por diante. Suplantando Esculápio, São Cosme e São Damião tornaram-se os padroeiros da medicina em geral.

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Na chamada Idade Média, curar tornou-se apanágio de monges e clérigos, os únicos doutos que restaram no Ocidente. Entrementes, a chama da medicina clássica foi mantida acesa no mundo islâmico, muito mais adiantado, onde uma sucessão de ilustres eruditos médicos, atuando no que hoje são a moderna Síria, fraque, Irã, Egito e Espanha, estudou, sistematizou melhor e ampliou o trabalho de Galeno.

Do século XII em diante, porém, com a fundação de universidades e a recuperação e retradução de textos eruditos de medicina, provenientes de fontes islâmicas, a própria medici-na profissional recuperou-se, a começar por Salerno, no sul da Itália. O ensino baseou-se em textos convencionais, formalizados pelo novo escolasticismo aristotélico. Depois de sete anos assistindo a aulas e participando de debates e provas orais, o aluno podia formar-se como médico habilitado. A meta do ensino médico escolástico formal era a aquisição de um conhe-

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cimento racional (scientia) dentro de um arcabouço filosófico: o médico instruído, conhecedor das razões das coisas, não seria confundido com um mero curandeiro "empírico" ou com um charlatão. Mas havia poucos desses modelos galênicos de perfeição: a maioria dos que praticavam a medicina na Idade Média obtinha suas qualificações no trabalho de aprendiz e através da experiência.

Durante toda a Idade Média, até o Renascimento e muito depois dele, o médico ideal foi enaltecido como um homem — a profissão continuava a ser um monopólio masculino -— que passara por uma prolongada formação universitária, a fim de se tornar perito em humanidades e ciências; era íntegro, confiável e temente a Deus, circunspecto, sóbrio e dedicado ao saber, e não ao lucro. " Hipócrates" ,declarou solenemente James Primrose, em 1651, num

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típico culto aos ancestrais, "diz que o médico que é filósofo assemelha-se a Deus." "Os médicos, como a cerveja", opinou Thomas Fuller, "são melhores quando velhos"

Para dar maior destaque a essa figura santificada do médico ideal como um homem de princípios elevados, dignos austero, suas antíteses eram vilipendiadas: o impostor ávido de dinheiro, o charlatão trapaceiro (um "vigarista com cara de bosta e cérebro nauseante, um farsante nojento", segundo Ben Jonson), a enfermeira embriagada e a parteira sebosa e mexe- riqueira. O cirurgião tradicional era comumente caricaturado como um homem da carne — atrevido e robusto, habilidoso

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com a faca e a serra, pouco melhor do que o açougueiro e não mais letrado que o barbeiro, cujo ofício também exercia, freqüentemente. O médico superior gabava-se de se destacar pela mente e não pelos músculos, pelo cérebro e não pela força bruta.

Em toda a Europa, a imagem de uma consulta sensata, tal como praticada por esse tipo de homem, manteve-se arraigada até o século XIX. Através de um interrogatório minucioso, o médico determinava os sintomas (anotando o histórico do paciente), determinava a natureza da doença, estruturava um diagnóstico e formulava um regime de tratamento. Provavelmente, isso incluiria a prescrição de ervas medicinais, a serem misturadas pelo boticário — juntamente com o cirurgião, outro luminar menor da profissão médica. Antes da introdução dos exames físicos sistemáticos e dos exames para fins de diagnóstico, o trabalho do médico não era de participação ativa: o que importava eram a aprendizagem livresca, a experiência, a memória, o discernimento e o jeito para lidar com o paciente. O verniz profundamente tradicional da medicina tornava-a re.confortante — ou, para os satiristas, antiquado e ridículo.

À medida que aumentou o número de médicos, a medicina organizou-se, primeiro na Itália urbana, onde surgiram guildas que assumiram a responsabilidade pelo trabalho dos

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aprendizes, pelo exame dos candidatos e pela supervisão dos farmacêuticos e dos medicamentos. A organização médica assumiu várias formas. Já em 1236, os médicos e farmacêuticos florentinos associaram-se numa só guilda, reconhecidos como exercendo um dos sete principais ofícios da cidade. Na Europa meridional não se abriu um grande divisor entre cirurgiões e médicos. Em outros lugares, aprofundou-se esse abismo social e profissional, pois, fora da Itália, a cirurgia era excluída do currículo acadêmico. No norte da

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Europa, era ligada ao ofício dos barbeiros e tida pelos médicos como uma tarefa muito inferior.

Em Londres,, a Associação de Cirurgiões foi fundada em 1368- 1369 e uma Companhia de Barbeiros foi licenciada em 1376. A fundação do Colégio de Medicina de Londres, em 1518 (que se tornou Real quando da restauração de Carlos II), autorizou os médicos a regulamentarem o exercício da profissão na metrópole. Com o tempo, todos esses colégios e sociedades de medicina foram mal acolhidos pela crítica, como oligarquias monopolistas que protegiam os privilegiados, tanto contra os interesses dos pacientes quanto os dos profissionais menores.

Em parte para aplacar o pavor de doenças que raríssimas vezes conseguia curar, o tratamento médico primário do século XIX agarrou-se a práticas públicas tranqüilizadoras familiares. O paciente particular pagante mandava chamar o médico de sua escolha (tradicionalmente, mandando um criado, ou talvez por telefone, depois de 1900), que então lhe fazia uma visita domiciliar — a cavalo, de charrete ou, no século XX, cada vez mais de carro. As relações entre os pacientes e os médicos de família eram pessoais e regidas pelo rígido protocolo do comportamento cavalheiresco; as boas maneiras tinham peso.

Havia queixas dos dois lados — em especial sobre médicos arrogantes e contas não pagas —, mas os profissionais tinham interesse em promover o atendimento familiar e até em paparicar doentes maçantes como o Sr. Woodhouse, do romance Emma,, de Jane Austen, que compunham os "sadios preocupados". Os cínicos insinuavam que os médicos semeavam hábitos de doença entre seus pacientes mais abastados, em particular os do sexo frágil, oferecendo um jargão diagnóstico sofisticado, receitas favoritas, minúcias dietéticas e de estilo de vida, e todos os outros rituais de uma profissão que constatava ser

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recompensador mostrar-se obsequiosa com a clientela de elite. Uma charge da revista Punch de 1884 trazia um diálogo:

PRIMEIRA SENHORA: QUe tipo de médico é ele?

SEGUNDA SENHORA: Ah, bem, não entendo muito de suas qualificações, mas ele tem modos excelentes!

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Todo esse palavrório escondia o fato de que, até um bom pedaço do século XX, o "império da doença" discutido no capítulo anterior é que dava as ordens. As famílias eram atacadas por uma bateria de infecções e febres que bem podiam mostrar-se letais; os distúrbios gastrintestinais e disentéricos, a difteria, a catapora, a escarlatina e a rubéola tiravam a vida de multidões de recém-nascidos, enquanto o sarampo, a tuberculose, a sífilis, a meningite e a febre puerperal faziam parte da ronda comum da média dos clínicos.

Nessa situação, o médico ao velho estilo podia escolher entre as opções hipocráticas conservadoras (esperar e observar, recomendar repouso absoluto e fortificantes, dar atenção e oferecer palavras tranqüilizadoras, serenidade e esperança), ou as possibilidades "heróicas", que incluíam purgantes violentos, sangrias drásticas (a preferência de Galeno), ou alguma panacéia favorita de sua própria lavra. Muitas vezes, a decisão era tomada no lugar dele: os pacientes mal-humorados tinham opiniões firmes sobre o tratamento certo para "suas" doenças, e quem paga o músico escolhe a dança.

De qualquer modo, as opções do tratamento médico primário eram limitadas, já que, antes do século XX, a farmacopéia assemelhava-se a uma caixa de inutilidades. Dos milhares de medicamentos oficialmente usados, poucos eram realmente eficazes: entre estes figuravam o quinino, para a malária, o ópio como

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analgésico, o cólquico, usado na gota, a digitalina, para estimular o coração, o nitrito de amila, para dilatar as artérias na angina, e, introduzida em 1896, a versátil aspirina. O ferro era fervido em grandes quantidades como tônico, do mesmo modo que a sena e outros preparados herbáceos eram empregados como purgativos. As curas verdadeiras continuavam fugidias, no entanto, e os médicos sabiam que suas receitas eram basicamente engodos. Essa situação desoladora era um pouco aliviada pelo fato de que os religiosos praticantes não esperavam que o médico de família fizesse milagres e, vivendo num vale de lágrimas, estavam acostumados a uma rodada constante de funerais. Num famoso quadro vitoriano de Luke Fildes, um médico senta-se à cabeceira de uma criança moribunda, impossibilitado de fazer outra coisa além de demonstrar interesse e compaixão: o tom do quadro não é acusatório, mas solidário.

Trincando os dentes com força, a elite dos professores de medicina podia esposar um sombrio niilismo terapêutico: a medicina era capaz de compreender as doenças de que as pessoas morriam, mas não conseguia impedi-las de morrer. Os médicos de família, no entanto, sentiam-se inevitavelmente pressionados a fazer alguma coisa. Isso explica o recurso crescente aos sedativos fortes, aos analgésicos e aos narcóticos recém-colocados no mercado pelas empresas farmacêuticas do século XX. Graças à síntese da morfina em 1806, e à invenção da seringa hipodérmica, em 1853, tornou-se fácil aplicar injeçõés rápidas de

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opiáceos fortes — no final, até da recém-criada heroína, introduzida pela Bayer em 1898. Em 1869, o hidrato de cloral começou a ser usado como sonífero; o barbital (Veronal) foi lançado em 1903 e o fenobarbital, em 1912. Pelo menos a analgesia tornou-se possível, ao preço do vício, em muitos casos.

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Se sua possibilidade de curar os enfermos continuou irregular, o clínico geral consolidou sua posição, desenvolvendo suas habilidades. Na encantadora autobiografia intitulada The Horse and Buggy Doctor [O médico âe charrete], Arthur Hertzler, um médico provinciano nascido em Iowa em 1870, observou, em 1938, as mudanças ocorridas durante sua vida. Era a medicina no velho estilo, à cabeceira do leito:

O procedimento habitual do médico, ao chegar à casa do paciente, era cumprimentar efusivamente a avó e as tias e afagar a cabeça de todas as crianças, antes de se aproximar da cabeceira do paciente. Saudava-o com ar grave e uma brincadeira agradável.

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Media-lhe o pulso e examinava sua língua, perguntando-lhe onde estava doendo. Feito isso, estava pronto para dar um parecer e receitar seu remédio favorito.

Recém-chegado da adiantada Berlim, o jovem Dr. Hertzler estava decidido a tomar sua prática mais científica, fazendo exames clínicos rigorosos e sistemáticos. Isso daria um empurrão em seu conceito, ainda que não melhorasse seu índice de curas: "Eu tinha idéias próprias", declarou ele. Suas novas tentativas de fazer exames clínicos impressionaram meus pacientes e irritaram meus concorrentes, o que acolhi, é claro, como uma sorte dupla. Circulou o boato de que o jovem médico "não é muito cortês, mas é rigoroso". Ontem mesmo, uma de minhas antigas pacientes lembrou que, quando fui visitar seu filho pequeno pela primeira vez, "tirei-lhe a roupa toda e o examinei por inteiro". Os membros dessa família têm sido meus pacientes nos últimos quarenta anos, de tão impressionados que ficaram.

Os aparelhos modernos fizeram uma contribuição constante para o ideal emergente do exame clínico rigoroso e, posteriormente, do check-up. Primeiro o estetoscópio, inventado em 1816, e, depois, aparelhos como o oftalmoscópio e o laringoscópio (meados da era vitoriana) deram nova meticulosidade (e misticismo) à tarefa do diagnóstico. A partir da década de 1860, surgiram termômetros compactos para medir a temperatura do corpo; os gráficos de temperatura permitiram anotar os padrões de febre típicos de doenças específicas, e os esfígmomanômetros permitiram verificar a pressão arterial. O clínico geral do início do século XX, tendo acesso a um laboratório de análises diagnosticas, podia também examinar as secreções corporais, o que passou a significar mais e mais a busca de micróbios — o inimigo revelado pela deslumbrante

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ciência da bacteriologia e sua doutrina dos germes. A maioria dos pacientes, como os de Hertzfer, acolheu de bom grado essas ampliações do exame clínico, embora alguns se ressentissem de seu caráter invasivo. O Dr. Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, registrou em 1881 o "terrível pavor" de uma paciente que se recusou a deixá-lo examinar seu peito: "Sabe como é, minha cara, os médicos jovens tomam essas liberdades."

A "medicina científica" foi adotada com extremo entusiasmo aos Estados Unidos, mais ávidos de tecnologia. "Trabalhar com o microscópio e fazer análises da urina, do escarro, do sangue e de outras secreções, como um auxiliar do diagnóstico" refletiu um calejado médico norte-americano em 1924, "não só traz honorários e leva a informações valiosas sobre o estado do paciente, como também confere boa reputação e respeito profissional." Seus equi-valentes no Velho Mundo, em contraste, eram. mais cautelosos. Quando o eminente médico britânico Sir James Mackenzie declarou, em 1918, que "a formação laboratorial desprepara o homem para seu trabalho como médico" estava falando em nome de grande parte de seus colegas de profissão — e é provável que de seus pacientes, também.

Homens como Mackenzie sabiam que os sacrossantos rituais da medicina exercida à cabeceira do leito sustentavam o sagrado laço pessoal entre o médico e o paciente. No reinado da rainha Vitória — ou, a rigor, ainda por ocasião da Segunda Guerra Mundial —, os mais respeitados clínicos gerais e especialistas da Harley Street eram os que se mostravam capazes de incutir em seus pacientes a idéia de que eram habilidosos, sérios, atentos e dignos de confiança, e de que se esforçavam por fazer o melhor possível. O ideal hipocrático era reverenciado e contribuiu para gerar o movimento do "paciente como pessoa" que foi influente, a partir de 1900, como uma reação contra a medicina mais científica, promo-

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vida pelas universidades e seus laboratórios de pesquisa. O médico, enfatizou esse movimento, devia ver o paciente como um indivíduo. "Nunca se esqueçam de que seu paciente não é a pneumonia, mas um homem pneumônico" declarou Sir William Gull. "O bom médico trata a doença", ensinou o ilustre humanista médico canadense William Osler, "mas o grande médico trata o paciente." Idéias similares foram formuladas em 1957 por Michael Balint, de origem húngara e inclinação psicanalítica, cujo livro O médico, o paciente e a doença enalteceu a função apostólica do médico e insistiu em que os médicos encarregados do tratamento primário deviam, na verdade, tornar-se psicoterapeutas.

Em meio a essas tensões — deveria o trabalho de curar manter-se como uma arte, ou tornar-se mais científico? —, o século XX introduziu uma mudança generalizada do centro de gravidade da medicina, do clínico geral aos especialistas. Nesse aspecto, abriu-se um abismo entre o Reino Unido e os Estados Unidos. Na Grã-Bretanha, o tratamento primário continuou firmemente nas mãos dos médicos de família, que eram clínicos gerais. Isso se deu porque o exercício da profissão em equipe, nos moldes da Lei do Seguro Nacional de 1911,

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posteriormente reforçada pelo Serviço Nacional de Saúde (1948) — ver Capítulo 8 —, fez dos generalistas o eixo de coesão de um sistema médico financiado por verbas públicas. Tendo-lhes sido negado o direito de cuidar de pacientes nos hospitais, eles foram isolados da cirurgia e da ciência, assim .como de tudo o que estas implicavam em termos de inovações e identidades profissionais superiores. No entanto, os clínicos gerais continuaram a ser os médicos que dispensavam tratamento familiar e se tornaram os guardiães do acesso aos hospitais e aos especialistas. Às vésperas da Segunda Guerra Mundial,- havia na Grã-Bretanha cerca de 2.800 especialistas trabalhando em horário integral, mas havia sete vezes mais clínicos gerais. Ainda no ano

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2000, entre os 100.000 médicos do Reino Unido, um terço compunha-se de clínicos gerais.

Nos Estados Unidos, em contraste, a clínica geral perdeu terreno inexoravelmente para as especializações. Em um meio competitivo de mercado, o pediatra, o cardiologista ou o oncologista, cientificamente avançados, levaram vantagem. Em 1942, menos da metade de todos os médicos norte-americanos eram clínicos gerais e, em 1999, dos 800.000 médicos dos Estados Unidõs — um total estarrecedor, por si só! —, menos de um em cada dez trabalhava como médico de família; os clínicos gerais seguiram o mesmo caminho do médico que andava de charrete.

O papel dos médicos e as expectativas do público em relação a eles modificaram-se durante o século XX. As antigas doenças infecciosas agudas estavam diminuindo e, de qualquer modo, dos anos 30 em diante, passaram a ser curadas pelas drogas à base de sulfa e, a partir dos anos 40, pelos antibióticos. Contudo, em parte como decorrência da maior longevidade, outras doenças crônicas e anormais começaram a vir à luz e a população pareceu sentir-se pior. As doenças relatadas pelos enfermos tiveram uma elevação de 150% entre 1930 e 1980. O norte-americano médio visitava o médico 2,9 vezes por ano em 1930; em 2000, essa cifra havia dobrado. Por quê? Apesar de mais saudáveis em termos gerais, os indivíduos tornaram-se mais sensíveis aos sintomas e mais propensos, ou mais treinados, a buscar ajuda para males que seus avós teriam descartado como banais ou intratáveis. Entrementes, os pacientes também foram incentivados a esperar e exigir mais de seus médicos. Surgiu a síndrome do "mais saudável e sentindo-se pior", e o público, que por muito tempo havia respeitado os médicos, desiludiu-se.

Depois de se tornarem muito mais poderosos em termos terapêuticos, graças aos antibióticos e a outras drogas mágicas,

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pode-se argumentar que os médicos abandonaram a arte de agradar os pacientes. Munidos de armas mais eficazes, tenderam a esquecer a importância e os benefícios psicológicos da

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estreita relação de confiança entre médico e paciente, esperada pelos enfermos. Na década de 1980, um médico britânico do Serviço Nacional de Saúde explicou, em linguagem curta e grossa, a função de receitar comprimidos ao fim de uma consulta rápida: "É uma boa maneira de nos livrarmos do paciente; a gente rabisca qualquer coisa no re- ceituário e arranca a folha do bloco. Esse arrancar, na verdade, é o 'Caia fora.'" Hoje em dia, os médicos podem curar mais do que" nunca, mas o público talvez fique em dúvida se eles se importam.

No alvorecer do século XXI, as expectativas populares em relação à saúde estão mais alias do que nunca, em parte por causa da consciência e dos temores da doença alimentados pela mídia. Mas a confiança nos profissionais da medicina — especialmente depois de escândalos como a revelação de que o clínico geral britânico Harold Shipman assassinou centenas de seus pacientes — ficou abalada. Em um mundo médico cada vez mais burocratizado e movido pela tecnologia, o toque pessoal hipocrático parece correr o risco de se perder.

Isso ajuda a explicar a revitalização da medicina não-convencio- nal a partir dos anos 60. Pode-se argumentar que o século XVIII foi a era de ouro do "charlatanismo" -— um termo pesado, pois, ao falar da medicina não-ortodoxa, não devemos impugnar automaticamente os motivos dos profissionais alternativos nem negar seus poderes de cura. Longe de serem vigaristas cínicos, muitos deles eram fanáticos a respeito de suas técnicas ou suas panacéias — a exemplo do escocês James Graham (1745-1794), que promovia a vida longa e o rejuvenescimento sexual, a serem obtidos por meio de banhos de lama e de sua Cama Celeste especial, eletrifica-

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da, que ficava em seu Templo da Saúde, na Strand londrina. Da década de 1780 em diante, o único medicamento que aliviava efetivamente a gota — porque continha cólquico — era um remédio secreto: a Eau médicinale comercializada por um oficial do exército francês, Nicolas Husson, e ridicularizada pelos médicos profissionais.

Os charlatães ou impostores eram mestres da iniciativa empresarial e da arte da publicidade. O Elixir Balsâmico Rose's, afirmavam seus vendedores, era capaz de curar de um só golpe "os ingleses afrancesados" (isto é, os pacientes com doenças venéreas): "elimina todas as dores em 3 ou 4 doses." Os vendedores itinerantes tornaram-se especialistas em se apresentar em praça pública: usando roupas espalhafatosas e ladeados por um bufão, num palco improvisado, primeiro atraíam uma multidão, depois arrancavam alguns dentes, quem sabe, ofereciam gratuitamente alguns vidros de julepo ou licor estimulante, vendiam mais algumas dezenas de garrafas e iam embora da cidade. A maioria dos charlatães tinha negócios insignificantes, mas alguns auferiam grandes lucros. Com sua "pílula e gota" Joshua Ward (1685-1761) não só fez fortuna, como caiu nas graças da realeza.

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Com o crescimento do público consumidor, aumentou a demanda de muitos tipos de cura, e a sociedade mercantil proporcionou aberturas que os promotores de panacéias, do rejuvenescimento e da cura do câncer apressaram-se a preencher. A ânsia de curas certeiras produziu uma profusão de "milionários dos cogumelos venenosos", ansiosos por oferecer curas magnéticas, elétricas, químicas ou herbáceas aos desesperados e aos crédulos. Os remédios de marcas patenteadas ganharam um público fiel. O "Composto Vegetal de Lydia E. Pinkham" foi vendido, a partir de 1873, por Lydia Pinkham, da cidade de Lynn, no estado de Massachusetts; "Lily the Pink" tornou-se a primeira mi-

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lionária da América. A Inglaterra, James Morison ganhou uma fortuna com suas Pílulas Vegetais, seguido por Thomas Beecham, comm suas Pílulas e Pós. Quanto mais o Estado e as autoridades médicas tentavam desdenhá-los ou reprimi-los, maior era sua popularidade.

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O século XIX também trouxe novos movimentos fundamentados na rejeição em princípio da medicina ortodoxa. Essas filosofias alternativas de cura muitas vezes espelhavam seitas religiosas dissidentes e radicais sociopolíticos: os artesãos, desconfiados de príncipes e sacerdotes, não tinham muita disposição de engolir os medicamentos de colégios privilegiados. Os profissionais alternativos denunciavam a medicina ortodoxa como um sindicato fechado, um cartel obscurantista dedicado ao auto-engrandecimento: "uma conspiração contra os leigos", na expressão de George Bernard Shaw. Eles também condenavam os estilos de vida modernos como antinaturais. Exortando ao retorno à simplicidade, enalteciam a vida simples e afirmavam que suas filosofias de saúde seguiam os caminhos salutares da natureza. Essas doutrinas conquistaram seu maior número de seguidores na América: os visionários da medicina gravitaram para o Novo Mundo, enquanto na nova república norte-americana impunha-se o menor número possível de restrições ao exercício profissional. A pátria desses visionários, porém, foi a Alemanha.

A grande inspiração inovadora foi a homeopatia, desenvolvida por Samuel Hahnemann (1755-1833), que fez sua formação médica em Leipzig, Viena e Erlangen e estava imbuído de uma confiança iluminista na bondade da natureza. Rejeitando a polifarmacologia dispendiosa, Hahnemann formulou seus novos princípios. Havia, segundo argumentou, duas abordagens da cura: o tratamento "alopático" por opostos, que impregnava a medicina ortodoxa — e constituía um equívoco —, e sua própria abordagem "homeopática", cuja chave estava em que, "para curar a doença, devemos buscar medicamentos capazes de provocar sintomas similares nó corpo humano sadio". Essa tornou-se a primeira lei da homeopatia: similia similibus curantur — que o semelhante seja curado pelo semelhante. Essa lei da similaridade

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foi complementada pela segunda, a dos infinitesimais: quanto menor a dose, mais eficaz o remédio. Esse aparente paradoxo decorreu da preocupação de Hahnemann com a pureza das drogas e de seu horror de uma vida inteira à polifarmacologia arbitrária e destrutiva dos médicos convencionais. Doses minúsculas de drogas absolutamente puras fariam um bem muito maior do que doses maciças de drogas adulteradas.

Outro movimento que valorizava a pureza era a hidropatia. Esta originou-se no austríaco Vincení Priessnitz (1799-1851), um profeta rural que, convencido dos poderes da água, criou um balneário em Gräfenberg, na Silésia. A saúde era o estado natural do corpo; a doença resultava da introdução de matéria estranha; e a doença aguda era a tentativa do corpo de expelir esse material mórbido. O tratamento hidropático levaria o estado agudo a uma crise, expelindo os venenos do sistema.

Igualmente hostil à ortodoxia foi a primeira das seitas curativas norte-americanas natas, o thomsonismo. Desprezando os "médicos livrescos", Samuel A. Thomson (1769-1843) criou um movimento de saúde popular que promovia as terapias baseadas em plantas. Sua favorita era a Lobelia inflata, cujas sementes provocavam vômitos saudáveis e suores profusos. O evangelho thomsoniano foi introduzido na Inglaterra em 1838 pelo "Dr." Albert Isaiah Coffin, que íogo conseguiu seguidores fiéis entre artesãos e não-conformistas* voltados para o auto-aprimoramento, o que levou a uma rede de Sociedades Botânico-Médicas Solidárias. A botânica médica era atraente para a mentalidade de auto-ajuda.

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Outro grupo norte-americano, os grahamistas, dedicou-se à vida saudável através de um salvacionismo próprio deste mundo. O abstêmio Sylvester Graham considerava a saúde preciosa demais para ficar a cargo dos médicos. O vegetarianismo e os cereais inte-

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grais eram o que havia de melhor, e o "biscoito integral" ou "biscoito de Graham", foi recebido com aplausos. A atividade sexual deveria ser limitada - Inflamava as paixões e desperdiçava o líquido seminal, que era a quintessência da vida.

Rejeitando o niilismo médico dos profissionais convencionais, as seitas alternativas norte-americanas entraram em alta. A natureza era benevolente e, se as pessoas simplesmente atentassem para suas leis, o corpo ficaria naturalmente bem. Tal foi a mensagem esperançosa da osteopatia, criada em 1874 pelo Dr. Andrew Taylor Still, que fundou uma faculdade em Kirksville, no Missouri. Still proclamava a capacidade intrínseca do corpo de fazer-se sarar. Mais ou menos semelhante foi a quiroprática, criada em 1895 por Daniel David Palmer, depois que ele fez um homem recuperar a audição, corrigindo-lhe a coluna dorsal.

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Esse otimismo protestante radical de auto-ajuda foi levado a seu extremo na Ciência Cristã. Sufocada pelo congregacionalismo de seus pais, Mary Baker Eddy (1821-1910) passara boa parte de sua adolescência confinada ao leito, e os médicos convencionais não lhe tinham sido de qualquer serventia. Ao receber uma revelação divina, depois da leitura da Bíblia, ela deu início a um autotratamento cujo sucesso a levou a estruturar um sistema pró-prio: "só existe uma criação, e ela é totalmente espiritual." Já que tudo era espírito e a matéria era um fantasma, não podia haver doenças somáticas; a doença não estava no corpo, mas na mente, e só poderia ser curada pelo esforço mental e pela fé. Os adventistas do Sétimo Dia, por sua vez, pregavam a abstêmia e o vegetarianismo, proclamando um "evangelho da saúde" que se baseava, em parte, nas curas hidropáticas. Seu Instituto de Reforma da Saúde, em Battle Creek, no estado de Michigan, era dirigido por John Harvey Kellogg (1852-1943), irmão do rei dos

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flocos de milho, que também era fã do uso de fibras na alimentação.

O culto da natureza e as preocupações espirituais da medicina alternativa destacaram as deficiências da medicina ortodoxa, o que gerou uma reação populista antielitista. Embora as pessoas quisessém ser aliviadas e curadas, também buscavam muito mais na medicina—explicações paraseus distúrbios, uijia sensação de inteireza, uma solução para os problemas da vida e novos sentimentos .de respeito próprio e autocontrole. Se o teor da medicina ortodoxa era pessimista, a medicina alternativa instilava esperança.

Os tríunfos da medicina convencional e da cirurgia, na primeira metade do século XX, trouxeram um declínio dos atrativos da medicina alternativa. Mas, visto que a própria medicina tornou-se mais burocrática e cientificista e, aparentemente, tão autoritária quanto o complexo estatal, houve um ressurgimento da medicina alternativa" e proliferaram novos sistemas de massagens, tratamentos com ervas medicinais e espiritismo. Os críticos contraculturais dos valores do Ocidente deslumbraram-se com as filosofias curativas orientais. E as pessoas gostam de buscar novidades. No fim do século XX, havia mais profissionais de medicina alternativa registrados na Grã-Bretanha do que clínicos gerais, ao passo que, nos Estados Unidos, foram pagas mais consultas por ano a fornecedores de terapias não-convencionais (425 milhões) do que a médicos encarregados: do tratamento primário (388 milhões).

Desde os tempos gregos, a medicina ortodoxa entrincheirou-se como um monopólio masculino. As mulheres exerciam curas práticas e trabalhavam como enfermeiras e parteiras, é claro — o que eram extensões de seu papel doméstico e materno -7-, mas, até o século XIX, eram excluídas por toda parte da profissão médica

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propriamente dita, até porque eram impedidas de freqüentar universidades. A constituição feminina não era apropriada para os estudos superiores, alertavam os chauvinistas do machismo: sendo a mulher dominada pelo útero ou pelos ovários, seu lugar era em casa, como esposa e mãe.

Não foi à toa que a primeira médica a se diplomar o fez na América, pois era ali que a diplomação era menos inflexível. Filha do proprietário de uma usina de açúcar em Bristol, Elizabeth Blackwell formou-se em 1849, como primeira aluna da turma, Geneva Medicai School, em Nova York. Convencida de que a natureza dotava melhor as mulheres do que os homens para curar, Blackwell fundou a Enfermaria de Nova York para Mulheres Indigentes, em 1857, e organizou enfermeiras durante a Guerra de Secessão.

A primeira mulher a se graduar na Grã-Bretanha foi Elizabeth Garrett, que explorou as brechas da legislação para receber seu diploma da Sociedade dos Boticários em 1865, com isso garantindo sua matrícula no Registro dos Médicos. Em cinco anos, havia desenvolvido uma vasta clínica privada, criou o Dispensário Feminino St. Mary's, obteve um diploma de medicina em Paris e casou-se com o milionário James Anderson. Foi de grande importância na criação da Escola de Medicina de Londres para Mulheres, em 1874, e, por sua própria respeitabilidade, revelou-se uma diplomata convincente em defesa das aspirações das mulheres a se tornarem médicas.

Com o tempo, o direito de ingresso feminino foi obtido em toda parte — na Alemanha, somente no início do século XX —, mas a resistência continuou forte. As reformas do ensino médico norte-americano posteriores ao Relatório Flexner, de 1910, resultaram no fechamento de algumas faculdades femininas de medicina nos Estados Unidos (por estarem abaixo dos padrões), e só

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depois da Segunda Guerra Mundial é que as faculdades de medicina de Harvard e Yale abriram suas portas para estudantes do sexo feminino. Em 1976, 20% dos médicos britânicos eram mulheres — embora raramente estivessem no topo da pirâmide profissional — e, em 1996, pela primeira vez, mais de metade das matrículas nas escolas de medicina britânicas foi de mulheres. Talvez isso pressagie o fim do arraigado machismo da profissão.