DANIEL ARASSE NÃO SE VÊ NADA, - PÚBLICO — Notícias...

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Transcript of DANIEL ARASSE NÃO SE VÊ NADA, - PÚBLICO — Notícias...

D A N I E L A R A S S E

N Ã O S E V Ê N A D A ,

D E S C R I Ç Õ E S

Tradução de Rui Pires Cabral

kk y m | Lisboa, 2015

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Í N D I C E

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Cet ouvrage a bénéficié du soutien de programme d’aide à la publication de l’Institut Français.

Esta obra beneficiou de programa de apoio à edição do Institut Français

Fig. 1. Tintoretto, Marte e Vénus surpreendidos por Vulcano, c. 1550.

Fig. 2. Tintoretto, Marte e Vénus surpreendidos por Vulcano, 1550, desenho preparatório.

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Cara Giulia,

Esta carta, um tanto longa, corre o risco de te surpreender, ou mesmo de te irri‑tar. Espero que não me leves a mal, mas é necessário que te escreva. Como já te disse de passagem, custa ‑me compreender que por vezes te aconteça olhar uma pintura sem conseguires ver o que o pintor e o quadro te mostram. Tu e eu parti‑lhamos a mesma paixão pela pintura; como é possível que, no que toca à inter‑pretação de certas obras, nos encontremos tão longe um do outro? Não pretendo afirmar que os quadros tenham um único sentido, ou que haja apenas uma única interpretação «correta». Isso é Gombrich que o diz, e tu bem sabes o que penso do assunto. Não, o que realmente me inquieta é essa espécie de cortina (feita de textos, citações e referências exteriores) que em certos momentos pareces que‑rer interpor a todo o custo entre ti e a obra, uma espécie de filtro solar que te protege do brilho da obra e te permite preservar os hábitos adquiridos nos quais se funda e se reconhece a nossa comunidade académica. Não é a primeira vez que discordamos, mas desta feita resolvi escrever ‑te. Para falar com franqueza, não espero persuadir ‑te – mas talvez consiga levar ‑te a duvidar e a pôr em causa tudo isso que entendes como certezas e que, na minha opinião, te cega.

Deixemos de lado o Psique e Eros, de Zucchi. Como imaginas, depois da leitu‑ra que dele propuseste no mês passado, muito haveria a dizer sobre o assunto. Mas ficará talvez para outra ocasião. Falar ‑te ‑ei apenas da tua intervenção sobre Marte e Vénus surpreendidos por Vulcano, de Tintoretto (fig. 1). Não poucas vezes acertaste na muche, revelando ‑me aquilo que eu não conseguira ver. Por exem‑plo, tens razão quando dizes que Vulcano, inclinado sobre o leito e o corpo nu de Vénus, evoca um sátiro descobrindo uma ninfa. Agrada ‑me essa ideia do desejo inopinado do marido perante o belo corpo da sua mulher. Porém, como verás, eu chego a conclusões muito diferentes das tuas. De igual modo, quando dizes que o erotismo desse corpo, generosamente oferecido ao olhar, incita as mulheres que contemplam o quadro a identificarem ‑se com a deusa do amor, a tua conclu‑são começa da melhor maneira. Mas quando, de seguida, sob o pretexto de que só Vulcano tem aqui dignidade enquanto Vénus é vergonhosa e Marte ridículo,

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simples. Podem coexistir, na mesma época e numa mesma sociedade, atitudes ou pontos de vista contraditórios. Sabe ‑lo tão bem quanto eu. De modo a susten‑tar a tua interpretação, chegaste ao ponto de sugerir que o quadro poderia aludir a um episódio da vida privada de Tintoretto e ser dirigido à sua jovem esposa. Aqui, decididamente, vais demasiado longe. Em primeiro lugar, ignoramos tudo sobre um tal episódio, e, se o quadro data realmente de cerca de 1550 (foi o que tu mesma propuseste), é sem dúvida o ano em que Tintoretto se casa, mas ele tem então 32 anos. E o simples facto de o pintor, daí a uns quarenta anos, poder vir a assemelhar ‑se ao seu Vulcano, não deveria autorizar ‑nos a ver no quadro um tão prematuro auto rretrato disfarçado, mesmo que por interposta figura. Não te parece?

Chegamos ao cerne da questão. A tua interpretação assenta num princípio simples, que enuncias mais ou menos nos seguintes termos: Marte e Vénus sur‑preendidos por Vulcano de Tintoretto não é uma representação comum do tema, logo estamos perante uma alegoria. Parece ‑me altamente discutível! Nem tudo o que é incomum é necessariamente alegórico. Pode ser sofisticado, paradoxal, paródico, eu sei lá. Cómico, por exemplo. Como bem assinalaste, Marte é ridí‑culo, meio escondido debaixo da mesa, de elmo na cabeça. Mas atribuíste de imediato uma dimensão moral a essa situação de vaudeville: em tua opinião, a posição ridícula de Marte humilharia o amante para melhor enaltecer a dignida‑de melancólica do velho marido traído. Mas que dignidade melancólica? Vulcano é igualmente ridículo! Repara! Que faz ele ao certo, esse marido traído? O que procura entre as coxas da mulher? Que provas? Que vestígios poderá Marte ter deixado aí? Não insisto. O gesto e o olhar de Vulcano fazem ‑me pensar numa traquinada de Aretino, mais do que numa exortação moral. Além disso, tal como Tintoretto no ‑lo apresenta, o pobre Vulcano não é apenas coxo: à força de ma‑lhar na sua forja, ficou surdo que nem uma porta. A prova: nem sequer ouve o cão, ainda que este se farte de ladrar, fazendo tudo o que pode para denunciar o esconderijo de Marte. Um embirrento cãozito fraldiqueiro. Mas Vulcano não o ouve! Adivinhas porquê? Não é tanto por ser surdo, mas por estar a pensar nou‑tra coisa. Nesse preciso momento (e Tintoretto tudo fez para nos mostrar que representa um instante), Vulcano esqueceu o que veio procurar. Está distraído. O que vê entre as coxas da mulher torna ‑o cego (e surdo) a tudo o resto. Não vê

defendes que tal incitamento é de natureza moral, que Tintoretto explora os po‑deres da imagem e as seduções do seu pincel para canalizar o desejo feminino (estou a parafrasear ‑te e não a citar ‑te textualmente), deixo de te acompanhar. Afirmas, por exemplo, que Vénus procura cobrir a sua nudez surpreendida; mas o que te garante que, pelo contrário, ela não esteja a desvendar essa nudez para seduzir Vulcano? Porque não há ‑de haver humor no quadro? Fico com a impres‑são de que tu, normalmente tão risonha, te recusas a fazer com alegria a história da arte. Como se, por dever profissional, não pudesses rir, nem mesmo sorrir. Não, isso seria uma atitude pouco séria. No entanto, não ignoras o provérbio re‑nascentista serio ludere, «brincar seriamente», ou o apreço dessa época pelo riso e pelo paradoxo. Dir ‑se ‑ia que, para seres séria, tens de te levar a sério – tens de ser seriosa e não seria, como dizem em italiano – e de mostrar as devidas creden‑ciais a esses guardas de cemitério que se entrincheiram na pretensa dignidade da sua disciplina e que, em nome de um saber triste, desejam que jamais alguém se ria diante de uma obra de pintura. Tu, Giulia, seriosa? Por amor de Deus!

Ora bem, se ainda não deitaste esta carta ao lixo, retorno ao ponto de partida. Concordo plenamente que, no quadro em questão, Tintoretto tratou de modo inesperado o tema comum de Marte e Vénus surpreendidos por Vulcano. Regra geral, Vénus e Marte são representados nus, deitados no leito do adultério, apa‑nhados pela rede que Vulcano, advertido por Apolo, lançou sobre eles. Nada dis‑so vemos no quadro conservado em Munique. Vénus está nua, é certo, e estendi‑da na cama. Mas está sozinha; Marte refugiou ‑se debaixo da mesa, de armadura e elmo na cabeça, enquanto Vulcano, de joelho apoiado na cama, levanta o leve tecido que oculta o sexo da sua mulher. Ao lado, num berço junto à janela, Cupido dorme profundamente. Nunca vimos e jamais voltaremos a ver este tema trata‑do de semelhante forma. Na tua opinião, ao representá ‑lo de modo tão parado‑xal, Tintoretto terá pretendido, por meio de um contra ‑exemplo, exaltar os mé‑ritos da fidelidade conjugal. Não seria a primeira vez que se explorava o adultério de Vénus para amedrontar as jovens recém ‑casadas. Dou ‑te o benefício da dúvi‑da. Em apoio dessa tese, invocas os numerosos textos publicados em Veneza nos quais se condenam o adultério e as imagens eróticas. Fico perplexo. Não é por existirem, nem mesmo por terem sido publicados na mesma época, que esses textos contribuem necessariamente para explicar o quadro. Seria demasiado

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encostado à parede, que revela a verdade. Admitamos que sim. Mas de que ver‑dade se trata?

Tu e Weddigen falam copiosamente sobre o reflexo do espelho de Vénus no escudo de Marte. Não serei eu a censurar ‑vos esse interesse por um pormenor que mal se vê. Mas nada dizem sobre o que o mesmo escudo manifestamente mostra: Vulcano de costas, debruçado sobre o corpo de Vénus. Mas olha com mais atenção: é um reflexo singular, estranho, anormal. Porque Vulcano surge aí numa posição diferente. Repara! No primeiro plano, ele tem apenas o joelho direito apoiado na cama; a perna esquerda está esticada, um tanto hirta (o que é normal para um coxo), e o pé esquerdo assenta no chão, bastante afastado da cama. Pelo contrário, no espelho, como muito bem mostra o pormenor que enfa‑tizaste, Vulcano parece ter também o joelho esquerdo (convertido, no reflexo, em joelho direito) sobre a beira da cama. Não acredito, de modo algum, que se trate de um erro ou de uma desatenção do pintor. Pelo contrário, diante de nós e de modo bem evidente, o espelho mostra ‑nos o que vai acontecer no instante a seguir ao que é representado em primeiro plano: Vulcano subirá para a cama – e facilmente podemos imaginar o que se passará depois. A ideia parece ‑te dispa‑ratada? Olha que não: se é do escudo ‑espelho de Marte que se trata, ele funciona como o de Eneias, mostrando o futuro (imediato) dessa cena de vaudeville. E se, como tu própria sustentas, é um espelho revelador da verdade, então indica a li‑ção a tirar da cena que vemos, a moral da história. Resta saber de que verdade, de que moral, se trata.

O que acontece realmente a Vulcano? Ele chega para interromper os folgue‑dos (ainda não iniciados) de Vénus e Marte. Entretanto, em vez de ouvir o cão, decide procurar entre as coxas da mulher a prova do seu suposto infortúnio. Porém, pelo que o espelho mostra, o que Vulcano aí vê fá ‑lo esquecer tudo o res‑to. Deixa ‑se seduzir pelo encanto do sexo da esposa e mostra ‑se (tu própria o dizes) excitado como um sátiro ao descobrir uma ninfa. Weddigen, entre outros, evoca Tarquínio prestes a violar Lucrécia. À primeira vista, esta comparação dir‑‑se ‑ia paradoxal – no fim de contas, Vulcano e Vénus são casados, e é ela a infiel. Mas o paralelismo é de facto adequado, tanto mais que o arrebatamento sexual que acomete Vulcano é bastante explícito no desenho preparatório do pintor, conservado em Berlim (fig. 2): ausentes Marte, Cupido e o cão, Vénus parece fa‑

outra coisa, não pensa noutra coisa. E eu não estou a inventar nada. Basta olhar para o grande espelho que se encontra por detrás dele para ver o que vai aconte‑cer no momento seguinte.

Já agora, duas ou três palavras sobre esse espelho. Tu não referes a sua estra‑nha posição. O espelho não só tapa parcialmente a janela situada em frente a nós, como está demasiado baixo – mais ou menos à altura do leito de Vénus e, em todo o caso, numa posição inferior à do berço de Cupido. De facto, se olhares com atenção, verás que não está pendurado na parede; deve estar apoiado num móvel, oculto pela mesa sob a qual Marte se refugiou. Mas o que faz ali aquele espelho? Para que servirá, estando tão baixo? Para refletir os folguedos de Vénus? É muito possível. Não duvido da existência desse tipo de dispositivos na Veneza do século xvi. Mas tal hipótese afasta ‑nos ainda mais de uma represen‑tação de carácter moralizante. A menos que o objeto não seja realmente um espelho. Tu própria disseste que pode tratar ‑se do escudo de Marte. Se assim for, admitamos que é um escudo bem peculiar – não apenas devido ao tamanho (é realmente muito grande), mas sobretudo ao facto de servir como espelho. Tanto quanto sei, era Perseu que possuía um escudo liso e polido ao ponto de petrificar Medusa. É verdade que também Eneias possuía um escudo ‑espelho. Erasmus Weddigen aponta o facto, a propósito deste mesmo quadro. Fabricado pelos ci‑clopes, era um escudo encantado cuja superfície mostrava o futuro grandioso de Roma. Esta comparação é arbitrária (e, de resto, tu não a apontaste), mas agrada‑‑me. Porque, justamente, o que vemos nós no escudo ‑espelho de Tintoretto? Tu limitaste ‑te a referir o reflexo (pouco visível) de um segundo espelho que estaria situado fora de campo, do nosso lado da cena: tratar ‑se ‑ia do espelho de Vénus, pousado na beira da cama e reflectindo ‑se no escudo de Marte. (Uma bela ima‑gem, diga ‑se de passagem, do desejo partilhado: o espelho dela reflete ‑se no es‑cudo dele, transformando ‑o em espelho de amor.) Weddigen também se refere a esse espelho fora de campo, mas, uma vez que tu nada disseste sobre o seu texto, deixarei de lado a reconstrução óptica que ele propõe e as conclusões que daí retira. São muito diferentes das tuas, mas pouco importa. Para ti, esse espe‑lho que não vemos, esse espelho escondido, permitiria a Vénus ver Vulcano aproximar ‑se, mesmo que estivesse de costas para a porta – e estabeleceste bri‑lhantemente um contraste entre esse espelho, instrumento de engano, e o outro,

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mais precisamente, pelo sexo) e nos reduzem à categoria de cornudos felizes ou de jovens devassos escondidos sob uma mesa.

As minhas conclusões são, pois, radicalmente opostas às tuas. Vais dizer‑‑me que tudo isto é divertido, engraçado, bem argumentado, mas que não passa de uma interpretação subjetiva, que não tenho textos para sustentar a minha tese. Enganas ‑te! Por tua causa, graças a ti, para te poder escrever e para que me tomes a sério, fui à procura de textos. Não precisei de muito tempo para os encontrar. O mérito não é meu – é de Beverly Louise Brown, que a propósito deste quadro evoca os muitos textos hostis ao casamento publicados à época em Veneza, na tradição de Juvenal, Boccaccio ou Erasmo. Brown cita Anton Francesco Doni, Lodovico Dolci, mas também as farsas, novelas e outras com‑medie erudite cheias de casais desavindos, maridos enganados e cornudos ridí‑culos. O artigo é impecável e, francamente, o contexto que ela sugere parece‑‑me mais pertinente, mais convincente do que as referências que invocaste. Mas, em última instância, pouco importa. O que me parece mais significativo é o facto de eu não ter precisado de textos para ver o que se passava no quadro. Os meus alunos podem confirmá ‑lo: há muito tempo que o comento desta forma. Aí reside, talvez, o ponto essencial do nosso desacordo. Dir ‑se ‑ia que tu partes de textos, que precisas de textos para interpretar os quadros, como se não con‑fiasses nos teus olhos para ver, nem nos quadros para te mostrarem, por si mes‑mos, o que o pintor quis exprimir.

Outra coisa. Quiseste a toda a força encontrar no quadro um tema matrimo‑nial. E porque não? Pintar um quadro hostil ao casamento não deixa de ser uma forma de tratar o tema matrimonial. Mas tu fazes questão que um quadro «ma‑trimonial» exalte o casamento. E isto não passa de uma ideia feita, a consequên‑cia nefasta dessa mania (de origem anglo ‑saxónica, creio) de ver em todos os quadros de mulheres nuas «quadros sobre o casamento». À partida, a hipótese não é falsa e tem produzido bons resultados. Ao fim e ao cabo, na sociedade cris‑tã da Renascença é o casamento que legitima a sexualidade. (Margarida de Navarra considera ‑o uma «cobertura»). A par da mitologia, é o casamento que autoriza o espectáculo da nudez. (E não só…) Mas não devemos simplificar a questão. Em 1550, a nudez feminina é comum na pintura. E é exatamente por isso que a Igreja começa a inquietar ‑se. E depois, no caso deste Marte e Vénus

zer tenção de fugir, enquanto Vulcano tem todo o ar de um violador na iminên‑cia do acto. No quadro, o contexto que envolve essa cena típica fá ‑la perder a sua violência explícita: Vulcano não passa de um velho (em primeiro plano) sempre vigoroso (no espelho). A meu ver, esta décalage (excecional) entre a cena e o seu reflexo é essencial à ideia a que Tintoretto dá corpo no seu quadro, à sua inven‑zione: condensa o fulcro cómico do quadro e a lição moral a retirar da pequena comédia imaginada pelo pintor a partir de Ovídio.

Porque este quadro é cómico. Desculpa a insistência, Giulia, mas é inevitá‑vel, já que tal ideia não te passou pela cabeça – e se te pareço um tanto maçador, paciência! Marte é ridículo, escondido debaixo da mesa como um amante den‑tro do armário. Vulcano é cómico, deixando ‑se levar uma vez mais, cego pelo sexo de Vénus. Cómico é também o cãozinho que ladra raivosamente, em vão. O próprio Cupido adormecido é cómico: esgotado pelos seus esforços, também ele se vê derrotado (já não se trata de Omnia vincit Amor, mas de Amorem vincit Amor). O vaso de vidro pousado no parapeito da janela é mais subtil, já que sem dúvida mais irreverente: faz sorrir porque evoca irresistivelmente a transparên‑cia do vaso virginal de Maria «que jamais conheceu homem algum». E é bem possível que a própria construção em perspectiva desempenhe um papel cómico latente: dramatiza a cena, conduzindo o olhar à porta pela qual Vulcano entrou, mas levando ‑o de imediato, e num movimento sublinhado pelo indicador de Marte, na direção de um fogo manifestamente extinto. O de Vulcano? Ou o de Vénus, que Vulcano, depois de o ter apagado, se prepara para reacender?

Finalmente, só Vénus nada tem de divertido. Encontra ‑se, sem dúvida, numa situação desconfortável; arriscou a humilhação e o ridículo. Mas, uma vez mais, e ao contrário do que conta Ovídio, vai desenvencilhar ‑se com mínimo esforço – ou, pelo menos, ao mínimo preço: quanto custa uma cambalhota com Vénus? Que presente lhe dará o marido satisfeito? Em todo o caso, não é desta que Vulcano a apanhará em flagrante e fará rir às suas custas todos os deuses do Olimpo. Ocupado como estará, Vulcano não verá nem ouvirá Marte, com a sua armadura, sair em pontas de pés. Ora, se esta fábula tem uma moral – picante, certamente, e machista – é aí que reside: as mulheres são todas iguais, umas gal‑dérias, umas sedutoras que nos enganam a nós, homens, que exploram a nossa cegueira, que zombam de nós e do nosso desejo, que nos levam pela trela (ou,

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Não sei se me leste até ao fim. Espero que sim, pois só a ti poderia endereçar semelhante carta. Lembro ‑me de que tu própria gostas de pôr em causa as ideias feitas – mesmo quando são tuas. Recordas ‑te da nossa discussão sobre a Câmara dos Esposos, a Camera degli sposi, de Mantegna? Já aí não estávamos de acordo. Se calhar é o casamento que nos divide.

Con tanti abbracci vigorosi,

L’Hospitalet, Julho 2000.

surpreendidos por Vulcano, que sabemos nós da destinação do quadro? Tu pró‑pria o disseste: ignoramos tudo sobre a sua génese e as condições da sua enco‑menda. Por razões estilísticas, datamo ‑lo agora de cerca de 1550, mas continua‑mos sem saber para quem, ou à ordem de quem, terá sido pintado. Atendendo à pose de Cupido, que faz referência a um mármore de Miguel Ângelo outrora pertencente aos Gonzaga de Mântua, alguns autores supõem que o quadro se destinava a essa família. Porém, não fazia parte da coleção dos Gonzaga vendi‑da em 1623, pelo que a hipótese continua a ser extremamente frágil. De facto, nada sabemos do quadro até 1682, data em que foi vendido na Inglaterra. Pior ainda, como sublinha também Beverly Louise Brown, não deixou qualquer traço nas obras de artistas contemporâneos. Dito de outro modo: logo que pintado, desapareceu de circulação. Algo espantoso, tratando ‑se da obra de um mestre tão importante… Adiantemos uma hipótese: e se o quadro tivesse sido pintado para uma grande cortesã veneziana, a pedido de um dos seus amantes – um jo‑vem Gonzaga, porque não? Quando te propus esta hipótese, rejeitaste ‑a de ime‑diato. Porquê? Sabes tão bem como eu que algumas cortesãs de Veneza eram mulheres estimadas, admiradas, respeitadas – excepto pela Igreja, claro está, mas certamente por alguns eclesiásticos. Devemos imaginar que essas mulhe‑res viviam em mansardas esconsas, em sórdidas casas de passe? Que não ti‑nham quadros nas salas onde recebiam visitas e, por vezes, organizavam tertú‑lias? Penso na bela Tullia d’Aragona, e acredito que o Marte e Vénus surpreendidos por Vulcano de Tintoretto não pareceria deslocado no seu salon, na sua câmara ou antecâmara, que satisfaria o «decorum», como se dizia, e que toda a gente perceberia de imediato a sua veia cómica.

Bem sei que não estás de acordo. Não tenho textos nem documentos de ar‑quivo para sustentar a hipótese que adianto, a qual não é, portanto, historica‑mente séria. Mas julgo que essa «seriedade histórica» se assemelha cada vez mais ao «politicamente correto» e acredito que devemos combater esse pensa‑mento dominante, pretensamente historiador, que quer impedir ‑nos de pensar e tenta convencer ‑nos que nunca houve pintores «incorretos». É o princípio da iconografia clássica que, de outro modo, perderia o seu latim e as suas certezas. A este propósito, Jean Wirth escreveu coisas muito interessantes no início do seu L’Image médiévale.

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