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Publicado no Livro: Arbitragem Interna e Internacional: Questões de Doutrina e da Prática – Ano 2003 _______________________________________________________________________ A Convenção Arbitral em Estatutos e Contratos Sociais 1 Daniela Bessone Barbosa Moreira _______________________________________________________________________ 1. Algumas observações introdutórias Curiosamente, a composição de conflitos societários por arbitragem é questão a um só tempo antiga e nova no direito brasileiro 2 . Antiga, porque a Constituição do Império, de 1824, já contemplava essa possibilidade. O Código Comercial, de 1850, chegava a impor a arbitragem para a solução de litígios entre sócios, como os relativos à liquidação da sociedade e à partilha do acervo. Ao lado da arbitragem compulsória, havia, ainda, a facultativa, para quaisquer outros conflitos societários, como aqueles entre sócios e a própria sociedade. Mas em meados do séc. XIX, a arbitragem compulsória seria afastada do nosso ordenamento jurídico e a facultativa bastante enfraquecida, com a transformação da cláusula compromissória em verdadeiro acordo de cavalheiros 3 . Desde então, sua adoção no âmbito societário caiu em franco desuso e a doutrina esqueceu-se completamente do problema 4 . 1 Texto, com alterações e atualizações, da exposição feita no seminário “Arbitragem na prática segundo a experiência dos escritórios Jones, Day, Reavis & Pogue e Lobo & Ibeas”. 2 Carmen Tiburcio faz uma boa síntese da evolução histórica da arbitragem no Brasil no artigo “A arbitragem no direito brasileiro: histórico e Lei n° 9.307/96” in Revista de Processo 104/78. 3 O art. 9° do Decreto n° 3.900, de 26.06.1867, gol pearia de morte a execução específica da cláusula arbitral: A cláusula de compromisso, sem a nomeação de árbitros, ou relativa a questões eventuais, não vale senão como promessa, e fica dependente para sua perfeição e execução de novo e especial acordo das partes, não só sobre os requisitos do art. 8°, senão também sob re as declarações do art. 10.” (i.e., nome e domicilio dos árbitros; o objeto da contestação; o prazo em que os árbitros devem proferir sua decisão; etc.). 4 É curioso notar que, desde a sua versão original, a Lei 6.404/76 contempla, no § 2° do art. 129, uma hipótese de arbitragem – para solucionar o impasse resultante de empate na votação de uma assembléia geral: “No

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Publicado no Livro: Arbitragem Interna e Internacional: Questões de Doutrina e da Prática – Ano 2003 _______________________________________________________________________

A Convenção Arbitral em Estatutos e Contratos Socia is 1

Daniela Bessone Barbosa Moreira _______________________________________________________________________ 1. Algumas observações introdutórias Curiosamente, a composição de conflitos societários por arbitragem é questão a um só tempo antiga e nova no direito brasileiro2. Antiga, porque a Constituição do Império, de 1824, já contemplava essa possibilidade. O Código Comercial, de 1850, chegava a impor a arbitragem para a solução de litígios entre sócios, como os relativos à liquidação da sociedade e à partilha do acervo. Ao lado da arbitragem compulsória, havia, ainda, a facultativa, para quaisquer outros conflitos societários, como aqueles entre sócios e a própria sociedade. Mas em meados do séc. XIX, a arbitragem compulsória seria afastada do nosso ordenamento jurídico e a facultativa bastante enfraquecida, com a transformação da cláusula compromissória em verdadeiro acordo de cavalheiros3. Desde então, sua adoção no âmbito societário caiu em franco desuso e a doutrina esqueceu-se completamente do problema4.

1 Texto, com alterações e atualizações, da exposição feita no seminário “Arbitragem na prática segundo a

experiência dos escritórios Jones, Day, Reavis & Pogue e Lobo & Ibeas”.

2 Carmen Tiburcio faz uma boa síntese da evolução histórica da arbitragem no Brasil no artigo “A arbitragem no direito brasileiro: histórico e Lei n° 9.307/96” in Revista de Processo 104/78.

3 O art. 9° do Decreto n° 3.900, de 26.06.1867, gol pearia de morte a execução específica da cláusula arbitral: “A cláusula de compromisso, sem a nomeação de árbitros, ou relativa a questões eventuais, não vale senão como promessa, e fica dependente para sua perfeição e execução de novo e especial acordo das partes, não só sobre os requisitos do art. 8°, senão também sob re as declarações do art. 10.” (i.e., nome e domicilio dos árbitros; o objeto da contestação; o prazo em que os árbitros devem proferir sua decisão; etc.).

4 É curioso notar que, desde a sua versão original, a Lei 6.404/76 contempla, no § 2° do art. 129, uma hipótese de arbitragem – para solucionar o impasse resultante de empate na votação de uma assembléia geral: “No

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Com intervalo de mais de um século, o tema agora ressurge com cores verdadeiramente novas, a suscitar, como se verá, várias perplexidades. São muitas as vantagens da composição de conflitos societários na via arbitral. Controvérsias dessa natureza envolvem, em geral, aspectos extremamente técnicos, cuja adequada apreciação requer conhecimentos específicos sobre economia e finanças, além de vivência da dinâmica do mercado, questões com as quais o Poder Judiciário está pouco familiarizado. Por outro lado, sob a verdadeira avalanche de processos rotineiros, há compreensível tendência a postergar-se o exame daqueles que demandam estudo mais aprofundado de áreas do direito pouco freqüentes no dia-a-dia forense. Quando o inconveniente não é justamente o oposto: liminares de conseqüências graves para a sociedade concedidas sem a perfeita compreensão de suas repercussões e do problema em debate. Importante, também, é o fato de que no juízo estatal apenas as partes estão realmente sujeitas a prazos, ao passo que na arbitragem poderão estabelecer a data limite para que os árbitros profiram sua decisão – e quando não o fizerem, tal prazo será de seis meses (art. 23 da LArb.) –, com o que o procedimento arbitral, sobretudo o interno, tende a ser bem mais célere do que qualquer ação judicial. A arbitragem traz, ainda, a imensa vantagem do sigilo, tão caro às sociedades: o mercado, suscetível como é a movimentos especulativos, pode punir severamente a sociedade que se veja envolvida em litígio público, por mais etéreas que sejam as chances de êxito dos acionistas demandantes. E tem tudo para ser menos traumática do que a solução dos conflitos pelo juízo estatal, em vista da acentuada especialização dos debates, que desestimula argumentações emocionais e pouco técnicas. Não é preciso dizer muito: o juízo estatal é demorado demais, é formal demais, é público demais e nem sempre é aparelhado o suficiente para processar e julgar causas societárias com a agilidade indispensável a que o regular curso dos negócios e a posição da sociedade no mercado não sofram impacto maior do que o estritamente necessário. Em claro reconhecimento dessa circunstância, o legislador vem de inserir na Lei das S.A. previsão segundo a qual “o estatuto da sociedade pode estabelecer que as

caso de empate, se o estatuto não estabelecer procedimento de arbitragem e não contiver norma diversa, a assembléia será convocada, com intervalo mínimo de 2 (dois) meses, para votar a deliberação; se permanecer o empate e os acionistas não concordarem em cometer a decisão a um terceiro, caberá ao Poder Judiciário decidir, no interesse da companhia.” Não há registro, todavia, de que essa arbitragem tenha sido, na prática, utilizada.

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divergências entre os acionistas e a companhia, ou entre os acionistas controladores e os acionistas minoritários, poderão ser solucionadas mediante arbitragem, nos termos em que especificar” (art. 109, § 3°) 5. As inegáveis vantagens da via arbitral em matéria societária não atenuam, contudo, as dificuldades – e não são poucas ! – relacionadas à adoção da convenção de arbitragem em estatutos e contratos sociais. Estas reflexões têm o objetivo de suscitar algumas delas. 2. Poderão ou deverão? A primeira dúvida surge logo da dicção do § 3° do a rt. 109: qual terá sido a intenção do legislador ao autorizar previsão estatutária de que as divergências sociais “poderão ser solucionadas mediante arbitragem”? Será a instauração do procedimento arbitral sempre facultativa (como sugere o emprego do verbo poder) para a sociedade e para quaisquer acionistas? Tal interpretação literal da norma conduziria à sua inutilidade. Seria, ademais, incompatível com a execução específica da cláusula compromissória, finalmente (re)acolhida por nosso ordenamento jurídico com a Lei n° 9.307/96. Convenção arbitral estatutária que se limite a facultar a instauração do procedimento arbitral é o que havia entre nós antes da Lei de Arbitragem: um acordo de cavalheiros. E não seria preciso alterar o art. 109 da Lei das S.A. para autorizar a adoção de um acordo de cavalheiros societário. Parece-nos que a mens legis foi a de reafirmar que é possível inserir cláusula compromissória, suscetível de ser coativamente observada, em estatutos sociais. Aliás, mesmo antes da reforma da Lei das S.A., a doutrina já admitia com naturalidade a convenção arbitral em contratos de sociedade: em 1988, comentando genericamente a validade de cláusulas compromissórias, Carlos Alberto Carmona (co-autor do anteprojeto que resultou na Lei de Arbitragem) notava que “Para a validade da cláusula, basta que as partes mencionem as relações jurídicas por ela abarcadas, ou seja, é suficiente reportar-se a determinado contrato, às relações societárias relativas aos integrantes de determinada empresa , a certos serviços, sem maior preocupação em especificar os litígios que poderão decorrer do relacionamento contratual.”6 5 Reforma da Lei n° 10.303/2001.

6 in “Arbitragem e Processo – Um Comentário à Lei n° 9. 307/96”, Malheiros Ed., SP, 1998, pág. 82. Sem grifos no original.

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Com isso, lemos a expressão “poderão ser solucionadas mediante arbitragem” como “deverão ser solucionadas mediante arbitragem” ou, simplesmente, “serão solucionadas mediante arbitragem”, de tal modo que o juízo arbitral seja o único competente para dirimir os conflitos que venham a surgir no âmbito da sociedade, desde que assim preveja o estatuto. 3. O alcance subjetivo da cláusula compromissória Questão tormentosa é a que diz respeito ao alcance subjetivo da convenção arbitral: estarão todos os acionistas, indistintamente, sujeitos à sua eficácia ou a disposição alcançará apenas alguns acionistas e, neste caso, quais deles? Entre nós, salvo engano, apenas dois autores já se detiveram especificamente sobre o problema, tendo chegado, com sólidos fundamentos, a conclusões diametralmente opostas: Pedro Batista Martins, também co-autor do anteprojeto que deu origem à Lei de Arbitragem7, e o eminente comercialista Modesto Carvalhosa8. Comecemos pelas sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Se de seus atos constitutivos, sempre assinados por todos os sócios, constar cláusula compromissória, não há dúvida de que, surgindo litígio a respeito de direitos patrimoniais disponíveis, nenhum dos sócios fundadores poderá furtar-se ao juízo arbitral. O mesmo se dará, naturalmente, com as sociedades por quotas que a tenham inserido em seu contrato social por deliberação unânime dos sócios. O problema assume outro perfil se a convenção de arbitragem vier a ser incorporada ao contrato social por iniciativa do sócio controlador. Será ela eficaz em relação ao minoritário, que não tenha tomado parte do processo decisório ou, pior, se tenha oposto formalmente à sua adoção? E quanto ao sócio novo? A matéria, já delicada, como se vê, para as sociedades por quotas de responsabilidade limitada, ganha contornos ainda mais dramáticos no tocante às sociedade anônimas, que podem ter ações sem direito a voto e nas quais a qualidade de acionista freqüentemente decorre da aquisição dos títulos em bolsa. Como a dinâmica do mercado não é compatível com manifestações formais de cada novo acionista no sentido de aderir à convenção arbitral, a resposta negativa importaria, como facilmente se percebe, em cláusula compromissória de âmbito limitado: a ela estariam vinculados a sociedade e o acionista controlador, mas não o universo de acionistas em cujas mãos estão pulverizadas as ações da companhia.

7 “A Arbitragem nas Sociedades de Responsabilidade Limitada” in “Reflexões sobre a arbitragem in memoriam

do Desembargador Claudio Vianna de Lima”, ed. LTR, SP, 2002, pág. 117.

8 “A Nova Lei das S.A.”, em co-autoria com Nelson Eizirik, Saraiva, SP, 2002, capítulo 3.11.

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3.1 A posição que advoga a sujeição de todo e qualquer sócio à convenção de arbitragem

A posição que defende eficácia mais extensiva da cláusula compromissória, representada por Pedro Batista Martins, sustenta que será ela sempre oponível ao sócio dissidente, o que decorreria da combinação de várias circunstâncias.

A primeira delas, a de que o contrato de sociedade materializa a conjunção de esforços para a persecução do interesse comum, do interesse social. No contrato de sociedade não há bilateralidade de posições ou reciprocidade de obrigações entre partes, mas objeto comum a todos os sócios: o sucesso do empreendimento. Sua tônica é a uniformidade de propósitos e a união de esforços no sentido de alcançá-los. Com isso, o interesse da sociedade, coletivo, abrangente, deve prevalecer sobre os interesses pontuais, individuais, de seus acionistas.

Por outro lado, a alteração do contrato social para o fim de incorporar convenção de arbitragem não pode ser considerada, em si mesma, ato lesivo aos interesses de qualquer acionista em particular. Ao contrário, sua adoção teria por fim fazer com que a sociedade passe a beneficiar-se das muitas vantagens da composição técnica, célere, desburocratizada e sigilosa dos litígios, em prol da coletividade.

Finalmente, como as sociedades são governadas pelo princípio do voto majoritário, a vontade da maioria passa a confundir-se com o próprio interesse social (desde que, naturalmente, o exercício do controle não seja abusivo), razão pela qual a minoria a ela deve sujeitar-se.

3.2. A posição que advoga a sujeição de apenas determinados sócios à convenção de

arbitragem

Segundo a posição oposta, formulada por Modesta Carvalhosa, estariam sujeitos à convenção de arbitragem exclusivamente os acionistas que a ela se tenham vinculado de modo expresso, uma vez que a manifesta declaração de vontade formal das partes envolvidas no litígio seria pressuposto de validade e eficácia da sentença arbitral. Todos os demais acionistas estariam completamente a salvo do seu alcance (exceto quando eles próprios tomem a iniciativa de instaurar o procedimento).

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Argumenta, basicamente, com o preceito do art. 5°, inciso XXXV da Constituição Federal – “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” – e com outros dois dispositivos de natureza infraconstitucional: = o § 2° do art. 4° da própria Lei de Arbitragem, q ue regula a eficácia de cláusula compromissória aposta em contratos de adesão, em cujos termos “Nos contratos de adesão a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para esta cláusula”; e = o § 2° do art. 109 da Lei das S.A., segundo a qua l “Os meios, processos ou ações que a lei confere ao acionista para assegurar os seus direitos não podem ser elididos pelo estatuto ou pela assembléia geral.” Para o autor, este último preceito teria natureza cogente, com o que “a supressão da instância judicial e sua substituição pelo juízo arbitral estatutário deve ser considerada como uma faculdade para os acionistas e uma obrigação contratual para a sociedade.” (...) “Não se impõe, portanto, erga omnes, a cláusula estatutária instituidora da arbitragem. Ela não vincula os acionistas que não tenham inequívoca, livre e expressamente aderido, nos termos do § 2° do art. 4 ° da Lei n° 9.307 .”9 Manifesta, ainda, a opinião de que como “o juízo arbitral advém de renúncia a direito essencial do pactuante, trata-se de pacto personalíssimo inquestionavelmente declarado em seu aspecto formal, e que não se transmite por sucessão ou cessão à pessoa do sucessor ou cessionário.”10 3.3 Exame das duas posições Não obstante o peso dos argumentos e da autoridade de Pedro Batista Martins e de Modesto Carvalhosa, discordamos de algumas das premissas de que partem, o que acaba por conduzir-nos a conclusões um pouco diferentes.

9 op. cit. pág. 189/190.

10 op. cit., pág. 180.

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3.3.1. Autonomia da vontade e arbitragem compulsória Tal como acolhido no Brasil, o instituto da arbitragem tem explicação e fundamento necessários no princípio da autonomia da vontade. Exatamente por reconhecer às partes contratantes a liberdade de afastar a cognição do juízo estatal dos conflitos que possam surgir no âmbito do contrato, o Supremo Tribunal Federal não identificou incompatibilidade entre o art. 7° da LArb. com a ga rantia contida no art. 5°, XXXV da Constituição. No voto que proferiu no julgamento do Agravo Regimental na Sentença Estrangeira n° 5.206-7, proveniente da Espanha, o Ministro Marco Aurélio deixa essa circunstância a salvo de qualquer dúvida: “vejo na garantia constitucional do inciso XXXV do art. 5° a consagração da liberdade . Por isso, não posso proceder a uma leitura que a afaste, e o estarei fazendo se caminhar, na contramão da prática internacional, para a declaração de inconstitucionalidade relativamente aos preceitos invocados. (...) Não vejo conflito no cotejo da Lei n° 9.307/96 (Lei de Arbitragem) com a Lei Maior da nossa República. Vejo a harmonia, a homenagem a esse Diploma Básico, no que a Lei de Arbitragem consagra o princípio da manifestação da vontade (...).”11 É na mesma linha o voto do Ministro Ilmar Galvão: “Não se cuida, entretanto, de ato por meio do qual alguém declara haver renunciado, de forma absoluta, a todo direito de ação, a partir de determinado momento, o que seria inadmissível, mas de simples cláusula contratual em que as partes vinculadas a determinada avença, que tenha por objeto direito patrimonial de natureza disponível, deliberam, de livre e espontânea vontade , que toda dúvida que o contrato vier a suscitar será ... resolvida, necessariamente, por terceiro de sua confiança, cuja decisão será obrigatoriamente por elas acatada.”12 De fato, a arbitragem deita raízes no exercício da liberdade de contratar. Não parece haver espaço para a arbitragem compulsória ou necessária, seja por imposição legal, seja em virtude de qualquer outro fator externo ao contratante. Por essa razão, mesmo sendo sensível aos argumentos em sentido contrário, especialmente no que toca à supremacia do interesse social, coletivo, sobre o interesse pontual e específico do acionista, não vemos como se possa opor a cláusula compromissória ao acionista dissidente, assim entendido aquele que tenha manifestado

11 Sem grifos no original.

12 Sem grifos no original.

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expressamente discordância quanto à sua inclusão no contrato social ou no estatuto da companhia. Mesmo quando possa ele retirar-se da sociedade, sua permanência não parece suficiente para caracterizar aceitação das novas regras do jogo, quando tenha manifestado vontade em sentido contrário. Mas que posição adotar no tocante aos acionistas que deixem de comparecer a assembléia, regularmente convocada, com adequada publicidade, em que se aprove a convenção de arbitragem? Ou àqueles que, tendo comparecido a tal assembléia, permaneçam em silêncio? Ou, ainda, aos novos sócios, que ingressem em sociedade cujo contrato ou estatuto social contenha cláusula compromissória? 3.3.2 A natureza da cláusula compromissória e a manifestação da vontade de vincular-

se A parte da doutrina para a qual a eficácia da convenção arbitral se opera apenas entre os acionistas que a ela se tenham vinculado de modo expresso sustenta que, por representar renúncia a uma garantia constitucional, a exteriorização da vontade no sentido de vincular-se à cláusula compromissória somente se poderia dar de modo expresso, em declaração escrita e arquivada na sede social, quando se tratar de sociedade anônima13. A esse respeito, é preciso dizer que nem todos identificam na vinculação ao pacto arbitral verdadeira renúncia a garantia constitucional. José Eduardo Carreira Alvim observa que “Tanto não se trata de renúncia ou de uma revogação da jurisdição que não pode ser declarada de ofício pelo juiz (ope legis), dependendo, necessariamente, de alegação da parte (ope exceptionis). Ademais, se de renúncia ou de revogação se tratasse, não poderiam as partes recuperá-la, caso a arbitragem não chegasse a bom termo, pois não se readquire aquilo a que se renuncia ou revoga.” Na opinião do autor, trata-se, na verdade, de negócio jurídico processual 14. Ademais, o entendimento comentado parece querer extrair da norma constitucional mais do que ela realmente contém. A regra constitucional está claramente dirigida ao legislador: é a lei é que não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. O constituinte quis proteger-nos da instituição de tribunais de exceção, freqüentes nos regimes pouco

13 Modesto Carvalhosa, op. cit., pág. 198.

14 “Tratado Geral da Arbitragem”, Ed. Mandamentos, BH, 2000, pág. 144/145.

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democráticos, como ressalta o voto da Ministra Ellen Gracie no Agravo Regimental da Sentença Estrangeira n° 5.206-7: “A leitura que faço da garantia enfocada no art. 5°, XXXV, é de que a inserção da cláusula assecuratória de acesso ao judiciário, em nosso ordenamento constitucional, tem origem e se explica pela necessidade de precatarem-se os direitos dos cidadãos contra a atuação de órgãos administrativos, próprios de regimes autoritários. A arqueologia da garantia da via judiciária leva-nos a verificar que a cláusula sempre teve em mira, preponderantemente, o direito de defesa ante os tribunais, contra atos dos poderes públicos. Por isso mesmo é, ineludivelmente, o legislador o destinatário da norma .15 Tem-se, portanto, que a lei não pode afastar a cognição do juízo estatal, mas o estatuto social pode! Isso pela simples razão de que à autoridade da lei estamos todos indistinta e inexoravelmente sujeitos, sem possibilidade de escolha ou de escape. Mas ao estatuto de uma sociedade sujeita-se quem quer, já que a condição de acionista não é imposta a ninguém. Não discutimos ser indispensável a anuência voluntária à cláusula compromissória. Mas a forma de manifestar tal anuência, lá isto é com a parte, com o sócio (desde que se parta da premissa, a que nos filiamos, de que a regra dirigida aos contratos de adesão não é aplicável aos contratos de sociedade, como se verá mais adiante). Pedro Batista Martins observa, com razão, que existem vários meios e modos válidos de manifestar vontade, o que, aliás, já estava refletido no art. 1.079 do Código Civil de 1916 (“a manifestação da vontade, nos contratos, pode ser tácita, quando a lei não exigir que seja expressa”), ao qual corresponde, embora com abrangência maior, o art. 111 do novo Código Civil: “O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa”. Não é demais observar que a Lei de Arbitragem, salvo quanto aos contratos de adesão, não dispõe sobre a forma da manifestação de vontade de vincular-se à cláusula compromissória. Exige, apenas, que a própria cláusula compromissória seja convencionada por escrito, requisito evidentemente preenchido com sua inserção no contrato ou no estatuto social. Com isso, o silêncio em uma deliberação assemblear, regularmente convocada, com adequada publicidade, na qual se aprove a inserção da cláusula compromissória no estatuto da companhia, poderá refletir concordância.

15 Sem grifos no original.

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O mesmo se dará com o ato de adquirir ações de uma companhia cujo estatuto contenha, claramente, a convenção de arbitragem. Afinal, quem adquire ações está, ainda que por presunção, perfeitamente ciente de todos os termos e condições estatutários, dos quais não pode, posteriormente, pretender furtar-se.

Afinal, ninguém é obrigado a adquirir ações de uma determinada companhia. O que não parece defensável é que o investidor possa ter à sua disposição o melhor dos mundos: ingressar no quadro social em vista das expectativas de rentabilidade que o investimento lhe inspira e, simultaneamente, insurgir-se contra esta ou aquela disposição estatutária lícita, apenas por não lhe ser conveniente. E não pode haver dúvida de que a cláusula compromissória é, em si mesma, disposição estatutária lícita.

É verdade que em decisão recente, o Supremo Tribunal Federal considerou inadmissível, em função de sua excepcionalidade, “a convenção de arbitragem tácita, implícita e remissiva”16. É preciso levar em conta, contudo, a moldura fática em que a afirmativa foi feita. Naquele caso não se tratou das especificidades da convenção de arbitragem para dirimir conflitos societários, mas de contrato internacional de compra e venda (de algodão), que não fora assinado pela parte que se opôs à homologação da sentença arbitral e que, ademais, não continha qualquer convenção de arbitragem, como consigna a ementa do acórdão: “Contrato de compra e venda não assinado pela parte compradora e cujos termos não induzem à conclusão de que houve p actuação de cláusula compromissória , ausentes ainda quaisquer outros documentos escritos nesse sentido. Falta de prova quanto à manifesta declaração autônoma de vontade da requerida de renunciar à jurisdição estatal em favor da particular.”17

Sabe-se que o contexto de fato muitas vezes determina a ênfase dada a um ou outro aspecto do direito examinado (razão pela qual a identidade das situações de fato é exigida para a comprovação de divergência). Não é de se afastar, assim, a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal vir a adotar entendimento diferente no tocante à

16 Sentença Estrangeira Contestada n° 6.753, Plexus Cotton Limited x Santana Têxtil S.A., Rel. Min. Maurício

Corrêa; acórdão publicado no DJ de 04/10/2002.

17 Do voto do Min. Maurício Corrêa extrai-se a seguinte passagem: “11. De plano, oportuno registrar que não paira a menor dúvida de que ambos os contratos não foram assinados pela empresa compradora , ora requerida. (...) A própria sentença, aliás, atesta que os contratos foram ‘assinados somente pelos Vendedores’ (fls. 86)”. “12. Ainda assim, da análise desses contratos constata-se a inexistência específica de cláusula compromissória. (...) Todas as suas cláusulas, sem exceção, tratam de questões comerciais apenas, não se referindo, em momento algum, quer expressamente quer de forma remissiva, à eleição de um juízo arbitral. A cláusula quarta invocada pelo requerente não existe, e o aditivo contratual mencionado não consta dos autos.” “29. Constata-se, assim, que a requerida jamais aceitou, ainda que tacitamente , a competência do juízo arbitral para resolver o litígio oriundo do contrato comercial em que foi parte compradora”. Sem grifos no original.

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subordinação do novo sócio à convenção arbitral inserta com clareza no estatuto da companhia da qual resolveu, livremente, tornar-se acionista, ou do sócio que tenha deixado de comparecer a assembléia em que tenha sido aprovada a convenção arbitral. 3.3.3 Contratos de sociedade e contratos de adesão Sustenta-se, ainda, que a regra da Lei de Arbitragem dirigida aos contratos de adesão seria aplicável às sociedades, em especial no tocante à admissão de novos sócios. Não cremos, porém, que este seja realmente o caso. O § 2° do art. 4° da Lei n° 9.307/96 parece ter endereço certo e claro: os contratos de massa, que regulam, em geral, relações de consumo, nos quais a parte aderente é quase sempre hipossuficiente e muitas vezes não se pode furtar à contratação (como no caso dos serviços públicos essenciais ou dos contratos bancários). São contratos bilaterais e sinalagmáticos – a prestação de uma das partes tem como correspondente direto a prestação da outra. Sendo suas cláusulas ditadas unilateralmente por uma das partes, e em vista da oposição de interesses que os caracteriza, são eles interpretados sempre em benefício da parte aderente, cujos interesses o legislador julgou necessário proteger, de forma ainda mais acentuada, com essa disposição relativa ao pacto arbitral. Tudo isso passa longe do contrato de sociedade, caracterizado pela convergência, não pela divergência de interesses, e no qual, a rigor, não se pode falar de parte hipossuficiente. Na versão que afinal prevaleceu, o § 2° do art. 4° da LArb. acabou ficando bastante semelhante ao art. 1.341 do Código Civil italiano, que condiciona a eficácia de certas cláusulas, apelidadas pela doutrina de vessatorie (vexatórias, na tradução literal), quando apostas em contratos de adesão, a que a parte aderente manifeste sua anuência por escrito, em documento separado, ou à margem do documento original18. E entre as disposições sujeitas a tal regra está, justamente, a cláusula compromissória. Parece útil, assim, conhecer a experiência italiana a respeito do problema.

18 “1341. Condizioni generali di contratto. Le condizioni generali di contratto predisposte da uno dei contraenti

sono efficaci nei confronti dell’atro, se al momento della conclusione del contratto questi le ha conosciute o avrebbe dovuto conoscerle usando l’ordinaria diligenza. In ogni caso non hanno effetto, se non sono specificamente approvate per iscritto , le condizioni che stabiliscono, a favore di colui che le ha predisposte, (...), clausule compromissorie (c.p.c. 808) o deroghe alla competenza dell’autori tà giudiziaria ”.

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Até onde nos foi possível verificar, já está mais do que consolidado na Corte de Cassação, cuja competência equivale à do nosso Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de que a regra do art. 1.341 do Código Civil não se aplica aos contratos de sociedade.19 O fundamento central – que não é infenso a críticas por parte da doutrina italiana, mas tem prevalecido amplamente na jurisprudência – é justamente o de que no contrato de sociedade há convergência de interesses econômicos, dirigidos a um fim comum, ao contrário do que ocorre nos contratos bilaterais, nos quais o propósito dos contratantes é diverso e cada um obtém a finalidade pretendida mediante a prestação do outro. Nos contratos de sociedade, considerados contratos de colaboração, a prestação de um sócio não é destinada a satisfazer os interesses dos demais, mas os esforços de todos convergem e constituem os instrumentos necessários a que seja atingido o objetivo social20. A Corte de Cassação tem também entendido que a posição de paridade entre os sócios afasta a proteção conferida pela lei ao contratante fraco, e que tal paridade subsiste não apenas entre os sócios fundadores, mas também entre estes e aqueles que ao longo do tempo venham a ingressar no quadro social21.

19 Emilio Vito Napoli observa que “Il problema dell’applicabilità della normativa ai raporti societari ha interessato

la giurisprudenza sotto il profilo della necessità di approvazione specifica delle clausule onerose [art. 1341, comma 2°, c.c.]. Generalmente la disciplina delle c ondizioni generali di contratto non è apparsa applicabile ai raporti societari. Si è affermato che manca nei rapporti societari la contraposizione iniziale di interessi dei contraenti.” in “Le condizioni generali di contrato nella giurisprudenza”, a cura di Massimo Bianca, Milão, Giuffrè Editore, vol. II, pág. 32.

20 “Alla base del contrato sociale vi è ‘una convergenza di interessi economici paralleli diretti ad uno scopo comune. Mentre nei contratti di scambio lo scopo perseguito da ciascun contraente è diverso e ciascuno raggiunge le finalità, cui mira, mediante la prestazione dell’altro, nella società, inquadrabile nello schema dei contratti di collaborazione, si ha una comunanza di scopo, perché tutti i contraenti mirano a conseguire un guadagno: la prestazione di un socio non è destinata a soddisfare gli interessi degli altri, ma sono i conferimenti di tutti che constituiscono gli strumenti per il raggiungimento del lucro che va ripartito tra i soci’. [Cass., 11 ottobre 1960, n. 2640, in Foro pad., 1961, I, c. 826, con notta di Auletta G., il quale rileva che tale argomento ‘confonde la comunione di scopo colla identità di interessi tra soci, non considerando che la coincidenza si verifica solo relativamente allo interesse sociale collettivo (realizzazione dell’utile), mentre nella vita della società entrano pure in gioco interessi sociali individuali ed interessi extrasociali’].” apud Emilio Vito Napoli, op. cit., pág. 32.

21 “La parità di posizione dei soci, comune ai vari tipi di società di capitali e tipica della società cooperativa, rende ancora inapplicabile la normativa anche sotto il profilo della figura di um contraente debole contrapposta a quella di um contraente in posizione di preminenza sul mercato. Non si prospetta quindi la necessità di tutela del contraente meno provveduto per assicurare il funzionamento effettivo del meccanismo di formazione del contratto [Cass., 11 ottobre 1960, cit.; v. anche App. Brescia, 24 febbraio 1965, in Giust. civ., 1965, I, p. 2127, con nota di Giannatasio); Cass., 19 giugno 1972, n. 1951, relativamente al contrato di consorzio]” / “Si aferma che in materia di società la posizione di parità fra i soci sussiste non solo fra i soci fondatori al momento della costituzione della società, ma anche fra questi e quelli che vi abbiano aderito successivamente nel corso dello svolgimento del rapporto sociale, avendosi anche in tale ipotesi una comunanza di interessi, tesa al

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Afirma-se, ainda, que o contrato de sociedade tem natureza de contrato aberto, oponível a todos os que pretendam ingressar em determinado corpo social, filiando-se a regras já estabelecidas.22 Nessas condições, o esquema ao qual possam aderir novos sócios não teria sido predisposto para servir a uma série infinita de instrumentos, como nos contratos de massa, nem sua particular rigidez pode revelar o intento do proponente de regular de modo uniforme determinados relacionamentos contratuais. Não configuram, por isso, contratos de adesão.23 A jurisprudência italiana encontrou, em nossa opinião, a melhor solução para o problema: não é razoável que o sócio, no tocante às suas relações com a sociedade e com os demais sócios, goze dos favores concedidos ao contratante hipossuficiente, em confronto com os interesses de partes muito mais poderosas e/ou no âmbito de contratos a cuja celebração não se pode furtar (a menos que disposto a viver sem energia elétrica, água canalizada ou conta bancária). Realmente não parece adequado considerar minoritários como hipossuficientes em relação à sociedade e ao sócio majoritário. É preciso lembrar que minoritários serão sempre investidores, com grau mínimo de sofisticação e informação, os quais dispõem de meios, modos e recursos para inteirar-se perfeitamente do barco em que estão entrando. E o barco já está lá, tripulado por todos os outros sócios, nas condições que o novo acionista não deve (nem pode) desconhecer. Por outro lado, a circunstância de acionistas minoritários poderem encontrar-se, de quando em vez, em posição de antagonismo com majoritários não descaracteriza o fim social comum. É exatamente por existir essa possibilidade que se fala da via arbitral para dirimir conflitos entre acionistas. Mas as divergências entre os acionistas não elidem o objetivo comum em que todos se encontram – ou, idealmente, deveriam encontrar-se –

proseguimento di finalità comuni [Cass., 3 febbraio 1968, n. 353, cit.].” apud Emilio Vito Napoli, op. cit., pág. 32/33.

22 “L’accedere di nuovi soci ad una società già costituita è una ipotesi di adesione ad un contratto cosiddetto aperto, prevista dall`art. 1332 c.c., che regola il meccanismo formale dell`adesione di una pluralità di soggetti secondo le regole stabilite per la formazione del contratto originario [Cass., 11 ottobre 1960, n. 2640, cit.; App. Brescia, 24 febbraio 1965, cit. e Cass., 3 febbraio 1968, n. 353, cit.].” apud Emilio Vito Napoli, op. cit., pág. 33.

23 “Una ulteriore argomentazione si trae dalla circostanza che lo schema, cui possono aderire nuovi soci, non è stato predisposto per servire ad una serie indefinita di contratti, né la particolare rigidità di esso può rivelare l`intento del proponente di regolare in modo uniforme determinati rapporti contrattuali, essendo questo elemento nel contratto di società riconducibile ad altri fattori. Non può pertanto tale schema configurare um contratto di adesione [Cass., 3 febbraio 1968, n. 353, cit.; Cass., 24 ottobre 1968, n. 3487; Cass., 19 dicembre 1969, n. 4011, in Mon. trib., 1970, p. 764].” apud Emilio Vito Napoli, op. cit., pág. 33.

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engajados: o de criar as melhores condições a que a sociedade tenha sucesso. E a composição técnica, célere, desburocratizada e sigilosa dos litígios, na medida em que tais litígios afetem a sociedade, é uma de tais condições. 3.3.4. § 2° vs § 3° do art. 109 da Lei das S.A. O terceiro argumento de que se vale essa parte da doutrina é o de que a regra do § 2° do art. 109 da Lei das S.A. – “Os meios, processos ou ações que a lei confere ao acionista para assegurar os seus direitos não podem ser elididos pelo estatuto ou pela assembléia geral” – teria precedência sobre aquela contida no parágrafo seguinte do mesmo artigo, que faculta a adoção de cláusula compromissória estatutária. Não vemos dicotomia assim tão radical entre os dois dispositivos. Afinal, a arbitragem será, sem dúvida, um dos meios conferidos ao acionista para assegurar os seus direitos. Vale lembrar que o árbitro é juiz de fato e de direito (diz o art. 18 da LArb.). Sua rigorosa imparcialidade e eqüidistância em relação às partes é a regra, exatamente como ocorre com os magistrados no juízo estatal (cf. art. 21, § 2°), podendo a suspeição e o impedimento dos árbitros ser requeridos pela parte que se considerar prejudicada (na forma prevista no art. 20). Além dos princípios da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento, o procedimento arbitral está sujeito, como não poderia deixar de ser, ao princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa (como explicitado no art. 21, § 2°), c uja inobservância constitui uma das causas de nulidade da sentença arbitral (cf. art. 32, VIII). Como nota o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira24, a Lei de Arbitragem cuidou “até mesmo da postura ética dos árbitros, equiparando-os para efeitos da legislação penal, aos funcionários públicos, a ensejar o enquadramento dos mesmos na tipologia criminal em ocorrendo deslizes de comportamento”. Mas, além disso, as normas confrontadas têm igual hierarquia: encontram-se não apenas na mesma lei, como no mesmo artigo. Uma hipótese análoga, de cunho constitucional, pode bem ilustrar o raciocínio: O caput do art. 5° da Constituição assegura aos estrangeiro s residentes no Brasil tratamento isonômico ao dispensado aos brasileiros. Mas a própria Carta prevê algumas atividades econômicas privativas de brasileiros natos ou naturalizados, como a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão (cf. art. 222, caput). Os estrangeiros não fazem jus a tratamento idêntico ao dispensado aos brasileiros? Fazem. Salvo no tocante às exceções previstas na própria Constituição. O ordenamento jurídico está repleto de casos do gênero.

24 in “A arbitragem no sistema jurídico brasileiro”, RT, vol. 735, pág. 46.

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O mesmo se dá com os §§ 2° e 3° do art. 109 da Lei das S.A.: o estatuto e a assembléia não podem privar os acionistas dos meios, processos ou ações que a lei lhes confere para assegurar os seus direitos; mas essa regra comporta um temperamento: o estatuto pode estabelecer que as divergências sociais sejam solucionadas mediante arbitragem. 3.3.5 Transmissão da convenção de arbitragem por sucessão ou cessão Finalmente, o quarto argumento, de que a convenção arbitral teria natureza personalíssima, em virtude da qual seria intransmissível por sucessão ou cessão, não encontra eco na doutrina amplamente predominante. Obrigações personalíssimas são as intransmissíveis a sucessores ou cessionários, em razão do caráter intuitu personae que as distingue. São convencionadas em vista de característica específica ou condição própria de uma das partes, ou de ambas, de tal sorte que o contratante original não se desonera até que venha a adimplir a obrigação pessoalmente. Tais características particulares do(s) contratante(s) têm dimensão de fator determinante da vontade de obrigar-se: “A” somente celebra o contrato porque o faz com “B”. É o que ocorre nas obrigações de fazer com previsão de execução pessoal, como o caso de famoso pintor, contratado para executar um retrato: não seria razoável que o contratante estivesse obrigado a concordar com a realização da pintura por herdeiro do artista, ainda que muito talentoso! É também a hipótese do contrato de mandato, no qual se presume a existência de relação especial de confiança, intransferível a sucessores e cessionários (ressalvada, naturalmente, a hipótese de substabelecimento prevista no instrumento).

Com facilidade se percebe que a cláusula compromissória não se enquadra nesse perfil. Para a adoção do pacto arbitral são perfeitamente irrelevantes quaisquer características ou qualificações especiais das partes: o fator que a motiva é de outra natureza, puramente objetiva. Não se supõe que “A” somente tenha anuído com o pacto arbitral em vista das características subjetivas especialíssimas de “B”. O desejo de submeter divergências à arbitragem não é influenciado pela identidade da parte contra a qual se litigará, mas pelas vantagens do procedimento arbitral como método de composição de litígios em comparação com a jurisdição estatal.

Carlos Alberto da Mota Pinto aponta a cláusula compromissória como uma das disposições em relação às quais a cessão de contrato opera todos os seus efeitos: “Todos esses esquemas preservam a identidade da relação transmitida, ao contrário do que sucederia com uma renovação do crédito, da dívida, ou com uma renovação do

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contrato. A relação contratual é a mesma, antes e após a mudança dos seus titulares, ocorrida num certo estágio do seu desenvolvimento. Essa idéia de sucessão na relação contratual tem importância prática, por exe mplo, no respeitante à subsistência das garantias e dos acessórios dos créditos e dos débitos (...), às cláusulas de escolha de certo tribunal ou de árbitr os contidos no contrato cedido, aos meios de defesa do cessionário ou em face dele (...)”.25

É de se observar, ainda, que a autonomia da convenção de arbitragem limita-se ao fato de que permanece válida, ainda que nulo o contrato. Como adverte Carreira Alvim, “No que tange à exigência de expressa aceitação pelo terceiro da cláusula compromissória, deve-se considerá-la absorvida pela relação (per relationem) decorrente da aceitação do contrato pelo mesmo. Neste caso, a cláusula compromissória entra em linha de conta, não como um negócio jurídico independente do contrato a que acede, senão como uma cláusula no sentido próprio ou parte de uma complexa regulamentação contratual. A cláusula compromissória se aplica aos compromitentes, e, conseqüentemente, a quem assume a posição de um deles, em razão da cessão do contrato, importando na transferência, pelo cedente ao cessionário, dos direitos e obrigações contratuais no seu complexo unitário”.26

Como exemplo, tipicamente societário, de que a cláusula compromissória se transmite ao cessionário, pode-se referir o fenômeno da sucessão resultante da incorporação. Como se sabe, a sociedade incorporadora sucede à incorporada em todos os seus direitos e obrigações, inclusive contratuais (art. 227, caput da Lei das S.A.). Seria aceitável que a cláusula compromissória inserta em contrato originalmente celebrado pela sociedade incorporada não se transmitisse, com o restante do contrato, à sociedade incorporadora? Parece claro que não.

Idêntico raciocínio se aplica à aquisição de participação acionária. O adquirente de ações deve conhecer o estatuto social da companhia em que decidiu investir. A compra das ações importará na assunção dos direitos e obrigações dos demais sócios, nos termos do estatuto. O pacto arbitral, nesse ponto, não difere das outras regras ali contidas. Assim como não poderá o novo acionista pretender insurgir-se contra quaisquer outras disposições estatutárias, a pretexto de desconhecê-las ou de com elas não concordar, não poderá furtar-se à convenção de arbitragem.

25 in “Cessão de Contrato”, SP, Saraiva, 1985, págs. 438-439.

26 op. cit., pág. 238.

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3.6 Questão polêmica É preciso reconhecer, contudo, que a questão é realmente muito polêmica. Certamente haverá os que sustentarão, com grande autoridade e argumentos de peso, que o afastamento da cognição do juízo estatal não se poderá dar de modo tácito, por se tratar, sim, de renúncia a uma garantia constitucional; que os acionistas ausentes à assembléia e os que nela tiverem permanecido em silêncio não estavam mesmo obrigados a manifestar sua intenção de não vinculação à cláusula compromissória; que os investidores de mercado podem ser considerados hipossuficientes e, ainda com maior razão, não se sujeitam ao seu alcance. A prevalecer este entendimento, a eficácia da convenção arbitral ficará, de fato, condicionada à manifestação expressa do acionista no sentido de vincular-se. 4. Alcance objetivo da cláusula compromissória Talvez ainda mais complexa do que a determinação do alcance subjetivo da convenção de arbitragem seja a definição de seus limites objetivos: saber o que pode e o que não pode ser objeto de sentença arbitral válida e eficaz. 4.1. Direitos “políticos” Nos termos do art. 1° da LArb., somente litígios ve rsando sobre direitos patrimoniais e, assim mesmo, patrimoniais disponíveis podem ser dirimidos na via arbitral. O § 3° do art. 109 da Lei das S.A., por sua vez, pe rmite que o estatuto eleja a arbitragem para a solução de conflitos entre os acionistas ou entre estes e a sociedade, “nos termos em que especificar.” Nada diz quanto à limitação da arbitragem a direitos patrimoniais. Surge daí uma primeira indagação: poderá o estatuto regular a composição na via arbitral de conflitos de natureza política, como o direito de eleger membro do Conselho Fiscal, por exemplo? Não pode haver dúvida de que o legislador quis preservar a cognição do juízo estatal no tocante aos litígios relativos ao direito de família, ao estado das pessoas, ao direito de sucessões, ao direito penal, dentre outros indisponíveis. A rigor, a Lei de Arbitragem parece ter usado a expressão direitos patrimoniais com fins quase didáticos, para que o intérprete perceba com maior clareza o que deve entender por direitos disponíveis.

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Em todo caso, os direitos políticos dos acionistas possuem claro fundo patrimonial. Quem quer eleger um membro do Conselho Fiscal não está preocupado com o exercício de sua cidadania, mas com ter voz ativa no que toca às contas e à administração da companhia. De outro modo, seria inadmissível cláusula compromissória em acordo de acionistas regulando o exercício de direito de voto, o que, salvo engano, ninguém sustenta. 4.2. A questão das nulidades Questão em voga na doutrina diz respeito às nulidades. Por força de expressa disposição do Código Civil, não é permitido ao juiz suprir a nulidade, nem mesmo a requerimento das partes (art. 146 do CC de 1916; art. 168 do novo CC). Pode-se daí inferir que a nulidade tornaria automaticamente indisponível o direito em debate, afastando a arbitragem? Parece-nos que não. Para saber se uma certa questão é ou não arbitrável, deve-se, antes de mais nada, verificar se existe, de fato, cláusula compromissória e se esta é, em si mesma e independentemente da natureza do litígio, válida e eficaz. Ultrapassada essa etapa, é preciso saber se do ato nasceu a relação jurídica e, em caso afirmativo, se o direito, em tese, daí resultante é disponível – no sentido de que seu titular possa dele abrir mão se assim o desejar – ou, ao contrário, indisponível (caso, como visto, das disputas relativas a direito de família, ao estado das pessoas, ao direito das sucessões, ao direito penal, etc.). Sendo disponível o direito – como são, em regra, os direitos de cunho patrimonial – o litígio será arbitrável. A partir daí, o árbitro atuará como juiz de fato e de direito que é: constatando a nulidade de uma certa disposição contratual (que não a cláusula compromissória, evidentemente), ou do contrato por inteiro, pode e deve afirmar a nulidade, para o fim de dirimir a questão que lhe foi submetida. Um exemplo concreto: sabe-se que os diploma de regência do Plano Real cominam de nulidade qualquer disposição contratual que fixe periodicidade de correção monetária inferior a um ano. Na presença de semelhante previsão, inserta em contrato regido por tais diplomas, o devedor pode recusar-se a pagar atualizações mensais ou bimestrais, sem que ao credor reste outra alternativa senão a de conformar-se – sendo nula a cláusula, não é passível de execução forçada. Mas suponha-se que o devedor, ao contrário, esteja perfeitamente satisfeito com os reajustes mensais ou bimestrais a que se obrigou e deseje efetuá-los, para felicidade do credor. Trata-se ou não de um direito

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disponível? Quem poderá obrigar o devedor a não efetuar tais pagamentos? Embora tenha essa possibilidade, pode dela abrir mão. Uma questão do tipo seria, sem dúvida, passível de conhecimento pelo juízo arbitral. Examinando o problema sob a ótica da aplicação do Direito Antitruste no juízo arbitral, Pedro Paulo Salles Cristofaro e Rafael de Moura Rangel Ney chegam à mesma conclusão: “o fato de, no processo lógico de formação da decisão em uma arbitragem, ser necessário examinar a eventual nulidade de disposições contratuais – ou mesmo de um contrato como um todo – não afasta a “disponibilidade” dos direitos em controvérsia, nem impede o prosseguimento do Juízo Arbitral. Qualquer entendimento diverso representaria inaceitável restrição à arbitragem, capaz de praticamente inviabilizar o instituto. Veja-se que, a todo momento, pode ser o árbitro confrontado com leis cogentes, incidentes sobre o conflito, obrigando-o a aplicar tais normas às situações concretas. É assim, por exemplo, quando está diante de uma estipulação prevendo correção monetária dentro de determinada periodicidade. Leis monetárias são cogentes, imperativas, e nem por isso deve o árbitro interromper o processo e remeter às partes à justiça estatal, apenas para constatar o óbvio.” 27 É útil fazer um paralelo com a conciliação no juízo estatal. Jamais se entendeu que diante de alegação de nulidade – de certa disposição contratual, por exemplo –, estejam as partes impedidas de celebrar acordo: no processo civil, a alegação de nulidade nunca impediu a transação. Não vemos razão para que se adote entendimento diverso no tocante à arbitrabilidade de disputas. A própria Lei de Arbitragem dá a saída para o problema. Se a nulidade do contrato não contamina a cláusula compromissória, cabendo ao árbitro decidir as questões acerca da existência, validade e eficácia do contrato que a contenha (art. 8° da LArb.), é sinal de que o legislador considerou passível de arbitramento disputas sobre a nulidade do contrato. 4.3. Normas organizativas da sociedade e reflexos para os demais acionistas Finalmente, o assunto mais delicado: poderá ser dirimida pela via arbitral controvérsia sobre questões que afetem todos os acionistas indistintamente, ainda que de forma reflexa, como a anulação de deliberação assemblear ou de disposição estatutária? A esse respeito, vale a pena lançar mão, mais uma vez, da experiência estrangeira. O Superior Tribunal Federal alemão (Bundesgerichtshof) ao que parece já consolidou o 27 “Aplicação do Direito Antitruste no Juízo Arbitral” (seção IV), publicado neste volume.

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entendimento de que em apenas duas situações básicas admite-se arbitragem para compor disputas a respeito da validade de deliberações assembleares: quando a sociedade possuir apenas dois sócios ou quando todos os acionistas concordarem em sujeitar-se à sentença arbitral, venham ou não a integrar o procedimento. Não basta, assim, que todos estejam vinculados à cláusula compromissória para que a sentença arbitral possa atingí-los: é preciso que a arbitragem verse sobre direitos disponíveis da parte, o que entende não ser o caso de deliberações assembleares, que alcançam o universo dos acionistas28. O quadro é semelhante na Itália (embora talvez por pouco tempo). Em virtude da regra do art. 806 do CPC italiano, que, como a nossa lei, restringe a arbitragem aos conflitos que envolvam direitos em relação aos quais as partes possam transigir, a arbitragem vem sendo admitida apenas para questões que se atenham aos interesses individuais dos sócios, não sendo possível dirimir pela via arbitral aquelas concernentes ao funcionamento da sociedade ou que envolvam a tutela de interesses coletivos dos sócios, questões estas subtraídas da autonomia das partes. Este filtro exclui da competência arbitral, entre outras, disputas relativas à veracidade do balanço e à responsabilidade do acionista controlador nos casos que se fundem na violação de normas que visem ao interesse da sociedade. 29 Uma curiosidade: no mesmo momento em que fazíamos a nossa recente reforma da Lei das S.A., em outubro de 2001, era editada na Itália a Legge Delega 366, destinada a viabilizar reforma substancial da disciplina das sociedades comerciais. A norma autoriza o Poder Executivo a editar decretos legislativos com esse fim, os quais poderão não apenas alterar sensivelmente regras de processo civil, como prever a inserção de cláusula compromissória nos estatutos das sociedades comerciais para a composição de litígios acerca de direitos que não possam constituir objeto de transação, justamente para afastar, em matéria societária, a regra geral em sentido contrário contida no art. 806 do CPC italiano. Mas, neste caso, a sentença arbitral italiana será sempre impugnável por violação à lei. Como, entre nós, ainda não se cogita de norma semelhante, as questões em relação às quais os sócios não possam transigir, por envolverem direitos de terceiros – os demais acionistas – estejam ou não tais terceiros vinculados à cláusula compromissória, realmente ficariam, segundo tal perspectiva, excluídas do âmbito da arbitragem.

28 Hilmar Raeschke-Kessler, “Arbitrability of Disputes Concerning Resolutions of a Limited Liability Company

(GmbH)”, in Bulletin Association Suisse de l’Arbitrage, vol. 3, 1996, pg. 355.

29 Píer Luigi Morara, “Appunti per uma comunicazione sull’art. 12 della legge 3 ottobre 2001, n. 366” in [www. federcoop-ra.it].

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Mas este é apenas mais um dos tantos aspectos controvertidos do tema. De fato, pode-se argumentar que o pleito do acionista demandante será sempre dirigido à própria sociedade e não aos demais acionistas, ainda que estes possam sofrer, reflexamente, as conseqüências da decisão. Se em lugar de instaurar um procedimento arbitral, o acionista demandante ingressar em juízo para obter a anulação de uma deliberação assemblear, do pólo passivo da ação deverá figurar apenas a sociedade e não os demais acionistas (eventualmente beneficiários da deliberação anulanda). Raciocínio análogo se aplica aos co-legitimados a propor a ação: têm estes a possibilidade de ingressar em juízo como litisconsortes, mas este seria um caso típico de litisconsórcio facultativo, embora unitário: não é preciso que os demais acionistas integrem o pólo ativo para que a sentença judicial surta todos os seus efeitos em relação à sociedade, inclusive os efeitos que atinjam tais acionistas reflexamente. Nessa perspectiva, talvez seja realmente possível dirimir por arbitragem os conflitos relativos às normas organizativas da sociedade e outros que possam atingir reflexamente o universo dos acionistas, como os concernentes à deliberação sobre dividendos. São exemplos de pretensões indiscutivelmente passíveis de conhecimento na via arbitral a cobrança de dividendos declarados e não pagos pela sociedade, discussões sobre direito de recesso e aquelas nas quais se pretenda o ressarcimento de danos sofridos pelo minoritário em virtude do exercício abusivo do controle. 5. A Câmara de Arbitragem do Mercado As inegáveis vantagens da resolução de conflitos societários na via arbitral levaram a BOVESPA a adotá-la para o Novo Mercado, segmento especial de listagem integrado apenas por empresas que se comprometam, voluntariamente, com a adoção de certas práticas de administração mais rígidas e transparentes do que as exigidas da generalidade das sociedades, com o fim de melhorar a qualidade das informações prestadas e ampliar, de modo geral, os direitos dos acionistas. Em outras palavras, tornar a companhia mais segura e atraente para o investidor. E uma dessas regras é a solução obrigatória de conflitos no âmbito da sociedade pela Câmara de Arbitragem do Mercado30.

30 É bom exemplo de cláusula compromissória estatutária que remete a composição de controvérsias à Câmara

de Arbitragem do Mercado aquela adotada pela Petrobras: “Deverão ser resolvidas por meio de arbitragem, obedecidas as regras previstas pela Câmara de Arbitragem do Mercado, as disputas ou controvérsias que envolvam a Companhia, seus acionistas, os administradores e conselheiros fiscais, tendo por objeto a aplicação das disposições contidas na Lei n° 6.404, de 1976, neste Estatuto Social, nas normas editadas

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A arbitragem – e, em especial, aquela conduzida por órgão altamente especializado, organizado e administrado pela BOVESPA – é considerada, assim, um fator adicional de segurança e tranqüilidade que se concede ao investidor. Tudo com o intuito, que, aliás, norteou a recente reforma da Lei das S.A., de dar maior conforto ao acionista minoritário e, em conseqüência, aquecer o mercado de ações. Segundo o regulamento do Novo Mercado, a via arbitral é obrigatória para conflitos que venham a surgir entre a BOVESPA, a companhia, o acionista controlador, os administradores e os membros de seu conselho fiscal. Por sua vez, o regulamento da própria Câmara de Arbitragem do Mercado confirma essa obrigatoriedade e confere aos demais acionistas a possibilidade de também filiarem-se, mediante a assinatura de um Termo de Anuência. Nota-se, assim, que é facultativa a vinculação do investidor ao regulamento da Câmara de Arbitragem do Mercado, ao contrário do que ocorre com o acionista controlador e com a própria sociedade. Mas a adesão do investidor não é específica para essa ou aquela companhia: uma vez firmado o Termo de Anuência, permanecerá ele sujeito ao regulamento para todas as sociedades listadas no Novo Mercado em que vier a investir. É perfeitamente compreensível que essa tenha sido a opção adotada pelo regulamento do Novo Mercado: com ela se afasta qualquer possível dúvida quanto a quem está, ou não, realmente vinculado pela cláusula compromissória estatutária. É preciso levar em conta que a preocupação que deu origem à criação do Novo Mercado foi a de assegurar maior segurança ao acionista minoritário. Sob tal enfoque, o importante é que o acionista minoritário tenha certeza de que poderá, querendo, recorrer à arbitragem para dirimir seus conflitos com o acionista controlador, com os administradores da sociedade e com ela própria. A mão inversa – isto é, assegurar à sociedade e ao acionista controlador que as disputas com os minoritários seriam dirimidas obrigatoriamente por arbitragem – tinha, portanto, menor relevo. O fundamental é reconhecer que a via arbitral está sendo identificada pelo mercado como um fator de atração do acionista minoritário, como um reforço de sua posição na esfera social.

pelo Conselho Monetário Nacional, pelo Banco Central do Brasil e pela Comissão de Valores Mobiliários, bem como nas demais normas aplicáveis ao funcionamento do mercado de capitais em geral, além daquelas constantes dos contratos eventualmente celebrados pela Petrobras com bolsa de valores ou entidade mantenedora de mercado de balcão organizado, credenciada na Comissão de Valores Mobiliários, tendo por objetivo a adoção de padrões de governança societária fixados por estas entidades, e dos respectivos regulamentos de práticas diferenciadas de governança corporativa, se for o caso”.

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Convém lembrar que a Câmara de Arbitragem do Mercado não tem seu âmbito de atuação limitado às companhias integrantes do Novo Mercado e demais segmentos especiais de listagem da BOVESPA: qualquer sociedade, inclusive por quotas de responsabilidade limitada, que deseje submeter à Câmara de Arbitragem do Mercado a condução de procedimento arbitral em matéria societária poderá fazê-lo livremente. 6. Conclusão A matéria suscita, como se vê, e talvez ainda suscite por longo tempo, muitas dúvidas. Esta exposição não tem, nem de longe, a pretensão de esgotá-las ou de oferecer respostas conclusivas. Muito ao contrário, a preocupação que a motivou foi a de pinçar os pontos mais controversos, justamente para instigar o debate.