DADOS DE COPYRIGHT Bernard/A Crise do... · Anatólia, sua terra natal, não em nome do islã, mas...

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DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

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"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomaislutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluiraumnovonível."

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BernardLewis

ACrisedoIslãGuerrasantaeterrorprofano

Tradução:MariaLúciadeOliveira

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SUMÁRIOMapasAEradosCalifasOImpérioOtomanoAEradoImperialismoOOrienteMédiohoje

Introdução

1.DefinindooIslã2.ACasadaGuerra3.DeCruzadosaImperialistas4.DescobrindoaAmérica5.SatãeosSoviéticos6.DoisPesos,DuasMedidas7.UmFracassodaModernidade8.AAliançaentreoPoderSauditae

oEnsinamentoWahhabi

9.AAscensãodoTerrorismoPosfácioÍndiceRemissivo

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ParaHaroldRhodecomamizade

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INTRODUÇÃOOPresidenteBusheoutrospolíticosocidentais têmfeitograndesesforçosparadeixarclaroquea

guerranaqualestamosengajadoséumaguerracontraoterrorismo–nãocontraosárabesou,emtermosmaisgerais,contramuçulmanos,instadosasejuntaremanósnessabatalhacontraoinimigocomum.Amensagem de Osama bin Laden é o contrário disso. Para ele e seus seguidores, essa é uma guerrareligiosa,umaguerradoislãcontraosinfiéise,portanto,inevitavelmente,contraosEstadosUnidos,amaiorpotênciadomundoinfiel.

Emseuspronunciamentos,BinLadenfazreferênciasfreqüentesàhistória.Umadasmaisdramáticasfoiemseuvídeode7deoutubrode2001,quandosereferiuà“humilhaçãoedesgraça”queoislãsofreupor “mais de oitenta anos”.Amaior parte dos observadores norte-americanos e europeus doOrienteMédiocomeçouumabuscaansiosaporalgumacoisaquetivesseacontecidohá“maisdeoitentaanos”,esurgiramváriasrespostas.PodemosterbastantecertezadequeosouvintesmuçulmanosdeBinLaden–aspessoasàsquaissedirigia–entenderamaalusãoimediatamenteevalorizaramasuaimportância.

Em1918,osultanatootomano,oúltimodosgrandesimpériosmuçulmanos,foifinalmentederrotado–suacapital,Constantinopla,foiocupada,seusoberanofeitocativoeamaioriadeseuterritóriopartilhadoentreosImpériosvitoriosos:oBritânicoeoFrancês.AsantigasprovínciasotomanasdelínguaárabedoCrescenteFértilforamseparadasederamorigematrêsnovasentidades,comnovosnomesefronteiras.Duasdelas,IraqueePalestina,ficaramsobomandatobritânico,eaterceira,comonomeSíria,foidadaparaos franceses.Mais tarde,essesúltimosdividiramseumandatoemduaspartes,chamandoumadeLíbano emantendo o nomeSíria para a outra.Os britânicos fizeram algo bem parecido na Palestina,criandoumadivisãoentreasduasmargensdoJordão.AparteorientalfoichamadaTransjordâniae,maistarde, simplesmente Jordânia; o nome Palestina foimantido e reservado para amargem ocidental, ouseja,apartepropriamentecisjordanianadopaís.

Considerava-se, naquela época, que não valia a pena assumir o controle da Península Arábica,formada,emgrandeparte,pordesertosemontanhasestéreiseinacessíveis,eseusgovernantestiverampermissãodemanterumaindependênciaprecáriaelimitada.OsturcosacabaramconseguindoliberaraAnatólia, sua terra natal, não em nome do islã, mas através de um movimento nacionalista secularlideradoporumgeneralotomanochamadoMustafaKemal,maisconhecidocomoKemalAtaturk.Mesmotendolutado,comsucesso,paralibertaraTurquiadodomínioocidental,foielequemdeuosprimeirospassosparaaadoçãodecaminhosocidentais–ou,comopreferiadizer,caminhosmodernos.Umdeseusprimeirosatos,emnovembrode1922,foiabolirosultanato.

O soberano otomano era não apenas um sultão, o dirigente de um Estado específico; era tambémamplamente reconhecido comoo califa, o chefe de todo o islã sunita e o último emuma linhagemdegovernantescujaorigemremontavaa632d.C.–anodamortedoprofetaMaoméedaindicaçãodeumsucessorparaocuparseulugar,nãocomochefeespiritual,massimcomochefereligiosoepolíticodoEstadomuçulmanoedesuacomunidade.Apósumabreveexperiênciacomumcalifadistinto,osturcosaboliramtambémocalifado,emmarçode1924.

Durante seus quase 13 séculos, o califado, embora passando por muitas vicissitudes, permaneceucomopoderososímbolodaunidademuçulmana,atémesmodesuaidentidade;seudesaparecimento,sobo duplo assalto de imperialistas estrangeiros emodernistas domésticos, foi sentido em todo omundomuçulmano.Váriosmonarcase líderesmuçulmanosensaiaramalgumasdébeis tentativasdereclamarotítulo vago,mas nenhum deles encontrou grande apoio.Muitosmuçulmanos ainda percebem de formadolorosa esse vazio, e comenta-se que o próprio Osama bin Laden tinha – ou tem – aspirações aocalifado.

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Apalavracalifavemdoárabekhalifa,que,comumaambigüidadeoportuna,combinaossentidosde“sucessor”e“substituto”.Originalmente,ochefedacomunidadeislâmicaera“oKhalifadoProfetadeDeus”. Alguns, mais ambiciosos, encurtaram o título para “o Khalifa de Deus”. Esta pretensão àautoridadeespiritualfoicalorosamentecontestadae,porfim,abandonada,emboraumtítuloexpressandoalgo similar, de formamais branda, “a Sombra de Deus na terra,” tenha sido amplamente usado porgovernantesmuçulmanos.Duranteamaiorpartedahistóriadessa instituição,osdetentoresdocalifadocontentavam-secomotítulomaismodestodeAmiral-Mu’minin,emgeraltraduzidocomo“ComandantedosFiéis”.

AlusõeshistóricascomoasdeBinLaden,quetalvezpareçamobscurasparamuitosocidentais,sãocomunsentreosmuçulmanos, e sópodemser entendidasadequadamente levando-seemcontaa formacomoospovosdoOrienteMédiopercebemaquestãodaidentidade,econtraopanodefundodahistóriadaquelaregião.MesmoosconceitosdehistóriaeidentidaderequeremnovasdefiniçõesparaoocidentalquebuscaentenderoOrienteMédiocontemporâneo.Nousocorrentenorte-americano,aexpressão“istoé história” é usada, em geral, para desconsiderar algo como sendo sem importância ou sem nenhumarelevância para as preocupações atuais; apesar de um imenso investimento no ensino da história e naprodução de textos sobre o tema, a sociedade norte-americana tem um nível geral de conhecimentohistóricoterrivelmentelimitado.Ospovosmuçulmanos,comotodososoutrosdomundo,sãomoldadosporsuahistória,mas,aocontráriodealguns,sãoprofundamenteconscientesdisso.Suaconsciênciadata,no entanto, do advento do islã, com talvez algumas pequenas referências aos tempos pré-islâmicos,necessáriasparaexplicaralusõeshistóricasencontradasnoAlcorãoenasantigas tradiçõesecrônicasislâmicas.Paraosmuçulmanos,ahistóriaislâmicatemimportantesignificadoreligiosoetambémlegal,dado que reflete a elaboração detalhada do propósito de Deus para Sua comunidade – formada poraquelesqueaceitamosensinamentosdoislãeobedecemasuasleis.AhistóriadosEstadosepovosnão-muçulmanosnãotransmitetalmensagemenãotem,portanto,valorouinteresse.MesmoempaísescomumacivilizaçãoantigacomoadoOrienteMédio,oconhecimentodahistóriapagã–de seusprópriosancestrais,cujosmonumentose inscriçõesestãoàvoltade todos–eramínimo.As línguaseos textosantigos foram esquecidos, os registros antigos queimados, até serem recuperados e decifrados, nostemposmodernos,porobstinadosarqueólogosefilólogosocidentais.Mas,noqueserefereaoperíodoiniciadocomoadventodoislã,ospovosmuçulmanosproduziramumaricaevariadaliteraturahistórica–defato,emmuitasregiões,atémesmoempaísescomumacivilizaçãoantigacomoaÍndia,ostrabalhoshistóricosimportantescomeçamcomachegadadopróprioislã.

Mashistóriadequê?Nomundoocidental,aunidadebásicadaorganizaçãohumanaéanação–umconceito que, no uso norte-americano, mas não no europeu, é virtualmente sinônimo de país. Essatotalidadeéentãosubdivididasegundovárioscritérios,sendoumdelesareligião.Osmuçulmanos,noentanto,tendemavernãoumanaçãosubdivididaemgruposreligiosos,masumareligiãosubdivididaemnações. Sem dúvida, isso se deve, parcialmente, ao fato de a maior parte dos Estados-nações quecompõemoOrienteMédiomoderno serumacriação relativamentenova, remanescentedos temposdedominação imperial anglo-francesa que se seguiram à derrota do Império Otomano. Esses Estadospreservamasdemarcaçõesnacionaiseasfronteirasestabelecidasporseusantigossenhores imperiais.Até mesmo seus nomes refletem essa artificialidade. O Iraque era uma província medieval, comfronteiras muito diferentes daquelas da República moderna, excluindo a Mesopotâmia, no norte, eincluindoumapartedoIrãocidental;Síria,PalestinaeLíbiasãonomesdaAntigüidadeclássicaquenãohaviam sido usados na região por mil anos ou mais, até serem revividos e impostos – também comfronteiras novas e, muitas vezes, diferentes – por imperialistas europeus no século XX.1 Argélia eTunísianemmesmoexistemcomonomesárabes–omesmonomeserveparaacidadeeopaís.Omaisnotável de tudo é que a língua árabe não tem nenhum nome para Arábia, e a atual Arábia Saudita é

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chamada“oreinoárabesaudita”ou“apenínsuladosárabes”,dependendodocontexto.Enãoporqueoárabe seja uma língua pobre – bem ao contrário – mas porque os árabes simplesmente não pensamidentidade em termosda combinaçãode etnia e território.O califa ‘Umar é citado comodizendo aosárabes: “Aprendam suas genealogias, e não sejam como os camponeses locais que, quando lhesperguntamquemsão,respondem:‘soudetalouquallugar’.”2

Nosprimeirosséculosdaeramuçulmana,acomunidadeislâmicaeraumEstadosobumgovernante.MesmodepoisdeaquelacomunidadetersidodivididaemmuitosEstados,persistiuoidealdeumaúnicaunidade política islâmica. Os Estados eram quase todos dinásticos, com fronteiras cambiantes, e écertamente significativo que, na riquíssima historiografia domundo islâmico em árabe, persa e turco,encontrem-sehistóriasdedinastias,cidadese,principalmente,doEstadoedacomunidadeislâmica,masnenhumadaPérsiaoudaTurquia.Essesnomes,diferentementedoqueocorre comSíria,PalestinaouIraque,designamnãonovasentidadespolíticas,masantigas,comséculosdeindependênciaesoberania.Ainda assim, até os temposmodernos,mesmo esses nomes não existiam em árabe, persa ou turco.Onome Turquia, designando um país habitado por pessoas chamadas turcos e que falam um idiomachamadoturco,parececonformar-seaopadrãoeuropeunormaldeidentificarpaísespornomesétnicos.Mas esse nome, corrente na Europa desde a Idade Média, somente foi adotado na Turquia após aproclamação da república, em 1923. Pérsia é uma adaptação européia, originalmente grega, dePars,posteriormenteFars,onomedeumaprovínciadoIrãocidental.Apósaconquistaárabe,comooalfabetoárabenãotemaletrap,passouaserconhecidacomoFars.Assimcomoodialetocastelhanotornou-seespanholeotoscanovirouitaliano,assimtambémfarsi,odialetoregionaldeFars,acabousendolínguapadrãodopaís,mas,nousopersa,onomedaprovíncianuncafoiaplicadoaopaíscomoumtodo.

TantoárabesquantoturcosproduziramvastaliteraturadescrevendosuaslutascontraaEuropacristã,desdeasprimeirasincursõesárabesnoséculoVIIIatéaúltimaretiradaturca,noséculoXX.Mas,atéoperíodomoderno,quandoconceitosecategoriaseuropeustornaram-sedominantes,ossoldados,oficiaise historiadores islâmicos quase sempre se referiam aos seus oponentes não em termos territoriais ounacionais, mas simplesmente como infiéis (kafir) ou, algumas vezes, por vagos termos gerais comofrancosou romanos.Domesmomodo, nunca se referiamao seupróprio lado comoárabes, persas outurcos;identificavamtodoscomomuçulmanos.Essaperspectivaajudaaexplicar,entreoutrascoisas,apreocupação do Paquistão com o Talibã e seus sucessores no Afeganistão. O nome Paquistão, umainvençãodoséculoXX,designaumpaísinteiramentedefinidoporsuareligiãoelealdadeislâmicas.Emtodososoutrosaspectos,opaíseopovodoPaquistãosão–comohaviamsidopormilênios–partedaÍndia. O Afeganistão definido por sua identidade islâmica seria um aliado natural do Paquistão, oumesmoumsatéliteseu.OAfeganistãodefinidopelanacionalidadeétnica,aocontrário,poderiaserumvizinho perigoso, lançando demandas irredentistas sobre as áreas do noroeste paquistanês que fala opashtue,talvez,atémesmoaliando-seàÍndia.

Referênciasàhistória,eatéàhistóriaantiga,sãolugar-comumnosdiscursospúblicos.Nadécadade1980, durante a Guerra Irã-Iraque, por exemplo, os dois lados empenharam-se em campanhas depropaganda massiva que freqüentemente evocavam eventos e personalidades de épocas tão remotasquantooséculoVII,asbatalhasdeQadisiyya(637d.C.)eKarbala(680d.C.).AbatalhadeQadisiyyafoivencidapelosárabesmuçulmanosqueinvadiramoIrãelutaramcontraoexércitodefensordoxádaPérsia, ainda não convertido ao islã e, portanto, aos olhosmuçulmanos, ainda composto de pagãos einfiéis.Assim,osdoisladospodiamproclamarcomosuaavitória–paraSaddamHussein,dosárabessobreospersas,e,paraoaiatoláKhomeini,dosmuçulmanossobreosinfiéis.

As referências a essas batalhas não eram descrições nem narrativas, mas rápidas, incompletasalusões. Ainda assim, os dois lados usaram-nas com plena certeza de que seriam percebidas e

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identificadas por seus respectivos públicos, e atémesmopelamaior parte deles que era composta deanalfabetos.ÉdifícilimaginaragentesdepropagandademassanoOcidentedefendendoseuspontosdevista atravésde alusões a eras tão antigas, à heptarquia anglo-saxônicana Inglaterraos aosmonarcascarolíngiosnaFrança. Inflamadopelomesmo espírito,Osama binLaden insulta o presidenteBush aoigualá-lo ao Faraó, e acusa o vice-presidente Dick Cheney e o secretário de Estado Colin Powell(citadosnomesmocontexto)deteremproduzidomaiordevastaçãonoIraqueduranteeapósaGuerradoGolfode1991doqueoscãsmongóisque,emmeadosdoséculoXIII,conquistaramBagdáedestruíramocalifado abássida. Os povos do Oriente Médio têm uma percepção da história que é fomentada nospúlpitos,nasescolasepelamídia,eemborapossaser–e,muitasvezes,é–distorcidaepoucoacurada,é,aindaassim,vívida,etemprofundarepercussão.

Em23defevereirode1998,oAl-Qudsal-‘Arabi,umjornalárabepublicadoemLondres, trouxeaíntegradeuma“DeclaraçãodaFrenteIslâmicaMundialparaaJihadcontraosJudeuseosCruzados”.Deacordocomojornal,otextolhesfoienviadoporfax,comasassinaturasdeOsamabinLadenedoslíderesdosgruposdajihadnoEgito,PaquistãoeemBangladesh.Adeclaração–umamagníficapeçadeeloqüente,eporvezespoética,prosaárabe–revelaumaversãodahistóriaque,paraamaiorpartedosocidentais,soaránadafamiliar.AsqueixasfeitasporBinLadennaqueledocumentonãosãoexatamenteasquemuitospoderiamesperar.AdeclaraçãocomeçacomacitaçãodaspassagensmaismilitantesdoAlcorãoedosditosdoprofetaMaomé,edepoiscontinua:“DesdequeDeusmoldouaPenínsulaArábica,criouseusdesertoseacercoucomseusmares,jamaisumacalamidadeaassoloucomoessashostesdecruzados que se espalharam sobre ela como gafanhotos, infestando seu solo, comendo seus frutos edestruindo suavegetação; e issonum tempo emque as nações se lançamcontra osmuçulmanos comoconvivasdeumjantaracotovelando-seemvoltadeumatravessadecomida.”

Apartirdesseponto,adeclaraçãoseguefalandosobreanecessidadedecompreenderasituaçãoeagirparacorrigi-la.Osfatos,dizotexto,sãoconhecidosportodos,esãoapresentadosemtrêstópicosprincipais.

Primeiro–HámaisdeseteanososEstadosUnidosestãoocupandoas terrasdoislãnomaissagradodeseus territórios,aArábia,pilhandosuasriquezas,esmagandoseusgovernantes,humilhandoseupovo,ameaçandoseusvizinhoseusandosuasbasesnapenínsulacomo ponta de lança para lutar contra os povos islâmicos da vizinhança. Embora tenha havido controvérsias no passado sobre averdadeiranaturezadessaocupação,opovodaArábia,emsuatotalidade,agoraareconhece.

Nãohámelhorprovadissoqueacontínuaagressãonorte-americanacontraopovodoIraque,desencadeadadaArábiaadespeitodeseusgovernantes,que,mesmosendotodoselescontráriosaousodeseusterritóriosparatalpropósito,estãosubjugados.

Segundo–Apesardaimensadestruiçãoinfligidaaopovoiraquianopelasmãosdoscruzadosejudeusemaliança,eapesardonúmerochocantedemortes,queultrapassaramummilhão,osnorte-americanos,aindaassim,adespeitode tudoisso,estão tentando,maisumavez, repetir essa pavorosa carnificina. Parece que o longo bloqueio que se seguiu a uma guerra selvagem, o desmembramento e adestruiçãonãosãosuficientesparaeles.Assim,voltamhojeparadestruiroquerestadessepovoehumilharseusvizinhosmuçulmanos.

Terceiro – Embora os propósitos dos norte-americanos nessas guerras sejam religiosos e econômicos, eles também servem aoinsignificanteEstadodosjudeus,desviandoaatençãodesuaocupaçãodeJerusalémedamortedemuçulmanosnacidade.

Nãohámelhorprovadetudoissoqueasanhanorte-americanadedestruiroIraque,omaisfortedosEstadosárabesvizinhos,esuatentativadedesmembrartodososEstadosdaregião,comooIraque,aArábiaSaudita,oEgitoeoSudão,transformando-osemEstadosmenorescujadivisãoefraquezagarantiriamasobrevivênciadeIsraeleacontinuaçãodacalamitosaocupaçãodasterrasdaArábiapeloscruzados.

Essescrimes,continuaadeclaração,equivalemauma“declaraçãoexplícitadeguerrapelosnorte-americanos contra Deus, Seu Profeta e os muçulmanos. Em tal situação, os ulemás têm opinadounanimementeatravésdosséculosque,quandoinimigosatacamas terrasmuçulmanas,a jihad torna-seumaobrigaçãopessoaldetodososmuçulmanos”.

Os signatários citam várias autoridades muçulmanas e passam então para a parte final e maisimportante da declaração, a fatwa, estabelecendo que “matar americanos e seus aliados, tanto civisquantomilitares,éumaobrigaçãoindividualdetodososmuçulmanoscapazes,emqualquerpaísemque

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issosejapossível,atéqueamesquitadeAqsa[emJerusalém]eamesquitadeHaram[emMeca]sejamlibertadasdeseujugo,eatéqueseusexércitos,despedaçadosecapengas,abandonemtodasasterrasdoislã,incapazesdeameaçarqualquermuçulmano”.

ApóscitaralgunsoutrosversículosrelevantesdoAlcorão,odocumentocontinua:“ComapermissãodeDeus,convocamostodososmuçulmanosqueacreditamemDeuseesperamrecompensaporobedeceraSeuscomandosparamatarosnorte-americanosesaquearsuaspossesondequerqueosencontremequandoquerqueconsigam.Damesmaforma,convocamososulemás,oslíderes,osjovenseossoldadosmuçulmanos para dar início a ataques contra os exércitos dos demônios norte-americanos e contraaqueles ajudantes deSatã que são seus aliados.”Adeclaração e a fatwa terminamcomuma série deoutrascitaçõesdasescriturasmuçulmanas.

Segundoavisãoocidentalcorrente,aGuerradoGolfode1991foi iniciadapelosEstadosUnidos,comuma coalizão de países árabes e outros aliados, para libertar oKuwait da conquista e ocupaçãoiraquianas e proteger a Arábia Saudita contra uma agressão do Iraque. Ver essa guerra como umaagressãonorte-americanaaoIraquepodeparecerumtantoestranho,masessaéaperspectivaamplamenteaceita no mundo islâmico. Na medida em que se dilui a memória do ataque de Saddam Hussein aoKuwait,oqueentranofocodasatençõessãoassançõescontraoIraque,osaviõesnorte-americanosebritânicos patrulhando os céus a partir de bases na Arábia, o sofrimento do povo iraquiano e,crescentemente,oquesepercebecomoatendenciosidadenorte-americanaafavordeIsrael.

As três áreas de queixas listadas na declaração –Arábia, Iraque, Jerusalém– são familiares paraobservadoresdocenárionoOrienteMédio.Oquepodesermenosfamiliaréaseqüênciaeaênfasecomqueessasáreassãoapresentadas.Issonãoseránenhumasurpresaparaqualquerumversadonahistóriaeliteratura islâmicas. Embora nós, ocidentais, tendamos a esquecer isso algumas vezes, para osmuçulmanos aTerraSanta por excelência é aArábia e, especialmente, a regiãodoHijaz e suas duascidades sagradas – Meca, onde nasceu o Profeta, e Medina, onde se estabeleceu o primeiro Estadomuçulmano; o país cujo povo foi o primeiro a acorrer à nova fé e tornou-se seu baluarte. O profetaMaomé viveu e morreu na Arábia, bem como seus sucessores imediatos, os califas, no comando dacomunidade.Desdeentão,excetoporbreveintervalonaSíria,ocentrodomundoislâmicoeocenáriodesuasmaioresrealizaçõesfoioIraque,eBagdá,suacapital,foiasededocalifadopormeiomilênio.Paraosmuçulmanos,nãosepodejamaisrenunciaranenhumpedaçodeterraumavezquetenhasidoanexadoàesferadedomíniodoislã,masnenhumsecomparaemsignificadoàArábiaeaoIraque.

Dessesdois,aArábiaé,delonge,omaisimportante.Historiadoresárabesclássicoscontamque,noano 20 da era muçulmana (correspondente ao ano 641 d.C.), o califa ‘Umar decretou que judeus ecristãos deveriam ser retirados de toda a Arábia, com exceção das faixas do sul e do leste, emobediênciaaumcomandodoProfetapronunciadoemseuleitodemorte:“QuenãohajaduasreligiõesnaArábia.”

OspovosemquestãoeramosjudeusdooásisdeKhaybar,nonorte,eoscristãosdeNajran,nosul.Ambos constituíam comunidades antigas e bem consolidadas, de fala, cultura emodo de vida árabes,diferindodeseusvizinhosapenasemsuafé.

AatribuiçãodaquelafalaaoProfetafoiimpugnadaporalgumasautoridadesislâmicasmaisantigas.Mas,demodogeral, foi aceitaecumprida.Aexpulsãodeminorias religiosaséextremamente raranahistória islâmica – ao contrário da cristandade medieval, na qual expulsões de judeus e, após aReconquista, de muçulmanos eram normais e freqüentes. Comparado com as expulsões européias, odecretode‘Umareratantolimitadoquantocompassivo.NãoincluíaosuleosudestedaArábia,quenãoeramvistoscomopartedaTerraSantaislâmica.E,diferentementedosjudeusemuçulmanosexpulsosdaEspanhaedeoutrospaíseseuropeus,obrigadosaencontrarorefúgioquepudessememoutrolugar,os

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judeus e cristãosdaArábia foram reassentados em terrasdestinadas a eles–os judeus, naSíria enaPalestinaeoscristãos,noIraque.Oprocessofoigradual,emvezdesúbito,eháregistrosdejudeusecristãosemKhaybareNajranporalgumtempoaindaapósodecreto.

A expulsão foi concluída a seu tempo e, desde então, a Terra Santa do Hijaz tem sido territórioproibido para não-muçulmanos.De acordo com a escola de jurisprudência islâmica reconhecida peloEstadosauditaeporOsamabinLadeneseusseguidores,atémesmoofatodeumnão-muçulmanopisarosolo sagrado já éumagrandeofensa.No restodo reino,osnão-muçulmanos, embora admitidos comovisitantestemporários,nãotinhampermissãoparafixarresidênciaoupraticarsuasreligiões.OportodeDjedda,noMarVermelho,funcionou,durantemuitotempo,comoumtipodeáreadequarentenareligiosa,naqualrepresentantesdiplomáticos,consularesecomerciaisrecebiampermissãodeviverestritamentenumcarátertemporário.

Apartirdadécadade1930,adescobertaeexploraçãodopetróleoeoconseqüentecrescimentodeRiad–acapitalsauditaque,deumapequenacidadedeoásis,transformou-senumagrandemetrópole–trouxerammuitasmudançaseconsiderávelinfluxodeestrangeiros,predominantementenorte-americanos,o que afetou todos os aspectos da vida árabe.Apresença desses estrangeiros, ainda vista pormuitoscomoumaprofanação,podeajudaraexplicaroclimadecrescenteressentimento.

AArábiafoiameaçadapeloscruzadosdurantealgumtempo,noséculoXIIdaeracristã.Depoisdederrotadoseexpulsos,aoutraameaçainfielàArábiacomeçounoséculoXVIII,comaconsolidaçãodopodereuropeunosuldaÁsiaeoaparecimentodenavioseuropeus–ouseja, cristãos–no litoraldaArábia.Oressentimentodaíresultanteconstituiupelomenosumdoselementosdorevivalismoreligiosoinspirado na Arábia pelo movimento wahhabi, comandado pela Casa de Saud (Su’ud em árabe),fundadoradoEstadosaudita.Duranteoperíododeinfluênciaanglo-francesaedeseudomíniodoOrienteMédionosséculosXIXeXX,ospoderesimperiaisgovernaramoEgito,oSudão,oIraque,aSíriaeaPalestina. Tiraram certo proveito das margens da Arábia, de Áden e do golfo Pérsico, mas foramsuficientemente sábios para não ter nenhum envolvimento militar, e apenas um mínimo político, nosnegóciosdaPenínsula.

Enquantoesseenvolvimentoestrangeiroeraexclusivamenteeconômico,eenquantooretornoeramaisque adequadopara aplacar todas as queixas, a presença estrangeira pôde ser tolerada.Mas, nos anosrecentes, os termos de compromissomudaram. Com a queda dos preços do petróleo e o aumento depopulaçãoegastos,oretornodeixoudeseradequadoeasqueixastornaram-semaisnumerosasemaisaudíveis. Tampouco está a participação limitada às atividades econômicas. A revolução no Irã, asambições de Saddam Hussein e o conseqüente agravamento de todos os problemas da região,especialmente o conflito Israel-Palestina, agregaram dimensões políticas e militares à presençaestrangeira, dando alguma plausibilidade aos cada vez mais freqüentes brados de “imperialismo”.QuandosetratardesuaTerraSanta,muitosmuçulmanostenderãoacaracterizaralutae,algumasvezes,também o inimigo, em termos religiosos e a ver as tropas norte-americanas enviadas para liberar oKuwait e salvar a Arábia Saudita de Saddam Hussein como invasores e ocupantes infiéis. Essapercepção é aguçada pela inquestionável supremacia norte-americana entre as autoridades do mundoinfiel.

Paraamaiorpartedosnorte-americanos,adeclaraçãodeBinLadenéumacaricatura,umadistorçãoflagrante da natureza e do propósito da presença norte-americana naArábia. Também deveriam estarconscientes de que, para muitos muçulmanos, talvez a maioria deles, a declaração é uma caricaturaigualmentegrotescadanaturezadoislã,emesmodesuadoutrinadejihad.OAlcorãofaladepaz,bemcomo de guera. As centenas de milhares de tradições e ditos atribuídos, com variados graus deconfiabilidade, aoProfeta, ealgumasvezes interpretadosdemaneirasmuitodiversas,oferecemampla

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gama de orientações, das quais a interpretação militante e violenta da religião é apenas uma dentremuitas.

Enquantoisso,númerossignificativosdemuçulmanosestãoprontosparaaprovar,eunspoucosdelesparaaplicar,essainterpretaçãodesuareligião.Oterrorismorequerapenasunspoucos.Obviamente,oOcidente tem que se defender por quaisquermeios efetivos.Mas, ao concebermeios de combater osterroristas,certamenteseriaútilentenderasforçasqueosimpelem.

1Oprimeirodessesnomesreapareceubrevementenofinaldoperíodootomano,quandoaprovínciadeDamascofoirenomeadaprovínciadaSíria(Suriye).Suasfronteiraseramsignificativamentediferentesdaquelasdarepúblicapós-guerra.Onomeromano-bizantinoPalestinafoimantido por algum tempo pelos conquistadores árabes, mas já havia sido esquecido quando chegaram os cruzados. Reapareceu com oestabelecimento doMandatoBritânico após a PrimeiraGuerraMundial. O nome romano Líbia era desconhecido até que foi oficialmentereintroduzidopelositalianos.

2IbnKhaldun,inAl-Muqaddima,E.Quatremère(org.)(Paris,1858),vol.1,p.237.

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1|DefinindooIslãÉdifícilgeneralizararespeitodoislã.Paracomeçar,aprópriapalavraéusualmenteempregadacom

doissignificadosrelacionados,masdistintos,equivalendotantoacristianismoquantoacristandade.Noprimeirosentido,indicaumareligião,umsistemadecrençaeculto;nooutro,acivilizaçãoquecresceuefloresceusobaégidedaquelareligião.Assim,apalavra“islã”denotamaisde14séculosdehistória,1,3bilhãodepessoaseumatradiçãoreligiosaeculturaldeenormediversidade.Cristianismoecristandaderepresentamumperíodomaislongoeumnúmeromaior–maisde20séculos,maisdedoisbilhõesdepessoaseumadiversidadeaindamaior.Mesmoassim,sãopossíveiscertasgeneralizaçõesarespeitodoqueé indiferentemente chamadocristão, judaico-cristão,pós-cristão e,mais simplesmente, civilizaçãoocidental. Embora possa ser difícil – e, às vezes, em certo sentido, perigoso – generalizar sobre acivilizaçãoislâmica,issonãoéimpossível,epodeteralgumasutilidades.

Em termos espaciais, o domínio do islã estende-se doMarrocos à Indonésia, do Cazaquistão aoSenegal.Temporalmente, retrocedeamaisde14séculos,aoadventoeàmissãodoprofetaMaoménaArábia, no século VII d.C., quando criou a comunidade e o Estado islâmicos. No período quehistoriadoreseuropeusvêemcomoumnegrointerlúdioentreodeclíniodacivilizaçãoantiga–GréciaeRoma–eosurgimentodamoderna,ouseja,daEuropa,oislãeraacivilizaçãoquelideravaomundo,marcadaporseusgrandesepoderososreinos,pelariquezaevariedadedaindústriaedocomércio,porsuas ciências e artes engenhosas e criativas. Muito mais que a cristandade, o islã foi o estágiointermediárioentreoantigoOrienteeomodernoOcidente,paraoqualcontribuiudemodosignificativo.Duranteosúltimos trêsséculos,contudo,omundo islâmicoperdeusuadominânciae liderançae ficoupara trás domoderno Ocidente e também do Oriente rapidamente modernizado. Esse crescente hiatoapresentaproblemascadavezmaisagudos, tantodeordempráticaquantoemocional,paraosquaisosgovernantes,pensadoreserebeldesdoislãaindanãoencontraramrespostasconvincentes.

Comoreligião,oislãé,sobtodososaspectos,muitomaispróximodatradiçãojudaico-cristãquedequalquer uma das grandes religiões da Ásia, como o hinduísmo, o budismo ou o confucionismo. Ojudaísmoeoislãtêmemcomumacrençaemumaleidivinaqueregulatodososaspectosdaatividadehumana, incluindo até mesmo a comida e a bebida. Cristãos e muçulmanos partilham um mesmotriunfalismo.Emcontraste comasoutras religiões, incluindoo judaísmo, acreditamque sãoosúnicosafortunadosarecebereguardaramensagemfinaldeDeusparaahumanidade,sendosuaobrigaçãolevá-la ao resto domundo.Comparadas com asmais antigas religiões orientais, todas as três religiões doOrienteMédio– judaísmo,cristianismoe islamismo–estão intimamente relacionadase aparecem,defato,comovariantesdamesmatradiçãoreligiosa.

Acristandadeeoislãsão,demuitasmaneiras,civilizaçõesirmãs,ambasderivadasdeumamesmaherança–a revelaçãoeprofecia judaicasea filosofiaeciênciagregas–enutridaspelas imemoriaistradiçõesdoOrienteMédioantigo.Duranteamaiorpartedesuahistóriaconjunta,têmsidoimpelidasase combaterem,mas,mesmo no conflito e na polêmica, revelam seu parentesco essencial e os traçoscomunsqueasunemeasdistinguemdascivilizaçõesasiáticasmaisdistantes.

Mas,assimcomohásemelhanças,hátambémprofundasdisparidadesentreasduas,quevãoalémdasóbviasdiferençasdedogmaeculto.Emnenhumoutroaspectoessasdiferençassãomaisprofundas–emaisóbvias–quenaatitudedessas religiõesede seusexpoentes legitimadosa respeitodas relaçõesentregoverno,religiãoesociedade.Ofundadordocristianismoordenouaseusseguidoresdar“aCésaroqueédeCésar,eaDeusoqueédeDeus”(Mat.22:21)–e,duranteséculos,ocristianismocresceuesedesenvolveucomoumareligiãodosoprimidos,atéque,comaconversãodo imperadorConstantino,opróprioCésartornou-secristãoeinaugurouumasériedemudançasatravésdasquaisanovaféganhouo

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ImpérioRomanoetransformousuacivilização.Ofundadordo islã foiseupróprioConstantino,e fundouseupróprioEstadoe império.Assim,ele

nãocriou–nemnecessitoucriar–umaigreja.Adicotomiaentreregnumesacerdotium, tãocrucialnahistória da cristandadeocidental, não tinhanenhumequivalenteno islã.Durante a vidadeMaomé,osmuçulmanostornaram-se,aomesmotempo,umacomunidadepolíticaereligiosa, tendooProfetacomochefe deEstado.Como tal, ele governava um lugar e umpovo, propiciava justiça, recolhia impostos,comandava exércitos, declarava guerra e fazia a paz. A primeira geração muçulmana do período deformaçãodo islã,cujasaventurasconstituemsuahistóriasagrada,nãofoipostaàprovacontinuamentepor perseguições e nem tinha uma tradição de resistência a um poder estatal hostil. Ao contrário, oEstadoqueos regiaeraodo islã, e a aprovaçãodeDeusà suacausamanifestava-separaeles sobaformadevitóriaeimpérionestemundo.

NaRomapagã,CésareraDeus.Paraoscristãos,háumaescolhaentreDeuseCésar,einumeráveisgeraçõesdecristãostêm-seenredadonasteiasdessaescolha.Noislã,nãohavianenhumaescolhaárduacomoessaa fazer.Naorganizaçãopolíticauniversal islâmica, tal comoconcebidapelosmuçulmanos,nãoháCésar,apenasDeus,queéoúnicosoberanoeaúnicafontedalei.MaoméfoiSeuprofeta,queduranteavidaensinouegovernouemnomedeDeus.Quandomorreu,em632d.C.,suamissãoespiritualeproféticadetrazerapalavradeDeusparaahumanidadehaviasidocompletada.Oquepermaneceufoia tarefa religiosadeespalhara revelaçãodeDeusatéque, finalmente,omundo todoaaceitasse. Issodeveria ser alcançado ampliando a autoridade e, portanto, também a participação da comunidade queabraçavaaverdadeiraféesustentavaaleideDeus.Afimdeproveraadesãoealiderançanecessáriasparaessa tarefa, requeria-seumsubstitutoousucessordoProfeta.Apalavraárabekhalifa foio títuloadotadoporAbuBakr,sogrodoProfetaeseusucessor,cujaascensãoàchefiadacomunidadeislâmicamarcouafundaçãodagrandeinstituiçãohistóricadocalifado.

Durante o governo dos califas, a comunidade de Medina, onde havia governado o Profeta,transformou-senumvastoimpérioempoucomenosdeumséculo,eoislamismotornou-seumareligiãouniversal.Naexperiênciadosprimeirosmuçulmanos,talcomopreservadaeregistradaparaasgeraçõesvindouras, a verdade religiosa e o poder político eram indissoluvelmente associados: a primeirasantificava o segundo, e este sustentava aquela. O aiatolá Khomeini uma vez observou que “o islã épolítica ou não é nada”. Nem todos os muçulmanos chegariam a tanto, mas a maior parte delesconcordariaqueDeuspreocupa-secomapolítica,eessacrençaéconfirmadaesustentadapelasharia,aLeiSagrada,quelidaextensivamentecomaaquisiçãoeoexercíciodopoder,anaturezadalegitimidadee da autoridade, as obrigações dos governantes e súditos; em poucas palavras, com aquilo que, noOcidente,chamaríamosdireitoconstitucionalefilosofiapolítica.

A longa interação entre o islã e a cristandade, e suas muitas semelhanças e influências mútuas,algumasvezestêmlevadoobservadoresaignorarcertasdiferençassignificativas.OAlcorão,diz-se,éaBíblia muçulmana; a mesquita é a igreja muçulmana; os ulemás são o clero muçulmano. As trêsafirmações são verdadeiras, mas, ainda assim, são perigosamente enganosas. Tanto o Velho quanto oNovoTestamentoconsistemdecoleçõesdediferenteslivros,estendendo-seporlongoperíododetempo,esãoconsideradospeloscrentesamaterializaçãodarevelaçãodivina.Paraosmuçulmanos,oAlcorãoéum único livro, revelado em um tempo determinado por ummesmo homem, o profetaMaomé. Apósintensosdebatesnosprimeirosséculosdoislã, foiadotadaadoutrinadequeoAlcorãoé,elemesmo,incriadoeeterno,divinoeimutável.Issosetornouumprincípiocentraldafé.

Amesquitaé,realmente,aigrejamuçulmana,nosentidodeserumlugardecultocomunal.Masnãosepodefalar“aMesquita”comosefala“aIgreja”–ouseja,umainstituiçãocomsuaprópriahierarquiaesuasleis,emcontrastecomoEstado.Osulemás(conhecidoscomomulásnoIrãenospaísesmuçulmanos

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influenciadospelaculturapersa)podemserdescritoscomosacerdotesnosentidosociológico,poissãohomensdereligiãoporprofissão,reconhecidoscomotalportreinamentoecertificado.Masnãoháumcleronoislã–nenhumamediaçãoclericalentreDeuseofiel,nemordenação,sacramentosourituaisqueapenasumsacerdoteordenadopossarealizar.Nopassado,ter-se-iaacrescentadoquenãoháconcíliosousínodos,nembisposparadefiniraortodoxiaeinquisidoresparafazê-lacumprir.PelomenosnoIrã,issojánãoéinteiramenteverdadeiro.

A principal função do ulemá – de uma palavra árabe significando “conhecimento”– é preservar einterpretaraLeiSagrada.Nofinaldostemposmedievais,surgiualgocomoumclerolocalqueatendiaàsnecessidades das pessoas comuns em cidades e vilas, mas era usualmente separado do ulemá e nãocontavacomsuaconfiança,devendomaisaoislãmísticodoqueaodogmático.Nasúltimasmonarquiasislâmicas,naTurquiaenoIrã,apareceuumtipodehierarquiaeclesiástica,massemraízesnatradiçãomuçulmana clássica, emesmo essas hierarquias nunca demandaram– e,menos ainda, exerceram– ospoderes dos prelados cristãos. Nos tempos modernos, tem havido muitas mudanças, devidas,principalmente, a influências ocidentais, e desenvolveram-se instituições e profissões que guardamsemelhançasuspeitacomasigrejaseclérigosdacristandade.Masrepresentamumafastamentodoislãclássico,enãoumretornoaele.

Seépossível,nomundoislâmico,falardeumcleronumsensosociológicolimitado,nãoháomenorsentido em se falar de uma laicidade. A própria noção de algo separado, ou mesmo separável, daautoridade religiosa, expressa na linguagem cristã por termos como laico, temporal ou secular, étotalmenteestranhaaopensamentoe àpráticado islã.Não foi senãoapartirde tempos relativamentemodernos que passaram a existir equivalentes para esses termos na língua árabe. Foram tomadosemprestadosdousodecristãosdefalaárabe,ourecém-inventados.

Desde a época do Profeta, a sociedade islâmica tinha uma natureza dupla. De um lado, era umaunidadepolítica–umacapitaniaque,sucessivamente,tornou-seumEstadoeumimpério.Deoutrolado,eaomesmotempo,eraumacomunidadereligiosafundadaporumprofetaedirigidaporseussubstitutos,quetambémeramseussucessores.Cristofoicrucificado,Moisésmorreusementrarnaterraprometida,eascrençasecondutasdeseusseguidoresreligiososaindasãoprofundamenteinfluenciadospelamemóriadessesfatos.Maométriunfouemvidaemorreucomosoberanoeconquistador.Ascondutasmuçulmanasresultantesnãotinhamcomonãoseremconfirmadaspelahistóriasubseqüentedesuareligião.NaEuropaocidental, invasores bárbaros [mas educáveis] encontraram um Estado e uma religião já existindo: oImpério Romano e a Igreja cristã. Os invasores reconheceram ambos, e tentaram trabalhar para seusprópriosfinsenecessidadesdentrodasestruturasdasociedaderomanaorganizadaedareligiãocristã,queempregavamalíngualatina.OsinvasoresárabesmuçulmanosqueconquistaramoOrienteMédioeaÁfricadoNorte trouxeramsuaprópriafé,comsuasprópriasescriturasemsuaprópria língua;criaramsuaprópriaconstituiçãopolítica,comumnovoconjuntode leis,umnovo idioma imperialeumanovaestrutura imperial, tendoocalifacomochefesupremo.EsseEstadoeessaorganizaçãoeramdefinidospeloislã,eaassociaçãoplenaeraconcedidaexclusivamenteàquelesqueprofessavamafédominante.

AcarreiradoprofetaMaomé–omodeloquetodobommuçulmanobuscaimitar,nãosónisso,comoemtudoomais,–divide-seemduaspartes.Naprimeira,duranteosanosemsuacidadenatal,Meca(?570-622),eraumoponentedaoligarquiapagãqueentãoreinava.Nasegunda,apóssuamudançadeMecaparaMedina (622-632), era o chefe de um Estado. Essas duas fases na carreira do Profeta, uma deresistência, outra de comando, estão refletidas noAlcorão, onde, emdiferentes capítulos, os fiéis sãoinstruídosaobedeceraorepresentantedeDeusedesobedeceraoFaraó,oparadigmadodirigenteinjustoetirânico.TaisaspectosdavidaeobradoProfetainspiraramduastradiçõesnoislã,umaautoritáriaequietista,aoutraradicaleativista.Ambasestãoamplamenterefletidas,deumlado,nodesenvolvimento

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da tradição, e, de outro, no desenrolar dos eventos. Nem sempre foi fácil determinar quem era orepresentantedeDeusequemeraoFaraó;muitoslivrosforamescritos,emuitasbatalhastravadas,natentativadefazê-lo.Oproblemapermanece,easduastradiçõespodemservistasmuitoclaramentenaspolêmicasenosconflitosdenossoprópriotempo.

Entreosextremosdequietismoeradicalismoháumaatitudedisseminada,amplamenteexpressada,dereserva,emesmodedesconfiança,diantedogoverno.Umexemploéamarcantediferença,nostemposmedievais,dasatitudespopularesrelativasaocádi,umjuiz,eomufti,umjurisconsultodaLeiSagrada.Ocádi,nomeadopelogovernante,éapresentadonaliteraturaenofolclorecomoumafiguramercenáriaeatéridícula;omufti,reputadonoislãmedievalpeloreconhecimentodeseuscolegasedapopulaçãoemgeral,desfrutavadeestimaerespeito.Umtematradicionalnasbiografiasdehomensdevotos–asquaisexistemcentenasdemilhares–équeoheróirecebeuaofertadeumcargogovernamentalerecusou.Aofertademonstraseuconhecimentoereputação;arecusa,suaintegridade.

Nostemposotomanos,houveumamudançaimportante.Ocádiganhoumuitoempodereautoridade,emesmo omufti foi integrado à hierarquia pública de autoridade.Mas a velha atitude de desconfiançadiantedogovernopersistiueéfreqüentementeexpressadaemprovérbios,históriasfolclóricaseaténamelhorliteratura.

Pormaisdemilanos,oislãforneceuoúnicoconjuntouniversalmenteaceitávelderegraseprincípiosparaaregulaçãodavidapúblicaesocial.Mesmoduranteoperíododamáximainfluênciaeuropéia,nospaísesgovernadosoudominadosporpoderesimperiaiseuropeus,bemcomonaquelesquepermaneceramindependentes, as noções e atitudes políticas islâmicas continuaram a exercer profunda e disseminadainfluência. Nos anos recentes, tem havido muitos sinais de que essas noções e atitudes podem estarretornandoaopadrãoanteriordedominância,emborasobformasmodificadas.

Énoterrenodapolítica–interna,regionaleinternacional–quepodemservistasasdiferençasmaismarcantesentreoislãeorestodomundo.OschefesdeEstadoouministrosdeRelaçõesExterioresdospaísesescandinavosedoReinoUnidonãosereúnem,detemposemtempos,emconferênciasdecúpulaprotestantes; nem foi jamais uma prática dos governantes da Grécia, Iugoslávia, Bulgária e UniãoSoviética, esquecendo temporariamente suas diferenças políticas e ideológicas, promover encontrosregulares com base em sua adesão prévia ou atual à Igreja Ortodoxa. Do mesmo modo, os Estadosbudistas do leste e do sudeste asiático não constituem um bloco budista nas Nações Unidas nem emnenhuma outra de suas atividades políticas. No mundo moderno, a própria idéia de tal grupamentobaseadona religiãopodepareceranacrônicaeatéabsurda.Masemrelaçãoao islã,nãoéanacrônicanemabsurda.AolongodastensõesdaGuerraFria,eapósaqueleperíodo,maisdecinqüentagovernosmuçulmanos–incluindomonarquiaserepúblicas,conservadoreseradicais,adeptosdocapitalismoedosocialismo,partidáriosdoblocoocidentaledoblocooriental,etodaumagamadegrausdeneutralidade–construíramumelaboradoaparatodeconsultainternacionale,emmuitoscasos,decooperação.

Emsetembrode1969,umaconferênciadecúpula islâmicareunidaemRabá,noMarrocos,decidiucriarumaentidadechamadaOrganizaçãodaConferênciaIslâmica(OCI),comumasecretariapermanenteemDjedda,naArábiaSaudita.Aentidadefoicriadaesedesenvolveurapidamentenadécadade1970.Suas preocupações principais eram a ajuda aos países muçulmanos pobres, o apoio às minoriasmuçulmanas em países não-muçulmanos e a posição internacional do islã e dos muçulmanos – naspalavrasdeumobservador,osdireitosislâmicosdohomem.

Essa organização tem agora 57 Estadosmembros, além de três com status de observadores. DoisdessesEstados,AlbâniaeTurquia,estão,ouaspiramaestar,naEuropa(aBósniatemapenasostatusdeobservador); dois, Suriname (admitido em 1996) e Guiana (admitida em 1998), estão no hemisférioocidental.OsdemaisestãonaÁsiaenaÁfrica,e,compoucasexceções,ganharamsuaindependêncianos

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últimos 50 anos dos impérios daEuropa ocidental e,mais recentemente, do Soviético.Amaior partedessesEstados temumapopulaçãoquaseemsua totalidademuçulmana,emboraalgunspoucos tenhamsidoadmitidosemfunçãodaforçadesuassignificativasminoriasmuçulmanas.AlémdessesEstados,háimportantes minorias muçulmanas em outros países – algumas delas semelhantes à maioria, como naÍndia,outras, étnicae religiosamentedistintas, comoos tchetchenoseos tártarosdaFederaçãoRussa.Algunspaíses,comoaChina,têmminoriasmuçulmanasdosdoistipos.Atualmente,muitosoutrosestãoganhandominoriasmuçulmanasemconseqüênciadeimigrações.

HouveeháimportanteslimitesàeficáciadaOCIcomoumatornocenáriopolíticointernacional.Ainvasão soviéticadoAfeganistãoem1979,um flagranteatodeagressãocontraumanaçãomuçulmanasoberana, não evocou protestos sérios e foi até defendida por algunsmembros.Mais recentemente, aOrganizaçãotemdeixadodesemanifestararespeitodeguerrascivisemEstadosmembroscomoSudãoeSomália.Seudesempenhoemquestõesregionaistambémnãofoisignificativo.Entre1980e1988,doispaísesislâmicos,IraqueeIrã,envolveram-senumaguerradevastadora,infligindoimensosdanosumaooutro.AOCInadafez,nemparaimpediraguerranemparadarfimaela.Emgeral,aOCI,diferentementedaOrganizaçãodosEstadosAmericanosedaOrganizaçãodaUnidadeAfricana,nãoseocupadeabusosdedireitoshumanoseoutrosproblemasinternosdosEstadosmembros;suaspreocupaçõescomaquestãotêm-se limitado à situação de muçulmanos vivendo em países não-muçulmanos, principalmente naPalestina. No entanto, a OCI não deve ser desconsiderada. Suas atividades culturais e sociais sãoimportantesecrescentes,eoaparatoquepropiciaparaconsultasregularesentreEstadosmembrospodeganharimportânciaàmedidaqueaGuerraFriaeseusefeitosperturbadoresvãoficandoparatrás.

Passandodapolíticainternacionalparaaregionalenacional,asdiferençasentreoislãeorestodomundo, embora menos marcantes, são ainda substanciais. Em alguns dos países com regimesdemocráticos multipartidários existem partidos políticos com designações religiosas – Cristão noOcidente,Hindu na Índia,Budista noOriente.Mas esses partidos são relativamente poucos, e os quedesempenhampapel importante sãoaindaemmenornúmero.Mesmonocasodessesúltimos,os temasreligiosossão,emgeral,demenorimportânciaemseusprogramaseapelosaoeleitorado.Entretanto,namaioriadospaísesislâmicos,areligiãocontinuaaserumfatorpolíticorelevante–muitomaisnocampodoméstico,defato,quenasquestõesinternacionaisoumesmoregionais.Qualarazãodessadiferença?

Umarespostaéóbvia:amaiorpartedospaísesmuçulmanosaindaéprofundamentemuçulmana,deuma forma e num sentido que amaioria dos países cristãos já não é. É certo que, emmuitos dessesúltimos,ascrençascristãseocleroqueassustentamaindasãoumaforçapoderosa.Emboraseupapelnãosejaomesmoqueodeséculospassados,nãoé,demaneiraalguma,insignificante.Masemnenhumpaíscristãodaatualidadeoslíderesreligiosospodemcontarcomumgraudecrençaeparticipaçãocomooquecontinuaasernormalmenteencontradoemterrasmuçulmanas.Empoucospaísescristãos,seéqueemalgum,osprincípiosepráticascristãosestãoimunesacomentárioscríticosoudiscussõesnonívelemqueéaceitocomonormalmesmoemsociedadesmuçulmanasostensivamentesecularesedemocráticas.Na realidade, essa imunidade privilegiada tem sido estendida, de facto, a países ocidentais ondecomunidadesmuçulmanasestãojáestabelecidaseondecrençasepráticasmuçulmanastêmgarantiadeimunidadeacríticasnumnívelqueasmaioriascristãsperderameasminoriasjudiasnuncativeram.Maisimportanteainda:commuitopoucasexceções,oclerocristãonãoexerceounemaomenosdemandaotipodeautoridadepúblicaqueaindaénormaleaceitanamaiorpartedospaísesmuçulmanos.

O nível mais elevado de fé e práticas religiosas entre os muçulmanos, em comparação comseguidoresdeoutrasreligiões,explica,emparte,aatitudeúnicadosmuçulmanosfrenteàpolítica;nãoéa explicação total, já que atitude semelhante pode ser encontrada em indivíduos emesmo em gruposinteiroscujocompromissocomaféeapráticareligiosasé,nomáximo,superficial.Oislãénãoapenas

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uma questão de fé e prática; é tambémuma identidade e uma lealdade que, paramuitos, transcendemtodasasdemais.

Aparentemente,aimportaçãodenoçõesocidentaisdepatriotismoenacionalismomudoutudoissoelevouàcriaçãodeumasériedeEstados-naçõesmodernosqueseestendemportodoomundoislâmico,doMarrocosàIndonésia.

Mas nem tudo é como parece ser. Dois exemplos podem ser suficientes. Em 1923, após a últimaguerragreco-turca,osdoisgovernosconcordaramemresolverosproblemasdesuasminoriasatravésdeumatrocadepopulações–gregosforammandadosdaTurquiaparaaGrécia,turcosforamenviadosdaGréciaparaaTurquia.Pelomenos,éisso,emgeral,oquecontamoslivrosdehistória.Osfatossãoumtantodiferentes.OprotocoloassinadopelosdoisgovernosemLausanneem1923,contendooacordodetrocas,nãofalade“gregos”e“turcos”.Eledefineaspessoasaseremtrocadascomo“seguidoresturcosdareligiãoortodoxagregaresidindonaTurquia”e“seguidoresgregosdareligiãomuçulmanaresidindonaGrécia”.Assim,oprotocoloreconheceapenasdoistiposdeidentidade–umadefinidaporsersúditodeumEstado,eoutraporserseguidordeumareligião.Nãoéfeitaqualquerreferênciaanacionalidadesétnicas ou lingüísticas. A precisão desse documento em expressar as intenções dos signatários foiconfirmadapela troca verdadeiramente realizada.Muitos dos assim chamados gregos da província deKaraman, na Anatólia turca, tinham o turco como língua materna, mas usavam o alfabeto grego paraescreverefreqüentavamoscultosdas igrejasortodoxas.Muitosdosassimchamados turcosdaGrécianãosabiamturco,ousabiammuitopouco,eusualmentefalavamgrego–masescreviamcomoalfabetoturco-árabe.

Umobservadorocidental,acostumadoaumsistemaocidentaldeclassificação,poderiamuitobemterconcluídoqueoqueosgovernosdaGréciaedaTurquiaconcordaramemfazer,efizeram,nãofoiatrocaearepatriaçãodeminoriasnacionaisgregaseturcas,massimumadupladeportaçãoparaoexílio–demuçulmanosgregosparaaTurquia,deturcoscristãosparaaGrécia.Atémuitorecentemente,aGréciaea Turquia, ambas democracias ocidentalizadas, a primeira, membro efetivo da União Européia, asegunda, candidata, reservavam um campo específico para religião nos documentos de identidadeoficiais.

Um segundo exemplo é oEgito. Poucos países, talvez nenhumoutro, têmmelhores elementos parareclamar seu caráter de nação – um país claramente caracterizado tanto pela história quanto pelageografia,comumahistóriaininterruptadecivilizaçãoqueseestendepormaisdecincomilanos.Masosegípciostêmdiversasidentidades,e,namaiorpartedosúltimos14séculos–istoé,desdeaconquistaárabe-islâmicadoEgitonoséculoVIIeasubseqüenteislamizaçãoearabizaçãodopaís–raramenteaegípcia tem sido a predominante: têm precedência a identidade cultural e lingüística do arabismo ou,duranteamaiorpartedesuahistória,aidentidadereligiosadoislã.Comonação,oEgitoéumadasmaisantigasdomundo.ComoEstado-nação,éumacriaçãomodernaeaindaenfrentamuitosdesafiosinternos.Atualmente,omaisfortedessesdesafios,tambémencontradoemalgunsoutrospaísesmuçulmanos,vemde grupos islâmicos radicais, do tipo comumente descrito hoje, embora de forma equivocada, como“fundamentalista”.

Desde quando seu Fundador era vivo e, portanto, conforme suas sagradas escrituras, o islã estáassociado,noespíritoenamemóriadosmuçulmanos,comoexercíciodopoderpolíticoemilitar.Oislãclássico reconhecia a distinção entre coisas dessemundo e coisas do próximo, entre reflexões pias emundanas. O que não reconhecia era uma instituição separada, com hierarquia e leis próprias, pararegularquestõesreligiosas.

Isso significa então que o islã é uma teocracia?No sentido de queDeus é visto como o supremosoberano, a resposta teria que ser um decisivo sim. No sentido de governo por um sacerdócio,

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definitivamentenão.O surgimentodeumahierarquia sacerdotal queveio a assumir a autoridademaiselevadanoEstadoéumainovaçãomodernaeumacontribuiçãoexclusivadoaiatoláKhomeinidoIrãaopensamentoeàexperiênciadoislã.

ARevoluçãoIslâmicanoIrã,comoasrevoluçõesFrancesaeRussaàsquaisseassemelhaemmuitosaspectos,teveumtremendoimpactonãoapenasnaquelepaíseentreseuprópriopovo,mastambémemtodos os países e povos com os quais tinha um universo discursivo em comum.Como as revoluçõesFrancesaeRussaemsuasrespectivasépocas,despertoutremendaesperançaeenormeentusiasmo.Comoaquelasrevoluções,sofreuseuTerroresuaguerradeintervenção;comoelas,temseusjacobinoseseusbolcheviques,determinadosaesmagarqualquersinaldepragmatismooumoderação.E,talcomoaquelasrevoluções,maisparticularmenteaRussa,temtambémsuaprópriarededeagenteseemissárioslutando,de várias formas, para promover a causa revolucionária ou, pelo menos, o regime visto como suamaterialização.

ApalavrarevoluçãotemsidomuitomalusadanomodernoOrienteMédio,sendoaplicadaamuitoseventos–oudemandadaporeles–queseriammaisadequadamentedesignadospelaexpressãofrancesacoup d’état, pela palavra alemã Putsch ou pela espanhola pronunciamiento. É interessante que aexperiênciapolíticadospovosdelínguainglesanãoofereçaumtermoequivalente.OqueaconteceunoIrãnãofoinadadisso,mastratava-se,emsuasorigens,deumautênticomovimentorevolucionáriopró-mudança.Comoseusantecessores,deudemasiadamenteerradoemmuitosaspectos,levandoàtiranianopaís e ao terror e à subversão fora. Diferentemente da França e da Rússia revolucionárias, o Irãrevolucionáriocarecedosmeios,dosrecursosedascompetênciasparasetornarumaautoridadeeumaameaça expressivas em esfera mundial. A ameaça que oferece é, principal e totalmente, para osmuçulmanoseparaopróprioislã.

A onda revolucionária no islã tem diversos componentes.Um deles é um senso de humilhação: osentimentodeumacomunidadedepessoasacostumadasaseveremcomoasúnicasguardiãsdaverdadedeDeus,quereceberamDeleocomandodelevá-laaosinfiéiseque,derepente,vêem-sedominadaseexploradasporaquelesmesmosinfiéis.Mesmoquandojánãomaisdominadas,suasvidassãomudadaseprofundamenteafetadas,poissesentemtiradasdoverdadeirocaminhoislâmicoelevadasparaoutros.Àhumilhação juntou-se frustração, à medida que foram experimentados vários remédios, a maior parteimportadadoOcidente,e,umapósoutro,todosfalharam.

Em seguida à humilhação e à frustração veio um terceiro componente, necessário para oressurgimento–umanovaconfiançaeumsensodepoderrenovado.Issosemanifestouapartirdacrisedopetróleode1973,quando,emapoioàguerradoEgitocontraIsrael,ospaísesárabesprodutoresdepetróleo usaram tanto o fornecimento quanto o preço como armas que se provarammuito eficazes.Ariqueza, o orgulho e a autoconfiança que resultaramdo episódio foram reforçados por outro elementotambémnovo:odesprezo.EmcontatocomaEuropaeaAmérica,osvisitantesmuçulmanoscomeçaramaobservaredescreveroqueviramcomoadegradaçãomoraleaconseqüentefragilidadedacivilizaçãoocidental.

Em um tempo de tensões crescentes, ideologias vacilantes, lealdades exauridas e instituiçõesdecadentes, uma ideologia expressada em termos islâmicos oferecia diversas vantagens: uma baseemocionalmentefamiliarparaaidentidadegrupal,asolidariedadeeaexclusão;umabaseaceitáveldelegitimidadeeautoridade;umaformulaçãoimediatamenteinteligíveldeprincípiosaseremusadostantonumacríticadopresentequantonumprogramaparaofuturo.Atravésdetudoisso,oislãpôdeproverossímboloseslogansmaisefetivosparaamobilização,sejaafavordeumacausaouumregime,sejacontraeles.

Osmovimentosislâmicostambémtêmoutraimensavantagemquandocomparadoscomtodososseus

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competidores.Nasmesquitas,elesdispõemdeumarededeassociaçãoecomunicaçãoquemesmoomaisditatorialdosgovernosnãopodecontrolarinteiramente.Defato,ditadurasbrutaisosajudam,mesmonãotendotalintenção,aoeliminaroposiçõescompetidoras.

Oislamismoradical,aoqualsetornouusualdaronomedefundamentalismoislâmico,nãoéumúnicomovimentohomogêneo.Hámuitos tiposdefundamentalismoislâmicoemdiferentespaísese,àsvezes,dentrodeummesmopaís.AlgunssãopatrocinadospeloEstado–promulgados,usadosepromovidosporum ou outro governo muçulmano para seus próprios propósitos; outros são genuínos movimentospopulares de base. Entre osmovimentos islâmicos patrocinados pelo Estado há também vários tipos,tantoradicaisquantoconservadores,tantosubversivosquantopreventivos.Movimentosconservadoresepreventivostêmsidoiniciadosporgovernosnopoderbuscandoproteger-sedeumaondarevolucionária.São desse tipo os movimentos encorajados, em diferentes épocas, pelos egípcios, paquistaneses e,principalmente, sauditas.O outro tipo,muitomais importante, vem de baixo, com uma autêntica basepopular.Oprimeirodessesatomaropodereexercê-locommaiorsucessofoiomovimentoconhecidocomoaRevoluçãoIslâmicanoIrã.Regimes islâmicos radicaisagoradominamnoSudãoe,poralgumtempo, dominaram no Afeganistão, enquanto movimentos islâmicos constituem grandes ameaças à jáameaçadaordemexistenteemoutrospaíses,especialmenteArgéliaeEgito.

Os fundamentalistasmuçulmanos, diferentemente dos grupos protestantes cujo nome foi transferidopara eles, não diferem da corrente dominante em questões de teologia e interpretação dos textossagrados. Sua crítica, em sentido mais amplo, é relativa a toda a sociedade. O mundo islâmico, naopinião desses fundamentalistas, tomou um caminho errado. Seus governantes chamam a si mesmosmuçulmanosefingemseroislã,massão,defato,apóstatasqueaboliramaLeiSagradaeadotaramleisecostumesestrangeiros, infiéis.Aúnica solução, segundoeles, éum retornoaoautênticomododevidamuçulmano, e, para isso, a remoção dos governos apóstatas é um primeiro passo essencial. Osfundamentalistas são antiocidentais no sentido de que vêemoOcidente como a fonte domal que estácorroendo a sociedade muçulmana, mas seu primeiro ataque está dirigido contra seus própriosgovernanteselíderes.AssimforamosmovimentosqueresultaramnaderrubadadoxádoIrãem1979enoassassinatodopresidenteSadat,doEgito,doisanosdepois.Amboseramvistoscomosintomasdeummalmaisprofundoaserremediadocomumalimpezainterna.NoEgito,elesmataramodirigente,masnãoconseguiramseapropriardoEstado;noIrã,destruíramoregimeecriaramoseupróprio.

***Oislãéumadasgrandesreligiõesdomundo.Deudignidadeesentidoavidastoscaseempobrecidas.

Ensinouhomensdediferentesraçasaviveremirmandadeepovosdediferentescredosaviver ladoalado em sensata tolerância. Inspirou uma grande civilização na qual outros, além dos muçulmanos,tiveramvidascriativaseproveitosaseque,porsuasrealizações,enriqueceramomundointeiro.Masoislã,comooutrasreligiões,tambémconheceuperíodosnosquaisinspirouemalgunsdeseusseguidoresum espírito de ódio e violência. É um infortúnio nosso que tenhamos que confrontar parte domundomuçulmanonomomentoemqueatravessaumdessesperíodos,equandoamaiorpartedaqueleódio–masnãotodoele,deformaalguma–estádirigidocontranós.

Porquê?Nãodevemosexagerarasdimensõesdoproblema.Omundomuçulmanoestálongedeserunânime em sua rejeição do Ocidente, e nem as regiões muçulmanas do TerceiroMundo têm estadosozinhas em sua hostilidade. Existem ainda números significativos demuçulmanos, em alguns lugarestalvez a maioria deles, com os quais partilhamos algumas crenças e aspirações básicas de naturezacultural e moral, social e política; existe uma significativa presença ocidental – cultural, econômica,diplomática–emterrasmuçulmanas,algumasdasquaissãoaliadasdoOcidente.Masháumamarédeódioqueaflige,alarmae,acimadetudo,desconcertaosnorte-americanos.

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Freqüentementeesseódiovaialémdoníveldehostilidadea interesses,ações,políticasoumesmopaísesespecíficos,esetransformaemrejeiçãoàcivilizaçãoocidentalpropriamentedita,nãotantopeloquefaz,maspeloqueéepelosprincípiosevaloresquepraticaeprofessa.Naverdade,essessãovistoscomo intrinsecamente maléficos, e os que os promovem ou aceitam são considerados “inimigos deDeus”.

Essa frase, que reaparece tão freqüentemente nas declarações da liderança iraniana, tanto em seusprocedimentosjurídicosquantonospronunciamentospolíticos,podeparecermuitoestranhaaomodernoobservador externo, seja religioso ou secular.A idéia de queDeus tem inimigos e necessita de ajudahumana para identificá-los e eliminá-los é um tanto difícil de assimilar. No entanto, não é assim tãoestranha.Oconceitode inimigosdeDeusera familiarnaAntigüidadepré-clássicaeclássica, tantonoAntigoeNovoTestamentosquantonoAlcorão.

No islã, a luta entrebememal adquiriu, desdeo começo,dimensõespolíticas emesmomilitares.Deve-se recordar queMaomé era não apenas um profeta emestre, tal como os fundadores de outrasreligiões;eratambémumdirigenteeumsoldado.DaíquesualutaenvolvesseumEstadoesuasforçasarmadas.Seoscombatentesnaguerrapeloislã,aguerrasanta“nocaminhodeDeus”,estãolutandoporDeus, segue-se que seus oponentes estão lutando contra Deus. E dado que Deus é, em princípio, osoberano,osupremochefedoEstadoislâmico,tendooProfetae,depoisdele,oscalifascomoSeusvice-regentes,entãoDeus,comosoberano,comandaoexército.OexércitoéoexércitodeDeuseoinimigoéoinimigodeDeus.AobrigaçãodosSeussoldadosédespacharosinimigos,tãorápidoquantopossível,paraolugarondeDeusoscastigará,ouseja,aoutravida.

Atualmente,aquestão-chavequeocupaosformuladoresdepolíticasnoOcidentepodeserexpressadasimplesmentecomo:seráo islã, fundamentalistaounão,umaameaçaparaoOcidente?Aessaquestãosimplestêmsidodadasváriasrespostastambémsimples,e,sendoassim,amaiorparteapontanadireçãoerrada.De acordo com uma escola de pensamento, após o desmantelamento daUnião Soviética e domovimentocomunista,oislãeofundamentalismoislâmicopassaramaocuparseuslugarescomoamaiorameaça ao Ocidente e ao modo de vida ocidental. De acordo com outra escola de pensamento, osmuçulmanos,incluindoosfundamentalistasradicais,sãopessoasbasicamentedecentes,amantesdapazedevotas,algumasdasquaisforamlevadasalémdosuportávelportodasascoisasterríveisquenós,doOcidente, temos feito a elas. Escolhemos vê-los como inimigos porque temos uma necessidadepsicológicadeuminimigoparasubstituirafinadaUniãoSoviética.

Ambas as perspectivas contêm elementos de verdade; ambas estão perigosamente erradas.O islã,comotal,nãoéuminimigodoOcidente,eháporçõescrescentesdemuçulmanos,tantolácomoaqui,quedesejamnadamaisqueumarelaçãomaispróximaemaisamistosacomoOcidenteeodesenvolvimentode instituições democráticas em seus próprios países.Mas um número significativo demuçulmanos –especialmenteaquelesquechamamosdefundamentalistas,masnãoapenaseles–éhostileperigoso,nãoporquenecessitemosdeuminimigo,masporqueeles,sim.

Nos últimos anos temhavido algumasmudanças de ponto de vista e, conseqüentemente, de táticasentre os muçulmanos. Alguns deles ainda vêem o Ocidente em geral – e seu atual líder, os EstadosUnidos, em particular – como um antigo e irreconciliável inimigo do islã, o único sério obstáculo àrestauraçãodaféedaleideDeusemseuspaíseseaotriunfodefinitivodasmesmasemtodoomundo.Paraessesmuçulmanos,nãoháoutrocaminhosenãoaguerraatéamorte,emobediênciaaoquevêemcomoosmandamentos de sua fé.Háoutros que, embora permanecendomuçulmanos comprometidos emuitoconscientesdasfalhasdamodernasociedadeocidental,aindaassimtambémvêemseusméritos–seu espírito indagador, que produziu a ciência e a tecnologia modernas; suas preocupações com aliberdade,quecriarammodernosgovernosdemocráticos.Essesúltimos,emboramantendosuaspróprias

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crençasesuaprópriacultura,buscamjuntar-seanósnacaminhadaemdireçãoaummundomaislivreemelhor.Háoutrosaindaque,apesardeveremoOcidentecomoseuprincipal inimigoecomofontedetodos os males, estão, ainda assim, conscientes do poder ocidental e buscam alguma acomodaçãotemporáriaafimdemelhorseprepararemparaabatalhafinal.Seriasábiodenossapartenãoconfundirossegundoscomosterceiros.

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2|ACasadaGuerraAo longo da história humana, muitas civilizações floresceram e decaíram – China, Índia, Grécia,

Romae,antesdelas,asantigascivilizaçõesdoOrienteMédio.Duranteosséculosqueahistóriaeuropéiachamademedievais,amaisavançadacivilizaçãodomundoera,semdúvida,adoislã.Oislãpodetersidoigualado–oumesmo,emalgunsaspectos,ultrapassado–pelaÍndiaepelaChina,masessasduaspermaneceramessencialmentecircunscritasaumaregiãoeaumgrupoétnico,eseuimpactosobreorestodo mundo foi, por isso mesmo, limitado. A civilização do islã, em contraste, tinha perspectivasecumênicase,emsuasaspirações,eraexplicitamenteassim.

UmadastarefaselementareslegadasaosmuçulmanospeloProfetaeraajihad.Essapalavravemdaraiz arábica j-h-d, significando basicamente empenho ou esforço. Com freqüência, é usada em textosclássicoscomumsentidobastantepróximodebatalhae,portanto,tambémdeluta.Éusualmentecitadanoversículo doAlcorão “esforçando-se no caminho deDeus” (p.ex, IX, 24;LX, 1 etc.), e tem recebidováriasinterpretaçõesnosentidodeesforçomoralelutaarmada.Emgeral,ébastantefácilentender,pelocontexto, qual dessas nuances de significado tem-se emmente. No Alcorão, a palavra ocorre muitasvezesnessesdoissentidosdistintos,masrelacionados.Nosprimeiroscapítulos,datadosdoperíodoemMeca, quando o Profeta ainda era o líder de um grupo minoritário lutando contra a oligarquia pagãdominante,apalavrafreqüentementetemosentido,preferidoporexegetasmodernistas,deesforçomoral.Nosúltimoscapítulos,reveladosemMedina,ondeoProfetadirigiaoEstadoecomandavaseuexército,jihad geralmente tem uma conotação práticamais explícita. Emmuitos casos, o significadomilitar éinequívoco.UmbomexemploéapassagemIV,95:“Aquelescrentesquepermanecememcasa,alémdosincapacitados, não são iguais àqueles que se empenham no caminho de Deus com seus bens e suaspessoas.Deussituouosqueseempenhamcomseusbensesuaspessoasemumnívelmaiselevadodoqueaquelesquepermanecememcasa.Deusprometeurecompensaatodosquecrêem,masconcedeaosque lutam uma recompensamaior, distinguindo-os dos que permanecem em casa.” Juízos semelhantespodemserencontradosemVIII,72;IX,41,81,88;LXVI,9etc.

Alguns muçulmanos modernos, especialmente ao se dirigirem ao mundo exterior, explicam aobrigaçãodajihadnumsentidoespiritualemoral.Aesmagadoramaioriadasautoridadesmaisantigas,citandoaspassagensrelevantesdoAlcorão,oscomentárioseastradiçõesdoProfeta,discutejihademtermosmilitares.Segundoaleiislâmica,estádeacordocomasescriturasfazerguerracontraquatrotiposdeinimigos:infiéis,apóstatas,rebeldesebandidos.Emboraosquatrotiposdeguerrassejamlegítimos,apenasosdoisprimeiroscontamcomojihad.Portanto,ajihadéumaobrigaçãoreligiosa.Aodiscutiraobrigaçãodaguerrasanta,osjuristasmuçulmanosclássicosdistinguementreguerraofensivaedefensiva.Naofensiva,a jihadéumaobrigaçãodacomunidademuçulmanacomoumtodo,epodesercumprida,portanto,porcombatentesvoluntárioseprofissionais.Emumaguerradefensiva,torna-seumaobrigaçãode todos os indivíduos fisicamente aptos. É esse princípio que Osama bin Laden invocou em suadeclaraçãodeguerracontraosEstadosUnidos.

Duranteamaiorpartedos14séculosdehistóriamuçulmanaregistrada,ajihadfoimaiscomumenteinterpretadacomolutaarmadaparadefesaouaumentodopodermuçulmano.Natradiçãomuçulmana,omundoédivididoemduascasas:aCasadoIslã(Daral-Islam),naqualexistemgovernosmuçulmanoseondeprevalecealeimuçulmana,eaCasadaGuerra(Daral-Harb),orestodomundo,aindahabitadoporinfiéise,maisimportante,sobgovernosinfiéis.Apresunçãoéqueaobrigaçãodajihadcontinuará,interrompidaapenaspor tréguas,atéqueomundotodoadoteafémuçulmanaousesubmetaaomandomuçulmano.Aquelesquelutamnajihadqualificam-separarecompensasnosdoismundos,butimnesse,paraísonopróximo.

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Nessaquestão,comoemtantasoutras,aorientaçãodoAlcorãoéampliadaeelaboradanashadiths,tradiçõesquetratamdosatosepalavrasdoProfeta.Muitasdessasreferem-seàguerrasanta.Essessãoalgunsexemplos:

Ajihadésuaobrigaçãosobqualquercomandante,sejaeledivinoouiníquo.Émelhorumdiaeumanoitedelutasnafronteiradoqueummêsdejejumeprece.Apicadadeumaformigacausamaisdoraummártirdoqueaferidadeumaarma,poisessaémaisbem-vindaparaeledoque

águafrescaedoceemumdiaquentedeverão.Aquelequemorresemterparticipadodeumacampanhamorrenumcertotipodedescrença.Deussemaravilhacomaqueles[aosquaisoislãétrazidoporconquista]quesãoarrastadosaoparaísoemcadeias.Aprendaaatirar,poisoespaçoentreoalvoeoarqueiroéumdosjardinsdoparaíso.Oparaísoestáàsombradeespadas.

Atradiçãotambémestabelecealgumasregrasdeguerraparaaconduçãodajihad:Saibaqueosprisioneirosdevemserbemtratados.Apilhagemnãoémaislegaldoquecarnepodre.Deusproibiumatarmulheresecrianças.

Osmuçulmanosestãoobrigadosporseusacordos,desdequeessesestejamemconformidadecomalei.1

Os tratados jurídicos convencionais relacionados com a sharia normalmente contêm um capítulosobre a jihad, entendida no sentidomilitar como guerra regular contra infiéis e apóstatas.Mas essestratadosprescrevemcomportamentocorretoerespeitoàsregrasdaguerraemquestõescomooinícioeotérminodashostilidadeseotratamentodenão-combatenteseprisioneiros,paranãofalardosenviadosdiplomáticos.

Duranteamaiorpartedahistóriaregistradadoislã,desdeotempoemqueviviaoprofetaMaomé,apalavra jihad foi usada em sentido principalmente militar.Maomé começou suamissão profética emMeca, sua cidade natal, mas, devido à perseguição sofrida por ele e seus seguidores nas mãos daoligarquia pagã que governava a cidade, mudou-se com eles para Medina, onde as tribos locais osacolheram e fizeram do Profeta seu árbitro e, depois, seu governante. Essa migração de Meca paraMedina é conhecida em árabe como a Hijra, às vezes escrita de forma incorreta como Hegira2 etraduzida equivocadamente como“fuga.”Aeramuçulmana tem início como começodo ano árabenoqualocorreuaHijra.Aprimeira jihad foi realizadapeloProfetacontraosgovernantesde suacidadenatal e terminou com a conquista deMeca nomês doRamadã do ano 8 daHijra, correspondendo ajaneirodoano630daeracristã.AliderançadeMecarendeu-sequasesemlutar,eoshabitantes,comexceçãodaquelesacusadosdeinsultosespecíficoscontraoProfetaoucontraummuçulmano,receberamimunidadeparasuasvidasepropriedades,desdequesecomportassemconformeoacordo.ApróximatarefaeraaextensãodaautoridademuçulmanaaorestodaArábiae,soboscalifassucessoresdoProfeta,aorestodomundo.

Nosprimeirosséculosdaeraislâmica,issopareciapossívele,narealidade,provável.Dentrodeumtempo extraordinariamente curto, os exércitos conquistadoresmuçulmanos haviam derrubado o antigoimpério daPérsia e incorporado todos os seus territórios aos domínios do califado, abrindo caminhoparaainvasãodaÁsiaCentraledaÍndia.AOeste,oImpérioBizantinoaindanãohaviasidoderrubado,masgrandepartedeseusterritóriosforatomada.AsprovínciasentãocristãsdaSíria,Palestina,ÁfricadoNorte edoEgito foram incorporadas e, a seudevido tempo, islamizadas e arabizadas, passandoaservircomobasesparaasubseqüente invasãodaEuropaeaconquistadaEspanhaedePortugal,bemcomodosuldaItália.PorvoltadoiníciodoséculoVIII,osexércitosconquistadoresárabesjáhaviamavançadoalémdosPirineus,atéaFrança.

Apósváriosséculosde ininterruptasvitórias,a jihad árabe foi finalmente refreadae repelidapela

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Europacristã.NoLeste,osbizantinosmantiveramagrandecidadecristãdeConstantinopla, repelindoumasériede ataques árabes.NoOeste, começaramo longoprocessoconhecidonahistória espanholacomo a Reconquista, que acabou resultando na expulsão dos muçulmanos dos territórios que haviamconquistado na Itália e na Península Ibérica. Também foi deslanchada uma tentativa de levar aReconquistaaoOrienteMédioerecobrarolocaldenascimentodeCristo,tomadopelosmuçulmanosnoséculoVII.Essatentativa,conhecidacomoascruzadas,falhoutotalmente,eoscruzadosforamexpulsosemdebandada.

Masa jihad nãohavia terminado.Umanova fase foi inaugurada, agoranãopelos árabes,masporturcosetártaros,recentementeincorporadosaoislã.EssesforamcapazesdeconquistaraatéentãoterracristãdaAnatóliae,emmaiode1453,tomaramConstantinopla,queapartirdaítornou-seacapitaldossultõesotomanos,sucessoresdoantigocalifadonaliderançadajihadislâmica.OsotomanosnosBálcãseostártarosislamizadosnaRússiareassumiramatentativadeconquistaraEuropa,dessavezcomeçandopeloleste,e,poralgumtempo,pareciamestarpróximosdosucesso.

Mas,novamente, a cristandadeeuropéia foi capazdeexpulsaros invasores e,denovo, agoracommelhores resultados, de contra-atacar os domínios do islã. A jihad então tornara-se quase totalmentedefensiva–resistindoàReconquistanaEspanhaenaRússia,resistindoaosmovimentosdeautoliberaçãonacional dos cristãos submetidos ao Império Otomano e, finalmente, tal qual o ponto de vista dosmuçulmanos, defendendo o coração da terra islamita contra o ataque de infiéis. Essa fase veio a serconhecidacomoimperialismo.

Mesmonesseperíodode retirada, a jihad ofensivade formaalguma foi abandonada.Em1896,osafegãosinvadiramasregiõesmontanhosasdeHinduKuchondeéagoraonordestedoAfeganistão.Atéentão,oshabitanteseramnão-muçulmanos,earegiãoera,portanto,conhecidapelosmuçulmanoscomoCafiristão,“terradosquenãocrêem”.Apósaconquistaafegã, foi renomeadaNuristão,“terrade luz”.Durante omesmoperíodo, jihads de vários tipos foram conduzidas naÁfrica contra populações não-muçulmanas.Mas,emsuamaiorparte,oconceito,apráticaeaexperiênciadajihadnomodernomundoislâmicotêmsido,emsuaquasetotalidade,denaturezadefensiva.

Ousopredominantementemilitardotermocontinuouatétemposrelativamentemodernos.NoImpérioOtomano,acidadedeBelgrado,umabaseavançadanaguerracontraosaustríacos,recebeuonomedeCasa da Jihad (Dar al-Jihad). No início do século XIX, quando Muhammad ‘Ali Paxá, o lídermodernizadordoEgito,reformousuasforçasarmadasesuaadministraçãoseguindoosgênerosfrancêsebritânico,foicriadoum“departamentodeguerra”paraadministrá-las.EraconhecidoemárabecomooDivãdosAssuntosdaJihad(Diwanal-Jihadiyya),eseuchefeeraosupervisordosassuntosda jihad(Naziral-Jihadiyya).Seriapossívelcitaroutrosexemplosnosquaisapalavrajihadperdeuseuaspectosacro, conservando apenas sua conotaçãomilitar.Nos temposmodernos, tanto o usomilitar quanto omoral do termo foram revividos, e são entendidos e empregados demaneiras diversas por diferentesgrupos de pessoas. Organizações que, na atualidade, se atribuem o nome de Jihad na Caxemira,Tchetchênia, Palestina e em outros lugares, evidentemente não usam a palavra para denotar empenhomoral.

Ajihadéapresentada,àsvezes,comooequivalentemuçulmanodascruzadas,easduassãovistascomomaisoumenosequivalentes.Emumcertosentido,issoéverdadeiro–ambasforamproclamadaselançadas como guerras santas da fé verdadeira contra um inimigo infiel. Mas há uma diferença. Ascruzadassãoumevento tardionahistóriacristãe,decertomodo,marcamumafastamentoradicaldosvaloresbásicoscristãos,talcomoexpressosnosEvangelhos.AcristandadeestiverasobataquedesdeoséculoVII,ehaviaperdidovastosterritóriosparaodomíniomuçulmano;oconceitodeumaguerrasanta,maiscomumenteumaguerrajusta,erafamiliardesdeaAntigüidade.Aindaassim,nolongoconflitoentre

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islamismoecristandade,ascruzadasforamtardias,limitadasederelativamentepoucaduração.Ajihad,aocontrário,estápresentedesdeoiníciodahistóriaislâmica–nostextossagrados,navidadoProfetaenas condutas de seus companheiros e sucessores imediatos. Continuou a existir ao longo da históriaislâmicaemantémseuapeloatéosdiasatuais.

A palavra cruzada deriva, obviamente, de cruz, e denotava originalmente uma guerra santa dacristandade.Mas,nomundocristão,hámuitoperdeuaquelesignificado,sendousadanosentidogeraldeumacampanhadeorientaçãomoralporumaboacausa.Pode-seiniciarumacruzadapelomeioambiente,pordespoluiçãodaságuas,pormelhoresserviçossociais,pelosdireitosdasmulheresepor todaumagamadecausas.Oúnicocontextonoqualapalavracruzadanãoéusadahojeemdiaé justamentenosentido religioso original. Jihad também é usada em vários sentidos, mas, ao contrário de cruzada,manteveseusignificadooriginalprincipal.

Aqueles que sãomortos na jihad são chamadosmártires, shahid – em árabe e em outras línguasmuçulmanas.Apalavramártir vemdogregomartys (“testemunha”) e, no uso judaico-cristão, designaaquelequeestápreparadoparasofrertorturaemorteemvezderenunciaràsuafé.Seumartírioé,assim,umtestemunhodaquelaféedesuadisposiçãodesofreremorrerporela.Apalavraárabeshahidtambémsignifica “testemunha” e é usualmente traduzida como “mártir”, mas tem uma conotação bastantediferente.Ousoislâmicodotermomartírioénormalmenteinterpretadocomomorteemumajihad,esuarecompensaéabem-aventurançaeterna,descritacomcertodetalheemtextosreligiososmaisantigos.Osuicídio,aocontrário,éumpecadomortale levaàdanaçãoeterna,mesmoparaaquelesque,deoutraforma,teriamgarantidoumlugarnoparaíso.Osjuristasclássicosdistinguemclaramenteentredefrontaramortenasmãosdoinimigoematar-secomasprópriasmãos.Aprimeiralevaaocéu,aoutra,aoinferno.Algunsjuristasfundamentalistasmodernoseoutrostêmobscurecidooumesmorepudiadoessadistinção,massuaopiniãodeformaalgumaéaceitaunanimemente.Ohomem-bomba,portanto,estáassumindoumriscoconsiderável,decorrentedeumasutilezateológica.

Dadoqueaguerrasantaéumaobrigaçãodafé,temumaregulamentaçãoelaboradanashari‘a.Osquelutamemumajihadsãoinstadosanãomatarmulheres,criançaseidosos–amenosqueessesataquemprimeiro–,anão torturaroumutilarprisioneiros,aavisara temposobreorecomeçodashostilidadesapósumatréguaeahonraracordos.Juristaseteólogosmedievaisdiscutemcomcertaminuciosidadeasregrasdaguerra, incluindoquestõescomoarmaspermitidasouproibidas.Existeatéalgumadiscussãonos textos medievais sobre a legalidade de mísseis e guerra química, a primeira relacionada amanganelasecatapultas,asegunda,aflechasenvenenadaseaoenvenenamentodosreservatóriosdeáguado inimigo.Há uma variação considerável a respeito desses pontos. Certos juristas permitem, algunslimitam,outrosdesaprovamousodessasarmas.Arazãoapresentadaparaessecuidadosãoasmortesindiscriminadasqueproduzem.Emnenhummomentoostextosbásicosdoislãordenamoterrorismoeoassassinato. Em momento algum – pelo menos que eu saiba – eles sequer consideram o massacrealeatóriodecircunstantes.

Osjuristasinsistememqueosespóliosdaguerradevemserumbenefícioincidental,nãoopropósitoprincipal.Algunschegamadizerque, sevêma tornar-seoobjetivoprincipal, isso invalidaa jihad eanulaseusbenefícios,senãonessemundo,entãonopróximo.Ajihad,paraterqualquervalorlegal,temque ser empreendida “no caminho de Deus” e não em nome de ganhos materiais. Existem, todavia,reclamações freqüentes sobre o uso do honrado nome da jihad para propósitos desonrosos. Juristasafricanos,emparticular,lamentamousodotermojihadporcaçadoresdeescravosparajustificarsuasdepredações e estabelecer a propriedade legítima de suas vítimas. A Lei Sagrada prescreve bomtratamentoparanão-combatentes,masconcedeaosvencedoresdireitosextensivossobreapropriedadeetambémsobreaspessoaseasfamíliasdosvencidos.DeacordocomocostumeuniversaldaAntigüidade,

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inimigoscapturadosnaguerraeramescravizados,juntocomsuasfamílias,epoderiamservendidosoumantidospelovencedorparaseuuso.Oislãtrouxeumamodificaçãodessaregra,limitandoodireitoàescravizaçãoapenasdaquelescapturadosemumajihad,eemnenhumaoutraformadeguerra.

As regras relativas a uma guerra contra apóstatas são um tanto diferentes, e sem dúvida maisrigorosasqueasparaumaguerracontrainfiéis.Oapóstataourenegado,aosolhosmuçulmanos,émuitopiordoqueoinfiel.Oinfielnãoviualuz,ehásempreaesperançadeque,umdia,eleaveja.Nomeiotempo,desdequeatendaàscondiçõesnecessárias,podemereceratolerânciadoEstadomuçulmanoeterpermissão para continuar a praticar sua própria religião e até mesmo aplicar suas próprias leisreligiosas.O renegado é alguém que conheceu a fé verdadeira, não importa se por pouco tempo, e aabandonou.Não existe perdão humanopara essa ofensa, e, de acordo coma esmagadoramaioria dosjuristas,orenegadodevesermorto,seforhomem.Seformulher,podesersuficienteumapuniçãomaisleve,comoflagelaçãoeprisão.Amisericórdiadivinapodeperdoá-lonooutromundo, seDeusassimescolher. Nenhum ser humano tem autoridade para tanto. Essa distinção é de alguma importânciaatualmente,quandolíderesmilitantesproclamaramumajihaddupla–contraestrangeirosinfiéisecontraapóstatas domésticos. A maior parte, se não a totalidade, dos governantes muçulmanos que nós, noOcidente, temos o prazer de ver como nossos amigos e aliados é vista por muitos – ou talvez pelamaioriadeseuprópriopovo–comotraidorese,muitopiorqueisso,comoapóstatas.

Desde os tempos antigos foi feita uma distinção legal entre territórios adquiridos pela força(‘anwatanemárabe,oequivalenteavietarmisnodireitoromano)eosadquiridossulhan, istoé,poralgumaformade tréguaourendiçãopacífica.Asregrasrelativasabutime,emtermosmaisgerais,aotratamentodapopulaçãodoterritóriorecém-adquiridodiferememalgunsaspectosnotáveis.Deacordocomatradição,adiferençaerasimbolizadanamesquita todasassextas-feiras.Emterritórios tomados‘anwatan,oimamelevavaumaespada;naquelestomadossulhan,umbastãodemadeira.Aimagemdaespadacontinuaaserimportante.Atéhoje,abandeirasauditatemdoisemblemasemumcampoverde.Uméotextoemárabedocredomuçulmano:“NãoexisteoutrodeusalémdeDeus,MaomééoprofetadeDeus.”Ooutroéumainequívocarepresentaçãodeumaespada.

Em certos períodos, os juristas reconheceram um status intermediário, aCasa da Trégua (Dar al-Sulh)ouCasadaAliança(Daral-‘Ahd),entreasCasasdaGuerraedoIslã.EssasCasasintermediáriaseram formadasporpaísesnão-muçulmanos,usualmente cristãos, cujosgovernantes entraramemalgumtipo de acordo com os governantes do islã: pagavam uma forma de taxa ou tributo, visto como oequivalentedajizya,ouimpostoporcabeça,econservavamumaltograudeautonomiaemseusassuntosinternos. Um exemplo mais antigo foi o acordo feito pelos califas Omíadas no século VII com ospríncipes cristãos da Armênia. O exemplo clássico daDar al-Sulh, ou Casa da Trégua, foi o pactoacordadoem652d.C.comosgovernantescristãosdaNúbia,segundooqualnãopagavamataxa,masproviam um tributo anual, consistindo em um número específico de escravos. Ao fazer a opção deconsiderar presentes como tributos, os governantesmuçulmanos e seus conselheiros jurídicos podiamajustar a lei para cobrir uma grande variedade de relações políticas, militares e comerciais com asnaçõesnão-muçulmanas.Essaabordagemnãodesapareceuinteiramente.

***Desde temposmais antigos, osmuçulmanos sabiam que havia certas diferenças entre os povos da

Casa daGuerra.Amaior parte deles era constituída simplesmente de politeístas e idólatras, que nãorepresentavam qualquer ameaça séria ao islã e eram prováveis candidatos à conversão. Esses eramencontrados principalmente na Ásia e na África. A principal exceção eram os cristãos, que osmuçulmanosreconheciamcomotendoumareligiãodomesmotipodasuae,portanto,sendoseusmaioresrivais naguerra pela dominaçãodomundo–ou, como teriamdefinido, pela iluminaçãodomundo.A

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cristandadeeoislãsãoduascivilizaçõesdefinidasapartirdesuasreligiões,eentraramemconflitonãoporsuasdiferenças,maspelassemelhanças.

AmaisantigaedificaçãoreligiosamuçulmanaquesobreviveforadaArábia,oDomodaRocha,emJerusalém,foicompletadaem691ou692d.C.Aconstruçãodessemonumentonolugardoantigotemplojudeu, no estilo e na vizinhança de monumentos cristãos tais como o Santo Sepulcro e a Igreja daAscensão, enviou uma inequívoca mensagem aos judeus e, mais importante ainda, aos cristãos. Asrevelaçõesrecebidasporesses,emboraautênticas,haviamsidocorrompidasporseusindignosguardiãeseforam,portanto,suplantadaspelarevelaçãofinaleperfeitaencarnadanoislã.Assimcomoosjudeushaviamsidovencidosesuperadospeloscristãos,tambémaordemmundialcristãseriaagorasubstituídapelafémuçulmanaepelocalifadoislâmico.Parasalientaraquestão,aspalavrasdoAlcorãoinscritasnoDomodaRochadenunciamoqueosmuçulmanosvêemcomoosprincipaiserroscristãos:“BenditosejaDeus, quenãogerounenhum filho enão temnenhumsemelhante” e “Ele éDeus, uno, eterno.Elenãogerou,Elenãofoigerado,eElenãotemsemelhante.”(AlcorãoCXII)Issoera,claramente,umdesafioàcristandadeemseupróprioberço.Ummilêniomaistarde,quandotropasnorte-americanasestacionaramnaArábia,issofoivistopormuitosmuçulmanos,enotavelmenteporOsamabinLaden,comoumdesafiosimilar,dessavezvindodacristandadecontraoislã.

Visandoreforçaraqueledesafioinicialàcristandade,ocalifa,pelaprimeiravez,fezcunharmoedasdeouro,atéentãoumaprerrogativaimperialromana.Ésignificativoqueonomedaprimeiramoedadeouro islâmica, o dinar, tenha sido tomado emprestado do denarius romano. Algumas dessas moedastraziam o nome do califa, seu título de Comandante dos Fiéis e osmesmos versículos polêmicos. Amensagem era clara. No entendimento muçulmano, os judeus e, mais tarde, os cristãos, haviam-sedesencaminhadoeseguidofalsasdoutrinas.Asduasreligiões,portanto,foramsuperadasesubstituídaspeloislã,arevelaçãofinaleperfeitanasucessãodeDeus.OsversículosdoAlcorãoinscritosnoDomoenasmoedasdeourocondenamoque,paraosmuçulmanos,éapiordascorrupçõesàféverdadeira.Hátambém,porcerto,umamensagemadicionaldocalifaparao imperador:“Sua féestácorrompida, seutempopassou,agorasoueuogovernantedoimpériodeDeusnaterra.”

Amensagemfoibemcompreendida,eacunhagemdemoedasdeourovistapeloimperadorcomoumcasusbelli. Pormais demil anos, a partir de suas sucessivas capitais emMedina,Damasco,Bagdá,Cairo e Istambul, os califas do islã fizeramguerra contra os imperadores cristãos emConstantinopla,Vienae,posteriormente, soboutros títulos, empaíses a oestemais distantes.Cadaumdesses, em seutempo,foioprincipalalvodajihad.

Naprática,porcerto,aaplicaçãodadoutrinadajihadnemsempreerarigorosaouviolenta.Oestadode guerra canonicamente obrigatório poderia ser interrompido para o que era então definido pela leicomotrégua,masestadiferiaumpoucodoschamadostratadosdepazquenaçõeseuropéiasemguerraassinavam umas com as outras. Tais tréguas eram feitas pelo Profeta com seus inimigos pagãos, e setornaramabasedoquepodeserchamadodireitointernacionalislâmico.Deacordocomasharia,tolerarasreligiõesbaseadasemrevelaçõesdivinasanterioresnãoeraummérito,masumaobrigação(AlcorãoII,256:“Nãohácompulsãona religião.”).Nas terrassobgovernomuçulmano,a lei islâmica requeriaquejudeusecristãostivessemapermissãodepraticarsuasreligiõesecuidardeseusprópriosnegócios,sujeitosacertas restrições, sendoamais importanteuma taxa imposta sobre todososhomensadultos.Essataxa,chamadajizya,estáespecificadanoAlcorãoIX,29:“LutecontraaquelesquenãoacreditamemDeusounoúltimodia,quenãoproíbemoqueDeuseSeusApóstolosdeclararamproibido,quenãopraticamareligiãodaverdade,emborasejamoPovodoLivro[i.e.,judeusecristãos],atéquepaguemajizya, direta ehumildemente.”Asúltimaspalavras têm tido interpretaçõesvariadas, tantona literaturacomonaprática.

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Outras limitações incluíam o uso de vestimentas ou símbolos distintivos e a proibição de portararmas, andar a cavalo, possuir escravos muçulmanos ou ocupar um ponto mais elevado que asconstruções muçulmanas. Exceto pelas duas últimas e a jizya, nem sempre tinham uma imposiçãorigorosa.Emcompensação,ossúditosnão-muçulmanostoleradospeloEstadomuçulmanodesfrutavamdegrandeautonomianaconduçãodeseusnegóciosinternoscomunitários,incluindoeducação,taxaçãoeaaplicaçãodesuasprópriasleiscivis,especialmentecasamento,divórcioeherança.OpactooucontratoentreoEstadomuçulmanoeumacomunidadenão-muçulmananeleresidenteerachamadodhimma,eosmembrosdessacomunidade toleradaeramdhimmis.Em termosmodernos, judeusecristãosnoEstadoislâmico clássico eram o que chamaríamos cidadãos de segunda classe –mas eramuitomelhor umacidadaniadesegundaclasseestabelecidaporleierevelação,ereconhecidapelaopiniãopública,doqueatotalfaltadecidadaniaaqueestavamdestinadososnão-cristãosemesmoalgunscristãosdesviantesnoOcidente.

Ajihadtambémnãoimpediuosgovernosmuçulmanosdeocasionalmentebuscaremaliadoscristãoscontramuçulmanosrivais,mesmoduranteascruzadas.

1EsseseoutrostextossobreajihadserãoencontradosnasediçõesstandarddastradiçõesdoProfeta,algunsdelestambémdisponíveiseminglês.Oscitadosacimaforamtiradosde‘Alaal-Din‘AliibnHusamal-Dinal-Muttqi,Kanzal-‘Ummal,8partes(Hiderabad,1312;1894-1895),vol.2,p.252-86.

2Emportuguês,Hégira.

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3|DeCruzadosaImperialistasAscruzadasocupamespaçoproeminentenaconsciênciaenodiscursodomodernoOrienteMédio,

tanto dos árabes nacionalistas quanto dos fundamentalistas islâmicos, notadamente Osama bin Laden.Nemsemprefoiassim.

AtomadadeJerusalémpeloscruzadosem1099d.C.foiumtriunfoparaacristandadeeumdesastreparaosmuçulmanosetambémparaosjudeusqueviviamnacidade.Ajulgarpelahistoriografiaárabedoperíodo,suscitoumuitopoucointeressenaregião.ApelosdeajudadosmuçulmanoslocaisaDamascoeBagdá permaneceram sem resposta, e os recém-estabelecidos principados cruzados, de Antioquia aJerusalém, logo se encaixaram no padrão de jogo político do Levante, com alianças multirreligiosasenvolvendopríncipesmuçulmanosecristãosetambémcomrivalidadesinternasemcadaumdessesdoisgrupos.

Agrandecontracruzadaqueacabariaporvencereexpulsaroscruzadosnãocomeçousenãoquaseumséculomaistarde.Suacausaimediataforamasatividadesdeumlídercruzadoflibusteiro,ReinaldodeChâtillon,quedominouafortalezadeKerak,nosuldaatualJordânia,entre1176e1187d.C.,usando-apara lançar uma série de ataques-surpresa contra caravanas muçulmanas e o comércio das regiõesvizinhas, incluindooHijaz.Os historiadores das cruzadas estão provavelmente certos emdizer que amotivaçãodeReinaldoeraprincipalmenteeconômica;emoutraspalavras,abuscadepilhagens.Masosmuçulmanosviramsuascampanhascomoumaprovocaçãoeumdesafioaoslugaressagradosdoislã.

Em 1182, violando um acordo entre o cruzado rei de Jerusalém e o líder muçulmano Saladino,Reinaldoatacouesaqueoucaravanasmuçulmanas,incluindoumadeperegrinosquesedirigiamaMeca.Aindamaisabominável,dopontodevistamuçulmano, foisuaameaçaàArábiae,especialmente,umaexpediçãopiratanomarVermelho,consistindoemataquesanaviosmuçulmanoseaosportosdoHijazque serviamMeca eMedina. Foram esses eventos que levaram Saladino diretamente a declarar umajihad contraoscruzados–umexemplovívidoda importânciacentraldaArábiasegundoaconcepçãoislâmica.

AsvitóriasdeSaladinoesuatomadadeJerusalémdasmãosdoscruzados,em1187,têmsidodesdesempre, e até hoje, uma fonte de inspiração para líderes árabes. Saddam Hussein refere-sefreqüentementeadoisdirigentesdo Iraqueque sustenta serempredecessoresde suamissão:Saladino,queacaboucomaameaçaocidentaldoseutempo,vencendoeexpulsandooscruzados,eNabucodonosor,quelidourápidaedecisivamentecomoproblemasionista.Em8deoutubrode2002,oprimeiro-ministrofrancês,Jean-PierreRaffarin,emumpronunciamentoperanteaAssembléiaNacionalfrancesa,referiu-seacomoSaladinofoicapazde“derrotaroscruzadosnaGaliléiaelibertarJerusalém”.Esseinteressanteusodapalavralibertarporumprimeiro-ministrofrancêsparadescrevercomoSaladinotomouJerusalémdos cruzados pode ser um reflexo de realinhamentos atuais ou, alternativamente, um caso de extremacorreção política. Em alguns outros países, essa formulação poderia ser atribuída à ignorância dahistória,mascertamentenãonaFrança.

MesmonaEuropacristã,Saladinoeracelebradoeadmirado,comjustiça,pelamaneiracavalheirescaegenerosacomotratavaseusinimigosvencidos.Essetratamento,contudo,nãofoiestendidoaReinaldode Châtillon. O grande historiador árabe Ibn al-Athir explica as circunstâncias. “Duas vezes [disseSaladino]euhaviajuradomatá-loseotivesseemminhasmãos:quandoeletentoumarcharcontraMecaeMedinae,maisumavez,quando traiçoeiramentecapturouacaravana [que iaparaoHijaz].”1Após agrandevitóriadeSaladino,quandomuitosdospríncipesecapitãescruzadosforamfeitosprisioneirosemais tarde libertados, ele separou Reinaldo de Châtillon dos demais e o matou e decapitou com as

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própriasmãos.ApósosucessodajihadearetomadadeJerusalém,Saladinoeseussucessoresparecemterperdido

interessepelacidade,eumdeleschegouacederJerusalémaoimperadorFredericoII,em1229,comopartedeumacordoentreochefemuçulmanoeoscruzados.Acidadefoi recobradaem1244,apósoscruzados tentarem fazer dela uma cidade puramente cristã. Depois de longo período de relativaobscuridade,o interessepelacidade foi reavivadonoséculoXIX,primeiropelasaltercaçõesentreasautoridadeseuropéiassobreacustódiadoslugaressagradoscristãose,emseguida,pelanovaimigraçãojudia.

FoitambémnoséculoXIXquesurgiuointeressedosmuçulmanospelascruzadas,emcontrastecomonotávelgraudedesinteressequemostrarampelasmesmasnaépocaemqueocorreram.Avastae ricahistoriografia árabe do período registra adequadamente a chegada dos cruzados, suas batalhas e osEstados que estabeleceram, mas mostra pouca ou quase nenhuma compreensão da natureza e dospropósitos de seus empreendimentos. As palavras cruzada e cruzado nem ao menos ocorrem nahistoriografiaárabedaépoca:oscruzadossãodesignadosporinfiéis,cristãosou,maisfreqüentemente,francos,umtermogenéricoparacristãoseuropeuscatólicos–e,maistarde,tambémparaprotestantes–usadoafimdedistingui-losdeseuscorreligionáriosortodoxoseorientais.AvisãodascruzadascomoumfenômenohistóricodistintodatadoséculoXIX,bemcomoatraduçãodelivrosdehistóriaeuropeus.Desde então, existe um novo entendimento das cruzadas como um protótipo inicial da expansão doimperialismoeuropeusobreomundo islâmico.Umadescriçãomaisprecisaasapresentariacomoumarespostaàjihad– tardia,muito limitadae,porúltimo,semnenhumefeito.Ascruzadas terminaramemfracassoederrotaeforamrapidamenteesquecidasnasterrasdoislã,masposterioresesforçoseuropeuspara resistir aoavançomuçulmanosobrea cristandadee revertê-lo tiverammais sucesso, iniciandooquesetornouumasériededurasderrotasnasfronteirasdomundoislâmico.

Duranteocalifadoárabemedievale,novamente,sobasdinastiaspersaeturca,oImpériodoislãeraamaisrica,maispoderosa,maiscriativaeesclarecidaregiãodomundo,enodecorrerdamaiorpartedaIdadeMédiaacristandadeestevenadefensiva.NoséculoXV,ocontra-ataquecristão seampliou.Ostártaros foram expulsos da Rússia, e osmouros, da Espanha.Mas no sudeste europeu, onde o sultãootomanoconfrontou-seprimeirocomoimperadorbizantinoedepoiscomodoSacroImpérioRomano,opodermuçulmanoprevaleceu,eesseseoutrosrevesesforamvistoscomoperiféricose insignificantes.No séculoXVII, paxás turcos ainda governavam emBudapeste e Belgrado, exércitos turcos sitiavamViena e corsários bárbaros atacavam navios e praias distantes, como as da Inglaterra e Irlanda e, àsvezes, até mesmo daMadeira e da Islândia. Os corsários erammuito ajudados em seu trabalho poreuropeusque,porumarazãoououtra,estabeleceram-senaÁfricadoNorteelhesensinaramaconstruir,equipareoperarnaviosnomardoNorteemesmonoAtlântico.Essafasenãoduroumuito.

Eveioentãoagrandemudança.OsegundosítioturcodeViena,em1683,terminouemfracassototal,seguido por uma longa retirada – uma experiência totalmente nova para os exércitos otomanos. Essaderrota,sofridapeloqueeraentãoamaiorpotênciamilitardomundomuçulmano,deuorigemaumnovodebateque,decertomodo,estende-seatéosdiasdehoje.Adiscussãocomeçouentreaselitesotomanas–militares,políticase,posteriormente,intelectuais–comoumexamededuasquestões:porqueosatéentãoinvictosexércitosotomanoshaviamsidoderrotadospelomenosprezadoinimigocristão?Ecomosua antiga dominância poderia ser restaurada? Com o tempo, o debate estendeu-se das elites paracírculoscadavezmaisamplos,daTurquiaparamuitosoutrospaíses,abrangendocadavezmaiornúmerodeaspectos.

Haviaumaboarazãoparaapreocupação.Seguiram-sederrotasemaisderrotas,easforçaseuropéiascristãs, tendo liberadosuaspróprias terras,perseguiamosantigos invasoresatéasdelesnaÁsiaena

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África.MesmopequenosgovernoseuropeuscomoHolandaePortugalforamcapazesdeconstruirvastosimpériosnoLesteedesempenharumpapeldominantenocomércio.Em1593,umoficialotomanoquetambémserviacomocronistadeeventosemcurso,SelanikiMustafaefêndi, registrouachegadadeumembaixador inglês a Istambul. Não demonstrou grande interesse pelo embaixador, mas estava muitointrigadocomonavioinglêsnoqualeleviajava:“UmnaviotãoestranhoquantoessenuncahaviaentradonoportodeIstambul”,escreveu.“Cruzou3.700milhasdemarecarregava83canhões,alémdeoutrasarmas… era o assombro da época, nunca nada semelhante fora visto ou registrado.”2 Outra fonte demaravilhamentoeraosoberanoquehaviaenviadooembaixador:“OgovernantedailhadaInglaterraéumamulherquegovernaoreinoqueherdou…compodertotal.”

Umdetalheadicional,nãomencionadopelohistoriadorotomano,eratambémdealgumaimportância.OembaixadoringlêsemquestãohaviarealmentesidonomeadopelarainhaElizabethI,masescolhidoeapoiadonãopelogovernoinglês,masporumacorporaçãodecomércio–umarranjoútilnumtempoemqueosnegócioseramamaiorpreocupaçãodomundoocidentalnoOrienteMédio.Defato,foiarápidaeinovadora expansão tecnológica e econômicadoOcidente– a fábrica, onavio cargueiro, a sociedadeanônima–quemarcouocomeçodanovaera.NaviosdaEuropaocidentalprojetadosparaoAtlântico,podiam facilmente superar o desempenho de outros feitos para oMediterrâneo, o mar Vermelho e ooceanoÍndico,tantonaguerraquantonocomércio,eaquelecomércioeraaindamaisfortalecidopordoishábitos ocidentais: cooperação e competição. Por volta do século XVIII, produtos tradicionais doOrienteMédio,comocaféeaçúcar,estavamsendocultivadosnasnovascolôniasocidentaisnaÁsiaenasAméricaseexportadosparaoOrienteMédioporcomerciantesecorporaçõesocidentais.AtémesmoperegrinosmuçulmanosviajandodosulesudestedaÁsiaparaascidadessagradasdaArábiaalgumasvezesfaziamreservasemnavioseuropeus–maisrápidos,baratos,seguroseconfortáveis.

Paraamaiorpartedoshistoriadores,tantoosocidentaisquantoosdoOrienteMédio,oiníciooficialda históriamoderna noOrienteMédio data de 1798, quando aRevoluçãoFrancesa, na pessoa de umjovemgeneralchamadoNapoleãoBonaparte,aportounoEgito.Emumtempoextraordinariamentecurto,ogeneralBonaparteesuapequenaforçaexpedicionáriaforamcapazesdeconquistar,ocuparegovernaropaís.Antesdisso,haviaocorridoataques,retiradaseperdasdeterritórionasfronteirasremotas,ondeosturcoseospersasenfrentaramaÁustriaeaRússia.Masverumapequenaforçaocidentalinvadirumadasáreasvitaisdoislãcausouumchoqueprofundo.Apartidadosfranceses,numcertosentido,foiumchoque aindamaior. Foram forçados a sair do Egito não pelos egípcios, nem por seus suseranos, osturcos,mas por um pequeno esquadrão daMarinha Real inglesa comandado por um jovem almirantechamadoHorácioNelson.Essafoiasegundaamargaliçãoqueosmuçulmanostiveramdeaprender:nãoapenasumaforçaocidentalpodiachegar,invadiregovernarcomolheaprouvesse,masapenasumaoutraforçaocidentalpoderiaexpulsá-la.

Imperialismoéumtemaparticularmente importantenoOrienteMédioe,sobretudo,nocasodoislãcontra oOcidente. Para eles, a palavra imperialismo tem um significado especial. Essa palavra, porexemplo,nuncaéusadapelosmuçulmanosdosgrandesimpériosmuçulmanos–oprimeirodelesfundadopelos árabes, os últimos pelos turcos, que conquistaram vastos territórios e populações e osincorporaram àCasa do Islã.Era perfeitamente legítimopara osmuçulmanos conquistar e governar aEuropaeoseuropeuse,assim,possibilitar–masnãoobrigar–queabraçassemaféverdadeira.Eraumcrime e um pecado para os europeus conquistar e governar os muçulmanos e, pior ainda, tentardesencaminhá-los.Segundoavisãomuçulmana,aconversãoaoislamismoéumbenefícioaoconvertidoeumméritodosqueoconvertem.Noscânonesmuçulmanos,arenúnciaaoislamismoéumaapostasia–umaofensacapital tantoparaoqueémal-encaminhadoquantoparaoqueodesencaminha.Sobreessaquestão, a lei é clara e inequívoca. Se um muçulmano renuncia ao islã, mesmo que seja um novomuçulmano voltando à sua fé anterior, a penalidade é amorte.Nos temposmodernos, o conceito e a

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práticadetakfir,reconheceredenunciaraapostasia,têmsidomuitoampliados.Nãoépoucousualemcírculos extremistas e fundamentalistas decretar que determinada política, ação oumesmo fala de ummuçulmanoprofessoequivaleaumaapostasiaepronunciarumasentençademortecontraoacusado.FoiesseoprincípioinvocadonasfatwascontraSalmanRushdie,noassassinatodopresidenteSadatemuitosoutros.

Asatividadeseuropéiasemterrasislâmicaspassarampordiversasfases.Aprimeirafoideexpansãocomercial, vista pelos muçulmanos como exploração deles mesmos e de seus países, tanto comomercadosquantocomofontesdematérias-primas.Depoisvieramainvasãoarmadaeaconquista,atravésdasquaisasnaçõeseuropéiasestabeleceramumadominaçãoefetivasobreimportantesáreasdomundoislâmico–osrussosnoCáucasoeemterrastranscaucasianase,maistarde,naÁsiaCentral;osinglesesnaÍndia;osingleseseosholandesesnaMalásiaeIndonésia;e,nafasefinal,osingleseseosfrancesesno OrienteMédio e na África do Norte. Nesses lugares, os imperialistas governaram por diferentesperíodos–emalguns,comonosudesteasiáticoenaÍndia,duranteséculos;emoutros,comonasterrasárabesdoOrienteMédio,porintervalosrelativamentecurtos.

Emqualquerdoscasos,deixaramsuamarca.Nomundoárabe,operíododedomínioimperialanglo-francês começoucomos francesesnaArgélia (1830) eos ingleses emÁden (1839); continuoucomaocupaçãoinglesadoEgito(1882),aextensãodocontrolefrancêsàTunísia(1881)eaoMarrocos(1911)e da ascendência britânica sobre o Golfo Pérsico; e chegou ao ponto máximo com a divisão dasprovíncias árabes otomanas do Crescente Fértil entre os doismaiores impérios da Europa ocidental.Dessavez,osterritóriosrecém-adquiridosnãoforamsimplesmenteanexadosnoestilotradicional,comocolôniasoudependências.AInglaterraeaFrança,comopoderesmandatários,receberamaincumbênciade administrá-los, sob a jurisdição daLiga dasNações, com a tarefa explícita de prepará-los para aindependência. Esse foi um episódio muito breve, começando após a Primeira Guerra Mundial eterminando após a Segunda, quando os mandatos foram encerrados e os territórios administradostornaram-seindependentes.AmaiorpartedaPenínsulaArábicapermaneceuforadosdomíniosimperiais.

Apesardisso,oimpactodoimperialismofoivistocomoimensoe,aosolhosdamaioriadaspessoasda região, totalmente prejudicial. O impacto e o dano foram, sem dúvida, consideráveis, masprovavelmente menos extensos e menos unidimensionais do que as mitologias nacionalistas teriamsustentado.Afinal,houvealgunsbenefícios– infra-estrutura, serviçospúblicos, sistemaseducacionais,bemcomoalgumasmudançassociais,notadamenteaaboliçãodaescravidãoeaconsiderávelredução,emboranãoaeliminação,dapoligamia.Ocontrastepodeservistomuitoclaramentecomparando-seospaísesquesofreramsobojugoimperial,comooEgitoeaArgélia,comaquelesquenuncaperderamsuaindependência,comoaArábiaeoAfeganistão.NaArábiaSaudita,asuniversidadessurgirammaistarde,eempequenonúmero.Atualmente,paraumapopulaçãoestimadaem21milhões,háoitouniversidades–umaamaisqueas sete instituiçõesdeensino superior criadaspelospalestinosdesdeaocupaçãodosterritóriosporIsraelem1967.AescravidãosófoilegalmenteabolidanaArábiaSauditaem1962,easubjugaçãodasmulherespermaneceemplenavigência.

Mascertamenteoimperialismoe,emtermosmaisamplos,ainfluênciaocidentaloueuropéiativeramconseqüências negativas consideráveis, mesmo naqueles países que conseguiram manter suaindependência política, como a Turquia e o Irã. É notável, entre os efeitos da modernização, ofortalecimento da autoridade do Estado pela consolidação do aparato de vigilância, repressão edoutrinaçãoe,aomesmotempo,oenfraquecimentooueliminaçãodaquelespoderesintermediáriosque,na ordem tradicional, limitavam o poder efetivo de governantes autocráticos. A mudança social e orompimentodeantigasrelaçõeseobrigaçõessociaistrouxeramgrandedanoàsociedadeecriaramnovosecrescentescontrastes,queosmeiosdecomunicaçãomodernostornaramcadavezmaisvisíveis.Jáem

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1832, um sagaz observador britânico, um jovem oficial naval chamado Adolphus Slade, notara essadiferençaentreoquechamouaantiganobrezaeanovanobreza.3Aantiganobreza,disseele,viviaemsuas propriedades. Para a nova nobreza, suas propriedades eram o Estado. Isso continua valendo emgrandepartedaregiãoatéosdiasdehoje.

NoiníciodoséculoXX,emboraumaindependênciaprecáriafossemantidapelaTurquia,peloIrãepor algunspaísesmais afastados comooAfeganistão – que, naquela época, não parecia valer a penainvadir –, quase todo o mundo muçulmano havia sido incorporado aos quatro impérios europeus(Britânico, Francês, Russo e Holandês). Governos e facções do Oriente Médio foram forçados aaprenderajogaressespoderososrivaisunscontraosoutros.Durantealgumtempo,ojogofuncionoucomalgumsucesso.Dadoqueosaliadosocidentais–Grã-BretanhaeFrança,edepoisosEstadosUnidos–dominavam de fato a região, os oponentes do OrienteMédio naturalmente buscaram apoio junto aosinimigosdaquelesaliados.NaSegundaGuerraMundial,voltaram-separaaAlemanha;naGuerraFria,paraaUniãoSoviética.

Jáem1914,aAlemanha,entãoaliadadoImpérioOtomano,tentoumobilizarsentimentosreligiososentreossúditosmuçulmanosdosimpériosBritânico,FrancêseRussocontraseussenhoresimperiaise,portanto,emfavordaAlemanha.Oesforçoproduziuparcosresultados,e foi fortementeridicularizadopelograndeorientalistaholandêsSnouckHurgronjeemumfamosoartigointitulado“Guerrasanta:madeinGermany”.4

Ondeokaiserhaviafalhado,Hitlerfoi,poralgumtempo,consideravelmentebem-sucedido.Nofinaldemarço de 1933, poucas semanas apósHitler subir ao poder, omufti de Jerusalém,Hajj Amin al-Husseini,abordouocônsul-geralalemãonacidade,HeinrichWolff,eofereceuseusserviços.Aorelataressa oferta a Berlim, o cônsul recomendou que fosse rejeitada ou, no mínimo, ignorada. Enquantohouvesse alguma esperança de ganhar o Império Britânico como um aliado da Alemanha, não haviasentido em antagonizar os ingleses formando associações com o que era então um movimentoprincipalmenteantibritânico.FoisódepoisdosacordosdeMunique,em1938,quandoHitlerfinalmentedesistiuderecrutarosbritânicosparaumaaliançaarianacomaAlemanha,queaspropostasdaliderançapalestina foram aceitas.A partir de então, e ao longo dos anos da guerra, suas ligações forammuitopróximas, e o mufti, de seu escritório nos arredores de Berlim, desempenhou papel significativo napolítica interárabe.Em1941,comaajudaalemãatravésdaSíria (controladaporVichy),Rashid ‘Aliconseguiu, durante algum tempo, estabelecer um regime pró-Eixo no Iraque. Foi derrotado por tropasaliadasejuntou-seaomuftinaAlemanha.MesmoAnwarSadat,segundoelemesmoadmitiu, trabalhoucomoumespiãoalemãonoEgitoocupadopelosbritânicos.5

AderrotadaAlemanhaeocolapsodoTerceiroReichedesuasváriasagênciasdeixaramumvazioamargo. Como visto por muitos, foi durante o interlúdio que se seguiu que, em 1948, os judeusconseguiramestabelecerseuEstadoeinfligirumaderrotahumilhanteaosexércitosárabesenviadosparaimpedi-los.Necessitava-se,comurgência,deumnovopatronoeprotetor,deumsubstitutodoTerceiroReich,quefoiencontradonaUniãoSoviética.

EentãoveioocolapsodaUniãoSoviética,quedeixouosEstadosUnidoscomoaúnicasuperpotênciamundial.AerahistóricadoOrienteMédioinauguradaporBonaparteeNelsonhaviasidoencerradaporMikhailGorbacheveGeorgeBushsênior.Noinício,pareciaque,comaretiradadosdoisadversários,aera de rivalidade imperial estava terminada – a União Soviética não poderia desempenhar o papelimperial, e osEstadosUnidosnãoo fariam.Masnãodemoroumuitopara queos acontecimentos, emespecialaRevoluçãoIranianaeasguerrasdoditadoriraquianoSaddamHussein,forçassemosEstadosUnidosaseenvolveremmaisdiretamentenosassuntosdaregião,oquefoiconsideradopelospovosdalicomoumanovafasedeumvelhojogoimperial.Osnorte-americanosnãopensavamassim,emostraram

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nãoteroanseiodeassumirumpapelimperialenemaaptidãoparatanto.Oslíderesmuçulmanos,tantonogovernoquantonaoposição,reagiramdediferentesmaneirasaessa

nova situação. Para alguns, a resposta natural foi buscar umnovo patrono – um sucessor doTerceiroReichedaUniãoSoviéticaaoqualpudessemrecorrerparaincentivo,apoioeajudanaguerracontraoOcidente.Comoumblocodepoder,oOcidente,nessemeiotempo,havia-semovidomaisparaooeste,eagoraconsistia,essencialmente,nosEstadosUnidos,abrindoumanovaeinteressantepossibilidadeparaa Europa continental assumir o papel de opositor. De fato, alguns europeus, partilhando, por razõespróprias,dorancorehostilidadedoOrienteMédiocontraosEstadosUnidos,mostraramdisposiçãodeaceitaressepapel.Mas,emborapossamteraintenção,faltam-lhesosmeios.

OcolapsodaUniãoSoviética,seguidopeladerrotadeSaddamHusseinnaGuerradoGolfode1991,foi um golpe devastador para osmovimentos nacionalistas seculares, especialmente o dos palestinos,que, uma vez mais, como em 1945, encontraram-se desprovidos de um patrono poderoso que osauxiliasse na defesa da causa. Seu protetor soviético havia desaparecido.Mesmo os árabes que lhesdavamsuportefinanceironoKuwaitenaArábiaSaudita,enraivecidospeloentusiásticoapoiopalestinoa Saddam Hussein, suspenderam por algum tempo seus subsídios, deixando os palestinos isolados,empobrecidos e enfraquecidos. Foi essa situação que os forçou a pensar o impensável e iniciar umprocessodepazcomIsrael.AOLPfoiresgatadapelosnorte-americanoseisraelensesdeumamaneiraconsiderada ignominiosa pelos fundamentalistas, e induzida a entrar em um diálogo humilhante comIsrael.

Tudoissodeumaiorplausibilidadeàvisãoqueosfundamentalistastêmdomundoemaiorapeloasuacausa.Eles–eOsamabinLaden,emespecial–interpretaramocolapsodaUniãoSoviéticademaneiradiferente.Emseuentendimento,forameles,nãoosnorte-americanos,osvencedoresdaGuerraFria.Aseus olhos, aUnião Soviética não era um auxílio benigno em uma luta comum contra os judeus e osimperialistasocidentais,massimafontedoateísmoedadescrença,aopressorademuitosmilhõesdesúditos muçulmanos, e a invasora do Afeganistão. Conforme seu ponto de vista, de forma nãoimplausível, fora a sua luta no Afeganistão que vencera o poderoso Exército Vermelho e levara ossoviéticos à derrota e ao colapso. Tendo-se livrado do mais feroz e perigoso dentre as duassuperpotênciasinfiéis,suapróximatarefaeralidarcomaoutra,osEstadosUnidos–e,nessaguerra,aspartes envolvidas eram instrumentos e agentes do inimigo infiel. Por uma série de razões, osfundamentalistas islâmicosacreditavamquecombateraAmérica seriauma tarefamais simplesemaisfácil.Paraeles,osEstadosUnidoshaviam-setornadomoralmentecorruptos,socialmentedegeneradose,emconseqüência,políticaemilitarmenteenfraquecidos.Essavisãotemumahistóriainteressante.

1Ibnal-Athir,inAl-Kamilfi’l-Ta’rikh,C.J.Tornberg(org.),vol.11,ano583(Leiden,1853-1864),p.354-5.

2SelanikiMustafaefêndi,inTarih-iSelaniki,MehmetIpsirli(org.),2ªed.,Istambul,1999,p.334.3AdolphusSlade,TurkeyandtheCrimeanWar:ANarrativeofHistoricalEvents(Londres,1867),p.30-2.4Paraumaversãoeminglêsligeiramenterevista,verSnouckHurgronje,VerspreideGeschriften,vol.3(Leiden,1923),p.257ss.5Anwaral-Sadat,Al-Bahth‘anal-dhat(Cairo,1978),p.50-86;versãoeminglês,InSearchofIdentity,anAutobiography(NovaYork,

1978),p.31ss.

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4|DescobrindoaAméricaDurantemuitotempo,notavelmentepoucosesabiasobreaAméricanasterrasdoislã.Noinício,as

viagensdodescobrimentosuscitaramalguminteresse–aúnicacópiaexistentedomapadaAméricafeitopelo próprio Cristóvão Colombo é uma tradução e adaptação turca, ainda preservada no Museu doPaláciodeTopkapiemIstambul.OrelatodeumgeógrafoturcodoséculoXVIsobreodescobrimentodoNovoMundo, intituladoA história das Índias Ocidentais, foi um dos primeiros livros impressos naTurquia,noséculoXVIII.Maso interesseeramínimo,enãomuitofoiditosobreaAméricaemturco,árabeouemoutrosidiomasmuçulmanosatéumaépocarelativamenterecente.ARevoluçãoAmericana,aocontráriodaFrancesadeunspoucosanosdepois,passouquasesemsernotada,eeravista,setanto,comoumtipobemconhecidodeinsurreição.Naépoca,umembaixadormarroquinonaEspanhaescreveuoquedeveser,certamente,oprimeirorelatoárabedaRevoluçãoAmericana:

Oembaixador inglêsdeixouaEspanhaporcausadaguerradeflagradaentreespanhóise ingleses.AcausadissofoiqueopovodaAméricaestavasubmetidoaoreiinglêse,graçasaosimpostosquecoletavanaAmérica,oreieramaisfortequetodososoutrospovoscristãos.Diz-sequeaumentouacargadetaxaseimpostoseenviouumnaviocarregadodecháeosobrigouapagarporelemaisdoqueeracostume.Issoelesrecusaram,epediramaoreiqueaceitasseodinheiroquelheeradevido,massemimportaxasexcessivassobreeles. Isso ele recusou, e eles se rebelaram, buscando a independência.Os franceses os ajudaram em sua rebelião contra os ingleses,esperando,dessamaneira,causardanoaoreiinglêseenfraquecê-lo,porqueeleeraomaisfortedasdiferentesraçasdecristãosnomar.1

OsultãodoMarrocosassinouumtratadodeamizadecomosEstadosUnidosem1787e,apartirdaí,anovaRepúblicapassoua terumgrandenúmerodenegócioscomoutrosEstadosmuçulmanos,algunscordiais,algunshostis,amaiorpartecomercialetodoseleslimitados.

OprimeiroregistrodeumamençãoàAméricacomoumsímbolopolíticonomundoislâmicofoiemIstambul,em14dejulhode1793,quandoorecém-chegadoembaixadordarepúblicafrancesapromoveuumacerimôniapúblicaqueculminoucomumasalvadetirosdedoisnaviosfrancesesancoradosnocaboSeráglio.Segundoo relatodoembaixador,desfraldaramascoresdo ImpérioOtomano,das repúblicasfrancesaenorte-americana,e“asdealgumasoutraspoucasnaçõesquenãohaviammanchadosuasarmasna ímpia liga de tiranos”.2 Um outro embaixador francês em Istambul, general Aubert du Bayet(posteriormente Dubayet), que assumiu o posto em 1796, era, em certo sentido, um norte-americano,tendonascidoemNovaOrleanselutadonoExércitodosEstadosUnidos.EleempreendeualgumesforçoparadisseminarasidéiasdarevoluçãonaTurquia.

Mas essas foram iniciativas francesas, não norte-americanas, e, enquanto as idéias da RevoluçãoFrancesareverberavamemidéiasecorrespondênciasturcas,árabesedeoutrasnacionalidadesdaregiãoao longo do século XIX, a Revolução Americana e a República que dela nasceu permaneceramdespercebidas e até desconhecidas por muito tempo.Mesmo a crescente presença norte-americana –comerciantes, cônsules, missionários e professores – causou pequena ou nenhuma curiosidade, tendorecebidoquasenenhumamençãonaliteraturaenosjornaisdaépoca.Livrosdegeografia,amaiorpartedelestraduzidaouadaptadadeoriginaiseuropeus,incluembrevesrelatosconcretossobreohemisférioocidental; os jornais contêmumas poucas referências dispersas a acontecimentos nosEstadosUnidos,designadosemgeralporumnomequeera a formaarabizadade suadesignação francesa,ÉtatsUnis:Itazuni,oualgosemelhante.

UmlivrodidáticopublicadonoEgitoem1833,traduzidodofrancêseadaptadopelofamosoescritore tradutor xequeRifa‘aRafi‘ al-Tahtawi (1801-1873), contémbrevedescriçãodos Itazuni “como umEstado (dwala) composto de diversas regiões (iqlim), agregadas em uma República no território daAméricadoNorte.Seushabitantessãotribosquevieram…daInglaterraetomarampossedaquelaterra.Entãoselibertaramdojugodosinglesesesetornaramlivreseindependentesporsimesmos.Essepaísestá entre osmaiores países civilizados daAmérica, e nele se permitem o culto de todas as fés e a

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existência de todas as comunidades religiosas.A chefia de seu governo está emuma cidade chamadaWashington”.3Asúltimasfrasessãonotáveis.

NofinaldoséculoXIXeiníciodoséculoXX,deu-seumpoucomaisdeatençãoàAméricaemlivrosdidáticos,enciclopédiasejornais,masaindadeformamuitolimitada,alémdeterparecidorestrita,emsua maior parte, a minorias não-muçulmanas. As referências à América na literatura geral são, noconjunto, nem positivas nem negativas,mas sucintas e descritivas.Missionários, por certo, não eramapreciados em círculos muçulmanos, mas, a não ser por isso, tudo indica não terem sido alvos dedesconfiança e, menos ainda, de ódio. Após o fim da Guerra Civil, alguns oficiais norte-americanosdesempregadosconseguiramatémesmofazercarreiraaserviçodosgovernantesmuçulmanos,ajudando-osamodernizarseusexércitos.Missionáriosnorte-americanos,emboraproibidosdefazerproselitismoentreosmuçulmanos,foramcapazesdetransformaralgunscristãosortodoxosempresbiterianose,maisimportante,deoferecerumamodernaeducaçãosecundaristaeuniversitáriaaquantidadescrescentesderapazes e, posteriormente, demoças – primeiro dasminorias e, por fim, demuçulmanos.Alguns dosformadosporessasescolaschegaramairparaosEstadosUnidosafimdecontinuarsuaformaçãoemescolaseuniversidadesnorte-americanas.Noinício,provinham,principalmente,dasminoriascristãs;nodevido tempo, foram seguidos por cada vezmaior número de compatriotasmuçulmanos, alguns delescusteadospelosgovernosdeseuspaíses.

A SegundaGuerraMundial, a indústria do petróleo e os desenvolvimentos que se deram no pós-guerra levarammuitosnorte-americanosàs terras islâmicas;númeroscadavezmaioresdemuçulmanostambém vieram para a América, primeiro como estudantes, depois como professores, homens denegócios ou visitantes e, finalmente, como imigrantes.O cinema e,mais tarde, a televisão, levaramomododevidanorte-americanoou,dequalquerforma,umacertavisãodeleaincontáveismilhõesparaosquais o próprio nome América não significava nada até então, ou era desconhecido. Uma grandevariedadedeprodutosnorte-americanos–sobretudonosanoslogoapósaguerra,quandoacompetiçãoeuropéiaestavavirtualmenteeliminadaeajaponesaaindanãohaviasurgido–espalhou-seatéosmaisremotosmercadosdomundomuçulmano,ganhandonovosclientese, talvezomais importante,criandonovosgostosenovasambições.Paraalguns,aAméricarepresentavaliberdade,justiçaeoportunidade.Paramuitosmais,representavariqueza,poderesucesso,numtempoemqueessasqualidadesnãoeramvistascomopecadosoucrimes.

Eentãoveioagrandemudança,quandooslíderesdeumarestauraçãoreligiosaamplaeemexpansãotiveram êxito em identificar seus inimigos como os inimigos de Deus e deram a eles “um local deresidência e um nome” no hemisfério ocidental. De repente, ou assim pareceu, a América havia-setornado um arquiinimigo, a encarnação do mal, o oponente diabólico de tudo o que é bom e,especificamenteparaosmuçulmanos,umoponentedoislã.Porquê?

EntreoscomponentesdosentimentoantiamericanistaestavamcertasinfluênciasintelectuaisvindasdaEuropa.Umadessasoriginava-senaAlemanha, ondeuma imagemnegativadaAmérica faziapartedeuma escola de pensamento que incluía escritores tão diversos quanto Rainer Maria Rilke, OswaldSpengler, Ernst Jünger eMartinHeidegger. Para eles, osEstadosUnidos eramo exemplo perfeito decivilizaçãosemcultura;ricaeconfortável,materialmenteavançada,masdesprovidadealmaeartificial;montada ou, no melhor dos casos, construída, mas não arraigada; mecânica, não orgânica;tecnologicamente complexa,mas sem a espiritualidade e vitalidade das culturas enraizadas, humanas,nacionaisdosalemãesedeoutrospovos“autênticos”.Afilosofiaalemãeafilosofiadaeducação,emparticular,desfrutaramdepopularidadeconsiderávelentreintelectuaisárabesedealgunsoutrospaísesmuçulmanosnadécadade1930einíciodadécadaseguinte,eesseantiamericanismofilosóficoerapartedamensagem.

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Aversãonazistadasideologiasalemãstinhainfluênciaemcírculosnacionalistas,especialmenteentreosfundadoreseseguidoresdoPartidoBa‘thnaSíriaenoIraque.ApósarendiçãodaFrançaaosalemãesemjunhode1940,osterritóriossobmandatofrancês,SíriaeLíbano,permaneceramsobocontroledasautoridadesdeVichyeeram,portanto,facilmenteacessíveisparaosalemães,queosusaramcomobasedesuasatividadesnomundoárabe.Notávelentreessasfoiatentativa–temporariamentebem-sucedida–de estabelecer um regime pró-nazi no Iraque.A fundação do PartidoBa‘th data desse período.Essasatividadesterminaramemjulhode1941,comofimdaocupaçãodaSíria-LíbanopelaInglaterraepelaFrançaLivre,masoPartidoBa‘thesuaspeculiaresideologiassobreviveram.

O tema da artificialidade norte-americana e de sua falta de uma identidade genuinamente nacionalcomoadosárabesencontra-secomfreqüêncianosescritosdoPartidoBa’theéocasionalmenteinvocadapor Saddam Hussein, como, por exemplo, em uma fala de janeiro de 2002. Com a continuação dasguerras–aSegundaGuerraMundial,depoisaGuerraFria–,etornando-semaisóbviaaliderançanorte-americananoOcidente,apartedoódioresultantequecoubeàAméricatornou-semaissignificativa.

ApósocolapsodoTerceiroReicheofimdainfluênciaalemã,outropodereoutrafilosofia,aindamaisantiamericanos,tomaramseuslugares:aversãosoviéticadomarxismo,denunciandoocapitalismoocidentaleidentificandoosEstadosUnidoscomosuaformamaisavançadaemaisperigosa.Ofatodequeosrussosgovernassem,enãocommãobranda,ovastoimpérioasiáticoconquistadopelosczaresereconquistadopelossoviéticosnãoosimpediudeposar,comconsiderávelsucesso,comooscampeõesepatrocinadoresdosmovimentosantiimperialistasquevarreramomundoapósaSegundaGuerraMundial,em especial, mas não exclusivamente, no Oriente Médio. Em 1945, assim parecia naquele tempo, osocialismoeraaondadofuturo.NaEuropaoriental,aUniãoSoviéticahavia triunfadonoscamposdebatalha. Na Europa ocidental, o Partido Trabalhista britânico vencera até mesmo o grande WinstonChurchillnaseleiçõesgeraisde1945.Váriasformasdesocialismoforamentusiasticamenteabraçadasporgovernosemovimentosemtodoomundoárabe.

Mas, embora esses patrocinadores estrangeiros e essas filosofias importadas fornecessem ajudamaterial e expressão intelectual para sentimentos antiocidentais e antiamericanos, não foram as suascausase,certamente,nãoexplicamodisseminadoantiocidentalismoquefezcomquetantos,noOrienteMédioeemoutraspartesdomundoislâmico,fossemreceptivosataisidéias.Deveficarabsolutamenteclaroqueoquegarantiuapoioadoutrinastotalmentediversasnãofoiateoriaracialnazista,quepodetertidopoucoapeloparaárabes,nemocomunismosoviéticoateu,semqualquerapeloparamuçulmanos,mas,sim,seuantiocidentalismobásico.OnazismoeocomunismoeramasmaioresforçasdeoposiçãoaoOcidente,tantocomoummododevidaquantocomoumpodernomundo,e,assim,podiamcontarcomasimpatiaoumesmoacolaboraçãodosqueviamnoOcidenteseuinimigoprincipal.

Mas, por quê? Se passarmos do geral para o específico, não teremos dificuldade em encontrarpolíticas e ações individuais, realizadas e mantidas por governos ocidentais específicos, que tenhamincitadooódioapaixonadodoOrienteMédioedeoutrospovosislâmicos,manifestadoemsuasváriaslutas para ganhar independência de um governo ou dominação estrangeira; para libertar recursos,especialmente petróleo, da exploração estrangeira, ou derrubar governantes e regimes vistos comoagentes ou imitadores do Ocidente. Ainda assim, com muita freqüência, quando essas políticas sãoabandonadas e os problemas, resolvidos, há, no máximo, apenas um alívio local e temporário. Osingleses saíram do Egito, os franceses deixaram a Argélia, ambos deixaram suas outras possessõesárabes,asmonarquiasforamderrubadasnoIraqueenoEgito,oxápró-ocidentalizaçãosaiudoIrã,ascompanhias ocidentais de petróleo perderam o controle dos poços que haviam descoberto edesenvolvido e se contentaram com osmelhores arranjos que puderam fazer com os governos dessespaíses–e,aindaassim,oressentimentogeneralizadodosfundamentalistasedeoutrosextremistascontra

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oOcidentepermanece,cresceenãoseaplaca.TalvezoexemplomaisfreqüentementecitadodeinterferênciadoOcidenteedesuasconseqüências

sejaaderrubadadogovernoMosaddeqnoIrã,em1953.Acrisecomeçouquandoo lídernacionalistapopularMosaddeq,contandocomapoiogeralnopaís,decidiunacionalizarascompanhiasdepetróleoe,emparticular,amaisimportantedelas,aCompanhiaAnglo-Iraniana.Nãohádúvidadequeascondiçõesemqueoperavamessaeoutrasconcessionáriasdepetróleoeramvistas,corretamente,comodesiguaisedesfavoráveis.Porexemplo,acompanhiadepetróleoAnglo-Iranianapagavamaisimpostosaogovernobritânico do que royalties ao governo do Irã. Os EstadosUnidos envolveram-se, primeiro, como umaliadodaInglaterraedepois,cadavezmais,porreceiodequeossoviéticossecolocassemdoladodogovernodeMosaddeq.Osgovernosnorte-americanoebritânico,portanto,decidiram,alegadamenteemacordocomoxá,livrar-sedeMosaddeqatravésdeumgolpedeEstado.Noinício,oplanonãopareceuirmuitobem.Mosaddeqsimplesmenteprendeuomensageirodoxáeordenouaprisãodolíderdogolpe,general Zahedi, que pretendia ser o chefe do novo governo. Por algum tempo, os que apoiavamMosaddeq eosmembrosdoPartidoComunistaTudehpromoveramdemonstraçõesdemassanas ruas,denunciandooxáeseupaiegritando“Yankeesgohome”.OxáfugiucomsuaesposaparaoIraque,ondemanteveencontrossecretoscomoembaixadornorte-americano,edepoisfoiparaRoma.

Enquantoisso,asmanifestaçõesemTeerãmudaramdecaráter.Antes,haviamsidotodascontraoxá;agora,começavamaseraseufavor,eosmilitaresapareceramnasruasapoiando-o.Apósumasériedeprotestos,Mosaddeq foiderrubadoeZahedio substituiucomoprimeiro-ministro.Em19deagostode1953, as notícias chegaram ao xá através de um telegrama da Associated Press: “Teerã: Mosaddeqderrubado.TropasimperiaiscontrolamTeerã.Zahediprimeiro-ministro.”Logoemseguida,oxáretornouaTeerãereassumiuseutrono.

Osdesdobramentos,deacordocomospadrõesdaregião,foramnotavelmenteamenos.OministrodasRelaçõesExterioresdogovernodeMosaddeqfoiexecutadoemuitosdosqueoapoiavammandadosparaa prisão. O próprio Mosaddeq foi julgado e condenado a três anos de prisão domiciliar. Após serlibertado em agosto de 1956, viveu sob vigilância em sua propriedade até 1967. Dada a ativaintervençãodaCIAnorte-americanaedoMI6britâniconaderrubadadoregimeenoretornodoxá,estefoivistoporgrupossignificativosdeseussúditoscomoumfantochebritânicoe,depois,norte-americano.

Se assim foi, os que puxavam os cordões não eram confiáveis nem eficientes. Quando veio aRevoluçãoIraniana,em1979,neminglesesnemnorte-americanosfizeramqualquercoisapara impedirqueoxáfossederrubado.Aadministraçãonorte-americanadaépocanãoapenasdeixoudedarqualquerajuda, como tambémdeixou claro que não tinha a intenção de fazê-lo.Mais dramático ainda, durantealgumtemporecusouasiloaoxáeàsuafamílianosEstadosUnidos.OxáfugiudeTeerãemmeadosdejaneirode1979evoou,viaEgito,paraoMarrocos,ondeestevebrevementecomohóspededorei.Masestetinhaoutraspreocupações,especialmenteumencontrodaOrganizaçãodaConferênciaIslâmicaqueiriasediaremRabatnoiníciodeabril.Assim,oreiHassanpediuaoxáquedeixasseopaísnomáximoaté30demarço.Oxáinformouaoembaixadornorte-americanoquegostariadeaceitaraofertadeasilofeitapelopresidenteCarter,apenasparadescobrirqueessahaviasidoretirada,aparentementenacrençadequeestabelecerboasrelaçõescomosnovosgovernantesdoIrãdeveriaterprecedênciasobregarantirasilo ao xá e à sua família. Os Estados Unidos cederam apenas quando o xá estava morrendo e emextremanecessidadedecuidadosmédicos.Em22deoutubrode1979oxáfoiinformadodequepoderiair para osEstadosUnidos; chegou aNovaYorkno início damanhã seguinte e foi diretamente para ohospital.AosedarcontadequesuapresençaestavacausandoproblemasaosEstadosUnidos,deixouopaís,adespeitodesuagravedoença,efoiparaoPanamá,deondequasefoiextraditadoparaoIrã,edeláretornouaoEgito,ondemorreuem1980.

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Diferentesgruposnaregiãotiraramduasliçõesdessesacontecimentos:uma,queosnorte-americanosestavamdispostosausartantoforçaquantointrigaparainstalarourestaurarseusgovernantesfantochesnospaísesdoOrienteMédio;aoutra,queosnorte-americanosnãoerampatronosconfiáveisquandoseusfantocheseramatacadosdeformasiginificativaporseuprópriopovo,esimplesmenteosabandonavam.Aprimeiraliçãoprovocouódio,aoutra,desprezo–umacombinaçãoperigosa.

Claramente, existe aí algomais profundo que reclamações e ressentimentos específicos, pormaisnumerosos e importantes que possam ser; algo mais profundo que transforma toda discordância emproblemae torna todososproblemas insolúveis.Oqueestamosconfrontandoagoranãoéapenasumareclamação a respeito dessa ou daquela política norte-americana, mas sim uma rejeição e umacondenação, ira e desprezo ao mesmo tempo, dirigidas a tudo o que os Estados Unidos parecemrepresentarnomundomoderno.

Umafigura-chavenaevoluçãodessasnovasatitudesfoiSayyidQutb,umegípcioquese tornouumdos principais ideólogos do fundamentalismo muçulmano e um membro ativo da organizaçãofundamentalistaconhecidacomoIrmãosMuçulmanos.Nascidoem1906emumaviladoEgitoSuperior,estudounoCairoe,poralgunsanos,trabalhoucomoprofessoredepoiscomofuncionáriodoministériodaEducação.FoienviadonessaposiçãoparaumamissãoespecialdeestudosnosEstadosUnidos,ondeficoudenovembrode1948aagostode1950.SeuativismofundamentalistaeseusescritoscomeçaramlogoqueretornouaoEgito.Apósogolpemilitardejulhode1952,manteve,deinício,relaçõesestreitascomoschamadosOficiaisLivres,masafastou-sedelesquandoseusensinamentosislâmicosentraramemchoque com as políticas secularistas daqueles. Após diversos embates com as autoridades, foicondenado,em1955,a15anosdeprisão.ComoresultadodaintercessãoaseufavordopresidenteArifdoIraque,foilibertadoem1964e,nofinaldomesmoano,publicouumdeseuslivrosmaisimportantes,Ma‘alim fi’l-Tariq [Marcos no caminho]. Foi preso novamente em 9 de agosto de 1965, dessa vezacusado de traição e, especificamente, de planejar o assassinato do presidente Nasser. Após umjulgamentosumário,foicondenadoàmorteem21deagostode1966.Asentençafoicumpridaoitodiasdepois.

A estadia de Sayyid Qutb nos Estados Unidos parece ter sido um período crucial para odesenvolvimento de suas idéias a respeito das relações entre o islã e o mundo exterior e, maisparticularmente, entre os próprios países muçulmanos. O Estado de Israel havia acabado de serestabelecido,lutandoevencendoaprimeiradeumasériedeguerrasárabe-israelensesparagarantirsuasobrevivência. Naquela época, a humanidade estava tomando ciência da quase total destruição dosjudeusnaEuropanazista,eaopiniãopúblicanorte-americana,assimcomoadamaiorpartedomundo,estava maciçamente do lado israelense. As relações, durante a guerra, entre o Terceiro Reich eproeminentes líderesárabescomoomuftideJerusalémeRashid‘Ali,doIraque, tambémestavamnosnoticiários, e a simpatia popular foi, naturalmente, para aqueles vistos como vítimas de Hitler, quehaviam lutado para escapar da destruição nas mãos dos cúmplices do nazismo. Sayyid Qutb ficouchocadocomoníveldeapoionaAméricaaoqueviacomoumaagressãoselvagemdosjudeuscontraoislã,comacumplicidadecristã.

Mais reveladora ainda foi sua resposta escandalizada ao modo de vida norte-americano –principalmente em seus aspectos pecaminosos e degenerados e em seus hábitos –, ao que viu comopromiscuidade sexual. SayyidQutb tomou como dado o contraste entre a espiritualidade oriental e omaterialismoocidental,edescreveuosEstadosUnidoscomoumaformaparticularmenteextremadadoúltimo.TudonaAmérica,escreveu,mesmoareligião,émedidoemtermosmateriais.Observouqueláhaviamuitasigrejas,masalertouseusleitoresdequenãodeviamservistasequivocadamentecomoumamanifestação de religiosidade ou espiritualidade. As igrejas na América, disse ele, operam como

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negócios,competindoporclientesepublicidadeeusandoosmesmosmétodosdas lojase teatrosparaatrairfregueseseplatéias.Paraoclérigodeumaigreja,assimcomoparaogerentedeumalojaoudeumteatro, oque conta éo sucesso, e sucesso émedidopor tamanhoenúmeros.Para atrair clientelas, asigrejasseanunciamsemomenorconstrangimento,eoferecemoqueosnorte-americanosmaisbuscam–“goodtime”ou“fun”(eleusouaspalavraseminglêsnoseutextoárabe).Oresultadoéqueossalõesdefesta das igrejas, com as bênçãos do clero, promovem bailes onde pessoas de ambos os sexos seencontram, se misturam e se tocam. Os clérigos chegam ao ponto de reduzir a iluminação a fim defacilitaro frenesidadança. “Adança se intensificacomasnotasdogramofone”,notou, comevidentedesprazer; “o salão transforma-se em um redemoinho de saltos e coxas, braços em volta de quadris,lábios e seios se encontrando, e o ar fica cheiode luxúria”.Tambémcita osRelatóriosKinsey sobrecomportamento sexual para documentar sua descrição e condenar a universal libertinagem norte-americana.4 Esse ponto de vista do Ocidente e de seus costumes pode ajudar a explicar por queterroristasdevotosvêemcomoalvoslegítimosdeseusataquesossalõesdedança,boateseoutroslocaisondehomensemulheresjovensseencontram.Ascensurasaomododevidanorte-americanofeitasporSayyid Qutb eram tão veementes que, em 1952, foi obrigado a deixar seu cargo no ministério daEducação.Depoisdisso,aparentemente,juntou-seaosIrmãosMuçulmanos.

OcernedosataquescontidosnosescritosenaspregaçõesdeSayyidQutbestavadirigidocontraoinimigo interno–oquechamavadeanovaerada ignorância, jahiliyya em árabe, um termo islâmicoclássicoaplicadoaoperíododepaganismoqueprevaleceunaArábiaantesdoadventodoProfetaedoislã.NaopiniãodeSayyidQutb,umanovajahiliyyahaviaenvolvidoospovosmuçulmanoseosnovosFaraós–corretamentevistoscomoumaalusãoaosregimesexistentes–queosestavamgovernando.Masaameaçadoinimigoexternoeragrandeecrescente.

TemsidosugeridoqueoantiamericanismodeSayyidQutbésimplesmenteoresultadodofatodeeletervisitadoosEstadosUnidos,eque teria reagidodamesma formase seuministroo tivesseenviadoparaqualquerpaíseuropeu.Mas,naquelaépoca,aAméricaeraoqueimportava,e,paraobemouparaomal,aliderançaqueexerciasobreomundonão-islâmicoeracrescentementereconhecidaediscutida.Opecadoeadegeneraçãoentreosnorte-americanos, e a conseqüenteameaçaque representavamparaoislãeospovosmuçulmanos,tornaram-seartigosdefénoscírculosfundamentalistas.

Atualmente,háumaladainhaquasepadronizadade insultosnorte-americanosrecitadanas terrasdoislã, namídia, em panfletos, em sermões e em pronunciamentos públicos. Um exemplo notável foi odiscurso de um professor egípcio na reunião conjunta da União Européia e da Organização daConferência Islâmica realizada em Istambul em fevereiro de 2002. A lista de crimes remonta àcolonizaçãodaAméricadoNorte e aoque édescrito comoexpropriação e extermíniodoshabitantesoriginaisecontínuosmaus-tratossofridospelossobreviventes.Seguecomaescravização,aimportaçãoe a exploração de negros (uma acusação curiosa, vinda de onde veio) e de imigrantes nos EstadosUnidos.IncluicrimesdeguerracontraoJapãoemHiroshimaeNagasaki,bemcomonaCoréia,Somália,noVietnãeemoutroslugares.Entreessescrimesdeagressãoimperialistasãonotáveisasaçõesnorte-americanasnoLíbano,emCartum,naLíbia,noIraquee,porcerto,aajudaaIsraelcontraospalestinos.Em termosmais amplos, a folhade acusação incluio apoio a tiranosdoOrienteMédio eoutros, taiscomooxádoIrãeHailéSelassié,daEtiópia,bemcomoumalistavariada,adaptadaàscircunstâncias,detiranosárabesinimigosdeseusprópriospovos.

Noentanto, a acusaçãomais enérgicade todas é adegeneraçãoe a libertinagemdomododevidanorte-americano,eaameaçaquerepresentamparaoislã.Essaameaça,formuladademodoclássicoporSayyidQutb,tornou-separteusualdovocabulárioedaideologiadosfundamentalistasislâmicose,maisnotavelmente, da linguagem da Revolução Iraniana. Isso é o que significa o termo o Grande Satã,

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aplicadoaosEstadosUnidospelofalecidoaiatoláKhomeini.Satã,talcomodescritonoAlcorão,nãoéumimperialistanemumexplorador.Eleéumsedutor,“o tentador insidiosoquesussurranoscoraçõesdoshomens”(AlcorãoCXIV,4,5).

1Muhammadibn‘Uthmanal-Miknasi(embaixadormarroquinonaEspanha,1779e1788), inAl-IksirfiFikakal-Asir,Muhammadal-Fasi (org.) (Rabat, 1965), p.97.Ver tambémAmiAy-alon, “TheArabDiscoveryofAmerica in theNineteenthCentury”,Middle EasternStudies,vol.20(out.1984),p.5-17.

2E.deMarcère,UneAmbassadeàConstantinople;lapolitiqueorientaledelaRévolutionFrançaise(Paris,1927),vol.2,p.12-15.3Rifa‘aRafi‘al-Tahtawi,Qala’idal-Mafakhir figharib‘awa’idal-awa’ilwa’lawakhir (Bulaq,1833),p.1,p.14;cf.Ayalon,“Arab

DiscoveryofAmerica”,p.9.4 SayyidQutb,Al-Islamwa-mushkilatal-hadara (n.p., 1967), p.80ss.Ver também JohnCalvert, “‘TheWorld is anUndutiful Boy!’

SayyidQutb’sAmericanExperiences”, inIslamandChristian-MuslimRelations,2 (março2000),p.87-103.Elededicouumlivroàparte,publicado após sua morte na Arábia Saudita, a “nossa batalha com os judeus”:Ma‘rakatuna ma‘a al-Yahud (Djedda, 1970). Além doespecífico conflito árabe com os judeus, fala do pernicioso papel judeu na guerra contra o islã e, em termos mais gerais, contra valoresreligiosos:“Portrásdaconcepçãoateísta,materialista,estáumjudeu[Marx];portrásdaconcepçãosexualbestial,umjudeu[Freud];portrásdadestruiçãodafamíliaedaperturbaçãodoslaçossagradosdasociedade,umjudeu[Durkheim].”Narealidade,ostrêssãomencionadosnãoporSayyidQutb,masporseueditor,que,paracompletar,acrescentaumquartoemumanotaderodapé:Jean-PaulSartre,tornadojudeuparaessepropósito,comooinspiradordaliteraturadedesintegraçãoeruína.PareceprovávelqueainspiraçãodeSayyidQutbparaessaeoutraspassagensantijudeus(distintasdeanti-Israeleanti-sionista)eraeuropéiaouamericana.

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5|SatãeosSoviéticosOnovopapeldosEstadosUnidos–eamaneiracomoesseerapercebidopeloOrienteMédio–foi

ilustradovividamenteporumincidentenoPaquistãoem1979.Nodia20denovembro,umbandodemilreligiosos radicaismuçulmanos tomou aGrandeMesquita deMeca e a ocupou durante algum tempo,resistindoàsforçasdesegurançasauditas.Seuobjetivodeclaradoera“purificaroislã”elibertaraterrasantadaArábiada“cliquerealdeinfiéis”edoslíderesreligiososcorruptosqueosapoiavam.Olíder,emdiscursosatravésdealto-falantes,denunciouosocidentaiscomodestruidoresdosvaloresislâmicosfundamentais e o governo saudita como seu cúmplice, e conclamou a um retorno às velhas tradiçõesislâmicasde“justiçaeigualdade”.Apósalgumaslutasintensas,osrebeldesforameliminados.Seulíderfoi executado em 9 de janeiro de 1980, junto com 62 de seus seguidores, entre os quais egípcios,kuwaitianos,iemenitasecidadãosdeoutrospaísesárabes.

Enquantoisso,umademonstraçãodeapoioaosrebeldesocorreunacapitaldoPaquistão,Islamabad.Haviacirculadoorumor–admitidopeloaiatoláKhomeini,entãonoprocessodeseestabelecercomoolíderrevolucionárionoIrã–dequetropasnorte-americanasestariamenvolvidasnosconflitosemMeca.Aembaixadanorte-americanafoiatacadaporumamultidãodemanifestantesmuçulmanose,naocasião,doisnorte-americanosedoisempregadospaquistanesesforammortos.PorqueteriaKhomeiniacreditadoeagidocombaseemumanotíciaquenãoapenaserafalsa,masquasetotalmenteimprovável?

EssesacontecimentosocorreramnocontextodaRevoluçãoIranianade1979.Nodia4denovembro,aembaixadadosEstadosUnidosemTeerã foi tomadae62norte-americanos feitos reféns.Dezdeles,mulhereseafro-americanos,foramlibertadosimediatamente;osdemaisforammantidospor444dias,atéserem soltos no dia 20 de janeiro de 1981. Os motivos para isso, que a muitos pareciam obscurosnaquela época, tornaram-se cada vez mais claros desde então, graças a subseqüentes declarações erevelaçõesdealgunsquemantiveramosrefénsedeoutrasfontes.Éclaroagoraqueacrisedosrefénsocorreu não porque as relações entre o Irã e os Estados Unidos tivessem deteriorado, mas porqueestavammelhorando.Nooutonode1979,oprimeiroministro iranianorelativamentemoderado,MehdiBazargan,haviaconseguidoumencontrocomoconselheironorte-americanoparaassuntosdesegurançanacional,ZbigniewBrzezinski,sobosauspíciosdogovernoargelino.Osdoisseencontraramnodia1ºdenovembroecorreuanotíciadequeforamfotografados trocandoumapertodemãos.Pareciahaveruma possibilidade real – um perigo real, aos olhos dos radicais – de que pudesse existir algumareconciliaçãoentreosdoispaíses.Osmanifestantestomaramaembaixadaefizeramrefénsosdiplomatasnorte-americanos a fim de destruir qualquer esperança de diálogo subseqüente.Nisso eles obtiveram,pelomenostemporariamente,sucessototal.

ParaKhomeini, osEstadosUnidos eramoprincipal inimigocontraoqualhaviaquedeflagrar suaguerrasantapeloislã.Então, talcomonopassado,essemundodeinfiéiseravistocomoaúnicaforçarivalimportanteimpedindoarealizaçãodocomandodivinodepromoveradisseminaçãoeotriunfodoislã.NosescritosmaisantigosdeKhomeini,eemespecialnoseulivrode1970,Ogoverno islâmico,são poucas asmenções aosEstadosUnidos, e ocorremprincipalmente no contexto do imperialismo–primeiro como auxiliares, depois como sucessores do mais familiar Império Britânico. Na época darevoluçãoedaconfrontaçãodiretageradaporela,osEstadosUnidoshaviam-setornado,paraKhomeini,oprincipaladversárioeoalvocentraldoódioedesprezomuçulmanos.

AhostilidadeespecialdeKhomeiniaosEstadosUnidosparecedatardeoutubrode1964,quandofezumpronunciamentoemfrenteasuaresidênciaemQumdenunciandoapaixonadamentealeiencaminhadaà Assembléia iraniana, que concedia status de extraterritorialidade à missão militar norte-americana,incluindo famílias, pessoal administrativo, assessores e empregados, e imunidadeperante a jurisdição

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iraniana. Aparentemente, ele não sabia que imunidades semelhantes haviam sido solicitadas econcedidas,comoeradeseesperar,àsforçasnorte-americanasestacionadasnaGrã-BretanhaduranteaSegunda Guerra Mundial. Mas a questão das chamadas capitulações – imunidades extraterritoriaisconcedidasnopassadoacomerciantesocidentaiseaoutrosviajantesemterrasislâmicas–eraumpontosensível,eKhomeinitevegrandehabilidadeaojogarcomele.“Reduziramopovoiranianoaumnívelmaisbaixoqueodeumcachorronorte-americano.Sealguématropelarumcachorropertencenteaumnorte-americano,serájulgado.Mesmoseopróprioxáatropelarocachorrodeumnorte-americano,serájulgado.Masseumcozinheironorte-americanoatropelaroxá,ochefedoEstado,ninguémteráodireitodefazernadacontraele.”1Estandojácomproblemascomasautoridades,essepronunciamentofezcomqueKhomeinifosseexiladodoIrãem4denovembro.Elevoltouaessetemaemdiversasoutrasfalaseescritos,ridicularizandoosnorte-americanosemparticularporseusupostocompromissocomosdireitoshumanosepelamaneiracomoignoravamessesdireitosnoIrãeemoutroslugares,incluindoaAméricaLatina,“emseuprópriohemisfério”.OutrasacusaçõesincluíamosaquedasriquezasdoIrãeoapoioàmonarquiairaniana.

Em pronunciamentos após sua volta ao Irã, tanto a lista de queixas quanto a de inimigos ficarammaiores,masosEstadosUnidosvinhamagoraemprimeirolugar.EnãoapenasnoIrã.Emumdiscursofeito em setembrode 1979 emQum, reclamouque todoomundo islâmico estava amarrado amuletasnorte-americanas,conclamandoosmuçulmanosdetodoomundoaseuniremcontraseuinimigo.FoiporessaépocaquecomeçouafalardosEstadosUnidoscomo“oGrandeSatã”.TambémdatamdessetemposuasdenúnciascontraAnwarSadatdoEgitoeSaddamHusseindoIraque,apontando-oscomoservoseagentesdaAmérica.SadatserviraaAméricaaofazeraspazescomIsrael;SaddamHussein,aodeclararguerra contra o Irã.As confrontações com aAmérica na crise dos reféns, na invasão do Iraque e emmuitoscamposdebatalhadiplomáticoseeconômicosconfirmaramacríticadeKhomeini,segundoaqualaAméricaocupavaaposiçãocentralnalutaentreoislãeoOcidente.Daliemdiante,aAméricapassouaser“oGrandeSatã”.Israel,vistocomoumagentenorte-americano,era“oPequenoSatã”,e“morteàAmérica” passou a ser a ordem do dia. Esse era o slogan brandido e gritado nas manifestaçõesantiamericanasde1979.Maistarde,ganhouumaqualidadecerimonial,quaseritualizada,queodrenoudamaiorpartedeseusignificadoreal.

Observadores norte-americanos, despertados pela retórica da Revolução Iraniana para seu novostatus de o Grande Satã, tentaram encontrar razões para o sentimento antiamericano que se vinhaintensificando no mundo islâmico havia algum tempo. Uma explicação, temporariamente aceita pormuitos, em especial nos círculos de política externa norte-americanos, era que a imagem daAméricahaviasidomanchadaporsuaaliança, tantono tempodaguerraquantodepois,comosantigospoderescoloniais da Europa. Na defesa de seu país, alguns comentaristas norte-americanos mostraram que,diferentementedosimperialistasdaEuropaocidental,aAméricahaviasido,elamesma,umavítimadocolonialismo,poisosEstadosUnidosforamoprimeiropaísase libertardodomíniobritânico.Masaesperançadequeos súditosdos antigos ImpériosBritânico eFrancêsnoOrienteMédio aceitassemaRevoluçãoAmericanacomoummodeloparasuaprópria lutaantiimperialistaapoiava-senumafaláciaelementar, logo identificada por escritores árabes. A Revolução Americana, como freqüentementedestacam, foi uma luta de colonizadores britânicos, não de nativos norte-americanos nacionalistas, e,longedeserumavitóriacontraocolonialismo,representouototaltriunfodesse;osinglesesnaAméricado Norte tiveram um sucesso tão grande em colonizar a terra que já não precisavam do apoio dametrópolecontraoshabitantesoriginais.

NãopoderiasurpreenderqueantigossúditoscoloniaisnoOrienteMédiovissemosEstadosUnidoscomo contaminados pelo mesmo tipo de imperialismo da Europa ocidental. Mas o ressentimento doOriente Médio contra os poderes imperiais nem sempre tem sido coerente. A União Soviética, que

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conservou e ampliou as conquistas imperiais dos czares da Rússia, governou, com mão nada leve,dezenasdemilhõesde súditosmuçulmanosnaÁsiaCentral enoCáucaso.E, aindaassim,não foi tãofustigadapelaraivaepeloódiodacomunidadeárabe.

O interesse da Rússia pelo Oriente Médio não era novo. Durante séculos, os czares haviam-seexpandidoparaosuleparaoleste,incorporandovastosterritóriosmuçulmanosaseuimpérioàscustasdaTurquia,daPérsiaedosantigosEstadosmuçulmanos independentesdaÁsiaCentral.AderrotadoEixoem1945trouxeumanovaameaçasoviética.OssoviéticosestavamagorafortementeentrincheiradosnosBálcãsepodiampôraTurquiaemperigonasfronteirasorientaleocidental.JáestavamdentrodoIrã, ocupando a província persa doAzerbaijão. Sua ameaça ao Irã vinha de longa data. Nas guerrasrusso-iranianasde1804-1813e1826-1828,osrussoshaviamadquiridoapartenortedoAzerbaijão,quesetornouumaprovínciadoimpérioczaristae,maistarde,umarepúblicadaUniãoSoviética.NaSegundaGuerraMundial, junto comos ingleses, os soviéticos ocuparamo Irã a fimdegarantir suas linhas decomunicaçãoparausomútuo.Quandoaguerraterminou,osinglesesseretiraram;ossoviéticosficaram,aparentementecomaintençãodeanexaràUniãoSoviéticaoquerestavadoAzerbaijão.

Daquelavezelesforamcontidos.Graças,emgrandeparte,aoapoionorte-americano,osturcosforamcapazesderesistiràdemandasoviéticaporbasesnosEstreitos,enquantoosiranianosdesmantelavamoEstado fantoche comunista que os ocupantes soviéticos haviam instalado no Azerbaijão persa ereasseguravamasoberaniadogovernodoIrãsobretodososseusterritórios.

Por algum tempo, a tentativa soviética de materializar o antigo sonho dos czares encontrouresistência,etantoaTurquiaquantooIrãfizeramaliançasocidentais.Masoacordorusso-egípciosobrearmamentos,firmadoem1955,trouxeaRússiadevoltaaojogodoOrienteMédio,agoranumpapeldeliderança.Os turcos e iranianos tinham longa experiência com o imperialismo russo e semostravam,portanto, cautelosos. A experiência dos Estados árabes com o imperialismo era exclusivamenteocidental,eestavamdispostosaolharparaossoviéticosdemodomaisfavorável.Atravésdeavançossucessivosnafronteiranorteedenegociaçõesdiretascomosrecém-independentesEstadosárabes,osrussosconseguiram,empoucotempo,estabelecerumaposiçãomuitosólida.

Noinício,seguiramosmesmospassosdeseusantecessoresdaEuropaocidental–basesmilitares,suprimentodearmas,“ajuda”militar,penetraçãoeconômicaecultural.Mas,paraoestilode relaçõessoviéticas,issoeraapenasumcomeço,eaintençãoera,claramente,levarascoisasmuitomaisadiante.Restampoucasdúvidasdeque,senãofosseaoposiçãonorte-americana,aGuerraFriaeocolapsofinalda União Soviética, o mundo árabe teria, na melhor das hipóteses, seguido a sorte da Polônia e daHungria,mais provavelmente, doUsbequistão. E isso não é tudo. Enquanto buscavam estabelecer umprotetorado sobre seus aliadosnoOrienteMédio, os soviéticosmostraram-sedefensoresmuitopoucoeficazes.Naguerraárabe-israelensede1967e,novamente,em1973,nãomostraramnenhumainclinaçãonemcapacidadeparasalvarseusprotegidosdaderrotaedahumilhação.OmelhorquepuderamfazerfoiseuniremaosEstadosUnidosparapôrumfimaoavançoisraelense.

No início da década de 1970, a presença soviética estava tornando-se não apenas ineficaz, mastambém irritante. Como no caso de seus antecessores imperiais ocidentais, os soviéticos haviamestabelecidoemsoloegípciobasesmilitaresnasquaisospróprioscidadãosegípciosnãopodiamentrar,elogopassaramparaoclássicoestágioseguintedecelebrartratadostendenciososedesiguais.

HouvealgunslíderesdoOrienteMédioqueaprenderamaliçãoesevoltaram,commaioroumenorrelutância,paraoOcidente.NotávelentreelesfoiopresidenteAnwarSadatdoEgito,quehaviaherdadoa relação soviética de seu antecessor, o presidenteNasser. Emmaio de 1971, Nasser foi induzido aassinar ummuito desigual “Tratado de Amizade e Cooperação”com a União Soviética;2 em julho de1972,ordenouqueseusassessoresmilitaressoviéticosdeixassemopaísetomouasprimeirasmedidas

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paraestabelecerrelaçõescordiaiscomosEstadosUnidoseapazcomIsrael.Noentanto,opresidenteSadatparecetersemantidoquasesozinhoemseusjulgamentoseemsuaspolíticase,demodogeral,issoparecenão ter resultadoemnenhumadiminuiçãodaboavontadecomrelaçãoaossoviéticosenenhumcorrespondente crescimento da boa vontade quanto aos Estados Unidos. Os soviéticos não sofreramnenhumapenalidade,nemaomenosreprovação,porsuarepressãoaoislãnasrepúblicasdaÁsiaCentraletranscauscasianas,ondeforamautorizadas200mesquitasparaatenderàsnecessidadesreligiosasde50milhõesdemuçulmanos.Damesmaforma,oschinesesnãoforamcondenadosporsuasbatalhascontramuçulmanos emSinkiang, nemosnorte-americanos receberamqualquermérito por seus esforçosparasalvarmuçulmanos na Bósnia, emKosovo e naAlbânia. Obviamente, havia outras considerações emjogo.

TalvezamaisdramáticailustraçãodessadisparidadetenhasidoainvasãosoviéticadoAfeganistãono final de dezembro de 1979, com a criação de um governo fantoche naquele país. Seria difícilencontrarumcasomaisclaroemaisóbviodeagressão,conquistaedominaçãoimperialistas.E,aindaassim, a resposta dos árabes e, em termos mais gerais, do mundo islâmico, foi consideravelmentesilenciosa.Em14dejaneirode1980,apóslongasprotelações,aAssembléiaGeraldasNaçõesUnidasfoi finalmentecapazdeaprovarumaresoluçãosobreesseepisódio,nãocomosugerido,condenandoaagressão soviética,mas “lamentandoveementemente a recente intervenção armadanoAfeganistão”.Apalavraagressãonãofoiusada,enãosemencionouo“interventor”.Avotaçãoteve104votoscontra18.Entreospaísesárabes, aSíria e aArgéliaabstiveram-se;o IêmendoSulvotoucontraa resolução;aLíbianãoestavapresente.Oobservador–semdireitoavoto–daOLPfezumdiscursoemquedefendiacomvigoraaçãosoviética.AOrganizaçãodaConferênciaIslâmicanãosesaiumuitomelhor.Em27dejaneiro, apósmuitasmanobrasenegociações, aOCIconseguiuorganizarumencontroem Islamabadediscutiraquestãosoviético-afegã.DoisEstadosmembros,IêmendoSuleSíria,boicotaramareunião;adelegaçãodaLíbiafezumviolentoataqueaosEstadosUnidos,enquantoorepresentantedaOLP,membropleno da OCI, absteve-se de votar sobre a resolução anti-soviética e apresentou suas reservas porescrito.

Houvealgumarespostanomundomuçulmanoàinvasãosoviética–algumdinheirosaudita,algumasarmasegípciasemuitosvoluntáriosárabes.MasficouacargodosEstadosUnidosorganizar,comcertosucesso,umcontra-ataque islâmicoao imperialismosoviéticonoAfeganistão.AOCIajudoupoucoosafegãos, preferindo concentrar sua atenção em outros assuntos – algumas pequenas populaçõesmuçulmanasemáreasaindanão-descolonizadase,éclaro,oconflitoIsrael-Palestina.

Israeléumdentremuitospontosnosquaisosmundosislâmicoenão-islâmicoseencontram:Nigéria,Sudão,Bósnia,Kosovo,Macedônia, Tchetchênia, Sinkiang,Caxemira, Timor,Mindanao etc.Cada umdessesmundos constitui a questão central para os diretamente envolvidos, e uma digressão incômodaparaosoutros.Osocidentais,aocontrário,tendemadaramaiorimportânciaàsqueixasqueesperamversatisfeitasàscustasdeoutros.OconflitoIsrael-Palestinacertamentetematraídomuitomaisatençãoquequalquer um dos outros, por diversas razões. Primeira, dado que Israel é uma democracia e umasociedadeaberta,émuitomaisfácilnoticiar–enoticiardeformaerrada–oqueestáacontecendonopaís.Segunda, os judeus estão envolvidos, e, emgeral, issopodegarantir umaaudiência significativaentreaquelesque,porumarazãoououtra,sãoafavordelesoucontra.UmbomexemplodessadiferençaéaGuerraIrã-Iraque,quedurouoitoanos,de1980a1988,ecausoumortesedestruiçãomuitomaioresque todas as guerras árabe-israelenses juntas, mas recebeu bem menos atenção. É verdade que nemIraquenem Irã são umademocracia, e a cobertura jornalística era, portanto, uma tarefamais difícil emaisperigosa.Poroutrolado,osjudeusnãoestavamenvolvidos,nemcomovítimasnemcomoautores,easnotícias,portanto,erammenosinteressantes.

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Umaterceirae,emúltimainstância,amaisimportanterazãoparaaprimaziadaquestãopalestinaéqueelaé,porassimdizer,umaqueixaautorizada–aúnicaquepodeserexpressadacom liberdadeesegurança naqueles países muçulmanos onde a mídia está totalmente nas mãos do governo ou éestritamente supervisionada por ele. Na verdade, Israel serve como um útil bode expiatório parareclamaçõessobreasprivaçõeseconômicasearepressãopolíticasobasquaisviveamaiorpartedospovos muçulmanos, e como uma maneira de desviar o ódio resultante. Esse método é amplamentefavorecido pelo cenário interno israelense, onde qualquer impropriedade da parte do governo, doexército, dos colonos ou de quem quer que seja é imediatamente revelada e qualquer falsidadeimediatamentedenunciadaporcríticosisraelenses,tantojudeusquantoárabes,namídiaenoParlamentoisraelenses. A maior parte dos oponentes de Israel não sofre nenhum desses impedimentos em suadiplomaciapública.

ÀmedidaqueosimpériosdaEuropaocidentaldeclinavam,oantiamericanismodoOrienteMédiofoisendoatribuídoaoutrascausasmaisespecíficas:exploraçãoeconômica,freqüentementedescritacomopilhagem dos recursos das terras islâmicas; o apoio a tiranos locais corruptos que serviam aospropósitosnorte-americanos,oprimindoeroubandoseuprópriopovo,e,cadavezmais,umaoutracausa–oapoiodosEstadosUnidosaIsrael,primeiroemseuconflitocomosárabespalestinos,depoisemseuconflitocomosEstadosárabesvizinhoseomundoislâmico.Existe,certamente,sustentaçãoparaessahipótese nas declarações árabes e persas, mas o argumento de que, sem um ou outro dessesimpedimentos,tudoteriaidobemparaaspolíticasnorte-americanasnoOrienteMédiopareceumtantoimplausível. O problema palestino tem causado, sem dúvida, grande e crescente ódio, renovado eagravado,de temposemtempos,porpolíticaseaçõesdosgovernosoupartidos israelenses.Masseráquepodeser,comoargumentamalguns,acausaprimeiradosentimentoantiocidental?

Algumas incongruênciasaparecemrecorrentementenos registroshistóricos.Nadécadade1930,aspolíticas daAlemanhanazista forama principal causa damigração judia para aPalestina, que estavaentão sobmandatobritânico, e do reforçoda comunidade judiananova terra.Osnazistasnão apenaspermitiamessamigração;elesafacilitaramatéoiníciodaguerra,enquantoosingleses,naesperançaumtantodesoladadeganharabenevolênciaárabe,impuseramrestriçõeseasfizeramcumprir.Aindaassim,aliderançapalestinadaépoca,emuitosoutroslíderesárabes,apoiaramosalemães,quemandaramosjudeusparaaPalestina,emvezdeapoiarosingleses,quetentarammantê-loslonge.

OmesmotipodediscrepânciapodeservistonosacontecimentosquelevaramaoestabelecimentodoEstado de Israel, em 1948, entre outros que se seguiram. A União Soviética desempenhou papelsignificativo na obtenção da maioria pela qual a Assembléia Geral das Nações Unidas votou oestabelecimento de umEstado judeu na Palestina e deu a Israel imediato reconhecimentode jure. OsEstadosUnidosestavammaishesitantes, ederamapenas reconhecimentode facto.Mais importante, ogoverno norte-americano manteve um embargo parcial de armas contra Israel, enquanto aTchecoslováquia, com autorização de Moscou, enviou imediatamente um suprimento de armas quepermitiramasobrevivênciadonovoEstado.Naépoca,arazãodessapolíticasoviéticanãofoinemboavontadecomrelaçãoaosjudeusnemmá-vontadecontraosárabes.Estavabaseadanacrençaequivocada–masamplamenteaceitaentão–dequeaInglaterraaindaeraamaiorpotênciadoOcidentee,portanto,oprincipal rivaldeMoscou.Combasenisso,qualquerumquecriasseproblemasparaos ingleses– talcomohaviamfeitoosjudeusnosúltimosanosdomandatobritânico–mereceriaoapoiosoviético.Maistarde,StálinpercebeuseuerroevoltouaatençãoparaosEstadosUnidos,emvezdeparaaInglaterra.

NadécadaqueseseguiuàfundaçãodeIsrael,osnorte-americanosquetratavamcomoEstadojudeucontinuaram a ser limitados e cautelosos. Após a Guerra de Suez, em 1956, os Estados Unidosintervieram,demaneiravigorosaedecisiva,paragarantiraretiradadasforçasisraelenses,britânicase

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francesas. O líder soviético Khrushchev, que permanecera cautelosamente silencioso nas primeirasetapasdaguerra,percebeuqueumpronunciamentopró-árabenãotrouxeranenhumperigodecolisãocomosEstadosUnidos,eentão–apenasentão–seposicionoufortementedoladoárabe.Atébemmaistarde,na guerra de 1967, Israel ainda contava com armamentos da Europa, principalmente de fornecedoresfranceses,enãodosnorte-americanos.

Apesardisso,oretornodoimperialismorusso,agoranaformadeUniãoSoviética,aumpapelmaisativonosinteressesdoOrienteMédiotrouxeumarespostaentusiásticadomundoárabe.Apósalgumasvisitasdiplomáticaseoutrasatividades,anovaligaçãoveioapúblico,comoanúnciooficial,nofinaldesetembrode1955,daassinaturadeum tratadodearmamentosentreaUniãoSoviéticaeoEgito,que,duranteosanosseguintes, tornou-secadavezmaisumsatélitesoviético.Aindamaisexpressivoqueopróprionegóciodasarmasfoiomodocomofoibemrecebidonomundoárabe,transcendendodiferençasereclamaçõeslocais.AsCâmarasdeDeputadosnaSíria,LíbanoeJordâniareuniram-seimediatamenteevotaramresoluçõesdecongratulaçãoaoentãoprimeiro-ministroNasser;atéNuriSaid,ogovernantepró-ocidentedoIraqueerivaldeNassernadisputapelaliderançapan-arábica,sentiu-seobrigadoaenviarcongratulaçõesaseucolegaegípcio.Quasetodaaimprensaárabedeuumapoioentusiástico.

Por que essa reação? Certamente, os árabes não tinham uma estima especial pela Rússia, nem osmuçulmanos do mundo árabe e de outras partes desejavam trazer a ideologia comunista ou o podersoviéticopara seuspaíses.Nem foi, tampouco,uma recompensaàpolítica israelensedeMoscou,quehavia sidobastanteamistosa.Oqueencantouosárabes foiqueviram–corretamente, semdúvida–otratadodearmamentoscomoumtapanacaradoOcidente.OtapaearespostavisivelmenteembaraçadadoOcidentee,emparticular,dosEstadosUnidos,reforçaramoclimadeódioemalevolênciacontraoOcidenteeencorajaramseusproponentes.

AexpansãodainfluênciasoviéticanoOrienteMédioearespostaentusiásticaaelaestimularamosEstados Unidos a olhar mais favoravelmente para Israel, visto agora como um aliado confiável epotencialmente útil em uma região em grande parte hostil. Hoje, esquece-se, com freqüência, que arelaçãoestratégicaentreosEstadosUnidoseIsraelfoiumaconseqüênciadapenetraçãosoviética,enãosuacausa.

Aprimeirapreocupaçãodequalquergovernonorte-americanoé,porcerto,definiros interessesdopaíseconceberpolíticasparaaproteçãoeoavançodessesinteresses.NoperíodologoapósaSegundaGuerraMundial, a política norte-americananoOrienteMédio, bemcomoemoutras partes, foi regidapelanecessidadedeimpedirapenetraçãosoviética.Lamentavelmente,osEstadosUnidosabrirammãoda superioridade moral que detinham, como observadores externos, e envolveram-se por estágios;primeiro,apoiandoacadavezmaisfrágilposiçãobritânicae,então,quandoessasetornouclaramenteinsustentável,intervindomaisdiretamentee,porfim,substituindoaInglaterracomodefensordoOrienteMédiocontraataquesdefora,emespecialdaUniãoSoviética.

A necessidade imediata do pós-guerra era resistir a pressões soviéticas nas fronteiras do norte,garantindoa retirada soviéticadoAzerbaijão iranianoeopondo-seademandas sobreaTurquia.Essapolíticaeraclaraeinteligívele,noconjunto,tevesucessoemsalvaraTurquiaeoIrã.Masatentativadeestendê-laparaomundoárabeatravésdoPactodeBagdáproduziuresultadosopostosedesastrosos,econtrapôs ou enfraqueceu aqueles que pretendia atrair. O presidente egípcio, Gamal ‘Abd al-Nasser,vendoopactocomoumaameaçaasualiderança,voltou-separaossoviéticos;oregimepró-OcidentenoIraque foi derrubado, e regimes amigos na Jordânia e no Líbano ficaram em tamanho perigo quenecessitaram de ajuda militar do Ocidente para sobreviver. A partir de 1955, quando os soviéticos,atravésda fronteiranorte, forampoucoapoucopenetrandonomundoárabe, tantoaameaçaquantoosmeiosdecontrapor-seaelamudaramradicalmente.Enquantoafronteiranortemanteve-sefirme,asterras

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árabestornaram-sehostisou,nomáximo,nervosamenteneutras.Nessascircunstâncias,arelaçãonorte-americanacomIsraelentrouemumanovafase.

Durante muito tempo, esse relacionamento foi moldado por duas considerações inteiramentediferentes: uma delas pode ser chamada ideológica ou sentimental; a outra, estratégica. Os norte-americanos, escolados na Bíblia e em sua própria história, podem prontamente ver o nascimento domoderno Estado de Israel como um novo Êxodo e um retorno à Terra Prometida, e acham fácildesenvolver uma empatia por pessoas que parecem estar repetindo a experiência dos peregrinosfundadores, dos pioneiros e dos que os sucederam.Os árabes, por certo, não vêem dessamaneira, emuitoseuropeustambémnão.

OoutrovínculoentreosEstadosUnidoseIsraeléarelaçãoestratégica,quecomeçounadécadade1960,floresceunasdécadasde1970e1980,flutuounosanos90eganhounovaimportânciaquandoosEstadosUnidosenfrentaramasatuaisameaçasdasambiçõeshegemônicasdeSaddamHussein,doterrorfundamentalistadaAl-QaedaedeprofundosecrescentesdescontentamentosentreosaliadosárabesdaAmérica.TemsidomuitodiscutidoovalordeIsraelparaosEstadosUnidoscomoumtrunfoestratégico.AlgunsnosEstadosUnidosvêemIsraelcomoumimportantealiadoestratégicona regiãoeumbastiãosegurocontrainimigosexternoseregionais.OutrostêmargumentadoqueIsrael,longedeserumtrunfo,tem sidoum risco estratégico, porminar as relaçõesnorte-americanas comomundoárabe e causarofracassodaspolíticasnorte-americanasnaregião.

Mas, quando se comparam os resultados da política norte-americana no Oriente Médio com oalcançadoemoutrasregiões,fica-seperplexonãocomseufracasso,mascomseusucesso.Afinal,nãohánenhumVietnãnoOrienteMédio,nenhumaCuba,NicaráguaouElSalvador,nemmesmoumaAngola.Aocontrário, através de crises sucessivas que têm abalado a região, tem havido sempre uma imponentepresençapolítica,econômicaeculturalnorte-americana,usualmenteemdiversospaíses–e isso,atéaGuerra do Golfo de 1991, sem necessidade de qualquer intervenção militar significativa. E, mesmoentão,suapresençafoinecessáriaparalivrarasvítimasdeumaagressãoentreosprópriospaísesárabes,nãorelacionadacomisraelensesnemcompalestinos.AquelesqueolhamapenasparaoOrienteMédioestãoregularmenteconscientesdasdificuldadesefracassosdaspolíticasnaquelaregião,mas,quandoseanalisaessaconjunturadeumaperspectivamaisampla,nãosepodedeixardeficarpasmocomaeficáciadapolíticanorte-americananoOrienteMédio,quandocomparadacom,digamos,o sudestedaÁsia, aAméricaCentralouosuldaÁfrica.

Desdeo colapsodaUniãoSoviética, umanovapolítica norte-americana surgiu noOrienteMédio,relacionadacomdiferentesobjetivos.Seuprincipalpropósitoéimpediraemergênciadeumahegemoniaregional – ou de uma única autoridade regional que possa dominar a área e estabelecer o controlemonopolístico do petróleo do Oriente Médio. Essa tem sido a preocupação básica subjacente asucessivaspolíticasnorte-americanasparaoIrã,Iraqueouparaqualqueroutrasituaçãopercebidacomoumafuturaameaçadentrodaregião.

Apolítica adotada até agora para impedir tal hegemonia é incentivar, armar e, quandonecessário,apoiar um pacto de segurança regional e, portanto, basicamente árabe. Essa política inevitavelmenteevocaainfelizmemóriadetentativasanterioresquetrouxerammaisdanosquebenefícios.Dessavez,opactopropostopodeterchancesumpoucomelhores.OsupostoinimigojánãoémaisaformidávelUniãoSoviética,egovernantesregionaisestãoganhandoumaperspectivamaissóbriadomundoedeseulugarnele. Mas tal pacto, baseado em regimes instáveis governando sociedades voláteis, é inerentementeprecário, e a correntenão émais forteque seu elomais fraco.Ahistória recentedo Iraque ilustra asdiferentesmaneirascomoumapolíticadessetipopodedarerrado.Aoabraçaramonarquia,promovemossuaderrubada;aopromoverSaddamHussein,alimentamosummonstro.Seriafatalmentefácilrepetirum

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desses erros, ou ambos, com considerável risco para os interesses ocidentais na região e terríveisconseqüênciasparaaspessoasqueaívivem.

Nessecontexto,tornam-secompreensíveisadisposiçãodealgunsgovernosárabesdenegociarapazcomIsraeleapreocupaçãonorte-americanadelevaradianteoprocessodepacificação.Muitosárabescomeçaram a compreender que, levando em conta a melhor estimativa da força israelense, e a piorestimativadasintençõesdeIsrael,talEstadonãoéoseuproblemamaissério,nemamaiorameaçaqueosconfronta.UmIsraelemguerracomseusvizinhosseriaumperigoconstante,umadistraçãoquesemprepoderiaserusadaporumnovoSaddamHussein–ouatépelomesmo.MasumIsraelempazcomseusvizinhos poderia proporcionar, nomínimo dosmínimos, um elemento de estabilidade democrática naregião.

Existem,emgeral,doistiposbastantediferentesdealiança.Umaéestratégica,epodeserumacordopuramentetemporáriobaseadoemameaçasentendidascomocomuns.Talconciliaçãopodeseralcançadacomqualquer tipodegovernante–o tipodegovernoeo tipodesociedadegovernadasão igualmenteirrelevantes.Ooutroparceirodessaaliançapodemudarde idéiaaqualquermomentooupode tersuaidéiamudadapor outros se for derrubado e substituído.A aliança pode, então, ser quebrada por umamudança de regime, de líder, ou mesmo uma mudança de perspectiva. O que pode acontecer é bemilustradoporacontecimentosnaLíbia,Iraque,IrãeSudão,ondemudançasnaáreapolíticaocasionaramtotalinversãonaspolíticas;ou,emoutrosentido,pelocasodoEgito,onde,mesmosemumamudançaderegime, os governantes foram capazes de passar doOcidente para os soviéticos, e de volta para umalinhamentoocidental.

Amesmaflexibilidadeexistedoladonorte-americano.Assimcomotaisaliadospodem,aqualquermomento,abandonarosEstadosUnidos,essesobviamentesentem-selivresparaabandonartaisaliadosse a aliança torna-semuito complicadaoudeixa de ser interessante em termosde custo-efetividade–como,porexemplo,noVietnãdoSul,noCurdistãoenoLíbano.Aoabandonarumaliadocomoqualnãohámaisqueumaacomodaçãoestratégica,pode-se iradiantesemremorsosesemoriscodeencontrarcríticasimportantesemseuprópriopaís.

Ooutrotipodealiançaestábaseadoemumaautênticaafinidadedeinstituições,aspiraçõesemodosde vida – e muito menos sujeito a mudanças. Em seus dias de glória, os soviéticos tinham plenaconsciênciadisso,e tentaramcriarditadurascomunistasondequerque fossem.Democracias sãomaisdifíceisdecriar.Etambémmaisdifíceisdedestruir.

1 Esses e outros textos serão encontrados em Islam and Revolution: Writings and Declarations of Imam Khomeini, traduzido eanotadoporHamidAlgar (Berkeley, 1981).Seu IslamicGovernment foi uma série de leituras realizadas no centro xiita deNajaf, Iraque,lugardoexíliodeKhomeini,epublicadologodepoisemárabeepersa.Paraosqueoleram,ocursosubseqüentedaRevoluçãoIslâmicanoIrãnãoterásidonenhumasurpresa.

2 Sobre esse tratado, verBernardLewis, “OrientalistNotes on theSoviet-UnitedArabRepublicTreaty of 27May1971”,PrincetonPapersinNearEasternStudies,n.2(1993),p.57-65.

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6|DoisPesos,DuasMedidasCadavezmais,nasúltimasdécadas,ospovosdoOrienteMédiovêmarticulandoumaqueixamais

evidente,umanovareclamaçãocontraapolíticadosEstadosUnidos:nãoapenasacumplicidadenorte-americanacomoimperialismoousionismo,masalgoquetocamaisdepertoemaisimediatamente–acumplicidadenorte-americanacomostiranoscorruptosqueosdirigem.Porrazõesóbvias,essaqueixaespecíficanãoaparececomfreqüêncianosdiscursospúblicoseneméprovávelquesejamencionadaemconversasentrediplomatasefuncionáriosdeRelaçõesExteriores.GovernosdoOrienteMédiotaiscomoos do Iraque, da Síria e a Autoridade Palestina desenvolveram grande habilidade em controlar suaspróprias mídias e manipular as dos países do Ocidente. Pelas mesmas razões óbvias, essa questãotambémnãoé suscitada emnegociaçõesdiplomáticas.Mas édiscutida, comcadavezmais angústia eurgência, em conversas particulares com ouvintes nos quais se possa confiar, e, recentemente, até empúblico–enãoapenasporradicaisislâmicos,paraosquaiséumadasprincipaisquestões(naverdade,a principal). É interessante notar que a Revolução Iraniana de 1979 foi uma época em que esseressentimento foi abertamente expressado. O xá foi acusado de apoiar os Estados Unidos, mas estestambémforamcriticadosporimporcomomarioneteoqueosrevolucionáriosviramcomoumlíderímpioetirânico.Nosanosqueseseguiram,osiranianosdescobriramquetiranosdevotospodemsertãoruinsquanto tiranos ímpios,ouatépiores, equeaculpapelaexistênciadesse tipode tiranianãopodia seratribuídaapatronosoumodelosestrangeiros.

Há alguma justiça em uma acusação feita freqüentemente aos Estados Unidos e, em termos maisgerais,aoOcidente:ospovosdoOrienteMédioreclamamcadavezmaisqueoOcidenteosjulgacombaseempadrõesdiferenteseinferioresaosusadosparajulgareuropeusenorte-americanos,tantonoqueseesperadelesquantonoqueelespodemesperaremrelaçãoaseubem-estareconômicoesualiberdadepolítica.Afirmamqueporta-vozesocidentaisrepetidamenterelevamoumesmodefendemaçõeseapóiamgovernantesqueelesprópriosnãotolerariamemseuspaíses.

Hojeemdia,nomundoocidental,sãorelativamentepoucososquevêemasimesmoscomoengajadosem uma confrontação com o islã.Mas, apesar disso, existe um entendimento disseminado de que hádiferençassignificativasentreomundoocidentalavançadoeoresto,sobretudoospovosdoislã,equeesses últimos são, de algumas maneiras, diferentes, com a usualmente tácita presunção de que sãoinferiores.Asmaisflagrantesviolaçõesdedireitoscivis,liberdadepolítica,atémesmodecênciahumanasão ignoradas ou apagadas, e crimes contra a humanidade, que em um país europeu ou nos EstadosUnidosinvocariamumaondadeindignação,sãovistoscomonormaisemesmoaceitáveis.Regimesquepraticamtaisviolaçõessãonãoapenas tolerados,masatémesmoeleitosparaaComissãodeDireitosHumanosdasNaçõesUnidas,cujosmembrosincluemaArábiaSaudita,Síria,SudãoeLíbia.

Subjacente a tudo isso está a idéia de que esses povos são incapazes de operar uma sociedadedemocrática,nãosepreocupamcomadecênciahumanaenemsãocapazesdecultivá-la.Qualquerquesejaocaso,elesserãogovernadospordespotismoscorruptos.Nãoé tarefadoOcidentecorrigi-los,emenosaindamudá-los,masmeramentegarantirqueosdéspotassejamamigáveis,emvezdehostisaosinteressesocidentais.Dessaperspectiva,éperigosomexercomaordemexistente,eaquelesquebuscamvida melhor para si mesmos e seus concidadãos são depreciados e, com freqüência, energicamentedesencorajados.Émaissimples,maisbaratoesegurosubstituirumtiranoimpertinenteporumdispostoacooperar,emvezdeenfrentarosriscosimprevisíveisdeumamudançaderegime,especialmentedeumamudançaproduzidapelodesejodopovoexpressoemeleiçõeslivres.

O princípio de “melhor ummal conhecido” parece estar por trás das políticas externas demuitosgovernos ocidentais para os povos domundo islâmico.Essa atitude é às vezes apresentada, emesmo

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aceita,comoumaexpressãodesimpatiaeapoioaosárabesesuascausas,aparentementenacrençadeque,aoeximirgovernoselíderesárabesdasregrasnormaisdecomportamentocivilizado,estaríamos,dealguma forma, conferindo um privilégio aos povos árabes. Na verdade, essa dispensa não representanadadisso,sendo,nomelhordoscasos,abuscadeumaaliançatemporáriabaseadaemauto-interessessemelhantes e dirigida contra um inimigo comum, às vezes também sustentada pelos mesmospreconceitos. Em um nível mais profundo da realidade, é uma indicação de desrespeito e falta deinteresse–desrespeitopelopassadoárabe,faltadeinteressepelopresenteefuturoárabes.

Essa abordagem encontra algum apoio tanto nos círculos diplomáticos quanto acadêmicos nosEstadosUnidos,eemcírculosaindamaisamplosnaEuropa.Osgovernantesárabessão,assim,capazesde esmagar dezenas de milhares de seu próprio povo, como na Síria e na Argélia, ou centenas demilhares,comonoIraqueenoSudão,paraprivaroshomensdamaiorpartedeseusdireitoscivis–e,asmulheres,detodos–eparadoutrinarcriançasnasescolascomintolerânciaeódiocontraoutrassemqueissoprovoquenenhumprotesto significativodamídiaedas instituições liberaisnoOcidentee,menosainda,qualquerindíciodepuniçõescomoboicotes,retiradadeinvestimentosoudenúnciasemBruxelas.Narealidade,essaassimchamadaatitudediplomáticaperantegovernosárabestemsidoprofundamentedanosa para os povos árabes, um fato a respeito do qual estão tomando consciência de umamaneirapenosa.

TalcomomuitosvêemnoOrienteMédio,aposiçãobásicadosgovernoseuropeusenorte-americanoé:“Nãonospreocupamoscomoquevocêsfazemcomseusprópriospovosemseuspaíses,desdequesejamcooperativosematendernossasnecessidadeseprotegernossosinteresses.”

Às vezes, mesmo nos casos que envolviam seus interesses, os governos norte-americanos traíramaquelesaquemhaviamprometidoapoiarepersuadidoacorrerriscos.Umexemplonotávelocorreuem1991,quandoosEstadosUnidosconclamaramopovo iraquianoase revoltarcontraSaddamHussein.AssimfizeramoscurdosnonortedoIraqueeosxiitasnosuldopaís,easforçasvitoriosasdosEstadosUnidossentaram-seeassistiramSaddamHussein,usandooshelicópterosqueoacordodecessar-fogohavia permitidoquemantivesse, eliminar e trucidar de forma sanguinária grupopor grupo, regiãoporregião.

A lógica por trás dessa ação – ou,melhor dizendo, inação – não é difícil de ver. Sem dúvida, acoalizãovitoriosanaGuerradoGolfoqueriaumamudançadegovernonoIraque,masesperavaporumgolpedeEstado,nãoumarevolução.Viaumtípicolevantamentopopularcomoperigoso–poderialevarà incerteza oumesmo à anarquia na região. Poderia atémesmo produzir um estado democrático, umaperspectivaalarmanteparaos“aliados”daAméricanaregião.Umgolpeseriamaisprevisível,epoderialevaraoresultadodesejado:asubstituiçãodeSaddamHusseinporoutroditadormaiscooperativo,queocupasseseulugarentreosaliadosdacoalizão.Essapolíticafalhoucompletamente,efoiinterpretadanaregiãocomotraiçãooufraqueza,insensatezouhipocrisia.

OutroexemplodousodedoispesoseduasmedidasocorreunacidadesíriadeHamaem1982.Osproblemascomeçaramcomumlevanteencabeçadopelogruporadical IrmãosMuçulmanos.Ogovernosíriorespondeurapidamente,ecomforçatotal.Nãousoucanhõesdeáguanembalasdeborracha,nemmandou soldados enfrentar livre-atiradores e armadilhas de minas em buscas de casa em casa paraencontrare identificar seus inimigosentreapopulaçãocivil local.Seumétodo foimais simples,maisseguro emais rápido.Atacaram a cidade com tanques, artilharia e bombardeiros aéreos, seguidos debulldozersparacompletarotrabalhodedestruição.Dentrodemuitopoucotempo,haviamreduzidoumagrande parte da cidade a ruínas.O número de pessoasmortas foi estimado pelaAnistia Internacionalcomoalgoentredezmile25mil.

Aação,ordenadaesupervisionadapelopresidentesírio,Hafizal-Assad,chamoupoucaatençãona

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época.Essareaçãofracacontrastavanitidamentecomaquelaevocadaporoutromassacre,poucosmesesdepois,nomesmoano,noscamposderefugiadosemSabraeShatila,noLíbano.Naquelaocasião,700ou800palestinosforammassacradosporumamilíciacristãlibanesaaliadaaIsrael.IssoprovocouumacondenaçãoaIsraelenérgicaegeneralizada,quereverberaatéhoje.OmassacreemHamanãoimpediuosEstadosUnidosde,emseguida,cortejarAssad,querecebeuumalongasériedevisitasdeSecretáriosdeEstadonorte-americanos–JamesBaker(11vezesentresetembrode1990ejulhode1992),WarrenChristopher(15vezesentrefevereirode1993efevereirode1996)eMadelineAlbright(quatrovezesentresetembrode1997ejaneirode2000)–einclusivedopresidenteClinton(umavisitaàSíriaedoisencontrosnaSuíçaentrejaneirode1994emarçode2000).ÉmuitoimprovávelqueosEstadosUnidossemostrassem tãoávidospara fazeraspazescomumdirigenteque tivesseperpetrado tais crimesemsoloocidental, comvítimasocidentais.Hafiz al-Assadnunca se tornouumaliadonorte-americanoou,comooutrosdiriam,umamarionete,mascertamentenãofoiporfaltadeesforçosdadiplomacianorte-americana.

Osfundamentalistasestavamconscientesdeumaoutradisparidade–outrocasonãomenosdramáticode dois pesos, duas medidas. Aqueles massacrados em Hama, cujas mortes provocaram tão poucapreocupação no Ocidente, eram IrmãosMuçulmanos, suas famílias e vizinhos. Aos olhos ocidentais,assimparecia,osdireitoshumanosnãoseaplicavamavítimasmuçulmanasdevotas,nemoscontrolesdemocráticosaseusassassinos“seculares”.

A falta de confiança ocidental nos movimentos políticos islâmicos e a disposição de tolerar oumesmo apoiar ditadores quemantivessem taismovimentos fora do poder apareceram de forma aindamaisdramáticanocasodaArgélia,ondeumanovaconstituiçãodemocráticafoiadotadaporreferendoemfevereirode1989eosistemamultipartidáriofoioficialmenteestabelecidoemjulhodaqueleano.Emdezembrode1991,aFrenteIslâmicadeSalvação(FIS)saiu-semuitobemnoprimeiroturnodaseleiçõespara aAssembléiaNacional, epareciamaisdoqueprovávelque teriaumaclaramaioriano segundoturno.AFISjáhaviadesafiadoosmilitaresargelinos,acusando-osdeseremmaisinclinadosareprimirseu próprio povo que a ajudar um irmão necessitado.O irmão necessitado era SaddamHussein, cujainvasãodoKuwait edesafioaoOcidentehaviamprovocadograndeentusiasmoentre fundamentalistasmuçulmanos na África doNorte, persuadindo seus líderes a transferir para o novo herói iraquiano alealdadeatéentãoprestadaaseuspatronossauditas.Emjaneirode1992,apósumintervalode tensãocrescente, os militares cancelaram o segundo turno das eleições. Nos meses que se seguiram,dissolveram a FIS e estabeleceram um regime “secular”, de fato uma ditadura cruel, sob sinais deaprovaçãovindosdeParis,Washingtonedeoutrascapitaisocidentais.Seguiu-seumconflitopenosoemortífero, com acusações recíprocas de massacre – de fundamentalistas, pelo exército e por outrosinstrumentos menos formais do governo, e de secularistas, modernistas e espectadores, pelosfundamentalistas. Em 1997, a Anistia Internacional avaliou o número de vítimas desde o início doconflitoem80mil,sendoamaioriadecivis.

A Al-Qaeda julgou explicitamente os Estados Unidos como responsáveis pelo golpe militar naArgélia.Aqui, como emoutros lugares, aAmérica, como a potência dominante nomundodos infiéis,naturalmentefoiacusadadetudooquedeuerradoe,maisespecificamente,dasupressãodosmovimentosislâmicos, da matança de seus seguidores e do estabelecimento do que foi visto como ditadurasantiislâmicas com o apoio ocidental e, para sermais exato, norte-americano. Aqui também os norte-americanos foram acusados – por muitos, por não protestar contra essa violação das liberdadesdemocráticas; por alguns, por encorajar e apoiar ativamente o regimemilitar. Problemas semelhantessurgiramnoEgito,noPaquistãoeemalgunsoutrospaísesmuçulmanosondepareciaprovávelqueumaeleiçãoverdadeiramentelivreelimparesultasseemumavitóriaislâmica.

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Nisso, é claro, os democratas estão emdesvantagem.Sua ideologia requer que,mesmoquandonopoder, dêem liberdade e direitos à oposição islamita. Os islamitas, quando no poder, não estãosubmetidos a tal obrigação. Ao contrário, seus princípios requerem que reprimam o que vêem comoatividadesímpiasesubversivas.

Paraosislamitas,ademocracia,expressandoavontadepopular,éocaminhoparaopoder,maséumaestrada de mão única, na qual não há retornos e nenhuma rejeição da soberania de Deus tal comoexercida através de seus representantes escolhidos. Sua política eleitoral tem sido classicamenteresumidacomo“Umhomem(apenashomens),umvoto,umavez”.

Claramente,nomundo islâmico, tal comoeranaEuropa,umaeleição livree justaéoauge,nãoainauguração,doprocessodedesenvolvimentodemocrático.Mas issonãoénenhumarazãoparamimarditadores.

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7|UmFracassodaModernidadeQuasetodoomundomuçulmanoéafetadoporpobrezaetirania.Ambososproblemassãoatribuídos,

especialmente por aqueles interessados em desviar a atenção de simesmos, aos EstadosUnidos – oprimeiro, à dominância e exploração econômicas norte-americanas, agora apenas superficialmentedisfarçada de “globalização”; o segundo, ao apoio norte-americano a muitos dos chamados tiranosmuçulmanosqueservemaseuspropósitos.Aglobalizaçãotornou-seumdostemasmaisimportantesnamídia árabe, e é quase sempre suscitada em associação à penetração econômica norte-americana. Asituação cadavezmaisdeplorável da economianamaiorpartedomundomuçulmano, comparadanãoapenas com o Ocidente, mas também com as economias rapidamente em ascensão do leste da Ásia,alimentaessasfrustrações.Asupremacianorte-americana,comooOrienteMédioavê,indicaparaondedirigiraculpaeahostilidaderesultantes.

A combinação de baixa produtividade e alta taxa de natalidade no Oriente Médio produz umacombinação instável, com uma grande população que cresce com rapidez de homens jovensdesempregados,seminstruçãoefrustrados.SegundotodososindicadoresdasNaçõesUnidas,doBancoMundialedeoutrasautoridades,ospaísesárabes–emquestõescomogeraçãodeempregos,educação,tecnologiaeprodutividade–estãoficandocadavezmaispara trásdoOcidente.Piorainda,asnaçõesárabes tambémestãomaisatrasadasdoqueosmais recentes recrutasdamodernidadeestiloOcidente,comoCoréia,TaiwaneCingapura.

Osdadoscomparativosdodesempenhodospaísesmuçulmanos,talcomorefletidonessasestatísticas,são arrasadores. Na classificação das economias segundo o Produto Interno Bruto (PIB), o país demaioriamuçulmana com amais alta classificação é a Turquia, com 64milhões de habitantes, em 23ªcolocação,entreÁustriaeDinamarca,cadaumacomcincomilhões.OsegundoéaIndonésia,com212milhões,em28ºlugar,antecedidopelaNoruega,com4,5milhões,eseguidopelaArábiaSaudita,com21milhões.Nacomparaçãoporpoderdecompra,oprimeiroEstadomuçulmanoéaIndonésia,em15ºlugar,seguidopelaTurquiano19º.Opaís árabe commais alta colocaçãoé aArábiaSaudita, em29º lugar,seguida pelo Egito. Em termos de padrões de vida medidos pelo PIB per capita, o primeiro EstadomuçulmanoéoQatar,em23ºlugar,seguidopelosEmiradosÁrabesUnidosno25ºeKuwaitno28º.

Emumaclassificaçãosegundoaprodução industrial,opaísmuçulmanocommelhorcolocaçãoéaArábiaSaudita,nº21, seguidopela Indonésiaque, juntocomÁustriaeBélgica,ocupamo22º lugar, epelaTurquia,que,juntocomaNoruega,estáem27º lugar.Emumalistaporprodutosmanufaturados,opaísárabecommaisaltacolocaçãoéoEgito,em35ºlugar,juntocomaNoruega.Emumaclassificaçãosegundoaexpectativadevida,oprimeiroEstadoárabeéoKuwait,em32ºlugar,logoapósaDinamarcaeseguido por Cuba. Considerando o número de linhas telefônicas por cem pessoas, o primeiro paísmuçulmanolistadosãoosEmiradosÁrabesUnidos,em33ºlugar,entreMacaueRéunion.Emtermosdecomputadoresporcempessoas,oprimeiropaísmuçulmanolistadoéBahrain,em30ºlugar,seguidopeloQatar,em32º,epelosEmiradosÁrabesUnidos,em34º

A venda de livros apresenta um quadro ainda mais desolador. Uma lista de vinte e sete países,começandocomosEstadosUnidoseterminandocomoVietnã,nãoincluiumúnicoEstadomuçulmano.Emumíndicededesenvolvimentohumano,Bruneiénº32,Kuwait36,Bahrain40,Qatar41,EmiradosÁrabesUnidos44,Líbia66,Cazaquistão67,eaArábiaSaudita68,juntocomoBrasil.

O relatório sobre o Desenvolvimento Humano Árabe em 2002, preparado por um comitê deintelectuaisárabesepublicadosobosauspíciosdasNaçõesUnidas,revela,novamente,algunscontrastesdramáticos.“Omundoárabetraduzcercade330livrosanualmente,umquintodonúmerotraduzidona

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Grécia.OtotalacumuladodelivrostraduzidosdesdeaépocadocalifaMaa’moun(sic)[oséculoIX]éde cerca de cemmil, quase amédia do número de traduções feitas naEspanha emumúnico ano.”Asituação econômica não é nadamelhor: “OPIB combinadode todos os países árabes alcançou531,2bilhõesdedólaresem1999–menosqueodeumúnicopaíseuropeu,aEspanha(595,5bilhões).”Outroaspectodo subdesenvolvimentoé ilustradoemuma tabelade“pesquisadorescientíficosematividade,artigoscitadosfreqüentemente,epaperscitadosfreqüentementepormilhãodehabitantes,1987.”1

Issodificilmentepoderiasurpreender,dadososnúmeroscomparativosdeanalfabetismo.Emumaclassificaçãode155paísesconformeseugraudeliberdadeeconômicaem2001,osdoGolfo

Árabe parecem sair-se bastante bem, comBahrain sendo o nº 9, os Emirados Árabes Unidos 14 e oKuwait42.Masodesempenhoeconômicogeraldomundoárabee,emtermosmaisamplos,domundomuçulmanopermanece relativamente fraco.DeacordocomoBancoMundial, em2000a rendamédiaanualnospaísesmuçulmanos,deMarrocosaBangladesh,eraapenasametadedamédiamundial,enadécadade1990osprodutosnacionaisbrutoscombinadosdaJordânia,SíriaeLíbano, istoé, trêsdosvizinhosárabesdeIsrael–eramconsideravelmentemenoresqueoisraelense.Osnúmerospercapitasãoaindapiores.DeacordocomestatísticasdasNaçõesUnidas,oPIBpercapitadeIsraeleratrêsvezesemeiaodoLíbanoedaSíria,12vezesodaJordâniae13vezesemeiaodoEgito.

OcontrastecomoOcidente,eagora tambémcomoExtremoOriente,éaindamaisdesconcertante.Outrora,taisdiscrepânciaspoderiamterpassadodespercebidaspelavastamaioriadapopulação.Hoje,graçasàmodernamídiaeàscomunicações,mesmoosmaispobresemais ignorantesestãoduramenteconscientesdasdiferenças entre eles eoutros, e isso acontece em todososníveis–pessoal, familiar,localesocial.

Amodernizaçãopolíticanãoénadamelhor–talvezsejaatépior–quenasáreasmilitareeconômica.Muitos países islâmicos têm feito tentativas com instituições democráticas de um tipo ou outro. Emalguns,comoTurquiaeIrã,foramintroduzidasporreformistasnacionaisinovadores;emoutros,comoemváriosdospaísesárabes, foraminstaladasedepoisdeixadascomoherançapelos imperialistasqueseretiravam. Os resultados, com a exceção da Turquia, são de quase invariável fracasso. Partidos eparlamentos de estilo ocidental terminaram quase invariavelmente em tiranias corruptasmantidas porrepressãoedoutrinação.Oúnicomodeloeuropeuquefuncionou,nosentidodealcançarseuspropósitos,foi a ditaduradopartidoúnico.OPartidoBa’th, cujas diferentes facções têmgovernadoo Iraque e aSíriapordécadas,incorporouospioresaspectosdeseusmodelosnazistaesoviético.Desdeamortedopresidente egípcioNasser, em1970,nenhum líder árabe foi capazdeganhar amploapoio forade seupróprio país.Naverdade, nenhum líder árabe temmostradodisposiçãode submeter sua aspiração aopoderaovotolivre.Oslíderesquechegarammaispertodeganharumaaprovaçãopan-árabesãoolíbioMu‘ammarQaddafi,nadécadade1970,e,maisrecentemente,SaddamHussein.Queessesdois,dentre

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todososgovernantesárabes,devamgozardetãoamplapopularidadeé,emsimesmo,tantoassustadorquantorevelador.

Em vista disso, dificilmente poderia surpreender o fato de quemuitosmuçulmanos falem sobre ofracasso da modernização e respondam a diferentes diagnósticos da doença de suas sociedades comdiferentesreceitasparasuacura.

Para alguns, a resposta émais emelhormodernização, alinhando o OrienteMédio com omundomodernoeemviasdemodernização.Paraoutros,amodernidadeé,porsisó,oproblemaeafontedetodasasmisérias.

AspessoasnoOrienteMédioestãocadavezmaisconscientesdoprofundoecrescentehiatoentreasoportunidadesdomundolivrealémdesuasfronteiraseaprivaçãoerepressãochocantesdentrodelas.Araivadaíresultanteénaturalmentedirigida,primeiro,contraseusgovernose,depois,contraaquelesque,paraelas,mantêmessesgovernantesnopoderporrazõesegoístas.Écertamentesignificativoquetodososterroristasidentificadosnosataquesde11desetembroemNovaYorkeWashingtontenhamvindodaArábia Saudita e do Egito, isto é, de países cujos governantes são considerados amigos dos EstadosUnidos.

Umarazãoparaessefatocurioso,apresentadaporumagentedaAl-Qaeda,équeterroristasdepaísesamigostêmmenosdificuldadesparaconseguirvistosnorte-americanos.OutrarazãomaiselementaréomaiorgraudehostilidadeexistenteempaísesondeosEstadosUnidossãotidoscomoresponsáveispelamanutençãode regimes tirânicos.Umcasoespecial, agora sobcadavezmais fiscalização, éaArábiaSaudita, onde elementos significativos no próprio regime parecem, de tempos em tempos, partilhar efomentaressahostilidade.

1TheArabHumanDevelopmentReport2002:CreatingOpportunities forFutureGenerations,patrocinadopeloBureauRegionalparaosEstadosÁrabes/PNUD,FundoÁrabeparaoDesenvolvimentoEconômicoeSocial.

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8|AAliançaentreoPoderSauditaeoEnsinamentoWahhabi

A rejeição damodernidade a favor de um retorno ao passado sagrado tem uma história variada eramificadanaregião,edeuorigemaumgrandenúmerodemovimentos.Omais importantedessesfoi,sem dúvida, aquele conhecido como wahhabismo, palavra derivada do nome de seu fundador.Muhammadibn‘Abdal-Wahhab(1703-1792) foiumteólogodaregiãodeNajd,naArábia,governadaporxequesdaCasadeSaud.Em1744,lançouumacampanhadepurificaçãoerenovação.SeuobjetivodeclaradoeraretornaraopuroeautênticoislãdoFundador,removendoe,ondenecessário,destruindotodososposterioresacréscimosedistorções.

AcausawahhabifoiabraçadapelosgovernantessauditasdeNajd,queapromoveram,comsucessotemporário,pelaforçadasarmas.Emumasériedecampanhas, levaramseudomínioesuaféagrandepartedaArábiacentraleoriental,echegaramafazerincursõeshostisàsterrasdoCrescenteFértilsobdireta administração otomana. Após saquear Karbala, a cidade sagrada xiita do Iraque, voltaram suaatenção para o Hijaz, ocupando e – nas suas palavras – purificando as cidades sagradas deMeca eMedinaem1804-1806.Aessaaltura,eraclaroqueestavamconfrontandoedesafiandoosultãootomano,acusado publicamente pelos governantes sauditas como um apóstata da fémuçulmana e um usurpadorocupandoumEstadomuçulmano.

OImpérioOtomano,mesmonaqueleestágiodeseudeclínio,foicapazdelidarcomumrebeldedodeserto.ComaajudadopaxádoEgitoesuasforças,completou-seatarefaem1818,quandoacapitalsauditafoiocupadaeseuemirmandadoparaIstambuledecapitado.TemporariamenteoEstadosauditadeixavadeexistir,masadoutrinawahhabisobreviveue,porvoltade1823,outromembrodaCasadeSaudconseguiureconstituiroprincipado,comsuacapitalemRiad.Maisumavez,oschefes locaisdaCasadeSaudajudaramosrepresentantesdadoutrinawahhabieforamajudadosporeles.

EssesurgimentodowahhabismonaArábiadoséculoXVIIIfoi,significativamente,umarespostaàscircunstâncias cambiantes da época.Umadessas era, por certo, a retirada do islã e o correspondenteavançoda cristandade.Hámuito isso já vinha acontecendo, umprocesso lento e gradual iniciadonasperiferiaslongínquasdomundoislâmico.NoséculoXVIII,jáeravisívelatémesmonocentro.Alonga,lentaretiradadosotomanosdosBálcãseoavançodosinglesesnaÍndiaaindaestavammuitodistantesdaArábia, mas seu impacto foi sentido, tanto através dos otomanos quanto no Golfo Pérsico, e estavaclaramenterefletidoentreosperegrinosquevinhamàArábiatodososanosdetodasaspartesdomundomuçulmano.Airadoswahhabisdirigia-seemprimeirolugarnãocontraosdefora,mascontraaquelesqueviamcomotraindoedegradandooislãapartirdedentro:deumlado,osquetentavamqualquertipode reforma modernizadora; de outro – e esse era o alvo mais imediato –, aqueles que oswahhabisconsideravamresponsáveispelacorrupçãoedegradaçãodaverdadeiraherançaislâmicadoProfetaedeseusCompanheiros.Opunham-secomveemência,éclaro,aqualquerescolaouversãodoislã,fosseelasunita ou xiita, diferente de sua própria. Opunham-se, particularmente, ao sufismo, condenando nãoapenasseumisticismoetolerância,mastambémoqueviamcomocultospagãosaeleassociados.

Sempre que podiam, exigiam o cumprimento de suas crenças com a mais extrema severidade eferocidade,demolindotúmulos,violandooquechamavamlocaissagradosfalsoseidólatrasetrucidandogrande número de homens,mulheres e crianças que deixassemde atender a seus padrões de pureza eautenticidade islâmicas.Outra prática introduzida por Ibn ‘Abd al-Wahhab foi a censura e queima delivros.Eramprincipalmente trabalhos islâmicossobre teologiae legislação,consideradoscontráriosàdoutrinawahhabi.Aqueimadelivrosfreqüentementeeraacompanhadadaexecuçãosumáriadosqueos

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haviamescrito,copiadoouensinado.AsegundaaliançaentreadoutrinawahhabieatropasauditacomeçounosúltimosanosdoImpério

Otomanoecontinuaatéosdiasdehoje.DoisacontecimentosdoiníciodoséculoXXtransformaramowahhabismoemumadasgrandesforçasatuantesnomundoislâmicoeforadeletambém.Oprimeirofoiaexpansãoeconsolidaçãodoreinosaudita.NosúltimosanosdoImpérioOtomano,oxeque‘Abdal-‘AzizIbnSaud (nascidoporvoltade1880, tendo reinadode1902a1953) jogouhabilmentecomoconflitoentreosotomanos,deumlado,eocrescentepoderbritâniconaArábiaoriental,dooutro.Emdezembrode 1915, assinou um acordo com a Inglaterra pelo qual, preservando sua independência, obteve umsubsídio e uma promessa de ajuda, caso sofresse um ataque. O fim da guerra e a queda do ImpérioOtomanoencerraramessafaseedeixaram-nosozinho,caraacaracomaInglaterra.Saiu-semuitobemnesse novo arranjo e, pouco a pouco, foi capaz de expandir o reino herdado. Em 1921, finalmentederrotounonortedeNajd seu rivalde longadata, IbnRashid, e, anexandoseus territórios, assumiuotítulodesultãodeNajd.

EstavaprontoocenárioparaumconflitomaiscrucialpelocontroledoHijaz.Essaterra,incluindoasduascidadessagradasmuçulmanasdeMecaeMedina,haviasidogovernadapormembrosdadinastiahashimita,descendentesdoProfeta,pormaisdeummilênio,eestivera,nosséculosmaisrecentes,sobfrouxasuseraniaotomana.Oestabelecimentodasmonarquiashashimitas,encabeçadasporváriosramosda família, no Iraque e na Transjordânia, como parte da reestruturação de antigas províncias árabesotomanasapósaPrimeiraGuerraMundial,foivistaporIbnSaudcomoumaameaçaaseupróprioreino.Apósanosderelaçõesdeteriorantes,oreiHusseindoHijazforneceuumpretextoduplo,proclamando-secalifa e, depois, recusando-se a permitir que peregrinoswahhabi chegassem às cidades sagradas. IbnSaudrespondeuinvadindooHijazem1925.

Aguerradeconquistasauditafoiumsucessocompleto.SuastropascapturaramprimeiroMeca;eem5dedezembrode1925,apósumsítiodedezmeses,Medinaentregou-sepacificamente.Duassemanasdepoiso rei ‘Ali,quehaviasucedidoseupai,Hussein,pediuaovice-cônsulbritânicoemDjeddaqueinformasseIbnSauddesuasaídadoHijazapenascomseuspertencespessoais. Issofoi tomadocomoumaabdicaçãoe,nodiaseguinte,asforçassauditasentraramemDjedda.OcaminhoestavaentãoabertoparaIbnSaudproclamar-sereidoHijazesultãodeNajdesuasdependências,em8dejaneirode1926.Onovo regime foi imediatamente reconhecidopelas autoridades européias, e demaneiranotável pelaUniãoSoviética,emumanotadiplomáticade16defevereiroparaIbnSaud,“combasenoprincípiododireitodeautodeterminaçãodospovoseemrespeitoàvontadedopovodoHijaz,conformeexpressadaem sua escolha de tê-lo como seu rei”.1 Um tratado formal entre Ibn Saud e a Grã-Bretanha,reconhecendo a plena independência do reino, foi assinado em 20 de maio de 1927. Alguns outrosEstadoseuropeusfizeramomesmo.

Oreconhecimentomuçulmano,aocontrário,foimaislentoemaisrelutante.UmamissãomuçulmanavindadaÍndiavisitouDjeddaesolicitouqueoreiabrissemãodocontroledascidadessagradasparaumcomitêderepresentantesaseremindicadosportodosospaísesmuçulmanos.IbnSaudnãorespondeuaesse pedido e mandou a missão de volta à Índia por mar. Em junho do mesmo ano, convocou umCongresso Islâmico em Meca, convidando os soberanos e presidentes dos Estados muçulmanosindependentes e representantes de organizações muçulmanas em países sob governo não-muçulmano.Participaramdocongresso69pessoasde todasaspartesdomundo islâmico.Dirigindo-sea eles, IbnSauddeixouclaroqueeraagoraogovernantedoHijaz.Cumpririasuasobrigaçõescomoguardiãodoslocais sagrados e protetor da peregrinação, mas não permitiria nenhuma intervenção externa no seudesempenhodessastarefas.

Na época, isso produziu reações variadas entre seus convidados. Alguns discordaram e partiram;

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outros aceitarame reconheceramanovaordem.Notável entreosúltimos foi o chefedadelegaçãodemuçulmanos daUnião Soviética, cujo líder, em uma entrevista à agência soviética de notícias TASS,anunciouqueoCongressoIslâmicohaviareconhecidooreiIbnSaudcomoguardiãodoslocaissagrados;havia também requeridoa transferênciadepartesda Jordâniaparaonovo reinodoHijaz e, demodogeral,expressadoapoioaIbnSaud.OreconhecimentopelosEstadosmuçulmanose,maisainda,pelosEstadosárabes,levoumuitomaistempo.TratadosdeamizadeforamassinadoscomaTurquiaeoIrãem1929,comoIraqueem1930ecomaJordâniaem1933.AanexaçãosauditadoHijaznãofoiformalmentereconhecidapeloEgitoatéoacordodemaiode1936.

Enquantoisso,IbnSaudseguiurapidamentecomareorganizaçãoereestruturaçãodeseuvastoreinoe,emsetembrode1932,proclamouumnovoEstadounitário,aserchamadoReinodaArábiaSaudita.Noanoseguinte,indicouseufilhomaisvelho,Saud,comoherdeirodotrono.

Ooutrograndeacontecimentoqueafetouaregiãosedeunomesmoano,comaassinatura,em19demaiode1933,deumacordoentreoministrodasFinançassauditaeumrepresentantedaStandardOildaCalifórnia.Aspolíticas sauditas e asdoutrinaswahhabi estavamagoraapoiadasemsólidos alicerceseconômicos.

InteressesocidentaisnopetróleodoOrienteMédiodatamdoiníciodoséculoXX,eforamdirigidosprincipalmenteporcompanhias inglesas,holandesase francesas.O interessenorte-americanocomeçounosprimeirosanosdadécadade1920,comapreocupaçãocadavezmaiorquantoaoesgotamentodasreservas domésticas de petróleo e o receio de um monopólio europeu sobre a produção do OrienteMédio.Ascompanhiasnorte-americanascomeçaramaentrarnomercadodepetróleodoOrienteMédiocomo parceiros minoritários em consórcios europeus. A Standard Oil da Califórnia foi a primeiracompanhia dos EstadosUnidos a se envolver profundamente na exploração do petróleo.Após algunsesforços não-conclusivos nos Estados do Golfo, a Standard Oil finalmente buscou os sauditas e, em1930,solicitoupermissãoparaumaexploraçãogeológicanasprovínciasorientais.Deinício,oreiIbnSaud recusou, mas depois concordou com negociações que culminaram no acordo de 1933. Um dosfatores que o induziram a mudar de idéia foi, sem dúvida, a depressão que tivera início em 1929 etrouxeraumagraveecrescentedeterioraçãoàsfinançasdoreino.

Menos de quatro meses após a assinatura do acordo, os primeiros geólogos norte-americanoschegaramàArábiaoriental.No finaldoano,amissãoexploratóriaestavabem-estabelecida,enoanoseguinteasequipesnorte-americanascomeçaramaextraçãoeaexportaçãodopetróleo.Oprocessodedesenvolvimento foi interrompido pela Segunda Guerra Mundial e retomado quando os conflitosterminaram. Pode-se ter uma idéia da escala do empreendimento através da quantidade de petróleoextraídonaArábia,emmilhõesdebarris:1945,21,3;1955,356,6;1965,804,8;1975,2.582,5.

O fluxo de petróleo que saía e o correspondente fluxo de recursos que entrava trouxeram imensasmudançasaoreinosaudita,suaestrutura internaemododevidaeseupapelexternoe influência, tantonos países consumidores de petróleo quanto, mais forte ainda, no mundo do islã. A mudança maissignificativafoinoimpactodowahhabismoenopapeldeseusprotagonistas.Owahhabismoeraagoraadoutrinaoficial,impostapeloEstadodeumdosmaisinfluentesgovernosdetodooislã–oguardiãodosdoislocaismaissagrados,oanfitriãodaperegrinaçãoanual,quetrazmilhõesdemuçulmanosdetodasaspartesdomundoparaseusritoserituais.Aomesmotempo,osinstrutoresepregadoresdowahhabismotinham à sua disposição recursos financeiros ilimitados, que usavam para promover e disseminar suaversão do islã.Mesmo em países ocidentais na Europa e nos Estados Unidos, que dispõem de bonssistemasde ensinopúblico,os centrosdedoutrinaçãowahhabi podemseroúnicomodode formaçãoislâmicadisponívelparanovosconvertidoseparapaismuçulmanosquequeremdaraseusfilhosalgumabase sobre suas próprias heranças e tradições religiosas e culturais.Essa doutrinação é oferecida em

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escolasparticulares, seminários religiosos,escolasemmesquitas,colôniasde fériase,cadavezmais,prisões.

Nouso tradicional islâmico,o termomadrasadenotavaumcentrosuperiordeeducação,erudição,ensino e pesquisa. Omadrasa islâmico clássico foi o antecessor e, de várias maneiras, forneceu omodelo para as grandes universidades européias medievais. No uso moderno, a palavra madrasaadquiriusentidonegativo:acaboupordenotarumcentrodedoutrinaçãoemintolerânciaeviolência.Umexemploreveladorpodeservistonaformaçãodemuitosdosturcospresossobsuspeitadecumplicidadeematividadesterroristas.TodosnascerameforameducadosnaAlemanha,nenhumdelesnaTurquia.Ogovernoalemãonãosupervisionaaeducaçãoreligiosadegruposminoritários.Ogovernoturcomantémumolhoatentosobreessasquestões.NaEuropaenosEstadosUnidos,devidoàrelutânciadosEstadosemseenvolverememassuntosreligiosos,oensinodoislãemescolaseemoutros locais temsido,demodogeral, totalmentesemsupervisãodasautoridades.Essasituaçãoclaramentefavoreceaquelesquetêmmenorgraudeescrúpulos,asmaisfortesconvicçõesemaisdinheiro.

Oresultadotalvezpossasermostradoatravésdeumparaleloimaginário.SuponhamosqueaKuKluxKlanoualgumgruposimilarganhetotalcontroledoEstadodoTexas,deseupetróleoe,portanto,desuasreceitas do petróleo, e, tendo feito isso, use esse dinheiro para estabelecer uma rede de escolas euniversidadesbem-dotadasportodaacristandade,mascateandoseutipopeculiardecristianismo.Esseparalelo éum tantomenos terrível que a realidade, já que amaiorpartedospaíses cristãos tem seuspróprios sistemas de escolas públicas em funcionamento. Em alguns países muçulmanos isso nãoacontece, e as escolas e universidades financiadas pelos wahhabis representam, para muitos jovensmuçulmanos,aúnicaformaçãodisponível.Poressesrecursos,oswahhabis levaramsuamensagemportodoomundoislâmicoe,cadavezmais,pelascomunidadesminoritáriasemoutrospaíses,notavelmentena Europa e na América do Norte. A vida pública muçulmana, a educação, e até mesmo a práticareligiosasão,numadimensãoalarmante,financiadase,portanto,dirigidasporwahhabis,eaversãodoislã que eles praticam e pregam é dominada por princípios e atitudeswahhabi. A custódia sobre oslugaressagradoseasreceitasdopetróleoconferiramimpactomundialaoque,deoutraforma,teriasidoumcontornoextremistaemumpaísmarginal.

Aexploraçãodopetróleo trouxeumaenormeenovaopulência e, comela, novas e cadavezmaisamargas tensões sociais.Naantiga sociedade,desigualdadesde riquezahaviamsido limitadas, e seusefeitoseramcontidos–deum lado,pelos laçoseobrigaçõessociais tradicionaisque ligavamricosepobres e, de outro, pela privacidade da vida doméstica muçulmana. Com muita freqüência, amodernização temaumentadoasdiferenças,destruídoos laços sociaise, atravésdauniversalidadedamídiamoderna,tornadovisíveisasdesigualdadesresultantesdeumaformasevera.Tudoissotemcriadopúblicosnovosereceptivosaosensinamentoswahhabiedeoutrosgruposcommentalidadesemelhante,entreelesosIrmãosMuçulmanos,noEgitoenaSíria,eoTalibãnoAfeganistão.

A riqueza do petróleo também teve efeitos políticos negativos, ao inibir o desenvolvimento deinstituições representativas. “Não haverá taxação sem representação” marca um passo crucial nodesenvolvimento da democracia ocidental. Infelizmente, o oposto também é verdadeiro – não hárepresentação sem taxação. Governos cuja riqueza deriva do petróleo não têm necessidade deassembléiaspopularesparaimporearrecadarimpostos,epodemsedaroluxo,poralgumtempo,pelomenos,deignoraraopiniãopública.Mesmoestalimitaçãotempoucosignificadoemsociedadescomoessas. Sem qualquer outra válvula de escape, descontentes novos e progressivos também encontramexpressãoemmovimentosextremistasreligiosos.

Já se tornou normal descrever esses movimentos como fundamentalistas. É um termo infeliz, pordiversas razões. Originalmente, era um termo protestante norte-americano usado para designar certas

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igrejas protestantes que diferiam, em alguns aspectos, das igrejas convencionais. As duas principaisdiferençaseramateologialiberalealeituracríticadaBíblia,ambasvistascomoobjetáveis.Ateologialiberalcostumavaserumaquestãoentremuçulmanosnopassado,epodeviraserdenovonofuturo.Nopresente,nãoé.AdivindadeliteraleainfalibilidadedoAlcorãoéumdogmabásicodoislã,e,emboraalgunspossamterdúvidas,ninguémocontesta.Essasdiferençasnãoguardamqualquersemelhançacomaquelasquedividemosfundamentalistasmuçulmanosdacorrenteprincipalislâmica,eotermo,portanto,pode levar a um engano. No entanto, tornou-se uso comum agora, e tem atémesmo sido literalmentetraduzidoemárabe,persaeturco.

O eclipse do pan-arabismo deixou os fundamentalistas islâmicos como a alternativamais atraenteparatodosaquelesquesentiamquetemdehaveralgomelhor,maisverdadeiroemaispromissorqueastiranias ineptas de seus governantes e as ideologias falidas impostas pelo exterior. Essesmovimentosalimentam-sedeprivaçõesehumilhações,bemcomodafrustraçãoedoressentimentogeradosporelasapós o fracasso de todas as panacéias políticas e econômicas, tanto as importadas quanto as suasimitaçõeslocais.ComoentendidopormuitosnoOrienteMédioenaÁfricadoNorte,ocapitalismoeosocialismo foram experimentados e ambos falharam; tanto os modelos ocidentais quanto os orientaisproduziram apenas pobreza e tirania. Pode parecer injusto que na Argélia pós-independência, porexemplo,oOcidente fosseculpadopelaspolíticaspseudostalinistasdeumgovernoantiocidental,pelofracassodeumasepelasinaptidõesdooutro.MasosentimentopopularnãoestáinteiramenteerradoaoveroOcidenteeasidéiasocidentaiscomoaprincipalfontedasmaioresmudançasquetransformaramomundo islâmico no último século ou mais. Em conseqüência disso, grande parte da raiva do mundoislâmico é dirigida contra os ocidentais, vistos como o antigo e imemorial inimigo do islã desde osprimeiros embates entre os califasmuçulmanos e os imperadores cristãos, e contra o ocidentalizador,vistocomoumaferramentaoucúmplicedoOcidenteetraidordesuaprópriaféedeseupovo.

Ofundamentalismoreligiosodesfrutadediversasvantagenscomrelaçãoaideologiasconcorrentes.Éprontamente inteligível tantoparaosmuçulmanos instruídosquantoparaosnão-instruídos.Ofereceumconjuntodetemas,slogansesímbolosprofundamentefamiliarese,portanto,efetivosemmobilizarapoioe em formular tanto uma crítica do que está errado quanto um programa de correções. MovimentosreligiososcontamcomoutravantagempráticaemsociedadescomoasdoOrienteMédioedaÁfricadoNorte que estão sob regimes mais ou menos autocráticos: ditadores podem proibir partidos, podemproibirreuniões–masnãopodemproibirprecespúblicas,eapenasdecertaformaconseguemcontrolarossermões.

Comoresultado,osgruposdeoposiçãoreligiosossãoosúnicosquetêmlocaisregularesdereuniãoondepodemcongregar-seeteràsuadisposiçãoumaredeforadocontroledoEstadoou,pelomenos,nãototalmentesubmetidaaele.Quantomaisopressororegime,maiseleajudaosfundamentalistasaolhesdaromonopóliovirtualdaoposição.

O radicalismo islâmicomilitante não é novo. Por diversas vezes, desde os princípios do impactoocidental, no séculoXVIII, têm existidomovimentos de oposiçãomilitantes expressando-se com teorreligioso.Atéagora,todosfracassaram.Àsvezes,deumamaneirasimpleserelativamenteindolor,sendoderrotadosereprimidos.Nessescasos,acoroadomartíriolhestrouxeumaespéciedesucesso.Outrasvezes, fracassaram da maneira mais difícil, ganhando poder e tendo, assim, que enfrentar grandesproblemaseconômicosesociaisparaosquaisnãodispunhamderespostasconcretas.Oqueaconteceuusualmente foiquese tornaram,no tempodevido, tãoopressoresecínicosquantoosantecessoresquederrubaram.Éentãoquepodemviraserdefatoperigosos,quando,parausarumatipologiaeuropéia,arevoluçãoentranafasenapoleônica–ou,talvezsedevessedizer,nafasestalinista.Emumprogramadeataque e expansão, esses movimentos se beneficiariam, como seus predecessores jacobinos e

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bolcheviques,davantagemdequintas-colunasemtodosospaísesecomunidadescomosquaispartilhamummesmouniversodiscursivo.

Emtermosamplos,osfundamentalistasmuçulmanossãoaquelesquesentemqueosatuaisproblemasdomundomuçulmanoresultamnãodemodernização insuficiente,masdeexcessivamodernização,quevêemcomoumatraiçãoaosautênticosvaloresislâmicos.Paraeles,asoluçãoéumretornoaoverdadeiroislã,incluindoaaboliçãodetodasasleisedeoutrosarranjossociaistomadosemprestadosdoOcidente,comarestauraçãodaLeiSagradaislâmica,ashari’a,comoaefetivaleidaterra.Desuaperspectiva,oconflito básico não é contra o intruso ocidental, mas contra o traidor ocidentalizador em casa. Seusinimigosmaisperigosos,segundovêem,sãoosmuçulmanosfalsoserenegadosquegovernamospaísesdomundoislâmicoequeimportarameimpuseramcostumesinfiéisaosseuspovos.

Aquestãoéclaramentedesenvolvidaemumpanfletode‘Abdal-SalamFaraj,umegípcioexecutadoemabrilde1982juntocomoutrosacusadosdeteremplanejadoeinstigadooassassinatodopresidenteSadat.Seuscomentárioslançamalgumaluzsobreamotivaçãodaqueleato:

Abasedaexistênciadoimperialismonasterrasdoislãsãoessesmesmosgovernantes.Paracomeçar,alutacontraoimperialismoéumtrabalhonemgloriosonemútil,masapenasumaperdadetempo.Nossaobrigaçãoénosconcentrarmosemnossacausaislâmica,eissosignificaoestabelecimento,antesdequalquercoisa,daleideDeusemnossoprópriopaíseofazercomqueprevaleçaapalavradeDeus.Nãohádúvidadequeoprimeirocampodebatalhada jihadéaextirpaçãodessas lideranças infiéisesuasubstituiçãoporumaordemislâmicaperfeita,edaíviráaliberaçãodenossasenergias.2

Nos poucos momentos que se passaram entre o assassinato do presidente Sadat e a prisão dosassassinos,seulíderexclamoutriunfantemente:“EumateioFaraó!Nãotenhomedodemorrer.”Se,comofoi amplamente entendido no mundo ocidental naquela época, o delito de Sadat, aos olhos dos seusassassinos, foi fazer as pazes com Israel, a escolha do epíteto Faraó pareceria particularmenteinapropriada. Claramente, eles não estavam se referindo ao faraó dos modernos livros didáticos doEgito, a personificação da grandeza e glória do antigo Egito, mas ao Faraó do Êxodo, que, tanto noAlcorãoquantonaBíblia,éotiranopagãoqueoprimeopovodeDeus.É,semdúvida,nessesentidoqueOsamabinLadenreferiu-seaopresidenteBushcomooFaraódosnossosdias.NotempodoÊxodo,osFilhos de Israel eram o povo de Deus. A maior parte dos muçulmanos atualmente não reconhece omoderno Estado de Israel como o legítimo herdeiro dos antigos Filhos de Israel – noAlcorãoBanuIsra’il–eosassassinosdeSadatcertamentenãoaprovavamsuasnegociaçõescomaquelepaís.Mas,comoficouclaronointerrogatóriosubseqüentedosassassinoseseuscúmplices,apazcomIsraelera,aseusolhos,umfenômenorelativamentemenor–umsintoma,nãoacausadaofensamaiordeabandonarafédeDeus,oprimiropovodeDeusemacaquearasmaneirasdosinfiéis.

1CitadoemAlexeiVassiliev,TheHistoryofSaudiArabia(Londres,1998),p.265.2‘Abdal-SalamFaraj,Al-Jihad:al-Faridaal-Gha’iba(Aman,1982);traduçãoinglesaemJohannesJ.G.Jansen,TheNeglectedDuty:

TheCreedofSadat’sAssassinsandIslamicResurgenceintheMiddleEast(NovaYork,1986),p.159ss.

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9|AAscensãodoTerrorismoAmaior parte dosmuçulmanos não é composta de fundamentalistas e amaior parte desses não é

terrorista,masamaiorpartedosterroristasatuaisémuçulmanaetemorgulhodeseidentificarcomotal.Compreensivelmente,osmuçulmanosreclamamqueamídiafalademovimentoseaçõesterroristascomo“islâmicos”,eperguntamporqueamídiatambémnãoidentificaosterroristaseoterrorismoirlandêsebascocomo“cristãos”.Arespostaésimpleseóbvia–elesnãodescrevemasimesmoscomocristãos.Aqueixamuçulmanaérazoável,masdeveriaserdirigidaàquelesquesefazemmatériadenotícias,enãoaos que noticiam. Osama bin Laden e seus seguidores da Al-Qaeda podem não representar o islã, emuitas de suas declarações e ações contradizem diretamente princípios e ensinamentos islâmicosbásicos,maselessurgemdedentrodacivilizaçãomuçulmana,talcomoHitlereosnazistassurgiramdedentro da cristandade, e também têm que ser situados em seu próprio contexto cultural, religioso ehistórico.

Atualmente, existem diversas formas de extremismo. As mais conhecidas são o radicalismosubversivodaAl-Qaeda e de outros grupos semelhantes, espalhados por todoomundomuçulmano; ofundamentalismo preventivo do establishment saudita; e a revolução institucionalizada da hierarquiagovernante iraniana. Todos esses são, num sentido, de origem islâmica,mas alguns deles estãomuitoafastadosdesuasraízes.

Semexceção,essesdiferentesgruposextremistassantificamsuaaçãoatravésdereferênciaspiasaostextosislâmicos,notadamenteoAlcorãoeastradiçõesdoProfeta,etodosclamamrepresentarumislãmais verdadeiro, mais puro e mais autêntico do que o praticado atualmente pela vasta maioria dosmuçulmanoseendossadopelamaiorparte,senãoatotalidade,dasliderançasreligiosas.São,noentanto,altamente seletivos em sua escolha e interpretação dos textos sagrados. Ao considerar os ditos doProfeta, por exemplo, descartam os métodos tradicionais desenvolvidos pelos juristas e teólogos aolongo de séculos para testar a precisão e autenticidade de tradições transmitidas oralmente e, emvezdisso,aceitamourejeitamatémesmo textossagrados,dependendodeseessesapóiamoucontradizemsuasprópriasposiçõesdogmáticasemilitantes.AlgunschegamadescartarcertosversículosdoAlcorãocomo “revogados” ou “ab-rogados”. O argumento usado para justificar isso é que versos reveladosdurante os primeiros anos da missão do Profeta podem ser substituídos por revelações posteriores,presumivelmentemaismaduras.

UmexemploesclarecedordetaisdesviosfoiafamosafatwadecretadapeloaiatoláKhomeiniem14defevereirode1989contraoromancistaSalmanRushdieporcausadeseuromanceintituladoOsversossatânicos.Nafatwa,oaiatoláinformoua“todososzelososmuçulmanosdomundoqueosanguedoautordesselivro…quefoicompilado,impressoepublicadoemoposiçãoaoislã,aoProfetaeaoAlcorão,bemcomoodaquelesenvolvidosemsuapublicaçãoqueconheciamseuconteúdoé,apartirdeagora,declaradocondenado.Conclamotodososzelososmuçulmanosaexecutá-losrapidamente,ondequerquepossamserencontrados,demodoqueninguémouseinsultarascrençasepráticasislâmicasnovamente.Qualquerumquesejamortonessecaminhoseráconsideradoummártir”.1Paracompletareanteciparasrecompensas no paraíso, um fundo islâmico beneficente em Teerã ofereceu a quem matasse SalmanRushdie uma recompensa de 20milhões de tumans (na época, trêsmilhões de dólares à taxa oficial,cerca de 170mil no câmbio livre) para um iraniano, ou ummilhão de dólares para um estrangeiro.Algunsanosdepois,arecompensacontinuavasemserreclamada,eofundoaumentouosvalores.

Comoeradeseesperar,muitosleitoresdesinformadosnomundoocidentalficaramcomaimpressãodeque“decretarumafatwa”eraoequivalenteislâmicode“colocarumacabeçaaprêmio”–istoé,visarumavítima e oferecer uma recompensamonetária por suamorte.Tal comomadrasa, a palavra fatwa

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adquiriu, nouso comum internacional, uma conotação totalmente negativa. Isso é, de fato, umabsurdomonstruoso.Fatwa é um termo técnico na jurisprudência islâmica para uma opinião ou parecer legalsobre um aspecto da lei. É o equivalente na shari‘a para a responsa prudentium na lei romana. Ojurisconsultoislâmicoqueestáautorizadoadecretarumafatwaéchamadoummufti,oparticípioativoparaamesmaraiz.Aousarumafatwaparapronunciarumasentençademorteerecrutarumassassino,oaiatoláestavasedesviandoconsideravelmentedapráticausualislâmica.

O desvio foi não só no veredicto e na sentença, mas também na natureza da acusação. Insultar oProfeta–aacusaçãofeitaaSalmanRushdie–écertamenteumaofensanaleimuçulmana,eosjuristasdiscutem a questão em algum detalhe. Quase todas essas discussões giram em torno de um não-muçulmanovivendoemumEstadomuçulmanoque insultaoProfeta.Os juristasdedicamconsiderávelatenção àdefiniçãodeofensa, às regrasdeobter evidências e à punição apropriada.Mostramgrandepreocupação com que as acusações dessa ofensa não sejam usadas como um artifício para conseguiralgumavingançaparticular,einsistememcuidadosoescrutíniodasprovasantesquequalquerveredictoousentençasejampronunciados.Aopiniãomajoritáriaéqueumaflagelaçãoeumapenadeprisãosãopuniçõessuficientes–aseveridadedaflagelaçãoeotempodeaprisionamentodependemdagravidadedaofensa.O caso domuçulmanoque insulta oProfeta praticamente não é levado emconsideração, edevetersidomuitoraro.Quandodiscutido,aopiniãocomumédequesetratadeumatoequivalenteàapostasia.

EssafoiaacusaçãoespecíficacontraSalmanRushdie.Aapostasiaéumadasgrandesofensasnaleimuçulmana,eresultaempenademorteparahomens.Masapalavraimportantenessadeclaraçãoélei.Ajurisprudência islâmica é um sistema de lei e justiça, não de linchamento e terror. Ela estabeleceprocedimentosdeacordocomosquaisumapessoaacusadadeumaofensadeveserlevadaajulgamento,confrontadacomseuacusadoreteraoportunidadedesedefender.Umjuizentãodaráumveredictoe,seforconsideradaculpada,pronunciaráasentença.

Existe,contudo,umaoutraopinião,sustentadaporumaminoriadejuristas,dequeaofensacometidaporummuçulmanoqueinsultaoProfetaétãograndequesepode–e,naverdade,sedeve–dispensarasformalidadesdeacusação,julgamentoecondenaçãoepassardiretamenteparaaexecução.AbasedessaopiniãoéumditoatribuídoaoProfeta,masdeformaalgumaaceitouniversalmentecomoautêntico:“Sealguémmeinsulta,entãoqualquermuçulmanoqueouçaissodevematá-loimediatamente.”Mesmoentreos juristas que aceitama autenticidadedesse dito, existemdiscordâncias.Alguns insistemque algumaforma de procedimento ou autorização é requerida, e que morte sumária sem tal autorização éassassinato,edeveserpunidacomotal.Outrosargumentamqueotextodosditos,talcomotransmitido,deixaclaroqueaexecuçãosumáriae imediatadoblasfemoénãoapenas legalmasobrigatória,equeaquelesquenãoofazemestãoelesmesmoscometendoumaofensa.MesmoomaisrigorosoeextremadodosjuristasclássicosrequerapenasqueummuçulmanomatequalquerumqueeleouçainsultaroProfetaemsuapresença.Nãosediznadasobreumamorteencomendadaemfunçãodeuminsultoditoemumpaísdistante.

AsantificaçãodoassassinatocontidanafatwadeKhomeiniaparece,numaformamaisavançada,naprática–enoculto–doassassinatosuicida.

Quando se examinam os registros históricos, a abordagem muçulmana da guerra não diferegrandementedadoscristãos,oudadosjudeusdeépocasmuitoantigasedasmaismodernasnasquaisessa opção estava disponível para eles. Enquanto osmuçulmanos, talvez commais freqüência que oscristãos,fizeramguerracontraosseguidoresdeoutroscredosvisandotrazê-losparaoâmbitodoislã,oscristãos–comanotávelexceçãodascruzadas–tendiammaisalutarguerrasreligiosasinternascontraaquelesaquemviamcomocismáticosouheréticos.Oislã,semdúvidadevidoaoenvolvimentopolítico

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e militar de seus fundadores, tem uma visão que se poderia chamar de mais pragmática que a dosEvangelhos,noqueserefereàsrelaçõesdenaturezasocialeestatal.Suaposiçãoémaispróximaàdoslivrosmais antigos doVelho Testamento e à doutrina de esmagar os amalequitas, distanciando-se davisãodosprofetasedosEvangelhos.Osmuçulmanosnãosão instruídosparadaraoutra face,nemseesperaque refundamsuasespadaspara transformá-lasemaradosesuas lançasemfoices (Isaías2:4).Essasadmoestaçõescertamentenãoimpediramqueoscristãosfizessemumasériedeguerrassangrentasdereligiãodentrodacristandadeeguerrasdeagressãoforadela.

Issolevantaaquestãomaisamplarelativaàposturadasreligiõesquantoàforçaeàviolênciae,maisespecificamente,aoterrorismo.Seguidoresdemuitoscredostêminvocadoareligião,nummomentoououtro, na prática do assassinato, tanto no varejo quanto no atacado. Duas palavras derivadas dessesmovimentosnasreligiõesorientaisestãohojeintegradasa línguasocidentais: thug,dohíndi,significa,eminglês,assassinobrutal,matador,eapalavraárabeHashishiyya,queoriginouassassinoemportuguêse variações aproximadas em diversas outras línguas.Ambas celebram seitas religiosas fanáticas cujaformadecultoeraexecutaraquelesaquemviamcomoinimigosdafé.

Apráticaedepoisateoriadoassassinatonomundoislâmicosurgirambemnoinício,comdisputassobre a governança política da comunidade muçulmana. Dos primeiros quatro califas do islã, só oprimeiro não foi assassinado: o segundo foimorto por um escravo cristão insatisfeito, o terceiro e oquarto por rebeldes piosmuçulmanos que se viam como executores cumprindo a vontade deDeus.Aquestãomanifestou-se de forma aguda em656d.C., como assassinato do terceiro califa ‘Uthmanporrebeldes muçulmanos. A primeira de uma série de guerras civis resultou da questão sobre se osmatadoresestavamseguindooudesafiandoomandamentodeDeus.Aleieatradiçãoislâmicassãomuitoclarasquantoàobrigaçãodeobedeceraogovernanteislâmico.MastambémcitamdoisditosatribuídosaoProfeta:“Nãoháobediêncianopecado”e“Nãoobedeçaaumacriaturacontraseucriador.”Seumgovernante ordena algo contrário à lei de Deus, então a obrigação de obediência é substituída pelaobrigaçãodedesobedecer.Anoçãode tiranicídio–a remoção justificadadeum tirano–não foiumainovaçãoislâmica;naAntigüidade,erafamiliarentrejudeus,gregoseromanos,eosqueexecutavamoatoerammuitasvezesaclamadoscomoheróis.

MembrosdaseitamuçulmanaconhecidacomoosAssassinos,queatuounoIrãedepoisnaSíriaentreosséculosXIeXIII,parecemtersidoosprimeirosatransformaroatoquelhesdeunomeemumsistemaeumaideologia.Seusesforços,aocontráriodacrençacomum,foramdirigidosprimeiramentenãocontraoscruzados,mascontragovernantesmuçulmanosaquemviamcomousurpadoresímpios.Nessesentido,osAssassinossãoosverdadeirospredecessoresdemuitosdoschamadosterroristasislâmicosdehoje,algunsdosquaisexplicitamentedestacamesseponto.OnomeHashishiyya,comsuaconotaçãode“oqueconsomehaxixe”,foidadoaelesporseusinimigosmuçulmanos.Chamavam-seasimesmosfidayeen,doárabefida’i–aquelequeestáprontoasacrificarsuavidapelacausa.

Após a derrota e o desaparecimento dos assassinos no século XIII, o termo saiu de uso. Foibrevemente revivido emmeados do século XIX, por um pequeno grupo de conspiradores turcos quetramaram a deposição e talvez o assassinato do sultão.O complô foi descoberto e os conspiradores,presos.O termo reapareceuno Irã,noschamadosFida’iyan-i islã,os fida’is do islã,grupo terroristapolítico-religiosodeTeerãque,entre1943,quandocomeçousuasatividades,e1955,quandofoiextinto,levouacaboumgrandenúmerodeassassinatospolíticos.Apósumatentativamal-sucedidacontraavidadoprimeiro-ministroemoutubrode1955,forampresos,julgadoseseuslíderesexecutados.OtermofoinovamenterevividopelaalamilitantedaOrganizaçãoparaaLibertaçãodaPalestinae,desdeadécadade1960,designaativistasterroristasdasorganizaçõespalestinas.

Emdoisaspectos–aescolhadasarmaseaescolhadasvítimas–osAssassinoserammarcadamente

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diferentesdeseussucessoresatuais.Avítimaerasempreumindivíduo,umlíderdoaltoescalãopolítico,militar ou religioso visto como uma fonte do mal. Ele, e apenas ele, era morto. Essa ação não eraterrorismonosentidocorrentedotermo,massimoqueéhojechamadodeassassinatodirigidoaumalvocerto.Aarmaerasempreamesma:aadaga.OsAssassinosdesprezavamveneno,bestaseoutrasarmasque pudessem ser usadas à distância, e o Assassino não esperava – ou, ao que parece, nemmesmodesejava–sobreviveraseuato,queacreditavalhegarantirabem-aventurançaeterna.Masemnenhumacircunstânciaelecometia suicídio;morrianasmãosde seuscaptores.OsAssassinos foramfinalmentederrotadospor expediçõesmilitaresque tomaramsuas fortificações e suasbasesno Irã enaSíria, osdoisprincipaispaísesnosquaisoperavam.Podebemserqueos assassinosdehoje sejam igualmentederrotados,mas será umcaminho longo e difícil.Os assassinosmedievais eramuma seita extremista,muitoafastadosdocernedoislã.Issonãoéverdadenocasodeseusimitadoresatuais.

OséculoXXtrouxeumarenovaçãodetaisaçõesnoOrienteMédio,emboradetiposdiferentesecomoutros propósitos, e o terrorismo passou por diversas fases. Durante os últimos anos do ImpérioBritânico, a Inglaterra imperial enfrentou movimentos terroristas em suas dependências no OrienteMédio,que representavam trêsdiferentesculturas:gregosemChipre, judeusnaPalestinaeárabesemÁden. Todos os três atuavam em nome de motivos nacionalistas, e não religiosos. Embora muitodiferentesemsuas raízeseparticularidadespolíticas,os trêseramsubstancialmentesimilaresemsuastáticas.Seupropósito erapersuadiropoder imperialdequepermanecerna regiãonãocompensavaocustoemsangue.Seumétodoeraatacarmilitarese,emmenorproporção,pessoaladministrativoebases.Todosostrêsoperavamapenasdentrodeseupróprioterritórioegeralmenteevitavamdanoscolaterais.Todosostrêstiveramsucessoemseusesforços.

Para o novo estilo de terroristas, amatança de civis inocentes e não-envolvidos não é um “danocolateral”.Éoprincipalobjetivo.Inevitavelmente,ocontra-ataqueaosterroristas–que,porcerto,nãousam uniformes – também atinge civis. Essa dificuldade na distinção é imensamente útil para osterroristaseseussimpatizantes.

Graçasaorápidodesenvolvimentodamídia,especialmentedatelevisão,asmaisrecentesformasdeterrorismovisamnãoobjetivos inimigosespecíficose limitados,masaopiniãomundial.Seuprincipalpropósitonãoéderrotaroumesmoenfraqueceroinimigomilitarmente,masganharpublicidadeeinspirarmedo–umavitóriapsicológica.Omesmotipodeterrorismofoipraticadopormuitosgruposeuropeus,em especial na Alemanha, Itália, Espanha e Irlanda. A OLP está entre os de maior sucesso e maispersistêncianessaprática.

AOLPfoifundadaem1964,mastornou-seimportanteem1967,apósaderrotadosexércitosárabescombinadosnaGuerradosSeisDias.Aguerratrivialhaviafalhado;eratempodetentaroutrosmétodos.Osalvosnessaformadeconflitoarmadonãoeraminstituiçõesmilitaresougovernamentais,usualmentemuitobemguardadas,mas locaispúblicoseaglomeraçõesdequalquer tipo,quesãoesmagadoramentecivisenosquaisasvítimasnãonecessariamentetêmumaconexãocomoinimigodeclarado.Exemplosdessa tática incluem, em 1970, o seqüestro de três aeronaves – uma suíça, uma inglesa e uma norte-americana–queforamtodaslevadasparaAman;oassassinatodeatletasisraelensesnasOlimpíadasdeMuniquede1972;atomadadaembaixadasauditaemCartumem1973,quandodoisnorte-americanoseumdiplomatabelga foramassassinados; a tomadadocruzeiro italianoAchilleLauro em1985, comoassassinatodeumpassageiroparalítico.Outrosataquesforamdirigidoscontraescolas,shoppingcenters,discotecaseatépassageirosnafilaemaeroportoseuropeus.EssaseoutrasoperaçõesdaOLPtiveramnotável sucesso em alcançar seu objetivo imediato – ganhar as manchetes dos jornais e espaço natelevisão. Também conseguiram grande apoio em locais às vezes inesperados, e elevaram seusperpetradoresapapéisdeestrelasnodramadasrelaçõesinternacionais.Nãoédeadmirarqueoutrosse

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sentissem encorajados a seguir esses exemplos. Os terroristas árabes das décadas de 1970 e 1980deixaramclaroqueestavamlutandoemumaguerraporumacausanacionalárabeouPalestina,nãopeloislã.Naverdade,umaproporçãosignificativadoslídereseativistasdaOLPeracristã.

Mas, apesar de seus sucessos namídia, a OLP não alcançou nenhum resultado significativo onderealmente importava – na Palestina. Com exceção da Palestina, os nacionalistas alcançaram seuspropósitos em todas as terras árabes: a derrota e a partida de governantes estrangeiros e oestabelecimentodasoberanianacionalsobocomandodelíderesnacionais.

Poralgum tempo, liberdadee independência foramusadasmaisoumenoscomosinônimosecomotermosintercambiáveis.Noentanto,asprimeirasexperiênciasdeindependênciarevelaramqueissoeraum erro lamentável. Independência e liberdade são muito diferentes, e, com a maior freqüência, aobtençãodeumasignificouofimdaoutra,comasubstituiçãodedominadoresestrangeirosportiranosdomésticosmaisaptos,maisfamiliaresemenoscontidosemsuatirania.

Haviaumanecessidadeurgenteecrescentedeumanovaexplicaçãodoqueestavaerradoedeumanovaestratégiaparacorrigiroserros.Issofoiencontradonossentimentoseidentidadereligiosos.Essaescolha não era nova. Na primeira metade do século XIX, quando os impérios europeus estavamavançando emmuitas das terras do islã, a resistênciamais significativa a seu avanço foi inspirada edefinida sobo âmbito religioso.Os franceses naArgélia, os russosnoCáucaso, os ingleses na Índia,todosenfrentaramgrandeslevantesreligiososquesóforamdebeladosapósbatalhaslongasedifíceis.

Umanovafasedamobilizaçãoreligiosacomeçoucomomovimentoconhecidonaslínguasocidentaiscomopan-islamismo.Iniciadonasdécadasde1860e1870,provavelmentedeviaalgoaosexemplosdosalemãeseitalianosquehaviamsidobem-sucedidosemsuaslutaspelaunificaçãonacionalnaquelesanos.Seus contemporâneos e imitadoresmuçulmanos inevitavelmente identificavam a simesmos e definiamseusobjetivosemtermosreligiososecomunais,enãonacionalistasoupatrióticos,poisesses,naquelaépoca, ainda eram estranhos e pouco familiares.Mas, com a disseminação da influência e educaçãoeuropéias,essasidéiascriaramraízese,poralgumtempo,dominaramtantoodiscursoquantooconflitonas terras islâmicas. Mesmo assim, a identidade e lealdade religiosas ainda eram profundamenteconsideradas,eseexprimiamemdiversosmovimentosreligiosos,notavelmenteosIrmãosMuçulmanos.Com o retumbante fracasso das ideologias seculares, essesmovimentos ganharam nova importância eassumiramaluta–bemcomomuitosdoscombatentes–dosnacionalistasfracassados.

Tantoparafundamentalistasquantoparanacionalistas,asváriasquestõesterritoriaissãoimportantes,mas de uma forma diferente, mais intratável. Por exemplo, para os fundamentalistas, de modo geral,nenhumapazouacordocomIsraelépossível,equalquerconcessãoéapenasumpassonadireçãodaverdadeira solução final – a dissolução do Estado de Israel, o retorno da terra da Palestina a seusverdadeiros donos, os palestinos muçulmanos, e a expulsão dos intrusos. No entanto, isso de formaalguma satisfaria as demandas dos fundamentalistas, que se estendem a todos os outros territóriosdisputados–eatémesmosuaaquisiçãoseriaapenasumpassonadireçãodaúltimaemaislongaluta.

Muitodaantigatáticafoimantido,masnummodosignificativamentemaisvigoroso.Tantonaderrotacomonavitória, os terroristas religiosos adotarame aperfeiçoaramosmétodos introduzidosde formapioneira pelos nacionalistas do século XX, em particular a falta de consideração pela matança decircunstantes inocentes. Essa despreocupação alcançou novas proporções na campanha de terrordesencadeadaporOsamabinLadennoiníciodadécadade1990.Oprimeiroexemploimportantefoiaexplosãodeduasembaixadasnorte-americanasnaÁfricaOrientalem1998.Paramatar12diplomatasnorte-americanos, os terroristas dispuseram-se a trucidar mais de 200 africanos, muitos delesmuçulmanos,queestavamnasproximidades.Emumaediçãolançadaimediatamenteapósessesataques,arevista fundamentalista Al-Sirat al-Mustaqim, publicada em árabe em Pittsburgh, na Pensilvânia,

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expressou seu luto pelos “mártires” que deram suas vidas nessas operações e listou seus nomes,fornecidospeloescritóriodaAl-QaedaemPeshawar,noPaquistão.Oautoracrescentouumaexpressãodeesperançadeque“Deus…nosreuniráaelesnoparaíso”.Amesmafaltadeconsideraçãopelavidahumana,numaescala imensamentemaisampla, subjazàsaçõesemNovaYorkeWashingtonem11desetembrode2001.

Umafigurasignificativanessasoperaçõeserao terroristasuicida.Emumsentido, issoeraumfatonovo.Osterroristasnacionalistasdasdécadasde1960e1970geralmente tomavamcuidadosparanãomorrer com suas vítimas, lançando seus ataques de uma distância segura. Se tivessem amá sorte deserem capturados, suas organizações usualmente tentavam, às vezes com sucesso, obter sua libertaçãofazendo reféns e ameaçando feri-los ou matá-los. Os antigos assassinos de inspiração religiosa,sobretudo os Assassinos originais, não se preocupavam em sobreviver a suas operações, mas nãochegavamasematar.Omesmopodeserditodosmeninos-soldados iranianosnaguerrade1980-1988contra o Iraque, que caminhavam por campos minados, armados apenas com um passaporte para oparaíso,limpandooterrenoparaastropasregulares.

O novo tipo de missão suicida, no estrito senso da palavra, parece ter sido introduzido pororganizaçõesreligiosascomooHamaseoHezbollah,que,apartirde1982,realizaraminúmerasmissõesdessetiponoLíbanoeemIsrael.Continuaramduranteosanos1980e1990,comecosemoutrasáreascomo,porexemplo,nolestedaTurquia,Egito,ÍndiaeSriLanka.Apartirdasinformaçõesdisponíveis,pareceriaqueoscandidatosescolhidosparaessasmissõeseram,comrarasexceções,homens,jovensepobres,freqüentementedecamposderefugiados.Recebiamaofertadeumarecompensadupla–navidafutura,osprazeresdetalhadamentedescritosdoparaíso;nestemundo,benefícioseestipêndiosparasuasfamílias.Uma inovação notável foi o uso demulheres-bomba– por terroristas curdos naTurquia, em1996-99,eporpalestinosdesdejaneirode2002.

Diferentemente do guerreiro ou assassino sagradomedieval, disposto a encarar amorte certa nasmãosdos inimigosoucaptores,onovo terroristasuicidamorrepelasprópriasmãos. Isso levantaumaquestão importantenoensino islâmico.Os livrosda lei islâmicasãomuitoclarosquantoàquestãodosuicídio.Éumgrandepecado,punidocomadanaçãoeterna soba formada repetição sem fimdoatoatravésdoqualosuicidasematou.Asseguintespassagens,tiradasdastradiçõesdoProfeta,ilustramaquestãovividamente:

OProfetadisse:Quemquerquesematecomumalâminaseráatormentadocomaquelalâminanosfogosdoinferno.OProfetatambémdisse:Aquelequeseenforcaenforcaráasimesmonoinferno,eaquelequeseesfaquearesfaquearáasimesmo

noinferno.…Aquelequeselançadeumamontanhaesematalançaráasimesmoaosfogosdoinfernoparatodoosempre.Aquelequetomavenenoesematalevaráseuvenenonasmãoseobeberánoinfernoparatodoosempre.…Quemquerquesematedealgumamaneiraseráatormentadodamesmamaneiranoinferno.…Quemquerquesematedealgumamaneiranestemundoseráatormentadodomesmomodonodiadaressurreição.2

Nopassadoasautoridadesfaziamclaradistinçãoentreenfrentarmortecertanasmãosdoinimigoemorrerpelasprópriasmãos.Umatradiçãomuitoantigadotipoconhecidocomohadithqudsi,indicandoumaafirmaçãodoProfetacitandoopróprioDeus,provêumexemplonotável.OProfetaestavapresentequandoumhomemferidomortalmentenaguerrasantamatou-separaabreviara suador.EentãoDeusdisse:“Meuservoseantecipouamimtomandosuaalmacomsuasprópriasmãos;portanto,elenãoseráadmitidonoparaíso.”Deacordocomoutraantigatradição,oProfetarecusou-searezardiantedocorpodeumhomemquehaviamorridopelasprópriasmãos.3

Duascaracterísticasmarcamosataquesde11desetembroeoutrasaçõessimilares:adisposiçãodosexecutoresdecometersuicídioeacrueldadedaquelesqueosenviam,indiferentestantoàsortedeseusprópriosemissáriosquantoàdesuasnumerosasvítimas.Poderiamessesaspectos,emqualquersentido,serjustificadosemtermosdoislã?

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Arespostatemqueserumnítidonão.A fria destruição de milhares de vidas no World Trade Center, incluindo muitos não-norte-

americanos,sendoalgunsmuçulmanosdepaísesmuçulmanos,nãotemnenhumajustificativanadoutrinaou na lei islâmica e nenhum precedente na história islâmica.Na verdade, há poucos atos de tamanhaperversidade deliberada e indiscriminada na história humana. Esses não são apenas crimes contra ahumanidade e contra a civilização; de uma perspectiva muçulmana, também são atos de blasfêmia,quandoaquelesquecometemtaiscrimesclamamfazê-loemnomedeDeus,SeuProfetaeSuasescrituras.

ArespostademuitosárabesemuçulmanosaoataqueaoWorldTradeCenterfoidechoqueehorrordiantedaterríveldestruiçãoecarnificina,juntocomvergonhaeraivadequeissotivessesidofeitoemseunome emnomede sua fé.Essa foi a resposta demuitos –mas não de todos.Houve relatos e atémesmoimagensdecomemoraçõesnasruasdecidadesárabesedeoutrascidadesmuçulmanasàsnotíciasdeNovaYork.Emparte,areaçãofoideinveja–umsentimentoqueeratambémdisseminado,deformamais abafada, naEuropa.Entreospobres emiseráveishaviaumcertograude satisfação–deprazermesmo,paraalguns–aoveremosricoseauto-indulgentesnorte-americanosrecebendoumalição.

AsrespostasdaimpressaárabeaosmassacresemNovaYorkeWashingtonmostravamumequilíbrioincômodoentrenegaçãoeaprovação,eerambastantesemelhantesasuasrespostasaoHolocausto.4NoqueserefereaoHolocausto,nãoéincomumencontrartrêsposiçõesnamídiaárabe:nuncaaconteceu;foigrandemente exagerado; de qualquer forma, os judeus mereciam. Quanto ao último ponto, algunsescritoresmaisempreendedoresacrescentamumareprimendaaHitlerpornãoterterminadootrabalho.NinguémaindaafirmouqueadestruiçãodoWorldTradeCenternuncaaconteceu,embora,comopassardotempo,issonãoestejaalémdacapacidadedeteóricoscomvisãoconspiratória.Odiscursoatualentremuitos dos comentaristasmuçulmanos – embora, de forma alguma, de todos – é argumentar que nemmuçulmanos nem árabes poderiam ter feito isso. Em vez disso, oferecem outras explicações. Essasincluem supremacistas e milícias brancas norte-americanas, com referência, é claro, a Oklahoma eTimothy McVeigh; oponentes da globalização; europeus, chineses e outros contrários ao projeto doescudoantimísseis;os japoneses,comoumareprimendahámuitoadiadaàdestruiçãodeHiroshima;eoutrascoisasdotipo.UmcolunistachegoumesmoasugerirqueoataquefoiorganizadopelopresidenteBushparadesviaraatençãodesuaeleiçãopor“umaminúsculaminoriaquenãoteriasidosuficienteparaelegerumconselheirodistritalnoEgitoSuperior”.EsseescritortambémdenunciaColinPowellcomoumcúmplicedosdoisBush.

Aexplicaçãomaiscomumatribuiocrime,compequenasvariações,aseusvilõesfavoritos–aIsrael,ao Mossad (em associação com a CIA, segundo alguns), aos Sábios de Sião ou, mais simples enaturalmente, aos “judeus”. Isso lhes permite, aomesmo tempo, reconhecer e repudiar os ataques. Omotivoatribuídoaosjudeuséaintençãodefazercomqueosárabese,demaneirageral,osmuçulmanossejam mal vistos, semeando discórdia entre eles e os norte-americanos. Um colunista jordanianoacrescentouumtemainteressante–que“asorganizaçõessionistas”perpetraramoataqueparaqueIsraelpudessedestruiramesquitadeAqsaenquantoaatençãodomundoestivessedesviadaparaosEstadosUnidos.Essetipodeexplicaçãonãoinibe–aocontrário,estimula–aidéiamanifestadafreqüentementedequeoqueaconteceu,emboraumcrime,foiumajustaretribuiçãoaoscrimesnorte-americanos.Talvezarespostamaisdrástica–eexplícita–tenhavindodosemanáriodoHamasAl-Risala,emGaza,emsuaediçãode13desetembrode2001:“Alárespondeuanossaspreces.”

Na medida em que o horror total da operação foi sendo mais bem conhecido, alguns escritoresestavam dispostos a censurar os autores e expressar compaixão pelas vítimas. Mas mesmos essesraramente perderama oportunidadede apontar queos norte-americanos haviam trazido aquilo para simesmos. O catálogo de ofensas norte-americanas que citam é longo e detalhado, começando com a

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conquista, colonização e povoamento – palavras de conotação emocional – do Novo Mundo econtinuandoatéosdiasdehoje;tambémlongaéalistadosquecaíramvitimadospelacobiçaecrueldadenorte-americanasnaÁsia,ÁfricaeAméricaLatina.

OsamabinLadendeixouclarocomopercebeoconflitoaodefinirrepetidamenteseusinimigoscomo“cruzados”. Os cruzados, é preciso lembrar, não eram norte-americanos nem judeus; eram cristãoslutando uma guerra santa para recuperar os locais sagrados da cristandade. Uma “carta à América”publicada em novembro de 2002,5 atribuída a Osama bin Laden, enumera, em algum detalhe, váriosinsultosperpetradosnãoapenaspelogoverno,mastambémpelopovodosEstadosUnidos,eestabelece,emsetetópicos,“oqueestamosclamandovocêsafazer,eoquequeremosdevocês”.Oprimeirotópicoé aceitar o islã; o segundo, “parar com suas opressões, mentiras, imoralidade e orgias”; o terceiro,descobrireadmitirqueaAméricaé“umanaçãosemprincípiosoucostumes”;oquarto,deixardeapoiarIsrael na Palestina, os indianos naCaxemira, os russos contra os tchetchenos, e o governo deManilacontraosmuçulmanosnosuldasFilipinas;oquinto,“arrumarsuasmalasedaroforadenossasterras”.Isso é oferecido como um conselho para o próprio bem dos EstadosUnidos, “para que não sejamosforçados emandar vocês de volta como carga em caixões”.O sexto, “encerrar seu apoio aos líderescorruptosemnossospaíses.Não interferiremnossaspolíticasemétodosdeeducação.Deixar-nosempaz,ouentãonosesperaremNovaYorkeWashington;osétimo, lidare interagircomosmuçulmanoscombaseeminteressesebenefíciosmútuos,emvezdepolíticasdesubjugação,rouboeocupação”.Odocumento termina dizendo aos norte-americanos que, se recusarem esse conselho, serão derrotadoscomo todos os cruzados anteriores, e “seu destino será o mesmo dos soviéticos que fugiram doAfeganistão para amargar sua derrota militar, destruição política, ruína ideológica e bancarrotaeconômica”.

AsalegaçõescontraosEstadosUnidosapresentadasnessedocumentosãomuitodetalhadas.Incluem,além da familiar lista de queixas específicas, uma variedade de acusações tanto gerais quantoparticulares.Essassãodeorigemvariadaeusualmentereconhecível,refletindoassucessivasideologiasque,emdiferentesépocas,influenciaramospolíticoseaspolíticasdoOrienteMédio.Algumasdatamdaeranazista,taiscomodegeneraçãodosjudeusecontrolefinalporeles;outras,doperíododeinfluênciasoviética, como cobiça e exploração capitalista.Muitas são recentes, de origemeuropéia e até norte-americana,evêmtantodaesquerdaquantodadireita.IncluemapoluiçãodoplanetaearecusadeassinarosacordosdeKioto;acorrupçãopolíticaatravésdofinanciamentodecampanhas;oprivilégioà“raçabranca”;e,dadireita,omitoneonazistadasupremaciabranca,segundooqualBenjaminFranklinteriaalertadoquantoaoperigojudeu.Opapelsinistrodosjudeusédestacadoemquasetodasessesinsultos.

Mesmoos vangloriadosméritos domodode vida norte-americano são transformados em crimes epecados. A liberação das mulheres significa devassidão e seu uso comercial como “produtos deconsumo”.Eleiçõeslivressignificamqueopovonorte-americanoescolheulivrementeseusgovernantese tem,portanto, que ser responsabilizável epunível pelos insultosdesses– isto é, não existem“civisinocentes”. O pior de tudo é a separação entre igreja e Estado: “Vocês são a nação que, em vez delegislar segundoaSharia deAlá em suaConstituição e suas leis, escolhe inventar suas próprias leissegundoseudesejoevontade.Vocêsseparamareligiãodesuaspolíticas,contradizendoanaturezapuraqueafirmaaAbsolutaAutoridadedoSenhoreseuCriador.”Emsuma,“vocêssãoapiorcivilizaçãojávistapelahistóriadahumanidade”.Essejulgamentosetornamaisextraordinárioporsurgirnumtempoemqueasditadurasnazistasesoviéticasaindaestãovivasnamemória–paranãofalardetiraniasmaisantigaspreservadasnosregistroshistóricosqueOsamabinLadeneseuscompanheiroscitamcomtantafreqüência.

A razão básica é que a América agora é percebida como líder do que é indiscriminadamente

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designado como o Ocidente, cristandade ou, mais genericamente, as “Terras dos Incrédulos”. Nessesentido,opresidentenorte-americanoéosucessordeumalongalistadegovernantes–osimperadoresbizantinos de Constantinopla, os imperadores romanos do Sacro Império Romano emViena, a rainhaVitória e seus colegas e sucessores imperiais na Europa. Hoje, como no passado, esse mundo deincrédulos cristãos é visto como a única força rival autêntica obstruindo a disseminação divinamenteordenadadoislã,resistindoeatrasando,masnãoimpedindo,seutriunfofinal,inevitáveleuniversal.

NãohádúvidadequeafundaçãodaAl-QaedaeasconsecutivasdeclaraçõesdeguerraporOsamabinLadenmarcaramocomeçodeumanovaesinistrafasenahistóriatantodoislãquantodoterrorismo.O que desengatilhou as ações de Bin Laden, como ele mesmo explicou muito claramente, foram apresença norte-americana na Arábia durante a Guerra do Golfo – uma profanação da Terra Santamuçulmana–eousodaArábiaSauditacomobaseparaumataqueaoIraque.SeaArábiaéolocalmaissimbóliconomundodoislã,osegundoéBagdá,asededocalifadopormeiomilênioepalcodealgunsdosmaisgloriososcapítulosnahistóriaislâmica.

Houve um outro fator, talvez aindamais importante, guiandoBinLaden.No passado,muçulmanoscombatendo oOcidente puderam sempre se voltar para os inimigos domundo ocidental em busca deapoio, fomento e auxílio material e militar. Agora, pela primeira vez em séculos, não existem taisinimigosúteis.OsamabinLadeneseusseguidoreslogoperceberamque,nanovaconfiguraçãodopodermundial,sequisessemlutarcontraaAmérica,teriamquefazê-loporelesmesmos.Em1991,omesmoanoemqueaUniãoSoviéticadeixoudeexistir,BinLadeneseusseguidorescriaramaAl-Qaeda,queincluíamuitosveteranosdaguerranoAfeganistão.Suatarefapoderiaterparecidodesencorajadoraparaqualquerum,masnãoaviamdessamaneira.Segundoeles, jáhaviamtiradoosrussosdoAfeganistão,numa derrota tão esmagadora que levou diretamente ao colapso da União Soviética. Vencido osuperpoderquesemprehaviamvistocomoomaistemível,sentiram-seprontosparaenfrentarooutro;aseumodo,foramincentivadospelaopinião,freqüentementeenunciadaporBinLaden,entreoutros,dequeosEstadosUnidoseramumtigredepapel.

Osterroristasmuçulmanoshaviamsidomovidosportaiscrençasantes.Umadasmaissurpreendentesrevelaçõesnasmemóriasdosqueocuparamaembaixadanorte-americanaemTeerãde1979a1981équesuaintençãooriginalhaviasidomanteroedifícioeosrefénsapenasporunspoucosdias.MudaramdeidéiaquandodeclaraçõesdeWashingtondeixaramclaroquenãohavianenhumriscodeaçõessériascontraeles.Finalmente, explicaram, soltaramos refénsapenasporque temiamqueopresidenteeleito,RonaldReagan,pudesseabordaroproblema“comoumcaubói”.BinLadeneseusseguidoresclaramentenão têm tal preocupação, e seu ódio não é contido pelo medo e nem diluído pelo respeito. Comoprecedentes,citamrepetidamenteasretiradasnorte-americanasdoVietnã,doLíbano–e,aseusolhos,ocasomaisimportantedetodos–daSomália.OscomentáriosdeBinLadennaentrevistacomJohnMiller,daABCNews,em28demaiode1998,sãoespecialmentereveladores:

Naúltimadécada,vimosodeclíniodogovernonorte-americanoeafraquezadosoldadonorte-americano,prontoparafazerguerrasfriasedespreparadoparalutarlongasguerras.IssoficouprovadoemBeirute,quandoosmarinesfugiramapósduasexplosões.Tambémprovaqueelespodemfugiremmenosde24horas,oqueserepetiunaSomália.…[Nossos]jovensficaramsurpreendidoscomobaixomoraldossoldadosnorte-americanos.…Apósunspoucosgolpes,fugiramderrotados.…Elesesqueceramissodeseremolídermundialeolíderdanovaordemmundial.Partiramarrastandoseuscadáveresesuavergonhosaderrota.

ParaOsamabinLaden,suadeclaraçãodeguerracontraosEstadosUnidosmarcaaretomadadalutapela dominância religiosa do mundo, iniciada no século VII. Para ele e seus seguidores, esse é ummomento de oportunidade. Hoje, os Estados Unidos são um exemplo da civilização e encarnam aliderançadaCasadaGuerra;assimcomoRomaeBizâncio,tornaram-sedegeneradosedesmoralizados,prontosparaseremderrubados.Mas,adespeitodesuafraqueza,tambémsãoperigosos.Foisignificativaa designação de “oGrandeSatã”dada porKhomeini aosEstadosUnidos, e, para osmembros daAl-

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Qaeda,aseduçãoexercidaporessepaíseseumododevidaextravaganteedissolutorepresentaamaiorameaçaaotipodeislãquedesejamimporaseuscompanheirosmuçulmanos.

MasháoutrosparaosquaisosEstadosUnidosofereceumtipodiferentedetentação–apromessadedireitoshumanos,de instituições livresedeumgovernorepresentativoeque inspireconfiança.Existeumnúmerocadavezmaiordeindivíduos,eatéalgunsmovimentos,queassumiramacomplexatarefadeintroduzir tais instituições em seus próprios países. Não é fácil. Tentativas similares, como visto,conduziram a muitos dos atuais regimes corruptos. Dos 57 Estados membros da Organização daConferênciaIslâmica,apenasum,aRepúblicaTurca,temmantidoinstituiçõesdemocráticasfuncionandopor um longo período e, a despeito de dificuldades e problemas existentes, tem feito progressos noestabelecimentodeumaeconomialiberaledeumasociedadeeordempolíticalivres.

Em dois países, Iraque e Irã, onde os regimes são fortemente antiamericanos, há oposiçõesdemocráticascapazesdeassumiropodereformargovernos.Nós,naquiloquegostamosdechamardeomundo livre, poderíamos fazermuito para ajudá-las, e temos feito pouco. Namaior parte dos outrospaísesdaregião,hápessoasquepartilhamnossosvalores,simpatizamconoscoegostariamdeterpartenonossomododevida.Elasentendemoquesejaliberdadeequeremdesfrutá-laemsuaprópriaterra.Émaisdifícilparanósajudar a essaspessoas,mas,pelomenos,nãodevemos lhescriarobstáculos.Setiverem sucesso, teremos amigos e aliados no sentido verdadeiro dessas palavras, e não apenas nosentidodiplomático.

Enquantoisso,háproblemasmaisurgentes.SeoslíderesdaAl-Qaedapodempersuadiromundodoislã a aceitar suas opiniões e sua liderança, então teremos adiante um longo e amargo conflito, e nãoapenasparaosEstadosUnidos.AEuropae,maisparticularmente,aEuropaocidental,éagoraterradeumacomunidademuçulmanagrandeerapidamentecrescente,emuitoseuropeusestãocomeçandoaversuapresençacomoumproblemae,alguns,mesmocomoumaameaça.Maiscedooumais tarde,aAl-Qaedaegruposrelacionadosaelairãobater-secomosoutrosvizinhosdoislã–Rússia,China,Índia–quepodemprovar-semenosmelindrososqueosnorte-americanoseusarseupodercontraosmuçulmanoseseusprincípiossagrados.Seosfundamentalistasestãocorretosemseuscálculosetiveremsucessoemsuaguerra,entãoumfuturonegroesperaomundo,especialmenteaquelapartequesegueoislã.

1Otextocompletodafatwafoipublicadonaimprensairanianaeinternacionalnaépoca.2Essastradiçõeseoutrassimilaresserãoencontradasnasediçõesstandarddoshadiths,porexemplo,oSahihdeal-Bukhari,Recueil

desTraditionsMahométanes,vol.1,M.LudolfKrehl(org.)(Leiden,1862),p.363;vol.2(Leiden,1864),p.223-4,373;vol.4,Th.W.Juynboll(org.)(Leiden,1908),p.71,124,243,253-4,320,364.VeradiscussãocompletaemFranzRosenthal,“OnSuicideinIslam”,JournaloftheAmericanOrientalSociety,vol.66(1946),p.239-59.

3CitadointeraliaporIbhHanbal,Musnad(Cairo,1313;1895-1896),vol.5,p.87.4Paraesseseoutrosrelatosnamídiaárabe,veroMiddleEastMediaResearchInstitute,Washington,D.C.(www.memri.org).5 Aíntegradotextodacarta,emárabeeinglês,foiamplamentedivulgadoviaInternetemnovembrode2002.Dadasasdiferençasde

estiloeperspectiva,éimprovávelquesejadaautoriapessoaldeOsamabinLaden.

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POSFÁCIOOnúcleodestelivrofoiumartigopublicadonoTheNewYorkeremnovembrode2001.Aoatualizá-

lo, transformando um longo artigo em um pequeno livro, adaptei algumas poucas passagens depublicações anteriores, especialmente alguns artigos publicados em Foreign Affairs e The AtlanticMonthly.Orestanteénovo.

Vem agora a agradável tarefa de agradecer a todos que ajudaram na preparação e produção destelivro.Souespecialmentegrato,maisumavez,ameuincansáveleinestimáveleditor,JoydeMenil,eaminhaassistente,AnnamarieCerminaro,pelopermanenteapoioeajuda;aminhaamigaBuntzieChurchill,porsualeituracríticadasprimeirasversõeseporsugestõesparamelhorá-las;aEliAlsheck,estudantede Princeton que ajudou de vários modos no processo de pesquisa e preparação. Quaisquer faltasrestantessão,porcerto,inteiramenteminhas.

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ÍNDICEREMISSIVOAbuBakr(califa);1Áden;1,2Afeganistão;1,2,3,4,5,6,7-8,9,10África;1,2,3,4,5,6,7,8vertambémArgélia

Al-Assad,Hafiz;1Alcorão;1-2,3,4,5,6,7-8Alemanha;1-2,3-4,5,6Al-Husseini,HajjAmin;1‘Ali(reidoHijaz);1‘Ali,Rashid;1,2Al-Nasser,Gamal‘Abd;1,2,3,4,5Al-Qaeda;1,2,3,4,5Al-Qudsal-‘Arabi(jornal);1Al-Tahtawi,Rifa‘aRafi‘;1AméricaverEstadosUnidosAnatóliavertambémTurquiaapostasia;1-2

acusaçãocontraSalmanRushdie;1,2comoofensacapital;1,2-3egovernantesmuçulmanos;1,2,3,4-5,6

Arábia;comoTerraSantamuçulmana;1-2eimperialismo;1-2história;1,2-3,4-5nenhumapalavraárabepara;1-2presençadosEstadosUnidosna;1-2,3,4-5queixaseameaçaspercebidas;1-2vertambémArábiaSaudita

ArábiaSaudita;comomembrodaComissãodeDireitosHumanosdaONU;1desempenhoeconômico;1-2eaCasadeSaud;1,2-3eoislamismoradical;1-2,3epalestinos;1história;1,2,3-4mudançastrazidaspelopetróleo;1-2,3-4naDeclaraçãodaFrenteMundialIslâmicapelajihadcontraosjudeuseoscruzados;1,2,3nome;1,2tropasnorte-americanasna;1-2,3,4

Argélia;1,2,3,4,5,6,7-8,9,10assassinato;1-2,3-4,5-6vertambémsuicídio

assassinos(seitamuçulmana);1-2,3ataquesde11desetembro;1,2-3

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Ataturk,MustafaKemal;1Azerbaijão;1-2,3Bagdá;1,2,3Bayet,AubertduverDubayetBazargan,Mehdi;1binLaden,Osama;

eascruzadas;1,2-3eocalifado;1eoislã;1-2estopinsdaação;1,2-3mensagens;1-2,3-4,5,6,7-8,9visãodahistória;1-2visãodaUniãoSoviética;1-2visãodeBush;1,2

Bonaparte,Napoleão;1Bósnia;1,2Brzezinski,Zbigniew;1Bush,George;1Bush,GeorgeW.;1,2,3cádi;1califado;

aboliçãodo;1-2conquistasdo;1-2,3-4origemdotermocalifa;1papelnahistóriadoOrienteMédio;1-2,3-4,5-6,7,8-9primeiroscalifas;1,2-3,4

califasOmíadas;1Carter,Jimmy;1CasadaAliança;1CasadaGuerra;1,2,3,4CasadaJihad;1CasadaTrégua;1,2CasadeSaud;1,2,3CasadoIslã;1,2,3Cáucaso;1,2,3César;1-2Churchill,Winston;1Clinton,Bill;1Colombo,Cristóvão;1Constantino;1Constantinopla;1,2,3corsáriosbárbaros;1cristandade;

abordagemdaguerra;1cristãosexpulsosdaArábia;1-2missionáriosamericanos;1-2naIdadeMédiaeuropéia;1-2,3

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vsIslã;1-2,3-4,5-6,7-8vertambémcruzadas

cruzada;definição;1-2vertambémcruzadas

cruzadas;definição;1interessedosmuçulmanosnas;1,2-3tomadadeJerusalém;1-2vsimperialismo;1vsjihad;1-2

curdos;1DeclaraçãodaFrenteIslâmicaMundialparaaJihadcontraosJudeuseosCruzados;1-2,3democracia;1,2-3,4,5-6dhimma;1dinar;1direitoshumanos;1,2-3,4DivãdosAssuntosdaJihad;1Djedda;1DomodaRocha;1,2Dubayet,Aubert;1Egito;

aquestãodaidentidadenacional;1-2comolugardeorigemdediversosterroristasde11desetembro;1conquistaspormuçulmanos;1-2,3derrubadadamonarquia;1desempenhoeconômico;1,2DivãdosAssuntosdaJihad;1-2eaUniãoSoviética;1,2,3,4eimperialismo;1-2,3,4,5,6eSayyidQutb;1-2,3Muhammad‘AliPaxá;1naDeclaraçãodaFrenteIslâmicaMundialparaaJihadcontraosJudeuseosCruzados;1-2oislamismoradicalpatrocinadopeloEstadono;1-2

EmiradosÁrabesUnidos;1,2,3Escravoseescravidão;1,2,3-4Espanha;1,2,3-4,5EstadosUnidos;

crescimentodoantiamericanismonoOrienteMédio;1-2,3,4-5mododevida;1,2,3,4,5,6-7,8,9percebidoscomocúmplicesdosgovernoscorruptosdoOrienteMédio;1,2,3-4,5primeirasdescriçõesnomundoárabe;1-2relaçãoestratégicacomIsrael;1-2,3RevoluçãoAmericana;1-2,3tropasnaArábiaSaudita;1-2,3,4-5

ExércitoVermelho;1Faraj,Abdal-Salam;1

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Faraó;1,2farsi;1fatwas;1,2,3-4fidayeen;1França;1,2,3,4FredericoII;1FrenteIslâmicadeSalvação(FSI);1-2fundamentalismoverfundamentalismoislâmicofundamentalismoislâmico;

comoalternativaaopan-arabismo;1-2comonomealternativoparaislamismoradical;1-2formasdeextremismo;1-2usodetextossagrados;1-2vertambémislamismoradical

globalização;1Gorbachev,Mikhail;1Grã-Bretanha;

enfrentamovimentosterroristasnasdependênciasdoOrienteMédio;1imperialismonoOrienteMédio;1,2-3,4,5,6reconheceoreinosaudita;1

GrandeSatã;1,2,3gregos;1-2GuerradoGolfode1991;

emudançaderegimenoIraque;1epolíticanorte-americanaparaoOrienteMédio;1-2impactosobreospalestinos;1-2opiniãodosmuçulmanossobreastropasamericanas;1-2,3opiniõesdeBinLaden;1,2-3,4visãoocidental;1-2

GuerraIrã-Iraque;1,2,3guerrasantaverjihadhadith;1-2,3Hama;1-2Hamas;1,2Hégira(Hijra);1-2Hezbollah;1Hijaz;1,2,3,4,5,6-7HinduKuch;1Hitler,Adolfo;1-2,3HolandaverimperialismoholandêsHolocausto;1-2Hurgronje,Snouck;1Hussein(ReidoHijaz);1Hussein,Saddam;1-2,3,4,5,6,7,8,9,10-11,12,13Ibn‘Abdal-Wahhab,Muhammad;1,2,3Ibnal-Athir;1-2IbnRashid;1

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IbnSaud;1,2-3,4imperialismo;

apósaGuerraFria;1-2britânico;1,2,3-4,5,6definição;1holandês;1,2,3papelnahistóriaislâmica;1-2,3russo;1,2-3,4vscruzadas;1

imperialismoholandês;1,2,3ImpérioBizantino;1,2ImpérioOtomano;

declínioederrota;1-2,3,4-5,6,7governodo;1,2-3,4-5,6

ImpérioRomano;1,2-3impostoporcabeça;1-2,3incréus;1-2,3-4vertambéminfiéis

Índia;1,2,3infiéis;1,2-3,4-5,6,7vertambémcruzadas

Irã;1,2-3,4-5,6-7,8,9Iraque;

comocentrodomundoislâmico;1-2,3-4comoprovínciamedieval;1governância;1,2-3,4,5-6,7,8,9,10naDeclaraçãodaFrenteIslâmicaMundialparaaJihadcontraosJudeuseosCruzados;1-2oposiçãodemocrática;1-2origemdaentidade;1PartidoBa’th;1,2políticanorte-americanaparao;1-2,3-4regimepró-nazi;1,2-3,4vertambémGuerradoGolfode1991;Hussein,Saddam;guerraIrã-Iraque

IrmãosMuçulmanos;1,2-3,4-5,6,7,8-9islã;

caráterdual;1,2-3,4-5comocivilizaçãomundiallíderduranteaIdadedasTrevaseuropéia;1-2,3,4comoumadasgrandesreligiõesdomundo;1conquistasnosprimeirosséculos;1-2e“inimigosdeDeus”;1-2,3elementosdeódioeviolência;1-2ensinoemescolaspatrocinadasporwahhabis;1-2naesferapolítica;1-2ondarevolucionária;1-2papeldahistórianoOrienteMédiomoderno;1-2tolerânciadiantedeoutrasreligiões;1-2vscristandade;1-2,3-4,5-6,7

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vertambémjihadIslamabad;1islamismoradical;

comoataqueaseusprópriosgovernanteselíderes;1,2,3,4-5,6e“inimigosdeDeus”;1,2-3,4-5formasdeextremismo;1-2,3-4vsdemocracia;1-2vertambémRevoluçãoIraniana

Israel;conflitosárabe-israelenses;1-2,3-4,5,6criaçãodoEstadodeIsrael;1desempenhoeconômico;1relaçõesestratégicascomosEstadosUnidos;1-2,3-4vertambémjudeus

jahiliyya;1Djedda,ArábiaSaudita;1,2Jerusalém;

DomodaRocha;1,2históriaduranteascruzadas;1-2naDeclaraçãodaFrenteIslâmicaMundialparaaJihadcontraosJudeuseosCruzados;1-2

JesusCristo;1,2,3jihad;

comoesforçomoral;1-2,3-4comoherançadeMaomé;1-2comolutaarmada;1,2-3contraapóstatas;1-2DeclaraçãodaFrenteMundialIslâmicaparaaJihadcontraosJudeuseosCruzados;1-2,3noAlcorão;1,2ofensivavs.defensiva;1,2-3origemdotermo;1-2papeldastréguas;1-2,3papeldosmártires;1-2regrasdaguerra;1-2,3,4-5vscruzados;1-2

jizya;1Jordânia;1,2,3,4judeus;

culpadospelosataquesde1desetembro;2-3expulsosdaArábia;1-2naDeclaraçãodaFrenteIslâmicaMundialparaaJihadcontraosJudeuseosCruzados;1-2vertambémIsrael

Khomeini,aiatolá;1,2,3,4,5-6,7-8,9Krushchev,Nikita;1Kuwait;1,2,3,4,5leisagradavershari‘alestedaÁsia;1,2-3Líbano;1,2,3,4,5,6,7,8,9

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Líbia;1,2,3,4LigadasNações;1línguaárabe,enomesmodernosdosEstados-nação;1-2madrasa;1Maomé,Profeta;

criaçãodacomunidadepolíticaereligiosaislâmica;1,2-3,4duploaspectodesuacarreira;1,2eajihad;1-2insultoscomoofensaa;1-2relaçãocomaArábia;1

Marrocos;1,2,3,4mártires;1marxismo;1Meca;1,2,3,4,5,6,7-8Medina;1,2,3,4,5,6,7,8-9mesquitas;1,2,3modernidadevermodernizaçãomodernização;

comooproblema;1-2,3,4desejode;1-2efeitosda;1epetróleo;1-2excessiva;1-2fracassoda;1

Mosaddeq,Muhammad;1,2movimentosislâmicosverislamismoradicalMu‘ammarQaddafi;1muçulmanos;

comopopulaçãominoritária;1-2,3estatísticaseconômicas;1-2tentaçõesdademocracia;1-2visãodoslíderescomoinfiéis;1,2-3,4,5-6,7vertambémislã;OrienteMédiomufti;1,2

muftideJerusalém;1,2Muhammad‘AliPaxá;1mulheres;1,2-3,4,5,6-7Nabucodonosor;1NaçõesUnidas;1,2,3Najd,regiãodaArábia;1,2,3Núbia;1ocidentalizadores;1,2OrganizaçãodaConferênciaIslâmica(OCI);1,2,3,4,5,6OrganizaçãoparaaLibertaçãodaPalestina(OLP);1,2,3,4-5OrienteMédio;

começodahistóriamoderna;1-2cumplicidadenorte-americanacomgovernoscorruptos;1,2,3-4,5desempenhoeconômico;1-2

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expectativasocidentais;1-2imperialismono;1,2,3,4-5,6,7-8,9,10,11-12,13papeldahistóriaislâmica;1-2surgimentodoantiamericanismo;1-2,3,4vertambémmuçulmanos

PactodeBagdá;1Palestina;

comoumnomedaAntigüidadeclássica;1conflitoIsrael-Palestina;1-2,3,4-5,6,7-8conquistapelosmuçulmanos;1divisãoemdoissegmentos;1eaOCI;1,2judeusna;1,2,3origemdaentidade;1

pan-islamismo;1Paquistão;1,2,3,4PartidoBa’th;1,2Pérsia;1,2,3,4,5vertambémIrã

petróleo;1,2,3-4,5,6Qatar;1-2Qutb,Sayyid;1-2,3Raffarin,Jean-Pierre;1Reagan,Ronald;1ReinaldodeChâtillon;1,2,3religiãovercristianismo;islãrevolução;

definição;1vertambémRevoluçãoIraniana

RevoluçãoIraquiana;aquestãodaliderançatirânica;1-2comomovimentopopular;1-2crisedosrefénsnorte-americanos;1-2,3-4,5-6eKhomeini;1-2,3,4,5-6,7-8,9eoxá;1,2-3,4-5impactonomundomuçulmano;1-2oposiçãodemocrática;1-2osEstadosUnidoscomooGrandeSatã;1,2,3

Riad,ArábiaSaudita;1,2Rushdie,Salman;1,2-3Rússia;1,2-3,4,5,6,7,8-9,10vertambémUniãoSoviética

SabraeShatila;1Sadat,Anwar;1,2,3,4,5,6Said,Nuri;1Saladino;1,2SatãverGrandeSatã

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SelanikiMustafaefêndi;1shahid;1sharia(leisagrada);

conversãoaoislãeabandonodele;1definição;1ejihad;1,2-3eterrorismo;1,2papeldoulemá;1tolerânciadeoutrasreligiões;1-2

Síria;comocentrodomundoislâmico;1,2,3comonomedaAntigüidadeclássica;1conquistapelosmuçulmanos;1controladaporVichy;1,2desempenhoeconômico;1divisãoemdoissegmentos;1-2eaUniãoSoviética;1edireitoshumanos;1,2judeusna;1levantedeHama;1,2origemdaentidade;1PartidoBa‘th;1,2

Slade,Adolphus;1socialismo;1Somália;1,2-3Stálin,Josef;1StandardOildaCalifórnia;1-2Sudão;1,2,3,4,5

guerradeSuezde1956;1suicídionoislã;1,2-3,4-5

takfir;1Talibã;1,2tártaros;1,2,3TASS;1tchetchenos;1,2Teerã;1-2,3,4,5,6TerceiroReich;1-2,3,4terrorismo;

Al-Qaeda;1,2-3,4,5,6,7crescimentodo;1-2ealeisagradaislâmica;1-2,3ecivisinocentes;1,2-3fasesdo;1-2homens-bomba;1,2-3motivosnacionalistas;1-2motivosreligiosos;1-2

Tunísia;1,2

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turcos;1,2,3,4,5,6,7Turquia;

adoçãodonome;1ameaçasoviéticaà;1-2,3comoindependente;1-2comomembrodaOCI;1desempenhoeconômico;1-2,3edescobrimentodaAmérica;1instituiçõesdemocráticas;1,2-3libertaçãoda;1-2

ulemá;1,2,3-4‘Umar(califa);1,2UniãoSoviética;

colapsoda;1,2,3,4eAfeganistão;1-2,3,4-5,6,7ecriaçãodoEstadodeIsrael;1interessesnoOrienteMédio;1,2-3,4-5,6-7negociaçãodearmascomoEgito;1,2-3reconheceoreinosaudita;1

‘Uthman(califa);1wahhabismo;1,2-3Wolff,Heinrich;1WorldTradeCenterverataquesde1desetembroxádoIrã;1,2,3,4-5,6-7xiita;1Zahedi,generalFazlollah;1

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Títulooriginal:TheCrisisofIslam(HolyWarandUnholyTerror)

Traduçãoautorizadadaprimeiraediçãonorte-americanapublicadaem2003porModernLibrary,imprintdeRandomHouse

PublishingGroup,umadivisãodeRandomHouseInc.Copyright©2003,BernardLewis

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Todososdireitosreservados.Areproduçãonão-autorizadadestapublicação,notodo

ouemparte,constituiviolaçãodedireitosautorais.(Lei9.610/98)Capa:MiriamLerner

FotosdeCapa:TérminodoRamadã,séc.XIII

MausoléudomuláIsmail©CorbisEdiçãodigital:novembro2011ISBN:978-85-378-0430-8

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