Da Rua Ao Carcere. Do Carcere a Rua

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1 SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA RITA DE CÁSSIA SALVADOR DE SOUSA BARBOSA DA RUA AO CÁRCERE. DO CÁRCERE À RUA. SALVADOR (1808 – 1850) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, para obtenção do grau de mestre. Orientador (a): Profª. Drª. Lina Maria Brandão de Aras Salvador – Ba. 2007

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    SERVIO PBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA MESTRADO EM HISTRIA

    RITA DE CSSIA SALVADOR DE SOUSA BARBOSA

    DA RUA AO CRCERE. DO CRCERE RUA. SALVADOR (1808 1850)

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal da Bahia, para obteno do grau de mestre.

    Orientador (a): Prof. Dr. Lina Maria Brando de Aras

    Salvador Ba. 2007

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    SERVIO PBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA MESTRADO EM HISTRIA

    RITA DE CSSIA SALVADOR DE SOUSA BARBOSA

    DA RUA AO CRCERE. DO CRCERE RUA. SALVADOR (1808 1850)

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal da Bahia no curso de Histria Social, para obteno do grau de mestre.

    Orientador (a): Prof. Dr. Lina Maria Brando de Aras

    Salvador Ba. 2007

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    AGRADECIMENTOS

    Prof. Dr. Lina Maria Brando de Aras, minha orientadora.

    As professoras doutoras Maria Hilda Baqueiro Paraso, Gabriela dos

    Reis Sampaio, Suely Moares Servolo e o Prof. Dr. Valdemir D. Zamparoni.

    A Soraya Ariane e demais funcionrios da Faculdade de Filosofia e

    Cincias Humanas da UFBa.

    Aos amigos, Fernando Silva Prado, Virgnia Moreira, Fernanda

    Germano, Frederich Schering, Patrcia Pereira, Elizngela Gomes, Meire Souza, Edmia

    Souza, Rogrio Lima, Jorge Torres, Fernando Salvador, Maria Helena Salvador, Nadja

    Nara, Vandr, Regina Helena, Desival Arago Lobo, Brbara Carneiro, Gilcimar

    Santos, Wesley Barbosa.

    Aos familiares, Bartolomeu Carlos Barbosa (pai), Rita Salvador

    Barbosa (me), Regina Cludia Salvador Barbosa (irm), Rose Cristiane Salvador

    Barbosa (irm), Pedro Salvador Barbosa Reis Costa (sobrinho).

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    RESUMO

    Esta dissertao discute o sistema penitencirio e sua populao nos idos

    de 1808 e 1850, momento histrico importante na composio e criao

    de unidades prisionais, que serviram para abrigar os presos das vrias

    revoltas e levantes ocorridos nesse perodo. Buscou-se nesse trabalho,

    analisar a insatisfao scio-poltica vivida naquela poca e o

    conseqente aumento da populao carcerria, bem como a necessidade

    da insero desse grupo na formao da nao imperial e sua importante

    contribuio scio-econmica para a cidade do Salvador.

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    ABSTRACT

    This dissertation intends to debate the penitentiary system and the

    population during the period of 1808 1850 in the city of Salvador,

    and important historic period in the composition and creation of

    imprisioment units, due to various revolts and rebellion occurring this

    time. This work analysis the dissatisfaction with the social and

    political life in this period and the consequential of the in-crease of

    the prision population. It will also review the need to include this

    group in a formation of the imperial nation and their social and

    economic contribuition.

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    SUMRIO INTRODUO 07 CAPTULO I 21JUSTIA E PRISO NO BRASIL 1.1 Cdigo Criminal de 1830 e o Cdigo de Processo Crime de 1832

    35

    1.2 As Prises: Aljube, Presiganga e Fortes 39 CAPTULO II 58PRESOS: MARGEM, MAS MO-DE-OBRA 2.1 A priso como forma de punio 582.2 Penas 732.3 Presos e suas penas 78 CAPTULO III 82POBREZA, CRIME E DOENAS 3.1 Entre os males urbanos 873.2 Um trgico relato 953.3 O descaso e a preocupao com a Reforma Penal 99 CONSIDERAES FINAIS 102 LISTA DE FONTES 105 REFERNCIAS 107

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    INTRODUO

    O objetivo desta dissertao discutir o papel das instituies carcerrias e sua

    populao no contexto histrico da formao do Estado nacional brasileiro, na primeira

    metade do sculo XIX, mais especificamente, o perodo correspondente de 1808-1850,

    tomando por base a insero desses grupos de presos na nova ordem vigente.

    O importante nesse tema apresentar o espao prisional, lugar de recluso e isolamento, como colaborador e comunicador da organizao social, que, embora ele j tenha nascido sob o estigma do insucesso, como afirma PerrotTPF1FPT, se constituiu, ao longo da histria, como cenrio de grandes articulaes, onde permeava desconstruir o pacto social vigente e figurar como elemento singular na organizao das sociedades modernas.

    Tomamos como ponto de partida o crescimento e a dificuldade em conter

    motins populares na Bahia, o que acarretou sobremaneira o aumento da populao

    carcerria e a necessidade de criar medidas para resolver tal situao. O aumento dos

    tributos sobre diversos produtos de consumo fez crescer, tambm, na Bahia vrios

    levantes que trouxeram instabilidade ao Trono e enchiam as cadeias da Provncia.

    As casas de Cmara e fortificaes adaptadas para fins de priso j no

    comportavam seu contingente prisional e, para tanto, fez-se necessrio a criao de

    outras adaptaes prisionais como as presigangas, navios que, passados reserva,

    serviam de presdios temporrios, onde, geralmente, os condenados utilizavam essas

    navegaes para dormirem noite e, durante o dia, trabalhar, forosamente, nas obras

    pblicas da cidade. Desta maneira, por crcere se designavam os espaos que serviam

    de priso, cuja funo era abrigar temporariamente indivduos a espera de uma deciso

    judicial.

    A implantao de um sistema prisional se fazia necessrio no Brasil, cuja

    instalao da primeira priso mencionada em Carta Rgia de 1769, que mandava

    estabelecer uma Casa de Correo no Rio de JaneiroTPF2FPT e a assimilao de uma nova

    modalidade penal instituda pela Constituio de 1824, que estipulou as prises

    adaptadas no trabalho e separao dos rus por seus crimes; pelo Cdigo Criminal de

    1830, ficou regularizada a pena de trabalho e da priso simples e o Ato Adicional, de 12

    de agosto de 1834, deu s Assemblias Legislativas Provinciais, o direito sobre a TP

    1PT PERROT, Michelle. Prisioneiros. In: Os excludos da Histria: operrios, mulheres e prisioneiros.

    Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, parte III, cap. 1 e 2. TP

    2PT VALENTE, Osvaldo Rosa. O ponto de vista de sat e o poder institucional: pessoalizao e

    individualizao no cotidiano dos presos de Salvador. Dissertao de Mestrado em Sociologia. Salvador: FFCH/UFBA, 1998, cap. II.

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    construo de casas de priso, com trabalho, correo para punio do diferentes

    crimes.

    No sculo XIX no existia a preocupao, por parte dos governantes, em

    regenerar os indivduos, o que se cuidava era a aplicao de castigos. O direito de punir

    se exercia no Brasil por dois sistemas: o da intimidao e o da vingana (Vindicta

    pblica), cujos castigos eram impostos publicamente, podendo ser em forma de suplcio

    ou trabalho forado.

    A partir de meados do sculo XVIII os suplcios foram abolidos e comeou-se a

    questionar as severidades das penas e sua utilidade, se pautando na humanizao dos

    condenados, tendo por base as idias iluministas e a Declarao dos Direitos do

    Homem, sendo necessrio, nesse perodo, estabelecer novas concepes de privao da

    liberdade, modificando a poltica penal e inserindo uma poltica penitenciria.

    As primeiras modificaes observadas a partir dessas novas formulaes tericas

    se deram nos idos de 1720-1790 na Inglaterra, por John Howard, que pretendia, desde

    ento, promover para a populao carcerria o recolhimento celular, trabalho dirio,

    reforma moral pela religio, condies de higiene e de alimentao. Segundo Osvaldo

    Rosa Valente, essa proposta teria duas faces que explicam a moderna concepo de

    privao da liberdade: em primeiro lugar, postulou-se a modificao da poltica penal;

    e, em segundo lugar, o estabelecimento de uma poltica penitenciria.

    Entendendo-se poltica penal como um conjunto de princpios orientadores da

    definio dos crimes, da cominao e aplicao das sanes penais, quando se fala em

    poltica penal est-se pensando em pelo menos trs coisas que lhe servem de base:

    1) que cada sociedade, considerada espacial ou historicamente, tem uma concepo dominante acerca do que crime, isto , daquilo que deve ser objeto de sano penal; 2) que cada sociedade estabelece a natureza das sanes s transgresses especficas, isto , existe uma classificao das transgresses e, portanto, existem formas particulares de sano aplicada a cada infrao; e que sociedades diferentes possuem formas especificas de aplicar as sanes penais.TPF3FPT

    A crise do sistema colonial na Bahia agravou o cenrio de misria e desordem

    social, poltica e econmica que acarretaram em vrios conflitos. A superlotao

    carcerria encontrou instalaes sem infra-estrutura para abrigar tantos presos. O

    cenrio de desprezo em que se encontrava a populao carcerria era de tal maneira que

    as instituies foram condenadas por vrios mdicos que analisaram as prises da TP

    3PT VALENTE, op. cit..

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    poca, pois havia, naquele momento, uma grande preocupao, no sculo XIX, com a

    profilaxia das doenas contagiosas, especialmente encontradas na atmosfera, nas guas,

    nas habitaes, nos hospitais, nos portos, nas prises, na alimentao e na higiene

    pessoal, medidas essas trazidas da Europa para o Brasil.

    A poltica mdica, que se delineia no sculo XVIII em todos os pases da Europa tem como reflexo a organizao da famlia, ou melhor, do complexo famlia-filhos, como instncia primeira e imediata de medicalizao dos indivduos; fizeram-na desempenhar o papel de articulao dos objetivos gerais relativos boa sade do corpo social com desejo ou a necessidade de cuidados dos indivduos; ela permitiu articular uma tica privada da boa sade (dever recproco de pais e filhos) com um controle coletivo da higiene e uma tcnica cientfica da cura, assegurada pela demanda dos indivduos e das famlias por um corpo proporcional de mdicos qualificados e como que recomendados pelo Estado. Os direitos e os deveres dos indivduos concernido sua sade e dos outros, o mercado onde autoritrios do poder na ordem da higiene e das doenas, a institucionalizao e a defesa da relao privada com o mdico, tudo isto, em sua multiplicidade e coerncia, marca o funcionamento global da poltica de sade do sculo XIX, que, entretanto, no se pode compreender abstraindo-se este elemento central, formando no sculo XVIII: a famlia medicalizada-medicalizante.TPF4FPT

    A preocupao mdica no final do sculo XVIII girou em torno da higiene e

    estava associada idia de progresso e civilizao. As cidades tinham que estar

    sintonizadas com essa nova modalidade, no cabendo mais espaos sujos e insalubres.

    A chamada medicina urbana, batizada por Foucault, consistia em observar os

    conglomerados urbanos que pudessem provocar doenas.

    A medicina urbana com seus mtodos de vigilncia, de hospitalizao etc., no mais do que um aperfeioamento, na segunda metade do sculo XVIII, do esquema poltico-mdico da quarentena que tinha sido realizado no final da Idade Mdia, nos sculos XVI e XVII. A higiene pblica uma variao sofisticada do tema da quarentena do sculo XVIII e se desenvolve sobre tudo na Frana.TPF5FPT

    A interveno estatal na medicina urbana no Brasil se iniciou com a chegada da

    Corte portuguesa, em 1808, tendo, nesse perodo, desenvolvido o poder mdico. Dessa

    maneira, foram fundadas as Faculdades de Medicina da Bahia, conhecida na poca

    como Escola de Cirurgia da Bahia e do Rio de Janeiro (1808) e a Sociedade de

    Medicina do Rio de Janeiro (1829), inspirada nas Sociedades Francesas. Nelas foram

    institudos os princpios fundamentais de sade pblica no Brasil e que desencadearam,

    TP

    4PT COSTA, Jurandir Freire. Ordem Mdica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 201.

    TP

    5PT FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992, p. 89.

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    em 1850, na criao da Junta de Higiene e dos rgos pblicosTPF6FPT, devido ao surto de

    febre amarela que assolou Salvador.

    A higiene passou a figurar como a cincia da vida nas cidades e permeou todos

    os mbitos da vida social urbana, tendo como instncia bsica de medicalizao, a

    famlia. Nesse sentido, segundo Jurandir Freire Costa:

    o corpo, o sexo e as relaes afetivas entre seus membros foram alvo de cuidado higinico atravs de normas reguladoras de comportamento de homens, mulheres e crianas, objetivando modificar os velhos hbitos anti-higinicos coloniais, modificar a conduta fsica, intelectual, moral, sexual e social dos membros da famlia.TPF7FPT

    Por fim, a medicina urbana do final de sculo XVIII, criada na Europa, via a

    populao como um problema poltico, econmico, demogrfico, sanitrio, sendo

    imprescindvel o controle sobre ela, sobre seu sexo, sua sade, sua doena, sua

    alimentao e moradia, sendo as mesmas preocupaes trazidas, posteriormente, para o

    Brasil. Segundo Maria Renilda Nery Barreto,

    o saber mdico em Lisboa e em Salvador foi mediado, no sculo XVIII, por um conjunto de doutrinas, destacando-se o Galenismo, a Iatroqumica, a Iatromecnica, o Vitalismo e a Nasotaxia. Entre 1815 a 1831, 31% dos mestres da Academia Mdico-Cirrgica da Bahia, haviam sido formados em Coimbra.TPF8FPT

    Dentre eles podemos destacar: Manoel Jos Estrela (1760-1840); Jos Soares de

    Castro (1772-1849); Jos Lima dos Santos Coutinho (1784-1836); Joo Jos Barbosa de

    Oliveira, que desenvolveu na Bahia uma tese onde propunha pesquisar o que era a

    doena e sua origem, em 1846; Antnio Janurio de Faria (1822-1883); Dr. Jos Ges e

    Sequeira (1816-1874), que acreditavam poder explicar a doena a partir da metafsica;

    Dr. Jos Sizenando Avelino Pinho (1819-1874), que desenvolveu o princpio da

    Clnica Interna; Cypriano Barbosa Bettnio (1818-1855), que desenvolveu a tese

    espontnea, onde afirmava que os microorganismos surgiam independente da

    prognia; Jos Cndido da Costa (1826-1882), fiel aos preceitos higienistas; Domingos

    Rodrigues de seixas (1830-1890), que publicou Memria sobre a salubridade pblica

    na provncia da Bahia; Jos Antnio de Freitas (1830-1894), que publicou, em 1854, no

    TP

    6PT Em fins do sculo XVIII e incio do XIX, a higiene pblica tornou-se tema dominante nas esferas

    eruditas da sociedade. Antes da criao da Junta ou Comisso de higiene pblica, a Bahia j havia institudo o Conselho de Salubridade pela Lei n73 de 15/06/1838. TP

    7PT COSTA, op.cit., pp. 14-49.

    TP

    8PT BARRETO, Maria Renilda Nery. A medicina Luso-brasileira: instituies, mdicos, populao e

    enfermos em Salvador e Lisboa (1808-1851). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005, p. 20.

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    peridico O Prisma, Breves consideraes sobre a febre amarela e a salubridade

    pblica, dentre outros.

    Foi em fins do sculo XVIII e incio do XIX que a higiene pblica tornou-se o tema dominante nas esferas eruditas da sociedade em prol do progresso e da civilizao. Considerando-se que neste perodo as cidades apresentavam-se sujas, insalubres e impregnadas de odores nauseantes, no se coadunando, portanto, com os padres modernos, os governantes iniciavam um processo de interveno na urbe que consistia na derrubada de prdios deteriorados ou que impediam a circulao do ar; no estudo da localizao das casas e do material utilizado na construo, na drenagem, pavimentao, alargamento e iluminao de ruas; na melhoria do suprimento de gua potvel populao e na organizao do sistema de esgotos, para que os dejetos no fossem atirados s ruas. Enfim, a sade pblica foi identificada com os interesses de orientao policial e poltica, com foco na populao, na melhoria das condies sociais e ambientais que produziam a doena.TPF9FPT

    Nas prises essa realidade no era diferente. Improvisadas, remendadas e cheias

    de falhas, assim eram as cadeias desse perodo. Essas prises ficavam aos cuidados de

    um carcereiro como nos informa BitencourtTPF10FPT: A administrao de uma priso coisa

    muito importante para abandon-la completamente aos cuidados de um carcereiro. O

    Estado pouco se abarcava desses problemas, sendo as Cmaras Municipais as

    responsveis por tal atribuio. Elas tinham fora para reprimir ou castigar e no se

    preocupavam em regenerar. S aps 1830 com a outorga do Cdigo Criminal de 1830

    que essa preocupao se tornou evidente, levando em considerao os princpios

    humanitrios, como j foi dito anteriormente.

    Por se tratar de trabalho onde lidamos diretamente com os excludos da histria,

    a participao de negros escravos e pessoas menos favorecidas da sociedade baiana

    encontra-se largamente documentada como protagonistas de uma realidade contada s

    avessas, onde esses indivduos so encontrados na Histria convencional na posio da

    desordem e da anarquia, no sendo reconhecidos como produtores de condies

    humanas mais favorveis vida, como mostrava a realidade daquele dado momento.

    Tal condio pode ser percebida em outros tantos documentos encontrados no APEBa,

    como cartas Presidncia da Provncia redigidas por cirurgies mor, juzes de paz,

    alferes e presos das sries Casa de Correo, Quartel da Inspeo Militar, Quartel Geral

    do Corpo de Polcia, Penitencirias, Comando DArmas.

    TP

    9PT BARRETO, op. cit., p. 58.

    TP

    10PT BITENCOURT, Cezar Roberto. Falncia da Pena de Priso-Causas Alternativas. So Paulo: Revista

    dos Tribunais, 1993.

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    A documentao encontrada no APMBa (Arquivo Pblico Municipal de

    Salvador) consta de denncias de maus tratos, relatos dirios sobre o cotidiano dessas

    cadeias, informaes sobre os diversos grupos sociais que mesclavam a populao

    carcerria naquele dado momento, ordens de priso sobre diversos tipos de crimes e

    suas devidas penas e denncias de falta de salubridade nesses ambientes.

    Considerando os estudos sobre a Bahia no sculo XIX, a metodologia adotada

    para a confeco desse trabalho est fundamentada em um dilogo com as fontes

    encontradas e a bibliografia sobre o contexto poltico, administrativo e social da cidade

    do Salvador, tendo em vista a periodizao a que se props esse trabalho. O trabalho se

    utiliza da leitura de fontes bibliogrficas produzidas sobre o tema e sobre a Bahia, em

    especial, a cidade do Salvador no cenrio colonial e provincial, onde abordam as lutas

    pela Independncia do Brasil, manifestaes antilusitanas e antiregenciais.

    Utilizamos a bibliografia da histria da escravido, liderada por Joo Jos

    ReisTPF11FPT, o que nos permitiu o mapeamento da rebeldia escrava no cotidiano da sociedade

    soteropolitana do perodo e a permanncia desses agentes no seio da sociedade

    escravista e a possibilidade de emergncia de novos acontecimentos rebeldes.

    As condies de salubridade vivida pelos presos so aqui pontuadas, bem como,

    a utilizao da mo-de-obra carcerria na formao da urbe e a evoluo do sistema

    prisional em Salvador. As prises do sculo XIX viviam em grande desordem, sofrendo

    toda sorte de desmandos. A falta de saneamento que j era comum nas cidades e vilas se

    estendia tambm aos ambientes carcerrios e para amenizar tal problema e criar novas

    unidades correcionais, foi utilizada, em larga escala, a mo-de-obra em consonncia

    com as novas medidas judicirias criadas aps a aprovao do Cdigo Criminal de 1830

    e o Cdigo de Processo Crime de 1832.

    Segundo ngela de Arajo Porto, em sua dissertao de mestrado intitulada As

    artimanhas de esculpio: crena ou cincia no saber mdico, em que analisa as

    concepes mdicas-sanitrias referente ao controle das doenas e epidemias, na virada

    do sculo XIX para o XX na cidade do Rio de Janeiro, destaca que, a influncia da

    medicina social no Brasil se deu mediante o contato entre brasileiros e europeus, seja

    pela vinda de cientistas europeus para ocupar cargos em nossas instituies ou de

    estudantes que realizaram seus cursos de especializao na Europa. Mas, foi o modelo TP

    11PT REIS, J. J.. Rebelio escrava no Brasil. So Paulo: Cia das Letras, 2003. / A morte uma festa: ritos

    fnebres e revolta popular no sculo XIX. So Paulo: Cia das Letras, 1991. / SILVA, Eduardo e REIS, J. J.. Negociao e conflito. So Paulo: Cia das Letras, 1999. / GOMES, Flvio dos Santos e REIS, J. J.. Liberdade por um fio. So Paulo: Cia das Letras, 1996.

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    de medicina urbana francesa que mais influenciou a medicina no Brasil, no sculo XIX.

    Esse modelo francs se detinha s necessidades do processo de urbanizao, tendo

    como impulso motivaes polticas, econmicas e demogrficas.

    O ensino mdico no Brasil se inicia, como j foi dito, com a chegada da Corte

    portuguesa cidade do Salvador, em 1808. As condies de higiene e sade na Colnia

    portuguesa eram extremamente precrias devido ao abandono em que se encontrava,

    sendo negligenciada pela administrao portuguesa. Vrias epidemias assolavam a

    populao urbana e as autoridades coloniais buscavam meios de se aparelhar para

    combat-las. Desse modo, vrias instituies foram criadas no Brasil, incentivando a

    vinda de profissionais europeus para a Colnia.

    Muitos ociosos nas ruas passaram a ser recolhidos s cadeias para atuarem nas

    linhas de trabalho de urbanizao das cidades, preocupao j presente desde o sculo

    XVI, como nos mostra Vainfas em Dicionrio do Brasil Colonial, 1500-1808 TPF12FPT, onde

    pontua a preocupao do Conde de Resende em providenciar melhorias nas condies

    sanitrias da cidade do Rio de Janeiro, bem como na iluminao de vrios logradouros

    dessa cidade, utilizando, para tanto, a mo-de-obra escrava, na tentativa de driblar a

    crise enfrentada pelo Imprio portugus, sendo as cadeias o principal plo fornecedor

    dessa mo-de-obra.

    O aumento populacional se caracterizou, a partir de 1790, numa grave

    preocupao das autoridades coloniais, juntamente com a criminalidade escrava.TPF13FPT Tais

    fatos ameaavam a ordem constituda, que passou a se apropriar de meios de controle

    urbano para essas aes, intensificando a segurana, criando novas cadeias e

    promovendo rondas militares e policiais.TPF14FPT Manter a vigilncia urbana passou a ser uma

    das prioridades das autoridades governamentais de toda a Colnia, cuja aliana com os

    senhores de escravos foi fundamental nessa empreitada, utilizando-se da mo-de-obra

    escrava para trabalharem nas obras pblicas das cidades, colaborando tambm para sua

    segurana e manuteno. A sociedade comeou a cultivar novos valores e as penas

    impostas aos criminosos tambm passou por reformas. As Ordenaes Filipinas que

    entraram em vigor em 1603, em todo o Imprio portugus e que eram tambm TP

    12PT VAINFAS, Ronaldo (org.). Crcere. In: Dicionrio do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro:

    Objetiva, 2000. TP

    13PT LIMA, Solimar Oliveira. Triste Pampa. Resistncia e punio de escravos em fontes judicirias no Rio

    Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUES, 1997. / SOARES, Carlos Eugnio Lbano. A negrada instituio: os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Acess, 1999. / Idem. A capoeira escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro. (1808-1850). Campinas: Ed. Unicamp, 2003. TP

    14PT ANRJ, Secretaria de Estado do Brasil. Cdice 69, Registro de Correspondncia do Vice Reinado. Vol.

    5 Fls. 72. Ofcio enviado em 02 de novembro de 1795.

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    utilizadas para reger as prticas judicirias no Brasil, perduraram at 1830, abolidas,

    quando sancionado o Cdigo Criminal do Imprio.

    Muito embora a participao da elite seja relatada na historiografia como

    crucial para as mudanas scio-polticas, ela pouco contribuiu para modificar as bases

    econmicas e sociais em que o Brasil se encontrava fincado e que ela prpria se

    alicerava: escravido, latifndio, monocultura e produo voltada para exportao.

    Nesse contexto, buscamos ressaltar a participao das camadas populares, atingidas

    pelo alto custo de vida e pelos impostos abusivos, cuja insatisfao contribuiu para a

    configurao de um corpo penitencirio local, constitudo, na sua grande maioria, por

    escravos, libertos, homens livres pobres e pequenos proprietrios, os quais se

    mobilizavam nas lutas pela igualdade poltica e social.

    Um ano aps a Independncia do Brasil, a Bahia ainda mantinha estreitas

    ligaes com o Estado portugus, no que diz respeito s transaes econmicas. O

    acar e a mandioca foram a base da economia baiana durante todo o sculo XIX. O

    aumento dos impostos sobre diversos produtos de consumo fez nascer na populao um

    sentimento que buscava conseguir maior autonomia dessa Provncia. Como cita

    Affonso Ruy,

    essa condio de sentimento nacional mal definida se patenteia na judicao de Feij, proposta como remdio para harmonizar relaes entre Brasil e Portugal enquanto se no organizar a Constituio, reconhea a Independncia de cada uma das Provncias que a Constituio somente obrigar aquelas Provncias, cujos deputados nela concordarem pela plenaridade dos votos.TPF15FPT

    A sensao de dependncia inflamava os nimos da populao, que via no

    federalismo e implantao de outro sistema de governo a sada para acabar com os

    desmandos dos portugueses. Nesse cenrio a Bahia registrou as vrias revoltas de

    homens livres que definiriam o panorama poltico e scio-econmico do Brasil. Alm

    disso, registre-se uma grande quantidade de levantes de escravos, que queriam ter

    participao do quinho de liberdade to prometido quando se fez a Independncia e

    impulsionado pela proibio do trfico de escravos a partir de 1831. TPF16FPT

    O estado financeiro da Provncia preocupava seus governantes e enfurecia a

    populao, cuja proibio do trfico de escravos, fez surgir na capital meios de fraudes TP

    15PT RUY, Affonso. Histria Poltica e Administrativa da cidade do Salvador. Salvador: Tipografia

    Beneditina, 1949, p. 400. TP

    16PT REIS, Joo Jos. Rebelio escrava no Brasil: A Histria do Levante dos Mals em 1835. So Paulo:

    So Paulo: Cia das Letras, 2003.

  • 15

    que iam do suborno a conflitos armados para se levar s senzalas dos ricos comerciantes

    os escravos trazidos clandestinos ao Brasil. Com a campanha contra o trfico negreiro,

    renovou nos escravos o sentimento de liberdade e de vingana, o que podia ser

    observado desde os levantes, no Cabula em 1827 e as insurreies de 1828 no

    Recncavo. Fatos estes, que levaram os senhores de engenho a pressionar o Visconde

    de Camamu na ampliao do Corpo de Polcia das Provncias e Vilas do interior.

    Destacando, tambm, nesse perodo, segundo Carlos Eugnio Lbano Soares, que

    examinou a priso de escravos do sculo XIX, o chamado terror da capoeira, a mais

    importante manifestao urbana dessa poca, no Rio de Janeiro.TPF17FPT

    Dentre esses movimentos, podemos destacar a rebelio popular antiportuguesa

    conhecida como Mata-Maroto, em 13 e 14 de maio de 1831, acontecida em Salvador,

    cujo intento era afastar os portugueses de funes pblicas; a Rebelio Federalista de

    Cachoeira (1832), liderada por militares, comerciantes e populares; outra em 1833, em

    Salvador.

    A Rebelio de 1835 conhecida como Revolta dos Mals, sendo considerada o

    mais srio levante de escravos j ocorrido no Brasil, cuja articulao passou

    despercebida pelas autoridades locais, que estavam imbudos pelos festejos em

    comemorao a Nossa Senhora da Guia, a serem realizados no Bonfim e que devido a

    distncia deixaria o centro da cidade deserto e vulnervel, facilitando a ao dos

    revoltosos, que na primeira hora foi muito bem sucedida. Logo depois foi aniquilada

    pelo Intendente da Polcia e a condenao dos rebeldes forca e a priso, trouxe para o

    sistema carcerrio de Salvador 234 processos contra escravos, forros e outros homens

    simpatizantes deste levante. Alm de 200 a 1000 condenaes a aoites e, depois, a

    priso, onde l poucos sobreviveram devido s feridas expostas aos ares ptridos da

    priso que lhes causavam gangrenas e infeces.TPF18FPT

    O clima de tenso que vivia a Provncia da Bahia nos oitocentos era sentido nos

    mais diversos setores da vida dos baianos, dentre os quais destacamos tambm a

    Cemiterada, movimento ocorrido em 1836, cujo resultado final foi a destruio do

    cemitrio do Campo Santo em SalvadorTPF19FPT. A revolta foi contra uma prtica vinda da

    Europa de realizar os enterramentos fora das igrejas e criada por motivos de profilaxia,

    TP

    17PT SOARES, op. cit., 2003.

    TP

    18PT REIS, op. cit., 1991.

    TP

    19PT Idem, ibidem.

  • 16

    reforada pela opinio de vrios mdicos que acreditavam que as doenas podiam ser

    contradas com o contato com os corpos dos mortos em putrefao.

    No entanto, apesar de tomarem conhecimento dos prejuzos sanitrios trazidos

    com a falta de um lugar adequado para enterrarem seus mortos, a construo do

    cemitrio em Salvador foi recebida com protestos da populao e de diversas

    irmandades que no aceitavam que seus mortos deixassem de ser enterrados nas igrejas,

    prtica essa, baseada na crena de que quanto mais perto do altar-mor estivessem, mais

    perto de Deus chegariam depois de mortos. Era a esperana de se gozar uma vida

    melhor do que aquela que desfrutavam enquanto estavam vivos. TPF20FPT

    A defesa da construo de cemitrios esteve embasada na teoria miasmtica, que defendiam a alterao do ar por princpios deletrios, que resultavam da decomposio de matrias orgnicas. Nesse caso, o indivduo se infestaria pelo contato com eflvios ou gases ptridos (miasmas) espalhadas na atmosfera. Consagrada na era das luzes, a teoria tinha limites, resignava-se de forma positiva em seus defensores.TPF21FPT

    Destacamos ainda os acontecimentos polticos e a rebeldia dos homens livres na

    Bahia, pontuando as revoltas ocorridas desde o perodo colonial e a instabilidade

    econmica pela qual passava o Brasil nessa poca, especialmente o norte. Segundo

    Eduardo Martins:

    no Brasil, o Estado chegou antes da nao, precedeu a sociedade e desde seu primeiro dia de colonizao o seu territrio se viu s voltas com leis, ordenaes, alvars, cartas Rgias, funcionrios e burocratas, ou seja, com as manifestaes visveis do poder do Estado e da sua burocracia. Exigindo a assimilao das leis a uma populao alheia, miservel, de pobres e escravos, antes mesmo que esses indivduos tenham polido seu desejo de formar uma sociedade mediante a convivncia, o respeito recproco e a aceitao de determinados limites do arbtrio individual, antes mesmo que esses indivduos pobres tenham compartilhado de sacrifcios e dificuldades, que constituiro sua histria, ou em outras palavras, antes mesmo que tenha sido construda a nao. O processo se inverte e a nao passa a ser moldada pelo Estado, e no o contrrio.TPF22FPT

    A criao do Cdigo Criminal foi ter sido mais uma fase do processo dessa

    estatizao para os indivduos de vidas tradicionais: os pobres. Segundo Eduardo

    Martins, um dos atributos bsicos na criao do Cdigo Criminal pela elite brasileira foi

    dar suporte a uma fora pblica, tambm chamada de polcia, a fim de regulamentar a

    TP

    20PT Idem, ibidem.

    TP

    21PT Idem, ibidem.

    TP

    22PT MARTINS, Eduardo. Os pobres e os termos do bem viver: novas formas de controle social no Imprio

    do Brasil. Dissertao de Mestrado. So Paulo: UNESP, 2003, p. 57.

  • 17

    populao livre que vivia s margens do sistema scio-poltico no perodo imperial e

    escravista. O Cdigo Criminal foi a base legal da ao policial por quase 60 anos,

    definindo o grau de culpabilidade e criminalidade, as circunstncias e agravantes, alm

    de estabelecer o modelo e a estrutura nos quais se desenvolveriam as normas e os

    mtodos policiais e em outras instncias inferiores na sociedade.

    A implantao do sistema penitencirio demonstrou um esforo do Estado para

    se inserir no emergente modelo de nao, iniciado aps a Independncia. Para isso,

    procurou-se implantar no Brasil um modelo jurdico policial, onde emergiram, desde

    ento, uma srie de leis, decretos e posturas, criao de prises, casas de correo e

    penitencirias. Assim, estabelecida a Instncia policial, passava a registrar os

    comportamentos que fugiam norma prescrita e poderiam, no obstante, representar um

    perigo potencial para as aspiraes de ordem imperial.

    O Cdigo Criminal de 1830 consolidou a jurisprudncia na nao brasileira,

    incorporando o princpio de civilizao, trazido como exemplo para promover a

    insero dos pobres nesse projeto de nao com a prtica das prises com trabalho,

    onde o indivduo, apesar de detento, exercia uma funo social. Para Foucault:

    a priso menos recente do que se diz quando se faz datar seu nascimento dos novos cdigos. A forma-priso preexistente sua utilizao sistemtica nas leis penais. Ela se constitui fora do aparelho judicirio (...) A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivduos dceis e teis, atravs de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituio-priso, antes que a lei a definisse como pena por excelncia (...) A priso, pea essencial no conjunto das punies, marca certamente um momento importante na Histria desses mecanismos disciplinares que o novo poder de classe estava desenvolvendo: o momento que aqueles colonizaram a instituio judiciria.TPF23FPT

    Anterior ao Cdigo Criminal de 1830 e as leis penais do Cdigo de 1832, a

    forma de punio, alm dos suplcios, objetivava remeter ao trabalho os indivduos

    desviantes, sobretudo na contratao dessa mo-de-obra para as linhas de frente

    militares, seguindo modelo das Ordenaes Filipinas do Reino.

    Sua majestade o imperador, a quem fiz presente o ofcio de 14 do corrente, em que V.S. depois de fazer ver crescido nmero de homens vadios que vivem na ociosidade, sem buscarem meios de subsistncia, e que principalmente nesta Provncia concorrem para os repetidos roubos, que se tem experimentado, pede-se-lhe conformidade do Decreto de 4 de

    TP

    23PT FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrpolis: Vozes, 1987, pp. 87-90 e 195.

  • 18

    novembro de 1755, ou destinados ao servio de exrcito ou marinha (...).TPF24FPT

    Parte da poltica de arregimentao dos homens pobres livres foi implementada

    por meio do recrutamento para combater os diversos levantes e revoltas antilusitanas.

    Essa foi a soluo encontrada pelas elites para inserir essa populao na sociedade,

    evitar a superlotao nas cadeias e faz-las pagar pelo nus gasto pelo Estado com suas

    prises. Walter Fraga Filho, em seus estudos sobre a Provncia da Bahia, evidencia esse

    tipo de recrutamento forado para a linha de frente de batalha.

    Para as autoridades do interior e da capital uma alternativa superlotao das cadeias e a presena desse contingente sem ocupao nas ruas era o recrutamento forado nas foras de linha do exrcito e nas embarcaes da marinha. De inimigos da ordem, os vadios poderiam ser transformados em seus defensores. Dessa forma, o engajamento no servio militar insere-se no que Geremek chama de desmarginalizao, muito utilizada no perodo medieval para reintegrar os marginais no mundo da ordem. Segundo a legislao imperial, o recrutamento forado nas tropas de linha do exrcito e da marinha deveria visar prioritariamente homens sem ofcio, desempregados e ironicamente brios.TPF25FPT

    Maria Odila Dias tambm chega a mesma concluso ao analisar ofcios de

    recrutamento forado dos pobres: os vadios, os pobres, os desocupados, os que no

    tinham sequer condies de ser votantes, eram recrutados para a fora de linha. A partir

    de 1833, a Guarda Nacional tornou-se o centro de arregimentao dos setores de

    pequenos proprietrios, roceiros e lavradores pobres.TPF26FPT

    A justia penal deveria obedecer, ento, a um modelo utilitrio, ou seja,

    nenhuma lei poderia ter um fim que no fosse til ao Estado. E foi obedecendo a esse

    princpio civilizador que foi criado o Cdigo Criminal de 1830, com o intuito de

    adequar a populao carcerria no sistema de trabalho e na formao do Estado

    nacional. A questo da utilidade j estava expressa no Decreto de 30 de agosto de

    1824 e que veio a mudar a punio dos presos no Brasil.

    Sendo conveniente empregar na obra do dique o maior nmero possvel de trabalhadores: manda S.M. o imperador, pela Secretaria de Estado dos Negcios da Justia, que o Conselho Intendente Geral da Polcia,

    TP

    24PT Brasil. Congresso Senado. Coleo das Leis, Decretos e decises do Governo Imperial do Brasil,

    1824. p. 223. TP

    25PT FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do sculo XIX. So Paulo:

    HUCITEC/Salvador: EDUFBa, 1999, p. 95. TP

    26PT DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Cotidiano e poder em So Paulo no sculo XIX. So Paulo:

    Brasiliense, 1984, p. 68.

  • 19

    fazendo por novamente em observncia as ordens, que em outro tempo foram dirigidos ao falecido intendente, Paulo Fernandes Vianna, a respeito dos negros capoeiras, remeta para os trabalhos do mencionado dique todos aqueles que foram apanhados em desordem para ali trabalharem por correo, e pelo tempo de trs meses marcado nas ordens, cessando em conseqncia a pena de aoites, que freqentemente cometem dentro da cidade.TPF27FPT

    Dessa maneira, a reflexo sobre o processo de organizao dos trabalhadores

    passava pela realidade objetiva que os integrava: precarizados, desempregados,

    analfabetizados e discriminados. Esses problemas acabaram culminando em exploses

    de lutas sociais e organizaes polticas, onde os trabalhadores se viam obrigados a

    vender sua fora de trabalho sob condies que, em geral, mal possibilitavam sua

    subsistncia e, em cuja forma de discriminao, tambm estavam baseadas nos atributos

    da cor.

    O Cdigo Penal (Art. 34-36) e a Lei de Execuo Penal (Art. 31) determinaram

    a obrigatoriedade do trabalho nas prises. Dessa maneira, o trabalho carcerrio foi

    inserido no mbito da justia penal como forma de regenerao dos indivduos

    desviantes e defendido por vrios estudiosos da poca como TreilhardTPF28FPT, um dos

    primeiros defensores da ao laborativa nas cadeias, como nos afirma Foucault:

    A ordem que deve reinar nas cadeias pode contribuir fortemente pra regenerar os condenados; os vcios da educao, o contgio dos maus exemplos, a ociosidade... originaram crimes. Pois bem, tentemos fechar todas essas fontes de corrupo; que sejam praticadas regras de s moral nas casas de deteno; que, obrigados a um trabalho de que terminaro gostando, quando dele recolherem o fruto, os condenados contrariam o hbito, o gosto e a necessidade da ocupao; que se dem respectivamente o exemplo de uma vida pura; logo comearo a lamentar o passado, primeiro sinal avanado de amor pelo dever.TPF29FPT

    O mais antigo desses modelos o Rasphius de Amsterd, aberto em 1596, que se

    destinava, em princpio, a mendigos ou jovens malfeitores. TPF30FPT No Brasil, essa novidade

    foi instaurada pelo Cdigo Criminal de 1830, que, alm de instituir a pena privativa de

    liberdade, tambm fez surgir as penas de priso com trabalho, onde o condenado tinha a TP

    27PT Brasil. Congresso Senado. Coleo das leis e decretos do governo do imprio do Brasil, RJ. 1824,

    p.128. TP

    28PT Jean Baptiste Treilhard, foi deputado em Paris, ganhou reputao ao mostrar capacidade em reorganizar

    a Igreja e cuidar da nacionalizao da propriedade eclesistica. Posteriormente transformou-se Presidente do Tribunal Criminal de Paris e membro do Comit de Segurana Pblica e depois foi Presidente do Tribunal de Apelao e Conselheiro do Estado. Foi importante em esboar o Cdigo Civil, o Cdigo Criminal, o Cdigo de Processo Civil e o Cdigo Comercial, morreu em 10 de dezembro de 1810. TP

    29PT Apud FOUCALT, op. cit., 1992, p.209.

    TP

    30PT FOUCAULT, op.cit., 1987, p. 100.

  • 20

    obrigao de trabalhar diariamente dentro do recinto dos presdios que, segundo Luis

    Francisco Carvalho Filho, em alguns casos podia ser perptua, e de priso simples que

    consistia na recluso pelo tempo marcado na sentena, a ser cumprida nas prises

    pblicas que oferecerem maior comodidade e segurana e na maior proximidade que for

    possvel dos lugares dos delitos.TPF31FPT Como as cadeias brasileiras no comportavam essa

    modalidade de pena, o Cdigo Criminal de 1830 determinava que, enquanto fossem

    construdas novas unidades correcionais para esse fim, que as penas fossem comutadas

    para priso simples.

    Dividimos, ENTO, essa dissertao em trs captulos a seguir apresentados: no

    Captulo I, discutiremos o surgimento e evoluo do sistema penitencirio e da justia

    no Brasil. Entendendo-se como crceres os locais que serviam de priso durante o

    sculo XIX, seu funcionamento, sua populao, a reforma jurdica implantada no Brasil

    com a criao do Cdigo Criminal de 1830 e sua reformulao em 1832, quando levou

    o nome de Cdigo de Processo Crime.

    No Captulo II, trataremos da expanso urbana a partir de 1808 e a utilizao da

    mo-de-obra carcerria para a modernizao da urbe. A priso com trabalho como

    forma de punio; as penas institudas no perodo; e abordaremos a importncia do

    trabalho urbano para a formao do Estado brasileiro; trabalhando a mudana na

    concepo da execuo da pena, que ter, com a priso com trabalho, um carter

    utilitrio, que visava dar lucro ao Estado e regenerar o condenado mediante a ao

    laborativa, a formao religiosa e a disciplina.

    No Captulo III, cuidaremos em abordar a insalubridade no meio ambiente de

    Salvador; a crise econmica que assolava a cidade e causava a fome, aumentando os

    roubos e a violncia que, em conjunto com a falta de emprego, agravava a ociosidade e

    proporcionava a vadiagem e as doenas.

    TP

    31PT CARVALHO FILHO, Luis Francisco. A priso. So Paulo: Publifolha, 2002, p. 38.

  • 21

    CAPTULO I

    SISTEMA PENAL E DA JUSTIA NO BRASIL

    Inicialmente partiremos de um apanhado sobre a trajetria da instalao das

    instncias de aplicao da justia no Brasil colonial, acompanhando rapidamente suas

    modificaes e, depois, adentrando para o estudo da legislao em vigor na primeira

    metade do sculo XIX.

    A justia portuguesa de primeira instncia no Brasil era resolvida pela

    municipalidade, salvo os assuntos que envolvessem os interesses da Coroa como as

    Fazendas, a Alfndega e as Minas, pois esses eram julgados por foros especiais, o

    mesmo se fazia com os membros do Clero e das Ordens Militares. O poder municipal

    residia, basicamente, no Conselho, o conjunto dos homens bons o lugar, representados

    pela Cmara ou Mesa de Vereao. Nas cidades principais, essa Mesa assumia o ttulo

    de Senado da cmara. TPF32FPT

    Os municpios funcionavam de maneira quase independente e se organizavam

    com base nos costumes locais, tendo em vista, no haver no Brasil uma administrao

    centralizada. O poder municipal foi constitudo na fundao de So Vicente, em 1532 e

    tinham poucas funes regulamentadas: Capito ou Governador, Ouvidor ou Ouvidor

    Geral, Provedor ou Provedor Mor. O modelo do municpio portugus foi trazido para o

    Brasil com poucas alteraes e permaneceria assim por quase todo o perodo colonial.

    A estrutura definitiva de governo para os municpios foi estabelecida, em 1603

    pelas Ordenaes Filipinas, que determinaram os procedimentos para a escolha de

    juzes, vereadores e procuradores, bem como as atribuies e limitaes dos conselhos

    quanto administrao, s rendas pblicas, a regulamentao do comrcio e dos ofcios

    e participao nas festas religiosas, com um sistema de controle mais rigoroso,

    exigindo-se a prestao anual de contas aos provedores e a apresentao dos livros da

    receita e despesa do Desembargo do Pao.

    A primeira referncia sobre a criao da Cmara de Vereao de Salvador foi

    em 1551, por Luiz Dias, responsvel pelas plantas traadas, assegurando a Casa do

    TP

    32PT CARRILLO, Carlos Alberto. Memria da Justia Brasileira. Tribunal de justia do Estado da Bahia.

    Salvador: Edies Cincia Jurdica, 2003, v. II, p. 94.

  • 22

    Governador e Alfndega, Casa de Audincia e Cmara e Cadeia. A Cmara era o rgo

    administrativo da cidade e autoridade no cumprimento das leis, na imposio das penas,

    no cuidado salubridade pblica e era presidida pelos homens bons de cada

    localidade, elas foram responsveis pela construo do poder provincial e organizadoras

    do poder nacional.

    A unidade local, o municpio, teve papel decisivo na sociedade colonial. Ultrapassando suas funes administrativas, orientava juridicamente a sociedade e ordenava as conjunes polticas. A descentralizao poltico-administrativa do perodo colonial decorre, principalmente, da disperso das populaes reunidas em vilas isoladas dos centros urbanos mais dinmicos e tambm distantes do poder central.TPF33FPT

    As cmaras eram compostas pela elite local e exercia o controle do cotidiano,

    sob a denominao de Mesa de Vereao que, a partir de 1646, compunha-se apenas de

    juzes Ordinrios e Vereadores com encargos de administrao dos bens do Municpio,

    de orientao da vida da cidade, de fiscalizao de seu aprovisionamento, de auxlio a

    alcaidaria e uma srie de atribuies judiciais como: denncias de crimes, julgamento e

    punio de contraventores.

    Os juzes Ordinrios tinham funes nitidamente judiciais, os vereadores representavam no Conselho os encargos administrativos, competia-lhes verear, isto , andar vendo como se cumpriam as posturas do Conselho, quais as necessidades novas, ou abusos, como se conservavam os bens do municpio, como se abasteciam os mercados, fiscalizavam a carestia e o atravessamento dos vveres.TPF34FPT

    O procurador da cidade ou de Conselho era o cargo mais importante na Mesa de

    Vereao, pois tinham o carter duplo de advogado do municpio e do povo. Aos

    Almotacs cumpriam vigiar a execuo de posturas e resolues da Cmara; Aos

    escrives cabia lavrar as atas das sesses e organizar o movimento financeiro do

    Conselho. Outra figura importante na Cmara eram os carcereiros, tambm conhecidos

    como ministros das cadeias, cabendo-lhes a responsabilidade da polcia e segurana da

    cidade.

    A Cmara era rgo de confiana da Coroa e cabia a ela tambm executar as

    obras pblicas das cidades, as quais se faziam por concorrncia ou arrematao como se

    falava na linguagem da poca. Era de responsabilidade dela tambm a disponibilidade

    TP

    33PT ARAS, Lina Maria Brando de. A santa federao imperial. Bahia 1831-1833. Tese de Doutorado. So

    Paulo: FFLCH/USP, 1995, p. 26. TP

    34PT VASCONCELLOS, Diogo. Linhas Gerais da administrao colonial. In. Revista do Instituto

    Histrico Brasileiro, 1914, p. 106.

  • 23

    de mo-de-obra para execuo dessas obras. Aps a Lei Orgnica Municipal de 1834, o

    campo administrativo da Cmara passou a exercer funes judiciais e policiais, que

    levaram a criar o Corpo Permanente da Guarda Municipal. A Cmara tinha, ainda,

    dentre outras obrigaes, fiscalizar os gneros alimentcios, localizar a sua vendagem,

    tabelar os preos e verificar os pesos.

    A estrutura judiciria foi se formando no Brasil, baseada no controle e

    obedincia s disposies municipais, estando ligadas a ela as funes de polcia, sendo

    a cadeia uma dependncia do municpio, cuja custdia era dada aos carcereiros,

    lideradas pelos Alcaides Pequenos e executadas por Quadrilheiros, todos sob a

    vigilncia dos Juzes Ordinrios, tambm chamados de Juzes da TerraTPF35FPT,

    encarregados tambm de julgar os casos alheios ao mbito municipal ou de revisar as

    decises dos magistrados inferiores (Juzes Almotacs e Juzes de Vintena). Aos Juzes

    Ordinrios cabia julgar crimes cometidos contra a propriedade privada e comunal,

    violao de mulheres, devassas particulares, brigas de sangue, falsificao de moeda,

    fiscalizao da atuao dos vereadores e oficiais de justia do municpio, etc.

    No Brasil, nenhum funcionrio vinculado Justia, durante os 60 anos do

    reinado dos Felipes, precisava ser letrado no Brasil, nem Alcaides, Quadrilheiros, nem

    mesmo juzes, o que os qualificava para a funo era a representao delegada pela

    comunidade. Isso dificultava o conhecimento da legislao em vigor nas Ordenaes.

    As decises judiciais nesse sentido, tinham, quase sempre, como base o Direito

    Consuetudinrio, baseado nos costumes da regio e, na maioria das vezes, era

    representado oralmente.

    TP

    35PT CARRILLO, op. cit., v. II, p. 92.

  • 24

    (www.google/imagens/ordenaes.com.br)

    Devido a distncia de Lisboa, as Cmaras desfrutaram de um poder

    considervel, o que ameaava a centralizao, coibindo atitudes que as Cmaras

    poderiam um dia representar. O Estado portugus passou a nomear magistrados letrados

    e de carreira para substituir os juzes ordinrios, os chamados juzes de fora.

    Processava-se, ento, nas Cmaras uma crescente substituio dos cidados nativos por

    portugueses peninsulares, formados por famlias portuguesas estabelecidas, por longo

    tempo, no mesmo local. O primeiro Juiz de Fora empossado no Brasil, foi em Salvador,

    em 1696TPF36FPT.

    As Relaes foram criadas no Brasil no perodo colonial e tinham jurisdio

    definidas da seguinte forma: a do Rio de Janeiro, transformada pelo Imprio em

    Relao da Crte, abrangia as provncias do Rio de Janeiro, So Paulo, Mato Grosso,

    Minas Gerais, Santa Catarina, Paran e Rio Grande do Sul.

    A de Salvador, com sua enorme jurisdio inicial, que abrangia todo o territrio

    brasileiro e, at certas regies da frica, aps a instalao das Relaes de So Luis

    (1812) e Recife (1821), viu-se reduzida Bahia e Sergipe. A de Recife exercia

    jurisdio sobre as provncias de Pernambuco, Alagoas, Paraba, Rio Grande do Norte e

    Cear. J a de So Lus do Maranho compreendia o Maranho, Piau e Amazonas. As

    Relaes ganharam novo regulamento em 1833, mas novos Tribunais s vieram a ser

    instalados em 1878, quando foram criadas as Relaes de Porto Alegre, So Paulo,

    Mato Grosso, Ouro Preto, Gois, Fortaleza e Belm.

    TP

    36PT CARRILLO, op. cit., v. II, p. 92.

  • 25

    A primeira tentativa de instalao de uma Relao foi feita em Salvador, em

    1603 e, posteriormente, no Rio Janeiro que datado de 1734, porm, somente em 1751,

    atravs de uma disposio da Coroa, veio definitivamente a se consolidar o novo

    Tribunal, que fora instalado em 1752, composto por magistrados vindos de Portugal

    para integrar a nova Corte. Para entendermos melhor o que era a Relao e quais suas

    atribuies, vejamos o Regimento da Relao do Estado do Brasil, de 12 de setembro de

    1652, tendo por base a Colleo Chronologica de Leis Extravagantes, editada pela

    Universidade de Coimbra, de 1819.

    Dom Joo, por graa de Deos Rei de Portugal e dos Algarves, daquem, e dalem mar, em frica Senhor de Guin, e da Conquista Navegao, Commercio da Ethiopia, Arbia, Prsia, e da ndia, etc., fao saber, que considerando que a principal obrigao minha he que meus povos e vassallos do Brasil se administre e faa justia com igualdade; e livralos das molstias, vexaes e perigos do mar, a que esto expostos, pela virem requerer em suas causas a este Reino e Tribunals delle, como at agora fizero, e de que havia geral queixa: fui servido (com exemplo do passado, e por me pedirem com instncia os officiais da Cmara da cidade da Bahia, e ,mais moradores daquelle Estado, e me representar com encarecimento o Conde de Castello Melhor, Governador e Capito Geral delle), restituir-lhe a casa da Relao de Desembargadores, que nelle houve em tempos passados no numero, e com os officios, officiaes e jurisdio, que se contm no Regimento seguinte, que lhe mando dar para seu melhor governo. Haver na dita Relao oito Desembargadores; um Chanceller, que servir tambm de juiz da Chancellaria; dous Desembargadores do aggravo; um Ouvidor Geral dos feitos e causas crimes, que tambm h de ser Auditor da gente da guerra; outro Ouvidor Geral dos feitos e causas cveis, que da mesma maneira h de servir de Auditor das causas cveis, entre os privilegiados e soldados; um juiz dos feitos da Coroa, Fazenda e Fisco, e Promotor da justia; e um Provedor das Fazendas, dos Defuntos e Resduos.TPF37FPT

    Cabia ao Governador nomear os Desembargadores e pag-los; aos dois, cabia

    guardar a ordem, podendo suprir os defeitos e nulidades dos outros, bem como,

    despachar pedidos de perdo, fazer condenaes em dinheiro, fazer audincias regulares

    com os presos, fornecer escravos e proteger as lenhas e madeiras; ao Chanceler, cabia

    analisar todas as cartas de sentena dadas pelos Desembargadores do Pao e conhecer

    seus erros; ao Ouvidor Geral do crime, conhecer todos os delitos cometidos na

    jurisdio da capitania, advogar nas causas crimes, tendo tambm que conhecer os

    crimes de causa civil; aos juzes do fisco, conhecer as apelaes e agravos do Provedor-

    mor; ao Promotor de justia, cabia ordenar que fossem obedecidas as Leis da Casa de TP

    37PT Idem, ibidem, p. 184.

  • 26

    Suplicao; ao Procurador do fisco, o de fiscalizar a atuao dos juzes dos feitos, Coroa

    e Fazenda; ao Provedor dos Defuntos e Resduos, tinham a funo de Tesoureiro, onde

    cabia a ele tambm cuidar dos bens dos que morriam e mandar todo dinheiro arrecadado

    para Portugal.

    A necessidade de uma unificao da justia no Brasil se deu mediante a

    instalao da Relao do Porto, seguido pelo Regimento da Relao da Bahia. Foram

    nas Ordenaes Filipinas que tivemos uma definitiva organizao dos tribunais e que

    durou por dois sculos do perodo colonial. Definindo ainda na mesma ordenao o

    crime de Lesa-majestade, que estavam classificados em captulos da primeira e da

    segunda cabea.

    Entre os da primeira cabea contavam-se, as insurreies, a autoria ou cumplicidade em atentados contra o rei, contra sua famlia ou contra qualquer pessoa que estivesse em sua companhia ou, mesmo, a destruio de imagens do soberano, armas ou smbolos representativos do reino ou da casa real. Qualquer desses crimes deveria ser punido com a pena de morte natural cruelmente, ou seja, execuo pblica por meio de torturas. Todos os bens dos justiados passariam para a Coroa e duas geraes de descendentes ficariam informados para sempre, de maneira que nunca possa haver honra de cavalaria, nem de outra dignidade, nem officio; nem per testamento, em que fiquem herdeiros, nem poder haver cousa alguma, que lhes seja dada, ou deixada, assim entre vivos, como em ultima vontade, salvo sendo primeiro restitudos sua primeira forma e Estado. Quanto aos captulos da segunda cabea, estavam inclusos a liberao pela fora de presos j sentenciados, rus confessos ou prisioneiros de guerra, a agresso, ferimento ou morte desses presos, considerando que se encontravam sob custdia da Coroa, a negativa de oficiais e magistrados em cederem os seus cargos e prestarem obedincia aos seus sucessores nomeados pelo rei, etc. Nesses crimes, relativamente menores, a adeso autoridade real era considerada como uma agravante, acrescentando s punies normais a desapropriao dos bens do condenado.TPF38FPT

    Estavam tambm classificados como crime de Lesa-majestade as inconfidncias,

    levantes, insurreies e revoltas. Para esses crimes a sentena devia ser pblica, j o

    processo, rigorosamente secreto.

    Entendia-se por inconfidncia a quebra da fidelidade devida ao rei, envolvendo, principalmente, os crimes de traio e conspirao contra a coroa. A Inconfidncia, movimento independentista, que contava com a elite colonial, que visava aumentar suas margens de lucro por meio da liberao do comrcio e da eliminao dos impostos recolhidos pela coroa, teve seu intento desfeito com a traio de um dos seus

    TP

    38PT CARRILLO, Carlos Alberto. Memria da Justia Brasileira. Salvador: Tribunal de justia do Estado

    da Bahia, Gerncia de Impresso e Publicaes, 2003, v.III, pp.142-145.

  • 27

    participantes, Silvrio dos Reis, minerador endividado com a coroa, que preocupado em resgatar a sua dvida e levar algum lucro, pois a coroa costumava premiar as delaes, preferiu relatar tudo ao governador, sendo os implicados punidos e acusados do crime de Lesa Majestade. Mesmo com as detenes e execuo dos inconfidentes de Minas, o ideal libertrio ainda inflamava os nimos dos brasileiros, imbudos pela Revoluo Francesa e o ideal independentista, desta vez, ganhava mais terreno e se integrava aos ideais de igualdade. Diferente da Insurreio mineira, a baiana, que contou com a mobilizao popular, principalmente de soldados, artesos e alfaiates, cuja participao dos ltimos deu nome ao movimento confederao dos alfaiates, queria proclamar uma Republica Baianense, que visava fortalecer o poder municipal atravs de um movimento marcado contra os rgidos controles administrativos da coroa, o monoplio do comrcio e determinao de preos por portugueses e abusos de poder.

    Aps as devassas e prises dos implicados, o governador consultando a Coroa

    foi recomendado que:

    Com a maior promptido, e com a publicidade que promettem as Leys estabelecidas, para que conste da justia com que so castigados, recebendo immediatamente o merecido castigo pelos crimes e uzando-se com lhes de toda a severidade das Leys, tanto a respeito das cabeas como dos que acceitaro o convite e que no denunciaro tal, e to enorme crime, devendo para o futuro constar a todos, que em to grande attentado o bem publico no soffre moderao alguma.TPF39FPT As sentenas foram exaradas em 5 de novembro de 1799. Luis Gonzaga das Virgens, julgado pela publicao dos papis sediosos, foi condenado a que com barao e prego seja levado al logar da forca erigida para este supplicio, e que nelle morra de morte natural p.a. sempre, sendo-lhe depois de morto decepadas as mos e cortada a cabea, as quais ficaro postadas no dito logar da execuo at que o tempo as consuma. Previa-se, outrossim, o cinfisco de bens, a declarao de infmia para filhos e netos e a demolio e salgamento da sua casa para nunca mais se edificar.TPF40FPT

    Os portugueses tinham quase total jurisdio sobre suas localidades, mandavam

    quase ilimitadamente em seus territrios, eram tambm suspeitos de receptar

    contrabandos, cometer extores, bgamos e de cometer prticas homossexuais. Mesmo

    estando os coloniais restringidos ao mbito municipal, no que dizia respeito prtica da

    justia, ainda tinham que contar com as restries ao nvel scio-econmico,

    respeitando os princpios da limpeza de sangue, o que no dava aos descendentes

    TP

    39PT Resposta da Coroa ao relatrio e consulta elevado pelo Governador da Bahia em 20/10/1798.

    TP

    40PT Sentena proferida pelo Tribunal da Relao da Bahia contra Luiz Gonzaga das Virgens e Domingos da

    Silva Lisboa, em 05/11/1799.

  • 28

    africanos e indgenas as mesmas condies de justia que se dava aos descendentes

    portugueses, sendo este ltimo, privilegiado em suas condenaes.

    A Igreja tambm governava a vida diria dos cidados, colocando sua autoridade

    desde agresses at questionamentos autoridade do Rei e do Estado. Tambm cabia ao

    clero reas da administrao pblica como na educao e na sade. Melhor dizendo,

    aquela rea que circunscrevesse o servio social estaria sob a custdia da Igreja, das

    ordens religiosas ou da Santa Casa de Misericrdia. Elas eram responsveis pelos asilos,

    hospitais e de dar assistncia aos despossudos e de alimentar os presos, que no

    recebiam qualquer sustento da Coroa.

    A jurisdio da Igreja se baseava no sacerdote, que exercia o poder de ordem,

    sendo os nicos responsveis por ministrar sacramentos, e acima destes estava os bispos

    que exerciam o poder de jurisdio, que se limitava a um territrio especfico

    chamado Diocese. Acima de todos estava o Papa Sumo Pontfice, que era responsvel

    por legislar os assuntos da igreja.

    O primeiro registro de jurisdio eclesistica no Brasil, foi a Ordem de Cristo,

    cuja bandeira presidiu toda a expanso hispano-portuguesa. Atravs das bulas Inter

    Coetera Qux, de 13 de maro de 1455, e Eternia Regis Clementia, de 21 de junho de

    1480, concediam a ela jurisdio sobre asa terras ultramarinas. TPF41FPT

    A primeira Diocese criada no Brasil foi a de Salvador, em 1551TPF42FPT, assim como o

    primeiro Bispado, seguidos depois pela criao dos de Olinda e Rio de Janeiro, em

    novembro de 1676.

    Salvador era elevada a categoria de arquidiocese e passava a contar com um auditrio eclesistico, ficando-lhe subordinadas as Dioceses no s de Olinda e do Rio de Janeiro, mas tambm as Dioceses africanas de Luanda e So Tom, todas sob a orientao das Constituies do Arcebispado de Lisboa. Somente em 1707, no primeiro Snodo celebrado no Brasil que foram elaboradas as codificaes de criao das Constituies do Arcebispado brasileiro, cuja primeira instncia comeava pelo vigrio da vara, autorizado para tirar devassas, receber denncias e fazer sumrios.TPF43FPT

    O poder judicial eclesistico comeava nos bispos que constituem a sua primeira

    instncia; para revisar a ao dos bispos, foram criados os Auditrios eclesisticos,

    que obedecem aos Tribunais Romanos, vinculados ao Papa. Fora dessa tutela e TP

    41PT CARRILLO, op. cit., v. II, pp. 184-194.

    TP

    42PT A Santa S era a estrutura que abrigava o Padroado na Bahia, que consistia na concesso de privilgios

    e na reivindicao de direitos invocando a Coroa na qualidade de protetora das misses eclesisticas na sia, frica e Brasil. O fim desse regime no Brasil se deu com a Proclamao da Repblica, em 1889. TP

    43PT CARRILLO, op. cit., v. II.

  • 29

    estrutura, temos o Clero Secular, que compreendido por congregaes ou ordens,

    antes tendo tambm na Justia Eclesistica as ordens militares, constitudas por um

    brao armado da Igreja, para facilitar a propagao da f, subordinadas ao poder

    papal. Alm de contar com congregaes de leigos que mantinham atividades

    beneficentes ou mutualistas e que atuavam na comunidade.

    No Brasil, foi criado, em 1532, o Tribunal da Mesa da Conscincia, formada por

    um presidente e cinco juzes, entre clrigos e letrados leigos para assessorar a Coroa no

    despacho dos assuntos eclesisticos que, alm de revisar as sentenas da justia

    eclesistica, tambm era responsvel por recolher dzimos, propor benefcios

    eclesisticos, pagar resgate de cativos, administrar os bens dos falecidos sem testamento

    e, em geral, zelar pelo estado de conscincia do Monarca, aconselhando-o em decises

    como as que diziam respeito ao cativeiro e escravido de ndios e negros ou

    declarao de guerra justa. Como a competncia da Mesa de Conscincia fora

    alargada, essa recebeu outra denominao, passando a chamar-se Mesa de Conscincia

    e Ordens.

    O Auditrio Eclesistico foi criado na Bahia em 1704 e era composto por um

    Promotor de Justia, vrios advogados, juzes do casamento, das justificaes de Genere

    e dos Resduos, Inquiridor, Distribuidor, Contador, Depositrio, Meirinho, diversos

    Escrives, um porteiro, etc.

    Regimento do Auditrio Eclesistico da Bahia de 08/09/1704 1- O officio de provisor foi institudo, e ordenado para mais breve, e commodamente se despacharem os negcios e causas mais graves pertencentes ao governo espiritual, e jurisdio voluntria, a que os vigrios geraes occupados mais no temporal, e foro contencioso no podio to prompta, e facilmente acudir; e como as matrias de que o Provisor trata so graves, e de muita importncia, convem muito, que a pessoa que do tal cargo houver de ser provida seja Sacerdote, e ao menos tenha trinta annos de idade, e que seja graduado em Direito Cannico, e que tenha gravidade, prudncia, e inteireza com as mais virtudes, letras, e experincia, que constituem um bom Ministro, para que bem possa satisfazer as obrigaes de seu cargo.

    Vejamos tambm trecho do Regimento da Mesa do Desembargo do Pao e da

    Conscincia e Ordens de 22 de abril de 1808:

    Eu o prncipe Regente fao saber aos que o presente Alvar virem; que sendo conveniente ao bem pblico que se no demore o expediente dos negcios occurrentes, por depender da sua decizo a ordem e tranqilidade pblica, e o interesse particular dos Meus vassalos, que muito desejo promover, e adiantar; e sendo muitos delles da competncia dos Tribunais do Reino, nos quaes he por ora impraticvel que se tratem

  • 30

    e decido, pela bem conhecida interrupo de communicao com a capital: desejando atalhar, e remediar os incovenientes, que devem seguir-se de no haver a competente soluo dos negocios, de que depende o socego, e prosperidade dos meus vassalos, os quaes pertencem aos Tribunais da Meza do Desembargo do Pao, a Meza da Conscincia e Ordens, e ao conselho do Ultramar; por serem dos meus vassalos, que habito aquellas partes dos meus domnios, e que so ultramarinos respectivamente a este Estado do Brasil, hei por bem em benefcio, e utilidade commum ordenar o seguinte: 1- Haver nesta cidade hum Tribunal, que sou servido crear com toda a necessria, e cumprida jurisdio, e que se denominar Meza do Desembargo do Pao, e da Conscincia e Ordens, no qual se decidiro todos os negcios, que ocorrerem, que por bem de minhas Leis, Decretos e Ordens so da competncia da Meza do Desembargo do Pao, e todos os demais que pertencio ao Conselho Supremo Militar, na forma do Alvar do primeiro de abril do corrente ano. E outrosim entender este Tribunal em todos os negcios, de que conhece a Meza da Conscincia e Ordens e expedillos-h pelo modo nella praticado.TPF44FPT

    O Regimento do Auditrio Eclesistico da Bahia no faz relao detalhada das penas aplicadas, mas, em diversas passagens, alude a penas pecunirias, recluso (havia uma priso especial, conhecida como Aljube) e degredo. No h meno a castigos corporais nem pena de morte e no provvel que fossem praticados por serem rejeitados pelo Direito Cannico. Pelo contrrio, certo que, conforme o mesmo direito seriam largamente empregado as penas de foro interno, entre as que destacavam a da excomunho, consistente, se menor, na privao dos sacramentos. A Excomunho maior, pena especialmente rigorosa, na poca, representava a excluso do sentenciado da comunidade dos fiis, o que envolvia implicitamente, a sua marginalizao social.TPF45FPT

    A relao entre a IgrejaTPF46FPT e o Estado era bastante forte nas colnias. A Coroa

    portuguesa, desde 1522, possuidora do Gro-Mestrado da Ordem de Cristo, adquiria

    tambm a jurisdio espiritual sobre as terras conquistadas, que a essa ordem fora

    concedida pelo Papa Calixto III e Xisto IV. Assim, os reis portugueses estavam

    habilitados a criar e provar os novos bispados, delimitar as jurisdies territoriais e

    autorizar a construo de igrejas e conventos. Economicamente, recolhiam e

    administravam os dzimos, responsabilizando-se, em compensao, pela manuteno do

    TP

    44PT Dado no Palcio do Rio de Janeiro em 22 de abril de 1808. Com a assinatura do Prncipe Regente e a

    do Ministro. TP

    45PT CARRILLO, op cit., v. II, p. 199.

    TP

    46PT Como toda agrupao humana, a Igreja enfrentou, atravs do tempo, a necessidade de estabelecer

    regras para o seu crescimento e conservao. Assim, a prpria palavra Igreja assume duas acepes. Em sentido religioso, chamamos Igreja sociedade dos fiis cristos ou, numa denominao mais restrita, a cada uma das sociedades que partilham dos mesmos dogmas e rituais (catlicos, luteranos, anglicanos, etc.), j no sentido jurdico, entendemos por Igreja a organizao jurdica especial que essas diversas sociedades construram. In: Idem, ibidem, p. 182.

  • 31

    clero, que passava, dessa maneira, a ser assalariada da Coroa. Devido estreiteza da

    ligao da Igreja com o Estado, essas duas jurisdies sempre entravam em conflito.

    O que o Direito Cannico denomina poder de imprio, uma das grandes controvrsias que o catolicismo manteve com os legisladores e os governos das mais diversas pocas. A igreja reivindica para si a completa jurisdio sobre os clrigos, julgando-se competente mesmo para julgar o que julga como pecado, o que inclui, de fato, a grande maioria dos delitos tipificados criminalmente. O manuteno da ordem. TPF47FPT

    O Estado respondeu a isso dizendo que: os fiis tambm eram sditos e, por isso,

    tinham que ser submetidos, portanto, ao poder do imprio. Sendo melhor definido os

    dois poderes no livro 2 das Ordenaes Filipinas, onde ficou estabelecido que:

    Os Arcebispos, Bispos, Abbades, Priores, Clrigos, e outras pessoas religiosas, que em nossos reinos no tem superior ordinrio, em qualquer feito civil, que pertena a bens patrimoniaes, que elles hajo, ou devam haver, ou elles tenho, e outrem lhos quizer demandar, ou por dividas, que elles devo, por razo de suas pessoas e bens patrimoniaes, que no so das igrejas, nem perteno a ellas. TPF48FPT

    O Brao secular, juntamente com a justia eclesistica estavam incumbidos de

    julgar os crimes cometidos por clrigos e, tambm, nas condenaes referentes

    Inquisio. A Igreja tambm gozava do direito de asilo, ou seja, abrigar consigo

    criminosos da justia sob pena de converso e fixao no local onde buscou se asilar,

    direito esse cerceado aos judeus, mouros ou qualquer outro infiel que procurasse

    ajuda, a no ser que este tivesse a inteno da converso.

    Existiam tambm outros tipos de crimes que a Igreja compensava com o direito

    de asilo, como os crimes de offender outrem, que se tratava de furtos ou adultrio

    com mulher casada, desde que, a Igreja entendesse que sua inteno no foi

    principalmente fazer offensa a algum, mas o propsito principal do ladro foi haver o

    alheio, e o adultero satisfazer o carnal desejo.TPF49FPT J aos escravos, estes no obtinham

    nenhum acolhimento por parte da Igreja, ainda que fossem cristos pelo batismo.

    Com a minerao no sculo XVIII, a metrpole se viu obrigada a criar uma

    jurisdio mais particularizada, criando cargos que dariam novas funes s atribuies

    judiciais como os cargos de Intendente do Ouro e dos Diamantes, que se

    TP

    47PT Idem, ibidem, p. 200.

    TP

    48PT SENADO Federal. Cdigo Philippino ou ordenaes e leis do Reino de Portugal. Braslia: Senado

    Federal, Conselho Editorial, 2005, Livro II. TP

    49PT CARRILLO, op. cit., v. II, p. 203.

  • 32

    responsabilizavam por coibirem devassas e de condenar os delitos causados na

    minerao, tudo em prol do no desvio do ouro e para cobrar os devidos impostos.

    At a vinda de D. Joo ao Brasil, a estrutura judiciria da colnia era, quase

    totalmente, de ordem municipal e estavam representados pelos Juzes Ordinrios e,

    depois, pelos Juzes de Fora e, posteriormente, os de Vintena, ocupando os cargos mais

    elevados estavam os Ouvidores da Comarca, Ouvidores Gerais e as Relaes. Em 1808

    foram cridas, no Rio de Janeiro e, posteriormente, na Bahia as vagas de Juzes do

    Crime, que tinham as mesmas atribuies dos Juzes de Fora, criados desde 1731, mas

    com jurisdio exclusivamente criminal e de policiamento da cidade, que logo foram

    substitudos pelos Juizes de Direito e o Jri para causas crimes, regulamentado pelo

    Cdigo Criminal de 1830, aprovado em 22 de outubro daquele ano pela Cmara e, em

    25 de novembro, pelo Senado.

    A respeito da criao de uma polcia para manter e fazer cumprir aquilo

    pertencente elite brasileiraTPF50FPT, tem seu embrio datado de 1808, com a chegada da

    Famlia Real ao Brasil, cuja opinio de um membro da elite judiciria expressa bem

    essa questo.

    Ao chegar ao Brasil em 1808, D. Joo VI, criou em 10 de maio a Intendncia Geral da Polcia (...) foi-nos particularmente vantajosa, porque altamente benfica preparao do ambiente de disciplina dos vrios grupos populacionais disseminados pelos diferentes pontos do pas. Sentinela da legitima segurana pblica, ela levou a todas as partes do territrio, atravs da ao direta, da ao imediata de seus delegados, a sensao da presena direta do Governo Geral, a manifestar-se de modo mais eficiente, sempre que um erro, uma ameaa, um atentado, um crime ficava a descoberto e vinha ao conhecimento da sociedade. Verdade que a sua funo, aquela altura, era menos eficiente do que se desejava. Mas, mesmo assim produzia frutos melhores do que os colhidos at ento: passou a intimidade de maneira mais firme o delinqente menos descontrolado ou audacioso, dando por outro lado, devido s suas cogitaes de ordem preventiva, a confiana de todos. Com a adoo do Alvar de 10 de maio de 1808, as linhas gerais do nosso regime policial ficaram assim estabelecidas: em cada bairro o respectivo ministro era obrigado a ter um livro de registro ou matrcula em que se inscreviam todos os moradores do mesmo bairro, com exata declarao do oficio, modo de vida ou subsistncia de cada qual, tirando informaes particulares, quando for necessrio, para alcanar um perfeito conhecimento dos ociosos e libertos.TPF51FPT

    TP

    50PT Idem, ibidem, p. 140.

    TP

    51PT VALENTE, op. cit..

  • 33

    Com a Independncia (1822) foi criado no Brasil o Conselho de Procuradores

    Geraes das Provncias do Brasil, onde todas as provncias estavam representadas, alm

    da convocao de uma Assemblia luso-brasileira, que criara a primeira Constituio do

    Brasil, que fora imposta por D. Pedro em 1824, quando foi criado um jri

    constitucional, cujo cargo devia ficar o controle da constitucionalidade das leis para a

    ordem e salvaguarda nacional.

    A Constituio permaneceu inalterada no que diz respeito a jurisprudncia no

    Brasil, sendo alterada em 12 de agosto de 1834, na Regncia Trina Permanente, que ps

    em vigor o Ato Adicional, onde extinguia o Conselho de Estado, transferindo para as

    provncias os poderes policial e militar, permitindo-lhes eleger suas Assemblias

    Legislativas. Este Ato foi reinterpretado em 12 de maio de 1840, pouco antes de ser

    decretada a maioridade de D. Pedro de Alcntara, numa reao conservadora, onde

    restringia os poderes provinciais e fortalecia o poder central do Imprio. Fora isso, as

    alteraes ocorridas durante o Imprio foi indicada pelas leis ordinrias.

    O poder judicial independente objetivava garantir a Independncia. Quanto a sua

    estrutura, mediante os Art.151 a 164, estes eram compostos por juzes e jurados que

    agiam tanto no mbito do crime como no civil.

    Art. 153. Os juizes de Direito sero perptuos, o que todavia se no entende, que no possam ser mudados de uns para outros logares pelo tempo, a maneira, que a Lei determinar. Art. 155. S por sentena podero estes juizes perder o logar. Art. 156. Todos os juizes de Direito, e os Officiaes de Justia so responsveis pelos abusos de poder, e prevaricaes, que commetterem no exerccio de seus empregos: esta responsabilidade se far effectiva por Lei regulamentar. Art. 154. O Imperador poder suspendel-os por queixas contra elles feitas, precedendo audincia dos mesmos juizes, informao necessria, e ouvido o Conselho de Estado. Os papeis que lhes so concernentes, sero remettidos a Relao do respectivo Districto para proceder na forma da Lei. Art. 157. Por suborno, peita, peculato, e concusso haver contra elles aco popular, que poder ser intentada dentro de anno, e dia, pelo prprio queixoso, ou por qualquer do povo, guardada a ordem do Processo estabelecida na Lei.TPF52FPT

    O juiz, delegado pela Coroa j existia, mas os corpos de jurados s foram

    criados em 1821, especificamente para julgar os delitos de imprensa. O jri para causas

    crimes foi regulamentado pelo Cdigo Criminal de 1830. Foi na regncia de D. Pedro

    TP

    52PT CARRILLO, op. cit., v.3, p. 214.

  • 34

    que os delitos de imprensa motivaram a apario de uma estrutura judicante nova. Por

    volta de 1822, a imprensa j era temvel dos governantes. O controle da imprensa era

    fundamental para consolidar os interesses desses homens de governo. A preocupao

    com a imprensa j era tamanha que, em 18 de junho de 1822, um decreto instituiu um

    Tribunal popular, constitudo por vinte e quatro cidados escolhidos entre os homens

    bons, honrados, inteligentes e patriotas, para aplicar como Juzes de Facto, as

    causas de abuso da liberdade de imprensa.

    Eis o decreto de 18 de junho de 1822, determinando a nomeao de Juzes de

    Fato para o julgamento dos crimes de imprensa:

    Havendo ponderado na minha real presena que, mandando eu convocar huma Assemblia Geral Constituinte e Legislativa para o reino do Brazil, cumpria-me necessariamente e pela suprema lei de salvao publica evitar que, ou pela imprensa, ou verbalmente ou de outra qualquer maneira propaguem e publiquem os inimigos da ordem e da tranqilidade e da unio, doutrinas incendiarias e subversivas, princpios desorganizadores e dissociveis, que promovendo a anarchia e a licena, ataquem e detruo o systema que os povos deste grande e riqussimo Reino... O corregedor do crime da Corte e Casa, que este nomeio Juiz de Direito nas causas de abuso da liberdade de imprensa e nas Provncias que tiverem relao o Ouvidor do Crime, e o de Comarca nas que no a tiverem, nomear nos casos occorentes e a requerimento do Procurador da Coroa e Fazenda que ser o Promotor e Fiscal de taes delitos, vinte e quatro cidados escolhidos dentre os homens bons, honrados, intelligentes e patriotas, os quaes sero Juzes de Facto para conhecerem da criminalidade dos escriptos abusivos. Or ros podero recusar destes vinte quatro nomeados desesseis: os oito restantes procedero no exame, conhecimento e averiguao do facto, como se procede nos Conselhos Militares de investigao e accomodando-se sempre s frmas mais liberaes, e admitindo-se o ro justa defeza que he de razo, necessidade e uso. Determinada a existncia de culpa, o Juiz impor a pena. E porquanto as leis antigas a semelhantes respeitos so muito duras e imprprias das idas liberaes dos tempos em que vivemos, os Juzes de Direito regular-se-ho para esta imposio pelos artigos 12 e 13 do tit. 2 do Decreto das Crtes de Lisboa de 4 de junho de 1821, que mando nesta nica parte applicar ao Brasil. Os ros s podero appellar do julgado para a minha real clemncia. E para que o Procurador da Coroa e Fazenda, tenha conhecimento dos delitos da imprensa, sero todas as typographias abrigadas a mandar-lhe hum exemplar de todos os papeis que se imprimirem. Todos os escriptos devero ser assignados pelos escriptores para sua responsabilidade: e os editores ou impressores que imprimirem e publicarem papeis annimos, so responsveis por elles. Os auctores, porem, de pasquins, proclamaes incendiarias, e outros papeis no impressos, sero processados e punidos na forma prescripta pelo rigor das leis antigas. Jos Bonifcio de Andrada e Silva, etc. Pao, em 18 de junho de 1822.

  • 35

    Com a rubrica de sua Alteza Real o Prncipe Regente. Jos Bonifcio de Andrada e Silva.TPF53FPT

    No Rio de Janeiro, a escolha dos Juzes de Fato era feita pelo Corregedor do

    Crime da Corte, j na Bahia, Maranho e Pernambuco, que contavam com tribunais

    instalados, essa funo caberia aos Ouvidores do Crime das respectivas Relaes,

    ficando, o resto do Brasil, por conta dos Ouvidores das Comarcas.

    1.1. Cdigo Criminal de 1830 e o Cdigo de Processo Crime de 1832

    O Cdigo Criminal do Imprio do Brasil foi promulgado em 16 de dezembro de

    1830, que, aps sua reviso passou a se chamar Cdigo de Procedimento Criminal de

    Primeira Instncia ou Cdigo de Processo Crime, em 1832, com disposio provisria

    acerca da administrao da justia civil. A antiga Relao fora substituda pela Casa de

    Suplicao, que ficava sob as ordens do Superior Tribunal de Justia.

    O Cdigo Criminal do Imprio do Brasil instituiu a pena privativa de liberdade

    para a maioria dos crimes e aboliu definitivamente a pena de morte, os castigos fsicos e

    os julgamentos sem processo, exceto no caso dos escravos; definiam tambm um

    sistema de graduao das penas, ou seja, as penas deviam ser proporcionais gravidade

    do delito e responsabilidade do delinqente.

    O Cdigo Criminal foi criado para coibir os levantes urbanos, as lutas pela posse

    de terra, combater a insurreies de escravos, destruio de quilombos, distribuio e

    ocupao da populao do Imprio, vigiar os ditos vadios e desordeiros. Em todos

    esses casos, o Imprio poderia agir aplicando as penas previstas pelo Cdigo: morte,

    priso perptua ou temporria, com ou sem trabalho e banimento. Essas penas visavam

    a regulamentao da ordem, fazendo valer toda sociedade quer seja ela livre ou

    escrava. Esse Cdigo vigorou no Brasil por 60 anos, chegando at a Repblica.

    O Cdigo criado revogava o Livro V das Ordenaes Filipinas; foi inspirado na

    Escola de BeccariaTPF54FPT e na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 27 de

    agosto de 1789, e estava fincado em quatro princpios gerais: o do UpreestabelecimentoU TP

    53PT CARRILLO, op. cit., v. II, pp. 487-488.

    TP

    54PT Cesare Bonesana, conhecido por Marqus de Beccaria, foi estudioso e crtico do Sistema Penal.

    Nascido em Milo no ano de 1738, em sua obra Dos delitos e das penas, propunha uma mudana na legislao Penal da poca, divulgando idias como o fim dos suplcios, o fim dos julgamentos secretos e contra a prtica dos confiscos dos bens do condenado. Morreu em Milo em 1794.

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    das penas, previsto em seu artigo 33 (nenhum crime podia ser punido com penas que

    no estivessem estabelecidas em lei), este artigo tem por base o artigo VII da

    Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado (a lei no deve estabelecer seno

    penas estritas e evidentemente necessrias e ningum pode ser castigado seno em

    virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente

    aplicada).

    Art. 7. Nenhum homem pode ser acusado, preso ou detido seno nos casos determinados pela lei e segundo as formas por ela prescritas. Aqueles que solicitam, expedem, executem ou fazem executar ordens arbitrrias devem ser punidos; mas todo cidado convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente: ele se torna culpado pela resistncia.TPF55FPT

    O segundo princpio era o da Uproporcionalidade das penas aos crimesU, o que

    Foucault tambm chamava de Regra da Quantidade MnimaTPF56FPT, onde explica que, um

    crime cometido porque traz vantagens. Se a idia do crime fosse ligada idia de uma

    desvantagem um pouco maior, ele deixaria de ser desejvel e que, para que o castigo

    produzisse o efeito que se devia esperar dele, bastava que o mal que o causasse

    ultrapassasse o bem que o culpado retirou do crime.

    O terceiro consagrava a Uimprescritibilidade das penasU, ou com as palavras dos

    juristas: as penas impostas aos rus no prescrevem em tempo algum. E, por fim, o

    quarto princpio era o da Uacumulao das penasU, dizia que, se o ru tivesse praticado

    mais de um crime, as penas fixadas para cada um deles seriam cumpridas uma aps a

    outra.

    A iseno da pena era concedida apenas aos crimes praticados para evitar mal

    maior, em defesa prpria, em defesa da prpria famlia, em defesa da pessoa de um

    terceiro ou, ainda, em resistncia execuo de ordens legais. Nesses casos,

    compreendem-se aqui, tambm, os crimes passionais, em defesa da prpria honra ou da

    honra da famlia, e os crimes classificados como leves, que correspondem ao no

    cumprimento de Posturas criadas pelas Cmaras Municipais.

    A pena de gals que era aplicada como comutao da pena de morte ou (em grau

    mnimo) para os crimes de perjuro, pirataria ou de ofensa fsica irreparvel da qual

    TP

    55PT GANDMAISON, Oliver l Cour (org). Les Constitutions Franaises. Paris: Editions la Dscouverte,

    1996. TP

    56PT FOUCAULT, op. cit., 1987, p. 79.

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    resultasse aleijo ou deformidade. Os punidos com ela deviam andar com calcetaTPF57FPT no

    p e corrente de ferro, alm de serem obrigados a trabalhos pblicos.

    A pena de priso era estabelecida para a quase totalidade dos crimes. A de

    banimento, consistia em autntica captis diminutio do status civitatis posto que privava

    o condenado dos seus direitos de cidado, alm de impedi-lo de residir no territrio do

    Imprio. curioso, contudo, observar que no se encontra no cdigo qualquer crime

    para o qual fosse estabelecida tal pena.

    Outra pena era a de degredoTPF58FPT, que obrigava o punido a residir em determinado

    lugar e por certo tempo (art. 51) e estava cominada para rus que cometessem estupro

    de parente em grau em que no fosse admitida dispensa para o casamento (art. 221) ou

    para quem sem legitimidade ou investidura legal, exercesse comando militar ou

    conservasse a tropa reunida abusivamente (art. 41).

    A pena de desterroTPF59FPT consistia na sada do condenado do local onde foi praticado

    o delito, do de sua principal residncia e do ofendido, era aplicada nas hipteses de

    conspirao, abuso de autoridade, crime de estupro e de seduo de mulher com menos

    de dezessete anos.

    A perda de exerccio dos direitos polticos era uma espcie de pena acessria,

    aplicada enquanto durassem os efeitos da condenao s gals, priso, ou do desterro

    (art. 53).

    A pena de perda do emprego destinava-se aos funcionrios pblicos que

    cometessem os crimes de prevaricaoTPF60FPT, de peitaTPF61FPT, de excesso ou abuso de autoridade,

    dentre outros. J a pena de suspenso de emprego era estabelecida para as hipteses, por

    exemplo, da prtica de concusso.

    A pena de aoites s podia ser aplicada aos escravos e desde que no

    condenados pena capital, ou de gals, ou ainda, por crime de insurreio. Havia ainda

    a pena de multa que consistia no pagamento de pecnia e era aplicada aos condenados

    pena maior, quer por crimes pblicos, particulares ou policiais.

    TP

    57PT Calceta Argola