Da Essência do Sagrado: Um estudo a partir da compreensão de Verdade e Linguagem no pensamento de...
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8/6/2019 Da Essncia do Sagrado: Um estudo a partir da compreenso de Verdade e Linguagem no pensamento de Martin
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UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora.
Programa de Ps-graduao em Cincia da Religio/ Mestrado.
DA ESSNCIA DO SAGRADO:UM ESTUDO A PARTIR DA COMPREENSO DE
VERDADE E LINGUAGEM NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER.
Augusto Csar Dias de Araujo.
Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de
Mestre ao Programa de Ps-graduao em Cincia da Religio, do
Instituto de Cincias Humanas e Letras da Universidade Federal de Juiz
de Fora.
Orientador: Prof. Dr. Lus Henrique Dreher.
Juiz de Fora, Setembro de 2004.
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AUGUSTO CSAR DIAS DE ARAUJO.
DA ESSNCIA DO SAGRADO:UM ESTUDO A PARTIR DA COMPREENSO DE
VERDADE E LINGUAGEM NO PENSAMENTO DE MARTIN HEIDEGGER.
Dissertao aprovada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre no Programa de Ps-
graduao em Cincia da Religio da Universidade Federal de Juiz de Fora, pela comisso formada
pelos professores:
Orientador: _______________________________________________________________
Prof. Dr. Lus Henrique Dreher.
Titular: ___________________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Afonso Arajo.
Presidente: ________________________________________________________________
Prof. Dra. Acylene Maria Cabral Ferreira.
Juiz de Fora, Setembro de 2004.
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A S.S. Dhanvantari Swami Maharaj:
querido mestre e fonte de contnua inspirao.
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Com gratido e reconhecimento:
A meus pais, Antnio e Marina, e aminha tia Eunice, por apostarem, com
amor, em todos os meus sonhos.
Aos velhos e novos amigos. Pela
presena feliz de todos os momentos.
No seria possvel listar todos aqui
sem cometer a injustia de me
esquecer de algum.
A Lus Henrique Dreher, meu
orientador, que suportou
pacientemente as minhas demoras.
A todos que me ensinaram os
(des)caminhos da Filosofia.
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Deus claro relmpago e tambm escuro nada
Que nenhuma criatura v com sua prpria luz.
Angelus Silesius.
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Resumo.
Buscamos neste trabalho pensar a temtica do Sagrado a partir do
pensamento de Martin Heidegger (1889-1976) sobre os conceitos de verdade e
linguagem. Esta busca nasce da intuio de que, no pensamento
heideggeriano, Ser e Sagrado coincidam numa mesma experincia: aquela emque o mundo torna-se mundo pela fora da linguagem poeticamente
compreendida. Esta experincia, levada a efeito primeiramente entre os
gregos, abrange, alm de uma concepo peculiar da linguagem, uma outra
concepo, no menos peculiar, da verdade. Segundo Heidegger, embora tal
experincia remonte s origens do pensamento entre os gregos, ela no
totalmente estranha poca moderna uma vez que, tanto agora como nas
origens, ela (a experincia) tenha permanecido impensada. Nossa pesquisaobjetiva deixar vir tona esta experincia do pensamento em suas origens tal
como este foi interpretado pelo filsofo alemo.
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Abstract.
This thesis is an attempt to think about the issue of the Holy (or the Sacred)
based on Martin Heideggers (1889-1976) views on truth and language. Such
an attempt has its source in the intuition that in Heideggers thought Being and
the Holy (or the Sacred) converge on the experience that the world becomes
world by the power of language poetically understood. This experience first
made by the Greeks encompasses both a peculiar view of language and a not
less peculiar view of truth. According to Heidegger, although this experience
can be traced back to the very origins of thought among the Greeks, it is not
entirely foreign to modern times. This is due, however, to the fact that today as
well as in the origins it has remained unthought. Thus the goal of our research
is to let come to the surface this experience of thinking in its origins in the way it
has been interpreted by the German philosopher.
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SUMRIO.
Introduo ............................................................................................................. 10
CaptuloI A essncia do Sagrado ......................................................................
1. A essncia da modernidade ...............................................................................
2. Desdivinizao e Niilismo ...................................................................................
3. A verdade originria e a possibilidade da viragem .............................................
4. Concluso ...........................................................................................................
18
Captulo IIVerdade e Sagrado na proximidade do originrio .............................
1. A essncia do pensamento e os pensadores originrios ...................................
2. A co-pertinncia essencial entre pensamento e Sagrado na proximidade da
origem...................................................................................................................
3. A verdade na proximidade da origem .................................................................
4. Verdade e Sagrado: a Teogonia como onto-teo-fania cosmognica ..................
- O mito das Musas .................................................................................................
5. Concluso ...........................................................................................................
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Captulo III O Sagrado como linguagem na proximidade da origem ..................
1. Zeus e sua relao com o raio e o fogo nos fragmentos de Herclito ................
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2. Zeus e lgos: em busca do a-se-pensar no pensamento desde sua relao
com o Sagrado ........................................................................................................
3. A essncia pr-metafsica do lgos: colheita e linguagem originria .................
4. Concluso ...........................................................................................................
Concluso .............................................................................................................. 92
Bibliografia ............................................................................................................ 100
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INTRODUO.
O alemo Martin Heidegger (1889-1976) um dos maiores filsofos, se no o
maior, do sculo XX. E, muito embora sua polmica biografia ainda hoje suscite
discusses, sua filosofia, marcada pela busca incessante pelo sentido do Ser,
influenciou toda uma gerao de pensadores. De Heidegger e seu pensamento
poderamos dizer, parafraseando o prprio filsofo, que todo grande pensador
pensador de uma nica questo.1 Tal como um grande poeta, que sustenta
todo seu dizer potico numa nica poesia, o grande pensador sustenta
inteiramente seu pensar nesta nica e mesma questo. E Heidegger fez isso
de maneira incomparvel. At o fim de seu labor filosfico a sua nica
motivao era a de devolver vida o mistrio que ameaa desaparecer na
modernidade.2 Um mistrio que, desde 1927 com a publicao de Ser e
1 Todo poeta s poeta de uma nica poesia. A grandeza de um poeta se mede pelaintensidade com que est entregue a essa nica poesia a ponto de nela sustentar inteiramenteo seu dizer potico. Cf.HEIDEGGER, M. A linguagem na poesia. In: ______. A caminho da
linguagem. Petrpolis: Vozes, 2003. p.27.2 SAFRANSKI, Rdiger. Heidegger. Um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. So Paulo:Gerao Editorial, 2000. p.17
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Tempo, se anuncia como e se articula em torno , j referida, questo pelo
sentido do Ser.
Para Heidegger esta uma questo de mxima urgncia. O pensamento
ocidental h muito se esqueceu dela. Na verdade, desde seus primrdios a
histria do pensamento ocidental se fundamenta neste esquecimento. O Ser
sempre o que se encontra pressuposto em toda atividade filosfica. Ele o
conceito mais universal e evidente, alm de indefinvel, e, por isso mesmo,
nunca colocado em questo. , pois, contra esta compreenso do universal e
do evidente por si que Heidegger se posiciona em seu pensar. medida que a
filosofia se fundamenta sobre o evidente ela avana, sem dvida. Mas neste
avanar encontra-se implicado um afastamento progressivo do mistrio,
daquele espanto originrio que moveu os primeiros pensadores. E neste seu
avano progressivo a filosofia, ou metafsica, se desenvolver em cincia e
tcnica na modernidade.
Ser em sua anlise da modernidade que Heidegger melhor expor as
razes deste afastamento das origens e seus efeitos concretos. Tendo a
filosofia desde seus primrdios com Scrates, Plato e Aristteles partido em
busca do fundamento ltimo de todas as coisas; e sendo a modernidade a
culminao deste mesmo e nico processo do pensamento, ela (a
modernidade) torna-se a poca da indigncia, da profunda carncia
fundamento e sustentao. a poca sem deuses, poca na qual os homens
perdem contato com sua prpria essncia mortal.3 A poca de maior
3Ao falar sobre a modernidade Heidegger afirmar que este (...) tempo permanece indigente,no apenas porque Deus est morto, mas tambm porque os mortais j no conhecem nem
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afastamento e esquecimento do originrio no pensar. A poca qual o prprio
Heidegger se refere como a "noite do mundo.4 Noite de um dia que comea na
madrugada originria do pensamento grego. Ser, pois, na distenso, na
distncia entre a madrugada grega e a noite moderna que o pensamento de
Heidegger revelar seu vigor. Um vigor que pode ser concentrado, mas no
resumido, na expresso o sentido do Ser.
Buscar pelo sentido do Ser. Posicionar-se contra o imprio do evidente
por si. Resgatar o mistrio que corre o risco de desaparecer. Todas estas
expresses so concordes em indicar o mesmo: Heidegger almeja por um novo
princpio para a filosofia, uma nova madrugada que surja radiante da escurido
da noite moderna. Seu pensamento quer ser, pois, uma preparao para este
novo amanhecer no pensamento ocidental. Na distncia entre a primeira
madrugada e a noite atual vigora o mesmo esquecimento, o mesmo velamento
do Ser, que precisa agora ser pensado, auscultado, como nunca o foi at este
momento. Pois nesta distncia e dilogo que:
O primevo da madrugada do destino apareceria ento como
primevo em relao ao derradeiro (schaton)5, isto em relao
despedida do destino do ser at agora velado. O ser do ente
rene-se (lgesthai, lgos)6 no extremo do seu destino. Aqueleque, at agora, tem sido o estar-a-ser [Wesen] do ser afunda-se
na sua verdade ainda velada. A histria do ser rene-se neste
adeus. A reunio neste adeus enquanto reunio (lgos)7 do mais
dominam sua prpria mortalidade. Os mortais ainda no esto em posse de sua essncia. Cf.:HEIDEGGER, M. Para qu poetas? In: ______. Caminhos de Floresta. Lisboa: CalousteGulbenkian, 2002. p. 315.4 HEIDEGGER, M. Para qu poetas? In: op.cit. pg 309. Cf. nota 3.5
Em caracteres gregos no original.6 Idem.7 Idem.
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extremo (schaton)8 daquilo que tem sido, at aqui, o seu estar-a-
ser [Wesen], a escatologia do ser. O ser ele prprio tem um
destino, , em si prprio, escatolgico. (...) Se pensarmos a partir
da escatologia do ser, ento, temos de esperar um dia primevo do
que h-de vir e temos de aprender hoje a pensar o primevo a partirda.9
Pensar o futuro, o h-de vir, a partir do primevo, e o primevo a partir do
que h-de vir. O primevo, o passado, no est perdido para o presente. De fato
ele aqui vigora na plenitude de suas possibilidades assumidas. A madrugada
no se encontra irremediavelmente distante e separada da noite que a sucede.
Antes a madrugada s madrugada desde sua relao com a noite escura que
a sucede, e vice-versa. Na madrugada encontra-se, desde sempre, a
possibilidade do anoitecer, e o anoitecer encontra-se prenhe da possibilidade
de um novo amanhecer. No extremo da noite, em sua parte mais escura, inicia-
se um novo dia. Da mesma forma, no extremo da noite, o dia anterior se
concentra, se recolhe inteiro em seu prprio limite. Para Heidegger, com a
modernidade o ocidente se aproxima da parte mais escura de seu dia que teve
incio entre os gregos. Neste ponto extremo o pensamento deve voltar-se sobre
si mesmo, recolhido no extremo de sua possibilidade a fim de que acontea o
milagre de um novo amanhecer. E o filsofo alemo bem poderia ser o profeta
deste novo amanhecer.
Sua profecia, seu pensamento, caminha, no entanto, de mos dadas
com a poesia. Isto porque Heidegger acredita que pensamento e poesia
encontrem-se na proximidade de uma mesma experincia com o essencializar-
8
Idem.9 HEIDEGGER, M. O dito de Anaximandro. In: _______. Caminhos de Floresta. Lisboa:Fundao Calouste Gulbenkian. p. 378-379.
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se (Wesen) do Ser do ente. Uma experincia que se ordena em torno de uma
concepo especfica de linguagem entendida no como meio de expresso e
comunicao de pensamentos e sentimentos humanos, mas como o prprio
essencializar-se, o prprio tornar-se, do Ser do ente.
desta proximidade que, em ltima anlise, tratar esta pesquisa. Seu
ttulo Da Essncia do Sagrado: Um estudo a partir da compreenso de
Verdade e Linguagem no pensamento de Martin Heidegger abre caminho
para esclarecermos nossa convico de que ali onde pensamento e poesia
encontram-se em maior proximidade, ou seja, na origem do pensamento
ocidental, a experincia de Ser e Sagrado (embora estes no sejam ali
explicitamente tematizados) anuncie o mesmo que, como ficar claro no
desenvolver da pesquisa, se constitui para Heidegger como o um, o nico
digno a-se-pensar.
Ora, se verdade que a temtica do Ser do ente e do Sagrado
coincidem numa mesma experincia originria a ponto de afirmarmos que
pensamento e poesia encontrarem-se numa proximidade tambm originria,
no deve ser menos verdadeiro afirmar que no ponto extremo do esquecimento
do Ser do ente encontre-se simultaneamente o ponto extremo de afastamento
do Sagrado. Por isso que nosso trabalho deve principiar por um diagnstico
da poca moderna. No primeiro captulo, portanto, tentaremos situar a
necessidade de se pensar sobre o Sagrado desde seu afastamento na poca
moderna em sua indigncia. Neste esforo utilizaremos como guias alguns dos
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textos de Heidegger, do perodo compreendido entre os anos 1935-1946, e que
foram reunidos no volume Holzwege10da obra completa deste pensador.
O captulo segundo, por sua vez se deter na considerao do
fenmeno originrio da verdade e em sua co-pertinncia essencial com o
Sagrado. Neste captulo, utilizaremos como base de nossa reflexo textos nos
quais Heidegger se deter na interpretao do pensamento originrio de
Herclito de feso, e isto por meio tanto dos fragmentos deste pensador
quanto por meio de duas estrias sobre o mesmo. Tais estrias nos indicaro
que ao pensamento de Herclito familiar a proximidade dos deuses. Esta
familiaridade se configura como o modo prprio deste pensamento se
processar. A partir disto, partiremos em busca de uma melhor compreenso do
modo grego de lida com os seus deuses. Para tanto nos serviro os estudos
que o professor Jaa Torrano faz do mito do mundo e do modo mtico de ser no
mundo 11 a partir da Teogonia de Hesodo.12 Tais estudos nos possibilitaro
um vislumbre de como, na poca do mito, entre os gregos pela primeira vez
so experenciadas a verdade como ilatncia ou desvelamento (altheia) e a
linguagem como uma fora numinosa (Musas).
No captulo terceiro nos deteremos numa detalhada considerao sobre
a presena do Sagrado, nomeado como Zeus, nos fragmentos de Herclito,
como indicativo de que, na madrugada do pensamento, o Sagrado se constitui
10 Na traduo portuguesa este volume foi intitulado Caminhos de floresta; e na francesa,Chemins qui ne mnent nulle part. Cf. Bibliografia.11 TORRANO, J. O sentido de Zeus. O mito do mundo e o modo mtico de ser no mundo. So
Paulo: Iluminuras, 1996. Alm disso, ver tambm: ______. O mundo como funo de Musas.In: HESODO. Teogonia. A origem dos deuses. So Paulo: Iluminuras, 2003. p.11-102.12 HESODO. Teogonia. op.cit.. Cf. nota 11.
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como a ambincia desde onde este pensamento se d pela primeira vez. Por
outro lado pretendemos ainda demonstrar que esta presena do Sagrado na
origem do pensamento se coloca mediante um modo especfico de
compreenso da linguagem muito prximo quele descrito no captulo anterior
e que foi experenciado pelos gregos no contexto especfico da revelao dos
deuses.
Esperamos que, a partir destas consideraes sobre a verdade e a
linguagem, sempre tendo como base o pensamento de Martin Heidegger,
possamos chegar a vislumbrar a coincidncia entre o Ser do ente e o Sagrado
como aquilo desde onde as coisas vm a ser e se mantm sendo o que so.
Ou seja, procuramos entender de que modo podemos novamente, desde
aquela indigncia que caracteriza nossa poca, vir a pensar o mundo no
como imagem de nosso representar objetivo, mas como totalidade todo-
abarcante onde o homem se encontre novamente de posse de sua essncia
mortal.
Deliberadamente desconsideramos neste trabalho a possibilidade de
uma delimitao cronolgica dos textos de Heidegger que serviro de base
pesquisa. Consideramos aqui o pensamento de Heidegger como um todo que
se estrutura em torno questo do Ser. No levamos em considerao nem
mesmo a j clssica diviso da trajetria do autor em primeiro e segundo
Heidegger. Assumimos esta postura porque entendemos que ela mais
conforme o procedimento do prprio autor em questo no exerccio do seu
pensar. Alm disso, almejamos que este trabalho se configure como um ensaio
hermenutico, mais do que como um mapeamento da questo do Sagrado na
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obra do autor. Portanto, confiantes que no crculo hermenutico, onde princpio
e fim coincidem, no haja sentido se falar de algo como uma diviso em
perodos de pensamento, preferimos que a escolha dos textos se pautasse
pela possibilidade de que estes nos conduzissem mais seguramente
consecuo de nosso objetivo: deixar vir tona a proximidade originria entre o
Ser do ente e o Sagrado. Neste sentido, ainda devemos considerar que este
ensaio no esgotar, certamente, o tema. Nem mesmo cobrir todo o
pensamento de Heidegger, o que seria impossvel. Embora se estruture em
torno de uma nica questo, este pensamento rico em nuances diversas que
no caberiam no espao de uma dissertao de mestrado. E enquanto um
ensaio todo o trabalho que aqui ser desenvolvido provisrio e cheio de
incertezas. Tais provisoriedade e incerteza advm daquilo mesmo que posto
em questo, a essncia do Sagrado em sua coincidncia com o essencializar-
se do Ser do ente, o qual sempre refratrio a qualquer certeza e objetividade.
Como diria o prprio Heidegger, os caminhos do pensamento se
constituem antes de tudo como desvios. E isso no somente no sentido de que
os caminhos do pensamento sejam caminhos mais abrangentes que os
caminhos da cincia ou do senso comum. Os caminhos do pensamento so
desvios (...) porque, com eles, apenas damos voltas em torno da coisa
mesma 13, o Ser do ente em seu essencializar-se. Estes desvios so, em
suma, caminhos de floresta: caminhos que, de repente, cessam, que nos
conduzem at um ponto, no qual se interrompem e sem mais desaparecem.14
13
HEIDEGGER, M. Os conceitos fundamentais da metafsica. Mundo. Finitude. Solido. Rio deJaneiro: Forense Universitria, 2003. p. 10.14 Idem. Ibidem.
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CAPTULO I
AESSNCIA DO SAGRADO.
A primeira parte do ttulo deste trabalho de pesquisa diz de nossa busca
fundamental: a essncia do Sagrado. Isto significa que nossa busca pela
essncia do Sagrado se configura como um questionar que poderia ser
formulado da seguinte maneira: o que o Sagrado?Dito assim pode parecer
que estejamos aqui em busca de uma definio do Sagrado, j que o lugar
tradicional da verdade sobre a essncia de algo sua definio. Mas, ser que
j no existem definies o suficiente do Sagrado em vigor em nossos dias eque precisemos partir em busca de ainda mais uma? Sim, este o caso. No
entanto, no estamos aqui em busca de mais uma definio alm das j
existentes. Para tornar claro o modo como compreendemos o que significa aqui
buscar pela essncia do Sagrado e o que almejamos ao empreender uma tal
busca, precisamos antes dizer de que maneira estamos compreendendo a
palavra essncia.
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Nossa busca pela essncia do Sagrado delimitada pela fonte desde
onde essa busca se estabelece. Determinamos aqui que esta fonte seja o
pensamento de Martin Heidegger. Especificamente consideramos como via de
acesso questo da essncia do Sagrado o pensamento heideggeriano acerca
dos conceitos de verdade e linguagem. Isso significa que devemos
compreender no s os conceitos acima referidos no mbito do pensamento
heideggeriano, como tambm a palavra essncia deve ser compreendida neste
contexto.
Para Heidegger a palavra essncia (Wesenem alemo) designa mais
que o sentido filosfico tradicional indicado pelo termo qididade, essncia ou
natureza intrnseca de uma coisa. Em sua origem etimolgica o termo alemo
a substantivao do verbo wesen. Este verbo, em desuso na lngua alem
moderna15, possui originariamente o sentido de ser, ficar, durar, acontecer,
vigorar. Heidegger apropriando-se deste sentido originrio do verbo cunha o
substantivo explicitamente verbal Wesung, que pode ser traduzido como
essencializao. Assim, Wesen, a essncia, quando compreendida em sua
relao com o sentido verbal, nos oferece o significado de, como diria
Emmanuel Carneiro Leo, estrutura em que vigora, isto , a estrutura em que
algo desenvolve a fra (sic) de seu vigor, o agir.16 Deste modo poderamos
dizer que ao buscarmos aqui a essncia do Sagrado desde o pensamento de
15 Sobre o uso do verbo wesenna lngua alem moderna o Dicionrio Heidegger, de MichaelInwood, no verbete essncia diz que: O verbo wesen (...) origina o particpio passado,gewesen, de sein, ser, e sobrevive em compostos como: anwesend, (presente) e abwesend(ausente). Cf: INWOOD, M. Dicionrio Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
p. 54.16 CARNEIRO LEO, Emmanuel. Nota de rodap. In: HEIDEGGER, M. Sobre o Humanismo.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. p. 23.
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Heidegger, estamos buscando pelo essencializar do Sagrado, pelo seu
acontecer, sua manifestao. Ao buscarmos pela essncia do Sagrado por
sua Wesungque buscamos. Ou seja, buscamos algo como uma experincia
pensante com o Sagrado em seu essencializar-se. Ora, para Heidegger:
Fazer a experincia de alguma coisa significa: a caminho, num
caminho, alcanar alguma coisa. Fazer uma experincia com
alguma coisa significa que, para alcanarmos o que conseguimos
alcanar quando estamos a caminho, preciso que isso nos
alcance e nos comova, que nos venha ao encontro e nos tome,
transformando-nos em sua direo.17
Assim, nossa busca se configura no como a busca por uma definio do
conceito de Sagrado, mas antes o que almejamos ser atingidos pelo
Sagrado, tomados por ele numa experincia pensante permitindo que ele nos
sobrevenha como um acontecimento.
Mas, desde onde uma tal busca e questionamento se colocam como
possveis e necessrios? Segundo Martin Heidegger o autor que tomamos
como guia em nosso questionar todo questionamento uma procura18 e
toda procura retira do procurado sua direo prvia19. Assim sendo, nossa
procura pela essncia do Sagrado retira do prprio Sagrado seu prvio
direcionamento. Esta constatao pode nos levar a crer que nossa tarefa aqui
se torna facilmente exeqvel, uma vez que muito j foi dito sobre Sagrado no
mbito daquilo que se convencionou chamar de Cincia da Religio. Da
17 HEIDEGGER, M. A essncia da linguagem. A caminho da linguagem. Petrpolis: Vozes,
2003. p.137.18 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrpolis: Vozes, 1997. p. 30.19 Idem. Ibidem.
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mesma forma muito j foi dito sobre o Sagrado no pensamento de Heidegger.
Tudo isso, talvez, nos tornasse mais acessvel o tema, mas to logo pensemos
mais detidamente sobre a questo essa acessibilidade se mostra apenas
aparente. Pois, se verdade que todo questionamento umaprocura, no
menos verdade que toda procura uma busca pelo ausente. Somente o que se
encontra ausente pode vir a ser buscado num questionamento, pois somente o
ausente pode conceder o distanciamento necessrio para se constituir como
procurado. Heidegger acena para isto no ensaio A essncia do niilismo(1946-
1948) ao afirmar:
Procurar significa aproximar-se de algo para encontr-lo: para
encontrar o anteriormente ausente enquanto um presente, para
ach-lo. Para encontrar algo ou, pelo menos, para experimentar
desde seu fundamento a impossibilidade do encontro, toda
procura tem de adentrar a dimenso essencial, no interior da qual
o procurado, se esse o caso, pode vir ao encontro enquanto
descoberta.20
No mbito prprio de nossa pesquisa o procurado o Sagrado em sua
essncia, ele este algo do qual tentamos nos aproximar para encontr-lo.
este o anteriormente ausente que queremos encontrar enquanto um
presente. Por isso, queremos aqui adentrar a dimenso essencial do
Sagrado, no interior da qual o procurado, se esse o caso, pode vir ao
(nosso) encontro enquanto descoberta.
Mas, o que significa dizer aqui que o Sagrado, enquanto nosso
procurado, o anteriormente ausente? Mais ainda, o que significa afirmar que
20 Idem. A essncia do niilismo. In:______. Nietzsche, Metafsica e Niilismo. Rio de Janeiro:Relume Dumar, 2000. p. 211.
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buscamos encontrar o Sagrado (o anteriormente ausente) enquanto um
presente? Segundo compreendemos o nosso questionar procurando pelo
Sagrado faz com que este se torne de algum modo presente. Podemos arriscar
dizer que o nosso questionar que o torna, enfim, de alguma forma, presente.
Contudo, uma tal presena , em si mesma, muito distinta daquela outra, no
tempo em que o Sagrado no se fazia ainda sentir como ausncia. Em sua
primeira presena vamos chamar assim o Sagrado no era colocado em
questo. Houve um tempo diferente do nosso tempo em que o Sagrado no
havia se convertido em objeto do pensar; no porque no fosse digno de tanto,
mas porque nesse tempo o pensar ainda no admitia para si a frmula sujeito
versus objeto. Somente em nosso tempo, a poca moderna, acontece ao
pensamento algo como a oposio sujeito versus objeto. E, to logo um
pensamento assim se torna possvel, o Sagrado em sua essncia torna-se
ausente do mundo e pode converter-se em objeto de uma investigao
cientfica. Portanto, se o Sagrado se nos apresenta como o anteriormente
ausente enquanto um presente que deve ser encontrado, nessa perspectiva
(moderna) que se apresenta.
Porm, este apresentar-se como objeto ao pensamento deve para ns
aqui se constituir enquanto a nica via de acesso dimenso essencial do
Sagrado. Um tal acesso em direo quilo que mais propriamente o Sagrado
em seu per-fazer-se. Caminhar por esta via de acesso pode, enfim, preparar-
nos para um retorno do Sagrado ao mundo, no mais como um objeto de
nosso pensar, mas em seu essencializar-se mais prprio. E com o retorno do
Sagrado, talvez, retornem tambm os deuses, de cuja divindade o Sagrado se
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configura como vestgio. Assim, a busca pela essncia do Sagrado, tal como a
propomos a partir do pensamento de Heidegger, se coloca como um exerccio
preparatrio para um novo advento do Sagrado ao mundo. Neste sentido, todo
este trabalho, fazendo eco ao pensamento do prprio filsofo alemo,
posiciona-se ao modo de uma propedutica possvel mas no certeira re-
habitao do mundo pelo Sagrado.21
Tendo em vista o que foi dito acima, e traado nosso objetivo, faremos o
esforo de, neste captulo, primeiramente colocar as bases da compreenso
heideggeriana da modernidade e de como, no seio de tal poca, encontra-se o
fenmeno da desdivinizao e o conseqente afastamento do Sagrado e sua
transformao em um objeto de uma cincia especfica: a Cincia da Religio.
Em seguida veremos como a partir deste acontecimento da modernidade
chega-se ao niilismocomo fundamento da essncia da modernidade e como
esse fenmeno , simultaneamente, a consumao do esprito da poca
moderna e a via de acesso para o retorno do Sagrado. Por fim, indicaremos os
caminhos para se pensar o Nada essencial do niilismoa partir da diferena
ontolgica em direo ao conceito heideggeriano de verdade, que ser tratado
extensivamente no prximo captulo.
1. AESSNCIA DA MODERNIDADE.
Queremos pistas ou indicaes sobre a direo que devemos tomar em nossa
investigao (busca) pelo (re)encontro do Sagrado em sua essncia. Para
21 Conforme dissemos anteriormente (vide: Introduo, p.10) a provisoriedade e a incerteza quecaracterizam esta investigao se devem natureza mesma daquilo que aqui se investiga.
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tanto se faz necessrio compreender de que forma torna-se o Sagrado ausente
em nossa poca. Ora, se quisermos compreender isto precisamos,
primeiramente, compreender o que caracteriza essencialmente a poca
Moderna para, em seguida, podermos vir a considerar em que medida esta
ausncia pode ser considerada um fenmeno moderno.
Para Heidegger a histria do Ocidente no seio da qual floresce a
Modernidade , ela mesma a histria do desenvolvimento da metafsica. Ela
tem sua origem com a primeira pergunta pelo Ser do ente feita na aurora do
pensamento grego. Contudo, essa histria marcada pelo esquecimento deste
mesmo Ser. A pergunta pelo Ser do ente sempre tomou o Ser como aquilo que
era o mais evidente em todo pensamento, e nunca se questionou acerca do
seu sentido. Esse esquecimento provoca em seu pleno desenvolvimento, no
pleno desenvolvimento da metafsica ao longo de sua histria, o fim da filosofia,
o acabamento de todas as suas possibilidades. Todo pensamento de
Heidegger ir apontar na direo de elaborar a tarefa do pensamento no fim da
Filosofia.22 Por isso o pensamento heideggeriano, a partir da elaborao da
ontologia fundamental em Ser e Tempo (1927), ter sempre como objetivo
tornar o mais compreensvel essa tarefa fundamental do pensamento. Ainda
que, como o pensador mesmo sempre repetia, de modo provisrio.
na modernidade que, segundo Heidegger, a metafsica atinge a
plenitude de suas possibilidades. Essa plenitude , ao que parece,
simultaneamente a verdadeira indigncia da era moderna. Indigncia porque
22 Cf. HEIDEGGER, M. O fim da Filosofia e a tarefa do pensamento. In: ______. Conferncias eescritos filosficos. Col. Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1999. p.89-108.
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no auge de seu desenvolvimento a metafsica se transforma na cincia
moderna, na tcnica e na tecnologia. Enquanto tal a metafsica se v
fragmentada nas diversas cincias nticas que se ocupam de regies
especficas de entes. Indigncia porque nessa fragmentao oculta-se um dos
fenmenos fundamentais da modernidade: a desdivinizao. Mais do que uma
simples referncia ao atesmo moderno e suas ramificaes, o conceito de
desdivinizao aponta, ao que nos parece, para o fenmeno do niilismo
compreendido como o fundamento da essncia da modernidade.
A fim de chegarmos a pensar de que maneira o niilismopode vir a se
constituir como o fundamento da essncia da modernidade, ns analisaremos
aqui, luz de outros textos de Heidegger, um texto onde o prprio autor busca
determinar uma tal essncia a partir da anlise de um dos fenmenos que
melhor caracterizam a poca Moderna: a cincia. Esse texto, intitulado O
tempo da imagem do mundo (1938), publicado como parte integrante dos
Holzwege(volume que foi publicado em 1949 e contm textos heideggerianos
do perodo 1935-1946), pretende estabelecer a modernidade como o tempo em
que o mundo se transforma em imagem a partir da capacidade representativa
adquirida pelo homem.
O texto comea com Heidegger propondo cinco fenmenos essenciais
da modernidade: em primeiro lugar encontra-se a cincia moderna, seguida
imediatamente da tcnica de mquinas. Em terceiro vem o deslocamento da
arte para o mbito da esttica, enquanto o quarto, intimamente ligado ao
anterior, diz que o fazer humano na modernidade passa a ser concebido e
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cumprido como cultura. Por fim, e no menos importante para ns, encontra-se
o fenmeno da desdivinizao, caracterizado como o estado de ausncia de
deciso sobre o deus e os deuses.23 Embora todos os cinco fenmenos sejam
aspectos essenciais da modernidade, Heidegger, neste texto, se restringir
anlise do primeiro, a cincia, alegando que a compreenso de apenas um
desses fenmenos pode nos levar ao encontro procurada essncia da
modernidade. O texto, ento, segue a partir de agora nessa direo: a essncia
da modernidade se nos abrir pela compreenso da essncia da cincia
moderna.
Qual , pois a essncia da cincia moderna? ir se perguntar
Heidegger. A resposta simples e objetiva aparece na palavra investigao.
Diferentemente da epistmegrega e da scientiamedieval, a cincia moderna
investigativa. Mas em que consiste, pois, a essncia da investigao? A
resposta a essa questo divide-se ao longo do texto em trs partes: a essncia
da investigao composta pelo rigor e o projeto24, que garantem cincia,
seja ela natural ou histrica (humana), seu carter de avano progressivo (por
meio do projeto) e seu rigor especfico (que aqui no deve ser confundido com
a exatido das cincias naturais matemticas, uma vez que s cincias do
23 Idem. O tempo da imagem do mundo. In: ______. Caminhos de Floresta. Lisboa: FundaoCalouste Kulbenkian, 2002. p. 97-98.24 preciso compreender o que aqui se quer indicar com a palavra projeto. O termo alemo,usado por Heidegger, Entwurf. Em sua raiz este vocbulo possui ligao com o verboentwerfen, o qual sugere um lanar (werfen), jogar fora (ent-), tirar. Muito embora, emportugus, possa-se compreender o projeto como a designao de um plano, esboo ourascunho, Heidegger entende que um Entwurf a condio prvia a todo planejamento. assim, pois com o Dasein que deve projetar um mundo e possuir uma compreenso pr-ontolgica do Ser como condio prvia a toda lida com os entes intramundanos. De formasemelhante, no uso especfico que tem aqui, o projeto designa tudo aquilo que previamente seconstitui como carcterstico da cincia moderna: sua comprenso do que o ente, do que
experincia, da verdade, etc. Por meio de uma correspondncia rigorosa quilo que constituiseu projeto a cincia moderna obtm seu progresso. Cf. INWOOD, M. op.cit.Verbete: projeoe a priori. p.151s. Cf. nota 15.
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esprito cabe um rigor prprio marcado pela no-exatido); em seguida a
investigao marcada pelo procedimento, que se configura especialmente
nos experimentos levados a efeito em funo do estabelecimento, ou
edificao, de leis e de sua verificao e comprovao; e, por ltimo, pela
empresa, ou o estabelecimento da autoridade da cincia em bases
institucionais e que marcada essencialmente pela crescente especializao
das cincias particulares no seio da cincia e pela transferncia do
investigador para o mbito da tcnica; e no mais da erudio. Nisto se resume
a essncia da cincia moderna enquanto investigao. Como diz o prprio
autor:
A cincia moderna funda-se e singulariza-se, ao mesmo tempo,
nos projectos de determinadas reas objectuais. Estes projectos
desenrolam-se no procedimento correspondente, assegurado
atravs do rigor. O procedimento respectivo institui-se na
empresa. Projecto e rigor, procedimento e empresa, exigindo-se
mutuamente, constituem a essncia da cincia moderna,
tornando-se investigao.25
Depois de estabelecer qual seja a essncia do fenmeno fundamental
da modernidade, Heidegger passa a questionar qual seja o fundamento
metafsico da modernidade. Ou seja: qual a concepo de ente e qual conceito
de verdade fundamentam a cincia como investigao? Segundo Heidegger a
cincia enquanto conhecer investigativo do ente, a este pede contas acerca de
como e em que medida ele pode ser tornado disponvel para o representar.26
O que significa que o conhecer na modernidade, enquanto manifesto na
investigao, deseja estabelecer e dispor do ente enquanto aquilo que pode
25 HEIDEGGER, M. O tempo da imagem do mundo. op.cit. p.109. Cf. nota 23.26 Idem. Ibidem.
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ser calculado no seu curso futuro, pelas cincias naturais, e aquilo que pode
ser conferido enquanto passado, pelas cincias histricas. O ente assim
calculado e conferido torna-se objetodo representar que explica quer o ente
isoladamente quer em sua totalidade. A tal ponto que s , s vale como
sendo, aquilo que deste modo se torna objecto.27 Mas o que a representao
que se encontra como fundamento desta objetivao do ente? Em alemo re-
presentar diz-se Vor-stellen, colocar diante, frente, como aquilo que tem
como objectivo trazer para diante de si qualquer ente, de tal modo que o
homem calculador possa estar seguro do ente, isto , possa estar certo do
ente, pois s se chega cincia como investigao se, e apenas se, a
verdade se transforma em certeza do representar.28
Segundo Heidegger isso se d pela primeira vez na histria da
Metafsica com o pensamento de Descartes. no pensamento cartesiano que
o ente pela primeira vez determinado como objetividade do representar e que
a verdade determinada como certeza desse representar. No aditamento (4)29
conferncia em anlise, Heidegger ir afirmar que com Descartes comea o
acabamento da Metafsica, sua consumao final e que, pela primeira vez,
poder-se- falar, a partir da interpretao cartesiana do ente e da verdade, de
uma teoria ou metafsica do conhecimento. Isso porque o pensamento de
Descartes ser o primeiro a transformar o homem essencialmente em sujeito,
27 Idem. Ibidem.28 Idem. Ibidem. p. 109-110.29 Segundo as referncias publicadas pelo prprio filsofo no fim do volume dos Holzwege, osaditamentos foram escritos ao mesmo tempo em que a conferncia, embora no tenham sido
apresentados juntamente com ela. No entanto, esses aditamentos trazem excelentescontribuies para a ampliao e aprofundamento das discusses levadas a efeito pelo autorno corpo da conferncia, como no caso acima.
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subjectum30, o subjacente que, enquanto fundamento, rene tudo sobre si.31
Com isso torna-se o homem o centro de referncia do ente enquanto tal. E
dessa forma o ente transforma-se em objeto do conhecimento. Muda-se, com
isso, a concepo do mundo, do ente em sua totalidade.
Ao ente em sua totalidade chama Heidegger j desde Ser e Tempo
(1927) o mundo. Neste tratado o conceito mundo desenvolvido a partir da
concepo de mundo circundante que concentra, na trilha do pensamento
aberto na busca pelo sentido do Ser, a atitude do Dasein que desde a sua
abertura acolhe o ente em sua totalidade desde uma dis-posio. A partir da
entende-se como cada poca ou era histrica, desde uma dis-posioque lhe
caracterstica, lida com o mundo. Seguindo esse raciocnio e levando-o de
encontro com o que foi dito at aqui sobre a conferncia O tempo da imagem
do mundo, depreende-se que na modernidade a dis-posio fundamental
aquela descrita como representao, a qual caracteriza a essncia da cincia
moderna como investigao. E desde essa dis-posio fundamental da re-
presentao que tudo pe diante do homem como um objeto que o mundo
torna-se imagem. Como diz o prprio Heidegger:
O ente na totalidade agora tomado de tal modo que apenas e s
algo que , na medida em que posto pelo homem
representador-elaborador. Onde se chega imagem do mundo,
cumpre-se uma deciso essencial sobre o ente na totalidade. O
30Descartes cria, com a interpretao do homem como subjectum, o pressuposto metafsicopara a antropologia futura, seja de que tipo for. (...) Atravs da antropologia, introduzida apassagem da metafsica para o processo do mero terminar e abandonar de toda a filosofia.
Cf.: HEIDEGGER, M. O tempo da imagem do mundo. op.cit. Aditamento (4). p. 123. Cf. nota23.31 Idem. Ibidem. p. 111.
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ser do ente procurado no estar-representado [Vorgestelltheit] do
ente.32
Assim, ao tornar o mundo em imagem, o homem enquanto sujeito o tem
em poder re-presentativo e pode descrev-lo ou explic-lo, na medida em que
o mundo torna-se objeto. Nesse mbito essencial da modernidade desenvolve-
se a cincia como investigao nas mais variadas formas a partir da
segmentao da imagem do mundo em regies nticas. Que o mundo se
torne imagem e que o homem, dentro do ente, se torne subjectum, um e o
mesmo processo.33 Nesse duplo processo desenvolve-se a interpretao
antropolgica do mundo, onde a posio humana no meio do ente torna-se
mundividncia, como intuio da vida. Tudo isso aponta, como j dito
anteriormente34 para o fim da filosofia na modernidade e a sua substituio
pela antropologia como explicao plausvel da estadia humana no mundo.
Tudo se transforma, em sentido lato, em antropologia, porque, de uma forma
mais radical do que entre os sofistas gregos, o homem transforma-se na
medida de todas as coisas. O homem transforma-se em sujeito. Desta maneira
fica estabelecido que a metafsica moderna tem uma viso sobre a essncia do
ente como objeto; que o ente em sua totalidade visto como imagem
representvel por um sujeito (o homem); e que a essncia da verdade
caracterizada como a certeza do representar.
No entanto, em que esta anlise da essncia da modernidade a partir do
fenmeno da cincia moderna nos auxilia em nossa busca pela essncia do
32
Idem. Ibidem. p.112-113.33 Idem. Ibidem. p.115.34 Cf. nota 30.
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Sagrado? Para responder a isso devemos nos deter naquilo que foi proposto
por Heidegger como o quinto fenmeno da modernidade no incio da
conferncia. Precisamos analisar o fenmeno da desdivinizaocomo algo que
se encaixa perfeitamente na essncia da modernidade. Para isso se faz
necessrio entendermos primeiramente o que Heidegger quer dizer com o
termo desdivinizao.
2. DESDIVINIZAOENIILISMO.
Heidegger afirma que desdivinizaono diz respeito to somente simples
eliminao dos deuses, o atesmo grosseiro. Ao contrrio:
A desdivinizao o dplice processo de, por um lado, a imagem
do mundo se cristianizar, na medida em que o fundamento do
mundo estabelecido como o infinito, o incondicionado, oabsoluto, e, por outro lado, o cristianismo transformar a sua
cristianidade numa mundividncia (a mundividncia crist) e, deste
modo, se modernizar. A desdivinizao o estado de ausncia
deciso sobre o deus ou os deuses. Ao cristianismo cabe a maior
parte no seu despontar. Mas a desdivinizao no s no exclui a
religiosidade, como at s atravs dela que a relao aos
deuses se transforma em vivncia religiosa. Ao chegar-se aqui,
porque os deuses fugiram. O vazio que surgiu substitudo pela
investigao historiogrfica e psicolgica do mito.35
Alguns elementos devem aqui ser destacados. Heidegger afirma que o
processo de desdivinizao na modernidade comea e tem grande parte de
seu desenvolvimento devido mundividncia crist por um duplo processo, a
saber: a imagem do mundo cristianizada com o estabelecimento do
35 HEIDEGGER, M. O tempo da imagem do mundo. op.cit. p. 98. Cf. nota 23.
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fundamento do mundo como sendo o infinito, o incondicionado e o absoluto.
Enquanto, por outro lado, a cristianidade do cristianismo se converte em
mundividncia e assim se moderniza. O que isso significa? Ora, parece-nos
que Heidegger faz uma referncia aqui ao fato de no incio da modernidade o
pensamento cartesiano, ao fundamentar e condicionar toda a veracidade da
existncia do mundo no argumento ontolgico, como que cristianiza a imagem
do mundo colocando-o sobre um fundamento infinito, incondicionado e
absoluto. Simultaneamente, toda a cristianidade do cristianismo medieval
converte-se em mundividncia, para fazer parte da modernidade. Ora, no incio
desse processo, com Descartes, o deus cristo se torna um artifcio racional
para garantir a veracidade da existncia do mundo, para em seguida, com o
desenvolvimento da histria da metafsica moderna, com Nietzsche chegar-se
ao anncio de sua morte. Por isso, na modernidade, o mito torna-se, tambm
ele, objeto da anlise historiogrfica e psicolgica. Ento, a vivncia religiosa
na modernidade passa a expressar sobremaneira a fuga dos deuses e do deus
cristo e transforma-se em religiosidade. Fogem os deuses e surge o vazio. O
lugar metafsico ocupado por eles fica vazio. E o mundo fica na indigncia da
falta de um fundamento.
Esse mesmo tema parece haver sido tratado pelo filsofo na conferncia
Para qu poetas?(1946), ao afirmar que a modernidade tempo indigente, o
tempo da noite do mundo, que se caracteriza pela ausncia de Deus, pela
falta de Deus.36 E pode-se ler tambm nessa conferncia o que acabamos de
afirmar acima:
36 Idem. Para qu poetas? In: ______. op.cit. p. 309. Cf. nota 3.
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A falta de Deus significa que j no existe um Deus que rene em
si, visvel e univocamente, as pessoas e as coisas e que, com
base nessa reunio, articule a histria do mundo e a estncia
humana nessa histria. A falta de Deus anuncia, porm, algo de
muito pior. No s se foram os deuses e Deus, como tambm se
apagou na histria do mundo o fulgor da divindade. (...) Com esta
falta, fica fora do mundo o fundo como aquilo que fundamenta.37
Ora, a ausncia de deus anuncia que se apagou na histria o fulgor da
divindade da qual o sagrado vestgio. Vestgio este que, com o avano da
noite do mundo em direo sua meia-noite a sua hora mais escura vai-se
tambm perdendo enquanto aquilo que conduz divindade, e mais, se vo
tambm extinguindo os vestgios deste vestgio perdido38. Assim, a ausncia
de fundamento, provocada pela ausncia de Deus ou por sua fuga, coloca o
mundo suspenso sobre o sem fundo, sobre o abismo.
Poderamos dizer, sobre o Nada? Cremos que sim, pois nos parece que
o mesmo fenmeno que aqui aparece sob o nome desdivinizao ou fuga
dos deuses e de Deus, aparece j em Nietzsche como o anncio da morte de
Deus. Em sua Gaia Cincia (1882) no fragmento nmero 125, intitulado O
homem louco, Nietzsche depois de fazer o anncio da morte de Deus e de
denunciar seus executores, coloca na boca de seu personagem uma srie de
perguntas que surgem desde a constatao desse fato:
Ns o matamos vocs e eu. Somos todos seus assassinos! Mas
como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o
mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que
37 Idem. Ibidem. p. 309.38 Idem. Ibidem. p. 313.
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fizemos ns, ao desatar a terra de seu sol? Para onde se move ela
agora? Para onde nos movemos ns? No camos
continuamente? Para trs, para os lados, para frente, em todas as
direes? Existem ainda em cima e embaixo? No vagamos
como que atravs de um nada infinito? No sentimos na pele osopro do vcuo? No se tornou ele mais frio? No anoitece
eternamente? No temos que acender lanternas de manh? No
ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? No sentimos o
cheiro da putrefao divina? tambm os deuses apodrecem!
Deus est morto!39
No vagamos como que atravs de um nada infinito? pergunta-se o
pensador. No seria essa mesma questo que faz Heidegger suscitar o tema
da desdivinizao? No tratadoA palavra de Nietzsche Deus morreu(1943) e
no ensaio A essncia do niilismo (1946-1948) Heidegger ir comentar esse
mesmo fragmento de Nietzsche em busca de uma possibilidade de pensar a
essncia do niilismo. Ao que nos parece, o tema do niilismo aparece para
Heidegger no mesmo horizonte em que aparece o tema da essncia da
modernidade, uma vez que, enquanto fenmeno que ganha notoriedade na
modernidade, o niilismo encontra-se intimamente vinculado ao movimento
histrico da metafsica. quase como que sua conseqncia natural porque,
segundo Heidegger, o niilismo movimenta a histria segundo o modo de um
processo fundamental que quase no reconhecido no destino dos povos
ocidentais.40 Portanto, a falta de deus ou de deuses indica que nosso mundo
ficou sem seu fundamento, e sem um tal fundamento nosso mundo suspende-
se sobre o abismo. Assim, o fenmeno da desdivinizao, ou da fuga dos
39
NIETZSCHE, F. A Gaia Cincia. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.147-148.40HEIDEGGER, M. A palavra de Nietzsche Deus morreu. In: ______. Caminhos de Floresta.Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002.p.252.
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deuses e a morte do Deus moral cristo41, define a indigncia da era moderna
como a carncia de fundamento. Ou seja, a era moderna pende sobre o Nada.
Em Para qu poetas? Heidegger se coloca a questo sobre uma
possvel viragem42 em tal situao de indigncia. Tal viragem, supondo que
seja mesmo possvel, apenas poder surgir, segundo ele, se o mundo virar a
partir do prprio abismo em que se encontra. Isso significa que uma tal viragem
no se torna possvel a partir do renascimento do Deus cristo ou da sada de
um esconderijo de um velho deus, ou pelo advento de um novo deus. Significa,
segundo cremos, que a modernidade s poder promover sua prpria viragem
se se detiver no pensamento sobre aquilo que para ns ainda permanece o
impensado: do fundamento de sua essncia. preciso que a modernidade se
detenha no pensamento sobre o Nada. Somente a partir disso poder-se-
estabelecer a viragem do mundo desde o abismo, e o Sagrado, talvez, assim
novamente o venha habitar. Mas como pensar o Nada?
3. A VERDADE ORIGINRIA E A POSSIBILIDADE DA VIRAGEM.
Um caminho para a resposta questo acima parece encontrar-se no
aditamento (14) da conferncia O tempo da imagem do mundo. Vejamos:
41 NUNES, B. Do primeiro ao ltimo comeo. In: ______. Crivo de papel. So Paulo: tica,1998. p.57.42O termo viragem aqui tem um sentido bem preciso, a saber: possibilidade de que no seiomesmo da modernidade, enquanto a poca mxima do esquecimento do Ser, possa vir a serexperimentada a proximidade da verdade do Ser, tal como aconteceu na origem dopensamento. Isso, contudo, no significa que a poca moderna necessite de algo como umretorno nostlgico poca da origem do pensamento. A viragem aqui significa descobrir esta
proximidade do Ser nas possibilidades mesmas da modernidade. O retorno poca da origem, ao que parece, uma forma de, no dilogo com esta poca distante, adquirir propriedade doque realmente significa in totoa poca moderna e sua essncia.
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O nada nunca nada, muito menos algo no sentido de um
objecto; o ser mesmo a cuja verdade o homem entregue
quando se superou como sujeito, isto , quando j no representa
o ente como objecto.43
O Nada no o nihil negativum, pura e simplesmente dado. Tambm no
uma coisa, um objeto. Nada e Ser aqui coincidem. Mas coincidem na verdade
do Ser qual entregue o homem que se superou como sujeito. O que isso
pode significar alm do fato de que no pensamento sobre a verdade do Ser j
se encontra um indcio para a reflexo sobre o Nada? O homem que se supera
como sujeito o homem que se pergunta pela prvia condio desde onde ele
mesmo se pe como sujeito. Nesse sentido a viragem, como foi dito acima, s
pode ser possvel no assumir a prpria condio de sujeito e ir em direo
sua essncia. Pensar essa essncia do sujeito, a sua condio de
possibilidade, foi o que Heidegger levou a efeito em sua analtica existencial na
obra de 1927. Essa reflexo sobre o Dasein, o existente, o levou em direo
reviso do conceito de verdade e busca do sentido originrio da palavra
(linguagem). Nossa hiptese que nesse pensamento sobre a essncia da
verdade, em sua reviso, e na busca do sentido originrio da linguagem,
encontra-se a possibilidade de um pensamento sobre o Nada bem como a
possibilidade de viragem que resta modernidade em meio sua indigncia.
Mas como uma tal viragem tornar-se- possvel? Na conferncia Sobre a
essncia da verdade (1943)44 Heidegger a partir do resgate etimolgico da
palavra grega altheia como des-velamento ir dar o direcionamento para a
43 HEIDEGGER, M. O tempo da imagem do mundo. In: ______. op.cit.,p.138. Cf. nota 23.44
Idem. Sobre a essncia da verdade. In: ______. Conferncias e escritos filosficos. Col. OsPensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1999. p.149-183.
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resposta a essa questo. Para o autor a palavra abriga um duplo sentido. Por
um lado a palavra a-ltheiadiz de um no-velamento, um no-esquecimento;
graas ao prefixo negativo colocado junto a lthe, que quer dizer
esquecimento. Por outro lado, o prefixo negativo no privativo no sentido de
que altheiaexclua inteiramente de si o esquecimento. Ao contrrio, lthe, o
esquecimento, o encobrimento, parte essencial da verdade como altheia. A
verdade, originariamente compreendida, para Heidegger diz desse des-
encobrimento e encobrimento simultneos. Mas o que se encontra em jogo
nessa simultaneidade? O que na verdade se des-encobre e encobre seno o
Ser? Heidegger nomeia essa verdade originria como sendo a verdade do Ser.
No porque ela trate do Ser em algum tipo de discurso demonstrativo, mas
porque no seu movimento des-velamento/velamento o Ser que se mostra e
se oculta a cada vez.
No aditamento (15) de O tempo da imagem do mundo, Heidegger dir
que o Dasein, o ser-a, ele mesmo o mbito exsttico (sic) do
desencobrimento e encobrimento do ser.45 O homem, o existente, o mbito
ex-sttico da verdade do Ser. Em outras palavras, ele o entre, o nico ente
que sendo coloca em questo seu prprio ser, e, por isso, o ente que pertence
ao ser e, no entanto, permanece um estranho no ente 46 em sua totalidade.
Por isso ao homem dada a chance nica de se deter junto ao impensado
numa meditao genuna, que se demora junto ao Ser. Uma tal meditao para
Heidegger o que possibilita a superao do pensamento metafsico. Uma
superao que, ao contrrio de destruir, prope um retorno sobre a histria
45 Idem. O tempo da imagem do mundo. In: ______. op.cit. p.138. Cf. nota 23.46 Idem. Ibidem. p.119.
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mesma da Metafsica ou do pensamento ocidental. Essa histria tem seu
marco inicial com Scrates, Plato e Aristteles. Os pensadores anteriores a
estes so chamados por Heidegger de pr-metafsicos, ou simplesmente,
pensadores originrios porque se encontravam na proximidade da verdade e
da linguagem originrias. Ainda que no a tenham tematizado. Nesses
pensadores o Ser ainda se revelava na proximidade dos deuses atravs da
phsis, a natureza entendida no como o conjunto dos entes naturais, mas
como ecloso de sentido.
Ao falar sobre esse retorno sobre a histria da metafsica at suas fontes
originrias pode parecer que estamos afirmando que Heidegger prope para a
viragem da modernidade um retorno nostlgico a um tal perodo, como se na
poca da desdivinizaobastasse-nos reviver o mito grego para que a fuga do
Sagrado se revertesse. Mas no se trata disso. Ao propor uma volta ao
passado originrio da metafsica Heidegger prope sim um caminho: o caminho
de pensar o impensado. Da mesma forma que os pensadores pr-metafsicos
embora vivessem na proximidade da verdade do Ser no tenham pensado
sobre ela; ns, os modernos, ainda no nos detivemos suficientemente sobre
tal tema. O caminho do pensamento sobre a verdade o caminho do
pensamento sobre o impensado. E, como dissemos acima, o Nada o
impensado em nossa poca. O que significa que para ns pensar a verdade
pensar o Nada.
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Diz Heidegger no Prefcio terceira edio (1949) de Sobre a essncia
do fundamento(1928): O nada o no do ente.47 Isso significa que o Nada
tudo quanto o ente em sua totalidade no . Mas esse Nada no um nihil
negativum, como foi dito na citao no incio desse tpico. Tambm no um
ente que possamos representar e sobre o qual possamos discorrer. Ele antes
uma ausncia que se coloca a si mesma como condio de possibilidade de
todas as coisas. Nesse sentido o Nada pode ser qualificado como correlato ao
Ser, como tambm j foi dito acima. Para Heidegger o Ser se revela em sua
verdade a partir da diferena ontolgica, cuja definio tambm se encontra no
Prefcio de 1949: a diferena ontolgica o noentre ente e ser.48
Ou seja, o Ser no um ente; tambm no a totalidade do ente; no
entanto coisa alguma seno pelo Ser. Nesse sentido o Ser Nada, enquanto
tudo simultaneamente. Talvez pudssemos falar de uma inconcebvel
igualdade e diferena simultneas entre ente e Ser. Isso talvez revelasse o
carter paradoxal da diferena ontolgica. Um carter que no se revela pela
linguagem discursiva, mas to somente por uma linguagem que seja tambm
ela originria. Que linguagem seria essa?
Heidegger ir se posicionar favoravelmente linguagem potica como
sendo a linguagem que melhor se aproxima do mbito do originrio. Isso
porque esse tipo de linguagem no se prende ao conceito tradicional de
verdade como adequao; ao contrrio, ele supera um tal modelo. Claro que
aqui no se encontra em jogo a linguagem potica como vista pela teoria
47
Idem. Sobre a essncia do fundamento. In: ______. Conferncias e escritos filosficos. Col.Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 111.48 Idem. Ibidem.
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literria. Poesia, aqui, se refere ao sentido grego de poisiscomo produo. A
linguagem potica originria porque se situa no mbito da produo de
sentido para o ente em sua totalidade. Uma produo que no a de um
sujeito que, tomando as rdeas, cria algo. A produo a que se refere
linguagem potica a produo prpria do mundo no des-encobrimento e no
encobrimento do Ser em sua verdade.
4. Concluso.
Apesar de tudo quanto foi dito at aqui permanece no respondida a questo:
de que maneira o pensamento sobre a essncia da modernidade e seu
fundamento (o niilismo) pode nos auxiliar em nosso caminho rumo essncia
do Sagrado?
Como foi dito, na poca moderna, em sua essncia, encontra-se o
fenmeno da desdivinizao, ou fuga/morte dos deuses. Um tal fenmeno
indica-nos a relao entre modernidade e niilismo. Contudo, indica-nos tambm
que no seio da poca moderna aloja-se a objetivao do Sagrado na
interpretao psicolgica e historiogrfica de mitos e ritos. Estes so
considerados pela fenomenologia da religio como documentos que registram
a experincia que homens primitivos tiveram do Sagrado em seu momento
histrico preciso. Tais documentos, transformando-se em objeto de anlise de
disciplinas cientficas tais como a historiografia e a psicologia fazem com
que aquilo que descrevem tambm se torne um objeto. Esta transformao, tal
como aquela outra ocorrida na aurora do pensamento ocidental com o Ser e
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que, em seu desenvolvimento, levou-nos ao seu (do Ser) esquecimento, leva-
nos agora a constatar que o Sagrado, tambm ele, embora lembrado como
categoria de uma experincia psicolgica ou da descrio historiogrfica, se
nos tornou estranho. Por isso pensamos que, ao nos determos aqui sobre o
fenmeno da desdivinizao, e a ocorrncia mesma de um tal fenmeno que
aponta para a realidade do afastamento dos deuses e do deus cristo em
nossa poca, surge a necessidade de se falar sobre o Sagrado. Isso , sem
dvida, uma marca essencial da modernidade, dado que num mundo
divinizado no haveria tal necessidade.
Em seguida, deve-se pensar que a indigncia de nosso tempo cuja
essncia repousa sobre o fenmeno da desdivinizao aponta para uma
situao angustiante: a ausncia de fundamento. Isso gera a necessidade de
uma viragem, um retorno sobre si mesmo em busca da origem da essncia da
poca em que vivemos, o que se d sob a gide de uma meditao demorada
sobre o Ser e sua verdade. Essa mesma verdade se encontrava na
proximidade do pensamento dos primeiros pensadores e dos mitos na Grcia
arcaica, ainda que de forma no tematizada. Ou seja, de alguma forma a
verdade originria se encontrava na proximidade dos deuses. Ainda que o
retorno do Sagrado em nossa poca seja, de algum modo, uma necessidade,
isso no se dar pela volta dos deuses ou do deus cristo. No entanto, talvez
isso se faa possvel na linguagem dos poetas, pela sua proximidade originria
com a verdade e a origem do mundo.
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A linguagem potica garante a medida do mundo e isso desde a
poesia de Hesodo, por exemplo, at a de nossos dias. Medida que garante
aos mortais serem mortais em sua oposio aos imortais (os deuses) e com
eles se relacionar. Garante tambm a distncia necessria entre o ter (o cu)
e a terra, como princpios originrios do mundo. a linguagem potica que
garantir nossa poca a revelao do espao a partir do qual se estabelece a
diferena do mesmo, a diferena entre ente e Ser, onde cada um dos opostos
se revelam.
Por isso tudo, ns cremos que este captulo aponta decisivamente para
o prximo desenvolvimento de nossa pesquisa. Ser necessrio que nos
detenhamos, num primeiro momento, com maior acuidade sobre o Ser e sua
verdade; para depois levarmos a efeito uma reflexo sobre a linguagem potica
e sua funo mundanizante. Mas, nosso esforo dever se concentrar agora
no mais na concepo moderna do Ser e da verdade. Ao contrrio, devemos
caminhar em direo ao originrio onde o Nada j se encontrava presente,
embora no tematizado. Talvez, seja preciso agora uma reflexo sobre as
origens do pensamento e sua proximidade com o Sagrado. Esperamos que isto
possa, por sua vez, abrir nossos caminhos e, enfim, nos conduzir para a
proximidade do Sagrado no seio de nossa prpria poca.
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CAPTULO II
VERDADE E SAGRADO NA PROXIMIDADE DO ORIGINRIO.
Buscamos, a partir de Heidegger, a essncia do Sagrado. No captulo anterior
vimos como esta busca se processa necessariamente desde a ausncia do
Sagrado na poca moderna. Vimos tambm que a essncia desta poca se
fundamenta sobre o Nada enquanto ausncia de fundamento. E que, se
quisermos chegar a um real pensamento sobre a essncia do Sagrado na
poca de sua ausncia, precisamos rumar em direo a esse Nada, sem,
contudo, transform-lo em mais um dentre os muitos objetos de nosso pensar.
Como fazer isso? O caminho que se anuncia, a partir de nossa considerao
da obra de Martin Heidegger, o de determo-nos mais demoradamente num
pensar da verdade do Ser na proximidade da origem do pensamento ocidental.
Somente assim, talvez, o Nada se nos apresente ao pensamento e nos
propicie uma viragem desde o fundo de nossa poca de indigncia.
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Por isso, neste segundo captulo, preciso que nos detenhamos em
compreender como Heidegger recolhe um novo conceito de verdade. Conceito
este que marca toda a sua filosofia como empreendimento de superao da
metafsica na busca pela origem do pensamento ocidental. No podemos ainda
perder de vista que o objetivo principal da pesquisa a busca pela essncia do
Sagrado como possibilidade preparatria de uma viragem no interior da
modernidade desde o abismo de sua prpria indigncia. Por isso, este captulo
se ocupar tambm de verificar se existe, de fato, a partir do pensamento de
Heidegger, uma co-pertinncia essencial entre o pensamento e o Sagrado na
proximidade da origem.
O primeiro e mais necessrio passo no cumprimento de tais objetivos
o de esclarecer o que estamos compreendendo aqui com a palavra origem.
Precisamos definir nosso conceito a partir das significaes que a idia de
origem assume no pensamento heideggeriano. De certo modo, para ns, o
conceito de origem um conceito hbrido marcado por duas significaes que
Heidegger d em sua obra quilo que a palavra portuguesa de imediato nos
sugere. Estas duas significaes se distinguem e ordenam em alemo a partir
de dois grupos semnticos: a) o grupo que se ordena em torno do verbo
springen (pular, saltar); b) o grupo que se ordena em torno do verbo fangen
(pegar, agarrar, capturar, apanhar).49
49 INWOOD, M. op.cit. Verbete: origens e comeos. p. 134-136. Cf. nota 15.
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No primeiro grupo temos o substantivo Ursprungcom o sentido comum
de origem. Enquanto derivado do verbo springen, Ursprung, entendido como
origem, tem um valor semntico a ser explorado. Se springen se traduz
correntemente como pular, saltar, o substantivo correspondente Sprungdeve
ser traduzido como o salto, o pulo. No entanto, verbo e substantivo apontam
para um sentido anterior de surgir, elevar-se, rebentar, brotar/emanar. Donde
Sprung deveria ser entendido como um salto que brota, tal como o salto de
uma fonte de gua. Precedido da partcula Ur-(ou Er-no alemo arcaico), cujo
significado indica algo de primordial, original, o substantivo Sprungpassa a
sugerir algo como um salto original, primordial. Da que Ursprnglichkeit, no
signifique originalidade no sentido de uma mera novidade. Para Heidegger a
originalidade sugere antes a proximidade do primitivo, primevo, primordial, a
fonte de onde algo provm.
Em termos filosficos esta a definio para Ursprung que o prprio
Heidegger nos oferece em seu tratado A Origem da Obra de Arte (1935/36),
cujo ttulo em alemo Der Ursprung des Kunstwerkes:
Origem significa aqui aquilo a partir do qual e pelo qual algo
aquilo que e como . quilo que algo , [sendo] como ,chamamos a sua essncia [Wesen]. A origem de algo a
provenincia de sua essncia.50
E, poderamos completar, a pergunta pela origem do pensamento Ocidental
pergunta pela provenincia da sua essncia. No entanto, por agora, deixemos
em suspenso o que seja a essncia do pensamento ocidental.
50 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. In: ______. Caminhos de Floresta. Lisboa:Fundao Calouste Gulbenkian, 2002. p. 7.
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No segundo grupo de palavras temos Anfang, no significado de origem,
comeo. A raiz da palavra aponta para o verbo fangenque, como dissemos,
significa pegar, agarrar, capturar, apanhar. Tambm derivado de fangen e
mais prximo de Anfangencontra-se o verbo anfangen, cujo significado mais
primitivo o de arrebatar, apossar-se de, e que hoje diz apenas comear,
iniciar. Dito isso, talvez fosse correto afirmar que Anfang a origem, o comeo
onde ocorre como que uma captura, um apossar-se daquilo mesmo que
principia. No um comeo causal, mas um apanhar em pleno salto aquilo que
no salto originrio (Ursprung) brota a partir de si mesmo e que, em sendo
apanhado, se mantm em seu ser.
Para nosso trabalho aqui ser necessrio que a palavra origem traga em si
esta dupla significao de, por um lado, fonte e provenincia da essncia de
algo; e de, por outro lado, comeo, princpio onde o salto originrio pela
primeira vez pressentido e, em certa medida, apanhado pelo pensamento.
Porque, se nossos propsitos exigem que consideremos a origem do
pensamento ocidental, faz-se necessrio que esta considerao siga este
duplo caminho da significao da palavra origem. Donde se conclui que em
nossa considerao devemos pensar: a) a essncia do pensamento em funo
de sua provenincia; b) fazer isso a partir da poca histrica onde pela primeira
vez o essencializar-se do pensamento colhido.
1. A ESSNCIA DO PENSAMENTO E OS PENSADORES ORIGINRIOS.
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Se concordarmos que a essncia de algo designa aquilo que este algo e
como , devemos buscar no prprio pensamento este algo que lhe garante sua
identidade. Em primeiro lugar devemos assumir que parte importante daquilo
que o pensamento encontra-se caracterizado na palavra atravs da qual o
pensamento ocidental ficar tradicionalmente conhecido. Antes de mais a
palavra que designa o pensamento philosopha. Esta uma palavra que,
mesmo antes de conhecido o seu significado, revela-nos algo de mais
imediato. A palavra que nomeia o pensamento ocidental uma palavra grega.
Este fato muito mais importante do que primeira vista podemos contemplar.
Alm de situar junto ao povo grego a origem (Anfang) do pensamento no
ocidente, esta palavra diferencia este pensamento do pensamento de outros
povos. Dizer que a philosopha grega significa dizer que ela nasce e se
desenvolve segundo o modo prprio de questionar deste povo especfico. E
mais do que nosso mundo moderno e globalizado possa pensar, uma filosofia
oriental algo to estranho quanto uma filosofia crist e um ferro de
madeira.51 A philosopha, pois, sempre ocidental e, em sua origem, grega.
Mas, o que significa aqui, para ns, afirmar que a filosofia grega?
Grego, no nosso modo de falar, no designa uma peculiaridade
tnica ou nacional, nenhuma peculiaridade cultural eantropolgica; grego a madrugada do destino segundo o qual o
ser ele prprio clareia no ente e reclama um estar-a-ser52 do
homem que, enquanto estar-a-ser relativo ao destino, tem o seu
processo histrico no modo como esse estar-a-ser preservado
no ser e libertado dele, embora, apesar disso, nunca seja
separado dele.53
51
Idem. Introduo Metafsica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. p. 38.52 Em alemo Wesen, o essencializar-se.53 HEIDEGGER, M. O dito de Anaximandro. In: ______. op.cit. p.389. Cf. nota 9.
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Em segundo lugar e em conseqncia do que foi dito: qual , afinal, este
modo prprio do questionamento filosfico que vem tona pela primeira vez
entre os gregos? Segundo Heidegger o modo grego de questionar marcado
essencialmente pela pergunta pelo ente em sua totalidade. O que no significa
que os primeiros pensadores gregos buscassem compreender algo como o
conjunto total dos entes individuais. Na verdade, a expresso heideggeriana
quer traduzir para uma linguagem contempornea aquilo que os primeiros
pensadores nomearam como phsis. O que diz, pois, phsis, Heidegger
quem nos esclarece:
Evoca o que sai ou brota de si mesmo (por exemplo, o brotar de
uma rosa), o desabrochar, que se abre, o que nesse despregar-se
se manifesta e nele se retm e permanece; em sntese, o vigor
dominante (Walten) daquilo que brota e permanece. (...) Physis
significa, portanto, originariamente, o cu e a terra, a pedra e a
planta, tanto o animal como o homem e a Histria humana,
enquanto obra dos homens e dos deuses, finalmente e em
primeiro lugar os prprios deuses, submetidos ao Destino. Physis
significa o vigor reinante, que brota, e o perdurar, regido e
impregnado por ele. Nesse vigor, que no desabrochar se
conserva, se acham includos tanto o vir-a-ser como o ser
entendido esse ltimo no sentido restrito da permanncia esttica.
Physis o surgir [Ent-stehen], o ex-trair-se a si mesmo do
escondido e assim conservar-se.54
O que devemos, pois, considerar como sendo isso que brota e permanece
neste mesmo brotar/desabrochar? A totalidade do ente, o mundo. Pois a
physis o Ser mesmo em virtude do qual o ente se torna e permanece
observvel.55 Phsis o Ser do ente na sua totalidade, ou seja, ela o
54 Idem. Ibidem. p.44-45.55 Idem. Ibidem. p. 45.
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desabrochar do ente e sua permanncia desde o horizonte do Ser. Phsis,
segundo Heidegger, a vigncia auto-instauradora do ente na totalidade.56
Os primeiros pensadores que se ocuparam da phsis ficaram
conhecidos como fisilogos. Heidegger, porm, a fim de evitar certa
compreenso baseada no anacronismo de classificar os primeiros pensadores
como fsicos primitivos, prefere nome-los como pensadores originrios.
Para o filsofo alemo estes pensadores originrios so no somente os
primeiros em ordem cronolgica, mas aqueles que se encontram em maior
proximidade com a provenincia da essncia do Pensamento, na vizinhana da
Origem. Em vrias ocasies Heidegger se deter na interpretao de trs
destes pensadores: Anaximandro, Parmnides e Herclito. Estes seriam como
que os profetas da origem.
Para nosso propsito, neste trabalho, ns nos limitaremos s
interpretaes heideggerianas do pensamento de Herclito. Nossos objetivos,
ao nos determos nessas interpretaes, so: primeiro, verificar se, a partir da
questo da phsis, existe algo como uma co-pertinncia essencial entre
pensamento e Sagrado, na proximidade da origem; em seguida, verificar se, no
mbito do pensamento de Herclito, tal como interpretado por Heidegger,
pode-se vir a compreender a verdade de um modo mais originrio.
2. A CO-PERTINNCIA ESSENCIAL ENTRE PENSAMENTO E SAGRADO NA PROXIMIDADE
DA ORIGEM.
56 Idem. Os Conceitos Fundamentais da Metafsica. op.cit. p. 32. Cf. nota 13.
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No semestre de vero do ano de 1943 Heidegger ir oferecer um seminrio
sobre este mesmo tema A origem do pensamento Ocidental a partir dos
fragmentos de Herclito de feso. O pensador alemo ir afirmar que, mais do
que uma historiografia do pensamento, ele pretende com este seminrio
distncia fazer a experincia do fundamento do comeo da filosofia, isto ,
da metafsica numa dimenso prpria.57 Neste seminrio, parece-nos ficar
clara dentro da interpretao que o autor faz aos fragmentos de Herclito
qual , na origem do pensamento Ocidental, a essncia impensada da
verdade. Esta essncia, perceberemos pela anlise, encontra-se em relao
necessria com o Sagrado. Em nosso auxlio para a correta interpretao deste
escrito, recorreremos, como no captulo anterior, a outros textos de Heidegger.
J na Introduo ao Seminrio em questo Heidegger aponta para a co-
pertinncia essencial entre o pensamento heraclitiano e o Sagrado. E isto a
partir de duas estrias.58 Nestas encontram-se, para ns, a chave para o
aprofundamento da temtica do Sagrado no seio da cultura grega da qual
Herclito herdeiro.
A primeira estria conta que:
(...) Herclito assim teria respondido aos estranhos vindos na
inteno de observ-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se
junto ao forno. Ali permaneceram, de p, (impressionados
57 Idem. A origem do pensamento Ocidental. Herclito. In: ______. Herclito. Rio de Janeiro:Relume Dumar, 1998. p. 18.58 O termo estria considerado por alguns dicionrios da Lngua Portuguesa como umaartificialidade criada para diferenciar, como no Ingls, uma narrativa (story) de um fato relatado
pela historiografia (History). Apesar disto a tradutora do seminrio Herclito, a professoraMrcia S Cavalcante Schuback usa, na referncia s narrativas sobre o efsio, o termoestria. Em ateno a este fato preservaremos neste trabalho o mesmo termo.
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sobretudo porque) ele os (ainda hesitantes) encorajou a entrar,
pronunciando as seguintes palavras: Mesmo aqui, os deuses
tambm esto presentes.59
A narrativa nos lana de imediato na conjuno entre o Pensamento e o
Sagrado. Os visitantes esperam ver o pensador, observ-lo, numa aura
extraordinria e o que encontram? Um homem aquecendo-se junto ao forno.
No o pensador ocupado em se aprofundar nalgum mistrio, mas um homem
comum, exatamente como eles, numa cena comum. Heidegger aponta para
esta ordinariedade da cena com veemncia a fim de destacar a fala-convite de
Herclito aos que o visitavam: Mesmo aqui junto ao forno, no cotidiano
mesmo aqui os deuses tambm esto presentes. Segundo Heidegger,
Herclito, ao dizer isto, como se dissesse: somente aqui, no ordinrio do
cotidiano, abriga-se (vigora) o extraordinrio (os deuses).
A proximidade do pensador e do forno revela a presena do fogo. Ora,
alm de aquecer o fogo ainda fonte de luz e ardor. Estas ddivas do forno e
do fogo no cotidiano juntamente com a ddiva do po so sinais da
presena dos deuses. E nesta ambincia que, segundo Heidegger, o
pensamento do pensador se avizinha do Sagrado como extraordinrio. Nesta
mesma ambincia onde o extraordinrio vigora no seio e desde o ordinrio
sem o excluir o pensamento se avizinha da sacralidade dos deuses e pode
vir luz como luta, em grego ris. Este modo de o pensamento vir luz como
luta se mostra a partir da proximidade da deusa rtemis, como nos conta a
segunda estria.
59 Apud:HEIDEGGER, M. op.cit. p. 22. Cf. nota 57.
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Dirigiu-se, porm, ao santurio de rtemis para l jogar dados com
as crianas; voltando-se aos efsios que se puseram de p ao seu
redor, exclamou: Seus infames, o que esto olhando aqui to
espantados? No melhor fazer o que estou fazendo do que
cuidar da plis60
junto com vocs?.61
Aqui se revela igualmente a proximidade dos deuses, mais propriamente
a presena-proximidade da rtemis dos efsios, em cujo santurio Herclito se
refugia para jogar dados com (e, porque no, como) as crianas, para o
assombro de seus conterrneos. Na interpretao desta estria Heidegger
aponta, primeiramente, em direo afirmao de que Herclito, de fato, ao
ocupar-se do jogo, cuidava melhor da plis e de seus interesses do que se
estivesse envolvido em qualquer discusso poltica. O pensador alemo se
questiona: E se, no modo grego de pensar, a forma mais elevada de cuidar da
plis62 fosse cuidar da presena dos deuses?.63 Ao que responde logo em
seguida: Na verdade isso. Para Heidegger o modo grego de pensaraponta exatamente para o fato de que se dedicando ao cuidado dos deuses
cuida-se igualmente da plisque o plo e a sede em torno dos quais giram
tanto o aparecimento essencial dos entes, como tambm o no-essencial de
todo ente.64 A mesma idia est presente no ensaio A origem da obra de
arte65 (1935/1936) quando Heidegger pretende tornar acessvel a busca pela
verdade atravs da anlise do templo grego. Nesta considerao o templo
aparece como o espao a partir do qual o deus se manifesta como deus, em
sua imortalidade; o mundo se manifesta como totalidade; e os homens
60 Em caracteres gregos no original.61 Apud: HEIDEGGER, M. op.cit. p. 25. Cf. nota 57.62 Em caracteres gregos no original.63
HEIDEGGER, M. op.cit. p. 27. Cf. nota 57.64 Idem. Ibidem. p. 27.65 Idem. A origem da obra de arte. In:______. op.cit. p. 38-41. Cf. nota 50.
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recebem, pela primeira vez, a perspectiva acerca de si mesmos, ou seja, a
medida de sua mortalidade.
Um segundo momento do desenvolvimento da interpretao desta
estria envolve a nomeao explcita da deusa rtemis, a protetora da cidade
de feso. Se o cuidado dos deuses o melhor cuidado que se pode oferecer
plis, o fato de a deusa em questo tratar-se de rtemis significativo.
Segundo Heidegger a vastido das conexes que se abrem desde o templo
grego o mundo deste povo histrico. E s a partir dele (o templo) e nele
que este (povo histrico, o povo grego) retorna a si mesmo para a realizao
de sua determinao.66 Sendo assim, e sendo Herclito um efsio, seu
pensamento participa desta vastido de conexes que se abrem como
compreenses articuladas a partir da presena do templo de rtemis no
corao da cidade. O pensamento do pensador deve, dest