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Prefácio Este é um livro sem par, sob muitos aspectos. Sobre esses muitos aspectos não posso nem quero desentreter o Leitor-Vedor, pois lhe au- guro e asseguro coisa muito melhor: muito melhor é que ele vá diretamente ao texto (com suas citações) e às ilustrações que lhe são oferecidas pelo Autor, e alimente o diálogo que lhe é proposto. De uma coisa estamos, todos, certos: sua visão cromática do mundo — do mundo objetivo e do seu mundo subjetivo — sairá extremamente enriquecida e (mais) enriquecível, pois este é um livro que, a cada leitura, a cada manuseio, a cada remanuseio, se vai revelando sempre mais pejado de direções, inspirações, sugestões, até mesmo sonhações: uma segunda, uma terceira, uma enésima compulsação deste biblo, desta bíblia, irá desvelando sempre horizontes diferentemente coloridos e permitindo que se adivinhem e intuam outros ainda não ousados nem sonhados. O Autor tem todas as características dos maníacos, dos loucos, dos possessos, dos obsessos, dos obsediados, dos obcecados, dos obsessio- nados — com a imensidão de sua racionalidade buscadora e inquisidora e de sua emoção transfiguradora que o transformam num sábio e artista, às vezes até quase um santo, pois às vezes a miragem e o projeto de que se deixou motivar o levam a orações quase franciscanas de aparente ingenuidade, vale dizer, da pureza que não atemoriza os iluminados. Na prática expositiva atual, este livro sairia normalmente escrito a uma dezena de mãos (e cabeças) de especialistas — pois em verdade este livro recobre setores do conhecimento empírico e teórico que são, hoje em dia, especialidades dentro das especializações, miçrotécnicas dentro da tecnologia, miniartes dentro da arte. Mas nesse caso, este Hvro, quero dizer, esse livro a dez mãos perderia seguramente ante este que aqui está: pois lhe faltaria, àquele, essa unidade de vivência, de visão e de paixão que fazem desta obra — de natureza intrinsecamente enciclopédica - um ensaio marcado por uma aventura intelectual criadora e emocional una. Afinal de contas, seu Autor vem sendo, há vinte e sete anos, só uma coisa: um pintor pensador da cor. Ser obra de um só Autor, que durante sua elaboração foi paralelamente pintor, professor, pesquisador, experi- mentador, aliando prática e teoria, eis o primeiro ponto alto deste ensaio, deste livro. Eis o segundo: quem enveredou pelos ínvios caminhos desta pesquisa intuía, desde o início que o fenômeno e a essência cujas leis buscava eram algo que, tendo substancialidade e fisicaiidade, vigiam sobretudo pelo relativismo sensorial e perceptivo, o que os incluía no reino das coisas humanas, vale dizer, culturais, o que vale também dizer perfectiveis (e imperfectfVeis)^ Aqui também, como em tudo mais que é humano ou disso participe, aqui também o homem se faz a si mesmo, quer dizer, o Homem se ensina e aprende consigo mesmo a "ver" cada vez mais e melhor a cor, as cores, numa progressão que vai até è tomada de consciência da "cor inexistente", esse conceito como que expressamente elaborado pelas insônias inquiridores deste Autor: a cor humana faz o olho humano que faz a cor no processo humano, chegando à percepção e ao domínio das interações cromáticas que geram, em áreas isentas de pigmentação, sua presença, o da cor existente por interação, essa cor 'inexistente". Há um ponto ainda que ó de conveniência ressaltar aqui: o conflito que, de certo modo, se pode exibir entre diferentes conclusões de croma- tólogos, antropólogos e cromatonomistas — e já me esclareço: Ao longo da história da cor e dos homens preocupados com as in- trinsicalidades e extrinsicalidades disso que chamamos cor - homens que são hoje ditos cromatólogos e cromatotócnicos — tem havido desde os que a negam, pura e simplesmente, aos que as reduzem a sete ou a três (em dois pares) cores primárias, aos que lhes asseguram existência na ordem de grandeza de até cem milhões de diferenciais. Isso vem sendo ressaltado, porque — assegura-se — um espectro cromático qualquer pode ser, entre dois pólos, graduado em infinitésimos quantitativos tais que, a haver distinção sensorial e perceptiva, esta se fará por zonas de saltos — do que seria prova a pobreza cromatonímica de todas as línguas de cultura: de fato, os nomes das cores são muito poucos. De fato, os "nomes das cores" são de uma pobreza sem par, se comparados à alegada riqueza de cores ofertada pela natureza ou percebida e/ou criada pelo homem. (Há a( algo afim do fato de que, para que o significante folha só pudesse significar "folha", todas as "folhas" reais deveriam ser iguais, quando se sabe, ao contrário, que em sua fisicalidade intrínseca nunca nenhuma folha foi jamais igual a outra folha,.mesmo que do mesmo pé, da mesma estação, da mesma foliação). Mas entre cromatólogos e cromatonimistas se interpõem, por vezes, certas alegações antropológicas. Antropólogos, seres estranhos, esses, por vezes. Pois que os há que alegam que há povos, ditos primitivos, que saberiam dar nomes a até três mil cores: entra-se, assim, no campo dos cômputos incomparáveis, sobretudo porque, nas línguas documentadas, isto é, com reserva e tradição gráficas, nenhuma há que ofereça mais de 30-40 palavras para designar cores, baixando algumas para

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Prefácio

Este é um livro sem par, sob muitos aspectos. Sobre esses muitos aspectos não posso nem quero desentreter o Leitor-Vedor, pois lhe au- guro e asseguro coisa muito melhor: muito melhor é que ele vá diretamente ao texto (com suas citações) e às ilustrações que lhe são oferecidas pelo Autor, e alimente o diálogo que lhe é proposto. De uma coisa estamos, todos, certos: sua visão cromática do mundo — do mundo obje-tivo e do seu mundo subjetivo — sairá extremamente enriquecida e (mais) enriquecível, pois este é um livro que, a cada leitura, a cada manuseio, a cada remanuseio, se vai revelando sempre mais pejado de direções, inspirações, sugestões, até mesmo sonhações: uma segunda, uma terceira, uma enésima compulsação deste biblo, desta bíblia, irá desvelando sempre horizontes diferentemente coloridos e permitindo que se adivinhem e intuam outros ainda não ousados nem sonhados.

O Autor tem todas as características dos maníacos, dos loucos, dos possessos, dos obsessos, dos obsediados, dos obcecados, dos obsessio- nados — com a imensidão de sua racionalidade buscadora e inquisidora e de sua emoção transfiguradora que o transformam num sábio e artista, às vezes até quase um santo, pois às vezes a miragem e o projeto de que se deixou motivar o levam a orações quase franciscanas de aparente ingenuidade, vale dizer, da pureza que não atemoriza os iluminados.

Na prática expositiva atual, este livro sairia normalmente escrito a uma dezena de mãos (e cabeças) de especialistas — pois em verdade este livro recobre setores do conhecimento empírico e teórico que são, hoje em dia, especialidades dentro das especializações, miçrotécnicas dentro da tecnologia, miniartes dentro da arte. Mas nesse caso, este Hvro, quero dizer, esse livro a dez mãos perderia seguramente ante este que aqui está: pois lhe faltaria, àquele, essa unidade de vivência, de visão e de paixão que fazem desta obra — de natureza intrinsecamente enciclopédica - um ensaio marcado por uma aventura intelectual criadora e emocional una. Afinal de contas, seu Autor vem sendo, há vinte e sete anos, só uma coisa: um pintor pensador da cor. Ser obra de um só Autor, que durante sua elaboração foi paralelamente pintor, professor, pesquisador, experi- mentador, aliando prática e teoria, eis o primeiro ponto alto deste ensaio, deste livro.

Eis o segundo: quem enveredou pelos ínvios caminhos desta pesquisa intuía, desde o início que o fenômeno e a essência cujas leis buscava eram algo que, tendo substancialidade e fisicaiidade, vigiam sobretudo pelo relativismo sensorial e perceptivo, o que os incluía no reino das coisas humanas, vale dizer, culturais, o que vale também dizer perfectiveis (e imperfectfVeis)^ Aqui também, como em tudo mais que é humano ou disso participe, aqui também o homem se faz a si mesmo, quer dizer, o Homem se ensina e aprende consigo mesmo a "ver" cada vez mais e melhor a cor, as cores, numa progressão que vai até è tomada de consciência da "cor inexistente", esse conceito como que expressamente elaborado pelas insônias inquiridores deste Autor: a cor humana faz o olho humano que faz a cor no processo humano, chegando à percepção e ao domínio das interações cromáticas que geram, em áreas isentas de pigmentação, sua presença, o da cor existente por interação, essa cor 'inexistente".

Há um ponto ainda que ó de conveniência ressaltar aqui: o conflito que, de certo modo, se pode exibir entre diferentes conclusões de croma- tólogos, antropólogos e cromatonomistas — e já me esclareço:

Ao longo da história da cor e dos homens preocupados com as in- trinsicalidades e extrinsicalidades disso que chamamos cor - homens que são hoje ditos cromatólogos e cromatotócnicos — tem havido desde os que a negam, pura e simplesmente, aos que as reduzem a sete ou a três (em dois pares) cores primárias, aos que lhes asseguram existência na ordem de grandeza de até cem milhões de diferenciais. Isso vem sendo ressaltado, porque — assegura-se — um espectro cromático qualquer pode ser, entre dois pólos, graduado em infinitésimos quantitativos tais que, a haver distinção sensorial e perceptiva, esta se fará por zonas de saltos — do que seria prova a pobreza cromatonímica de todas as línguas de cultura: de fato, os nomes das cores são muito poucos. De fato, os "nomes das cores" são de uma pobreza sem par, se comparados à alegada riqueza de cores ofertada pela natureza ou percebida e/ou criada pelo homem. (Há a( algo afim do fato de que, para que o significante folha só pudesse significar "folha", todas as "folhas" reais deveriam ser iguais, quando se sabe, ao contrário, que em sua fisicalidade intrínseca nunca nenhuma folha foi jamais igual a outra folha,.mesmo que do mesmo pé, da mesma estação, da mesma foliação).

Mas entre cromatólogos e cromatonimistas se interpõem, por vezes, certas alegações antropológicas. Antropólogos, seres estranhos, esses, por vezes. Pois que os há que alegam que há povos, ditos primitivos, que saberiam dar nomes a até três mil cores: entra-se, assim, no campo dos cômputos incomparáveis, sobretudo porque, nas línguas documentadas, isto é, com reserva e tradição gráficas, nenhuma há que ofereça mais de 30-40 palavras para designar cores, baixando algumas para "confusões" hoje conspícuas, como a do grego para o que chamamos "verde" e "azul", confusão que também existe entre povos cultos modernos — o escocês, por exemplo. Estar-se-ia, repito; na área de comparações feitas sob critérios díspares, É que é absolutamente improvável que exista, uma língua que use de três mil lexemas para diferenciar nominalmente as cores. Leve-se a esse respeito em conta certas analogias: no Brasil, por exemplo, deve haver algo como sessenta mil espécies de animais e não conhecemos mais de três mil nomes substantivos comuns vulgares para designá-los (o que é "normal" e impõe a nomenclatura científica da zoologia para todas as partes do mundo).

Mas a pobreza verbal não é apenas para a cromática. É, comparativamente, também do campo das formas e dos volumes. Com efeito, se se deixa de

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lado a nomenclatura científica da geometria e da matemática, para as formas e volumes ditos uni-, bi- ou tridimensionais; vê-se logo que os

nomes comuns populares são extremamente poucos, não apenas em por-tuguês, mas (provavelmente) em quaisquer línguas. Assim, podemos falar em ponto, linha, quadrado, redondo, bicudo, estrelado, chato, liso (estes já

da área táctil), por aí, para logo cairmos no cúbico, cônico, piramidal, romboédrico, dodecaédrico e equivalentes, eruditos e matemáticos. Há,

isso não obstante, uma pobreza também aparente,, pois imediatamente se f

enseja um campo de derivação de nomes específicos: por exemplo, para o corpo humano, há, potencialmente derivados em -udo que lembram forças (enfáticas) parecidas com as correspondentes do corpo humano: um prego cabeçudo, uma xícara orelhuda, e narigudo, e queixudo, e olhudo, e pescoçudo, peitudo, ancudo, coxudo, e fiquemos por aí (pois alguns se prestam mais se pensados no feminino).

Esta digressão visa a mostrar que o Autor — embora adentrando-se na sua seara com alma aparentemente enciclopédica — na realidade era animado por outra alma, por sua alma cromática, aceitando que sua temática tivesse campos de manifestação e cognição que não seriam enfrentados por ele, pois exigiriam outro tanto da vida para serem levados a cabo. Esperemos, assim, que apareça entre nós um estudioso da croma- tonímia que venha a ficar à altura do cromatólogo (e em grande parte cromatotécnico) que é Israel Pedrosa, que a tudo isso alia a sua personalidade de Pintor — pura e puramente.

E, agora sim, louvemos o que é de louvar. Eu, pessoalmente, estou fascinado com este Da cor à cor inexistente: não me proponho a postura de árbitro capaz de julgar tudo o que este ensaio oferece, pois, embora luminosamente clara a sua linguagem e exposição, nem sempre minha formação prévia me dava os requisitos prévios para assimilar toda a carga de informação que para mim há neste ensaio. De outro lado, porém, há um sem-número de aspectos, aqui, que degusto com matização, pois me creio qualificado para fazê-lo, por meu passado e por meu presente. Ora, isso me faz suspeitar que ocorrerá com todos os leitores deste livro, de forma parecida, o que dá bem a medida de sua importância.

E, então, é o espanto. Mas espanto que é grato e comove, pois poucos autores há que mereçam tanto quanto este. Pois que outros, com menor obstinação, se afundaram no autismo ou no solilóquio ou em formas piores de incomunicação. Entretanto, Israel Pedrosa não só superou o desafio que se propôs já faz tantos anos, senão que o transformou em fonte luminosa para todos nós, fonte de saber e conhecer e praticar e amar as cores, o que por si só é bastante para que todos lhe sejamos gratos para sempre.

E fico-me nisto, que não é louvor, mas agradecimento.Mas há um pormenor neste livro em que não quis deter-me, a fim de não me exceder,

pormenor da maior importância - veja-se que o menor ó maior, às vezes. Como coisa industrial, como produto gráfico, como artesanato, tipológico, cromático, litográfico, diagramático, este é um livro que honra a tipografia e a editoração brasileira: Israel Pedrosa merecia-o. Ficamos-lhe devendo isso também.

Rio de Janeiro, 10 de abril de 1978 ANTONIO HOUAISS

ISRAEL PEDROSA nasceu a 18 de abril de 1926, em Alto Jequitibá (Presidente Soares),'Minas Gerais.

Aos 18 anos seguiu como voluntário, com a FEB, para a Itália. Em Paris. 1948, foi eleito Vice-Presidente da Federação Mundial dos Ex-Combatentes, um dos órgãos não governamentais da UNESCO.

Discípulo cje Cândido Portinari, estudou ainda na Escola Superior de Belas Artes, de Paris (1948-1950).

A partir de 1947 realizou várias exposições individuais e participou de inúmeras mostras coletivas, no Brasil e no exterior. Sua pintura encontra cada vez mais maior ressonância nacional e internacional. Tem trabalhos nos acervos do Museu de Arte Assis Chateaubriand, de São Paulo (MASP), dos Museus de Arte Moderna do Rio e de São Paulo.

Fundador da Cadeira de História da Arte na Universidade Federal Fluminense (1963), exerceu as funções de Coordenador dos Cursos Básicos, e de Vice-Diretor do Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF (1969-1972). Foi titular da Cadeira de Percepção e Comunicação Visusias da Faculdade de Formação de Professores, do CEN - da Fundação Brasileira de Educação (1974-1976).

Há 29 anos iniciou estudos teórico-práticos relativos às manifestações das cores de contraste, chegando em 1967 às conclusões básicas do domínio do fenômeno que denominou cor inexistente.

Com um capítulo deste livro, O Esboço de uma Teoria das Cores, demonstrando a influência das idéias de Goethe como fator decisivo para a descoberta do domínio do fenômeno da cor

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inexistente, foi um dos vencedores do "Prêmio Thomas Mann", instituído pela Embaixada da República Federal da Alemanha, sob os auspícios da União Brasileira de Escritores. O trabalho foi vertido para o alemão sob o título: Die Aktualitaet der Goetheschen Farbtheorie und die Zeitgenoessische Darstellende Kunst.

Em razão do prêmio, viajou à Europa como hóspede do Governo alemão, realizando palestras e demonstrações de seus trabalhos na Academia de Belas Artes de Munique; na Casa de Goethe, em Frankfurt; na Escola Superior de Gestalt, em Offenbach; no Arquivo da Documenta de Kassel, e na Universidade belga de Louvain.

ISARAEL PEDROSA é o autor do verbete monográfico Cor, da Enciclopédia Mirador Internacional (Britânica do Brasil -1975).

Em novembro de 1977, lançou o livro de fundamentação teórica de sua obra: Da Cor à Cor Inexistente. O livro teve calorosa acolhida por parte do público e da crítica, sendo indicado pelo Itamarati para representar o Brasil no Salão do Livro de Montreal, em 1978.

Recentemente, o Departamento dos Cursos de Pós-Gradução da Escuela Nacional de Artes Plásticas da Universidad Autônoma de México, solicitou permissão ao autor para realizar a edição em língua espanhola do livro: Da Cor à Cor Inexistente. Também, uma versão do livro, em inglês, está sendo preparada pelo tradutor Richar Spock.

Prefácio da 1ª edição

Como fruto de um acúmulo multimilenar de conhecimentos, vivemos o mais colorido dos séculos de que se tem notícia, prelúdio de um futuro cada vez mais luminoso e de desenvolvimento sem precedentes de novos códigos de expressão e comunicação visuais. Em nossos dias a cor invadiu todos os campos da atividade humana, e além de seu poder encantador, com suas sínteses luminosas, tornou-se o meio insubstituível de perscrutação, avaliação e mensuração do Universo, desde as partículas infinitesimais reveladas pelos poderosos microscópios eletrônicos até as vastidões cósmicas cujas grandezas suspeitadas pertencem ao puro domínio das equações matemáticas.

O desejo de Paul Klee em ser apenas o primitivo de uma nova era parece que já começa a ser pressentido por muitos espíritos que vêem como manifestação de sua intuição a busca incessante de compreensão da realidade das coisas invisíveis e alheias aos nossos sentidos, almejando ampliar sempre mais o domínio estético, até a essência da origem dos elementos que geram as formas ou as idéias do mundo dos objetos naturais.

Em meio a uma variedade tão grande de elementos e assuntos de diferentes áreas do conhecimento, procurei a forma mais acessível ao maior número de leitores, para o entendimento dos fenômenos básicos de que tratam estes subsídios para uma história da teoria das cores. Por isso foi incluída uma introdução referente a certas particularidades da cor, da luz e da visão que, pela abordagem histórica e finalidade estética, poderá despertar interesse mesmo às pessoas de formação científica conhecedoras desses fenômenos, quando tratados em suas esferas de saber.

Como síntese geral, o objetivo deste trabalho não é provar que a harmonia das cores depende das relações estabelecidas entre elas, nem que as cores se transformam em presença umas das outras. Isto já vem sendo demonstrado desde Leonardo da Vinci. Pretende, sobretudo, fazer avançar o conhecimento lógico para exercer de forma integral o controle sobre essas transformações das cores (mutações cromáticas), base de toda a harmonia cromática, extraindo daí a variável dose desejada de lirismo existente na pureza da linguagem íntima da cor. 0 que está além dos simples meios materiais empregados: a outra cor implícita no corpo material da cor, a cor que é a alma e essência da cor, e que, no entanto, é ao mesmo tempo a sua aura — o além-da-cor.Com propósitos os mais diversos, algumas vezes interpelam-me sobre a cor inexistente e os limites entre os domínios da arte e da ciência. Respondo invariavelmente que, a duras penas, a cultura avança, e faz surgir as premissas diferenciadoras de um novo estágio de fruição estética, mis turando a outros ingredientes a alegria do conhecimento. Como na história do circo chinês: "O mágico faz a mágica e o público aplaude. Mas o público aplaude mais ainda quando ele explica como fez a mágica."

Nos períodos florescentes ao longo da História, arte e ciência estiveram sempre juntas, e por vezes ligadas indissoluvelmente, num enriquecimento e embelezamento recíproco. Henri

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Poincaré costumava dizer que, numa equação matemática, o que mais o surpreendia não era a verdade expressa, e sim a beleza.

Este livro é uma história da cor, mas é também, de certo modo, a história de um pintor que um dia se viu envolvido por uma visão, e a partir daí o objetivo de sua vida não foi mais que uma incessante busca para explicar o que vira. E no inefável prazer da procura diluíam-se mais e mais as fronteiras entre os dados estéticos e científicos que estavam ao seu alcance.

Numa tarde de fevereiro de 1951, ao çair do dia, ' nessa hora em que as cores se tornam incomparavelmente brilhantes" por ação de contrastes entre as luzes que se atenuam e as sombras que se intensificam, minha atenção foi atraída pela beleza da relação de várias gamas de amarelo: um barranco cortado em desmonte para abertura de ruas num subúrbio do Rio, gramas queimadas pelo sol e arbustos calcinados.

Extasiado pelo efeito da harmonia dos tons que iam do amarelo puro à coloração da terra-de-sombra queimada, permaneci algum tempo a contemplar a paisagem. Uma mulher estendeu no varal três lençóis brancos, precisamente sob meu campo visual, a uns cinqüenta metros de dis-tância. Em dado momento, os lençóis e alguns papéis que se encontravam no chão pareceram-me banhados de um violeta intenso, sem que houvesse nenhum elemento dessa cor que pudesse influenciá-los, nem nas proximidades, nem na atmosfera, pois o azul do céu era límpido.

Tive naquele instante a imediata intuição de que se tratava de um fenômeno físico e não de uma ilusão óptica, e que se eu conseguisse reproduzir num quadro as mesmas relações cromáticas, surgiria sobre o fundo branco da tela uma cor inexistente (que não fosse pintada), quimi- camente sem suporte.

À medida que buscava novas relações que pudessem conduzir-me ao domínio do fenômeno da cor inexistente, ia descobrindo outro sentido na pintura, e cada vez maior atração pela obra dos grandes coloristas como Leonardo, Vermeer, Veronese, Turner, Delacroix, Van Gogh, Malevitch, Klee, Delaunay e Portinari.

As teorias das cores de Goethe constituíram os elementos essenciais ao preparo de meu espírito no sentido de outras possibilidades da utilização cromática para além do emprego mecânico da cor. A rigor, foram elas que me abriram as portas para o domínio do fenômeno da cor inexistente.

Tornava-se cada vez mais claro para mim que, ao lado da manipulação dos elementos da prática pictórica, havia uma série de preocupações que formava uma nítida linha de desenvolvimento da pintura, envolvendo um grupo crescente de grandes artistas nos últimos séculos. Também começava a tomar consciência de que, para fazer evoluir sua própria ciência, a pintura teria obrigatoriamente que expressar de alguma maneira os elementos mais dinâmicos da cultura de seu tempo.

Durante os anos de estudo em busca do que se tornara obsessão em minha vida, crescia em mim a certeza da necessidade de integração na área estética dos fundamentos básicos das Ópticas Fisiológica, Física e Físico-química.

Sendo a cor fundamentalmente uma sensação que origina todas as manifestações perceptivas do mundo cromático, era natural que com o desenvolvimento da Psicologia, em nossos dias, se ampliasse o mais promissor dos campos de investigação cromática: a mente humana. Mas isto não significa diminuição de interesse pelas extraordinárias conquistas oriundas de pesquisas em campos científicos como os da Física atômica, da Hélio-física, da Física coloidal e principalmente da Física teórica, tornando mais claros inúmeros aspectos dos dados objetivos que geram os estímulos visuais.

Em meados de 1967, dezesseis anos depois de iniciadas as primeiras tentativas, reuni uma série de observações que, tomadas em conjunto, revelavam novas características das cores de contraste. Sobre um fundo branco, ou neutro homogêneo, sem suporte químico, obtive a coloração complementar (inexistente) da cor dominante pintada, perceptível ao primeiro contato visual, sem necessidade de saturação retiniana, e detec- tável por qualquer câmara fotográfica.

Com essas experiências consegui provar o acerto de Goethe sobre o caráter mutável e relativo dos fenômenos cromáticos, bem como a originalidade de sua intuição em relação à Física de seu tempo, dominada por rígidos princípios mecanicistas.

A Goethe não escaparam as observações de Leonardo referentes à cor, baseadas todas elas em princípios nitidamente relativistas.

Para a aplicação estética da cor, a linha de desenvolvimento das idéias de Leonardo, passando por Kepler, Descartes e Goethe, é mais fértil em resultados práticos do que a enunciada por Newton.

Os fundamentos do domínio do fenômeno da cor inexistente, apoiando-se nos elementos essenciais enunciados por Leonardo, Scherffer, Runford, Haüy, Goethe, Maxwell e Einstein, diferem em vários pontos das conclusões emitidas pelo químico francês Michel-Eugène Chevreul em seu célebre livro Da Lei do Contraste Simultâneo das Cores.

Em experiências realizadas nos últimos vinte e seis anos, verifiquei que não corresponde à realidade a afirmação de que uma cor sobre fundo branco produz sempre, e da mesma forma, em sua periferia, uma coloração complementar.

Variando a qualidade, a quantidade, a forma e o posicionamento das áreas coloridas em termos de organização e relatividade, uma determinada cor pode produzir a sensação de sua cor complementar em diversos graus de intensidade. Pode produzir a sensação de outras gamas de sua própria coloração, ou ainda, de forma mais surpreendente: a própria cor pode transformar-se em sua cor contrária (cor complementar)!

Escapou a Chevreul, como escapara a Newton, que os fenômenos cromáticos oriundos das cores de superfície são regidos pelos índices de refletância das substâncias coloridas (cor-pigmento), que variam enorme- mente, indo de apenas 5,23%, num violeta com 42,5% de pureza e 564,5c m/i (milimícrons) de comprimento de onda (raio em diagrama de cores CIE), até 68,45%, num amarelo com 77% de pureza e 573,2 m/i de comprimento de onda. Por esta razão, as cores do espectro não produzem suas complementares com o mesmo índice de visibilidade, nem os discos de Newton pintados com cor-pigmento, postos em rotação, produzem o branco almejado.

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Além da análise da diversidade na composição atômica que caracteriza as cores-pigmento no fenômeno cromático por refletância, ocasionado pela absorção, reflexão ou refração dos raios luminosos, é de primordial importância considerar a qualidade da composição tricromática da luz incidente.

Tais observações referentes ao conjunto destes elementos, ao criar a possibilidade do domínio sobre o fenômeno da cor inexistente, permitiram também a sistematização dos dados que influem nas cores induzidas e nas relações gerais que regem as mutações cromáticas.

Experiências feitas com mais de dez mil pessoas, catalogadas em grupos por sexo e idade, comprovaram que a cor inexistente é percebida com maior intensidade pelas crianças de ambos os sexos, até 10 anos, em seguida pelas mulheres e, finalmente, pelos homens.

Mesmo os daltônicos percebem o fenômeno. Mas onde o Observador Padrão detecta a cor inexistente eles vêem sempre um cinza, variável de acordo com a intensidade da cor inexistente, ou o grau da distorção daltônica.

A busca empreendida durante todos esses anos transcorreu sempre numa atmosfera de sonho, alimentada pela certeza de que o caminho aberto para trazer às áreas da pintura cores nunca antes conscientizadas seria irreversível.

Chamar a atenção de alguém para estes fenômenos ô, ao mesmo tempo, elevar-lhe e enriquecer-lhe o mundo das percepções, porque a partir daí não mais poderá fugir ao fascínio das manifestações superiores e ultra-sensíveis das vibrações cromáticas, passando a percebê-las freqüentemente na vida cotidiana.

Sabido que no exercício de suas funções os órgãos humanos se desenvolvem para atender a certas exigências da adaptação ao meio, à medida que incluímos novos elementos intelectuais na ação da percepção visual enriquecemos nossa capacidade perceptiva numa maior integração no universo cromático.

Isto foi o que me ocorreu dizer â guisa de apresentação do livro que acabo de «preparar. Sobre sua longa germinação, muito mais poderia ser dito.

Olhando para o alto, não vi os tropeços ou abismos nos tormentosos embates da vida, pelos ásperos caminhos percorridos.

Cercado por seres exemplares, não percebi o afastamento da juventude, nem o peso dos anos. Da longa viagem, o que ficou foi apenas a grata certeza das maravilhosas possibilidades humanas para um infinito aperfeiçoamento, como característica dominante da espécie.

Ao lançar este trabalho, torno público o meu enternecido agradecimento aos queridos amigos Antônio de Pádua Ramos Mello, Jacob Bernardo Klintowitz, Paulo Pèdrosa de Vasconcellos e Alberto Passos Guimarães pelo apoio e compreensão com que me ajudaram a vencer dificuldades das mais variadas ordens durante a elaboração deste livro que, nos momentos de desânimo, já me parecia destinado a ser obra póstuma, ou irremediavelmente inédita.

Israel Pedrosa Setembro de 1977

1Introdução

A Cor"No momento, meu espírito está inteiramente tomado pelas leis das cores. Ah, se elas nos tivessem sido ensinadas em nossa juventude!"

Van GoghA cor não tem existência material: é apenas sensação produzida por certas organizações ner-

vosas sob a ação da luz — mais precisamente, é a sensação provocada pela ação da luz sobre o órgão da visão. Seu aparecimento está condicionado, portanto, à existência de dois elementos: a

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luz (objeto físico, agindo como estímulo) e o olho (aparelho receptor, funcionando como de- cifrador do fluxo luminoso, decompondo-o ou alterando-o através da função seletora da retina).

Em vários idiomas existem vocábulos precisos para diferenciar a sensação cor da característica luminosa (estímulo) que a provoca. Em inglês, a sensaçãoé colour vision e o estímulo, hue. Em francês, teinte designa o estímulo, qualifi- cando-o, em oposição ao dado subjetivo couleur. Em português, o melhor termo para essa característica do estímulo é matiz, diferenciando-a da sensação denominada cor. Em linguagem corrente, em quase todos os idiomas, a palavra cor de-signa tanto a percepção do fenômeno (sensação) como as radiações luminosas diretas ou as refletidas por determinados corpos (matiz ou coloração) que o provocam.ESTÍMULOS

Os estímulos que causam as sensações cro- máticas estão divididos em dois grupos: o das co- res-luz e o das cores-pigmento.

Cor-luz, ou luz colorida, é a radiação luminosa visível que tem como síntese aditiva a luz branca. Sua melhor expressão ó a luz solar, por reunir de,forma equilibrada todos os matizes existentes na natureza. As faixas coloridas que compõem o espectro solar, quando tomadas iso-ladamente, uma a uma, denominam-se luzes monocromáticas.

Cor-pigmento é a substância material que, conforme sua natureza, absorve, refrata e reflete os caios luminosos componentes da luz que se difunde sobre ela. É a qualidade da luz refletida que determina a sua denominação. O que faz com que chamemos um corpo de verde é sua capacidade de absorver quase todos os raios da luz branca incidente, refletindo para nossos olhos apenas a totalidade dos verdes. Se o corpo verde absorvesse integralmente as outras faixas coloridas da luz (azul, vermelho e os raios derivados dessas), e o mesmo ocorresse com o vermelho, absorvendo as faixas verdes e azuis, e com o azul, absorvendo a totalidade dos raios vermelhos e verdes, a síntese subtrativa seria o preto. Como isso não ocorre, a mistura das cores- pigmento produz um cinza escuro, chamado cir>- za-neutro, por encontrar-se eqúidistante das co-res que lhe dão origem.

Quem primeiro explicou cientificamente a coloração dos corpos foi Newton, denominando- a de cores permanentes dos corpos naturais. Suas experiências basearam-se na observação do cina- bre (vermelhâo) e do azul-ultramarino, iluminados inicialmente por diferentes luzes homogêneas, e depois por luzes compostas. Daí concluiu que os corpos aparecem com diferentes cores que lhes são próprias, sob a luz branca, porque refletem algumas de suas faixas coloridas mais fortemente do que outras.Comumente, chamamos cores-pigmento as substâncias corantes que fazem parte do grupo das cores químicas. Segundo Goethe, cores químicas "são as que podemos criar, fixar em maior ou menor grau e exaltar em determinados objetos e aquelas a que atribuímos uma propriedade imanente. Em geral se caracterizam por sua persistência. Em razão do que antecede, em outros tempos designavam-se as cores químicas com epítetos diversos: colores propíi, corporei, ma- teriales, veri permanentes, fixi."

PERCEPÇÃO DA CORO fenômeno da percepção da cor é bastante mais complexo que o da sensação. Se neste en-

tram apenas os elementos físico (luz) e fisiológico (o olho), naquele entram, além dos elementos citados, os dados psicológicos que alteram substancialmente a qualidade do que se vê. Exemplificando, podemos citar o fato de um lençol branco nos parecer sempre branco, tanto sob a luz incandescente amarela como sob a luz violácea de mercúrio, quando em realidade ele é tão amarelo quanto a luz incandescente, quando iluminado por ela, como tão violáceo quanto a luz de mercúrio que o ilumina.

Na maioria das vezes não atentamos para a diferença de coloração e continuamos a conside-rar branco o^ lençol, por uma codificação do cérebro, que incorpora aos objetos, como uma de suas características físicas, a cor apresentada por eles quando iluminados pela luz solar, transformando em valor subjetivo as cores permanentes dos corpos naturais.

Na percepção distinguem-se três características principais que correspondem aos parâmetros básicos da cor: matiz (comprimento de onda), valor (luminosidade ou brilho) e croma (saturação ou pureza da cor).

CLASSIFICAÇÃO DAS CORESApesar da identidade básica de funcionamento dos elementos no ato de provocar a sensação

colorida (os objetos físicos estimulando o órgão visual), a cor apresenta uma infinidade de varie-dades, geradas por particularidades dos estímulos, dizendo mais respeito à percepção do que à sensação. Guiados pelos dados perceptivos, os estudiosos do assunto puderam iniciar um levan-tamento de classificação e nomenclatura das cores, segundo suas características e formas de manifestação. é o que resumidamente se segue.

Cor geratriz ou primária é cada uma das três cores indecomponíveis que, misturadas em pro-porções variáveis, produzem todas as cores do espectro. Para os que trabalham com cor-luz, as primárias são: vermelho, verde e azul-violetado. A mistura dessas três luzes coloridas produz o

branco, denominando-se o fenômeno síntese aditiva (ilust. 2). Para o químico, o artista e todos os que trabalham com substâncias corantes opacas (cores-pigmento, às vezes denominadas cores de

refletância ou cores-tinta) as cores indecomponíveis são o vermelho, o amarelo e o azul (ilust. 3).

Desde as experiências de Le Blond em 1730, essas cores vêm sendo consideradas primárias, re- duzindo-se assim para três as quatro cores primárias de Leonardo da Vinci (vermelho, amarelo, verde e azul). Com a tríade de cores-pigmento opacas o violeta só é obtido pela estimulação si-multânea de dois grupos de cones da retina. Para tal estimulação os dois processos mais conheci -dos são: primeiro, pela mistura óptica de luzes refletidas por pequenos pontos azuis e vermelhos colocados, bem próximos uns dos outros nos trabalhos de pintura e artes gráficas (ilust 6), e se-

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gundo, pela mistura de luzes coloridas refletidas pelo vermelho e azul pigmentários, em discos ro-tativos em movimento (ilust. 5).

A mistura das cores-pigmento vermelho, amarelo e azul produz o cinza-neutro por síntese subtrativa.

Nas artes gráficas, pintura em aquarela e para todos os que utilizam cor-pigmento transparen-te, ou por transparência em retículas, as primárias são o magenta, o amarelo e o ciano. A mistura dessas três cores também produz o cinza- neutro por síntese subtrativa (ilust 4). A superposição de filtros coloridos magenta, amarelo e ciano, interceptando a luz branca, produz igualmente o cinza-neutro.

Cor complementar — Desde a época de Newton, adota-se em Física a formulação de que cores complementares são aquelas cuja mistura produz o branco. Segundo Helmholtz, excluin- do-se o verde puro, todas as demais cores simples são complementares de uma outra cor simples, formando os seguintes pares: vermelho e azul-es- verdeado, amarelo e anil, azul e laranja. Em Física, cores complementares significam par de cores, complementando uma a outra.

Cor secundária é a cor formada em equilíbrio óptico por duas cores primárias.Cor terciária é a intermediária entre uma cor secundária e qualquer das duas primárias que lhe

dão origem.Cores quentes são o vermelho e o amarelo, e as demais cores em que eles predominem.Cores frias são o azul e o verde, bem como as outras cores predominadas por eles. Os verdes,

violáceos, carmins e uma infinidade de tons poderão ser classificados como cores frias ou como cores quentes, dependendo da percentagem de azuis, vermelhos e amarelos de suas composições. Além disso, uma cor tanto poderá parecer fria como quente, dependendo da relação estabelecida entre ela e as demais cores de determinada gama cromática. Um verde médio, numa escala de amarelos e vermelhos, parecerá frio. O mesmo verde, frente a vários azuis, parecerá quente.

Cor natural é a coloração existente na natureza. Para a reprodução aproximada de sua infinita variedade, na impressão gráfica, além das cores primárias, são necessários o branco e o preto.

Cor aparente ou acidental é a cor variável apresentada por um objeto segundo a propriedade da luz que o envolve ou a influência de outras cores próximas.

Cor induzida é a coloração acidental de que se tinge uma cor sob a influência de uma cor in- dutora. Nessa indução reside a essência da beleza cromática. Em certa medida, podemos classificar como indução as manifestações dos contrastes simultâneos de cores, das mutações cromáticas e do fenômeno da cor inexistente.

Cor retiniana éa cor caracterizada pela maior participação da retina em sua produção, transmi-tindo ao cérebro impressões que retêm, alteram, sintetizam ou totalizam o efeito dos estímulos recebidos. São cores retinianas as imagens posteriores, as misturas ópticas, os efeitos de deslum-bramento e as sensações coloridas produzidas por pressão à base do globo ocular, etc.

Cor irisada é a que apresenta fulgurações análogas às cores espectrais, comuns nas asas de borboletas e nas refrações de um modo geral.

Cor dominante — a que ocupa a maior área da escala em determinada relação cromática.Cor local — conjunto de dados e circunstâncias acessórios que, numa obra de arte, caracteriza

o lugar e o tempo.Cor crua — a cor pura, que não apresenta gradações.Cor falsa — a que destoa do conjunto.Cor cambiante — a que varia segundo o ângulo em que se coloca o observador em relação ao

objeto colorido.Cor inexistente é a cor complementar formada de entrechoques de tonalidades de uma cor

levadas ao paroxismo por ação de contrastes. Foio nome dado pelo autor deste livro à aplicação objetiva que fez, em trabalhos mostrados em

agosto, setembro e outubro de 1967 (conclusões básicas de estudos desenvolvidos a partir de 1951), do efeito da percepção visual de cores denominadas "cores fisiológicas" por Goethe, e de cores de contraste pela Comission Internacionale de 1'Éclairage (Comissão Internacional de Ilumi-nação). O elemento novo é a possibilidade de controlar tecnicamente o fenômeno e enquadrá- lo em bases práticas, de acordo com a distância em que se coloque o observador e os vários tons de cor da pintura observada, a qual deve também obedecer a padrões de forma preestabelecidos. 0 domínio do fenômeno da cor inexistente possibilitou a revelação da essência da harmonia cro-mática, a sistematização dos dados que influem no surgimento das cores induzidas e as relações gerais que determinam as mutações cromáticas.

Colorido, diz-se da distribuição das cores na natureza. Efeito da aplicação de cor-pigmento (ou cor tinta) sobre uma superfície.

Cor dióptrica — a produzida pela dispersão da luz sobre os vários corpos refratores: prisma, lâminas delgadas (bolhas de sabão, manchas de óleo sobre a água), etc.

Cor catóptrica, ou simplesmente cor, é a coloração revelada na superfície dos corpos opacos pela absorção e reflexão dos raios luminosos incidentes.

Cor paróptrica — a que aparece na superfície dos corpos ocasionalmente, quase sempre de maneira fugaz, mas às vezes, também, com existência mais duradoura, É uma das formas das cores aparentes ou acidentais.

Cor endóptrica - a que surge no interior de determinados corpos transparentes, a exemplo do efeito do espato-de-islândia, ligada a fenômenos de birrefringência.

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A Luz"Dentre os estudos das causas e efeitos naturais, o da luz é o que tem mais fervorosos cultores."

Leonardo da VinciO elemento determinante para o aparecimento da cor é a luz. O próprio olho, que a capta, é

fruto de sua ação, ao longo da evolução da espécie.Para aprofundar as pesquisas das particularidades da luz, a Física divide seu estudo em duas

disciplinas distintas: a primeira, Óptica Geométrica, trata da trajetória dos raios luminosos in-dependentemente da natureza da luz; a segunda. Óptica Física, busca a interpretação dos fenômenos que estão associados à própria natureza da luz, fundamentada nas radiações eletromagnéticas.

Até o século XVII definia-se a luz como sendo "o que o nosso olho vê, e o que causa as sen-sações visuais". Ainda hoje, certos compêndios de Física a definem "como a radiação que pode ser percebida pelos órgãos visuais". Tal conceito revela-se insuficiente por apoiar-se exclusivamente no sentido humano para definir um fenômeno cujas manifestações ultrapassam nossas possibili-dades sensitivas.

Depois das experiências de Herschell sobre as propriedades dos raios infravermelhos, que, passando sem interrupção do limite extremo do vermelho visível correspondente a 750, vão até 300.000 milimícrons, a ciência teria de considerá-los como raios luminosos, uma vez que possuem todas as características da luz, embora os nossos olhos não tenham capacidade para percebê-los.

O mesmo ocorre com os raios ultravioleta (faixa de 400 a 10 milimícrons), também invisíveis, mas perfeitamente detectáveis e capazes de fazer com que vários corpos sob sua ação projetem luzes visíveis, com radiações luminescentes.

Apesar de sua distância do espectro visível, os raios de Roentgen e os raios gama têm todasas condições para serem incluídos entre os raios luminosos. Os exemplos citados demonstram

claramente que a visibilidade não é condição suficiente para a definição da luz, podendo-se mesmo dizer que nem todas as luzes são visíveis e que nem todas as sensações luminosas são provocadas pela luz. A experiência mostra que, na escuridão, uma simples pressão no olho à altura da raiz do nariz faz surgir a sensação de formas luminosas. Muitas das cores patológicas e das aberrações cromáticas não têm relação direta com a luz, sendo fruto exclusivo de funções e de dis- funções orgânicas.

A luz tem sua existência condicionada pela matéria. O mundo material apresenta-se-nos sob duas formas principais: substância e luz. Modernamente, na busca de maiores conhecimentos da gênese e desenvolvimento dessas duas formas, introduziu-se nas pesquisas físicas a concepção da antimatéria como instrumento teórico da eletro- dinâmica quântica. Por mais variadas que sejam as aparências do mundo material, as substâncias que o compõem são constituídas por elétrons (portadores de carga negativa), prótons (com carga positiva) e nêutrons (desprovidos de carga).

A luz, forma de expressão da matéria, é radiação eletromagnética, emitida pela substância. A possibilidade de transformação da substância em luz desde muito era intuída, devido àjnanei- ra evidente como os corpos em combustão produzem luz, ao mesmo tempo em que se consomem, mas a constatação da possibilidade da transformação da luz em substância é uma conquista do nosso século. A partir das premissas teóricas do físico inglês Paul Dirac (Prêmio No- bel de Física, 1933), há algumas décadas atrás foi realizada experimentalmente a transformação de um raio gama (raio luminoso) em duas partículas substanciais infinitamente pequenas (um elétron e um posítron).

Emitir luz é uma propriedade de todos os corpos quentes, isto é. dos que têm temperatura superior a zero absoluto, é chamada zero absoluto a temperatura aproximada de -273° C. 0 que eqüivale a dizer que todos os corpos que nos cercam emitem luz. Quando fortemente aquecidos. sua luz contém grande número de raios visíveis; "se fracamente aquecidos, emitem apenas raios infravermelhos, invisíveis. Em tais casos, a energia das moléculas em movimento transforma-se em luz e, inversamente, a luz é absorvida pelas moléculas num permanente fluxo de emissão e absorção de quanta inteiros. Um corpo só deixa de emitir luz quando se consegue deter o movimento de suas partículas. Tal imobilidade o leva a baixar de temperatura, atingindo o zero absoluto.EMISSÃO, PROPAGAÇÃO E NATUREZA DA LUZ

Os babilônios já conheciam a propagação re- tilínea da luz, mas coube à Escola de Platão teo -rizar o conhecimento herdado, possibilitando a descoberta da igualdade dos ângulos de incidên-cia e de reflexão, criando a base da Óptica Geométrica que impulsionaria todo o campo do co-nhecimento dos dados visuais, durante mais de dois mil anos. Modificações substanciais no es-tudo da luz só iriam ocorrer com os trabalhos de Descartes e Newton, principalmente do último, que inauguraria o caminho da óptica Física.

Durante muito tempo acreditou-se serem ir- reconciliáveis a teoria da emissão de Newton e os princípios da teoria ondulatória levantados por Huygens, Young e Fresnel. Com as descobertas de Maxwell e Hertz, provando ser a luz radiação eletromagnética, pensou-se de início na derrocada definitiva das teorias de Newton. No entanto, os trabalhos do físico alemão Max Planck (Prêmio Nobel de Física, 1918), realizados no início do século, iriam reabrir a questão, ao provar que a luz é emitida e absorvida em porções de energia perfeitamente definidas, denominadas quanta (ou fótons). A teoria newtoniana, baseada na emissão corpuscular, recebeu novo alento ao constatar-se que a luz se propaga por quanta inteiros, isto é, por corpúsculos.

Com o nível atual das ciências, chegou-se à conclusão de que as teorias de Maxwell e Hertz não excluíam, obrigatoriamente, as de Newton e de Planck; ao contrário, em essência, somavam- se e revelavam novos aspectos do fenômeno luz.

Desta nova visão surgiram os estudos paralelos das ópticas ondulatória e corpuscular. Na óptica ondulatória a luz é definida como resulta

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do de vibrações de um campo magnético perpendicularmente à direção de propagação em que sua energia apresenta uma distribuição contínua no espaço. Na óptica corpuscular ela é considerada como formada de fótons (ou quanta), partículas que apresentam um quantum de energia. A concepção ondulatória é a que melhor explica os fenômenos de polarização, interferência, difração, propagação de ondas de raios X, etc., mas somente a concepção corpuscular explica satisfatoriamente o efeito fotoelétrico, o efeito Comp- ton e as demais formas de manipulações quânti- cas. Por isso, aceita-se a luz como dotada ao mesmo tempo de propriedades ondulatórias e cor- pusculares, o que implica a aceitação de determinado índice de materialidade da luz.

Estudando-se os vários estágios da matéria, chegou-se à conclusão de que em estado gasoso extremamente rarefeito as moléculas emitem espectro de faixa. Com o auxílio de aparelhos de espectrografia, estas faixas aparecem divididas numa infinidade de linhas muito finas (linhas de Fraunhofer). A situação destas linhas é regida por leis quânticas, numa demonstração de que a luz e a substância têm traços fundamentais comuns.

Ao descobrir-se ser a luz um fenômeno eletromagnético, abria-se o caminho do entendimento de novos ângulos das relações existentes entre a luz e a substância material, surgindo a possibilidade da explicação de como a luz imprime coloração aos corpos.

Sendo toda substância constituída por partículas portadoras de uma carga elétrica, de núcleos positivos e de elétrons negativos gerando ondas eletromagnéticas invisíveis, quando ondas eletromagnéticas de luz visível, oriundas de outras fontes energéticas, caem sobre os átomos e moléculas, fazendo vibrar as partículas carregadas de eletricidade, a energia das ondas incidentes vê-se dispersa, absorvida e refletida simultaneamente em graus diferentes, de acordo com a composição molecular da superfície atingida. O fenômeno da coloração percebida sobre os corpos (substância) é o resultado desta reação das partículas eletricamente carregadas,, frente à ação da onda eletromagnética (luz) incidente. Verifica-se, assim, que as substâncias (os objetos ou os corpos) não têm cor. O que têm é certa capacidade de absorver, refratar ou refletir determinados raios luminosos que sobre elas incidam.

0 fato da cor não constituir uma propriedade específica e substancial dós corpos já era re-conhecida por Epicuro. £ sua a afirmação de que a coloração dos objetos varia de acordo com a luz que os ilumina, concluindo que os corpos não têm cor em si mesmos.

CARACTERÍSTICAS E PROPRIEDADES DA LUZVelocidade

Há muito o homem deduzira que, como todo corpo que se desloca (de um ponto de partida a um alvo qualquer), a luz também deveria ter uma determinada velocidade, por não haver na natureza nenhuma ação, envolvendo percurso, que seja instantânea. Perdem-se no tempo as pri-meiras tentativas para a apreensão de tal velocidade. Já mais perto de nossos dias, os experi-mentos de Leonardo e depois de Galileu, ambos utilizando lanternas com obturadores, consegui-ram ^alguns resultados positivos, úteis à demonstração da velocidade da luz, mas insuficientes quanto à sua precisão. Desses testes saiu a conhecida formulação de Galileu sobre a propagação da luz: "se não for instantânea, será extremamente rápida".

O que se poderia chamar de êxito científico neste terreno coube à mensuração inicial do as-trônomo dinamarquês Olav Roemer, que, partindo da observação do eclipse de Júpiter (Paris, 1675), calculou a velocidade da luz em mais ou menos 200.000 quilômetros por segundo. Com os cientistas franceses Fizeau e Foucault inauguram-se as medidas da velocidade da luz, utilizando métodos terrestres realmente científicos. 0 primeiro, em 1849, com sua roda dentada, encontrou a velocidade de 313.300, e o segundo, em 1862, utilizando o espelho rotatório, previu 298.000 km/s.

Hoje a velocidade da luz é considerada com absoluta precisão para os quatro primeiros alga-rismos de 299.792 km/s quando se propaga no vácuo, persistindo variações em torno dos dois últimos números.

Dependendo dos métodos de averiguação, os resultados são contraditórios. Nos Estados Uni-dos, em 1941, utilizando a célula de Kerr, Anderson encontrou a velocidade de 299.776. Em 1950, Boi e Hansen, ainda nos Estados Unidos, encontraram 299.789,3, usando o geodíme- tro. No mesmo ano, na Inglaterra, Essem, com microondas, aferiu 299.792,5. Também em 1950, na Escócia, Huston, utilizando cristal vibratório, assinalou a velocidade de 299.775. Em 1956, Edge, na Suécia, usando o geodímetro, encontrou 299.792,9. Para facilidade de uso e de memorização, costuma-se dizer que a velocidade da luz é de 300.000 quilômetros por segundo.

PeriodicidadeO fluxo luminoso possui certa periodicidade regular. Deve-se a Newton a revelação desta ca-

racterística da luz. Sua descoberta baseou-se na seguinte experiência: colocando-se uma lente de fraca convexidade sobre um vidro plano iluminado por luz branca, surge uma série de anéis con- cêntricos com todas as cores do arco-íris. Trocada a luz branca por uma luz monocromática, ver-melha por exemplo, aparece uma série de anéis pretos e vermelhos, alternadamente. Estando igualmente iluminada toda a superfície da lente pelos raios incidentes da luz refletida e pela luz refratada pelo vidro plano, o surgimento dos anéis pretos, isto é, carentes de luz, mostrando uma parte não iluminada, revela certa periodicidade regular do fluxo luminoso. Ao medir os raios dos anéis, Newton constatou sua analogia com as variações das raízes quadradas de números pares sucessivos: V2; V4; V6; V8 (ilust. 9-10).

Comprimento de onda

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Com o mesmo aparato, vidro plano e lente de fraca convexidade iluminados por faixas de diferentes cores simples, a largura dos anéis (anéis de Newton) se altera. Aos raios vermelhos correspondem os anéis mais largos; aos raios violetas, os mais estreitos. Cada cor simples tem uma largura do primeiro interstício que lhe é própria, sejam quais forem as lentes usadas. Essa largura do primeiro interstício é que define quantitativamente uma cor, e denomina-se comprimento de onda, designado pela letra grega X (lambcto}. Os comprimentos de onda'da luz visível sSo extremamente pequenos, expressão- do-se em milimícrons (rfyi), que significam mi- lionésimo de milímetro. Newton encontrou, para a cor existente entre os limites do verde e do azul, o comprimento de onda de 492 m/x, para o vermelho extremo do espectro 700 mu e para o violeta extremo oposto, 400 m/a.

O comprimento de onda corresponde à divisão da velocidade de propagação da luz pela fre-qüência de vibração do raio luminoso, sendo:

onde X é o comprimento de onda, v a velocidade de propagação da luz ei a freqüência de vibra-ção do raio luminoso.

As medidas de comprimento de onda da luz mais usadas slo o mícron (abreviatura n) = 10"%. o milimícron (abreviatura m/i) = lO^m e o Angstrõm (abreviatura A) = 10"l0m.

DifraçãoA partir do século XVII, a formulação de que a luz se propaga em linha reta sofreu um pequeno

reparo, ao descobrir-se que ela é capaz de introduzir algumas alterações em seu curso. Gri- maidi foi o primeiro a chamar a atenção dos físicos e ópticos para a importância desses fenômenos que ele denominou difração, demonstrando a capacidade da luz de contornar pequenos objetos que se encontrem em seu caminho e de passar através de fendas estreitas, espalhando-se em faixas irisadas. Estudando o fenômeno, Newton afirmou que a difração não depende absolutamente da matéria em que se pratica a fenda, nem mesmo da que constitui o objeto contornado, tratando-se de uma propriedade essencial da luz.

PolarizaçãoA polarização é outra das características da luz. Em Óptica denomina-se polarização o conjunto

de fenômenos luminosos ligados à orientação das vibrações luminosas em torno de sua direção de propagação. A idéia simplificada do que seja polarização está contida na seguinte experiência: dirigindo a luz solar refletida num espelho plano para o interior de uma peça sombria, veremos que a luz refletida pelo espelho recebe uma nova característica, organizando-se num feixe de raios ou fluxo luminoso que não atua nem para cima nem para baixo, mas apenas lateralmente. Tecnicamente dizemos que na seção transversal do feixe luminoso aparecem di

reções de ação predominante. A essa nova propriedade é que chamamos polarização.Refração

De todas as propriedades da luz e de todos os fenômenos luminosos, o mais apaixonante é o da refração. Suas inúmeras manifestações e diversificadas aparências desde os tempos mais remotos instigaram a imaginação humana ao sonho e á fantasia. As abordagens e especulações de caráter ora místico ora científico em torno do assunto têm sido uma constante nos diversos graus de desenvolvimento da humanidade. Eucli- des (302 a.C.), em sua Óptica e Catóptrica, já procurava definir os efeitos da refração, o que de modo'algum significa ter sido dos primeiros a se interessar pela matéria.

No primeiro século de nossa era, Sêneca referia-se às luzes coloridas produzidas pelos raios do sol incidentes transversalmente sobre uma vara de vidro com caneluras. Dentre as cores citadas por ele estavam o vermelho, o amarelo e o branco, afirmando que as demais cores do arco-íris sucediam-se por degradação insensível. Também no mesmo período, Plínio referia-se ao fenômeno, obtido com a utilização de um quartzo, a pfe- dra denominada íris: "num lugar coberto, atingida pelos raios do sol, ela projeta sobre a muralha vizinha todas as aparências, todas as cores do arco-íris".

No século seguinte, em Alexandria, Ptolo- meu estudou a refração da luz ao passar do ar para a água, do ar para o vidro e do vidro para a água. Durante o século XI Al Hazen, no Cairo, publicou vários estudos sobre os efeitos da refração. Cinco séculos mais tarde, Kepler traria no-vas contribuições para a descoberta de suas leis, utilizando, além de outros meios, o prisma como elemento refrator.

Em 1637, em Leyde, Descartes publicou sua Dióptrica, abordando de maneira integral e coe-rente as leis da refração descobertas por Snell. Também no século XVII Boyle e Hocke, em tra-balhos diferentes, estudaram o surgimento das franjas coloridas pela dispersão dos raios lumi-nosos incidentes nas lâminas delgadas (bolhas de sabão, manchas de óleo sobre a água, etc.).Como vimos, desde a Antigüidade conhecia-se a propriedade refratora de vários corpos transparentes, mas acreditava-se que o surgimento das cores do espectro era fruto da proprieda-de do corpo refrator, mudando a cor da luz. Coube a Newton desfazer o longo equívoco. Apoiado nos êxitos de investigações sistemáticas, ele afirmaria: "O prisma não muda a cor da luz branca, decompõe-na em suas partes constitutivas simples, as quais, combinando-se de novo, produzem novamente o branco inicial". Demonstrando que a dispersão resultava da variedade de graus de retração das faixas coloridas que compõem a luz branca, ele possibilitou a entrada das manipulações e aferições da retração no domínio dos conceitos objetivos. Nas primeiras experiências, Newton colocou um prisma de vidro interceptando um raio de sol que entrava num

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quarto escuro, produzindo, assim, o vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta do espectro solar. Essa dispersão da luz pelo prisma já havia sido produzida intencionalmente por outros experimentadores antes de Newton, mas foi ele o primeiro a realizar a experiência a- dicional de recombinar as cores do espectro por meio de um segundo prisma invertido. 0 fato da luz branca ter sido produzida pela recombi- nação levou-o a concluir que todas as cores do espectro estavam presentes no raio de sol original, comprovando a formulação de Leonardo de que "o branco é o resultado de outras cores, a potência receptiva de toda cor".DIFERENÇA DE VELOCIDADE: FATOR DE DECOMPOSIÇÃO DA LUZ BRANCA

O surgimento das cores pela decomposição da luz branca está ligado à diferença de velocida-de de propagação dos diversos raios luminosos.

No vácuo — observa Einstein (!) — "... se sabe, com a maior exatidão, que esta velocidade é a mesma para todas as cores, pois se não fosse assim, num eclipse de uma estrela fixa por um de seus satélites opacos, não se poderia observar simultaneamente (como se observa) o mínimo de emissão para as diferentes cores".

Estudando os eclipses de estrelas duplas, o holandês De Sitter provou que, no vácuo, a ve -locidade da luz não depende do comprimento de onda de seus componentes, sendo a mesma tanto para os raios vermelhos como para os azuis. Quando uma das estrelas componentes passa pela sombra da outra, não se nota alteração na cor da estrela. Se houvesse variedade de velocidade das cores simples, um mínimo que fosse, no curso de tais eclipses verificar-se-ia necessariamente uma mudança na cor da estrela.

Quando a luz se propaga numa substância como a água ou o vidro, a velocidade depende do comprimento de onda de seus componentes, e é esta precisamente a causa da decomposição da luz em diferentes faixas coloridas ao atravessar o prisma. Determina-se essa velocidade dividindo a velocidade da luz no vácuo pelo índice

(l) Altmrt Einstain — "Ttoria dt Ia RtktMdad £«mtM Y Gtnral". ButntmAIm, 1925.de retração. 0 índice de retração é igual à relação existente entre a velocidade da luz no vácuo e a velocidade de determinada faixa colorida (cor) ao atravessar o meio retrator (prisma, água em suspensão, etc.).

FreqüênciaDividindo a velocidade da luz pelo comprimento de onda, obtém-se o número de vibrações do

raio luminoso num segundo, isto é, a freqüência da luz. Designando-se a freqüência pela letra f, a velocidade pela letra v e o comprimento de onda por X, teremos:

W-

IncandescênciaChama-se luz incandescente a que é produzida pela elevação do calor dos corpos. Em alta

temperatura, a partir de 400°C, começam as radiações de maior comprimento de onda, surgindo os matizes denominados vermelhos. Num aumento progressivo de temperatura surgem os de-mais matizes, completando o espectro, tal qual ocorre na passagem de um metal aquecido, indo do vermelho ao branco, quando atinge temperatura superior a 1.200°C. A luz solar é o melhor exemplo de luz incandescente, gerada por uma temperatura aproximada de 5.750° C.

Alem da luz e da gravitação universal, existem entre o Sol e a Terra outros modos de inte-ração. A Terra recebe incessantemente do Sol correntes de partículas negativamente carregadas, os elétrons. Os pólos magnéticos da Terra, desviando essas correntes elétricas para as regiões polares, provocam as conhecidas variações do magnetismo terrestre. Ao penetrarem nas cama-das superiores extremamente rarefeitas da atmosfera terrestre, os elétrons tornam lumines- centes os gases que aí se encontram, originando um dos mais belos espetáculos cromáticos da natureza, as auroras boreais.

Existem certos fenômenos luminosos que permaneceram longos anos cercados por lendas e mistérios, até oue a ciência pudesse explicar-lhes as origens. É o caso do fogo-fátuo e do fogo-de- san teimo.

O fogo-fátuo, por ser mais visível à noite, principalmente nas mais escuras, e aparecer co- mumente em lugares ermos, florestas úmidas, pântanos e cemitérios, teve sempre um caráter terrificante para as populações do interior. Trata-se da chama fugaz produzida pelas emanações de hidrogênio fosforado, liberadas pela decomposição de substâncias orgânicas.

Fofo-dt-santtimo é o fenômeno físico que tem recebido o maior número de designações através dos tempos. Trata-se de meteoro ígneo provocado por descargas elétricas lentas em ex-tremidades elevadas (postes, torres de igrejas, de transmissão, de petróleo, mastros de navios, árvores secas, etc.), por ocasião de tempestades. Também as pessoas e animais, quando em lugares aí tos ou descampados, podem atrair tais descargas. ficando o corpo coberto por eflúvíos azulados que se escoam pelas extremidades, sem causar qualquer sensação fisiológica. As descargas provocadas pelo Siroco também produzem a etetrizaçao de dunas, tendas e animais no deserto. fazendo-os faiscar e crepitar.

A utilização dos raios luminosos é o único meio existente para a perscrutação dos corpos celestes. A avaliação de propriedade da luz das estrelas ou de raios luminosos manipulados pelo homem é que nos permite avançar no caminho do conhecimento das distâncias e volumes cós-micos. 0 estudo de cada raia dos espectros estelares. impressa sobre fundo colorido, fornece os dados para a dedução da composição química das atmosferas astrais.

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Segundo o diagrama de Hertzprung-Russel, as cores das estrelas indicam a temperatura que as classifica de gigantes a anãs:

Estrelas azuis de ........ 30.000° K a 10.000° K brancas de ................ 10.000° K a 7.000° Kamarelas de............... 7.000° K a 4.000° Kvermelhas de.............. 4.000° K a 2.500° K

A mais surpreendente possibilidade da luz é a de transformar-se em elemento propulsor de naves cósmicas. Invadindo o terreno da fantasia, a Física abandona as fórmulas da mecânica clássica e vê a solução dos vôos estelares (para atingir a Próxima e Alfa da constelação do Centauro), no emprego de cálculos baseados na teoria de Einstein.

A Física moderna conclui pela equivalência da massa e da energia, resultando daí o conceito de enormes reservas de energia contidas na matéria. Segundo a teoria da relatividade, toda massa de 1 kg contém a fantástica quantidade de energia de 9 x 1023 ergs. "Essa circunstância permite conceber a possibilidade da existência de um foguete "radiante" que ejetaria, em vez de gases, um facho ultra-poderoso de luz produzido por conta de uma perda da massa, sendo desse modo propulsionado pela reação resultante da emissão de uma torrente de luz" (2).

Pt—A Sternfeld -"O Vôo no Btpaço Cótmico". Mo. 1957.

O foguete assim concebido seria capaz de atingir a enorme velocidade de 290.000 km/s ou seja, a velocidade da luz. Isto significa que só conquistaremos as estrelas quando pudermos deixar para trás, em lugar de nuvens de fumaça, um rastro luminoso, navegando numa esteira de cores.

A potência incandescente da luz encontra sua forma mais ativa de manifestação no fenô-meno da radioatividade. Tal radiação tem o poder de penetrar os corpos opacos impenetráveis às radiações luminosas comuns. A descoberta da radioatividade artificial, desintegrando o átomo sob a ação de nêutrons lentos do isótopo de urânio, abriu as portas para sua aplicação em quase todos os ramos da ciência e da técnica (química, biologia, medicina, metalurgia, agricultura, etc.).

Novas possibilidades de emprego dos raios luminosos surgiram com a descoberta dos raios laser. A luz homogênea do laser, produzida pelo rubi ativado, chega a 6.000°C, penetrando facil -mente os corpos opacos e até mesmo lâminas de aço. Sua aplicação nos diversos ramos de atividade humana é possível, por ser controlada com absoluta precisão.

LuminescênciaaChama-se luminescência a emissão de luz sem incandescência. A luminescência é a proprie-

dade que numerosas substâncias têm de emitir luz sob o efeito de uma excitação. Se esta excita- ção é luminosa, principalmente originada por raios ultravioleta, denomina-se fotoluminescên- cia. Quando o fenômeno começa e acaba instantaneamente junto com a excitação, chama-se fluorescência; se manifesta uma remanência após a cessação do estímulo, fosforescência.Luz fluorescente é a alterada por certos corpos que têm a capacidade de transformar a luz por eles recebida em radiação de maior comprimento de onda. é uma fotoirradiação que cessa praticamente quando deixa de atuar a energia radiante incidente. Quando os átomos de uma substância fluorescente são atingidos por fótons de uma radiação eletromagnética, a energia recebida é transformada e reemitida sob a forma de uma radiação de comprimento de onda superior " ao da radiação incidente. Os corpos fluorescentes (que possuem fluróforo), sob a ação de radiações ultravioleta, fornecem uma emissão de luz visível, muito empregada para a obtenção de efeitos luminosos no escuro, denominados de luz negra (luz de wood). A fluorescência obtida deste modo permite a criação de efeitos deslumbrantes ou fantasmagóricos para a arte ambiental, cenográfica, vitrinística, etc. A luz ultravioleta é muito usada em análises e pesquisas de pro priedade dos corpos e na terapia. As lâmpadas fluorescentes usadas na iluminação são tubos de vidro contendo vapores de mercúrio a baixa pressão e recobertos internamente por uma camada de substância fluorescente, onde se produz uma descarga elétrica por energia conduzida do exterior. As radiações ultravioleta originadas dos átomos de mercúrio do interior do tubo, ao atingir as paredes que contêm flurôforos, produzem luz visível.Fosforescência

É a propriedade que têm certos corpos de brilhar na obscuridade, sem irradiar calor. Os corpos fosforescentes tornam-se luminosos quando sujeitos a fricção, a uma elevação de temperatura, ou a uma descarga elétrica, sem que haja combustão. A fosforescência é uma fotoirradia- ção que persiste durante um lapso de tempo, depois da cessação da excitação, podendo mesmo subsistir durante vários dias nos sulfetos alcali- nos que sofreram forte insolação.

Nos organismos vivos, a produção de fosforescência é devida a órgãos fotógenos muito aper-feiçoados, com refletor, lente e obturador. EJa é encontrada em diversos animais das profundezas marinhas, em particular peixes e cefalópodes, e em alguns insetos coleópteros, como o piróforo e o pirilampo. Em outros animais, em'diversos protozoários e bactérias, em certos ovos e em certas

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plantas, a luz é emitida pelo conjunto do corpo. Em todos os casos, trata-se de luz fria, gerada pela longa adaptação da espécie ao meio onde vive.AFERIÇÃO DA LUZ

Para atender à necessidade de mensuração do fluxo luminoso, criou-se a fotometria como uma especialidade da Óptica. A unidade de ilu- minamento adotada mundialmente pela fotome-tria é o lux. O lux corresponde à capacidade de iluminamento uniforme de uma superfície plana da área de um metro quadrado sob a ação de um fluxo luminoso de um lúmen.

Lúmen é o fluxo luminoso emitido no interior de um ângulo sólido de um esferorradiano por uma fonte puntiforme de intensidade invariável, revelando um poder de iluminação idêntico em todos os sentidos, igual ao de uma vela internacional.OS ÁTOMOS NA PRODUÇÃO DA LUZ

Aplicando à teoria de Planck o protótipo atômico de Rutherford, em 1913 o cientista di-namarquês Niels Bohr (Prêmio Nobel de Física,

1922) estabeleceu o modelo do átomo como sistema planetário, regido pelas leis dos quanta, chegando ainda à concepção de que os corpúscu- los e as ondas representam dois aspectos comple- mentares de uma mesma realidade. O átomo que nos interessa particularmente, por sua capacidade de absorver e projetar a energia em forma de luz, é estudado detalhadamente.

Com o reparo do físico alemão Arnold Sommerfeld, propondo a forma elíptíca para o movimento dos elétrons, em substituição â circular indicada por Bohr, nasceu o símbolo mais ca-racterístico de nosso século: elétrons voando em elipses em torno do núcleo, tal como os planetas em torno do Sol. Para que se tenha uma idéia mais aproximada do que seja o átomo, essa partícula invisível, infinitesimal, em termos de proporção, devemos imaginar um elétron de menos de dois milímetros, tal qual um pequeno mosquito, percorrendo uma elipse cujos pontos extremos toquem os limites de uma esfera de 50 metros de diâmetro, em torno de um núcleo menor que um grão de feijão, formado por nêutrons e prótons.

0 imenso vazio dentro dá hipotética esfera onde circulam os minúsculos elétrons é a anti- matéria, ou a inexistência por excelência, fonte das mais promissoras investigações energéticas, onde o próprio sentido de materialidade se des- materializa em termos de proporção. Inicia-se uma marcha acelerada em direção aos conceitos das nuvens de probabilidade, regiões turvas onde surgiriam os elétrons. Em tais escalas de relação entre matéria e antimatéria, altera-se o conceito da origem da substância e da energia, d06 sistemas estelares, das imensas galáxias e do próprio universo em seu conjunto, situação nova em que a extraordinária reserva de potência das antipartículas se apresenta no confronto com a matéria como a realidade maior.

Em seus trabalhos, Bohr assinalou que o elétron se move somente num determinado número de órbitas de tamanhos fixamente estabelecidos. Tomando o hidrogênio por exemplo, teremos uma órbita aproximada de 1/100.000.000 de centímetros de diâmetro e órbitas de 4, 9, 16 e 25 vezes maiores que a primeira órbita. Não existindo órbitas intermediárias entre as citadas, o elétron pode, no entanto, saltar de uma órbita para outra.

Quando um elétron passa de uma para outra órbita, há uma mudança em sua energia. Passan-do para uma órbita mais afastada do núcleo, eletricamente ele foi promovido, "subiu", signi-ficando que recebeu energia de alguma fonte externa. Se, ao contrário, ele salta para uma órbita menor, mais próxima do núcleo, o salto é instantaneamente acompanhado de um despren-dimento de energia igual à diferença do nível de energia d» duas órbitas. Essas concentrações de energia liberada denominam-se quanta ou fó- tons. E é desta maneira que as radiações eletro-magnéticas (luz) são produzidas.

RADIAÇÃO SOLAR

llust. 11 — Da imensa área de radiações solares a vista humana alcança apenas a diminuta faixa compreendida entre os raios infravermelhos e os ultravioleta, cujos limites extremos são, de um lado, o vermelho com cerca de 700 milimícrons e, do outro, o violeta com cerca de 400 milimícrons de comprimento de onda.

As cores do espectro solar tèm por fonte as seguintes substâncias: vermelho de 718,5 mu — vapor d'água da atmosfera terrestre; vermelho de 686,7mu — oxigênio da atmosfera terrestre; vermelho de 656^3 mu — hidrogênio do Sol; amarelo de 589,6 a 589,0 m\i - sódio do Sol; verde de 527,0 mti - cálcio do Sol; verde de 518,4 a 516,8 mu — magnésio do Sol; anil de 486,1 mu — hidrogênio do Sol; violeta de 430,8 a 393,4 mu - cálcio do Sol.

A luz solar visível, caracterizada por seu espectro contínuo, quando analisada em espectroscópio apresenta na realidade duas séries de raias ou linhas escuras (espectro* de absorção), causadas pelas absorções de certos comprimentos de onda da luz branca nas camadas internas da fotosfera solar (raias de Fraunhofer) e na atmosfera terrestre (raias telúricas).

3O Olho e a Visão

"Por que o olho vê com maior precisão o objeto dos seus sonhos, com a imaginação, quando está acordado?"

Leonardo da VincíA infinita variedade de espécies animais apresenta os mais diversos índices de sensibilidade

frente aos fenômenos luminosos. Dos organismos unicelulares ao olho dos animais superiores, há

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uma imensa escala de gradações evolutivas. 0 olho humano está no cimo dessa linha de desen-volvimento e representa o mais elevado grau de aperfeiçoamento da matéria, no que tange à cap-tação das manifestações da energia luminosa.

A formação do órgão e a acuidade visual dos diferentes seres (aves de rapina, peixes e animais das regiões abissais e os organismos apenas providos de células fotossensíveis) decorrem de longa batalha seletiva e de adaptação ao meio ambiente, no curso da qual sofrem as modificações indispensáveis à sobrevivência da espécie.

O olho é o mais ativo instrumento de defesa dos gêneros animais. Discernir o que os cerca já é julgar as possibilidades favoráveis e as adversas, já é o início da definição do amigo ou do inimigo da espécie. Os demais órgãos dos sentidos desempenham a mesma função, porém de maneira incomparavelmente menos precisa e bastante mais imperfeita. Somente o olho é capaz de in-formar a distância, a direção e a forma dos objetos. Basta dizer que todo o conhecimento humano relativo a medidas de grandeza, do micro ao macro (volume, comprimento, área, peso, distância, velocidade, intensidade luminosa, cor, etc.), tem sua origem primeira na percepção visual.

Nossa visão difere da dos outros animais, não apenas em dados de quantidade, mas princi-palmente em qualidade. Ela é coadjuvada pelo cérebro, o que lhe dá a possibilidade de projetar nas coisas as dimensões de nossos sonhos, povoando o universo visível com os elementos de beleza e espiritualidade, próprios das aspirações

humanas. 0 cérebro realiza um permanente trabalho de avaliação, análise e correção das ima-gens visuais recebidas. Tal correção é feita em estágio de pré-consciência, influenciada pelo acer-vo de nossos conhecimentos relativos ao mundo objetivo.

A idéia da propagação retilínea da luz e a de sua identidade com a vista foram os dados prin -cipais herdados da Antigüidade para o desenvolvimento da óptica.

Durante muito tempo a visão foi explicada pela teoria dos raios visuais, segundo a qual dos olhos emanam luzes que apreendem os objetos, como tentáculos. As visíveis cintilações que jor-ram do olhar eram citadas como prova da existência de tais raios, assim como a luminescência dos olhos dos animais noturnos.

Qualificando os raios do olhar, Platão afirmava: "Os deuses agiram de modo que o fogo que trazemos em nós, e que é semelhante à luz do dia, seja derramado, purificado, pelos olhos, que fizeram compactos, mormente em seu centro, a fim de reterem a parte mais brutal do fogo e não o fixarem passar a não ser em estado de pureza".Para defender a teoria dos raios visuais, Da- mião de Larissa (IV a.C.) dizia que, contrariamente aos demais órgãos dos sentidos, a forma de nossos olhos não é oca — eles "são esféricos, provando que deles emanam raios luminosos". Muitos séculos depois, Leonardo da Vinci (3), sem abandonar a teoria dos raios visuais, mas colocando reparos ("... O olho não poderia enviar em um mês sua potência visual à altura do Sol"), descreveria o mecanismo da percepção das ima-gens, que, em seu conjunto, está bem próxima dos conceitos modernos.

A atração pelos raios visuais marcou muitos escritores e poetas do passado, até bem perto de nós. Júlio Dinis não teve dúvidas em recorrer aos seus encantos, em As Pupilas do Senhor Reitor: "Clara, adivinhando-se objeto daquela inspeção minuciosa de conhecedor e entusiasta, não ousa-va erguer os olhos. Dir-se-ia que, magicamente condensados, os raios visuais que a envolviam da-quela maneira lhe tomavam os movimentos até mal a deixarem respirar".

Aludindo também aos poderes e à força simbólica dos raios visuais, Eça de Queiroz, em 0 Primo Basflio, escreveria: "E como a odiava! Seguia-a por vezes com um olhar tão intensamente rancoroso, que receava que ela se voltasse subitamente, como ferida pelas costas".

Hoje, decorridos mais de dois milênios do surgimento da teoria dos raios visuais, a ciência aceita que não apenas dos olhos emanam luzes, mas também de toda matéria cujo calor esteja acima do zero absoluto. Os conceitos atuais, evidentemente, diferem dos da Antigüidade, mas fazem ressaltar a intuição do saber antigo.

ESTRUTURA DO OLHO HUMANOOs olhos dominam uma área pouco inferior^a 180° em torno da figura humana. Com a função

de captar as imagens que nos cercam, o olho tem forma esférica e seu diâmetro atinge cerca de 24 mm nas pessoas adultas. É revestido externamente por um espesso invólucro branco, que o protege, a esclerótica. A córnea, sua parte da frente, é transparente e convexa, com uma espes-sura de 0,5mm, aproximadamente; atrás dela se acha a câmara anterior do olho, separada da câ-mara posterior por uma lente, o cristalino. À frente do cristalino encontra-se a íris, dotada de um orifício que funciona como diafragma, limitando o feixe de raios luminosos que penetram no olho.

A face interna da esclerótica é forrada pela coróide, constituída por vasos sangüíneos que alimentam o olho, sendo sua superfície exterior revestida por uma membrana fotossensível, de-nominada retina.

A retina compõe-se de duas camadas: a camada superior, ou pigmentar, e a inferior, ou nervosa, que é um desenvolvimento do nervo óptico. Na superfície da retina, nota-se a divisão de duas áreas compostas pelos elementos fundamentais da percepção visual, os cones e os basto- netes. A parte central da retina, ou fóvea retini- ana, é constituída pelas fibras nervosas denomi-nadas cones, devido à sua forma. Os cones, em

número aproximado de 7 milhões, são os responsáveis pela visão colorida. Envolvendo a fóvea, encontram-se os bastonetes, cerca de 100 milhões, sensíveis às imagens em preto e branco. No fundo do olho, correspondendo à parte central da retina, há uma interrupção dos cones e bastonetes, num ponto, denominado ponto cego, correspondente à localização do nervo óptico, É por este nervo que as impressões visuais se transmitem ao cérebro.

A retina tem a capacidade de adaptar-se progressivamente à quantidade de luz do ambiente. No escuro, a sensibilidade da retina aumenta gra- dativamente, de acordo com o comportamento dos cones e bastonetes. A sensibilidade dos cones aumenta apenas algumas dezenas de vezes em comparação com sua sensibilização relativa à luz do dia. A dos bastonetes, em processo moroso,

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leva mais tempo para adaptar-se; em compensação, ao fim de uma hora ou mais, atinge em plena escuridão o limite máximo, aumentando sua capacidade em várias centenas de milhares de vezes.

A parte externa da retina contém grãos de pigmento escuro cuja função é enfraquecer a luz que chega aos cones e bastonetes. A adaptação gradativa do olho à escuridão pode explicar-se pela passagem lenta do pigmento escuro para o fundo da retina, deixando as fibrilas nervosas o mais possível expostas à fraca luz que as atinge.

O processo de sensibilização da retina pela luz é indiscutivelmente a base do fenômeno da visão. Para explicá-lo, há duas hipóteses igualmente aceitas: a fotoquímica e a fotoelétrica, ambas derivadas da necessidade de existência de um mínimo de energia funcionando como estímulo capaz de desagregar a molécula ou dela arrancar elétron. Em tais hipóteses, o elemento essencial é a luz. Na primeira, ela seria fator de ação fotoquímica; na segunda, de ação fotoelétrica.

VISÃO CROMÁTICA0 olho não tem capacidade para suportar a luz direta do sol. A variedade de tempo de estímulo e de intensidade luminosa provoca um grande número de fenômenos visuais. Num clarão excessivo, o olho perde momentaneamente a capacidade de distinguir formas ou cores. Quando a luz é demasiadamente forte, produz o que chamamos de efeito de deslumbramento. Algo parecido ocorre quando descansamos a vista e deparamos de repente uma luz colorida qualquer. A retina colocada em repouso, permanecendo durante um período prolongado na obscuridade, aumenta sua sensibilidade. Em tal situação, o primeiro contato com uma luz colo rida, de qualquer intensidade, poderá causar-lhe a impressão de branco (deslumbramento), durante um breve momento.

Olhando-se fixamente por algum tempo uma lâmpada forte, ao fecharmos os olhos, continua-mos a ver a imagem luminosa que, aos poucos, vai perdendo luminosidade, mudando de cor. Este fenômeno tem várias gradações e é denominado impressões consecutivas, ou imagens posteriores (positivas ou negativas).

Todos esses efeitos estão ligados ao tempo de saturação da retina. Os diferentes graus de sa-turação foram estudados por Purkinje, no início do século passado, revelando as particularidades do comportamento retiniano frente às cores, em diferentes tempos de repouso e de saturação. Goethe, um dos primeiros a perceber a importância desses fenômenos, dedicou-lhes acurado estudo, demonstrando a tendência visual à totali- zação cromática.

No que se refere aos dados fisiológicos da percepção da cor, com algumas variantes, as de-duções de Thomas Young são hoje mundialmente aceitas. Pelas contribuições e desdobramentos comparativos e afirmativos, a elas estão ligados os nomes de Hermann Von Helmholtz e James Clerck Maxwell, e são conhecidas sob a denominação de Teoria Tricromática.

Segundo Young, a fóvea retiniana é constituída por três espécies de fibrilas nervosas (cones) capazes de receber e transmitir três sensações diferentes. O primeiro grupo dessas fibrilas é sensível prioritariamente à ação das ondas luminosas longas e produz a sensação a que damos o nome de vermelho, produzindo secundariamente as sensações do verde e do violeta. O segundo grupo é sensível prioritariamente às ondas de comprimento médio, que produzem, a sensação que denominamos verde, e secundariamente às ondas que produzem as sensações de vermelho e violeta. Enfim, o terceiro grupo é sensível prioritariamente ao violeta (azul-violetado) e secundaria-mente ao vermelho e ao verde.

Quando os três grupos de fibrilas são estimulados ao mesmo tempo com uma energia aproxi-mada, produzem a sensação do branco.LIMITES DA VISÃO

O que Darwin chamava de seleção natural é, afinal de contas, a capacidade de adaptação de determinados organismos ou órgãos ao meio. 0 olho é um órgão relativamente bem adaptado ao meio, ou seja, ò luz solar.

A própria delimitação de nossa percepção visual (do violeta ao vermelho espectrais - 400 a 700 m/i) foi a forma que o olho desenvolveu para proteger a espécie de certas radiações luminosas.

O olho nos impede de ver abaixo de 400 m/i para evitar os efeitos maléficos das ações quí-micas destrutivas das radiações de ondas curtas que por vezes chegam a matar os organismos vivos. As lâmpadas bactericidas a vapor de mercúrio são baseadas nessa propriedade destrutiva das ondas curtas. Provocando calor artificial, os raios ultravioleta de comprimento de onda aproximado dos 250 m/i podem cegar, se os olhos ficarem expostos muito tempo â sua ação.

A barreira levantada contra esse perigo é o cristalino, que, absorvendo esses raios, impede que eles atinjam a retina. A função do cristalino não é apenas de projetar a imagem na retina Ele funciona também como filtro protetor, retendo os raios luminosos de ondas curtas. Retendo for-temente os raios azuis e violetas, o cristalino contribui para diminuir as aberrações cromáticas.

No outro limite, do lado dos raios de ondas longas, a visibilidade cessa por volta dos 700 m/x, impossibilitando a visão dos raios infravermelhos. Como todos os corpos fracamente aquecidos ir-radiam luz infravermelha, se a retina percebesse essa luz como luz visível, todo o processo visual seria influenciado pelas poderosas radiações infravermelhas produzidas no interior do olho, tor-nando obscuro tudo o que se encontra fora dele. Mesmo a luz solar.

2

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Premissas e Desenvolvimento da Teoria

Leonardo da Vinci eaTeoria das Cores

"Felizes os visionários: deles é o reino infinito da visão."Murilo Mendes

"Que as figuras, que as cores, que todas as espécies das partes do universo sejam reduzidas a um ponto: que maravilha de ponto! Oh admirável e surpreendente necessidade: por tua lei, tu obrigas todos os efeitos a participarem em sua causa pela via mais curta! Ali estão os verdadeiros milagres."

Leonardo da Vinci

O homem inicia a conquista da cor ao iniciar a própria conquista da condição humana.O conscientizar as diferenças de coloração entre os frutos ou os animais, entre o clarão do raio

e o da labareda de uma chama já é um longo caminho percorrido no aprendizado utilitário, no trato com a natureza, na luta pela preservação da espécie.

O querer reproduzir a coloração que consegue distinguir nos seres e nas coisas assinala o co-meço de uma história que se prolonga até aos nossos dias. Numa ação de caráter predatório, tal como a da caça ou da coleta de frutos, ele utiliza os elementos minerais, da flora e da fauna, para colorir e ornamentar o próprio corpo, seus utensílios, armas e as paredes das cavernas.

Esta ação primária tem em si o germe de uma incipiente indústria química, quando ele esfrega e tritura flores, sementes, elementos orgânicos e terras corantes, com a finalidade de colorir. A observação o leva a utilizar matérias calcinadas para tingir de preto as áreas desejadas. A queima de certos corpos, por opção em relação a outros, para obter um preto mais intenso, já revela uma elevação do nível técnico e determinado grau de espírito científico. Até hoje o preto usado pelos pintores é produzido da mesma forros. pela calcinação de matérias orgânicas.

Esta química complica-se e especializa-se quando deliberadamente ele busca nos óleos animais, vegetais ou minerais o meio de fixar esses corantes.

Num acúmulo permanente de conhecimentos, enriquece-se sua subjetividade e a cor contribuirá para abrilhantar-lhe os atos religiosos pro- piciatórios, comemorativos, guerreiros e fúnebres. Como elementos úteis à ação social, surgirão os primeiros códigos cromáticos ciando a cada cor um significado. Assim como varia o código oral dos povos primitivos, também as cores terão variada significação em povos e épocas diferentes, guardando por vezes certa analogia.

0 domínio progressivo da forma (traço, desenho) na expressão naturalista de sua pintura não está desligado dos conhecimentos gerais herdados ao longo de milênios. O mesmo acontece com o domínio da cor.

Durante o neolítico o homem já conhecerá as propriedades do barro e da argila e os segredos de sua queima para a obtenção de determinadas colorações e vitrificações.Servindo à variável crença do poder mágico da cor, ele dominará a técnica da incrustação, maneira prática de aprisionar a cor das pedras que julga preciosas, ali onde deseja, ao lado do maleado metal. Legará à posteridade a técnica da pintura afresco. em que a simplicidade da água qomo solvente do pigmento possibilitará o mila-gre das grandes extensões coloridas dos túmulos, templos e palácios. Diluindo colas para fixar a cor, a água será ainda o veículo ideal para os corantes que valorizarão os

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Livros dos mortos e os escritos diversos, inaugurando as técnicas da aquarela, da aguada, do guache e da têmpera.

De um fazer geral, a espécie individualiza-se - surgem os gênios do trato com a cor. Os murais atribuídos a Eumares de Atenas e a Címon de Cleones iniciam a época da ascensão dos meios que suscitariam o aparecimento da grande pintura do século V a.C. Com Polignoto, liberta- se a pintura do frontal ismo e da posição exclusiva de perfil, mostrando os rostos de três-quartos e de frente, buscando a representação dos estados de alma, que iria influenciar tanto a pintura de vasos como a escultura decorativa.

As sombras estudadas por Apolodoro abrem à pintura o caminho da representação dos volumes e da magia do claro-escuro. A técnica da encáustica, descoberta por Pausias, possibilitaria a precisão das nuances e o surgimento do modelado que valorizaria as cores.

A cor seria também utilizada com mestria nos mosaicos bizantinos e nos vitrais das catedrais góticas. Mas todo o saber da técnica de utilização estava ainda muito longe de poder criar uma teoria que explicasse cientificamente a cor e os segredos do seu emprego.

O LEGADO HISTORICOA primeira visão de conjunto dos dados que levariam à criação de uma teoria das

cores deve- se a Leonardo da Vinci.O que se convencionou chamar de Teoria das Cores de Leonardo são as formulações

teóricas esparsas contidas em seus escritos, reunidas pos- tumamente no livro Tratado da Pintura e da Paisagem — Sombra e Luz. Os manuscritos utilizados para compor esse volume, pela diversidade dos assuntos e falta de registro cronológico, fazem supor que se destinavam aos dois livros mencionados em épocas diferentes pelo autor.

Com referência ao primeiro, encontrou-se a seguinte anotação: "A 2 de abril de 1489, comecei um livro intitulado Da Configuração do Homem". Tudo indica que se tratava dos manuscritos sobre óptica e anatomia. O segundo livro, com objetivo mais ambicioso, foi "começado em Florença, na casa de Braccio Marteli, em 22 de março de 1508", sendo "o conjunto desordenado de muitas páginas que copiei com a esperança de classificá-las em seu lugar, segundo a matéria de que tratam" ... "pois tenho por costume es-crever com grandes intervalos e fragmento por fragmento".

Embora as preocupações de Leonardo com a cor já estivessem relacionadas a elementos da óptica, da física, da química e da fisioiogia, os escritos se dirigiam fundamentalmente aos pintores, os maiores interessados pelo assunto, na época.

A influência dos escritos de Leonardo já se faziam sentir durante sua vida. Copiados em partes, circulavam pelos ateliers italianos alguns dos conceitos do Mestre relativos à pintura. Transformados em livro, viriam a ser mais tarde o ma- nua) da pintura acadêmica.

A primeira edição do Tratado da Pintura e da Paisagem séria publicada em italiano, na França, somente 132 anos após a morte de Leonardo. Um ano depois surgiria a tradução francesa. Em 1716, apareceria nova edição francesa, com desenhos de Poussin. Um século mais tarde (1817), surgiria a edição italiana de Manzi. Em 1882, se-ria lançado o texto integral Codex Vaticanus e apareceria a edição alemã. Mas a verdadeira divulgação da obra viria a ocorrer no século XX, com edições em numerosas línguas e a publicação de fragmentos e conceitos em quase todos os países do mundo.

A curiosidade universal de Leonardo revela- se por inteiro nos manuscritos. Para guardar segredo sobre seus conceitos e inventos, adquirira o hábito de escrever ao contrário, da direita para a esquerda, de forma que somente com o auxílio de um espelho é que podem ser lidos seus manuscritos.

O desenvolvimento das artes italianas dos séculos XIV e XV inaugura as premissas das concepções estéticas dos tempos modernos e realiza o mais humano movimento artístico de todos os tempos.

Agudas intuições ávidas de conhecimento colocam o saber num elevado lugar, sendo ponto pacífico que a arte é vista como parte integrante e a mais alta expressão da cultura que a anima.

Nutrir-se nas culturas grega, romana e árabe é um desejo dos espíritos mais avançados. Assim, a herança cultural é avaliada de maneira crítica, viva e objetiva, numa utilização que enriquece a cada passo o patrimônio herdado. Tudo que era humano lhes interessava, e o saber constituía a maior recompensa ao esforço do espírito.

Num período em que ainda imperava a unidade das artes plásticas, os dados filosóficos, científicos e técnicos de outras áreas eram assimilados conjuntamente nas construções arquitetônicas e escultóricas e nas obras cromáticas. Por sua vez, tais atividades contribuíam para os mais variados ramos do contraditório saber nascente, com suas experiências e fantasias.

Em Leonardo aguçam-se todas as contradições do Renascimento e nele a superação de inúmeras delas coloca a arte e o conhecimento renascentistas em seu ponto culminante.

Foi ele, sem dúvida, o mais autêntico representante dos novos ideais que agitavam a Península Itálica no fim da Idade Média e início dos Tempos Modernos. Para ele, mais do que para qualquer outro homem, parece ter sido criado o termo gênio.

Era um ser de exceção, mas perfeitamente entrosado na complexa gama de interesses e especulações artísticas, religiosas, filosóficas, científicas e até militares que abalavam as Cidades- Estados peninsulares (sua carta a Ludovico, o Mouro, o comprova). Se não era homem de ação no sentido comum da palavra, seria muito

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menos um alienado. Era, sobretudo, um visionário, que nutria realizações e sonhos com os elementos especulativos mais avançados das ciências e das artes, gerando um descompasso entre seus projetos e a possibilidade prática de executá-los no nível do desenvolvimento técnico e social de seus dias. Sua ação de pensador e pesquisador correponde- ria muito mais às necessidades futuras da sociedade moderna do que às exigências do século em que viveu.

Para os homens do século XX Leonardo representa uma síntese do saber da Antigüidade acumulado historicamente e enriquecido por vários gênios do pré e do Renascimento. A atração que suas obras continuam exercendo sobre nós é a maíor prova de sua atualidade. Como método de raciocínio e de proposições, contêm ainda ho-je elementos da mais autêntica vanguarda.

Procurando explicar o gênio (ou herói), Carlyle (deixando de lado a superestimação do papel do indivíduo na História) o define como o ser excepcional nascido em período de fé coletiva, que por inúmeras circunstâncias é capaz de revelar com maior clareza as elevadas aspirações, anseios e sonhos de toda uma época e, até mesmo, de várias épocas e períodos históricos diferentes.

0 gênio é sempre original, mas, para Carlyle, a originalidade não decorre da prioridade e sim da revelação da autenticidade. E, como se sabe, o movimento de idéias designado por Renascimento foi obra de homens sobretudo autênticos, num dos momentos históricos de maior fé coletiva: fé na razão, fé nos princípios científicos, fé nos poderes da beleza e fé principalmente no homem.

O homem passou a ser a medida de todas as coisas, e os sentidos humanos ascenderam à posição de instrumentos conscientes de perscrutação e aferição da natureza, preparando a revolução científica e deixando para trás todo um arsenal de misticismo, crendices e discutíveis saberes.

Pensador universal, liberto de qualquer preconceito ou dogma, Leonardo, mesmo utilizando os sentidos como instrumentos de pesquisa, já não aceitava os informes das sensações como verdades absolutas e incisivamente afirmava: "Se duvidamos de cada coisa que passa pelos sentidos, como não duvidar também daquelas que são rebeldes aos sentidos, tais como a essência de Deus, a alma e outras questões similares sobre as quais eternamente se discute? É necessário que sempre onde falta a» razão apareça, suprindo-a, a dissertação; o que não acontece com as coisas verdadeiras. Diremos, pois, que ali onde se discute interminavelmente não há verdadeira ciência, a verdade não tem mais que um só termo, e este, uma vez expresso, destrói o litígio para sempre."

Durante a Renascença, à medida que o sentido da história humana começa a se revelar com maior coerência, surge paralelamente o desejo de se levantar também a história da pintura. Leonardo não escapou a essa tentação. Ao expor sua concepção, demonstra admiração pelas obras da Antigüidade e respeito pela experimentação na-turalista.

Num período em que se estava ainda longe de descobrir e avaliar criticamente a arte paleolf- tica, como a maioria dos homens cultos de seu tempo ele aceitava a lenda grega do nascimento da pintura, atribuída à ação da jovem Debutade, filha de um oleiro de Sicione, que, ao despedir-se do amado que partia para a guerra e querendo guardar sua lembrança, traça-lhe com carvão o contorno do perfil, projetado no muro pelo sol poente."A primeira pintura - escreve Leonardo - foi unicamente uma linha que contornava a sombra de um homem feita pelo sol sobre um muro. A pintura, de idade em idade, vai declinando e perdendo-se quando os pintores têm por único mestre a pintura precedente. 0 pintor realiza um trabalho pouco excelente se toma por modelo a pintura de outro; porém, se se inspira na natureza, logrará bons frutos. Desde a época dos romanos, vemos que os pintores, imitando-se, de idade em idade, fizeram declinar esta arte. Logo veio Giotto: este florentino, nascido nos solitários montes em que só habitavam as cabras e animais do mesmo tipo, vendo a natureza de frente, semelhante â arte, pôs-se a executar sobre as pedras as atitudes das cabras que apascentava, con-tinuando logo depois com todos os animais que havia no lugar, de tal maneira que, depois de muito estudo, ultrapassou não só os mestres de seu tempo, mas também muitos outros dos séculos passados. Depois de Giotto a arte declinou, porque todos imitaram as pinturas já feitas; e assim, de século em século, continuou a decadência até Tomaso, Florentino, chamado Masaccio, que mostrou, por meio de uma obra perfeita, que aqueles que tomam por mestre a outro que não seja a natureza, mestra de mestres, se esforçam em vão."A INFLUENCIA DE ALBERTI E O SABER DA ANTIGÜIDADE

Durante a infância, a adolescência e o período de formação cultural e artística de Leonardo, uma das personalidades mais influentes, dentre os intelectuais florentinos, era Leon Battista Al- berti (Gênova 1404 - Roma 1472), humanista, teatrólogo, poeta, matemático, musicólogo, escultor, pintor e arquiteto, que continuou a linhagem espiritual de seu grande mestre Brunel- leschi. O prestígio de Alberti como teórico das artes visuais permanece inalterado até os nossos dias, principalmente pelos seus três livros de arte: De Statua (sobre a escultura), De re Aedifi- catoria (sobre a arquitetura) e De Pictura (sobre a pintura).

No tratado sobre a pintura, Alberti coloca a arte renascentista em pé de igualdade com a da Antigüidade. Considerava a impressão de relevo, traduzindo a terceira dimensão, o elemento essencial da pintura e insistia na necessidade de se "fazer girar as figuras" pelo afastamento dos planos. Condenava os fundos de ouro da arte bi-zantina, por serem elementos estranhos à pintura. Conhecia bem a perspectiva

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geométrica teorizada por Brunelleschi. ê bem possível que ambos tivessem conhecido no original a Perspectiva comunis, de John Peckham (Sussex 1220 — Can- tuária 1292), que seria traduzida para o italiano, em 1482, por Fazio Cardano. Preocupou-se em desenvolver os elementos cognoscíveis da perspectiva aérea, e exigia que o pintor fosse culto, lesse os poetas, estudasse os gestos, as expressões e os movimentos do corpo humano.

Os conceitos de Leonardo com referência à pintura em nada diferem dos de Alberti: em muitos casos, constituem um aprofundamento deles, como indica sua teorização da perspectiva: "A perspectiva é uma razão demonstrativa pela qual a experiência confirma que todo objeto envja ao olho sua própria imagem mediante linhas pira- midais".

A explicação racional do que faz é uma necessidade para a maioria dos que trabalham criativamente. E essa explicação é comum nos manuais e escritos diversos dos grandes artistas do Renascimento. Portanto, é natural que encontremos em tais obras suas indagações e respostas teóricas ém torno dos elementos cromáticos uti-lizados. A percepção de uma infinidade de cores, na natureza, há milênios não iludia mais aos filósofos e pesquisadores, que intuíam serem elasproduzidas apenas por um pequeno número de cores, dando origem a todas as outras.

A determinação de quantas e quais seriam essas cores que originavam as demais é que permaneceria duvidosa até bem perto de nossos dias.

A primeira revelação de uma verdade quase integral a esse respeito.nos vem de Alberti, clareando e ordenando exposições de Plínio.

Quando se acompanha o longo esforço humano para entender o que seja a cor e descobrir suas características, surpreende-nos que muito antes de Plínio já se constatasse que na natureza existem apenas três cores principais; surpreende- nos ainda mais quando verificamos que as três cores eleitas estão bem próximas das que a Física moderna utiliza como primárias ou básicas. Embora o sentido de cor principal, entre os antigos, não fosse exatamente o mesmo que usamos para designar as cores primárias, era já uma hierarquização das cores, resultante da percepção de suas características.

Segundo Plínio (4j| "... existem três cores principais: o vermelho vivo, que brilha com todo o seu esplendor nas rosas e encontra o reflexo nas púrpuras de Tiro, na púrpura duas vezes tingida e na de Lacônia; a cor da ametista, que brilha nas violetas e se reencontra na cor púrpura, e aquela que denominamos iantino (nós só falamos dos gêneros que oferecem várias subdivisões); enfim, a cor conchífera propriamente dita, de várias sortes. (...) Eu vejo nos autores que o amarelo recebia honrarias desde os tempos mais antigos, mas o reservavam exclusivamente para as mulheres, para seus véus nupciais; pode ser que de lá venha a origem dele não ser incluído entre as cores principais, quer dizer, comuns aos homens e às mulheres; é de fato este uso comum que dá o primeiro lugar".

Quando se trata das três cores principais, Plínio refere-se às suas características. A seguir, falando de uma modalidade de uso, acredita ser esta a razão da exclusão do amarelo como cor principal e não por suas propriedades físicas, É evidente que a opinião dos "autores" (que só poderiam ter como ponto de partida a filosofia grega) gira em torno de problemas físicos e não da pura ordem dos costumes.

Relativamente à cor, por vezes, consideramos com extrema superficial idade o juízo dos povos da Antigüidade, deixando-nos atrair por um anedotário pitoresco, em detrimento dos elementos de conhecimento que a duras penas procuravam abrir caminho à ciência.Seria um falseamento histórico julgar o pensamento de sacerdotes, magos e curandeiros co mo sendo o único da Antigüidade. O fato de que tal pensamento dominasse_em certos períodos, por vezes muito longos, não impediu que fosse superado pela verdade dos conhecimentos latentes que coexistiam e se desenvolviam. Portanto, parece-nos bem mais atraente, útil e significativa a história desses conhecimentos subjacentes do que a do conjunto de idéias extravagantes, por vezes risíveis e absurdas, que afloravam.

Se o estudo dos astros gerava paralelamente a astrologia, especulada por poucos, o importante historicamente eram os rudimentos da astronomia que procuravam decifrar o universo e tinham valia para a navegação e a organização dos calendários agrícolas, beneficiando a todos. Se a revelação de valores expressos em números possibilitava o aparecimento da numerologia, manipulada por alguns, mais bela é a história de sua uti-lização prática, em que os dados matemáticos empregados pela maioria na criação de medidas de grandeza cada vez mais exatas e na construção de módulos científicos, industriais e artísticos dão forma às aspirações gerais.

Defendendo a prática científica, diria Leonardo que a experiência era "inimiga dos alqui- mistas, necromantes e outros espíritos ingênuos". No mesmo sentido, em alusão à cor das pedras, afirmaria Plínio: "Os magos mentirosos dizem que a ametista impede a embriaguez, acreditando que isto está bem de acordo com a aparência e a cor desta pedra — daí, segundo eles, o nome que ela tem. Demais, se nela se inscrevem os nomes da lua e do sol, e dependurada ao pescoço com pelos de cinocéfalo ou de andorinha, ela preserva os malefícios. Ao ser usada, ela consegue de qualquer maneira um favorável acesso junto aos reis; se se recita uma prece que os magos indicam, ela impede a chuva de granizo e as pragas de gafanhotos. Quanto às esmeraldas, eles lhes atribuíram iguais virtudes, com a condição de gravar-lhes águias e escaravelhos. Sem dúvida, foi com um sentimento de desprezo e de zombaria para com o gênero humano que eles escreveram tais coisas".

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Como outros naturalistas e filósofos da Antigüidade, Plínio considerava a cor do ar como verde. Descrevendo uma espécie branca de ametista, dizia: "Ela reúne à transparência do cristal o verde particular do ar..."PERSPECTIVA AÉREA

A descoberta da cor do ar faz parte do acervo de deduções experimentais do Renascimento. Sua importância para o estudo da cor cresce de significado quando se percebe que ela éa base da teoria da perspectiva aérea, assim descrita por Leonardo: "O azul é a cor do ar, sendo mais ou

menos escurecido quanto mais ou menos esteja carregado de umidade. (. . .) Existe uma perspectiva que se denomina aérea e que, pela degradação dos matizes no ar, torna sensível a distância dos objetos entre si, mesmo que todos estejam no mesmo plano."

E exemplificando: "0 primeiro edifício além do muro será da cor natural; o segundo estará ligeiramente alinhado e com uma coloração um tanto azulada; o terceiro, ainda mais distante, estará mais azulado. Se desejar que outro apareça cinco vezes mais distante, procure que tenha cinco graus mais de tom azulado e, por esta regra, os edifícios sobre o mesmo plano parecerão iguais em tamanho e, no entanto, se notará perfeitamente a distância e dimensão de cada um deles. (. . .) As coisas mais distantes parecem mais azuladas, devido à grande quantidade de ar que se encontra entre a vista e o objeto."

0 sentido de realidade física da pintura renascentista baseia-se na conjugação dás perspectivas aérea e linear. "A diminuição da qualidade das cores está em concomitância com a diminuição dos corpos coloridos. Sem a perspectiva das cores, a perspectiva linear não é suficiente em seu movimento para determinar as distâncias".CORES PRIMARIAS

As descrições dos antigos a respeito do número de cores principais, do efeito de refraçãò e da cor do ar contribuíram como elementos instigadores da investigação renascentista do problema essencial para a manipulação da cor: a determinação do número e de quais sejam as cores primárias.

0 interesse milenar de cientistas e artistas em tomo do número mínimo de cores invariáveis e indecomponíveis necessário à formação das demais cores existentes na natureza seria satisfeito quase integralmente por Alberti:

"Parece óbvio que as cores tomam da luz suas variantes: porque todas as cores, colocadas na sombra, aparecem diferentes do que são na luz. A sombra faz a cor escura; a luz, onde ela atinge, toma a cor clara. Os filósofos dizem que nada pode ser visto enquanto não for iluminado e colorido. Por conseguinte, afirmam que há íntima relação entre a luz e a cor, em se fazerem visíveis. A importância disto é facilmente de-monstrada, pois quando falta a luz não há cor, e quando a luz aparece a cor surge também. Logo, me parece que, primeiro, devo falar das cores; então investigarei como elas variam sob a luz... Falo aqui como pintor. Pela mistura de cores, infinitas outras cores aparecem, mas há somente quatro cores verdadeiras — como existem apenas auatro elementos (fogo, terra, água e ar) —- das quais mais e mais tipos de cores poderão então ser criados. Vermelho é a cor do fogo; azul, do ar; verde, da água, e cinza, da terra. Outras cores, tais como o jaspe e o pórfiro, são misturas destas. Assim, há quatro gêneros de cores, e elas fazem suas espécies de acordo com o aumento de sombra ou luz, preto ou branco, tornando-se quase inumeráveis (. . .). Por conseguinte, a mistura com o branco não muda o gênero das cores, mas forma espécies. O preto, quando misturado, contém igual força para produzir espécies quase infinitas de cor. Nas sombras, as cores escurecem. A medida que a sombra se aprofunda, as cores esvaziam-se e, quando a luz aumenta, as cores tornam-se mais abertas e claras. Por esta razão. o pintor deve persuadir-se de que preto e branco não são cores verdadeiras, mas sim alterações de outras cores..."

Ao ampliar de três para quatro o número das cores já definido por Plínio 14 séculos antes, Alberti paga elevado preço por seu amor à teoria dos quatro elementos. De qualquer forma, cabe- lhe o mérito de ter sido o primeiro a determinar com exatidão as três cores primárias, falhando apenas pela inclusão de uma quarta, que a rigor não é cor. Eliminando-se o cinza das quatro cores citadas, teremos precisamente as três primárias consagradas pela Física moderna: vermelho, verde e azul.

Dezenove séculos antes, Aristóteles afirmava que as cores eram sete e que as demais colorações decorriam da mistura destas. O preto e o branco estavam estre as sete cores. Ele acreditava que toda cor resultava da mistura do branco com o preto. De modo geral, os filósofos da Antigüidade oscilavam entre dois conceitos: o primeiro, dominante, considerava a cor como propriedade dos corpos; o segundo baseava-se na tese de que os fenômenos de coloração eram fruto de um enfraquecimento da luz branca. Este último conceito permaneceu vivo durante a Idade Média e, mesmo depois das teorizações de Leonardo, Gre- gory e Newton, ainda foi capaz de influenciar Goethe.

"Corno os sabores, as cores são em número de sete, se, como é lógico, admite-se que o marrom é uma nuance do preto. O amarelo reporta- se ao branco, e entre o branco e o preto vêm colocar-se o vermelho, o violeta, o verde e o azul. As outras cores resultam da mistura das precedentes."

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Leonardo assim definiria as cores primárias: "Chamo cores simples aquelas que não podem ser feitas pela mescla de outras cores.(. . .) O branco, se bem que alguns filósofos não aceitem nem ao branco nem ao preto como cores, porque um é a causa do outro e o outro a privação da cor, o pintor não poderia privar-se dele e, por

isso, o colocamos em primeiro lugar. O amarelo, o verde, o azul, o vermelho e o preto vêm em continuação."

Na classificação de Da Vinci figuram tanto as três cores físicas (vermelho, verde e azul) como as três cores qu ímicas (vermelho, amarelo e azul). Com relação aos elementos naturais, diria: "O branco eqüivale à luz, sem a qual nenhuma cor é perceptível; o amarelo representa a terra; o verde, a água; o azul, o ar; o vermelho, o fogo; o preto, as trevas."

Das quatro cores citadas por Alberti, Leonardo apenas substituiu o cinza pelo amarelo, de vez que ele mesmo reconhecia o caráter diferenciado do branco e do preto em relação às cores.

Percebia Leonardo que, para a produção de todas as cores existentes no universo, as geratri- zes seriam o vermelho, o amarelo, o verde e o azul, porque com tais cores simples poderiam ser criadas tanto as cores-pigmento como as cores- luz, ou seja, toda a coloração da natureza.

Revitalizando a formulação de Aristóteles, Da Vinci insistia na inclusão do preto e do branco na escala, como única maneira de se poder revelar a característica de valor da cor, expressa em grau de luminosidade (rebaixamento no sentido do preto, ou degradação no sentido do branco). As escalas cromáticas de Chevreul, Ostwald e Munsell, realizadas três e quatro séculos depois, apoiaram-se nos enunciados de Da Vinci, incluindo o branco e o preto como limites extremos de luminosidade das cores.

Leonardo foi o primeiro a demonstrar de forma experimental que o branco é composto pelas demais cores. Um século e meio antes de James Gregory e Newton abordarem o assunto, ele afirmara em várias passagens de seus escritos: "O branco não é uma cor, mas o composto de todas as cores".VISÃO DA COR

Não obstante o respeito que tinha pelos antigos, Leonardo não aceitava a tese de Aristóteles de que a cor seja uma propriedade dos objetos, um de seus atributos.

Nada melhor para demonstrar sua divergência dos princípios peripatéticos do que a formulação em que reconhecia a importância do dado subjetivo no ato da percepção da cor: "Todo corpo que se move com rapidez parece atingir o percurso com sua própria cor. O relâmpago, que rasga as nuvens com rapidez, assemelha-se a uma cobra luminosa. Façamos com um tição um movimento circular, e sua circunferência parecerá de fogo."Até a revolução copérnica, numa herança medieval, o mundo culto continuaria reveren ciando o saber antigo, de modo quase dogmático. Maravilhado por esse saber, com exemplar modéstia Leonardo escreveria: "... uma vez que os homens nascidos antes de mim tomaram todos ós temas úteis e necessários, farei como aquele que, por pobreza; chega por último à feira e, não podendo prover-se de outra forma, adquire as coisas vistas pelos outros e recusadas por seu escasso valor. Nesta mercadoria menosprezada, recusada e proveniente de muitos fornecedores, investirei meu último pecúlio e desta maneira irei, não pelas grandes cidades, mas pelas pobres aldeias, distribuindo e recebendo o preço que merece o que dou."

Neste quadro geral, por vezes colaborando ou competindo com as teorias de Aristóteles, as obras de Platão, em manuscritos no original grego ou em latim, tiveram grande influência sobre os melhores espíritos renascentistas. Para essa influência contribuíram também o prestígio e a ação cultural do tradutor, filósofo e humanista Marcílio Ficino.

No Timeu, a explicação da visão cromática inclui vários elementos que o Mestre florentino incorporaria ao acervo de seus conhecimentos: "... cores, chama que se escapa de todos os corpos, em que as partes se unem com o fogo da vista, para formar a sensação. (...) O fogo exterior, que atinge a vista, a dilata em toda sua extensão até o olho, separa mesmo e divide com violência as partes do olho que servem de saída ao fogo interior, e faz sair fogo de nossos olhos; e esta água condensada que nós chamamos de lágrima, como este agente, é um fogo vindo de fora, e, assim, existe ao mesmo tempo fogo que sai de nós, como se ele fosse produzido pelo golpe, e fogo que entra em nós e vem apagar na umidade e que desta mistura nascem todas as cores; nós dizemos que a impressão experimentada é a do relâmpago e que o objeto que a produziu é brilhante e resplandecente."

Apesar de toda a admiração de Leonardo pelos antigos, seu espírito estava sempre atento aos fenômenos naturais. Criticando antigos conceitos, diria: "O olho, do qual a experiência mostra tão bem a função, até o meu tempo tem sido definido por um número infinito de autores de uma forma que julgo errônea. O olho não poderia enviar em um mês sua potência visual à altura do Sol. (...) A natureza fez a superfície da pupila conyexa, a fim de que os objetos que a rodeiam possam refletir suas imagens com ângulos maiores, o que não ocorreria se o olho fosse plano. (...) A pupila do olho recebe as imagens invertidas e, no entanto, elas são vistas direito. (• • .) O cristalino, no meio do olho, serve para endireitar as imagens que se entrecruzam na abertura da pupila, a fim de que a direita volte a

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ser direita, e que a esquerda torne a ser esquerda, por meio da segunda interseção que se forma no centro do cristalino". Em seguida, "são recolhidas pela sensibilidade" (nervo óptico) "e enviadas ao sentido comum, onde são julgadas".

Com os estudos de anatomia, descobriu o cristalino, chegando a julgar que era devido à sua função que a imagem invertida, ao penetrar no olho, voltava à posição normal. Só bem mais tarde é que a ciência pôde explicar que a reinver- são da imagem era obra do cérebro.

Sua argúcia levou-o a formular corretamente o funcionamento da visão binocular. E foi ele o primeiro a explicar que a distância entre os dois olhos é que permite a formação de imagens diferentes, do^ ponto de vista da perspectiva, criando a impressão de terceira dimensão: "As coisas vistas por dois olhos parecerão mais em relevo que as vistas só por um."

Partindo de constatações de Ptolomeu, Leonardo explica corretamente o funcionamento básico da pupila: "A pupila do olho, ao ar livre, altera-se de dimensão para cada grau de movimento solar, e com as variações da pupila se produz uma variação na percepção visual de um mesmo objeto, se bem que com freqüência a comparação dos objetos que nos rodeiam não nos permite descobrir estas mudanças no objeto que olhamos."

Poeticamente, diria: "0 olho, janela da alma, é a via principal pela qual o cérebro pode simples e magnif icamente julgar as infinitas obras da natureza."COLORIDO RENASCENTISTA

No que se refere è compreensão da cor, o longo caminho percorrido desde Simone Martini (1282-1344) até Leonardo é uma ascensão gradual de conhecimento teórico e de novos estágios cromáticos, mas não precisamente de um enriquecimento na aplicação prática da cor.

Simone Martini era o herdeiro de uma exuberante tradição e permanece ainda hoje como um dos maiores, coloristas de todos os tempos. Sua mestria na utilização dos fundos dourados, em que reluzem pedras preciosas em contraste com as carnações e a harmonia das cores vivas, quase gritantes, representa o ápice do desenvolvimento das possibilidades bizantinas e góticas.

No entanto, a euforia do brilho feérico das cores não seria o único caminho que conduziria ao amadurecimento dos meios técnicos do Renascimento. Revificando o legado de Apolodoro, Giotto, com sua visão pessoal, iria imprimir nova direção à técnica pictórica, utilizando-se do cla- ro-escuro. Embora várias cores vibrantes vitali- zassem suas obras, era na busca dos efeitos psico lógicos tirados do contraste de cores, fazendo valer suas afinidades com a luz e com as sombras, Que residiria a maior contribuição do pintor ao desenvolvimento geral das características renascentistas. O aprofundamento das pesquisas sobre o claro-escuro, principalmente quando se tratava de degradação de cores, e não do clareamento do preto, era em si mesmo o início do estudo da perspectiva aérea.

Do ponto de vista técnico, a evolução da pintura desde a pré-história até os nossos dias evidencia que o realismo renascentista só foi possível graças è descoberta das leis das perspectivas linear e aérea. A essas duas conquistas Leonardo somaria ainda o esfumado.

Mesmo em aplicação artística, as perspectivas linear e aérea fazem ressaltar suas origens científicas, o que não acontece com o esfumado, que, escondendo a ciência de seu emprego, deixa à mostra apenas a fantasia do artista, parecendo inscrever-se no domínio da pura sensibilidade.

Tanto a perspectiva aérea como o esfumado estão ligados às proporções de luzes e sombras (como acontece com todos os fenômenos visuais, em maior ou menor escala), razão que valoriza seu estudo como fonte da compreensão de vários estágios da percepção.

O florescimento da arte em diversos pontos da Itália iria desaguar, em suas expressões mais altas como movimento de conjunto, na obra dos pintores de Florença e Veneza, é comum encontrarmos a definição das correntes artísticas dessas duas cidades como sendo a da primeira mais racional e filosófica, e a da segunda, mais naturalista e sensual.

O contato com as reverberações luminosas das regiões do Adriático conduziria os pintores venezianos cada vez mais à representação da natureza. Em Giorgione (1480-1510) esta representação assumiria o primeiro plano de importância no quadro, abrindo caminho ao surgimento da paisagem como gênero de pintura.

O encanto da luminosidade e o terror das trevas em perpétua luta terminam por encontrar sua síntese pictórica no sábio emprego de luz e sombra, marcando o surgimento dos grandes coloristas - Ticiano (1477-1576), Paulo Ve- ronese (1528-1588) e Caravaggio (1573-1610). Oe tal modo os pintores venezianos se embriagavam com os sentidos que a Inquisição terminaria por não tolerar a quebra de seus cânones cro- máticos na "Ceia em Casa de Levi", pintada por Veronese. Defendendo-se, o pintor revela os princípios de sua moral estética, ao invocar o direito aos "vôos da fantasia e a licença que cabe aos artistas, aos poetas e aos loucos".

A violência da luz brotando das sombras intensas de Caravaggio (o Tenebroso) iria criar o

estilo luminista, e influenciar não só os italianos mas também os mais importantes pintores europeus: Velázquez, Van Dyck, Rembrandt, Vermeer de Delft, Frans Hals, Georges de La Tour, etc.

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A sombra desdobrava-se nas infinitas possibilidades do claro-escuro, como legado tangível do Renascimento. Leonardo foi o seu maior teórico, e o melhor título encontrado para seu livro foi: Tratado da Pintura e da Paisagem — Sombra e Luz. Em investigações ligadas às sombras, mas com objetivos científicos, estabelece compara-ção entre duas fontes de luz cuja intensidade mede pela diferença das sombras, desenhando um aparelho bem próximo do fotômetro que Rum- ford iria construir dois séculos depois.

Sensíveis coloristas, os venezianos impõem ao claro-escuro a técnica de contrastes comple- mentares de valores e de tons, em que, mesmo na mais intensa obscuridade, as cores vibram. Os tons quentes oriundos das terras coloridas eram apanágio da pintura renascentista. A longa prática da utilização dessa coloração termina por impor o castanho como cor intermediária entre a luz e a sombra, principalmente a partir dé Ticiano. Com ele, o castanho, representando a meia- luz, assume a função de um dourado que envolve todo o motivo. O castanho é a mais feliz representação das cores quentes na penumbra, devido ao seu ligeiro toque avermelhado. Em Ludovico Dolce, no seu Diálogos sobre a Pintura (1557), encontra-se o elogio globalmente teorizado desta preferência cromática. Todavia, a eleição do castanho como cor intermediária, em mãos menos experientes, conduzidas por espíritos menores, continha o germe da morte do colorido. Confundindo maneirismo com academicismo, a grande maneira de fazer é substituída por frias regras acadêmicas, baseadas na cor local, procurando contornar dificuldades, buscando suprir a ausência da verdadeira criação cromática por fórmulas e receitas insuficientes, que terminariam por diluir as vibrações luminosas, num todo inexpressivo de coloração duvidosa.

Também a arte florentina, principalmente através das teorias de Da Vinci e da pintura de Rafael, forneceria preciosos elementos aos futuros acadêmicos, num período em que todas as verdades daquelas formas já haviam sido esgotadas e tudo o que elas poderiam dizer já haviam dito.

O esgotamento das formas não significava que a maneira de fazê-las estivesse igualmente esgotada. Foi exatamente isto o que provaram os maneiristas.Encarando a pintura como "a mais importante das ciências", a contribuição teórica flo-rentina iria influenciar também a óptica Física, deixando ainda enorme saldo à disposição dos futuros movimentos artísticos, no que tange à essência científica dos meios formais.

As idéias e princípios científicos que alicerçaram a arte florentina dos séculos XV e XVI constituem a base de sua influência nas escolas e movimentos artísticos ocidentais posteriores.

Quando o gosto baseado nos padrões de beleza greco-romanos começara a entrar em crise no fim do século XVIII e princípio do XIX, em nada diminuiu o interesse dos espíritos mais cultos pelo estudo da arte renascentista. Era a re- descoberta dos elementos vitais que animaram essa arte que continuava a orientar as pesquisas de seres superiores como Goethe, Helmholtz, Chevreul, etc.

Mesmo em nossos dias, quando se festeja a negação da beleza como única forma artística válida e até mesmo é declarada sua morte, surgem novos caminhos para a arte contemporânea, e as leis essenciais que regeram as produções renascentistas voltam à tona. Voltam e voltarão sempre, em qualquer época em que se deseje pintar, porque são leis essenciais da pintura e não apenas elementos da técnica pictórica.

A beleza era uma aspiração da arte, e a arte do Renascimento era bela. Bela, no sentido de que assim foi considerada durante séculos e ainda hoje satisfaz às necessidades subjetivas de grande parte da humanidade.

Na obra de Leonardo, a beleza foi sempre algo que transcendia a própria pintura, para inscrever-se no âmbito das idéias expressas.0 ESFUMADO

No tocante à parte física do quadro, o ideal artístico de Leonardo revelavã-se no esfumado do claro-escuro, sua singular contribuição à pintura renascentista.

A suavidade buscada na claridade diáfana que se espalha sobre os corpos, gerada pela vitória da luz contra as trevas envolventes, correspondia à suavidade interior de Da Vinci.

O fato de conhecer anatomia melhor que qualquer outro artista não o levou a despir gratuitamente as figuras de seus quadros em demonstração de virtuosismo. O fato de conhecer a cor como só ele conhecia em seu tempo não o conduziu a buscar os contrastes cromáticos dominantes, e sim a utilizar seus conhecimentos para criar os climas psicológicos que mais traduzissem a sua personalidade artística.

"O que parece belo à vista nem sempre é justo; digo isto para certos pintores que sacrificam tudo à beleza do colorido, que suprimem as sombras ou as põem muito fracas e quase insensíveis. Estes, menosprezando sua arte, descuidam o re

levo que dão às figuras as sombras fortes, semelhantes a esses brilhantes oradores que não dizem nada de concreto."

Tendo muito a dizer, ele sacrifica o brilho exterior da pintura, em favor de uma maior veracidade, que não é apenas formal, mas expressão de uma rica subjetividade. Portanto, o esfumado do claro-escuro surge, em Leonardo, mais como uma exigência do espírito que busca realizar-se do que como uma técnica que procura impor-se.

Como diria Lionello Venturi, Leonardo "renunciou à riqueza da cor para viver em pobreza com as suas penumbras. Mas quem disse que a pobreza é menos artística do que a riqueza?"

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A BELEZA DAS CORESOs grandes coloristas de todos os tempos tinham e têm cada um o seu código

cromático, que se traduz sob a forma de estilo. Os troncos básicos desses códigos vêm do Renascimento, às vezes alterados por algumas escolas ou mestres influentes.

Leonardo foi o primeiro a revelar a essência comum a todos esses códigos e troncos - cujas origens se perdem na Mesopotâmia, Egito e Grécia -, penetrando no âmago da questão, elucidando os elementos das matrizes de beleza, no que se refere à sua constituição física.

Com ele aprendemos que essa essência é o contraste entre luzes e sombras, ou seja, entre claro e escuro. À medida que se alteram os contrastes, altera-se o nível de beleza. Daí poder-se concluir que a beleza da cor é sempre relativa.

Em seus escritos surge, pela primeira vez, na história da cor, uma disposição racional das afinidades das diversas cores em relação às luzes e às sombras. As cores só são belas quando expressam uma realidade, funcionando como luz, meia-luz, sombra ou treva. Esta afinidade das cores com a luz, com a sombra ou com a treva é, hoje em dia, facilmente constatada pela fotografia em preto e branco, "É preciso compreender que as diversas cores têm sua beleza em diversas partes: o preto tem a beleza da sombra, o branco a da luz, o azul e o verde tostados na meia- tinta, o amarelo e o vermelho nas luzes, o ouro em seus reflexos e a laca em suas meias-tintas."

A beleza das cores só se revela por inteiro, em cada uma delas, ao contato com a luz. "A cor que não brilha é formosa em suas partes iluminadas, porque a luz vivifica e

torna mais visível sua qualidade, enquanto que a sombra atenua e vela esta beleza e impede de vê-la. Se, ao contrário, o preto é mais belo na sombra que na luz, é porque o

preto não é uma cor." (,...) "A beleza de qualquer cor que não tenha brilho por si mesma cria-se pela grande claridade das partes mais

iluminadas dos corpos opacos".A idéia de beleza por afinidade foi expressa por ele da seguinte maneira: "A parte

de um corpo opaco que terá cor mais bela será aquela que se encontre próxima a um corpo da mesma cor. (...) A cor entre a parte sombreada e a parte iluminada será menos bela que em plena luz, de modo que a beleza da cor se vê nos claros principais."

Beleza por oposição: "Entre as cores iguais, a mais excelente será aquela que esteja mais próxima da cor que lhe seja contrária: como o vermelho ao lado do que é pálido, o preto com o branco. o amarelo dourado com o azul, o verde com o vermelho; cada cor parece mais acentuada perto de sua contrária do que ao lado de uma similar. (. . .) Se queres que uma cor dê graça à vizinha que lhe confina, vê os raios solares na formação do arco-iris."

Sua compreensão da força e da ação dos contrários, revelada nas cores, possibilitou-lhe a abertura do caminho para o domínio do contraste simultâneo de cores.CONTRASTE SIMULTÂNEO DE CORES

De todas as descobertas de Leonardo, nenhuma teve maior importância para o colorido nas artes visuais que a da simultaneidade dos contrastes de cor. Esta descoberta revela a essência da beleza do colorido, oriunda da ação das cores umas sobre as outras, ao mesmo tempo que mostra a relatividade da aparência da cor. Scherffer, Goethe e mais tarde Chevreul perceberam o alcance dessa descoberta, a ponto de Chevreul fazer dela o centro de sua teoria (Da Lei do Contraste Simultâneo das Cores).

Leonardo penetrou no núcleo do conflito que se estabelece entre cores justapostas, revelando a síntese do 'fenômeno. Mostrou que uma cor ao lado de outra mais escura tende a parecer mais clara do que realmente é, enquanto a outra se torna ainda mais

escura pela aproximação da mais clara. Da mesma forma, a qualidade cromática é acentuada simultaneamente quando uma cor se confronta com outra. "... Em geral as

cores ^contrárias têm uma forma particular quando estão opostas às suas respectivas contrárias. (...) A carnação empalidece sobre um campo vermelho, a pele avermelha-se

sobre um fundo amarelo, e também as cores parecem diferentes do que são, segundo o campo em que se encontrem."

A simultaneidade é claramente definida: "0 contorno de uma cor uniforme não se mostra igual se não termina sobre um campo da mesma cor. Isto se comprova quando o preto termina

sobre um branco ou o branco sobre um preto- cada cor parece mais nobre sobre os confins de sua contrária do que em seu próprio meio. (...) Há uma outra (regra) que tende não a fazer às cores mais formosas do que são naturalmente, mas que por sua companhia se embelezam umas às outras, como o verde com o vermelho e o vermelho com o verde, que se fazem valer por sua reciprocidade ..." Em outra experiência diz: "Os extremos dos corpos aparecem ora mais claros ora mais escuros do que são em realidade, quando o campo que confina com eles é mais escuro ou mais claro que a cor do corpo limitado."

Aprofundando as observações sobre o contraste simultâneo de cores, constatou o fenômeno da aparição de cores em área não pintada. Pela descrição feita, trata-se de dispersão cromática, uma das manifestações da cor inexistente, estudada na parte final

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deste livro. Embora a cor dispersa seja uma cor irradiada (uma forma de refletância que surge sobre o fundo claro, pela presença próxima da mesma cor mais intensa), ela se inclui entre as manifestações mais sutis das possibilidades cromáticas, num tipo especial de reverberação luminosa.

Leonardo assim a descreveu: "Se queres obter uma excelente obscuridade em oposição a uma excelente brancura, ou uma excelente brancura com a mais intensa obscuridade, o que é pálido parecerá vermelho, do mais chamejante vermelho, não por si, senão por comparação com o violeta..." (O grifo é nosso).

Apesar da deficiência de informações sobre quantidades (formas, áreas e proporções), é evidente que ele se refere a uma forma de contraste em que entram três elementos: a mais intensa obscuridade, e uma excelente brancura contrastando com o violeta. Neste caso, o vermelho "chamejante" seria fruto da dispersão do vermelho contido no violeta, conforme a experiência demonstra cabalmente.SOMBRA E LUZ

As sombras bem estudadas são uma característica do Renascimento, mas nenhum outro pintor ou filósofo preocupou-se tanto com o problema como Leonardo. Mais que qualquer outro, ele percebera no conflito entre luz e trevas o meio de revelação dos fenômenos cromáticos e o núcleo da linguagem plástica e psicológica.

Definindo a sombra, diria:"... é um acidente nascido dos corpos sombrios interpostos entre o lugar da sombra e o corpo luminoso. (...) A sombra é uma diminuição da luz; a treva é a privação total da luz."Quanto à relação entre luzes e sombras, constataria: "A soma das sombras é proporcional à soma das luzes, e quanto mais forte é a obscuridade que se vê, mais esplendor tem a luz."

Com uma abordagem inteiramente nova, ele abriria caminho à futura teorização das sombras coloridas. Chama-se sombra colorida a sombra de coloração complementar à cor do fundo onde ela surge. Percebendo que nem sempre a cor da sombra corresponde à do corpo onde aparece, Da Vinci deu o primeiro passo para a explicação do fenômeno das sombras coloridas ao demonstrar que as sombras cuja cor não corresponda ao escurecimento do corpo opaco onde surja são sombras produzidas pela conjugação de luzes de colorações diferentes.

Ainda no estudo das sombras, percebeu que a ação das cores dos objetos circundantes a uma superfície opaca tem o poder de influenciar essa superfície, colorindo-a. "Toda superfície de um corpo opaco, atingida pela cor de vários objetos, estará influenciada pela mescla das cores referidas; a parte do corpo opaco a-b-c-d estará mesclada de luz e de sombra, porque este lugar está atingido pela luz n-m e o escuro o-p" (ilust. 13).

Leonardo classificava de falsa a sombra descrita, por residir aí o cerne de sua opção cromática. Aceitando a inclusão de tal sombra na pintura, ele estaria aceitando os contrastes de cores que levam à pintura de tons, em oposição â pintura de valores, que defendia: "A sombra dos corpos não deve participar senão da cor dos corpos mesmos, ali onde ela se aplica. Portanto, o preto não sendo considerado cor, com ele desaparece a sombra de todas as cores, com mais ou menos obscuridade, conforme se encontrem no lugar, sem perder jamais totalmente a cor do referido corpo (senão nas trevas)."

A disposição das cores espectrais em forma circular sempre nos suscitou a indagação de como teria ocorrido pela primeira vez a idéia de dispô-las dessa maneira. Como Newton teria chegado a essa solução? Tudo indica que a origem foi uma adaptação do gráfico de sombras de Leonardo. Newton devia conhecer o desenho em que Da Vinci apresentava as sombras de um objeto divididas proporcionalmente e dispostas graficamente em forma circular. A idéia, válida para representar percentuais de sombras, poderia também representar percentuais de luzes.

Em outra experiência: "Quando um corpo opaco projeta sua sombra sobre a superfície de outro corpo opaco, este último estará iluminado por diversas luzes; então essa sombra não virá do corpo opaco mesmo, mas de outra parte. Isto de- monstra: seja n-d-e o corpo opaco e branco em si mesmo, e esteja iluminado pelo ar a-b e pelo fogo c-g e colocado na frente, entre o fogo e o objeto opaco o-p, cuja sombra se cortará sobre a superfície em d-n e a esse d-n não chega a vermelhidão do fogo, mas sim o azul do ar; então, em d-n haverá azul e em n-f, fogo. Portanto, a sombra azulada termina embaixo, com a vermelhidão do fogo sobre esse corpo opaco, e por cima termina em violeta, a saber: d-e está iluminado por uma cor mista, composta pelo azul do ar a-b-e e pela vermelhidão do fogo g-c, que é quase da cor violeta (ilust. 14). Assim se prova que essa sombra é falsa, que não é uma sombra do branco nem do vermelho que a rodeia."

A descrição de uma das experiências que gerou este desenho está ligada à anedota descrita por Merejkowsk em seu livro sobre Leonardo da Vinci e transcrita por Kandinsky (s): "Leonardo imaginara um sistema, ou melhor, uma gama de pequenas colheres, para medir as diferentes cores. Este sistema deveria permitir uma harmonia mecânica. Um de seus alunos, apesar de todo esforço, não conseguia empregar o método com sucesso. Desesperado, perguntou a um colega como o Mestre o fazia. - "0 Mestre não o utiliza nunca", respondeu-lhe.

Leonardo enuncia o método da seguinte maneira: "... colocando-se um objeto branco entre dois muros, um branco e o outro preto, entre a parte escura deste objeto

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e a clara haverá uma proporção parecida com a que existe entre as duas muralhas. Se o objeto é azul, produzir-se-á o mesmo efeito. Então, tens que pintar assim: para dar sombras ao objeto azul, pega um preto semelhante ao da muralha que supostamente deve refletir-se sobre o objeto; e para seguir princípios seguros, quando pintes um muro, procura tomar uma colher mais ou menos grande, segundo a dimensão da obra, com as bordas de igual altura, para medir a quantidade de cor que em- pregarás na preparação de tuas tintas."

"Se tiveres dado às primeiras sombras três graus de obscuridade e um de claridade, ou seja, três colheres cheias, e que estas colheres sejam de um preto simples, com uma colher de branco, a mescla será de uma qualidade certa e exata. Tendo feito um muro branco e outro escuro, se entre ambos colocas um objeto azul ao qual desejas dar o verdadeiro tom de sombra e de claridade que lhe convém, mistura de um lado o azul que será completamente escuro e o preto a seu lado; toma em seguida três colheres de preto e mistura-as com uma de azul claro, dando-lhes a sombra mais forte. Feito isto, vê se o objeto é redondo ou quadrado, ou crescente, ou exagerado. Traça linhas a partir dos extremos das muralhas escuras ao centro desse objeto redondo e coloca as sombras mais fortes entre os ângulos iguais, no lugar onde suas linhas se cruzam sobre a superfície do objeto, clareia pouco a pouco as sombras, afastando-te do ponto em que elas são fortes, por exemplo em n o, e diminui tanto de sombra como este lugar participe da luz do muro superior a d, e mistura esta cor na primeira sombra a b com a mesma proporção" (ilust. 15).

COMPOSIÇÃO DA LUZ BRANCADurante muito tempo a afirmativa de Leonardo de que "o branco é o resultado de

outras cores, a potência receptiva de toda cor", intrigou os estudiosos, despertando-lhes o desejo de saber como ele chegara a essa formulação, se por pura intuição, ou por comprovação prática.

Lendo inúmeras vezes os mesmos trechos de Leonardo, no intuito de confirmar-lhe a preocupação com as sombras coloridas, encontrei outro sentido expresso nos textos, que me escapara nas primeiras leituras, como escapara aos pesquisadores dos séculos precedentes que os analisaram. Trata-se da descrição de uma experiência que comprova caber-lhe irrefutavelmente a descoberta da composição da luz branca, e não a Newton,

Numa seqüência lógica de observações, Leonardo da Vinci acumulou os dados necessários à dedução de que a luz branca era o "produto de outras cores".

"0 corpo sombrio (o que não tem luz, em oposição ao corpo luminoso), colocado entre as paredes próximas de um lugar escuro, que está iluminado de um lado pelo esplendor de uma vela e do outro por um pequeno respiro de ar, será branco; então esse corpo se mostrará de um lado amarelo e do outro azulado". . . (ilust. 16). Ao iluminar um corpo opaco (branco), de um lado, com a luz amarela de uma vela e do outro com a luz azul diurna filtrada por um respiro, ele percebeu que na parte em que as duas luzes se misturavam surgia o branco.

Na Teoria das Cores, afirma Goethe que por muito tempo a Física considerou o amarelo e o azul como as únicas cores realmente básicas. Mas, de toda maneira, essa consideração só poderia ter ocorrido a partir das experiências de Leonardo, pois antes delas o que se conhecia de mais avançado era a concepção das quatro cores de Alberti.

O que a Física chama de síntese aditiva é exatamente o que Leonardo descobrira: que a soma de duas cores que se complementam produz o branco. Esta descoberta constitui a base de toda a teoria cromática dos tempos modernos.

Com a descrição da experiência citada, assumem novo significado as frases eufóricas, como que a gritar eurekal: "O branco não é uma cor, mas sim a potência receptiva de toda cor. O branco não é uma cor, mas o composto de todas as cores."

2Newton , e a Óptica Física

"Se pude ver tão longe, é porque gigantes me transportaram em seus ombros."Isaac Newton

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A partir do século XVI as investidas em tor- .no dos fenômenos cromáticos tornam-se cada vez mais precisas, à procura de definições inequívocas, se possível matemáticas. Mas o verdadeiro progresso no estudo da luz estaria reservado para o século seguinte. Os nimbos que se adensaram transformar-se-iam em benesses. Seria o grande salto qualitativo, cujas quantidades iniciais se firmavam nos raciocínios pitagóricos, em lenta e tortuosa evolução no curso de mais de 23 séculos.

Com a aplicação dos conhecimentos acumulados sobre os meios de manipulação da luz, o napolitano Porta (1541-1615) meíhora a câmara escura descrita por Leonardo da Vinci (lanterna mágica), dando ensejo a que o padre Kircher desenvolvesse seus princípios para a construção da primeira lanterna de projeção.

Numa intensiva busca dos fenômenos ópticos, em fins do século XVI Zacarias Jansen cria o microscópio. Amplia-se, no sentido inverso, a possibilidade de prospecção do universo quando Lippershey fabrica em Middelburg (1606) a primeira luneta de aproximação de objetiva conve- xa e ocular côncava. Três anos depois Galileu construiria a luneta que traz seu nome.

Todavia, o catalisador das principais inquietações científicas do período foi, indiscutivelmente, o matemático Johann Kepler (1571- 1630), cuja infortunada figura, pelas contradições de genialidade e desenfreada loucura de elu- cubrações mentais, místicas e científicas, exalta nossa imaginação e desperta a mais profunda simpatia humana.

Em 1604, Kepler escreveu a Óptica, estimu- tado pela compilação dos trabalhos de óptica de Ptoiomeu e Al Hazen (Alhazen), feita no século XIII por Vitellio. Demonstra nesse livro que a intensidade da luz diminui na proporção do qua

drado da distância. Retomando a idéia da câmara escura, faz avançar os princípios da câmara fotográfica. Eleva a outros termos a hipótese de Leonardo sobre o mecanismo de projeção de imagens invertidas no interior do olho e, ao definir melhor a função do cristalino, elabora teoricamente a fórmula das lentes para óculos de míopes e presbitas.

Desesperadamente, durante 18 anos Kepier buscaria a solução do desacordo entre a idéia herdada do movimento circular dos planetas e a evidência de. sua negação. Com intuição de visionário, terminaria por arrancar da montanha de notações de Tycho Brahe os dados precisos para descobrir as elipses que formariam A Harmonia do Mundo. As leis de Kepler dariam a Newton os elementos básicos para a formulação do grande princípio da atração universal.

O novo quadro da astronomia levantado por Kepler se entrelaça de tal maneira com os conhecimentos matemáticos e luminosos que se apresenta como uma conquista da matemática e da óptica, forçando passagem ao nascimento da Óptica Física. A visão do universo kepleriano é tão moderna e fornece tantos dados especulativos a Einstein que nos parece ter sido lançada na véspera do aparecimento das leis da relatividade.

Enquanto perseguia tenazmente as leis que regem as órbitas de Marte, escreve a Dióptrica (1610), com a qual funda uma nova ciência, destinada ao estudo da luz refratada. Nesse trabalho, Kepler desenvolve o sistema da óptica geométrica e instrumental, lançando ainda os princípios do telescópio astronômico, ou telescópio de Kepler. Com a Dióptrica procurou definir as leis da refração luminosa, por meio de vários corpos refratores, inclusive o prisma, sem contudo alcançar seu intento.

Cabe-lhe, no entanto, o mérito de ter aberto caminho aos êxitos do sábio holandês Villebrord Sneli — a quem se atribui a descoberta das leis da retração — bem como de Descartes, que publicaria um livro também intitulado Dióptrica (1637), onde faz ampla exposição das leis que regem a refração (leis dos senos) e a formação do arco-íris.

Em sua obra, Descartes revela as propriedades das lentes e explica a aberração da esferici- dade. Suas leis fundamentais sobre a reflexão e a refração têm o seguinte enunciado:

1.O raio incidente, o raio refletido e o raio refratado e a normal do ponto de incidência estão em um mesmo plano.

2.O ângulo de incidência é igual ao ângulo de reflexão.3. Há uma relação constante entre o seno do ângulo de incidência e o seno do ângulo

de refração, isto é:jeni_ ||gf sen r

onde n constitui o índice de refração do segundo meio em relação ao primeiro.Descortinando novos horizontes para a ciência da cor. Descartes a definiria como

sensação: "A luz é uma matéria fina e sutil que se propaga por toda parte e que fere nossos olhos. As cores são as sensações que Deus excita em nós, segundo os diversos movimentos que trazem essa matéria aos nossos órgãos".

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A idéia da cor como sensação resumia o conhecimento que se acumulara desde os atomistas gregos, passando pela intuição de Leonardo, até atingir a formulação de Galileu. Advertia Galileu para a necessidade de se distinguir na natureza as qualidades primordiais, como a posição, o número, a forma e o movimento dos corpos, e as qua-lidades secundárias, como as cores, os cheiros, os sabores e os sons, que só existem na consciência do observador. Para produzir em nós gostos, odores, sons e cores — dizia — "creio que nada se exige dos corpos exteriores, exceto formas, números e movimentos rápidos ou lentos. Penso que, se excluirmos os ouvidos, a língua e o nariz, permanecerão as formas, os números e os movimentos, mas não permanecerão nem os odores, nem o gosto, nem os sons. Estas últimas qualidades, na minha opinião, nada mais são que palavras, quando separadas dos seres vivos...".

Seguindo os exemplos de Copérnico e atento às teses de Pierre Ramus, Erasmo e Paracelso, contrárias aos princípios de Aristóteles, o abade, matemático e filósofo francês Pierre Gassendi (1592-1655) combateu violentamente a filosofia aristotélica, indo buscar em outros filósofos antigos o suporte para suas teorias. Assim é revivi

do e desenvolvido em nova escala o sistema de propagação corpuscular da luz criado por Leuci- po e difundido por Demócrito.

Um ano depois da morte de Gassendi, o matemático italiano Francisco Grimaldi lançaria as bases da teoria ondulatória da luz, comparando sua propagação ao comportamento das ondas formadas pelos líquidos. Essa tese ganharia rapidamente novos e influentes adeptos. Doze anos mais tarde o astrônomo e físico holandês Chris- tian Huygens publicaria o Tratado da Luz, que aborda a polarização da luz e outros fenômenos luminosos, explicados segundo a teoria ondulatória (forma de movimento vibratório).

Por volta de 1665 Isaac Newton empreeende de forma sistemática o estudo dos fenômenos luminosos, com base na luz solar. Os resultados de suas investigações possibilitaram-lhe alcançar os mais altos graus de conhecimento, na época, e são o tema do livro fundamental para a compreensão da cor: Óptica — ou um Tratado sobre a Reflexão, a Refração e as Cores da Luz, publicado em 1704. As idéias revolucionárias contidas nessa obra constituem a essência da óptica Física, nova disciplina por ele inaugurada. No livro é revelada a descoberta do mecanismo de coloração dos corpos através da absorção e reflexão dos raios luminosos determinadas por certas propriedades, que chamou de "cores permanentes dos corpos naturais".

Depois de interceptar um raio de luz com um prisma, fazendo surgir as cores do espectro, Newton realizou uma operação adicional em que as cores, ao atravessar um segundo prisma, ou uma lente convergente, recompunham a luz branca original (ilust. 17). A decomposição da luz branca pelo prisma permitiu-lhe deduzir que a separação espacial das cores simples é obtida graças ao grau diferente de refração de cada cor revelado ao atravessar os corpos transparentes. Essa refração é caracterizada por certa grandeza, denominada índice de refração. As aferições dos raios refratados possibilitaram a Newton retirar a noção da cor do âmbito das impressões subjetivas, para introduzi-la no caminho das medidas e verificações matemáticas.

O estudo da refração da luz pelos corpos mostrou que ela dependia, em grande parte, da substância de que era feito o meio refrator. Assim como varia o grau de refração da luz ac passar do ar para a água ou para o vidro, assim também varia o grau de refração da luz de acordo com a qualidade da substância refratora.Mas Newton descobriu também outra propriedade dos raios simples, que permite defini- los quantitativamente, sem levar em conta a natureza da substância que atravessam. Trata-se de seu comprimento de onda. Data daí a perda da importância da nomenclatura da cor para os físicos, uma vez que todos os cálculos e aferições dos matizes são feitos e expressos matematicamente em milimícrons, fugindo das confusões e imprecisões vocabulares e sensíveis.

Ao deduzir que a mesma síntese obtida com as cores-luz (o branco) poderia também ser conseguida utilizando cores-pigmento em movimento, Newton equivocou-se. Transportando para um disco de cartão a seqüência das cores espectrais, e dando a cada uma a área proporcional que elas têm no espectro, quando se gira o disco numa velocidade de 50 a 80 rotações por minuto, as sete cores reduzem-se visualmente a três, correspondendo às cores primárias. Aumentando a velocidade da rotação, ocorre o desaparecimento gradual dos azuis. A partir de 800 rotações por minuto, a mistura das luzes coloridas refletidas pelas cores-pigmento causa a sensação de uma cor ocre bastante forte, e não de branco,

como vem sendo difundido há mais de três séculos.O disco criado por Newton é dividido por raios em sete partes, correspondentes

proporcionalmente às cores do espectro, com os seguintes graus (ilust. 18):vermelho = 60 45' 34"laranja =34° 10'38"amarelo = 54° 41' 1"verde = 60° 45' 34"azul =54° 41' 3"anil =34° 10'38"violeta= 60° 45' 34"Por todas essas razões, dizer que os trabalhos de Newton contribuíram enormemente

para o desenvolvimento da ciência, em alguns casos, ó ainda muito pouco. No que se refere à cor, são a origem e a própria ciência num de seus momentos decisivos.

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3O Esboço de uma

Teoria das Cores, de Goethe'Tudo é teu, que enuncias. Toda forma nasce uma segunda vez e torna infinitamente a nascer" (...)

Carlos Drummond de Andrade (A Palavra e a Terra)"De tudo o que faço como poeta, não tenho a menor vaidade. Bons poetas viveram ao mesmo tempo em que eu, outros melhores ainda antes de mim, outros virão mais tarde; mas que no meu século eu seia o único que conheça a difícil ciência das cores, disso me vanglorio um pouco, e é por isso que tenho o sentimento de uma certa superioridade."

Johann Wolfgang Goethe (Carta a Eckermann - 19 de fevereiro de 1829)

De todos os pesquisadores, Goethe é o que exerce maior influência sobre os intelectuais e artistas contemporâneos, no tocante à utilização estética dos princípios cromáticos. Contudo, tal influência se processa por via indireta. Suas idéias, refletidas nos trabalhos de Chevreul, Rood, Ostwald, etc., e as inúmeras citações, visões e máximas sobre a cor que se espalham por toda a sua obra poética e de ficção, além da própria mística que envolveu sua paixão pela luz, respondem melhor pelo prestígio do autor, nesta matéria, do que seus experimentos científicos e teses, reunidos no Esboço de uma Teoria das Cores.

Até hoje a Teoria das Cores continua um livro incômodo para muitos. A agressividade polêmica contra as teorias de Newton, que tantas dificuldades causou ao livro quando de seu aparecimento, ainda o mantém num clima de reservas e de refutação prévia por parte dos cientistas. Por outro lado, seu caráter pouco acessível às pessoas de formação não científica criou barreiras à sua compreensão e maior divulgação.

A Teoria das Cores teve sorte diametralmente oposta à de Os Sofrimentos do Jovem Werther. Enquanto esta obra originou-se de iluminada inspiração quase juvenil e exigiu de Goethe relativamente pouco trabalho em sua realização, alcançando indiscutível sucesso imediato, aquela, que teria sido produto de maior ambição intelectual, consumindo-lhe mais de 30 anos de esforços em período de plena maturidade, foi contestada por muitos, utilizada em silêncio por alguns e permaneceu longos anos em completo esquecimento do público. Os Sofri- .mentos de Werther, embora continuem muito lidos, quase não têm influência na literatura contemporânea, ao passo que os princípios levantados pela Teoria das Cores - em que pese a seus conhecidos equívocos — são as bases das artes visuais do século XX.Comparando a Teoria das Cores com a mais importante obra literária de Goethe (uma das maiores da humanidade), poderíamos dizer que a glória universal do Fausto, explosão artística de seus conhecimentos e vivências acumulados durante toda a existência, foi o prêmio que a vida lhe dera; o reconhecimento da Teoria aas Cores, o que ele gostaria de ter tido.

Era um gênio e até mesmo os equívocos de tais homens têm o poder de ajudar os demais a descobrirem verdades antes não suspeitadas. Nao significa isto uma apologia das idéias que minimizam as diferenças entre o certo e o errado, entre o bem e o mal. Quer apenas dizer que os equívocos resultantes de elevados ideais de a- certo e perfeição trazem sempre em si alguma parcela desses ideais que os geraram.ANTECEDENTES E ORIGENS DAS PREOCUPAÇÕES CROMÂTICAS

Tendo vivido a juventude em intensa inquietação intelectual, seu espírito, que cada vez mais se nutria da cultura clássica, não deixaria escapar as premissas do Romantismo, que dominaria a Europa logo a seguir.

Apesar do extraordinário sucesso do Werther, que ojíituaria como indiscutível "chefe-de-esco- la", não seria Goethe um defensor do Romantismo, e afirmaria mais tarde: "Eu denomino clássico o que é são, e romântico o que é doentio. (...) As obras antigas não são clássicas por serem antigas, mas por serem vigorosas, vibrantes, alegres e sãs."

Mas sua opinião estética não era dogmática ou limitadora - para ele "a fantasia do artista não (devia) conhecer outra lei que ela mesma". Nessa paixão pelo classicismo está a origem de suas preocupações e investigações científicas. Os resultados de sua viagem à Itália são bastante es-clarecedores a respeito.

Muitos críticos, se não negam inteiramente a Goethe a vocação científica, qualificam-no neste terreno, como um pensador modesto so^ bretudo quando o comparam a Leonardo da Vinci e Newton, ou cotejam sua produção científica com sua própria obra literária. A grandeza do Fausto parece obscurecer os demais méritos dos êxitos que conquistara em outros campos do saber. No entanto, o simples título de divulgador dos trabalhos de Goethe sobre história natural e a deificaçao de suas idéias científicas bastaram para fazer a nomeada de Rodolfo Steiner em certos meios intelectuais.

A Metamorfose das Plantas e os escritos sobre mineralogia ainda hoje despertam interesse. Estudando anatomia, descobriu o osso inter-ma- xjlar, que, segundo ele, "constitui, por assim dizer, a pedra angular do homem". A observação do funcionamento dos órgãos dos sentidos possi -

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bilitaria sua descoberta capital no terreno das cores, a tendência à complementação cromática como função da retina, vinculando a pesquisa d8 cor ao campo da f isiologia.

A preocupação de Goethe com as cores data da juventude, quando iniciou a prática da pintu-ra e do desenho. A viagem à Itália seria decisiva para ampliar-lhe o conhecimento das artes plásticas num nível superior de entendimento. Na observação direta dos originais antigos, deduziria: "Estas sublimes obras de arte foram produzidas pelos homens, segundo leis verdadeiras e naturais, tal como as maiores obras da natureza". A busca dessas leis passou a ser o objetivo maior de suas pesquisas e de sua própria existência.

No momento em que começa a desvendar a complexa trama dos fenômenos físico-técnico- artísticos, paradoxalmente abandona a pintura, afirmando: "De minha prolongada permanência em Roma, obtive a vantagem de renunciar à prática das artes plásticas" (Viagem à Itália — 22 de fevereiro de 1788).

é bem verdade que esta renúncia ocorre num período de intensa realização literária, mas o grande fervor com que fala da arte do passado contrasta com a quase indiferença pela pintura de seu tempo: "De tudo isso', porém, restava-me apenas a observação de que os artistas vivos se valiam unicamente de fórmulas e de tradições mal assimiladas e de certo impulso, de maneira que claro-escuro, colorido e harmonia das cores giravam continuamente dentro de um círculo. .. que ninguém conseguia dominar, nem transpor os limites." Tudo indica que, por intuição e dedução, ele pressentia a crise que se alastraria no seio das artes plásticas.

0 desvirtuamento da maneira de fazer, em pleno domínio do academicismo, conduziria a pintura ao extremo esgotamento formal a que chegou a arte oficial de meados do século passa-do. E importante notar que a data da renúncia de Goethe à prática da pintura corresponde ao início de suas preocupações com os problemas optico-físicos e que os dois fatos estão intima-mente ligados. Cada vez mais ele reconhecia que uma grande arte só poderia ser fruto de leis verdadeiras e naturais, e o academicismo constituía a própria negação de tais leis.

Ardoroso defensor de uma arte de elevado conteúdo moral e humano, iria contribuir, também, com suas descobertas estético-científicas, para o advento da abstração nas artes plásticas quase um século depois de sua morte

A preocupação com a cor. que empolgou a maioria dos grandes espíritos de sua época foi também uma constante na vida de Goethe ' Retratando a atmosfera reinante, ele escreveria iro-nicamente: ' Quando se agita um trapo vermelho o touro se irrita e enfurece; porém, quando se fala em cor, o filósofo fica frenético."Os estudos mais aprofundados e a determinação de publicar sua teoria parecem ter-lhe surgido logo após a viagem à Itália. Em 1790 divulgou-se a "notícia de uma obra sobre as cores, realizada pelo Senhor Conselheiro Von Goethe", mais tarde comentada por ele nos seguintes termos: "Agora me atrevo a chamar a atenção do público sobre outra obra da qual penso expor uma parte, em compêndio. Trata das cores, sobretudo daquelas que podem chamar-se cores puras, primordiais, que só percebemos através de corpos incolores, como aquelas cores que nos mostram o prisma, a lente e a gota d'água." (Weimar, 28 de agosto dé 1791).

No curso de sua breve campanha militar (1792), vamos encontrá-lo com "o espírito mais preocupado com suas teorias sobre a óptica do que com as operações militares" (6). A verdade, porém, é que antes de 1790 já começara a preparar o livro Contribuições para a Óptica, prelúdio de uma .série de estudos que resultariam na publicação da Teoria dás Cores e na elaboração dos Materiais para a História da Teoria das Cores (1805 a 1810).

Esses trabalhos, enriquecidos com novas observações, formariam o Esboço de uma Teoria das Cores, terminado em 1820. A edição definitiva compõe-se de duas partes, ou dois livros in-dependentes, mas intimamente ligados entre si pelo desejo do autor em opor-se às teorias de Newton. Devido a esse fato, as matérias do primeiro livro, que contêm as magníficas contribui-ções goethianas, são expostas de maneira clara e didática, mas já com evidente intenção polêmica. A segunda parte, ou Livro II, é exatamente o que diz seu agressivo título: Parte Polêmica — Denúncia da Teoria de Newton.

Segundo se depreende logo na Introdução, Goethe considerava o Esboço de uma Teoria das Cores, também, como a terceira tentativa de uma história da cor: "Até agora só duas tentativas se registraram de Uma enumeração e classificação dos fenômenos cromáticos: a primeira por Teofrasto (filósofo e naturalista grego, 374-287 a.C.); a segunda por Boyle (Roberto Boyle, físico e químico inglês, 1626-1691). Não se discutirá o terceiro lugar, que cabe ao presente intento."

Na parte final dos Materiais para a História da Teoria das Cores (Confissão do autor), em tom de agradecimento, de grande interesse biográfico, escreve Goethe: "... um reparo que a mim mesmo faço: o de não ter citado meu insubstituível Schiller entre aqueles homens excelentes que espiritualmente me fizeram progredir. Devido à grande naturalidade do seu gênio, não apenas percebeu prontamente o ponto principal do qual dependiam todos os outros, como tam-bém, quando mais de uma vez fraquejava em meu caminho intuitivo, ele, com sua energia re-flexiva, obrigava-me a seguir adiante, como que me empurrava para o fim almejado."

DISCORDÂNCIA DA TEORIA DE NEWTONSabidamente, o que transforma uma hipótese em teoria é o resultado de sua experimentação

prática. Neste sentido, algumas das proposições de Goethe, sem causar o mínimo transtorno às teorias de Newton - contra as quais se arrojavam — também permanecem válidas, em muitos de seus aspectos, para utilização em campos que não sejam os da Física.

Não admitia Goethe que a luz branca (tendo a luz solar como típica) fosse formada pelas dife -rentes luzes coloridas do espectro: "Como pode a luz branca ser formada por luzes mais escuras que ela?"

A primeira vista, poderia parecer apenas simples incompreensão. Mas não se tratava disto. Tratava-se de uma não aceitação decorrente de razões especulativas, em que verdades relativas complicavam o que deveria ser simples. Ele estava informado, tanto quanto os físicos de nossos dias, com respeito à composição da luz branca. Sua formação cultural o levara a isso: "Eu estava convencido, como todo mundo, que todas as cores continham-se na luz branca; nunca me disse-ram outra coisa,' e tampouco pude encontrar a menor razão para duvidar disso, por não ter pe-

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netrado a fundo a matéria. Na Universidade, haviam-me ensinado a Física como aos demais, e coube-me ver as experiências..."

A recusa em aceitar essa verdade fechou-lhe o caminho da Óptica Física, tal como a concebe-mos desde sua criação, mas não impediu que ele imprimisse novo rumo à teoria das cores, enca-minhando-a no sentido da fisiologia e da psicologia. São os êxitos verificados nestes campos que dão atualmente à sua teoria caráter de contem- poraneidade.

Em 1820, comentando sua posição, Goethe afirmava: "Com isso, fiz com que toda a escola (newtoniana) se voltasse contra mim; todos se admiravam de que alguém sem o domínio superior das matemáticas ousasse contradizer Newton, porque pareciam não ter a mais remota idéia de que pudesse existir uma física absolutamente independente das matemáticas."

Goethe considerava a cor como um efeito que, embora dependente da luz, não era a própria luz. E assentava sua teoria sobre a existência de três tipos de cores: "as cores, primeiramente, como algo que faz parte da vista, são o resultado de uma ação e reação da mesma; em segundo lugar, como fenômeno concomitante ou derivado de meios incokxes; e. finalmente, como algo que poderíamos imaginar como parte integrante dos objetos. Às primeiras denominamos fisiológicas; és segundas, físicas, e às terceiras, químicas."

Demonstrando que as cores fisiológicas são produzidas pelo órgão visual, sob a ação de uma excitação mecânica ou como forma de equilíbrio e compensação cromáticos, e influenciadas pela ação do cérebro. Goethe faz avançar a caracterização da cor como sensação que se transforma em percepção.

Mas, ao descrever as cores físicas como fenômenos concomitantes ou derivados de meios in- colores, conscientemente recai numa variante do antigo conceito de que os meios refratores modificam a cor da luz branca. Idêntica volta ao passado ocorre quando descreve as cores químicas, retomando parcialmente a idéia da cor como propriedade dos corpos e não da luz que sobre eles incida. Dubitativamente, apresenta tais cores "como algo que poderíamos imaginar como parte integrante dos objetos".

A moderna divisão dos campos que estudam as cores corresponde precisamente às três cores de Goethe: Óptica Fisiológica (cores fisiológicas), Óptica Física (cores físicas) e Óptica Físico- -química (cores químicas).

Afirma-se hoje que a alteração da luz branca pode ser fruto de três causas: da disposição das moléculas no espaço, da natureza particular de um átomo, ou da organização dos átomos nas moléculas. A primeira causa atribuem-se os fenômenos de coloração por interferência e dif ração, por exemplo: coloração das bolas de sabão, arco- íris, etc. A segunda e terceira causas englobam os fenômenos de coloração dos corpos derivados das químicas inorgânica e orgânica.

Essas constatações da física e da química apóiam-se nas descobertas de Newton. No primeiro caso, as moléculas no espaço funcionam como meio refrator, decompondo a luz branca por dispersão dos raios coloridos. No segundo e no terceiro, a composição e organização dos átomos decompõem a luz por absorção e reflexão de seus raios.

De acordo com a formulação de Goethe, luz, sombra e cor deveriam coexistir para o surgimen-to da visão: "a claridade, a obscuridade e a cor constituem, juntas, os meios que possibilitam à tfista diferenciar os objetos e suas diversas partes. De forma que, baseados nesses três fatores, construímos o mundo visível, tornando* possível ao mesmo tempo a pintura, capaz de representar a visão de um mundo muito mais perfeito do que possa ser o mundo real."

O que Leonardo classificara apenas como afinidade de certas cores com a luz ou com a sombra, Goethe o toma num sentido absoluto:

"A luz engendra em si mesma uma cor que chamamos amarela, e a sombra, outra que denominamos azul. Se em seu estado mais puro amalga- mamos estas duas cores, obteremos uma terceira, que chamaremos verde. Porém, cada uma das duas cores primárias pode também determinar em si mesma um novo fenômeno, tornando-se mais densa ou escura, e neste caso toma um tom avermelhado, que é possível aoentuar-se até o extremo de não se poder distinguir nela o amarelo e o azul primitivos. No terreno físico, pode-se obter o vermelho mais vivo e puro combinando os dois extremos do vermelho amarelado e do vermelho azulado. Este é o aspecto vivo do fenômeno cromático e da produção das cores."

Sobre a mutação das cores, declara como lei geral: "Todo branco que escurece turva-se e tor-na-se amarelo, todo preto que clareia torna-se azul. (...) No desenvolvimento químico dos pig- mentos, comprovamos o mesmo: a coloração amarela que recobre o aço escurece ao mesmo tempo a superfície brilhante. Ao transformar-se o branco de chumbo em massicote, realça o fato de que o amarelo é mais escuro que o branco."

Goethe consegue provar que está certo em alguns pontos referentes à sensação da cor, mas de forma alguma invalida a teoria de Newton — ao contrário, enriquece-a com novos dados e par -ticularidades supletivas ou adicionais.ANTIGAS VERDADES E DESCOBERTAS DE GOETHE

Decorridos mais de 150 anos, podemos avaliar melhor a contribuição de Goethe para a ela-boração da moderna teoria das cores.

Historicamente, seu maior mérito reside em ter percebido as questões essenciais que abririam caminhos à pesquisa, realizando o mais especulativo dos trabalhos escritos até hoje sobre a utili-zação estética da cor — o que eqüivale a dizer, destacando a influência dos elementos da física, química, filosofia, fisiologia e psicologia.

Todos os teóricos surgidos posteriormente valeram-se de suas proposições. Ostwald, agrade-cendo aos grandes homens do passado que contribuíram para o enriquecimento de seu saber, cita entre outros Newton, Goethe, Young e Chevreul. Os resultados das experiências do físico norte-americano Land, em 1959, descobrindo o processo fotográfico polaróide, consagrou o acerto das idéias de Goethe no tocante à polarização luz-tênebra.(7)

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Percepção da corPartindo da realidade física, não se pode negar a existência objetiva dos componentes da luz

branca, nem tampouco esquecer que esses componentes só criarão a sensação da cor em deter-minadas condições. E tais condições, por mais variáveis, serão sempre expressões de quantidade de sombras.

Essas particularidades não escaparam à intuição de Goethe. Também Newton não desconhe-cia a necessidade do ambiente escuro para o êxito de suas experiências, mas na física a sombra não conta, é encarada apenas como diminuição ou ausência de luz, ao passo que fisiológica, psi-cológica e esteticamente sua importância sempre rivalizou com a da própria luz na avaliação dos fenômenos cromáticos.

Sem que estivesse certo quanto à composição da luz e natureza dos matizes,Goethetinha razão no tocante ao surgimento da sensação colorida — não pelos argumentos que apresentava, mas porque os diferentes raios luminosos (matizes), apesar de sua existência objetiva, não são cores. A cor, sendo uma sensação, é produzida pelos matizes, mas tal fenômeno só se realiza em certas condições, que exigem contrastes de luminosidade, ou seja, ação oposta entre luz e obscu-ridade. O fato de que as cores das estrelas não sejam vistas durante o dia (quando a luz solar eli -mina as trevas), e não se possa decompor a luz branca, a não ser quando exista um mínimo de sombra (como na formação do arco-íris e na re- fração produzida por lâminas delgadas), demons-tra o acerto de Goethe na afirmação de que "toda cor tem por origem uma luz e uma não luz...".

Segundo Goethe, todos os corpos transparentes são sempre mais ou menos turvos, contêm em maior ou menor escala alguma parcela de obscu ridade. O ar atmosférico que nos envolve (corpo transparente — portanto, corpo turvo, com certo nível de obscuridade) pode ser encarado como sombra que se mistura permanentemente com a luz, alterando-lhe a qualidade.

Quanto à coloração azul do firmamento, atualmente ninguém duvida de que seja causada pelas partículas extremamente pequenas de ar que difundem os raios luminosos de ondas mais curtas (azuis e violeta). Quando aumenta o tamanho dessas partículas, a coloração muda, chegando até ao vermelho do extremo oposto do espectro.

Como vemos, o fenômeno da decomposição da luz solar pela atmosfera é um problema de quantidade ligado à densidade do ar (sombras). Nestas particularidades fundaram-se as observa-ções a respeito de certas leis gerais que influem

no surgimento da cor inexistente e nas mutações cromáticas.Experiências físicas

Nem sempre a modificação da luz pela ação dos meios incolores obedece a mesma causa. Quando a luz atravessa um corpo incolor, sem se dispersar, a rigor sua alteração é apenas óptica, produzida pela densidade do meio incolor. Quando se dispersa por refração, interferência, etc., sua alteração é física.

Defendendo a tese de que a cor é fruto da luz' e da sombra, Goethe afirmava que "o fenô-meno cromático pressupõe o deslocamento da imagem" e que esta imagem é formada pela "combinação de contorno e superfície. As imagens deslocadas em virtude da refração apresen-tam bordas e limbos coloridos. (...) Ao deslocar-se uma imagem, a cor que a precede é sempre a mais larga, e a chamamos limbo; a que permanece aferrada ao contorno é mais estreita e a de-signamos com o nome de borda."

Mesmo sem aceitar a cor como decorrência da decomposição da luz branca, experimental-mente Goethe manipula os fenômenos físicos com valiosas observações, e comprova a verdade contida na descoberta das três cores-luz primárias (vermelho, verde e violeta, esta última mais tarde substituída pelo azul-violetado), atribuída ao Professor C. Wünch (1792).

A primeira experiência é assim descrita por Goethe: "Nos dois extremos opostos (do prisma) aparece em ângulo agudo um fenômeno contrário que, conforme avança pelo espaço, vai au-mentando em virtude do referido ângulo. Assim, na direção em que se desloca a imagem lumino-sa, projeta-se até a obscuridade um limbo violeta, enquanto sobre o contorno se mantém uma borda azul mais estreita. Do outro lado se projeta até a claridade um limbo amarelo, e uma borda vermelho-amarelada mantém-se sobre o contorno" (ilust. 19).

Ao defender o princípio de que a cor tem por origem a luz e a obscuridade, acrescenta: "No entanto, há de ter-se presente o movimento do escuro até o claro, e do claro até o escuro." E continuando a descrição de sua experiência, observa: "A parte interior de uma imagem grande permanece incolor um longo trecho, sobretudo em se tratando de meios de pouca densidade e efeito, até que não entrem em contato as bordas opostas, por linhas definidas, originando uma coloração verde na parte interior da imagem luminosa. Se recortarmos um cartão para interpô-lo diante do prisma, fazendo em seu meio uma abertura horizontal alargada e deixando passar por ela a luz do sol, o limbo amarelo e a borda azul fundem-se na claridade e só percebemos o vermelho-amarelado, o verde e o violeta," , .

Goethe discordava de que o fenômeno prismático se encontra completo ao emergir do pris-ma a imagem luminosa. Neste momento se percebem apenas "seus princípios contrapostos; logo se intensifica o fenômeno, fundem-se os contrários e acabam por interpenetrar-se. Recolhida em um anteparo, a seção deste fenômeno varia de acordo com a distância existente entre o prisma e o anteparo. de maneira que não cabe falar de uma ordem constante nem de uma intensidade igual de cores. (...) Geralmente as experiências objetivas foram sempre realizadas tomando por base unicamente a imagem luminosa do sol, e até agora quase nunca utilizando uma imagem escura. Mas indicamos também para esse fim um procedimento sensível: colocando-se o grande prisma oco ao sol e pondo-se um disco de cartão em sua face externa ou interna, também se apresenta o fenômeno colorido nos contornos, de acordo com a lei conhecida (surgimentos dos limbos e bordas); produzem-se e logo crescem as bordas, e na parte média aparece a coloração púrpura" (ilust 20).

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Percebeu Goethe que as cores (amarelo, púrpura e azul) projetadas no anteparo pelo* prisma coberto em parte pela imagem escura eram as complementares das obtidas com a experiência anterior (azul-violetado, verde e vermelho-alaran- jado). A indicação gráfica de cada tríade de cor aparece no canto inferior direito das pranchas V eVI.

No fim da terceira década do século XVIII os naturalistas de toda a Europa tomaram conhe-cimento da descoberta das três cores-pigmento primárias (vermelho, amarelo e azul), feita pelo impressor Le Blon. Embora utilizasse várias vezes a denominação em voga das cores primárias, a atenção de Goethe esteve sempre voltada para o fato de que mesmo em cor-pigmento as tonali-dades não eram exatamente as que a nomenclatura de Le Blon indicava. Foi Goethe o primeiro a ressaltar a importância da tríade amarelo- púrpura-azul, ao defender o caráter primário da púrpura em substituição ao vermelho. Mas a púrpura de que ele fala é a cor denominada moder-namente magenta. Depois de longas contradições, aceita-se hoje integralmente a formulação goethiana, por constatar que as colorações magenta, amarelo e ciano são as que melhor corres- ■pondem à condição de primárias em cor-pigmento.Cores fisiológicas

Dividindo em sete capítulos o Esboço de uma Teoria das Cores, num sentido de valorização hierárquica, Goethe trata em primeiro lugar das cores que denomina fisiológicas.

No estudo da função do olho e de seu comportamento em várias situações, faz algumas des-cobertas que constituem o centro de sua teoria e que iriam modificar o rumo dos conhecimentos cromáticos.

Revitalizando cientificamente antigas concepções da luz do olhar e dos raios visuais, afirma que o olho possui luz própria: "Graças à luz, adapta-se o olho â luz, a fim de que â luz exterior corresponda outra interior... no olho reside uma luz patente que se excita ao menor estímulo interior ou exterior. Como ato de nossa imaginação, podemos produzir na obscuridade as mais claras imagens. Nos sonhos, os objetos nos aparecem como em pleno dia."

Sua intuição leva-o a concluir que a visão humana propende para a total ização cromática, produzindo a todo instante as cores necessárias para atingir esse equilíbrio (cores fisiológicas). "Estas cores são as que se devem estudar em primeiro lugar, de vez que integralmente ou em sua maior parte referem-se ao sujeito, ao órgão da visão; estas cores que constituem o fundamento de toda teoria e nos revelam a harmonia cromática, origem de tantos debates acalorados, até agora, foram consideradas fenômenos secundários e fortuitos, ilusão e defeito da vista. Suas manifestações são conhecidas desde tempos remotos, porém, pela impossibilidade de apreensão de sua fugacidade, renegaram-nas ao reino dos fantasmas nocivos e as designaram neste sentido com os mais diversos nomes. Boyle denominava-as cores adventicii; Rizetti, imaginarii e phantastici; Buffon, couleurs accidentelles; Scherffer, colores aparentes; alguns qualificavam-nas de ilusão óptica e engano visual; Hamberger chamava-as vitia fuggitiva e Darwin, ocular spectra."

Imagens pretas e brancasAo estudar as imagens pretas e brancas, mostra que um objeto escuro parece sempre menor

que um claro do mesmo tamanho. Em sua argumentação, apóia-se em observações astronômicas de Tycho Brahe e na formulação de Kepler: "E certo que a dilatação dos objetos claros existe ou na retina, causada pela pintura, ou nos espíritos, causada pela impressão."

Veiculando um conoeito generalizado, afirma que "a roupa preta faz com que as pessoas pareçam mais magras que quando vestidas de claro".

Atualmente acreditamos que as imagens brancas parecem maiores que as escuras devido ao movimento excêntrico próprio das cores claras. Um círculo branco sobre fundo preto, fotografado inúmeras vezes, numa seqüência de fotos que tomem por modelo a fotografia precedente, tende a aumentar de tamanho progressivamente. 0 surgimento da imprecisão dos contornos é o primeiro sinal de sua ampliação gradativa.

Totalização cromáticaDepois de ressaltar o vigor da oposição entre o preto e o branco, Goethe retoma e desenvolve

a idéia contida na demonstração leonardiana — reveladora da propriedade que tem a retina de reter determinadas imagens — e teoriza magistralmente o fenômeno das imagens posteriores, positivas e negativas.

"Como no caso das imagens incolores, a impressão das coloridas persiste na retina, só que a vitalidade desta se faz sentir mais patente, pois incita à oposição, e realiza através do conflito uma totalidade. Se olharmos fixamente um pequeno pedaço de papel ou de seda de cor viva sobre um placar branco pouco iluminado e, passados alguns instantes, o retirarmos sem afastar a vista do lugar, perceberemos no placar branco o espectro de outra cor. Também, podemos dei

xar no mesmo lugar o papel colorido e desviar a vista para outro ponto do placar; perceberemos nele o mesmo fenômeno cromático, de vez que deriva de uma imagem que prontamente impressiona a retina. As cores diametralmente opostas se complementam na retina. Assim, ao amarelo, o violeta; à púrpura, o verde e também ao contrário. Todos os tons se complementam entre sf, e à cor mais simples corresponde a mais composta e vice-versa."Contrastes simultâneos de cores

Partindo do conceito de Leonardo referente è simultaneidade da ação de contrastes das ima-gens incolores, Goethe escreveria: "Uma imagem cinza apresenta-se muito mais clara sobre fundo negro que sobre fundo branco". E dos contrastes incolores ele passa aos contrastes simultâneos de cores, analisando-os do ponto de vista fisiológico:"Já que comprovamos que a toda cor sucede na retina a que lhe é complementar, só falta de-monstrar que este fenômeno é também simultâneo; Quando uma imagem colorida se inscreve

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numa parte da retina. logo a parte restante se põe a produzir as cores complementares das per -cebidas. ..

"A simultaneidade desses efeitos, que até aqui temos advertido nos casos diretos, pode-se comprovar, também, no inverso. Se colocamos um pedacinho de papel de cor alaranjada satura-da sobre um fundo branco, apenas olhando-o fixamente. percebemos no fundo restante a cor complementar azul; porém, se retiramos o papel alaranjado, em seu lugar se apresenta a imagem azul aparente; no instante de alcançar sua máxima intensidade, o resto da superfície cobre-se de um halo amarelo avermelhado; prova palmar da forma dinâmica como atua a lei que rege estes fenômenos.

"Estes fenômenos são da maior importância, porquanto nos sugerem as leis da visão e consti-tuem um requisito indispensável para o estudo das cores.

"O órgão visual propende essencialmente para a totalidade e contém em si mesmo toda a gama cromática."

A explicação dos contrastes incolores e dos contrastes simultâneos de cores como decorren-tes da tendência à total ização cromática, apoian- do-se no comportamento fisiológico, constituiu o dado original das descobertas de Goethe. A Chevreul não escaparia a importância dessa origi-nalidade, que seria o cerne da revolução pictóri- ca do século XIX, preâmbulo das artes visuais contemporâneas.

Sombras coloridasDenomina-se sombra colorida a sombra de coloração complementar à cor do fundo onde

surge. Pressentida e explicada, em parte, por Leonardo da Vinci, foi por ele mesmo qualificada como falsa.

Os grandes coloristas de todos os tempos, intuitivamente, sempre aplicaram em seus traba-lhos certos princípios físicos e, por vezes, até mesmo as sombras coloridas. A busca de defini-ções mais precisas inquietou Delacroix. ao observar os quadros de Turner e Constable. O Mestre francês parecia ver no princípio utilizado nesses quadros o germe das transformações que ocorreriam na pintura, logo a seguir, com o advento do Impressionismo.

No capítulo sobre as sombras coloridas, Goethe escreve: "Antes de prosseguir nessa exposição, devemos considerar os casos muito estranhos referentes a essas cores complementares. (. . .) Estas sombras coloridas, que agora se explicam tão facilmente, no passado foram um quebra-cabeças para os observadores. (...) A sombra colorida pressupõe, antes de tudo, que aluz que a projeta colore de alguma forma uma superfície branca e que uma contraluz ilumine até certo ponto a sombra projetada.

"No entardecer, coloque-se uma vela curta sobre um papel branco, e à minguante luz do dia interponha-se verticalmente um lápis, de modo que a sombra projetada pela vela se ilumine e não faça desaparecer a débil luz diurna. Então, a sombra tomará uma cor de belíssimo azul.

"Qualquer um nota imediatamente que essa sombra é azul; porém, só o observador atento re-para que no papel branco aparece uma superfície amarelo-avermelhada, e que é precisamente essa cor que provoca na retina a percepção do azul."

Como está claramente expresso, para Goethe a sombra colorida era um fenômeno fisiológico, mas tal conceito não corresponde aos dados objetivos.

Já em 1797 Benjamin Thompson Rumford definira o fenômeno das sombras coloridas, de-senvolvendo raciocínios de Leonardo: duas luzes coloridas que se complementam produzem sempre sombras de colorações complementares à coloração do fundo onde se projetem. A mais forte delas funcionará como luz, atingindo o fundo branco. A mais fraca, como contraluz, dando cor complementar à sombra. Concluindo, Rumford afirmaria que "duas sombras coloridas só estão em Derfeita harmonia quando a mescla de suas colorações causa a sensação do branco."

Essa afirmativa de sabor tão newtoniano não poderia ser aceita por Goethe. Não aceitando as evidências objetivas, não poderia teorizar um fenômeno físico, mesmo que fosse capaz de repro-duzi-lo quantas vezes quisesse. Na defesa de suas posições, chegaria a chamar de incolor, na experiência seguinte, a luz de uma vela, que na experiência anterior ele devia supor ser a origem do amarelo-avermelhado surgido no fundo do papel branco.

"Se de noite colocarmos duas velas acesas, uma ao lado da outra, sobre um fundo branco e colocarmos entre elas verticalmente uma varinha bem fina, de modo que se produzem duas

sombras, e em seguida colocarmos um vidro colorido diante de uma das velas, de sorte que a superfície branca apareça colorida, no mesmo instante veremos como a sombra projetada pela

luz agora corante e pela outra incolor toma a cor complementar."A rigor, a única luz teoricamente incolor é a do sol, pelo fato de a vista estar adaptada a ela.

A luz incandescente- das velas tem coloração mesclada de amarelo e vermelho.Como outros pesquisadores de seu tempo, Goethe percebeu a importância do fenômeno das sombras coloridas para a teoria das cores. A formulação da necessidade de uma luz e de uma rontraluz para sua produção é correta, mas incompleta. Não se trata de uma contrai uzqual- auer Para o surgimento da sombra colorida, a contraluz deve tender obrigatoriamente para a coloração complementar à da luz que projeta a sombra sobre um fundo claro.

Quase dois séculos depois das experiência e exposições teóricas de Rumford e Goethe refe-rentes às sombras coloridas, Johannes Itten, um dos mais destacados estudiosos da cor em nossos dias, ainda acredita terem sido originais suas exibições no Museu de Arte Decorativa de Zurique, em 1944. O que para o nosso contemporâneo pareceu "resultados surpreendentes", segundo sua afirmação e descrições na página 82 de seu livro Kunst der Farbe, Goethe no Esboço de uma Teoria das Cores já havia explicado as causas do fenômeno de maneira bem mais clara e convincente que ele.

Cor de contraste (cor inexistente)O fenômeno atualmente denominado cor de contraste — ou cor inexistente, quando aplicado

ao domínio estético— é descrito por Goethe mais ou menos nos moldes em que o haviam feito outros cientistas. Goethe considerava-o como fisiológico, mas na parte final de seu relato o

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apresenta com todas as características dos fenômenos físicos: "Em dias de sol radiante, a luz solar, dando tom à cor das flores, permite-lhes emitir a cor complementar com tal intensidade que, mesmo sob a luz mais viva, torna-se perceptível."

A qualificação da cor de contraste (cor inexistente) como fenômeno fisiológico retirou-a do campo das indagações físicas, atrasando em mais de 150 anos a possibilidade de seu domínio para utilização estética. Isto demonstra o quanto a teoria de Goethe foi aceita e influente entre os modernos pesquisadores. Haja vista que as normas vigentes da CIE (1931) consideram a cor de contraste como uma cor subjetiva, "percebida pelo observador posto em presença de uma situa-ção tal que uma cor indutora provoque sobre uma superfície vizinha a percepção de uma cor que não se apresenta fisicamente e que é a complementar fisiológica da indutora" (8).

Foi assim que Goethe viu a cor de contraste uma das vezes: "... fenômeno que já no passado chamara a atenção dos naturalistas. Contam que nas noites de estio certas flores se tornam fosfo- rescentes e emitem brilho de luz. Alguns observadores registraram o fenômeno. Mais de uma

vez ocupei-me em observá-lo pessoalmente e até fiz experiências neste sentido."Pois bem: em 19 de junho de 1799, na hora em que o crepúsculo vespertino ia cedendo lu-

gar, pouco a pouco, a uma plácida noite, eu passeava pelo jardim em companhia de um amigo, quando de repente nós dois percebemos com toda a clareza que umas papoulas orientais — que, como é sabido, são de um vermelho intenso — apresentavam por cima umas emanações seme-lhantes a chamas. Aproximamo-nos das flores e as olhamos f ixamente, porém não percebemos nada-; depois de várias idas e vindas pelo jardim, olhando de determinado ângulo, conseguimos reproduzir o fenômeno à vontade. Pudemos comprovar que se tratava de um fenômeno de cores fisiológicas e que aquele brilho aparente não era, em realidade, mais que a imagem aparente da flor que se mostrava da cor complementar verde- azulado.

"Quando se olha as flores de frente, não se produz o fenômeno; porém, afastando-se um pouco a vista, volta a produzir-se. Quando se olha com o rabo do olho, surge uma fugaz imagem dupla, percebendo-se a imagem aparente junto à real.

"No crepúsculo, quando os olhos estão completamente descansados, e por conseguinte mais sensíveis, a cor das papoulas é tão intensa, que até ao anoitecer dos dias mais longos é suficien-temente poderosa para produzir uma imagem complementar. Estou convencido de que se po-deria tomar este fenômeno como base para uma experiência e produzir o mesmo efeito com flo-res artificiais. '

"Quem deseje capacitar-se para a observação ao natural, deverá acostumar-se, em seus passeios pelo jardim, a olhar fixamente as flores coloridas e voltar a vista rapidamente para o caminho. Este parecerá salpicado de manchas de cor complementar. Pode-se fazer esta observação com o céu nublado, mas também em dias de sol radiante, em qbe a luz solar, dando tom à cor das flores, permite-lhes emitir a cor complementar com tal intensidade que, mesmo sob a luz mais viva, torna-se perceptível."

No trecho transcrito, Goethe engloba dois fenômenos diferentes como se fossem um só: o primeiro, fisiológico, relativo a imagens posteriores produzidas pelas flores coloridas saturando a retina, e vistas a seguir, em cores complementares sobre o caminho; e o segundo, físico, produ-

zido pela luz solar dando tom às flores, permi- tindo-lhes emitir a cor complementar. A emissão da cor complementar por uma cor qualguer é um dos fenômenos mais complexos da Óptica Física.

Conseguir explicá-la é explicar, ao mesmotempo, a essência da harmonia cromática, com todas as implicações de sutis modalidades de refração, absorção e reflexão da luz pelos corpos.

O EFEITO SENSlVEL-MORAL DA CORProcurando explicar logicamente a influência da cor sobre o psiquismo humano e sua efi-

ciência no domínio estético, Goethe afirmaria: "Uma vez que a cor ocupa lugar tão destacado entre os fenômenos naturais primários, enchendo com imensa variedade o campo que lhe está destinado, não surpreenderá o fato de que em suas manifestações elementares mais gerais, sem nenhuma relação com a natureza ou configuração do corpo em cuja superfície a percebemos, produza sobre o sentido da vista, ao qual pertence, e, por seu intermédio, sobre a alma humana individual, um efeito específico e, em combinação, um efeito por vezes harmonioso, característico, e às vezes não harmonioso, porém sempre definido e significativo, que se radica intimamente na esfera moral, É por isso que a cor, considerada como elemento de arte, pode colocar-se a serviço dos mais altos fins estéticos.

Esta parte da obra de Goethe forneceria os elementos fundamentais para o desenvolvimento dos estudos psicológicos da cor e constituiria a base de nova simbologia cromática espiritualista. Deixemos que fale o próprio Goethe:

"Na parte anterior, foi exposto detalhadamente como cada cor produz um efeito específico sobre o homem, revelando assim sua presença tanto na retina como na alma. Deduz-se daí que a cor pode ser usada para determinados fins sensíveis, morais e estéticos, É compreensível que a cor seja também passível de interpretação mística, uma vez que o esquema em que se pode representar a diversidade cromática sugere circunstâncias primárias, tanto à mente humana como à Natureza; não há dúvida de que podem empregar-se suas relações como linguagem nesses casos em que se queira expressar circunstâncias primárias que não se destacam na mente com forças e características idênticas. O matemático aprecia o valor e utilidade do triângulo, e o místico lhe rende culto; muitas coisas podem ser esquematizadas no triângulo, inclusive o fenômeno cromático, de sorte que por duplicação e entrelaçamento se obtém o antigo e o misterioso hexágono."Quando se apreenda inteiramente a marcha divergente do amarelo e do azul, e particular-mente a exaltação até o vermelho, significando que dois opostos se aproximam entre si e termi-nam por fundir-se numa nova entidade, desen- volver-se-á indubitavelmente um conceito místi-co peculiar, cabendo atribuir a essas duas entidades separadas e antagônicas um significado

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espiritual, e ao vê-las produzir abaixo o verde, e o vermelho acima, não se deixará de evocar respectivamente os engenhos terrestres e celestiais dos elohim. Mas n§o nos exponhamos ao risco de que nos tachem de místicos, sobretudo levando em conta que, se nossa teoria das cores tiver uma acolhida favorável, não deixarão de surgir as aplicações e interpretações alegóricas, simbólicas e místicas, de acordo com o espírito de nossa época."

Pela vastidão especulativa de suas proposições, teses e teoria, Goethe aparece frente aos estudiosos dos problemas cromáticos como um dos mais fecundos pesquisadores de todos os tempos.

Apoiado no saber da Antigüidade, conseguiu a reabilitação da luminosidade do olhar ("no olho reside uma luz patente, que ao menor estímulo interior ou exterior se excita"), abrindo-lhe as portas da fisiologia e da psicologia como o verdadeiro campo de averiguação dos efeitos da cor.

A teoria tricromática, que engloba os trabalhos de Young, Hering e Helmholtz, tem como síntese a formulação goethiana: "... a impressão das imagens coloridas persiste na retina, in-citando a oposição, através da qual se realiza a totalização cromática."

A Lei de Contrastes Simultâneos das Cores, de Chevreul, base teórica dos artistas impressio-nistas, pós-impressionistas e contemporâneos, é de certa forma o desdobramento de muitas das observações de Goethe.

No estudo da influência psíquica da cor, cresce a cada dia o interesse das formulações de Goethe, tanto para a Psicologia, como para certas correntes espiritualistas. Conforme ele havia previsto, uma influente ceita iniciada por Helena Blavatsky e Rodolfo Steiner procura encaixar sua teoria num quadro antroposófico em que a idéia é o elemento primário no surgimento da cor. Com Goethe aprendemos que a beleza da cor é uma projeção da beleza interior do ser humano.

Ao afirmar que não existe na natureza nenhum fenômeno que englobe a totalidade cromática, e que a mais bela harmonia é a do círculo cromático produzido pelo homem, Goethe abre as portas das artes visuais à abstração, por onde entrariam um século mais tarde as formulações de Wilhelm Worringer, e os trabalhos de Wassily Kandinsky, Robert Delaunay e Kasimir Malevitch.Seus magníficos desenhos sobre experiências físicas, demonstrando o comportamento mutável do espectro, seu prático Círculo Cromático (ilust 21) ou seus Hexágonos (com efeitos da refraçâo luminosa e dos contrastes simultâneos de cores) aparecem-nos como curiosos precursores doRaionismo, do Concretismo e da Op- arte (ilust 22). K

O interesse científico por essas especulações aumenta mais ainda quando percebemos que boethe, adiantando-se à maioria dos físicos de seu tempo, faz a defesa e a representação gráfica do vermelho, do verde e do azul, como sendo as tres cores fundamentais, geratrizes de todas as demais (ilust 23).

Num retrocesso em relação a Alberti e Leonardo, e mesmo aos Antigos, citados por Plínio, toda a corrente newtoniana difundia a idéia da existencia de sete cores fundamentais, devido à decomposição da luz branca em sete faixas espectrais. Substituindo o preto e o branco pelo la-ranja e o anil, Newton fazia reviver a tese aristo- télica de sete cores fundamentais, vinculando-as às sete notas musicais.

Em várias páginas de seu livro, Goethe adverte para o caráter purpurino do vermelho natural, e levando-se em conta que o azul utilizado por ele para a tríade das cores-pigmento é o ciano (azul-esverdeado), e não o ultramarino (azul-violetado), teremos assim, com nomenclatura diferente, as três cores-pigmento transparentes primárias: magenta (vermelho violetado), amarelo e ciano (azul-esverdeado), consagradas modernamente como primárias físico-químicas, em substituição à tríade: vermelho, amarelo e azul (ilust. 24).

Atualmente, ao verificarmos que as cores-luz complementares ou secundárias produzidas por filtros coloridos magenta, amarelo e ciano produzem a síntese subtrativa — numa demonstração de que, a rigor, elas correspondem melhor às colorações primárias, em cor-pigmento, que o vermelho, o amarelo e o azul - evidencia-se o valor objetivo dessas teses de Goethe em aplicações práticas na fotografia e nas artes gráficas e visuais de um modo geral.

A despeito do vertiginoso desenvolvimento dos meios de comunicação na era tecnológica, constata-se que os princípios teóricos enunciados por Leonardo, Newton. Goethe, Young, Chevreul e Maxwell apenas começam a frutificar, e que o Esboço de uma Teoria das Cores é, hoje, mais que em qualquer outra época, um livro de leitura obrigatória para quem aspire a conheoer em profundidade as possibilidades estéticas da cor.

4Óptica Fisiológica

Com a in ter penetração cada vez maior de diferentes ramos científicos, a Óptica Fisiológica torna-se disciplina composta por conhecimentos de vários campos, dependentes ou condicionado- res da Fisiologia: Psicologia, Histologia, Física e Eletrofísica, Química e Histoquímica, etc.

Os contornos da Óptica Fisiológica definiram- se quando, logo no primeiro ano do século passado, a teoria da cor foi sacudida pelas descobertas do fisiologista inglês Thomas Young (1783-1829), do Royal Institute of London. Coube-lhe deduzir que a função primordial do cristalino é regular as imagens na retina por meio de contrações e distensões (acomodação), conseguindo

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depois responder satisfatoriamente às questões relativas às interferências luminosas e ao processo de sensibilização cromática.

Os dados fisiológicos da sensação da cor levantados por Young, ao criarem um novo ramo da ciência, incorporaram-se também à própria Fisiologia. Já as especulações de Goethe referentes às propriedades do olho e ao funcionamento da retina encontraram maior aplicação nos domínios da Psicologia, aprofundando o estudo da sensação, da percepção e dos processos superiores concernentes ao sentimento estético.

O ponto de partida da óptica Fisiológica foi a teoria tricromática formulada por Young, em 1801, com base na reação fisiológica frente aos estímulos vermelho, amarelo e azul. Ao conhecer a descrição do espectro feita pelo químico inglês William Wollaston (1807), Young optou pelas cores vermelha, verde e violeta, em detrimento das que havia indicado anteriormente como fundamentais. Assim é retomada a idéia original de C. Wünsch (1792) que fora defendida por Goethe no Esboço de uma Teoria das Cores. Após os trabalhos de Helmholtz (1852)e as mensurações realizadas por Maxwell (1857) esta Jiipótese de Young encontrou ampla reper-cussão nos meios científicos.

_ Com os trabalhos do físico e fisiologista alemão Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz (1821-1894), a teoria tricromática receberia novo impulso, impondo-se rapidamente no meio científico. Deve-se a Helmholtz o traçado das curvas representativas da ação das diferentes co-res sobre as três categorias de fibrilas nervosas existentes na retina. Segundo o índice das curvas, as fibrilas da primeira espécie são energicamente estimuladas pela luz vermelha, bem menos pela luz amarela, menos ainda pela luz verde e muito pouco pela luz violeta. As fibrilas da segunda espécie são muito sensíveis à ação da luz verde, bem menos à da luz amarela e da azul, e menos ainda à das luzes vermelha e violeta. As fibrilas da terceira espécie sofrem facilmente a influência da luz violeta e se deixam cada vez menos influenciar pelas outras espécies de luz, na seguinte ordem: azul, verde, amarelo, laranja e vermelho.

A óptica Fisiológica apóia-se simultaneamente em duas hipóteses: a fotoquímica e a fotoelé- trica. A primeira baseia-se na existência, no olho, de uma substância fotossensível que se decompõe sob a ação da luz e origina uma excitação nervosa. A segunda é assim explicada: a luz que penetra no globo ocular é absorvida por um pig- mento que se altera, ativando as fibras nervosas da retina.

O mecanismo de visão realiza dois tipos de apreensão de imagens: a diurna (fotópica), ca-racterizada pela visão colorida, que se processa quando há suficiente iluminação para sensibilizar

os cones grupados na fóvea retiniana, e a crepuscular ou noturno(escotópica), resultante da sensibilização dos bastonetes situados ao redor da fóvea. Esta visão se efetua em baixo índice de luminosidade, e vem sendo explicada por duas hipóteses: a primeira como decorrência do deslocamento progressivo do púrpura retiniano da superfície para o fundo dos bastonetes, originando uma sensibilidade acromática; a segunda como resultado da recomposição da rodopsina (púrpura retiniano) decomposta sob a ação da luz em retineno e vitamina A. A curva de sensibilidade escalonada no sentido dos comprimentos de onda mais fracos em visão escotópica recebeu o nome de seu autor, denominando-se fenômeno de Purkinje, em homenagem ao fi- siólogo tcheco Jean E. Purkinje (1787-1869).

TEORIA TRICROMATICAA maioria dos pesquisadores e técnicos nos vários ramos da aplicação cromática adota os

princípios de Voung e Helmholtz, fundados na existência de três tipos de receptores visuais destinados à captação das luzes-coloridas: vermelho, verde e azul-violetado. Progressivamente o azul-violetado foi substituindo o violeta, citado originalmente.

Tais princípios são utilizados por possibilitarem a produção e reprodução de todas as cores naturais. A fotografia, a impressão gráfica e a televisão a cores resultam da aplicação dos prin-cípios tricromáticos.

De conformidade com esses princípios, em 1859 Maxwell reproduziu, pela primeira vez, uma imagem em cores por síntese aditiva, inaugurando o método de seleção de cores. Passo inicial para a realização de qualquer processo tricromático, chama-se seleção à decomposição das cores naturais nas três corçs primárias. Isto é feito através de fotografias com três filtros coloridos (vermelho, verde e azul-violetado). Cada filme possibilita a obtenção de uma película monocromática contendo todas as gamas de uma das cores primárias existentes no objeto fotografado. As três películas sensibilizadas, cada uma por uma das cores primárias, quando projetadas simultaneamente sobre uma tela branca, dão a impressão das cores naturais do objeto fotografado. Obedecendo aos mesmos princípios de seleção, modernamente a sensibilização das três cores é feita numa única película composta de três camadas, cada uma destinada a receber determinada cor primária, criando os diapositi- vos ou slides coloridos.

Quando se deseja obter a fotografia colorida em papel, o filme é feito em negativo, apresen-tando as cores invertidas em termos de complementares. O que é vermelho no negativo aparece verde na revelação fotográfica. O que é amarelo aparece violeta e o que é azul aparece laranja, e vice-versa.A transmissão de imagens coloridas pela televisão também se baseia no princípio de seleção ou redução das cores naturais às três cores primárias. Simplificadamente, o processo resume- se no seguinte: as filmagens ou tomadas de cenas e objetos (fotografias) são feitas por três máquinas conjugadas, ou seja, três objetivas sincronizadas filmando ao mesmo tempo uma cena, do mesmo ângulo. Um objetiva capta todas as gamas de vermelho existentes na cena, outra as de verde e a terceira as de azul. As imagens são transmitidas separadamente como se fossem feitas por três transmissores comuns de televisão. No aparelho receptor há um canhão com três saídas de imagens: uma para as imagens em vermelho, outra para as imagens em verde e outra para as imagens em azul. Essas imagens são projetadas no vídeo através de uma máscara perfurada como um agulheiro, que serve como seletor dos raios luminosos, fazendo a filtragem das luzes coloridas para que permaneçam três imagens distintas. Cada imagem surge no vídeo como um clichê de impressão gráfica, formada por inumeráveis pontos luminosos. Por efeito de mistura óptica, as três imagens conjugadas causam a impressão da cor natural do objeto fotografado.

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Para a impressão gráfica, o processo de seleção é idêntico, havendo apenas a troca do verde pelo amarelo. Por destinar-se à impressão em cor-pig- mento, a seleção das cores naturais será feita para reduzi-las às primárias: vermelho (magenta), amarelo e azul (ciano). De posse dos três filmes (películas fotográficas) monocromáticos contendo o objeto fotografado, o gravador faz um jogo de três clichês. O clichê gravado do filme amarelo será impresso com tinta amarela; o do filme vermelho, com tinta vermelha em superposição ao amarelo já impresso, e o do filme azul, com tinta azul sobre as duas impressões anteriores.

O desenho do objeto no clichê é formado por uma rede de pequenos pontos (retícula), que se alteram de acordo com a intensidade da cor. Nas áreas em que a cor deve ser pura, esses pontos se juntam para que, na impressão, a tinta colocada por eles sobre o papel cubra toda a superfície impressa.

Quando o clichê do filme vermelhoé impresso em superposição ao amarelo, nos lugares em que as retículas dos dois clichês se misturam surgem áreas alaranjadas por mistura óptica de cores. A impressão do terceiro clichê com tinta azul, sobre as duas impressões já feitas, produz violeta nas áreas em que se mistura ao vermelho, e verde onde se mistura ao amarelo. Nas partes em que as três cores são superpostas, aparece o preto (cinza-neutro).

As misturas ópticas de cores têm algumas particularidades que se circunscrevem aos quadros das sínteses aditiva e subtrativa. A mistura realizada pela retina, em se tratando dos pontos da retícula, muito embora seja cor-pigmento, faz-se aditivamente, tal como ocorre com os pontos luminosos provenientes da televisão a cores. Para o olho, pouco importa se os pontos luminosos que ele mistura provenham de fontes luminosas diretas, ou que sejam refletidos por uma super-fície qualquer. O azul e o vermelho em pequenos pontos, quer em cor-luz ou em cor-pigmento, produzem o violeta, o mesmo acontecendo com cada par formado por cores primárias. No entan-to, se a esses pares adicionar-se a terceira cor primária, o resultado será diferente. A mistura óptica das três cores-luz dará o branco, enquanto a mistura óptica dos pontos luminosos refletidos pela retícula da cor-pigmento dará o cinza-neutro, tal como a mistura das três cores feita na palheta.

Por seus trabalhos teóricos no campo da Óptica Fisiológica, aos nomes de Young e de Helmholtz viria juntar-se o do físico escocês James Clerk Maxwell (1831-1879). Depois de elaborar a teoria eletromagnética da luz (1865)

realizou os estudos de óptica cujo início de publicação data de 1885, Suas teses referentes à percepção das cores são clássicas hoje em dia. Utilizando discos vermelho, verde, amarelo, azul, branco e preto, e fazendo variar a superfície regulável dos mesmos, Maxwell observou que qual-quer cor pode ser obtida, estabelecendo assim as bases práticas da teoria tricromática que confir-mavam a teoria de Young. Os trabalhos de Maxwell com cores-pigmento complementaram as teses de Helmholtz contidos no enunciado das luzes coloridas (cores) simples, cujas misturas duas a duas causam a sensação do branco (ver Cor Complementar, cap. 1 — Parte I).ADAPTAÇÃO VISUAL

Todos os fenômenos visuais estão ligados a determinados níveis de adaptação do olho ao am-biente, mas nossa atenção somente se volta para essas adaptações quando elas apresentam índices de intensidade acima do normal.

Durante o dia a vista se adapta gradualmente aos diversos graus de claridade e das interferências de cores ambientais sem que o percebamos. A noite, raramente nos damos conta se a luz de um local é amarela, azulada ou violetada. Essas características são mais facilmente notadas quando mudamos de um ambiente, onde nossa vista estava adaptada, para outro iluminado com coloração diferente.

A vista adaptada a uma cor torna-se maissen- sível às cores contrárias à que se acostumou. Essa sensibilidade aumenta de acordo com a intensidade ou duração da excitação, até o ponto de saturação. Quando uma parte da retina se satura sob o efeito de uma cor, a parte restante reage de várias maneiras, podendo até criar fi- siologicamente a cor que lhe é contrária, como forma de dessaturação, em busca do equilíbrio perdido. Esse é o mecanismo fisiológico da for -mação dos contrastes simultâneos e sucessivos de cores, das imagens posteriores negativas e positivas, dos efeitos de deslumbramento e da cegueira momentânea causada pelos ambientes escuros aos olhos adaptados à claridade.

Partindo das proposições de Goethe, o psicó-. logo Edwald Hering (1834-1918) explicou con-vincentemente a formação de todos esses fenômenos, demonstrando que eles decorrem da ca-pacidade reversiva do mecanismo visual — ação das três duplas de estímulos: branco-preto, azul- amarelo e vermelho-verde.

Apesar de pertencerem ao domínio da Óptica Fisiológica, os contrastes simultâneos, sucessivos e mistos de cores, teorizados por Chevreul, aparecem mais longamente descritos na parte referente à harmonia, por serem eles a própria essência da harmonia cromática.

Olhando-se fixamente, durante 40 segundos, para a bola vermelha da ilust 26, a uma distância de 30 centímetros, perceberemos em sua periferia a cor complementar verde; se, em seguida, olharmos para a área branca ao lado, veremos, ao cabo de alguns segundos, a área tingir-se de um belíssimo verde azulado luminoso, que terá uma curva de intensidade e de duração relativa ao índice de saturação da retina.

Ao contrário do que se pensava há algum tempo, essa saturação que origina os contrastes sucessivos, ou imagens posteriores, pode ser produzida por mais de uma cor simultaneamente. Olhando fixamente, durante 40 segundos, a bandeira pintada em vermelho, azul-violetado, amarelo e preto (ilust. 27), e depois rapidamente para a área abaixo, veremos surgir as cores reais da bandeira nacional.MOVIMENTO E LATÊNCIA

A percepção visual não é instantânea. Para a captação de uma imagem é necessário certo tempo de latência, que varia segundo as cores. O mesmo fenômeno que ocorre quando saímos de um lugar claro e entramos em outro, escuro, e a vista exige algum tempo para adaptar-se, ocorre também na percepção de todas as imagens. Como a visão está ligada à adaptação, e esta à diferença de cores e de iluminação, cons

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tantemente corrigidas pelo cérebro, via de regra não percebemos os estágios de acomodação e sensibilização existentes entre a percepção de uma imagem e outra, nos constantes movimentos da«cabeça e do olho, nem as modificações verificadas nas imagens por influência de uma permanente retenção delas pela retina.

Há, portanto, um retardo na captação que é mais ou menos compensado pela retenção da imagem anterior. Mas a latência, ou retardo de captação, depende também da cor, pois ela não é a mesma para os três tipos de células receptoras. O tempo de latência é mais curto para o vermelho que para o azul, o que explica o fenômeno dos corações flutuantes de Helmholtz. Pintando- se alguns corações vermelhos, de pequena dimensão, num fundo azul, guando se agita a pintura os corações parecem flutuar (ilust. 29). O descompasso de tempo entre a apreensão do vermelho e a do azul é que cria a sensação de flutuação. É também, em parte, pela diferença de latência que se explica o surgimento de cores subjetivas provocadas pelos discos de Benham.DISCOS ROTATIVOSNas primeiras décadas do século passado Fechner criara um disco branco com uma espiral de Arquimedes desenhada em preto. Ao girar-se o disco, surgiam anéis coloridos, mutáveis conforme a velocidade de rotação. No fim do século o fenômeno despertou grande interesse publico após a sua vulgarização por Benham, que, utilizando o mesmo princípio de Fechner, criou novas formas de divisão das áreas brancas e pretas em discos colocados à venda como brinquedo infantil (ilust. 28).

O fenômeno do surgimento decores provocado pelo disco foi explicado por Ch. Henry, em 1896, como ligado ao tempo de latência. Os discos são estímulos mecânicos que refletem a luz incidente, revelando a capacidade da retina em decompor a luz em determinadas situações. As sensações coloridas provocadas pelos discos decorrem da excitação das três categorias de cones retinianos pela rápida passagem alternada do branco e do preto, que enviam ao olho os matizes componentes da luz branca, numa velocidade que ultrapassa a capacidade normal de captação da vista.

Redução de cores pela retina

Inversamente ao que ocorre com o fenômeno do disco de Benham, em que a retina se mostra capaz de decompor sensorialmente a luz branca que lhe é enviada, ela pode também produzir um fenômeno de redução de cores, idêntico ao descrito por Newton na experiência dos pr£ mas invertidos, tal como ocorre na operação em que se recombinam os matizes do espectro com

uma lente convergente, fazendo surgir uma imagem que é branca no centro. Essa imagem e fruto de uma mistura óptica, em que os cones, excitados pela superposição das cores espectrais, nao conseguem distingui-las, somando-as e causando a sensação do branco. Mas se as três cores primárias são capazes de produzir todas as cores naturais, evidentemente produzirão também as sete cores espectrais, É lógico deduzir, então, que as sete cores do espectro são passíveis de redução às três cores primárias. Este raciocínio é que levou Young e depois Helmholtz a elegerem o vermelho, o verde e o violeta como cores primárias. O mecanismo da redução seria o seguinte: o vermelho, ampliando sua área e cobrindo uma parte do amarelo, permanece vermelho, apenas um pouco mais alaranjado; o azul, incidindo de um lado, sobre o verde, influencia a outra parte do amarelo não atingida pelo vermelho, criando um verde quente; incidindo do outro, sobre o violeta, torna-o mais azulado.

Baseado no princípio das quatro cores primárias de Leonardo da Vinci, Hering estabeleceu a diferença entre cores primárias percebidas e cores primárias que funcionam como estímulo. Para os estímulos adotou, em cor-luz, o vermelho, o verde e o azul e, em cor-pigmento, o vermelho, o amarelo e o azul. Mesmo reconhecendo a inexistência de receptores retinianos específicos para captar o amarelo, ele denominou as cores primárias de Leonardo (vermelho, amarelo, verde e azul) cores percebidas.

Partindo do pr incípio de que os receptores da retina são capazes de inúmeras operações de síntese dos matizes, é fácil deduzir que tais operações possuem etapas intermediárias.

Num disco as sete cores do espectro, em partes iguais, são dispostas circularmente, formando três circunferências inscritas, como três anéis, ficando um círculo branco no centro, com um raio igual à metade da largura dos anéis. Envolvendo os anéis espectrais, o fundo deverá apresentar uma faixa branca de largura igual à metade do raio do círculo interior. As partes brancas do disco funcionam como área de contraste. As cores do primeiro e do segundo anéis devem formar três pares de complementares, e as do terceiro anel outros três pares de complementares com as do segundo anel (ilust. 30).

Com o disco a mais de 1.000 rotações por minuto surge um ocre bastante forte, visivelmente idêntico ao captado pela câmara fotográfica, o que não ocorre com os estágios intermediários de 100 a 1.000 rpm. A interferência do tempo de latência agindo na apreensão diferenciada das imagens coloridas, e a ação da retina retendo por frações de segundo a imagem, alteram a sensação óptica em relação à imagem física.

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DIFERENÇA DE PERCEPÇÃOA visão difere sensivelmente de um indivíduo para outro, quando se toma

por base um grande número de-testes. Além das diferenças naturais, a percepção varia num mesmo indivíduo em função de seu estado fisiológico. O estado psíquico, a fadiga, o debilitamento e a ingestão de certas drogas alucinógenas podem causar essas variações ou distúrbios, motivando uma hipersensibilida- de à cor.Apoiado no trabalho de A. Keys The Biology of Human Starvation, nas pesquisas de George Watson sobre o papel das carências de vitamina nas doenças mentais e em sua própria experiência sob a ação de tóxicos, Aldous Huxley escreve em As Portas da Percepção (9): "O cérebro é dotado de um certo número de sistemas enzimáti- cos que servem para coordenar seu funcionamento. Algumas dessas enzimas visam a regular o fluxo de glicose destinado a alimentar as células cerebrais. A mescalina, inibindo a produção dessas enzimas, diminui a quantidade de glicose à disposição de um órgão que tem fome constante de açúcar. (. ..) Esses efeitos da mescalina constituem o tipo de reação que se poderia esperar de uma droga que tenha o poder de reduzir a eficiência da válvula redutora que é o cérebro. Quando esse órgão é atingido pela carência de açúcar, o subnutrido ego se enfraquece, já não mais se pode permitir suas tarefas rotineiras e perde todo interesse por essas relações de tempo e espaço que possuem tão grande valor para um organis-mo preocupado com a vida neste mundo. (...) A esse respeito, quão significativa é a enorme ampliação da percepção das cores sob o efeito da mescalina! (...) O que nós só vemos sob a influência da mescalina pode, a qualquer tempo, ser visto pelo artista, graças a sua constituição congênita. Sua percepção não está limitada ao que é biológica ou socialmente útil."

As disfunções permanentes relativas à percepção da cor começaram a ser estudadas a partir das teses do físico, químico, biologista e naturalista inglês John Dalton (1766-1844), que, anali-sando inicialmente as distorções de cora de que padecia, determinou as causas da deficiência de-nominada, em sua homenagem, daltonismo.

As diferenças daltônicas são classificadas em três grupos: tricromatismo anormal, dicromatis- mo e acromatopsia.

O tricromatismo anormal caracteriza-se pelo desvio na curva espectral, principalmente na par-te referente às cores quentes — vermelho e laranja — ocasionando a troca destas cores por suas complementares (ilust. 31).

Dicromatismo, ou visão em apenas duas cores, é a disfunção em que o olho tende a ver tudo em amarelo e azul. O amarelo, o vermelho, o laranja e o verde-limão são vistos como se fossem amarelo, ou seja: as cores quentes se identificam com a claridade. O ciano e certos violetas mais frios são percebidos como se fossem cinzas. O azul é percebido de forma mais ou menos normal.

Acromatopsia, ou cegueira para as cores, é a insuficiência visual que leva o olho a perceber tudo em apenas preto e branco, ou seja: inexistência de função dos cones que compõem a fó- vea retiniana.

Ilust. 31, a — A forte distorção dal tônica faz com que o* verdes a vermelhos sejam percebidos como cinzas escuros; b — as pessoas com tricromatismo anormal, em lugar do vermelho a do laranja, vêem suas coras complementares; c — oa graus médios da daltonismo impedem a percepão da cruz a do círculo esverdea- dos; d - nas linhas brancas interiores, onde as pessoas com visfo normal percebam uma leve coloraçib complementar, os portadoras da qualquer índice de distorção daltônica percebem apenas um leve cinza.

Ilust. 30, a — Disco redutivo de cores; b — disco parado; c — com 200 rpm, percebem-se ainda as sete cores espectrais, mas o vermelho, o laranja e o amarelo ampliam sua área, tomando conta de 2/3 do disco; d — com 300 rpm, esboça-se a tríade amarelo, ciano e magenta; e — com 400 rpm, definem-se mais ainda as cores da tríade; f — com 600 rpm, o amarelo e o magenta crescem e o azul restringe-se a menos de 1/6 da área das coroas em que está inscrito; g — com 800 rpm, o azul está reduzido a menos de 1/10 da área das cores do disco; h - com 1.000 rpm, o azul desaparece, surgindo em seu lugar um cinza quente, levemente esver- deado; i - a partir de 1.200 rpm, surge um ocre claro, levemente violetado. Esta é a cor mais clara que se consegue com os discos de redução de cores.

Ilust. 30 I — Os dois primeiros discos de Maxwell apresentam fendas para acoplamento e graduação de percentagem de cores. O terceiro disco, formado pela junção dos dois primeiros, quando em rotação produz o efeito visto no quarto disco.

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Ilust. 30 II, a - Disco de Rood. O vermelho e o verde, nas proporções indicadas, produzem uma coloração com o mesmo índice de luminosidade que o do cinza produzido pelo branco e pelo preto, do interior do disco; b — disco em rotação.

Ilust 30 III, a e b — Discos redutores de cores criados por Newton; c — disco parado; d — o efeito produzido pelo disco em movimento é bem diferente do branco almejado por Newton.

Ilust. 30 IV, a — Disco dos círculos concêntricos, resultante de nossas experiências de 1957; b — o disco em rotação, devido à organização de suas formas, em lugar de misturar as cores na re- tina, produz o efeito de círculos concêntricos com as mesmas medidas das faixas indutoras. As duas faixas laterais, com a rotação, fundem-se num único círculo.

5Representação Gráfica.Tridimensional e Mensuração de Cores

As primeiras tentativas no sentido de se conseguir uma definição quantitativa das cores de-vem-se a Leonardo da Vinci. Na impossibilidade de aferir a luz, ele improvisou o célebre método das colheres com tinta, para medir a quantidade de cor-pigmento que refletia a luz-colorida. Os resultados foram insatisfatórios, mas a idéia da viabilidade da mensuração das cores estava lança-da.

Para se estabelecer um sistema de medidas, o principal obstáculo residia na falta de uma uni -dade referencial, bem como na inexistência de conhecimento da parte com o todo. Tais elemen-tos, porém, seriam fornecidos por Newton.

Leonardo havia disposto as sombras em forma circular, dando a cada uma o número de graus correspondente à sua área em relação ao todo — o círculo representava, então, desde o início da diminuição da luz até a treva total (ilust. 15). Percebeu Newton que a forma circular se prestava, também, a um sistema de representação percentual de cada cor com referência ao todo — espectro solar.

A disposição das cores em forma circular executada por Newton, de acordo com os percentuais de cada uma na composição da luz branca, surge como o primeiro método de representação gráfica de uma grandeza de cores, onde a luz branca é o todo, a unidade referencial, e as sete cores espectrais (matizes), as partes. Mas o fator decisivo para a criação do sistema de medidas de cores foi a descoberta, por Newton, do comprimento de onda que caracteriza cada matiz, re-presentado em grandeza matemática por milimí-crons(m/i). _

A revelação do gravador alemão J.C. LetBlon (1730) de que todas as cores estão contidas em apenas três - vermelho, amarelo e azul - traria novos elementos para a medida das cores. Ao descrever sua "invenção", em livro bilingüe (inglês-francês), ele afirma que a mistura das três cores produz o preto, isto é, uma nova unidade referencial, em oposição à luz branca. Estava res-saltado o caráter diferencial dos estímulos cor- luz e cor-pigmento.

Ao mesmo tempo em que I Lef Blon fazia suas descobertas, Gautier chegava a conclusões idênticas, em Paris, iniciando uma polêmica sobre a prioridade da idéia.

Depois da disposição circular das cores feita por Newton, e impressa em preto e branco em sua Óptica, Moses Harris usaria a mesma idéia para criar um círculo cromático impresso em. vermelho, amarelo e azul, com 18 cores produzidas pela mistura das três. 0 livro de Harris, The Natural System of Colours (1766), que trazia o círculo cromático, é considerado uma das maio-res raridades bibliográficas. F. Schmidt afirma, em A Prática da Pintura (1948), ter sido impresso apenas um exemplar do tratado de Harris, o que parece não ser verdade, porquanto Faber Birren localizou recentemente um exemplar dedicado a Sir Joshya Reynolds, do qual não se tinha notícia e que tudo indica não ser o mesmo de que fala Schmidt.

O caráter primário dos pigmentos vermelho, amarelo e azul confirmou-se mais uma vez em impressão gráfica com o aparecimento de Um Tratado de Óptica de Sir David Brewster (1831), autor do círculo brewsteriano de cores, largamente difundido no século passado.SOLIOOS DE CORES

Deve-se a R. Waller (1689) a primeira disposição que se conhece das cores num sólido igual a um tabuleiro de xadrez que pudesse ser manuseado como quadro. No tabuleiro aparecem as quatro cores primárias de Leonardo, cada qual colocada num ângulo do quadrilátero: o vermelho e o amarelo de um lado, o verde e o azul do outro. Os quadrados do meio foram reservados às cores resultantes da mistura das cores externas.

Dessa representação gráfica em duas dimensões passou-se à busca de uma representação das cores em três dimensões. Em 1745, Tobias Mayer criou um sólido de cores composto por vários triângulos, tendo em cada ângulo uma cor primária (vermelho, amarelo e azul). As cores

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secundárias ficavam dos lados e as terciárias no interior. O maior grau de cromaticidade e luminosidade das cores encontrava-se no triângulo do centro. As cores dos triângulos do meio para cima (numa disposição vertical) eram degradadas no sentido do branco, enquanto as dos triângulos que estavam do meio para baixo escureciam até o preto.

Todos os trabalhos anteriores contribuíram para o aparecimento do primeiro sólido realmente de grande valor representativo, o qual foi construído pelo matemático francês Jean Henri Lambert (1772), a quem se deve também a lei fundamental da fotometria. Com triângulos superpostos a distâncias regulares um do outro, que vão diminuindo gradualmente de tamanho, ele compôs um sólido denominado pirâmide de Lambert. No triângulo-base, cada ângulo foi pin-tado com uma das cores primárias - vermelho, amarelo e azul - apresentando nos lados as cores secundárias. Internamente, logo depois das secundárias, surgem as cores terciárias que se mis-turam e escurecem até atingir o preto no centro. À medida que os triângulos diminuem de tama-nho, perdem coloração por dessaturação, áté chegar ao ápice, que é branco. A falha principal dessa pirâmide consiste em não apresentar o rebaixamento das cores primárias, no sentido do preto.

A complementação da pirâmide de Lambert seria feita por um amigo de Goethe, o pintor ale -mão Philipp Otto Runge (1777-1810), usando a forma esférica. No sólido de Runge os tons puros ficavam num círculo equatorial: o branco no polo superior e o preto, no inferior. As cores des- saturavam-se para cima, numa escala gradual até atingir o branco, e, no sentido inverso, até o preto no pólo oposto. Foi esta a primeira representação correta das cores naturais, tal como ha-viam sido descritas por Leonardo da Vinci.

Pouco depois do trabalho de Runge, apareceram os sólidos de M. E. Chevreul e de Wilhelm von Bezold. Seguindo um padrão estabelecido por Helmholtz, Bezold construiu um sólido de forma cônica com a disposição das cores exatamente oposta à de Lambert. Os tons puros com-punham o círculo exterior da base do sólido,

dessaturando-se até o branco do centro. No sentido do ápice, as cores rebaixavam-se para atingir o preto, limite extremo da forma e das cores.

Coube a Chevreul construir o mais curioso catálogo de cores até hoje conhecido, com cerca de 20.000 tons classificados teoricamente, desde as cores saturadas e suas misturas até o branco por degradação e o preto por rebaixamento. A forma utilizada para o seu sólido foi a de um hemisfério.

Objetivando a classificação das cores com finalidade científica e prática na indústria de tin- turaria e de gobelin, Chevreul construiu um vasto mostruário com duas dezenas de milhares de nuances de fios de lã colorida. Num sentido mais utilitário, Seguy mandou imprimir um álbum destinado aos floristas, no qual designa por número a variedade de cores de crisântemos de sua criação.

Face às confusões geradas em todos os tempos pela imprecisão vocabular na designação das cores, impunha-se a criação de gráficos para representá-las. Mas, devido às variações de tonalidades nas impressões, eles tornaram-se tão ineficientes quanto a designação vocabular. A crescente concorrência na indústria e comercialização de corantes começava a exigir maneiras classificatórias e designativas mais precisas, que pudessem universalizar-se com a mesma amplitude do comércio.

Estas exigências foram satisfeitas com novos sistemas de análise e classificação de cores refe-renciais que possibilitaram a elaboração de vários tipos de atlas de cores. Os atlas científicos deram origem aos atlas e catálogos comerciais. Utilizando a idé.ia de Seguy, neles as cores aparecem geralmente numeradas. Desta maneira um cliente do outro lado do mundo pode encomendar facilmente uma tonalidade determinada ao fabricante de tintas sem o risco de enganos. Assim, o cálculo de Judd, segundo o qual as gamas de colorido podem ultrapassar 10 milhões de tonalidades, estaria ao alcance de uma indicação precisa.

A partir do fim do século passado, surgiram inúmeros sistemas de referência e padronização de cores. Com aplicação regional ou nacional, os mais conhecidos foram o Sistema DIN, larga-mente empregado na Alemanha; o Sistema do British Color' Council; o de Syreeni, na Finlândia; Pêtre (Octochrome), na Bélgica; Marnier Lapostolle, na França; Perry Martin, na Suécia, etc.Partindo da estrela cromática de Davi d, criada por Goethe, M. Demulder-Dutron realizou um círculo cromático harmônico, com 24 cores, que foi adotado pelo Centro de Informação da Cor (Bélgica). Nele, as cores são numeradas de 1 a 24. As fundamentais aparecem nas seis pontas da estrela, com os comprimentos de onda indicados em Angstrõn (A): 1 — amarelo; 5 — laranja; 9 — vermelho; 13 — violeta; 17 — azul; 21 — verde. As cores intermediárias estãp próximas das fun-damentais: 2-24, amarelos intermediários; 3-4-6- 7, laranjas intermediários; 8-10, vermelhos intermediários; 12-14, violetas intermediários; 15-16- 18-19, azuis intermediários; 20-22, verdes intermediários; 11, púrpura; e 23, clorado.

Mas a imagem que se afigura como o símbolo da moderna representação das cores é a do diagrama tricromático adotado pela CIE (ilust. 32).

Preocupados com os estudos tendentes à classificação e codificação das cores, para atender à sua crescente utilização social, OstwaldeMunselI criaram os principais sistemas de análise e referência cromáticas de nosso século.

Em sua Ciência da Cor, Ostwajd fez a seguinte observação: "A ciência da cor não foi até agora colocada em seu verdadeiro habitat. Os pintores e tintureiros, os primeiros a se tornarem familia-rizados com as cores no curso de sua rotina diária, não estavam em condição de transformar seu conhecimento empírico numa ciência. Foi a descoberta fundamental de Newton, de que a luz branca podia ser decomposta por um prisma numa faixa contínua de cores variadas, que per-mitiu ao físico arvorar-se em fundador e guardião da ciência da cor — uma pretensão que, mesmo nos dias atuais, permaneceu praticamente incontestada. Os pintores e tintureiros fizeram então a descoberta de que de três cores fundamentais todos os tons intermediários podiam ser

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produzidos, e dessa maneira desenvolveram uma doutrina prática de três cores que foi posterior-mente adotada pelos físicos.

"Então, novamente, na fabricação de produtos corantes artificiais — conhecidos por nós aos milhares — foi necessário utilizar os recursos da Química, e como resultado a ciência da cor pas -sou até certo ponto aos cuidados dos químicos, que também, no entanto, deixaram de organizá- la cientificamente. A seguir, seguindo o exemplo de Goethe, o lado fisiológico da ciência da cor foi explorado e cultivado até que se desenvolveu como um .ramo da Fisiologia, ajudada pelo pro-gresso da Oftalmologia. Finalmente, tornou-se cada vez mais evidente que, em última análise, a cor é uma sensação, e que o seu conhecimento deve ser incluído na moderna Psicologia".

A necessidade de maior precisão na determinação de uma cor levou Ostwald a criar um siste-ma de mostragem conhecido como sólido das cores. No sólido, constituído por triângulos equiláteros unidos pela base em torno de um eixo, as cores são colocadas de maneira que suas complementares fiquem diametralmente opostas.O vértice horizontal corresponde ao grau de maior pureza da cor (saturação). A cor, dividida em oito estágios, degrada-se progressivamente até atingir o branco do vértice superior e o preto do inferior. Tal sistema tem a vantagem de revelar, num mesmo lance visual, várias gradações de uma cor, que em progressão sistemática atingem o branco e o preto.

Wilhelm Ostwald, químico alemão, nasceu em Riga a 2 de setembro de 1853 e faleceu em Leipzig a 4 de abril de 1932. Foi professor das Universidades de Harvard e da Califórnia, a partir de 1905. Suas conquistas no campo da Química Física, na Universidade de Leipzig, influen-ciaram toda uma geração, terminando por torná- lo detentor do Prêmio Nobel em 1909. Aos 56 anos de idade encerrou sua carreira didática para dedicar-se exclusivamente à filosofia e ao estudo da cor. Considerava seu trabalho sobre a cor o ponto alto de suas conquistas científicas. Conhecia a ciência da cor e sentia-se reconhecido às contribuições de vários grandes homens do passado, que contribuíram para o enriquecimento do seu saber: Isaac Newton, Johann Tobias Mayer, J.H. Lambert, J. Wolfgang Goethe, Tho- mas Young, M. E. Chevreul, Arthur Schoperv hauer, G. T. Fechner, H. Helmholtz, J. C. Maxwell e Ewald Hering.

Dos vários métodos criados para padronizar a determinação das cores-pigmento, o que alcançou maior sucesso foi o de Munsell. Em 1942 a American Standards Association (Associação Americana de Normas) recomendou-o como padrão de aferição cromática. Atualmente, é utilizado em vários países.

Desde jovem, Munsell sentira-se atraído pelo estudo da cor e muito cedo tomou contato com a Cromática Moderna de Ogden Rood. Por volta de 1900 já tinha completamente desenvolvido um sistema de análise de cores, mas só em 1905 é que publicou o Livro da Cor, com os principais dados de seu trabalho. Dez anos depois apareceria a primeira edição do Atlas do Sistema de Cores Munsell. Adotando a concepção de Helmholtz sobre as três características fundamentais da cor. ele utiliza a seguinte nomenclatura para designá- las: matiz, valor e croma. Matiz representa a coloração (amarelo, azul, etc.). Valor significa luminosidade ou brilho. E croma o grau de pureza da cor. No Atlas, as várias centenas de amostras de cores são feitas em retângulos de papel pintado em diferentes tons e gradações, indo da cor pura ao tom acinzentado.

A mais feliz síntese de suas idéias encontra-se no sólido, também denominado árvore de Munsell. Nele as cores puras — vermelho, amarelo, verde, azul e violeta — aparecem

intercaladas com as intermediárias: laranja, verde-amarelado, azul-esverdeado, violeta-azulado e vermelho-vio- tetado. Trata-se de uma representação tridimensional do seu sistema em

coordenadas cilíndricas, com escala de valores neutros como eixo vertical. O matiz é representado por seções do círculo em tomo do eixo, e o croma pelas distâncias que vSo dos

círculos extremos até o centro.

ESPECTROFOTOMETRIA£ o processo usual de análise de luzes homogêneas. As primeiras indicações seguras para a

criação do método datam da época de Newton.Presentemente, são vários os aparelhos usados para a aferição dos matizes do espectro,

destacando-se o espectroscópio e o espectrofotômetro. O espectroscópio possui comumente um antepa- ro com uma fenda localizada no foco de uma lente por onde passa a luz (matiz) a ser analisada. Compõe-se de um colimador, um prisma refringente e uma luneta que recolhe os raios emergentes, e nele a avaliação da imagem colorida é feita pelo olho humano. 0 espectrofotômetro, desdobramento do espectroscópio, compara de maneira mecânica as intensidades das radiações simples de duas fontes, constituindo-se da combinação de um monocromador e de um fo- tômetro.

O processo típico de espectrofotometria consiste em dispersar os componentes da luz branca e, então, isolar uma das faixas coloridas por meio de uma lâmina com uma fenda. A luz da faixa selecionada, passando através dessa fenda, é dividida em dois raios, um dos quais cai sobre a amostra que está sendo estudada, e o outro numa superfície branca comum. A amostra, sendo um refletor de luz pior do que a superfície branca comum, será proporcionalmente menos luminosa; e a proporção de luminosidade é facilmente encontrada por qualquer técnica fotométrica adequada. O processo é repetido várias vezes, até que a amostra tenha sido submetida a exame com todas as faixas coloridas do espectro.

Desde 1928 o Instituto de Tecnologia de Massachusetts utiliza os fototubos ou espectro- fotômetros criados por A. C. Hardy para substituir o olho humano, automatizando o método

dé análise de cores. 0 emprego desses aparelhos em várias indústrias levou ao reconhecimento formal do espectrofotômetro como o instrumento básico na padronização fundamental da cor.COLOR IMETR IA

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Para a descrição de superfícies iluminadas por luzes compostas, com comprimentos de onda heterogêneos, a espectrofotometria revela-se insuficiente. A análise de tais superfícies e das luzes que as iluminam é feita pelo processo de colorimetria.

Os estudos iniciais de Maxwell, Gassmann e Helmholtz, visando à determinação de um "observador padrão", personagem fictícia, criada com a média das observações de um grande grupo de pessoas normais em-determinadas condições de iluminação, possibilitaram os êxitos das novas pesquisas de Wright e Guild. O "observador padrão" adotado pela Comissão Interna-cional de Iluminação baseia-se nos índices indicados por Wright e Guild.

Apesar de fundamentar-se na observação humana, a colorimetria não leva em conta as dife-renças de percepção da cor, tão variáveis de indivíduo para indivíduo. Sua função é determinar as diferentes composições físicas da luz, que provocam as sensações coloridas.

Os princípios teóricos da colorimetria estão ligados aos dois enunciados básicos das leis de Gassmann: 1) a luminância de uma mistura é igual à soma das luminâncias das cores compo-nentes; 2) quando duas amostras luminosas produzem a mesma impressão de cor, esta igualdade de impressão permanece inalterável, se multiplicarmos ou dividirmos cada uma delas por um mesmo número.

A padronização aceita mundialmente para a colorimetria é a do quadro ao lado, denominada tricromática. Pela variação de quantidade de cada uma das três cores primárias componentes da amostra a ser examinada, determina-se a sua composição tricromática. Por exemplo: um com-primento de onda de,400 m/x é visualmente equivalente a uma mistura compreendendo 014.310 unidades de vermelho, 000.396 unidades de verde e 067.850 unidades de azul.

Resumo da Tabela dos Estímulos Tricromáticos do Espectro

(Adotada pela Comissão Internacional de Iluminação (CIE)

—1931)Comprimento de onda

(mji)X

(vermelho)Y (verde) z

(azul)400 014.310 000.396 067.850410 043.510 001.210 207.400420 134.380 004.000 645.600430 283.900 011.600 1.385.600440 348.280 023.000 1.747.06

0460 290:800 060.000 1.669.20

0480 095.640 139.020 812.950490 032.010 208.020 465.180500 004.900 323.000 272.000510 009.300 503.000 158.200520 063.270 710.000 078.249540 290.400 954.000 020.300560 594.500 995.000 003.900580 916.300 870.000 001.650600 1.062.200 631.000 000.800620 854.449 381.000 000.190640 447.900 175.000 000.020660 164.900 061.000680 046.770 017.000690 022.700 008.210700 011.359 004.102

3

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A Natureza da Cor e sua Ação Psíquica, Simbólica e Mística

Estímulos: Estrutura da Cor

A sensação colorida é produzida pelos matizes da luz refratada ou refletida pela substância. Comumente, emprega-se a palavra cor para designar esses matizes que funcionam como estímulos na sensação cromática. E neste sentido que a usamos aqui ao falar de estrutura da cor. Com base no esquema de Goethe, dividem-se as cores ou matizes (estímulos) em três categorias: estímulos fisiológicos, físicos e f ísico-químicos.

O que caracteriza o estímulo fisiológico é a sua integração com a sensação, pelo fato de ser originado fisiologicamente. Há dois tipos principais de estímulos fisiológicos: o primeiro é o gerado por uma excitação mecânica saturando parte da retina com uma cor, forçando a outra parte da retina a produzir fisiologicamente a cor complementar da que foi excitada (fenômenos das imagens posteriores, efeitos de deslumbramento, etc.). O segundo é o formado por excitação subjetiva, pela ação da própria retina, ou do cérebro (sensação colorida no escuro, manipulação mental de cores realizada por pintores, mental izações coloridas dos místicos e das demais pessoas que exercitam essa faculdade, como desdobramento da memória cromática; visões cau-sadas por alucinógenos; mecanismo dos sonhos, etc.), e por disfunções orgânicas (cores patológi -cas).

O estímulo físico é o emitido por uma fonte energética direta (luz colorida), ou por dispersão dos raios luminosos da luz branca. Atribui-se a três causas a transformação da luz branca em luz colorida: posição da molécula no espaço, natureza dos átomos e disposição dos átomos na molé-cula. À primeira causa estão ligados os fenômenos de dispersão, de interferência e de polarização cromáticas. Na segunda e terceira causas, a coloração resulta da absorção e reflexão diferen

ciadas dos raios coloridos componentes da luz branca incidente sobre a substância. Trata-se de coloração influenciada pela composição e estrutura química dos corpos.

Nos estímulos físico-químicos, a natureza e organização dos átomos nas moléculas é que de-terminam a cor percebida nas substâncias, a exemplo dos elementos químicos inorgânicos co-loridos, como o níquel, o cobalto, o cromo, etc. Todavia, o maior número de substâncias corantes ou com coloração mais intensa pertence a substâncias orgânicas geradas pela combinação do carbono com alguns outros elementos: hidrogênio, oxigênio, azoto, etc.

Como a cor aparente dos corpos revelada pela reflexão e absorção dos raios luminosos não está ligada apenas à sua composição atômica, mas também à sua estrutura, uma vez modificada a estrutura modifica-se igualmente a nuance ou coloração. Por exemplo: com CH4C402NH poderemos ter tanto a naftalimida, que é branca, como a isatina, que é vermelha:

O conhecimento atual em relação à cor dos corpos químicos baseia-se fundamentalmente nos resultados das pesquisas de materiais corantes realizadas por Graebe e Liebermann em 1867 e Otto N. Witt em 1876, ligando a estrutura química à coloração aparente dos corpos.

Witt afirmava que o surgimento de uma cor na substância se deve à existência ou à formação, na molécula, de um ou mais grupos de átomos pofiva tentes, que ele denominou grupos cromó- foros. Os cromóforos não têm vida isolada - para que possam exercer sua ação é necessário que se encontrem numa substância rica de átomos de carbono. Introduzindo-se um cromóforo na molécula de um composto aromático (como os da série hidrocarboneto). a absorção se realiza na direção da parte visível do espectro e se obtém uma substância mais ou menos colorida, perceptível ao olho. que Witt denominou molécula cromógena ou cromogênio. A substância colorida (cromogênio) pode ser transformada em substância corante, bastando para isto adicionar- lhe conveniente quantidade de auxocromos. Nas moléculas corantes (hidroxiantraquinonas) constata-se a presença do núcleo quinônico. 0 núcleo quinônico é um dos principais grupos cromóforos. podendo ser citados dentre eles os seguintes:

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Para se transformar o cromogênio em substância corante, basta adicionar-lhe determinada quantidade de auxocromos.

Os grupamentos auxocromos são radicais ácidos (OH, COjH) ou básicos (NHa, NHR, NR2).

Numa esquematização dos elementos inco- lor, colorido e corante, teremos:

Como a coloração dos corpos é devida à absorção e reflexão dos raios luminosos, significando que todo raio não refletido foi absorvido, a explicação da absorção assume importância para a compreensão do fenômeno da coloração.

A absorção seletiva decorre do tamanho das órbitas dos elétrons em torno do núcleo dos átomos, que forma um campo eletrônico carregado positivamente. Portanto, a cor de um corpo é condicionada, de uma parte, pelo campo eletrônico, ou núcleo atômico, e de outra, pela quantidade de elétrons e pelas dimensões de suas órbitas.

Os elétrons afastados do núcleo, sob qualquer ação de uma carga energética, elevam-se eletronicamente, provocando a absorção. Os fenômenos eletrônicos estão ligados aos fenômenos de redução-óxida que regem as transformações coloridas. A ação do cromóforo sobre o auxocromo pode comparar-se a uma redução do cromóforo ou a uma oxidação do auxocromo. Desta forma explica-se a coloração de numerosos halogênios (metalóides univalentes: flúor, cloro, bromo e iodo). Comumente a cor aparece em ligação direta com os diferentes graus de oxidação. o que explica o fato de o hidrato ferroso ser branco e o hidrato férrico marrom. Todos estes conhecimentos iriam alimentar a indústria tintureira durante o século passado.

Até os fins do século XVIII. empregavam-se principalmente matérias tintórias retiradas dos vegetais para a indústria de corantes, como garança, índigo, brasil, etc. No início do século XIX, Chevreul conseguiu isolar os princípios corantes de algumas plantas: a hematoxilina.do pau-campeche, a luteolina do lírio-dos-tinturei- ros, a indigotina do índigo, etc. A partir de 1826, Robiquet e Colin extraíram da garança a alizari- na e a púrpura. Em 1856. Perkin obtinha, por oxidação, o primeiro corante derivado do alca- trão da hulha, o violeta-de-anilina, aumentando a produção das anilinas, iniciada por Bechamp e Hoffmann. Daí para a frente, o impulso da indústria química de corantes foi imenso.

Elementos Psicológicos

O crescente interesse pela Psicologia demonstrado pelos tradicionais estudiosos da cor (pintores, programadores visuais, físicos, químicos, fi- siologistas, etc.) corresponde à seriedade com que os psicólogos analisam também os fenômenos objetivos referentes à cor.

Para o estudo da cor a parte da Psicologia que mais interessa é a experimental, por revelar as implicações sensoriais num encadeamento analítico controlado, com base em observações, experiências e deduções na manipulação das reações de organismos completos (homens e animais) face às condições do meio que os cerca. Tal quadro é sintetizado no esquema: R = f (S, P), em que R corresponde à reação, f à função, S à situação e P à personalidade.

Logo depois do aparecimento dos trabalhos de Lewin (1936) e Hull (1943), a Psicologia se encaminha para as posições hipotéticas dedutivas, situação em que as hipóteses não são mais retiradas das observações diretas, mas deduzidas de leis já conhecidas.

Essas leis começaram a avolumar-se a partir das pesquisas do fisiólogo inglês C. Bell (1811), que delimitaram os campos dos métodos fisiológicos e psicológicos, pela demonstração das diferenças entre as fibras nervosas motrizes e as fibras nervosas sensoriais. Em 1838, J. Müller definiu de forma sistemática o princípio da energja específica dos nervos, afirmando que a excitação do nervo visual dá origem a uma sensação visual e a nenhuma outra, o que acontece também com cada um dos outros sentidos. Aprofundando o estudo do sistema nervoso, a Psicologia científica avança cada vez mais na conqujsta de maiores conhecimentos relativos à divisão e funcionamento do cérebro, numa demonstração da vitalidade da Frenologia, enunciada por F. J. Gall (1738-1828).

Do estudo do cérebro como principal responsável pela elaboração do pensamento, a ciência passa à busca da própria origem das várias formas de pensamento lógico e em imagens, "tornando-se evidente que o espírito não é mais um domínio reservado exclusivamente à metafísica" (10).

Com os métodos do físico e filósofo alemão Gustav Theodor Fechner (1801-1887), criando a Psicof ísica, patenteia-se a viabilidade de medidas psicológicas- que introduzem a Psicologia experimental no campo científico. Alguns anos mais tarde, Helmholtz analisaria a interligação dos dados físicos, fisiológicos e psicológicos na for-

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mação das sensações. Seus trabalhos, desenvolvendo as teses de Young, concorreriam de maneira decisiva para o enriquecimento da teoria das cores (1852). Onze anos depois, Helmholtz abordaria os problemas acústicos relativos à harmonia, gradações e altura dos sons, com novas contribuições ao conhecimento da sensação e da percepção.

Mas quem estabeleceu definitivamente a autonomia da Psicologia experimental foi o fisiolo- gista e psicólogo Wilhelm Wundt (1832-1920). Criou em Leipzig (1879) o primeiro laboratório de Psicologia experimental, grupando ao seu redor grande número de alunos de várias nacionalidades, consagrados ao estudo e à divulgação da nova ciência. Dentre esses alunos, destacou-se B. Bourdon (1860-1943), cuja pesquisa da percepção visual do espaço trouxe os elementos básicos para a compreensão da estrutura e localização espacial dos corpos.

Estudando a percepção sensor ia I, Wundt, ao mesmo tempo que Helmholtz. definiu a distinção entre sensação, simples resultado da estimu- lação de um órgão sensor ial, e percepção, tomada de consciência de objetos ou acontecimentos exteriores. Na análise experimental dos processos superiores (memória, natureza das imagens mentais, imaginação, faculdade de compreender, sugestibilidade, sentimento estético, sentimentos morais, etc.), considerou os fatos psicológicos como unidades firmemente estruturadas e não como simples justaposição de elementos.

Como era de se esperar, o desenvolvimento da Psicologia traria em seu seio muitos elementos controvertidos e idéias opostas. A mais vigorosa reação a uma Psicologia fundada sobre a iritrospecção partiria de Ivan Petrovitch Pavlov (1849-1936). Armando a Psicologia objetiva com a contundente teoria dos reflexos condicionados, provou a permanência da influência dos estímulos sobre os reflexos e a variedade de formas sutis que as reações reflexivas podem assumir por interferência de vários reflexos conjugados.

O centro convergente das preocupações psicológicas, desde 1879, passou a ser o estudo experimental dos processos superiores, iniciado por F. Galton, que recolheu o testemunho de grande número de pessoas sobre a natureza visual, auditiva e outras imagens mentais que certas palavras evocam.

Mas caberia ao filósofo alemão H. Ebbinghaus (1850-1909) sistematizar o estudo dos processos superiores, tomando por base a memória, a partir dos domínios da sensação e da percepção. Ao mesmo tempo em que realiza os trabalhos sobre a memória, ele estuda a teoria das cores e faz pesquisas experimentais referentes à inteligência. Esses estudos e experiências terminam por ressaltar determinados índices de relação entre a percepção e a inteligência, e vice-versa. Perceber mais (ver mais) passa a ser sinônimo de maior inteligência.

Desde a primeira década do século XX a Psicologia encaminha-se para o estudo dos problemas relativos à totalidade psíquica, nos rumos indicados por Ehrenfels, Lipps, F. Krüger e J. Volkelt, segundo o princípio de que a potência (funcionalidade) da forma não depende da simples particularidade e número de seus elementos constitutivos, mas de sua estruturação, uma vez que qualquer troca de situação na organização da forma origina outra forma, criando nova situação.

A constatação da interdependência da parte com o todo levaria os psicólogos alemães M. Wertheimer (1880), K. Koffka (1886) e KÕhler (1887) a considerar os fatos psicológicos como

unidades organizadas em determinados padrões ou formas (gestalt).O princípio fundamental comum a todas as correntes psicológicas gestaltistas é o

reconhecimento do valor científico, explicativo e heurístico da aplicação das noções de estrutura, forma ou totalidade ao estudo dos fenômenos psicológicos.

E necessário considerar que a psicologia dos conteúdos mentais, como a idealizara Wilhelm Wundt, intimamente ligada ao estruturalismo, vem sofrendo, desde o seu aparecimento, grande oposição por parte de outras correntes psicológicas. De forma indireta e contraditória, o maior suporte recebido pelo estrutural ismo provém do gestaltismo, que se generalizou como método de elaboração das artes visuais contemporâneas.

Na utilização estética — eliminado o caráter extremado do anti-sociologismo, que procura diminuir a importância da experiência acumulada — a corrente gestaltista é a que exerce maior atíação aos comunicadores atuais que utilizam a forma e a cor como meio de expressão, por centralizarem seus esforços no conhecimento da funcionalidade dos elementos estruturais.

Perceptivamente, há certa analogia entre os padrões da cor e os da forma: a alteração por acréscimo, diminuição ou mudança de posição de uma cor em relação ao conjunto altera também o significado da estrutura. O que é necessário levar em consideração, com referência à cor, é que sua capacidade de influência psíquica tende sempre mais para os aspectos emotivos, ao passo que a da forma é predominantemente lógica.

Assim como a forma só é percebida em razão de -uma diferença de cor ou de luminosidade dos campos que a definem, a capacidade expressiva e comunicativa da cor só aparece através da forma (tamanho, configuração da área, repetição, contraste, combinação, proximidade e semelhança), atingindo seu maior grau de eficiência quan-do complementa ou reforça a mensagem contida na forma.

Na análise psicológica, o contraste simultâneo de cores pode encerrar determinadas ilusões sensoriais de índices tão elevados quanto os das ilusões óptico-geométricas.

Em toda a sua história, a comunicação sempre se valeu de símbolos. Os sinais (sonoros, visuais ou gestuais), gerados de memorização das formas, terminam por

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constituir códigos. Daí nascem os símbolos, que podem ser formados por um ou vários sinais. Por isso, chegamos à constatação de que todo pensamento expresso é sempre simbólico em maior ou menor escala, devido à impossibilidade de representação de todos os componentes do objeto comunicado. Para representar idéias, situações e objetos cada vez mais complexos, os comunicadores procuraram aperfeiçoar seus códigos, no sentido de uma maior clareza de expressão e de comunicação, possibilitando a criação de símbolos tão desenvolvidos que chegariam a rivalizar com a fotografia e com a descrição analítica. Mas a eficiência desses símbolos nunca esteve na fidelidade da representação, e sim na valorização de certas características do objeto representado, segundo certas necessidades ou exigências do público a que se destinavam. A mestria dos grandes pintores de todos os tempos sempre residiu na capacidade em descobrir essas características, ou seja: as linhas de força que encerram a geometrização das figuras e que as fazem falar. Assim falaram as lanças de Paulo Uccelo, os grupamentos circulares das figuras de Rubens, a forma fechada, recolhida em si mesma, da Tristeza de Van Gogh, os retângulos de Mondriaan, a forma triangular do Enterro na Rede, de Portinari, etc.

A constatação de mensagens explícitas contidas na estrutura dessas formas comunicadas instigou a pesquisa à descoberta da organização das imagens visuais (e outras), daí surgindo a Gestalt como escola psicológica. Sem subestimar o grande impulso que os gestaltistas deram ao estudo da cognoscibilidade das estruturas formais, há de reconhecer-se que eles castraram a própria idéia, tornando-a impotente para explicar a complexidade expressiva da estrutura, ao pretenderem isolar o sentido da forma, da experiência do observador. Atualmente, os símbolos empresariais, cada vez mais abstratos, demonstram a fragilidade da posição gestaltista. Só funcionam (ganham qualidade) através do uso diferencial, institucional e promocional pela empresa — inclusive inserção nos jornais, televisão, etc. — que acaba por impregná-los de conteúdo. Esse conteúdo é fruto da experiência do observador (público), que, pela freqüência de visualização (ou audição), termina por ligar o símbolo à empresa que o utiliza. Com as devidas variantes, o processo de apreensão de uma estrutura qualquer guarda certa analogia com o fenômeno de impregnação de qualidade que a experiência atribui à forma.

Segundo Benussi, as ilusões óptico-geométri- cas são fenômenos pouco sensíveis à influência da vontade. Não se revelam permeáveis pelo fator exercício, no sentido de serem reduzidos através de treinamento. A repetição da vivência de um modelo freqüentemente reforça a sua assimilação distorcida (ilust. 33)..

Como no caso das ilusões óptico-geométri- cas, ocorre o mesmo com os elementos bem estruturados. A primeira impressão permanece e ainda é capaz de influenciar as impressões seguintes, quando se'trata de elementos estruturais semelhantes aos contidos na boa forma. A qualidade emprestada a estes elementos, quando participam de uma estrutura determinada, tende a impregná-los de conteúdo, que pode permanecer mesmo quando eles sejam vistos numa subestru- tura, ou isoladamente. Neste caso, revela-se o sentido hierárquico entre os elementos: o mais significativo guardará maior quantidade de conteúdo, podendo sozinho expressar o todo; os demais só serão reconhecidos em organização de subestruturas. Vejamos; 1? caso - elementos isolados. inexpressivos; 29 caso - elementos organizados numa estrutura; 39 caso - elementos impregnados de Qualidade (conteúdo) (ilust. 34).Para Wertheimer, nossa capacidade percepti- va se subordina a um fator básico, denominado pregnância, que significa boa forma ou forma potente e funcional. A pregnância resulta de algumas características dos elementos formais que poderiam ser sistematizados em: proximidade, semelhança, movimento, boa continuação e destino comum.

Tomada a música por exemplo, observa-se que na estrutura musical o sentido da obra nãoé dado por notas ou grupamentos de notas isoladas, mas pela combinação deles numa estrutura que, guardando certas relações, pode ser entendida como melodia. Este é o princípio geral que rege a organização das imagens, tanto sonoras como visuais.

Proximidade — Partindo dos princípios enunciados por Ehrenfels, poderemos conhecer melhor determinadas estruturas simples. Na observação das duas linhas de pontos (ilust. 35), verificamos que, na primeira, há realmente uma linha pontilhada, devido à proximidade dos pontos. Na segunda, a quebra da proximidade faz desaparecer a linha, surgindo ora pares, ora trincas de pontos. Várias estruturas encontram sua característica no fator proximidade. Utilizando-o, podemos com três circunferências formar tanto uma pirâmide como uma trinca em seqüência, dependendo da disposição das circun-ferências, o que demonstra a versatilidade deste fator. Ainda com o fator proximidade , de acordo com a natureza e a quantidade dos elementos, poderemos ver inúmeras subestruturas contidas numa estrutura. Por exemplo: sete hexágo- nos grupados poderão dar a idéia de uma flor es- quemátizada, de um grande hexágono, de uma pi-râmide, ora com a base para baixo, ora com a base para cima, ou de três linhas de hexágonos

Semelhança ||| Num segmento constituído por círculos e circunferências, à primeira vista podem saltar tanto a linha como as tríades pretas e brancas. Mas, se reforçarmos o.fator semelhança, construindo três fileiras de circunferências e círculos, teremos a predominância visual das formas quadrangulares pretas e brancas, com rtove elementos cada uma, e só com algum esforço é que descobriremos as linhas paralelas formadas pelos elementos. Neste caso, o fator experiência tem grande influência. Quem tenha visto a linha isolada perceberá com menor esforço a conjugação das três linhas. Se aumentarmos a quantidade dos elementos, terminaremos por ver facilmente uma linha, mas desta vez ela será grossa, formada pelas subestruturas de quadrados brancos e pretos .

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Movimento - De todos os fatores que compõem a pregnéncia o mais contraditório e rico de possibilidades de expressão e comunicação é o movimento. Nas artes visuais, entende-se por movimento a característica que indica a orientação das linhas de força (deslocamentos no espaço ou transformações), em se tratando de estruturas estáticas - movimento virtual ou ilusório. Quando se trata de estruturas dinâmicas, o estudo da percepção do movimento ganha novas perspectivas de enfoque, ligadas ao movimento real ou físico. Mesmo neste segundo caso, há íntima ligação entre os dados subjetivos gerados por movimentos reais e o processo perceptivo virtual ou ilusório observado nas estruturas estáticas.

Para os pintores, o movimento está sempre ligado à idéia de ritmo. Os movimentos ou ritmos de um quadro (ou de uma estrutura qualquer) obedecem a certas leis de orientação de suas linhas estruturais. As linhas horizontais criam a sensação de calma; as verticais, de energia; as diagonais, de movimentação, deslocamento. Segundo Georges Seurat, a combinação de diagonais, partindo do meio do quadro para cima, dá a sensação de alegria, enquanto que do meio para baixo expressa tristeza, conforme demonstra o sentido das linhas de força das máscaras do teatro grego (ilust. 38).

Com os mesmos círculos e circunferências usados no fator semelhança, dispostos em outra estrutura, percebe-se o movimento vertical originado tanto pela proximidade como pela semelhança dos elementos. Em nova disposição, surge um movimento diaqonaf.

Boa continuação ou continuidade — Quando os elementos de certas estruturas apresentam um destino comum, como no caso de fios torcidos, de barras gregas entrelaçadas, ou ainda de formas precisas que indicam a direção dos segmentos, diz-se que integram o fator continuidade, ou seja: que têm boa continuação (ilust. 39).

Tendência à complementação — Alguns autores incluem a tendência è complementação (condição de clausura ou fechamento) como uma das particularidades da pregnância. Outros, baseados nos princípios de Hartmann, a consideram como decorrência dinâmica do fator pregnância, mas não como uma de suas propriedades. A rigor, a tendência è complementação não é mais que a propriedade que têm certas formas de induzirem o espírito a completar o fechamento de uma estrutura fortemente esboçada. Assim, na ilust. 40, não vemos uma série de pequenas circunferências, e sim uma grande circunferência formada por elas. Também não vemos separadamente a linha horizontal nem as inclinadas para dentro - tendemos a ver um triângulo, onde apenas há indicações incompletas. 0 mesmo ocorre com as três linhas curvas, que nos levam a perceber uma circunferência, e com as cinco linhas retas, que nos induzem a ver uma estrela.FIGURA E FUNDO

O campo perceptivo é uma unidade constituída pela figura e pelo fundo. Há milênios o problema representa um permanente desafio aos pintores, que muitas vezes fizeram de seus motivos (figuras) o centro de preocupações do quadro, relegando o fundo a plano secundário. Mas também houve pintores que trataram o fundo com tal exuberância de detalhes que a figura vinha à tona por força de contraste, pela simpli-cidade ou ausência de pormenores. A Psicologia só veio a abordar o problema da relação entre fundo e figura a partir de 1890, inicialmente de maneira indireta, com os trabalhos de William James ressaltando a distinção entre franja e foco ou entre aspectos centrais e marginais da consciência, e mais tarde, de forma aprofundada com a sistematização de Edgar Rubin.

As relações existentes entre figura e funde têm maior força nas figuras ambíguas, reversíveis e ilusões de percepção, mas em todo ato perceptivo, em maior ou menor escala, elas estão presentes, valorizando ora o fundo, ora a figura (ilust. 41).

A avaliação de espaço no mesmo plano, ou em profundidade, é uma manifestação de relação, integração ou conflito entre a figura e o fundo. Desde o Renascimento italiano, a representação de espaços foi cientificamente resolvida pelas perspectivas linear e aérea, demonstrando a necessidade de conjugação de ambas, para o pleno êxito da ilusão de terceira dimensão sobre uma superfície plana. De acordo com esses princípios, a Psicologia procura explicar a percepção do espaço real, estudando-lhe os efeitos sobre os sentidos e a consciência.

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3Utilização Mística e Simbólica

Em todas as épocas, as sociedades organizadas sempre tiveram seus códigos completos, ou certos elementos de uma simbologia das cores, atribuindo-lhes freqüentemente caráter mágico. A variedade de significados de cada cor, ao longo dos tempos, está intimamente ligada ao nível de desenvolvimento social e cultural das sociedades que os criam.

Os diversos elementos da simbologia da cor, como em todos os códigos (visuais, ges- tuais, sonoros ou verbais), resultam da adoção consciente de determinados valores re-presentativos, designativos ou diferenciado- res, emprestados aos sinais e símbolos que compõem tais sistemas ou códigos. Com efeito, o que dá qualidade e significado ao símbolo (sinais sonoros, verbais ou visuais) é sempre sua utilização. Por isto, a criação dos símbolos mais significantes e duráveis é, via de regra, ato coletivo de função social, para satisfazer certas necessidades de representação e comunicação.

Como exemplo temos a utilização simbólica da circunferência, do quadrado e do triângulo, cuja origem se perde nos albores do período neo- lítico. Curioso é notar que tais formas suscitaram idéias análogas a vários povos do mesmo grau de desenvolvimento, em lugares e épocas diferentes.

Embora de maneira bem mais complexa e sutil, o mesmo ocorreu com a cor. Pode-se dizer que a simbologia da cor nos povos primitivos nasceu de analogias representativas, para só depois, por desdobramentos comparativos, atingir um nível de relativa independência, que corresponde a estágios mais elevados de subjetividade. O vermelho, lembrando o fogo e o sangue, poderá também representar a força que o faz jorrar, o terror, ou a morte e, por sua reminiscência, o

luto. O amarelo, que lembra o sol, o ouro e o fruto maduro, facilmente será identificado com a idéia de riqueza, abundância e poder. O branco relacionar-se-ia com a luz, portanto com a idéia, o pensamento, a segurança, a tranqüilidade, a pureza e a paz. O preto, com a noite, a escuridão, o perigo, a maldade, a insegurança e o ani- qui lamento.

Historicamente, muitos dos significados das cores guardam o sentido original, enriquecidos com a evolução espiritual dos povos. A cada nova sociedade, os símbolos tornam-se mais requintados e abstratos, acompanhando de perto o vôo da fantasia e das aspirações humanas.

A idéia de poder, representada por um taca- pe. vermelho de sangue, está na linha de desenvolvimento que leva às evocações do manto purpurino de um imperador romano. Mas o significado de poder emprestado à púrpura já engloba toda a complexidade mental de uma sociedade capaz de construir um Império. Embora os dois símbolos representem uma mesma coisa — o poder — o conteúdo de ambos difere na mesma proporção em que diferem os níveis dos estágios sociais e de desenvolvimento intelectual dos povos que os utilizam.O significado das cores nunca teve uma vida autônoma, que iniciasse e terminasse o seu ciclo de ação no próprio âmbito das idéias. Ao contrário, as idéias originadas por certos estímulos exteriores só conseguiram transformar-se em símbolos, no retorno ao mundo objetivo, quando testadas pela prática. Decorre daí a importância do símbolo na origem e veiculação de conceitos, base de sua integração nos variados elementos da superestrutura social. Mas essa integração só se realiza quando o símbolo expressa certas realidades que satisfaçam necessidades subjetivas. Usando os símbolos ao seu alcance, o culto mágico-fetichista do período paleolítico é um exemplo: comprova-lhes a utilidade social, não pelos apelos feitos aos elementos naturais, mas pela capacidade de transmitir ao grupo, a cada nova geração, a experiência para a ação guerreira, a caça e a coleta de frutos - o que se traduz em maior índice de subjetividade e eficácia.

Da utilização da cor no ritual ao puro gosto pela cor vai um longo caminho de evolução so-cial e psíquica em que participam inúmeros elementos conturbadores. Daí ser tão complexa a definição do gosto estético em geral. Não bastam esquemas apriorísticos de herança cultural, de estágios sociais, de características individuais, etc., tomados isoladamente, para determinar-lhes as causas. A mutabilidade do gosto com variantes coletivas e individuais em períodos mais ou menos curtos e seus estágios hierárquicos de preferências constituem o núcleo da dificuldade de conceituá-lo.

Como em todos os métodos de averiguação psicológica, esbarra-se aqui, também, com a contradição entre influências coletivas como expressão mais nítida das injunções sociais e as particularidades individuais. A opção exclusiva por apenas um dos elementos da contradição é que tem causado a ineficiência da maioria dos sistemas organizados para detectar o gosto estético, inclusive o gosto predominante por certas cores.

Na formação das preferências sempre se encontra o efeito da ação física da cor sobre o or-ganismo humano, condicionado pelas reminis- cências do uso individual e social da cor. É sabi-do, por exemplo, que os povos das regiões tropicais gostam de roupas brancas. Esta preferência decorre do fato de tais roupas serem mais frescas, por absorverem menor

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quantidade de raios luminosos que as das outras cores. Já nas grandes superfícies coloridas ambientais o fenômeno é inverso: as cores, ao refletir os raios luminosos, agem como refletores sobre o ser humano, dando-lhe um banho de luz da mesma forma que a fonte energética primitiva (o sol ou outro qualquer foco gerador de luz). A diferença é apenas quantitativa, devido à perda de energia provocada pelos efeitos de absorção e dispersão. As superfícies polidas, principalmente os espelhos, podem realizar um banho de luz com a energia luminosa quase integral, ou até mesmo aumentar sua potência, quando providos de lentes de aumento, como no caso das baterias térmicas solares.

Ao estudar a influência das cores sobre o psi- quismo humano, Goethe ressaltou-lhes o efeito significativo na esfera moral, levantando a hipótese de que "as virtudes curativas antigamente atribuídas às pedras preciosas" tivessem tido "sua origem na experiência profunda do bem- estar indescritível" provocado por essas pedras. Acreditava que as cores "não só engendram estados de ânimo, mas também se adaptam a eles."A aplicação do método científico de pesquisa estética — inaugurado há um século por Gustav

Theodor Fechner, partindo do estudo dos dados objetivos componentes da forma estética - levaria G. J. Von Allesch, em 1925, a negar a existência de padrões de gosto e de preferências por cores, uma vez que o grande número de pessoas por ele testadas variava sempre nas suas sucessivas escolhas. Por isso, concluiu Allesch que as preferências são influenciadas por variáveis individuais ainda não conhecidas inteiramente, e que não tem sentido a qualificação de beleza para uma cor. Qualquer uma poderá ser bela ou não, conforme o papel que desempenhe na dinâmica do fenômeno estético. Esse mesmo ponto de vista, defendendo a relatividade e subordinação da beleza da cor, foi expresso por Delacroix na conhecida frase: "Dê-me lama e farei com ela a pele de uma Vênus, se me permitirem cercá-la de cores a meu modo."

Modernamente, o reconhecimento de que a cor é tão-somente uma sensação coloca-a no campo das especulações psicológicas, possibilitando ò aprofundamento do estudo das relações entre estímulos e componentes fisiológicos, para maior conhecimento dos dados sensitivos e per- ceptivos e sua influência nos reflexos conscientes e inconscientes de caráter emocional e moral.O estudo da projeção da personalidade humana, através de sua preferência ou gosto por determinadas cores, poderá vir a ser de grande importância para o conhecimento de certas áreas da personalidade individual, desde que vencidas as barreiras de uma aplicação mecânica, de um método que deve ser antes de tudo instrumento de pesquisa, mas que, em mãos inexperientes, corre sempre o risco de transformar-se num sim-' pies código de etiquetagem dos "pacientes". Dentre os vários métodos cromáticos de projeção da personalidade, destacam-se o Psicodiag- nóstico de Hermann Rorschach e o Teste das Pirâmides Coloridas de Max Pfister. Ambos adotam valores interpretativos aproximados para julgamento das preferências por certas cores, que resumidamente são os seguintes: o vermelho está relacionado com necessidades afetivas, afetos e suas manifestações, das mais suaves às mais violentas, em direção extroversiva; o azul expressa mais diretamente uma disposição introversiva das funções emocionais e intelectuais — pode ser racionalização ou sublimação e capacidade de intuição; o amarelo corresponde a anseios voliti- vos e liga-se à disposição afetiva e à iniciativa; o laranja é vontade deliberada de agir e de fazer-se valer através da ação; o verde mostra o grau de adaptação ao ambiente, a capacidade de contato; o violeta corresponde à busca de equilíbrio entre o pensar e o sentir; o preto, o branco e o cinza parecem ligados mais diretamente ao inconsciente.

Num país de forte miscigenação como o Brasil, o que mais dificulta a análise da projeção para um justo diagnóstico é a complexa origem da preferência por determinada cor. O gosto pelo vermelho pode estar ligado tanto à paixão clubística como à preferência política, à devoção a Exu, ou à reminiscência de um rito tribal, e não precisamente por uma tendência à extrover- são. O significado das cores varia muito de um código religioso para outro, e destes para os filo -sóficos, mas o conhecimento dessa variedade de conceitos está longe de ser inútil. Por mais extravagantes que sejam, sempre fornecerão ao pesquisador novos caminhos para o levantamento da complexidade do psiquismo humano nessa área, plasmado por uma utilização cromática milenar em que se misturam buscas, equívocos e acertos.

REAÇÕES A CORAo abordarmos o problema da percepção e do gosto pelas cores, entramos em terreno extre-

mamente litigioso. Por isso, reduziremos o conflito a apenas um dos aspectos das áreas litigan-tes, deixando que se defrontem as tendências pavlovianas e as gestaltistas.

No curso do desenvolvimento desta batalha, veremos surgir os sintomas de uma integração, tal qual ocorreu com as contraditórias teorias da propagação da luz.

De um lado, começa-se a perceber que a síntese do conhecimento acumulado (herança so-mada à experiência inédita) resulta num condicionamento com certa autonomia de determina-ções que independe do fator consciente. Por outro lado, g boa organização ou estruturação da forma é capaz de infiltrar-se na trama das matrizes onde se originam as reações condicionadas e marcar sua presença de uma maneira nova e definida.

Nesse embate, acreditamos que a surpreendente forma sulcará o cérebro como as marcas de um sinete, mas tais sulcos ou marcas criarão um desenho novo, diferente das estrias do sinete, ao misturar seus traços aos que já se encontravam impressos na superfície da memória, pro-vocando por vezes resultados ou reações inteiramente inesperados.

A experiência que melhor ilustraria o conflito, a integração e o resultado não previsto é a dojantar bizarro descrito por Mitchell Wilson: "quando os convidados foram servidos sob luzes

que faziam o bife parecer cinzento, o aipo cor- de-rosa, as ervilhas pretas e o café amarelo, a maioria não pôde comer e, embora os alimentos fossem ótimos, os que tentaram comer ficaram doentes."

Depois de um tal exemplo, seria muito difícil defender a tese de uma potência da forma, funcionando acima e independentemente do condicionamento subjacente, mas também seria ingenuidade não considerar a múltipla ação das formas bem estruturadas.

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FASCÍNIO DA ABSTRAÇÃOAntes de aparecer a iluminação feérica das cidades modernas, o espetáculo colorido mais

deslumbrante que se conhecia era o produzido pela pirotécnica.A luminosidade dos fogos de artifício representou a primeira explosão de encantamento

abstrato do mais livre tachismo, decorrente da liberação de energia química pela "combustão de sais de potássio em combinação com compostos de outros metais: estrôncio para o vermelho, bário para o verde, sódio para o amarelo e cobre para o azul", e diversas misturas formando o branco.

E bem antes do surgimento das caprichosas formas pirotécnicas, já se conhecia a rigidez geométrica do caleidoscópio.

As tachistas abstrações pirotécnicas e as mutáveis formas concretas do caleidoscópio conti-nuam a ser utlizadas ainda hoje, por seu poder de criar êxtases oníricos ou lúdicos, em estados de enlevo semi-hipnótico.

A COR NO ESPORTENo esporte as cores desempenham importante papel diferenciador para a visualização dos

contendores.Durante as partidas de futebol, os juizes auxiliares —fiscais de linha — empunham bandeiras

coloridas. O que está munido de bandeira vermelha é o substituto do árbitro. Quando o juiz mostra cartão amarelo a um jogador, significa advertência por infração às regras do jogo; cartão vermelho é sinal de expulsão para o atleta faltoso.

Em competição marítima, a denominação de fita azul é símbolo de velocidade na travessia do Atlântico Norte.

No judô, as cores designam a categoria do atleta. Na roupa de combate (quimono - Judo- Ghi), o lutador leva à cintura uma faixa com a cor indicativa de seu grau. Branco é a cor dos principiantes, seguindo-se. na escala de desenvolvimento de eficiência, amarelo, laranja, verde, roxo. marrom, preto, vermelho com raias brancas. e vermelho.

A bandeira das Olimpíadas, idealizada pelo Barão de Coubertin, é formada por cinco circun-ferências coloridas enlaçadas, sobre fundo branco. A circunferência azul representa a Europa; a preta, a África; a verde, a Austrália; a amarela, a Ásia. e a vermelha, a América.

A COR NA TEOSOFIA E ANTROPOSOFIAEm nossos dias, a penetração da filosofia oriental no Ocidente vem exercendo certa influência

na apreciação e avaliação das cores em alguns meios e seitas. Entre as seitas que procuram utili -zar essa influência, salientam-se os grupos teosó- f icos e antroposóficos.

Aliando antiquíssimas concepções místico- mágicas a idéias cristãs e modernas, em busca de uma fundamentação científica, Annie Besant, continuadora de Helena Blavatsky à frente do movimento teosófico internacional, revela em seu livro Formas de Pensamento um ideário completo da significação das cores do ponto de vista da corrente que lidera.

Também o filósofo e pedagogo alemão Rodolfo Steiner, que dirigiu durante 12 anos (1901-1913) a seção alemã da Sociedade Teosó- fica, preocupou-se seriamente com o problema das cores, definindo-as como representação da idéia. Após separar-se de madame Blavatsky, fundou a Sociedade Antroposófica (da Sabedoria do Homem), continuando até o fim de seus dias como divulgador da obra científica de Goethe. Em trabalhos de crítica, ressaltou a afinidade de concepções do poeta alemão com seu movimento espiritualista. A Teoria das Cores de Goethe tornou-se uma espécie de livro sagrado para os antroposóficos.

Na teosofia, a cor e sua significação têm importância primordial. Segundo Annie Besant, todos os homens possuem uma aura colorida, que é alterada pelas emoções vividas, mas apenas os clarividentes conseguem ver tais auras. "Todo pensamento dá origem a uma série de vibrações que no mesmo momento atuam na matéria do corpo mental. Uma esplêndida gama de cores o acompanha, comparável às reverberações do sol nas borbulhas formadas por uma queda d'água, porém com uma intensidade mil vezes maior. Sob este impulso, o corpo mental projeta para o exterior uma porção vibrante de si mesmo, que toma uma forma determinada pela própria natureza destas vibrações. (...) A qualidade dos pensamentos determina a sua cor. A natureza dos pensamentos determina a sua forma e a precisãodos pensamentos determina a nitidez dos seus contornos. (...) As cores dos diferentes corpos do homem são análogas às das formas de pensamento geradas nesses corpos: o preto significa ódio e maldade; o vermelho, em toda a sua escala, desde o vermelho de ladrilho até o escar- late brilhante, indica cólera. Um vermelho escuro e repugnante é indício das paixões animais e de todos os desejos sensuais. A cor moreno-clara (como de terra queimada) expressa avareza; o cinzento escuro indica egoísmo; o cinzento claro e lívido indica medo. O verde cinzento denota suspeição, ao passo que o verde escuro salpicado de pontos e de relâmpagos de cor escarlate manifesta ciúmes. Em seu estado mais elevado, o verde brilhante expressa o divino poder da simpatia. A afeição se manifesta por meio de toda a gama do carmesim, até o rosa. 0 alaranjado escuro implica orgulho ou ambição, e toda gama do amarelo pertence à intelectualidade. As diferentes tonalidades do azul indicam todas o sentimento religioso. (...) Um pensamento cheio de amor, produzido por um coração piedoso, dá origem a uma série de tonalidades maravilhosas, semelhantes ao azul profundo de um céu de estio. 0 brilho e a intensidade das cores denotam, geralmente, a medida da força e a atividade do sentimento que lhes deu nascimento".

A COR NOS CULTOS AFRO-BRASILEIROS

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Como todos os cultos religiosos conhecidos, os de origem africana também possuem uma sim- bologia da cor reveladora do nível mental e do desenvolvimento social do meio onde surge. "Os santos africanos (orixás jeje-nagôs) têm suas cores, e suas filhas usam essas cores como os fidal-gos usavam as cores das casas onde serviam como vassalos. Oxalá é branco, Xangô é vermelho, Omulu é preta, Anamburucu é azul-escuro" (ll).

Nos candomblés, macumbas, xangós, batuques, parás, babaçués, tambores, etc., as cores aparecem designando as divindades através da decoração dos terreiros, dos objetos sagrados, das vestimentas, paramentos e adornos dos Baba- lorixás, Mães-de-Santo, Filhas-de-Santo, Ogãs e Babalaôs. A variada denominação dos cultos demonstra as influências aparecidas no Brasil, alte-rando cada um deles. Tais influências, díspares, marcam sua presença, também, no significado das cores rituais. Por isso, às vezes vamos encontrar, na prática mística, a mesma cor designando vários orixás, e o mesmo orixá representado por várias cores:

Olorum (nagô) ou Zaniapombo (Angola, Congo, caboclo) — deus supremo, pai de todos os orixás, avô dos mortais. Sua indumentária é inteiramente branca, usando prata ou níquel.

Obatalá, Orixalá ou Oxalá — é representada por duas cuias pintadas de branco, em alusão ao céu e à terra. "Outra representação da deusa era a lima ou limão verde e nisto está a razão do seu nome complementar; do ioruba ohsan, a lima. ou limeira, e nlá, grande, notável; ohsanlá, oxalá" (12). Pela origem de seu nome e pelos símbolos usados, destacam-se as cores branca e verde.

lemanjá — mãe d'água dos iorubanos, a mais prestigiosa entidade feminina dos candomblés da Bahia, É mãe de todos os orixás e de tudo o que existe na face da terra. Protetora das viagens marítimas, "teve o processo sincrético das deusas marinhas, passando a ser Afrodite, Anadiômene, padroeira dos amores, dispondo sobre uniões, casamentos e soluções amorosas. Sua sinonímia é grande: Janaína, Princesa do Mar, Sereia, Sereia do Mar, Oloxum..." ( ,3). Suas cores rituais são o vermelho, azul-escuro e cor-de-rosa, mas a cor preferida para as oferendas é o branco, principalmente flores.

Oxum — orixá dos rios e das fontes, égide das águas doces, como lemanjá é das salgadas e Anamburucu da chuva. Sua insígnia é um-leque de latão, o abedê, tendo no meio uma estrela branca ou uma sereia. Suas filhas usam colarese pulseiras largas de latão amarelo-ouro e cores douradas na vestimenta.

Anamburucu (Nanã) — o mais velho dos três orixás das águas (Anamburucu, lemanjá e Oxum). Suas cores rituais são o branco e o azul- escuro. As filhas-de-santo usam pulseiras de alumínio e contas brancas, vermelhas e azuis.

Xangô — rei nagô. E divindade das tempestades, raios, trovoadas, descargas da eletricidade atmosférica. Usa contas vermelhas, brancas e pulseiras de latão. Sincretiza-se com São Jerôni- mo e Santa Bárbara.

lansã — uma das mulheres de Xangô, identifica-se com Santa Bárbara. Suas cores são o ver-melho e o branco.

Oxum-Maré — é o orixá do arco-íris, imagem identificada com a serpente-marinha. Santoiorubano, sempre ocupado em transportar água da terra para o ardente palácio das nuvens,

onde reside Xangô. As filhas de Oxum-Maré usam fita verde e colares de pedras alaranjadas. Os apetre- chos rituais são uma cobra em forma de hidé, dilonga otói, contas raspadas com chumbo verde e três pratos pequenos de louça verde.

Ifá — orixá das coisas ocultas, das predições e adivinhações. Identifica-se com ocre pálido da palha da esteira de Ifá, dos frutos de dendê e das nozes de manga do colar de Ifá.

Ogum — é o orixá guerreiro. Nas macumbas do Rio de Janeiro, identifica-se com São Jorge. "A cor predileta do Ogum é o azul-profundo. Os colares das filhas de Ogum são de contas azul- marinho na Bahia, amarelas no Recife ou mesmo vermelhas e brancas, em disposição diferente das do colar de Xangô" (,4). Os crentes afirmam ver na pedra de Ogum um homem vestido de vermelho com uma espada na mão.

Oxóssi — orixá da caça e dos caçadores. Suas filhas vestem verde e amarelo, pintura verde, pulseiras de bronze e colares de continhas, verde- branco nos candomblés bantos e azul-claro nos nagôs.

Omulu — o orixá da varíola, ou Omonoiu, ou Obaluacê, santo da varíola nas macumbas do Rio de Janeiro, o mesmo Alalaú, Aiê, Obaluaiê, "O homem da bexiga". Para o culto de Omolu as vestimentas são vermelhas e pretas e palha da Costa. As pinturas nas penhas e nas iauôs, roxas. Os colares de Omolu são de macau de palha da Costa, contas pretas e brancas nos terreiros nagôs, pretas e vermelhas nos terreiros bantos.

Logunedê — sincretizado com São Expedito, suas contas são verde-amareladas.Exu — representante das potências contrárias ao homem, sendo por isso, às vezes,

identificado com as forças malignas, é uma divindade brinca- Ihona e fálica. As contas usadas por suas filhas têm as mesmas cores das vestimentas: vermelho e preto.

Ibeiji - divindade gêmea, orixá jeje-nagô, representada nos candomblés pelos santos católicos São Cosme e São Damião. Suas cores são o vermelho e o branco.

5 Cores

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"C'est le dessin qui donne ia forme aux êtres; c'est Ia coulaur qui laur donne Ia vie. Voilá le sou ffie divin qui les anime."

Diderot

Em nenhuma outra época a cor foi tão largamente empregada como em nosso século. As grandes indústrias de corantes e de iluminação tornam cada vez mais ricas as possibilidades cromáticas, por meio de novas tintas sintéticas, plásticas e acrílicas, e de luzes incandescentes a> muns, gás neon, luzes de mercúrio, fluorescentes, acrílicas, etc., ao mesmo tempo que no emprego estético da cor surgem novas especialidades na comunicação visual. As mensagens de todos os tipos, sempre mais coloridas, inauguram uma era cultural em que a luz alucinante e psicodélica das grandes metrópoles parece ter como único objetivo a poluição visual.

Mas esse desregramento no uso da cor se origina de fatores sociais e não estéticos. Cada cartaz, cada anúncio luminoso, cada vitrine, cada imagem colorida de TV e até a simples indumen-tária de uma corista, de um jogador de futebol ou de um jóquei são longamente estudados em seus contrastes e harmonias de cores, o que não impede que o conjunto visual da maioria das ci-dades, por falta de planejamento cromático, possa dar idéia de um imenso caos crepitante.

O mais surpreendente em tudo isto é que sempre que alguém, em qualquer lugar, por qualquer motivo, toma um pincel para colorir a obra que inicia, seu espírito utiliza consciente ou in-conscientemente o resultado de escolhas e opções milenarmente preparadas para este instante mágico.

Cada cor traz consigo uma longa história.

VERMELHOO vermelho é uma das sete cores do espectro solar, sendo por isso denominado cor fundamen-

tal ou primitiva. É cor primária (indecomponí- vel), tanto em cor-luz como em cor-pigmento.Possui elevado grau de cromaticidade e é a mais saturada das cores, decorrendo dai' sua maior

visibilidade em comparação com as demais. Seu escurecimento em mistura com o preto (escala de valor) tem como pontos intermediários, entre o vermelho e o preto, vários tons de marrom. Seu escurecimento sem perda de luminosidade (escala de tom) obtém-se com a mistura da púrpura, violeta ou azul, dependendo do grau de escurecimento desejado, é a única cor que não pode ser clareada sem perder suas características essenciais. Clareado com a mistura do amarelo, produz o laranja e, dessaturado pela mistura com o branco, produz o rosa, cor eminentemente alegre e juvenil.

A complementar do vermelho, em cor-luz, é o ciano e, em cor-pigmento, o verde. Está situado na extremidade oposta do espectro em relação ao violeta e seu matiz é de 700 mu de com-primento de onda, aproximadamente.

Sua aparência mais bela e enérgica é conseguida quando aplicado sobre fundo preto, fun-cionando como área luminosa. Sobre fundo branco, torna-se escuro e terroso.

Ao lado do verde, forma a dupla de cores complementares mais vibrante, atingindo até a brutalidade, dependendo das proporções empregadas e da forma das áreas coloridas. Aplicado em pequenas porções sobre fundo verde, agita-se e causa desagradável sensação de crepitação.

É a cor que mais se destaca visualmente e a mais rapidamente distinguida pelos olhos. Estas duas propriedades do vermelho é que dão origem à impressão dos "coeurs flottants", estudados por Helmholtz.

Dos vários vermelhos utilizados pelos tintu- reiros e pintores, destacam-se o vermelho-de-sa- turno, o inglês, o laca e o de cádmio. O vermelho- de-saturno ou mínio (zarcão) já era conhecido dos pintores gregos e romanos. £ obtido por lenta oxidaçSo do chumbo exposto ao ar, ou pela calcinação do alvaiade de chumbo. Os vermelhos de laça provêm da alizarina, da rúbia de tíntureí- ro, da conchlnilha, do vermelho de litol e da pa- ranitranilina.

O vermelho mais usado pelos pintores contemporâneos é o de cádmio, produzido por mescla de cádmio, enxofre e selênio. Conforme as proporções de seus ingredientes, varia desde o vermelho-alaranjado até o vermelho-violetado, tendo como ponto intermediário um vermelho forte, de características próprias.

De todos os vermelhos é o vermelhão o que mais rapidamente perde sua coloração ao conta-to com o ar. Um século antes de nossa era, Vi- trúvio já recomendava cobri-lo com uma camada de óleo e cera, para evitar seu escurecimento prematuro.

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O vermelho é a mais contraditória das cores, devido à sua origem e seu processo de saturação. Nos círculos cromáticos de matizes contínuos e nas experiências prismáticas, o vermelho surge entre as radiações violáceas e as alaranjadas que se interpenetram, sendo impossível determinar onde começa e termina o vermelho-alaranjado. O mesmo ocorre com o vermelho-violetado. Esse ponto ideal, comumente chamado vermelho puro, é uma abstração, por ser da própria natureza do vermelho a participação do azul e do amarelo em sua constituição. No seu ponto mais característico, correspondente a 700 m/x de comprimento de onda, para cada 011.359 unidades de vermelho existem 004.102 unidades de verde, segundo a tabela de padronização dos estímulos tricromáticos elaborada pela Comissão Internacional de Iluminação. Como se sabe, o vermelho é formado pela mistura do amarelo com o azul, provando a impossibilidade da existência de um vermelho sem que dele participem o azul e o amarelo.

A rigor, todo vermelho é sempre influenciado, de forma variada, ou pelo azul ou pelo ama-relo, derivando daí a formulação de que o vermelho sempre pende para um mais ou para um menos, ou, ainda, para um quente ou para um frio. Percebendo essa contradição constitucional do vermelho, que, aliás, é potencialmente inerente a todas as cores, mas que se evidencia com maior clareza no vermelho, Goethe afirmava: "A oxidação do aço prova claramente a passagem do amarelo ao vermelho e do vermelho ao azul", classificando o vermelho como um ponto do de-senvolvimento da oxidação, eqüidistante do amarelo e do azul (...) Toda exaltação química é fruto imediato de um desenvolvimento. Prossegue de modo irresistível 6 contínuo, sendo de se notar que geralmente se opera do lado do

mais. O ocre amarelo, tanto pela ação do fogo como por outras causas, toma uma cor vermelha muito intensa. O massicote (amarelo) se exalta até converter-se em mínio (vermelho) e o turbi- go em cinábrio, o qual representa um laranja muito intenso. Todos esses processos implicam uma acidificação íntima empiricamente infinita do metal. Do lado do menos, ó menor a freqüência da exaltação, se bem que é comprovado que o azul-da-prússia e o verde-de-cobalto assumem, segundo sua pureza e saturação, uma leve colo^ ração avermelhada, aproximando-se do violeta." Para Goethe, o vermelho mais puro era o extraído da conchinilha, que pode ser levado tanto para o lado do mais como para o do menos, sendo seu ponto de equilíbrio encontrado nó carmim; mas, como sabemos, o carmim é um vermelho tirante ao violeta.

Nas definições cromáticas, além de outros problemas, entra a dificuldade gerada pela im-precisão vocabular, que é comum em todas as épocas. Para evitar equívocos, somos obrigados a levar em conta apenas a idéia dos autores do passado, e não os termos usados por eles. Buscando definir o vermelho, Goethe diria: "O vermelho puro, que muitas vezes designamos com o nome de púrpura, devido à sua elevada dignidade (não ignoramos qüe a púrpura dos antigos tendia bastante mais para o azul), origina-se de dois modos diferentes: pela superposição do limbo violeta à borda vermelho-alaranjada nas experiências prismáticas, ou por exaltação continuada nas químicas e, além delas, pelo contraste orgânico nas fisiológicas." Na aplicação prática, a moderna indústria gráfica confirma a dedução de Goethe. Nos trabalhos de tricromia e policromia, o vermelho puro é um vermelho-violetado e só conseguimos o vermelho intermediário, entre o púrpura e o laranja, pela superposição do vermelho magenta ao amarelo.

Pelas observações de Kandinsky sobre o movimento excêntrico próprio das cores claras e do movimento ooncêntrico das escuras, constata-se que o vermelho encerra em si outra contradição: a de um aparente movimento concêntrico, "resultado de impressões psíquicas, inteiramente empíricas", e a de um real movimento excêntrico, fruto de seu grande poder de dispersão. "O vermelho, tal como o imaginamos, cor sem limites, essencialmente quente, age interiormente como uma cor transbordante de vida ardente e agitada. No entanto, ele não tem o caráter dissipado do amarelo, que se espalha e se desgasta de todos os lados. Apesar de toda a sua energia e intensidade, o vermelho dá prova de uma imensa e irresistível força, quase consciente de seu objetivo. Nesse ardor, nessa efervescência, transparece uma espécie de maturidade macho, voltada para si mesma, e para a qual o exterior não existe." Esta é a descrição da impressão psíquica; a realidade objetiva, no entanto, nos mostra exatamente o oposto — uma acentuada capacidade de dissipar a luz que sobre ele incide, e nessa dissi- pação ele se agiganta, colorindo as áreas limítrofes com sua própria cor.

Sobre os estados anímicos provocados pelo vermelho, escreve ainda Kandinsky: "O vermelho claro quente (Saturno) tem oerta analogia com o amarelo médio. Força, ímpeto, energia, decisão, alegria, triunfo, é tudo isto que ele evoca. Ele soa como uma fanfarra onde domina o som forte, obstinado, importuno da trombeta."

Cor do fogo e do sangue, o vermelho é a mais importante das cores para muitos povos, por ser a mais intimamente ligada ao princípio da vida. As contraditórias características físicas do vermelho deram origem à bivalência de imagens inspiradas por elas, surgindo entre os alqui- mistas a idéia simbólica de dois vermelhos, um noturno, fêmea, possuindo um poder de atração centrípeta, e o outro diurno, macho, centrífugo.

O vermelho noturno, centrípeto, era visto como a cor do fogo central que anima o gênero humano e a terra. Estava ligado ao centro onde se operam a digestão, o amadurecimento, a regeneração do ser ou da obra em elaboração. Era a cor da alma, do libido e do coração, t a cor da ciência, do conhecimentp esotérico, interditada aos não-iniciados. O vermelho diurno, centrífu-go, invade o espaço. E tanto para o profano como para o sagrado, torna-se sinônimo de juventude, de saúde, de riqueza e de amor.

O vermelho foi a cor de Dionísio para os pagãos e é a do Amor Divino para os cristãos. Na maioria das lendas européias e asiáticas, o espírito do fogo é sempre representado com roupas vermelhas. £ a cor de Marte, dos guerreiros e conquistadores. Era a cor distintiva dos generais romanos e da nobreza patrícia, tornando-se a cor dos imperadores. O vermelho chamejante é o símbolo do amor ardente.

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No Oriente, o vermelho evoca o calor, a intensidade, a ação, a paixão, sendo a cor dos rajás e das tendências expansivas. No Japão, é o símbolo da sinceridade e da felicidade. De acordo com certas escolas xintoístas, o vermelho designa o Sul, a harmonia e a prosperidade. O arroz vermelho é usado como voto de êxito e de felicidade em aniversários e outras datas festivas.

A partir da Comuna de Paris, o vermelho passou a simbolizar a revolução proletária e é atualmente identificado como símbolo ideológico.

Em todos os países do mundo, o vermelho significa perigo e sinal fechado para o trânsito. Por sua capacidade de penetrar mais profunda

mente a neblina e a escuridão do que as outras cores, ele é usado como luz de alarme, nas torres elevadas, cimo dos edifícios, proas de embarcações, etc.

è a cor da pedra dos anéis de grau dos advogados, por evocar os litígios às vezes sangrentos em que estes têm de estudar, acusar, defender e julgar.

Valoriza a pele das pessoas morenas, principalmente a das que têm cabelos negros. Na deco-ração de interiores, sua melhor utilização é nos pisos, tapetes e passadeiras. Devido à sua agressividade, somente é usado nas paredes em casos especiais, quando se deseja dar um toque de violência e alarde ao ambiente. Por essa razão, é empregado quase que exclusivamente no teto e paredes interiores de lojas, casas comerciais e de espetáculos. Sendo estimulante, agressivo e dinâmico por excelência, é largamente utilizado nas decorações festivas e torneios esportivos. Nos jogos de cartas, é a cor das copas e dos ouros.

Em linguagem corrente, o vermelho é também chamado encarnado e rubro. Como a maioria das cores, ele recebeu na Antigüidade vários nomes relativos aos elementos naturais que ti -nham a mesma coloração. Sua mais antiga denominação conhecida é rubi, devido à semelhança com a pedra preciosa que tem esse nome (alumi- na cristalizada — do baixo latim rubinus).

No horóscopo, o rubi é a pedra do mês de julho. Em heráldica, o esmalte gueules (vermelho) é representado convencionalmente por traços verticais nas gravuras em preto e branco, sig-nificando valentia, magnanimidade, ousadia, alegria, generosidade, honra, vitória, crueldade e cólera.

O vermelho, fazendo lembrar a guerra, mas funcionando como símbolo de trégua e de paz, compôs uma das bandeiras mais significativas do último século, graças aos esforços de Henri Dunant, fundador da Cruz Vermelha Internacional.

No Brasil, a visão do vermelho está marcada pela fusão do gosto de vários qrupos étnicos. Conforme assinala Gilberto Freyre (,s), "encontramos a pintura do corpo desempenhando entre os indígenas do Brasil função puramente mística, de profilaxia contra os espíritos maus e, em número menor de casos, erótica, de atração ou exibição sexual. E como profilaxia contra os es-píritos maus era o encarnado cor poderosíssima, como demonstra o estudo de Karsten. (...) Von den Steinen surpreendeu os Bororo besuntando o cabelo de encarnado para poderem tomar parte em danças e cerimônias fúnebres, ocasiões em que o índio se sente particularmente exposto è ação maléfica do espírito do morto e à de outros espíritos, todos maus, que os selvagens julgam soltar-se ou assanhar-se nesses momentos." Ainda "Von den Steinen teve ocasião de presenciar a cerimônia com que os índios do Rio Xingu esconjuraram um meteoro: os baris, ou curandeiros, gesticulando com veemência e cuspindo para o ar. E a fim de enfrentarem o inimigo, haviam-se cautelosamente pintado de vermelho vivo de urucu".

Os portugueses trouxeram para cá a mística do vermelho que lhes teria sido comunicada pelos mouros e negros da África. "Vermelho deve ser o teto das casas para proteger quem mora debaixo dele." "É a cor de que pintam os barcos de pesca, os quadros populares dos milagres e das alminhas. (...) Nos africanos, encontra-se a mística do vermelho associada às principais cerimônias da vida, ao que parece com o mesmo caráter profilático que entre os ameríndios" (16).

AMARELOUma das faixas coloridas do espectro solar, o amarelo é também cor fundamental ou primiti -

va. Em cor-pigmento, é uma das três cores primárias (indecomponíveis), tendo por complementar o violeta. Em cor-luz, é cor secundária, formada pela mistura do vermelho com o verde, sendo a complementar do azul. é a mais clara das cores e a que mais se aproxima do branco numa escala de tons.

Nas experiências químicas, surge do escure- cimento progressivo do branco. Segundo Goethe, todo branco que escurece tende a tornar-se amarelo, assim como todo preto que clareia tende para a coloração azul. Na distinção psicológica de cores quentes e frias, o amarelo é o termo de definição, por ser a cor quente por excelência.

Misturado ao vermelho, exalta-se, produzindo o laranja. Misturado ao azul, esfria-se e produz o verde. Escurecido com o preto (rebaixado), toma coloração esverdeada pouco agradável, pró-xima do verde-oliva sombrio. Clareado com o branco (dessaturado), não perde subitamente as qualidades intrínsecas; a gama de tonalidades que vai se formando do amarelo ao branco guarda percentualmente as propriedades da cor original em relação à quantidade de branco usado na mistura.

É pouco visível quando aplicado sobre fundo branco — por isso os pintores e decoradores contornam a área amarela com um filete escuro (de- brum), para ressaltá-la. Sobre fundo preto ganha força e vibração. Em contraste com o cinza se enriquece em qualidade cromática e beleza. Na pintura, assume geralmente a função de luz, quando se deseja representar as cores naturais numa técnica de tons.

Está situado entre as faixas laranja e verde do espectro e tem um comprimento de onda de 580 m/i, aproximadamente. No gráfico das cores-padrão organizado pela CIE, a composição

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típica do amarelo é representada por 916.300 unidades de vermelho, 870.000 de verde e 001.650 de azul.

Em cor-luz, o amarelo forma com o azul um par complementar cuja mistura, em partes óoti- cas equilibradas, produz ó branco, denomirian- do-se tal fenômeno síntese aditiva. £ necessário frisar que o azul empregado pelos físicos em tais experiências é um azul-violetado e que o amarelo tende sensivelmente para o laranja. Por revelarem em maior grau as características de oposição que totalizam o fenômeno cromático, representadas pela idéia de um mais e um menos, de um quente e um frio, elas foram consideradas, durante muito tempo, como as únicas geratrizes autênticas.

Em cor-pigmento, o amarelo exige como complementar o violeta. Essas duas cores, quando misturadas, produzem o cinza-neutro pof síntese subtrativa.

Nas cores-pigmento, os amarelos mais conhecidos são os de cromo, de zinco, de Nápoles e de cádmio. Obtém-se o amarelo de cromo por dupla decomposição das soluções de cromato de sódio e de um sal neutro de chumbo. Seu maior inconveniente, na pintura, é o escurecimento que sofre em presença do hidrogênio sulfurado. O amarelo de zinco é o cromato básico de zinco hidratado. É uma cor bastante firme e resistente à ação da luz e do hidrogênio sulfurado. Sua tonalidade limão é obtida pela junção de cromato duplo de zinco e potássio, coloração ligeiramente esverdeada, muito utilizada pelos pintores devido ao seu tom firme e permanente. O amarelo-de- nápoles é formado por uma combinação de an- timoniato de chumbo e de sulfato de cal. Mais usado pelos pintores contemporâneos é o amarelo de cádmio. Sua fórmula de produção consta basicamente da precipitação de um sal de cádmio em contato com o hidrogênio sulfurado. A cor varia do amarelo-limão ao amarelo alaran- jado, segundo a acidez do meio em que se realiza a precipitação. Os matizes claros se formam nos meios mais ácidos. Tem ótimo grau de opacidade na cobertura de outras cores e grande permanência de coloração. A todas essas vantagens junta-se a de não ser tóxico.

Segundo PIfnio, os autores da Antigüidade não consideravam o amarelo como uma das cores principais, o qual era usado exclusivamente pelas mulheres em seus véus nupciais. "Pode ser que daí venha a origem de não ser incluído entre as cores principais, quer dizer, comuns aos homens e às mulheres; é, de fato, este uso comum que dá o primeiro lugar às cores."

Esta observação de Plínio evidencia o caráter contraditório que sempre existiu na utilização simbólica da cor. £ sabido que o amarelo, desde o Antigo Egito, aparecia nos livros dos mortos, nas decorações de palácios, templos e túmulos, para colorir os corpos femininos, em oposição ao vermelho, empregado para os masculinos. Mas o amarelo também estava ligado ao disco solar eà imagem de Osiris, sendo freqüentemente encontrado ao lado do azul nas câmaras funerárias para assegurar a sobrevivência da alma, uma vez que o ouro que ele representava era a carne do sol e dos deuses de ambos os sexos.

Na mitologia grega, o amarelo do pomo de ouro, símbolo da discórdia, podia guardar certa analogia feminina, mas ao mesmo tempo, contra- ditoriamente, o amarelo simbolizava o másculo carro de Apoio, o deus da luz. Apesar da variedade de significados atribuídos ao amarelo nos di-versos períodos históricos, o que se evidencia, em todos os tempos, é sua íntima ligação com o ouro, o fruto maduro e o sol.

Na índia, a faca empregada nos grandes sacrifícios do cavalo deve ser de ouro, porque o "ouro é luz e é por meio da Luz dourada que o sacrificado ganha o reino dos deuses", como rezam os textos bramânicos. Para os budistas, o amarelo corresponde ao mesmo tempo ao centro -raiz (Mulâdharachakra) e ao elemento terra (Ratnasambhava), onde a luz é de natureza solar.

Para os chineses, o amarelo ou o preto significam a direção do Norte ou dos abismos subter-râneos onde se encontram as fontes amarelas que levam ao reino dos mortos. O Norte e as fontes amarelas são de essência Yin e também a origem da restauração do Yang. O amarelo associa-se ao preto, como seu oposto e seu complementar. Ambos surgem como diferenciações primordiais — análogas às oposições de forças contrárias como as existentes em Yang e Yln, no redondo e no quadrado, no ativo e no passivo, etc. Na antiga simbologia chinesa o amarelo emerge do negro, como a terra emerge das águas. O amarelo era a cor do Imperador, por se encontrar no centro do universo, como o sol no centro do fir- mamento.

Entre os cristãos, o amarelo é a cor da eternidade e da fé. Une-se à pureza do branco, na ban-deira do Vaticano. Em vários países simboliza o despeito e a traição. £ também o símbolo do de

sespero, por ser intenso, violento e agudo até a estridência.Amplo e ofuscante como uma corrida de metal incandescente, é a mais desconcertante das

cores, transbordando dos limites onde se deseja encerrá-lo, parecendo sempre maior do que é na realidade, devido à sua característica expansiva. Segundo Kandinsky, o amarelo, representando o calor, a energia e a claridade, assume a primazia do lado ativo das cores, em oposição à passi-vidade, frigidez e obscuridade representadas pelo azul. Olhando-o fixamente, "percebe-se logo que o amarelo irradia, que realiza um movimento excêntrico e se aproxima quase visivelmente do observador".

0 amarelo com o roxo, aplicados sobre fundo preto, formam a combinação de cores mais usada na decoração funerária. 0 amarelo está ligado também à idéia de impaciência. No trânsito, ele significa sinal de espera, chamada de atenção para os sinais verde e vermelho. £ usado, ainda, como sinal de alarme sanitário, para indicar áreas contaminadas por doenças contagiosas.

Em heráldica, é substituído pelo esmalte ouro e pela cor dourada. Graficamente, é repre-sentado por linhas horizontais interrompidas, formando uma retícula clara. Significa sabedoria, amor, fé, virtudes cristãs e constância

0 topázio, ou citrínio, como também é chamado, variando do amarelo-claro até o ouro velho, é a pedra zodiacal do mês de novembro. Atribuem-se-lhe todas as virtudes do amarelo.

VERDE

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0 verde é uma das três cores primárias em cor-luz. Sua complementar é o magenta. Misturado ao azul, produz o ciano, e ao vermelho, o amarelo. No espectro solar, encontra-se entre os matizes amarelos e azuis. Tem o comprimento de onda de 560 mu, aproximadamente, e sua composição tricromática indica 594.500 unidades de vermelho, para 995.000 de verde e 003.900 de azul. Situa-se no ponto mais alto da curva de visibilidade. Em cor-pigmento, é cor secundária ou binária, formada pela mistura do amarelo com o azul, sendo a complementar do vermelho.

£ o ponto ideal de equilíbrio da mistura do amarelo com o azul. As potencialidades diame-tralmente opostas das duas cores — claridade e obscuridade, calor e frio, aproximação e afasta-mento, movimento excêntrico e movimento con- cêntrico - anulam-se e surge um repouso feito de tensões. Para Kandinsky, "o verde absoluto é a cor mais calma que existe. Não é o centro de nenhum movimento. Não se acompanha nem de alegria, nem de tristeza, nem de paixão. Não solicita nada. o§o lança nenhum apelo. Esta imobilidade é uma qualidade preciosa, e sua ação é benfazeja sobre os homens e sobre as almas que aspiram ao repouso. A passividade é o caráter dominante do verde absoluto, mas esta passividade se perfuma de unção, de contentamento de si mesmo."

O verde escurecido com o preto descaracteriza-se, tornando-se acinzentado. Escurecido com o azul-da-prússia, cria infinitas possibilidades de enriquecimento cromático. Clareado com o amarelo, toma-se mais ativo e penetra pela variada gama de verdes-limão até confundir-se com os amarelos-limao. Dessaturado com a mistura do branco, ganha em qualidade luminosa.

As substâncias corantes verdes podem ser naturais ou produzidas por mescla. Dentre as naturais destacam-se os seguintes pigmentos minerais: verde de cromo (ôxido de cromo anidrido ou hidratado), acinzentado, opaco e de baixo preço comercial; verde-guignet ou verde-esmeralda (ses- quióxido de cromo hidratado), o mais usado na pintura artística; verdes de cobre: verde malaqui- ta (pulverização de carbonato básico de cobre natural) e verde-veronese (acetoarseniato de cobre), que tem a cor mais bela e é o mais firme, com boa capacidade de cobertura, mas pouco recomendável para mistura com outras cores; e terras verdes, produto da moagem de diversas rochas, como o serpentino, ou de argilas naturais verdes.

Dos verdes obtidos por mescla do amarelo com o azul, os mais usados são: verde-inglês ou ^erde de cromo, mistura de amarelo de cromo *,om azul-da-prússia; verde-vitória, mistura de /erde-esmeralda com amarelo de zinco; verde de zinco, mistura de azul-da-prússia com cromato de zinco.

Com os pigmentos verdes orgânicos, produz- se o verde de ftalocianina, bem como os verdes Fanal e os Laprolac.

Acreditavam os antigos que o ar era verde. Plínio, descrevendo uma ametista, afirmou: "ela reúne a transparência do cristal ao verde particular do ar". Alberti, vinculando as cores aos quatro elementos naturais, preferiu designar o verde como cor da água, da mesma maneira como Ffdias o escolhera para a cor de Vônus. Segundo Winkermann, "tudo o que tinha relação com os deuses marítimos, até os animais que lhes eram sacrificados, levavam ornamentos verdes da cor do mar. Deriva dessa máxima o fato de os poetas colocarem nos rios cabelos da mesma cor. Em geral as ninfas, cujos nomes se originam da água, Nimphi, Limpha, são assim também vestidas nas pinturas antigas."Na China, o verde corresponde ao trigrama tch'en, que significa o abalo e a tempestade — signo do início

da ascensão do Yang — ligando-se também ao elemento Bosque. É a cor da espe- rança, da força, da longevidade, assim como da imortalidade, simbolizada por ramos verdes. Na tradição chinesa, o vermelho e o verde representam a oposição de forças como o Yin e o Yang, um macho, impulsivo, centrífugo e vermelho, ó outro fêmea, reflexivo, centrípeto e verde. 0 equilíbrio de um e do outro é todo o segredo do equilíbrio do homem e da natureza. Os chineses acreditavam que o jade (identificado com o verde) possuía virtudes medicinais, principalmente para a cura de doenças dos rins. Pela antiga filosofia, o verde era a cor do misterioso sangue do dragão.

No Egito, o coração do faraó morto era substituído por um escaravelho de esmeralda, como símbolo de ressurreição. A verde Irin, antes de tornar-se Irlanda, foi a ilha dos bem- aventurados do mundo céltico.

Durante a Idade Média o verde tinha significação contraditória, assumindo às vezes a condição de portador de poderes maléficos. A esmeralda, pedra papal, era também a pedra de Lúci- fer antes da queda. Tomado como medida, o verde simbolizava a razão - embora os olhos garços de Minerva representassem o desatino — e era usado como brasão para os loucos. O Graal, vaso de esmeralda ou de cristal verde que continha o sangue de Deus personificado — no qual se fundiam as noções de amor e de sacrifício que eram as condições da regeneração, simbolizada pela luminosidade verdátrea do vaso — tinha sua origem na visão de São João (Apocalipse, cap. IV» vers. 3): "... E quem estava sentado assemelhava-se pelo aspecto a uma pedra de jaspe e de sar- dônia; e o arco-íris rodeava o trono semelhante à esmeralda." Esta descrição contém a duplicidade de significado expressa pelas cores contrárias, sendo dupla em uma — o verde do jaspe unido na mesma imagem ao vermelho da sardônia (cor- nalina). Sobre tais ações contrárias, mas de um ponto de vista psicológico ligado estreitamente às características físicas das cores, diria Van Gogh: "Eu procurei exprimir com o vermelho e o verde as terríveis paixões humanas." Lembrando a esperança, a toga dos módicos era verde. Pela mesma razão, ainda hoje seus anéis de grau sao verdes. Verde é também a cor preferida para a ornamentação das farmácias e da indústria farmacêutica.

No Islã, o verde era a cor do conhecimento, como a do profeta. Os santos, em sua permanência paradisíaca, eram descritos vestidos de verde Benéfico, o verde assume um valor místico, que é o dos grandes prados verdejantes, dos verdes paraísos dos amores infantis.

Os alquimistas definiam o fogo secreto, espírito vivo e luminoso como um cristal translúcido, verde fusível como cera. A natureza servia-se dele, subterraneamente, para todos os misteres da arte. Esse fogo resumia os contrários: era árido, mas fazia chover; era úmido e ao mesmo tempo produzia a seca. Nos preceitos esotéricos, o princípio vital, segredo dos segredos, aparece como um sangue profundo contido num recipi-ente verde. Para os alquimistas ocidentais é o sangue do Leão Verde, que é o ouro, não do vulgar mas dos filósofos. O verde simboliza a luz da esmeralda que penetra todos os segredos. 0 ambivalente significado do raio verde, capaz de tras- passar todas as coisas, evidencia-se como portador da morte, ao mesmo tempo em que traz a vida consigo.

O sinople, esmalte verde do brasão, significa bosque, campos de verdura, esperança, civilidade, amor, honra, cortesia, amizade, domínio, obediência, compreensão, lealdade ao príncipe. Sua representação heráldica em preto e branco, nas gravuras e pedras de armas, é feita por traços diagonais.

Pela infinita gama de seus componentes (azul e amareio) e pela ampla escala de saturação e claridade que possui, o verde reúne as melhores condições para a decoração de interiores. Seu poder tranqüilizante e até sedativo, quando claro, facilmente se conjuga com a estimulante e até inquietante estridência dos tons fortemente saturados, possibilitando seu emprego tanto nos ambientes de repouso (salas de estar, quartos de dormir, sanatórios, etc.), como nos de estudo (gabinetes de pesquisa, salas de aula, etc.) e de trabalho (escritórios, lojas, fábricas, etc.).

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Internacionalmente, identificou-se com o grito de exclamação: Viva!, descarga emocional do homem motorizado diante do sinal verde representativo de passagem permitida, trânsito livre.

Entre as pedras preciosas, a esmeralda é a que tem o maior número de significados simbólicos, por encampar toda a linha de significações do verde. Na Antigüidade, recomendava-se a esmeralda para os doentes da vista, especialmente para os que tinham a vista cansada. No horóscopo, é a pedra do signo de maio.

O verde e o amarelo são as cores nacionais. Segundo antigas tradições de brasões e bandeiras, o verde estaria ligado à reminiscência do verde da Casa de Bragança, da qual descendia Dom Pedro, e o amarelo à do amarelo da Casa de Habsburgo-Lorena, à qual pertencia a Imperatriz Leopoldina. Introduzidas na bandeira, essas cores adquiririam significados complementares e diferentes, que subjugariam os anteriores, princi-palmente depois da proclamação da República. 0 decreto que criava a nova bandeira dizia ape

nas que suas cores simbolizavam "o verde da primavera e o amarelo do ouro". Hoje, a área verde envolvente da bandeira brasileira traz em si a imagem das florestas do País, fazendo ainda lembrar a esperança.AZUL

Por ser a mais escura das três cores primárias, o azul tem analogia com o preto. Em razão disto, funciona sempre como sombra na pintura dos corpos opacos, numa escala de tons. £ inde- componível, tanto em cor-luz como em cor-pig- mento. Nas luzes coloridas, sua complementar é o amarelo. Misturado ao vermelho, produz o ma- genta, e ao verde, o ciano. Em cor-pigmento, sua complementar é o laranja. Com o vermelho produz o violeta e com o amarelo, o verde. Todas as cores que se misturam com o azul esfriam-se, por ser ele a mais fria das cores. Na natureza, as cores tendem a mesclar-se com o azul do ar atmosférico, influindo nas mutações cromáticas, assunto abordado na Parte VIII deste livro. Durante o Renascimento, vários aspectos desse fenômeno foram estudados por Leonardo da Vinci, sob a denominação de perspectiva aérea.

No círculo cromático de Newton o azul aparece com um raio de ação de mais de 208° (agindo do verde ao violeta), ao passo que a influência do amarelo atinge pouco mais de'148° (do verde ao laranja). Aí não se leva em conta a contraditória influência do azul e do amarelo na constituição do vermelho.

O estado típico de cromaticidade do azul encontra-se no ultramarino, que corresponde ao limite com o anil. O tom mais escuro é o do azul- da-prússia e o mais luminoso, o do cobalto. So mado ao anil (índigo), abrange uma área de mais de 88,5° do círculo, contra apenas 54° do amarelo e 60,5°, aproximadamente, do vermelho. Sua composição tricromática (padrão CIE), correspondente ao matiz de 480 mfi, é de 095.640 unidades de vermelho, 139.020 de verde e 812.950 de azul.

As mais antigas referências sobre a produção e utilização dos azuis datam de cerca de 5.500 anos. Os egípcios já conheciam o azul de montanha (obtido pela azurita moída - carbonato básico hidratado de cobre), o azul antigo (vidro colorido com cobre) e o ultramar extraído do lápis-lazúli. Em 1910, iniciou-se a produção do azul-ultramar em forma sintética. 0 azul-ultra- mar de Guimet, aperfeiçoado em 1926, tomou- se o mais utilizado. I uma combinação de silício, alumínio, soda e enxofre. Sua coloração avermelhada impede a mistura com o amarelo, no sentido de produzir o verde. De todos os azuis, o que tem maior emprego é o da Prússia, que, devido à sua forte coloração, possibilita a produção de outros azuis, tomando-o por base. 0 azui-de-cobalto é o mais utilizado pelos pintores modernos, em virtude de sua luminosidade e permanência. £ produzido com aluminato de cobalto. Por sua transparência, é também muito usado o azul-de-cerúleo (mistura de estanho de cobalto e sulfato de cal). O azul anil, bastante empregado em pinturas de todos os tipos, é produzido pelo índigo, fazendo parte das cores ditas orgânicas, assim chamadas em oposição às cores de origem mineral.

O azul é a mais profunda das cores — o olhar o penetra sem encontrar obstáculo e se perde no infinito, É a própria cor do infinito e dos mistérios da alma. Devido a afinidades intrínsecas, a passagem dos azuis intensos ao preto faz-se de forma quase imperceptível. O azul é, ainda, a mais imaterial das cores, surgindo sempre nas superfícies transparentes dos corpos. Por isso, na Antigüidade acreditava-se que ele era formado pela mistura do preto com o branco. Esta concepção subsistiu até bem perto de nossos dias, e Leonardo da Vinci, um de seus mais ilustres defensores, afirmava: "O azul é composto de luz e trevas, de um preto perfeito e de um branco muito puro como o ar." Na mesma linha de raciocínio, Goethe acreditava que "todo preto que clareia se torna azul... O azul nos causa uma impressão de cinza e também nos evoca a sombra. Sabemos que ele deriva do preto."

Uma superfície pintada de azul dilui-se na atmosfera, causando a impressão de desmateria- lizar-se como algo que se transforma de real em imaginário. A lenda do pássaro azul, símbolo da felicidade inatingível, nasceu, sem dúvida, dessa analogia secreta do azul com o inacessível. Diante do azul a lógica do pensamento consciente cede lugar à fantasia e aos sonhos que emergem dos abismos mais profundos de nosso mundo interior, abrindo as portas do inconsciente e pré- consciente. Por sua indiferença, impotência e passividade aguda que fere, ele atinge o clima do inumano e do supra-real. Segundo Kandinsky, seu movimento é, ao mesmo tempo, "um movimento de afastamento do homem e um movimento dirigido unicamente para seu próprio centro, que, no entanto, atira o homem para o infinito e desperta nele o desejo de pureza e de sede do sobrenatural."

Contemplando-o, envolve-nos sua significação metafísica e facilmente avaliamos as possibilidades de seu emprego clínico na cromoterapia. Um ambiente azul acalma e tranqüiliza, mas, diferentemente do verde, ele não tonif ica, uma vez que apenas fornece uma evasão 9em vínculo com o real, uma fuga que se toma deprimente ao fim de algum tempo.

A gravidade solene do azul tem algo de supra-terrestre, evocando a idéia da morte. Nas necrópoles egípcias, as cenas de julgamento das almas eram pintadas em ocre avermelhado, sobre fundo azul claro. Os egípcios consideravam o azul como a cor da verdade. As idéias do absoluto, da morte e dos deuses eram comumente simbolizadas pelo azul.

Com o vermelho ou o ocre amarelo, o azul manifesta as rivalidades do céu e da terra. Segundo uma tradição ainda em voga, Genghis-Khan, fundador da grande dinastia mongol, nasceu da união do lobo azul com a fera selvagem. O lobo azul é ainda Er Tóshtük, herói lendário khirguize que leva uma armadura de ferro, brincos e lança azuis. No Budismo tibetano, o azul é a cor de Vairocana, da sabedoria transcendental, da po-tencialidade e da vacuidade, em que a imensidão do céu azul constitui uma imagem representativa. A luz azul da sabedoria de Dharma-dhatu (lei, ou consciência original), de potente deslumbramento, é que abre o caminho da Liberação.

O azul foi também a cor dos campos elísios. a superfície infinita onde surge a luz dourada que exprime a vontade dos deuses. A ação violenta do ouro sobre o azul — valores identificados como macho e fêmea — assume sempre o sentido simbólico de oposição e tensão de forças contrárias. Zeus e Jeová, em todas as

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representações cromáticas, reinam sempre com os pés pousados sobre o azul signif icativo da abóbada celes-te. Essa mesma abóbada celeste é, por sua vez, simbolizada pelo manto azul que cobre e vela as divindades. O azul, com três flores-de-lis de ouro do brasão da Casa de França, proclamava a origem divina dos reis cristãos.

Pela idéia de superioridade sugerida em comparação com as outras cores, o azul foi escolhido como á cor da nobreza, originando a expressão designativa de sangue azul. No sentido de reinado, na festa da ascensão da Virgem-Mãe, o ouro solar aparece sobre fundo azul, numa representação de céu sem nuvens. Ligado à idéia de pureza, subsiste ainda, em várias regiões da Polônia, o costume de pintar de azul as casas das jovens em idade de casar. O anel de grau do engenheiro é azul, simbolizando inteligência, raciocínio e possibilidade de construção de novos mundos.

É o segundo dos esmaltes heráldicos, convencionalmente representado por linhas horizontais em reproduções a preto e branco. Simboliza justiça, lealdade, beleza, boa reputação, nobreza e fidelidade.

As pedras preciosas azuis mais belas são a água-marinha e a turquesa. A primeira desde tempos remotos era usada pelos navegantes, na crença de seu poder propiciatório de viagens seguras e tranqüilas. Sua cor varia do azul claro ao azul escuro, havendo também algumas espécies de coloração azul-esverdeado. No signo zo- diacal é a pedra do mês de março.

A terra é azul — foi a exclamação eufórica do primeiro homem ao ver o nosso planeta de uma distância cósmica.

VIOLETA

Violeta é o nome genérico que se dá a todas as cores resultantes da mistura do vermelho com o azul, desde os azuis-marinhos que se avermelham até os carmins que se esfriam. Numa maior precisão vocabular, essas tonalidades são denominadas violáceas, deixando-se a palavra violeta para o ponto de equilíbrio óptico da mescla do vermelho com o azul. Este ponto é também co- mumente chamado roxo. Em pigmento, é cor se-cundária e complementa o amarelo. Rebaixado com o preto, torna-se desagradável e sujo. Escurecido pela mistura com o azul, esfria-se, oferecendo possibilidades tonais de extrema riqueza cromática. Em seus limites mais escuros, tem grande capacidade de dispersão. Dessaturado com o branco, forma a extensa gama dos lilases, produzindo tonalidades de intensa luminosidade e beleza.

Em luz colorida, a mescla equilibrada de azul e vermelho é denominada magenta, tonalidade que se aproxima do violeta purpurino, sendo a cor que complementa o verde.

O violeta é a cor extrema do espectro visível, confinando com os raios ultravioleta. Possui a mais alta freqüência e o menor comprimento de onda dentre todas as cores, cerca de 400 m/x. Sua composição tricromática é de 014.310 unidades de vermelho para 000.396 de verde e 067.850 de azul.

A maior parte dos corantes violeta é fruto da mistura de vermelhos e azuis, mas há também alguns pigmentos puros, entre eles os de origem mineral, como o violeta-de-borgonha ou violeta: de-manganês (pirofosfato amoníaco-mangânico), o violeta-de-cobalto, produzido pela calcinação do fosfato de cobalto, e o violeta-de-ultramar. Os vernizes coloridos e as tintas tipográficas se preparam com corantes de origem orgânica, como o violeta-de-metioleno e o de benzila. Grande número de tintas dessa coloração deriva das laças violetas produzidas pela fixação de corantes orgânicos sobre base mineral.

é o violeta a cor da temperança. Reúne as qualidades das cores que lhe dão origem (vermelho e azul), simbolizando a lucidez, a ação refletida, o equilíbrio entre a terra e o céu, os sentidos e o espírito, a paixão e a inteligência, o amor e a sabedoria.

Desde os tempos mais remotos o violeta impressionou os homens. Não sendo fácil produzir essa coloração por nenhum dos meios que lhes estavam ao alcance, a ametista passou a simbolizar a própria cor. Os faraós do Antigo Império já se enfeitavam com ela, e a Bíblia relata que os trajes dos sumos sacerdotes eram guarnecidos com essa variedade de quartzo. Na Grécia, acreditava-se que a ametista pudesse neutralizar os efeitos da bebida — por isso o vinho era tomado em taças talhadas nesse mineral e usavam-se os mais variados adornos dessa pedra para evitar a embriaguez. A raiz grega da qual se originou a palavra ametista significa sóbrio.

No horóscopo, é a pedra do mês de fevereiro. No taró, os segredos da cartomancia designando a temperança representam um anjo com dois vasos, um vermelho e o outro azul, entre os quais se troca um fluido incolor, a água vital. O violeta, invisível sob essa representação, é o resultado da troca perpétua entre o vermelho das potências da terra e o azul-celeste.

0 violeta foi considerado como símbolo da alquimia. Sua essência indica uma transfusão espiritual, a influência de uma pessoa sobre outra pela sugestão, a persuasão, o domínio hipnótico e mágico.

Na simbologia da Idade Média, Jesus aparece vestido de violeta durante a Paixão, no momento de sua completa encarnação, quando reúne em si mesmo o Homem filho da terra e o Espírito celeste. Essa roupa violeta representa a identificação completa do Pai e do Filho. Jesus, como homem, veste a roupa vermelha sob um manto azul; despojando-se da natureza humana para se unir a Deus, torna a vestir a roupa violeta; após sua glorificação, é o próprio Deus e aparece em vermelho e branco, símbolo de Jeová. Na simbologia cristã o violáceo denominado roxo é a cor da Paixão e cobre as igrejas e os locais dos atos litúrgicos da Sexta-Feira Santa. Junto com o vermelho participa da liturgia dos mártires. Aproximando-se da púrpura, é a cor designativa da roupa dos bispos.

Em tons escuros, o violeta está ligado à idéia de saudade, ciúme, angústia e melancolia, tornando-se deprimente. Em tons claros, é alegre e aproxima-se das propriedades do rosa. A coloração violácea utilizada na arte dos brasões é a púrpura.

LARANJA

Quando produzido por luzes coloridas, o laranja é cor terciária, com a proporção óptica de 2/3 de vermelho e 1/3 de verde. Em pigmento, é cor binária, complementar do azul. Resultado da mistura do vermelho com o amarelo, em equilíbrio óptico. Cor quente por excelência, sintetiza as propriedades das cores que lhe dão origem. Em comparação com cores mais frias, parece avançar em direção ao observador. Tem grande poder de dispersão. As áreas coloridas pelo laranja parecem sempre maiores do que são na realidade. Devido à sua característica luminosa, funciona às vezes como luz, ou meia-luz, nas escalas de tom. Por sua estrutura, não pode ser escurecido. Rebaixado com o preto, torna-se sujo, marchando no sentido das colorações terrosas. Misturado ao vermelho, consegue-se um escureci- mento tonai relativo, mas surge uma cor mais enérgica e

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agressiva que o laranja equilibrado (vermelho alaranjado). Clareado com amarelo, ilumina-se, aumenta em vibração, mas perde em consistência. Dessaturado com o branco, ganha em luminosidade, criando variada gama de tonalidades agradáveis à vista. Tem comprimento de onda de 620 m/z, aproximadamente, e sua composição tricromática é de 854.449 unidades de vermelho para 381.000 de verde e 000.190 de azul.

Em substância corante, os laranjas mais conhecidos são o de cádmio e o de cromo. A vasta gama de vermelhos e amarelos fornece, por mistura, grande quantidade de alaranjados que guarda as propriedades das cores originais.

O flammeum, antigo véu de noivas, significava a perpetuidade do casamento. A pedra jacinto, de coloração alaranjada, era considerada como símbolo de fidelidade. Do ponto de vista místico, encontra-se o laranja como fruto do ouro celeste e do gueule xintoniano, num equilíbrio prestes a romper-se, ou na direção da revelação do amor divino, ou na da luxúria. O difícil equilíbrio do laranja, entre o vermelho e o ama relo, vinculava-se ao não menos difícil equilíbrio entre o espírito e a Libido, passando o laranja a simbolizar, também, a infidelidade e a luxúria. Numa expansão lasciva, Dionísio vestia-se de laranja para as festas em sua honra.

Em heráldica, a cor laranja corresponde ao esmalte aurora, É representado em branco e preto, ou nas pedras de armas, por diagonais que se entrecruzam, formando uma retícula de pequenos losangos. Abandonando o significado que possa ter a aurora como nascimento de um novo dia, ele representa mutação, inconstância, instabilidade, dissimulação e hipocrisia.

PÚRPURA

Na mistura em proporção óptica de 2/3 de vermelho por 1/3 de azul, obtém-se a mais imponente cor violácea, a púrpura. Seu ponto de equilíbrio é tão definido que facilmente é encontrado na mistura de corantes e reconhecido nas re-

frações luminosas e luzes coloridas em geral. £ cor terciária e sua dignidade gerou em todos os tempos a maior admiração e respeito.

Usando como matéria-prima a substância colorida secretada pelas glândulas anais dos moluscos murex brandaris (da família dos muricfdios), os fenícios produziram essa cor altamente valorizada na Antigüidade e da qual a História guardou a lembrança com a designação de púrpura-de-tiro. Modernamente, são mais empregadas a púrpura- de-cássio (precipitado resultante da redução de um sal de ouro pelos cloretos de estanho), de largo consumo na cerâmica, e a púrpura francesa, corante natural que age por ação de morden- te metálico, preparado pelo químico francês Marnas, a partir dos líquens dos gêneros Lecanora e Rocella.

Na Roma antiga, ligava-se à idéia da primeira magistratura, devido à vestimenta púrpura ou com ornatos purpurinos usada pelos magistrados.

Substitui o violeta nos esmaltes heráldicos, sendo representada em preto e branco, nas pedras de armas, por linhas-diagonais que partem da extremidade inferior esquerda para a parte superior direita. Simboliza devoção, fé, temperança, castidade, dignidade, abundância, riqueza, autoridade e poder.

Na indústria gráfica e nas mesclas de luzes coloridas, o vermelho usado para tricromia é um vermelho carminado (magenta), daí a discutível idéia de que a púrpura seja cor primária.

MARROM, OCRE E TERRAS

Os ocres e os marrons não existem como luzes coloridas, por serem amarelos sombrios ou quase trevas. Em pintura ou em artes gráficas, essas tonalidades se obtêm por mistura de amarelo e preto para a produção dos ocres e terras-de- sombra, ou amarelo, vermelho e preto, para os marrons avermelhados e terras-de-siena.

Os ocres são argilas coloridas por proporções variáveis de óxidos de ferro. Em estado natural, são amarelas ou marrons, mas se tornam vermelhas pelo efeito da calcinação. Por sua origem, essas tonalidades se chamam genericamente terras. A terra ocre é o ocre-amarelo, a mais clara das terras. A terra-de-sombra natural é o ponto intermediário entre o ocre-amarelo e a terra-de- sombra queimada. Esta última, de coloração marrom-escuro, muitas vezes se emprega em pintura para a criação de um preto quente aparente. A terra-de-siena natural eqüivale, numa escala de valores, à terra-de-sombra natural, diferenciando-se desta apenas por sua coloração avermelhada. A terra-de-siena queimada é um marrom escuro avermelhado, aproximando-se bastante do marrom-van-dyck.

O marrom é um pigmento muito sólido, colorido pelo óxido férrico ou pelo bióxido de manganês. 0 marrom-van-dyck é um ocre proveniente das cinzas de pirita, calcinadas em alta temperatura.

Durante todo o período conhecido como Pós-Renascimento, as terras foram sabiamente empregadas na coloração geral dos quadros. As mais belas carnações dos pintores venezianos partiam de marrons sombrios para os castanhos dourados em plena luz. Mas tal maneira de fazer foi abastardada a tal ponto que o academicismo em pintura encontrou nas colorações terrosas e sombrias uma de suas mais fortes características.

A diluição da cor numa atmosfera marrom simplifica e escamoteia a incapacidade do emprego da justeza do tom. Portanto, é prática acadêmica rebaixar as cores ou com terras e marrons ou com pretos e cinzas-neutros, para fugir è dificuldade da vibração das cores puras.

Em heráldica, os tons de terra são representados pelo marrom, que corresponde ao esmalte tanné. Sua representação nas gravuras em branco e preto faz-se pelo preto chapado. Significa penitência, sofrimento, traição, humildade.

BRANCO

"A página branca indicará o discursoOu a supressão o discurso?" (...)

(Texto de Consulta)

"Uma paisagem de cilindros & triângulosOnde passeamos; dentro.Depois cria:Quadrado negro em campo branco,Estema do tempo moderno." (...)

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(Grafito para Casimir Malevitch) Murilo Mendes

Resultado da mistura de todos os matizes do espectro solar, o branco é a síntese aditiva das luzes coloridas. Uma cor-luz e sua complementar produzem sempre o branco. Em pigmento, o que se chama branco é a superfície capaz de refletir o maior número possível dos raios luminosos contidos na luz branca.

Já na Antigüidade o branco não era citado entre as cores principais, pelo que se depreende das observações de Plínio. Durante o Renascimento, Leon Battista Alberti afirmara que "o branco não muda o gênero das cores, mas forma espécies", demonstrando assim compreender a eqüidistância existente entre o branco e os gêneros (matizes). A definição de Leonardo da Vinci sobre o branco, negando-lhe a qualidade de cor, permanece, em sua essência, inalterada até os nossos dias. Mesmo não reconhecendo a

qualidade de cor para o branco e para o preto, Leonardo salientava que "o pintor não poderia privar-se deles".

Dos brancos mais utilizados na pintura artística sobressaem os de prata, òe zinco, de titânio e de barita. O branco de prata é produzido pelo carbonato de chumbo puro. 0 branco de zinco é o óxido de zinco em grãos de tamanhos variáveis, pigmento inalterável à ação da luz, com a vantagem de não ser tóxico. 0 branco de barita ou branco fixo provém do sulfato de bário.

Do ponto de vista físico, o branco é a soma das cores; psicologicamente, é a ausência delas. 0 branco é sempre o ponto extremo em qualquer escala: partindo da luminosidade em direção às trevas, ele é o ponto inicial; das trevas em direção à luz, é o término. Por isso, costuma-se representar o branco ora por 100, ora por 0, dependendo do ponto de partida do sistema de notações. Também os sentidos simbólicos emprestados ao branco decorrem dessa singularidade de sua natureza, que faz lembrar as duas extremidades da infinita linha do horizonte, onde surgem a noite e a alba.

Em vários rituais místicos, é a cor indicativa das mutações e transições do ser. Segundo o esquema tradicional de toda iniciação, ele representa morte e nascimento ou ressurreição. O branco do Oeste é o branco fosco da morte que absorve o ser e o introduz no mundo lunar, frio e fêmea. Ele conduz à ausência, ao vácuo noturno, ao desaparecimento da consciência e das cores diurnas. O branco do Este é o do retorno, é o branco da vida, da alba, onde a cúpula celeste reaparece. Rico de potencialidades, é nele que o microcosmo e o macrocosmo se reabastecem.

Em todo pensamento simbólico, a morte precede a vida, todo nascimento é um renascimento. Daí a idéia primitiva do branco como cor da morte e do luto. Neste sentido é ainda empregado em todo o Oriente, e durante muito tempo significou o luto na Europa, tendo tido sua maior' permanência na corte dos Reis da França." ... o luto negro só tomou maior popularidade em Portugal no século XVI. Antes o burel (branco) competia vitoriosamente com o dó (negro) como cores dedicadas ao luto" (,7).

Nas primitivas populações agrárias e dedicadas ao pastoreio, o culto da cor branca se ligava intimamente ao sentido de pureza e princípios vitais vinculados à farinha e ao leite. Sobre o uso do branco observa Câmara Cascudo em Made in África (18): "Recordo do meu tempo de investigação popular a constatação da cor branca ter uma supremacia na ordem das cores. Nos candomblés da Bahia, Oxalá, Orixalá, Obatalá, o Pai dos Orixás, Deus Supremo, vestia branco totalmente de branco como nenhum outro entre os deuses nagôs, jejes ou angolanos."

"No comum - acrescenta - o branco predomina na roupa do africano, na pintura das casas de taipa, na indumentária cerimoniosa. Nos três enterros que vi, dois em Luanda e um em Gam- biafada, arredores de Bissau, na Guiné, os defuntos vestiam branco. Na exposição do morto co-brem-no apenas com um único pano branco entre os Cassangas e Mandingas. Brancos os turbantes. Notável a predominância nas residências africanas, inevitavelmente na primeira sala, local de recebimento protocolar. Paredes irrepreensivel- mente caiadas de branco. Purificação. Em quim- bundo o verbo zela, branquejar, vale clarear, limpar. (...) Nas danças festivas, nas pinturas elegantes de atração erótica, dispostas outrora logo após as complicadas tatuagens clânicas, os negros, notadamente as negras donairosas, amam as tintas vermelhas, amarelas, azuis, pretas, reluzentes, com as variações inumeráveis e combinações sensacionais. O branco intervirá quando houver uma intenção superior às funções visivelmente ornamentais e às expressões unicamente defensivas que os desenhos manifestam. Sempre que se ultrapassem as fronteiras do lúdico, recorre-se ao branco como um apelo ao antepassado, ao mor- to-protetor, às suas forças custodiantes."

O branco é a cor da pureza, campo que não originou ainda uma cor definida, que é como uma promessa, a expectativa de um fato a se desenvolver. Nessas premissas a iniciação cristã da primeira comunhão e a brancura virginal expressas pelas vestes brancas e pelo branco véu de noiva encontram sua origem e significado.

Na visão espiritual de Kandinsky, "o branco, considerado muitas vezes como uma não-cor, principalmente pelos impressionistas, porque não vêem o branco na natureza, é como o símbolo de um mundo onde todas as cores, como propriedades materiais, desapareceram. (...) O branco age sobre nossa alma como o silêncio absoluto. (...) é um nada pleno de alegria juvenil ou, para dizer melhor, um nada antes de todo nascimento, antes de todo começo."

Nas especulações estéticas, o branco sempre figurou como o reino das possibilidades infinitas. Funcionando como luz, desde a Antigüidade, nas primeiras tentativas de claro-escuro dos pin-tores gregos, foi também a cor de fundo das telas, preferida pelos pintores renascentistas. Esta preferência estendeu-se até Rubens eVelásquez, que utilizaram o fundo branco do quadro, tal qual é utilizado o branco do papel na impressão

gráfica, onde a parte não coberta por tinta deixa aparecer a superfície original. Van Gogh perguntava-se se não poderia pintar com branco sobre um muro branco. Como que respondendo à pergunta, vários anos depois Renoir afirmaria que a maior luminosidade possível, em pintura, é a conseguida pela aplicação de branco sobre branco. Numa seqüência de raciocínios e ações em busca de maior enriquecimento estético, Casimir Malevitch, com seu célebre Quadrado branco, sobre fundo branco, inauguraria uma nova fase de concepção colorística em que as cores se en-contrariam apenas em estágio de possibilidades.

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Nos esmaltes heráldicos, o branco é prata. Nas gravuras em preto e branco, representa-se por um simples traço preto que delimita a área branca, assumindo a significação simbólica de pureza, inocência, verdade, esperança e felicidade.

Como reflexo de uma aspiração dominante, o branco encontra seu maior significado no século XX, representando a paz, principalmente a paz entre os povos, é neste sentido que ele aparece na bandeira da Organização das Nações Unidas (ONU), desenhando sobre fundo azul o globo terrestre e os ramos de louro que o cercam.

PRETO

"ô Goeldi: pesquisador da noite moral sob a noite física.

ês metade sombra ou todo sombra? Tuas relações com a luz como se tecem? Amarias talvez, preto no preto, fixar um novo sol, noturno" (...)

Carlos Drummond de Andrade A Goeldi

0 preto não é cor. Seu aparecimento indica a privação ou ausência da luz. Em condições nor-mais, o preto absoluto não existe na natureza. 0 que distingue o pigmento chamado preto é sua propriedade física de absorver quase todos os raios luminosos incidentes sobre ele, refletindo acenas quantidade mínima desses raios. Os corpos pretos só são plenamente percebidos pelos bastonetes que formam a parte periférica da reti- na. Num esforço de concentração visual, sempre é possível distinguir leves tendências à coloração, mesmo nos pretos mais intensos. Demonstrando perfeita compreensão desse fenômeno físico, num aforismo matreiro Portinari costumava repetir uma frase de Batista da Costa: "O preto na luz é mais claro que o branco na sombra."

Como substância corante, o preto figura entre as cores mais empregadas nos diversos ramos da atividade humana em todos os tempos. Sua base material se encontra no óxido magnético de ferro e nos corpos calcinados de origem orgânica e mineral. A grande variedade de pretos de origem vegetal^e animal é produzida pela pulverização de carvões desses corpos. 0 preto mais indicado para a pintura artística é o obtido pela combustão incompleta do marfim. Seu sucedâneo é feito com pretos de ossos diversos a que se agrega pequena quantidade de azul-profundo. Dentre os pretos mais puros utilizados na indústria gráfica, destacam-se o de acetileno e o de breu (hulha destilada).

Teoricamente, o preto representa a soma das cores-pigmento na mistura que produz a síntese subtrativa, mas o que se denomina preto nessa síntese é, a rigor, um cinza escuro, também cha-mado cinza-neutro, por não ser influenciado preponderantemente por nenhuma cor.

O preto encontra sua maior força e presença em oposição ao branco. Sendo um ponto extremo como o branco, tanto poderá marcar o início como o fim da gama cromática, no que tange ao rebaixamento ou iluminação dos matizes na escala de valores. Quando se toma a luz como ponto de partida, o preto será o ponto extremo final da escala; a partir da privação da luz, será o ponto inicial.

Misturado ao branco, produz o cinza, cor neutra por excelência, o que levaria Kandinsky a afirmar: "Não é sem razão que o branco é o ornamento da alegria e da pureza sem mancha, e o preto o do luto, da aflição profunda, símbolo da morte. O equilíbrio destas duas cores, obtido por uma mistura mecânica, dá o cinza. É natural que uma cor assim produzida não tenha nem som exterior nem movimento."

Quando o preto é misturado às cores claras, rebaixa-as, criando tonalidades desagradáveis, sujas, que se interpretam psicologicamente como influenciadas por dados negativos. Sua mistura mais feliz é com as cores escuras, capazes de funcionar como sombras nas escalas de valores: terras sombrias e azuis profundos.

Nas artes decorativas e artes gráficas em geral, tem emprego indispensável como elemento de contraste para ressaltar a qualidade dos matizes. As cores puras (vermelho, amarelo, azul, violeta, etc.), contornadas com preto, ganham em luminosidade e vibração. Conhecendo esta propriedade, Caravaggio pintou de preto as paredes e o teto de seu atelier para valorizar a lumi

nosidade das cores dos objetos e das roupas de seus modelos.Devido à sua violência, o uso do preto foi sempre um desafio à técnica é à sensibilidade dos

artistas. Por esta razão, é raramente empregado na pintura ocidental. 0 êxito de sua aplicação está restrito a poucos artistas na história da pintura, entre eles El Greco, Braque e o brasileiro Iberê Camargo.

Durante seu período holandês, Van Gogh defendeu o preto na pintura com o mesmo ardor com que, mais tarde, falaria das cores: "... o preto e o branco, temos ou não o direito de empregá-los? Serão eles frutos proibidos? Creio que não. Frans Hals conseguiu 27 pretos diferentes."

Na pintura oriental (principalmente na chinesa e japonesa) o preto surge com uma beleza inusitada para os ocidentais. Entretanto, sua característica eminentemente gráfica, buscando acima de tudo o ritmo linear, levaria Constable, apaixonado pelo claro-escuro, a negar-lhe valor artístico, devido à ausência de sombras e de passagens em meias-tintas.

Como fruto da associação de idéias ligadas à produção social, o preto, lembrando a sombra e o frio, em regiões tórridas como o Egito e outras partes do Norte da África, foi considerado símbolo da fertilidade da terra, da fecundida- de e dos nimbos carregados de chuva.

Psicologicamente, encarna a profundeza da angústia infinita, em que o luto aparece como símbolo de perda irreparável. Neste sentido, em certa interpretação do Zoroastrismo, Adão e Eva se cobrem de preto ao serem expulsos do Paraíso, numa representação do mal sem remédio. Evocando o caos, o nada, o céu noturno, as trevas terrestres, o mal, a angústia, a tristeza, o in-consciente e a morte, o preto é o símbolo maior da frustração e da impossibilidade.

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Biblicamente, significou a estigmatização de Cam e seus descendentes, e ainda hoje está liga-do à condenação e à danação da alma, mas, subi i mando-se, representa renúncia à vaidade deste mundo, originando os mantos negros, proclama- ção da fé no Cristianismo.

No Egito, uma pomba negra era o hieróglifo da mulher que sofre a viuvez até o fim de seus dias. Na antiga Grécia, a vela negra içada ao mastro dos navios, revelando tragédia, simbolizava a fatalidade.

Em heráldica, o preto mantinha analogia com o sable (areia, representada pelo ocre-ama- relo), exprimindo sua identidade com a terra estéril. Significava prudência, sabedoria, constância na tristeza e na adversidade.

5Do Impressionismo

àArte Abstrata

"Em realidade, trabalha-se com poucas cores. O que ilude seu número 6 terem sido colocadas no lugar justo."

Pablo Picasso

"A cor apoderou-se de mim: nSo tenho mais necessidade de persegui-la. Sei que ela me tomou para sempre. Tal é o significado deste momento abençoado. A cor e eu somos um só. Sou pintor."

Paul Klee

Em todos os períodos artísticos férteis, sempre aparece uma corrente moderna em relação à arte do período anterior, ou a elementos contemporâneos tendentes a perpetuar uma tradição artística. Mas o que a expressão "arte moderna" passou a designar, em nosso século, é a renovação ocorrida a partir do Impressionismo.

Em essência, em que consiste a arte moderna? Para Paul Klee (1879-1940) a resposta se encontra na própria concepção de que "a arte não reproduz o que é visível, ela torna visível". Na mesma linha de desligamento das concepções estéticas anteriores, Pablo Ruiz Picasso (1881- 1973) daria outra definição, também por excelência moderna: "A arte não é a aplicação de uma regra de beleza, mas daquilo que o instinto e o cérebro podem conceber além de qualquer regra."

Tais definições contêm todos os elementos de possibilidades da arte do século XX: a liberação do espírito para os grandes vôos em busca da forma suprema, e a liberação da contestação de tudo, até mesmo da arte.

Os suportes filosóficos dessas duas linhas de desenvolvimento transparecem nas declarações dos dois artistas mais significativos deste século. E Delaunay? A rigor, Delaunay não foi repre-sentativo de seu tempo. Foi, sobretudo, o colo- rista preocupado com o que sonhara ,Van Gogh. Enquanto Picasso, comentando as próprias descobertas, afirmava enfaticamente: "Eu não pro-curo, acho", Paul Klee dizia: "Nada pode ser feito às pressas. As coisas devem crescer, devem progredir para o alto, e se jamais chegar o tempo da grande obra, tanto melhor. (...) Devemos continuar a procura. (...) Encontramos partes, mas não encontramos o todo!" Este raciocínio era coerente num pintor que aspirava, acima de tudo, a "ser o primitivo de uma nova era".

As forças liberadoras fundavam-se diretamente na destruição, e Picasso foi um magnífico in-térprete desta situação das artes do início do século: "Antes os quadros se encaminhavam a seus fins por progressão. Cada dia trazia qualquer coisa de novo. Um quadro era uma soma de adições. Comigo, um quadro é uma soma de destruições." Encarnando ao mesmo tempo a morte e a ressurreição, completaria o raciocínio: "Eu faço um quadro, em seguida o destruo. Mas, no fim de contas, nada se perde; o vermelho que retirei de uma parte se encontra em outro lugar."

De seu processo criador, afirmaria Picasso: "No momento em que faço o quadro, penso em um branco e aplico um branco. Mas posso continuar a trabalhar, pensar e aplicar um branco; as cores, como os traços, seguem a mobilidade da emoção. Vísteis o esboço que fiz de um quadro com todas as indicações de cores. O que restou? No entanto, o branco em que pensei, o verde que pensei, estão no quadro; mas não no lugar previsto, nem na quantidade pensada. Naturalmente

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podem-se fazer quadros bem harmoniosos por trechos transportados, mas se perde a dramaticidade."

Pela linguagem, percebe-se a liberdade total com que o pintor se lançava sobre as telas: "Co-loco em meus quadros tudo que eu gosto. Azar para as coisas, elas não têm outro remédio senão se arranjarem entre si."

A destruição e a negação na obra de Picasso seriam interpretadas por Jean Cassou ( ,0) nos se-guintes termos: "Na verdade, é ao nada que deveremos reduzir-nos, e ao universo também, se quisermos medir toda a verdadeira natureza do artista barroco que, sem relação com ninguém, salvo consigo próprio, faz exatamente o que quer e enche toda a capacidade do seu possível poder, é sob esta inspiração do seu demônio barroco que Picasso, em 1932-1933, se apaixona pelas formas curvilíneas, enroladas, envolventes, germinativas. Nos anos seguintes, num crescente delírio de cores a que o leva o freqüente emprego do ripolin, pinta insólitas mulheres num interior, ou antes metaforicamente confundidas com as turbulências de um interior. Após a exasperação de Guernica, as fantasias anatômicas tomam- se cada vez mais extravagantes e os "retratos" cada vez mais blasfematórios."

Se William Blake tivesse conhecido Picasso, por certo não diria que o pintor malaguenho fora contratado por Satã — diria que era o próprio, em mais uma de suas reencarnações. Secre-tamente, o século XX teve esta mesma intuição, mas com sabedoria julgou que, inversamente ao que ocorrera no Paraíso (onde um rebelde da corte divina se transformara no espírito do mal), da destruição, do caos e de todas as misérias poderia surgir, também, o germe redentor de um anjo, deus ou semideus. E ele surgiu.

Na Bauhaus, o ambiente se iluminou ao ouvir sua voz descrever como a linha, as proporções e a cor se transformam no ato da criação: "Gênese eterna" a consciência humana penetrando até "esse lugar secreto onde o poder primordial alimenta toda evolução". E sua ambição foi também revelada: "Acontece-me sonhar com uma obra de grande envergadura, abarcando ao mesmo tempo o elemento, o objeto, a significação e o estilo. Receio que isto permaneça como um sonho, mas é uma boa coisa, mesmo agora, alimentar de tempos em tempos este sonho."

No atormentado ambiente da primeira guerra mundial, Paul Klee escreveu em seu diário (1915): "Quanto mais horrível se torna este mundo (como acontece neste momento), mais abstrata se torna a arte, enquanto um mundo de paz produz uma arte realista." Concordando com os surrealistas, Klee afirmava que o processo essencial de criação está situado abaixo do ní-vel da consciência, mas ele recusava o princípio de que a arte possa jorrar automaticamente do inconsciente, por julgar que o processo de gestação é complexo e implica observação, meditação e, finalmente, mestria técnica dos elementos pictóricos. "É pela importância que dá, ao mesmo tempo, às fontes subjetivas e aos meios objetivos da arte que Klee é o artista mais importante de toda a nossa época"(20).

A partir do Surrealismo, crescera a valorização da originalidade e da espontaneidade, de uma maneira inconcebível em qualquer outra época. A atrativa idéia de que existe mais criatividade na livre invenção de um desenho infantil do que na mais perfeita reprodução de uma obra greco- romana firmara-se como princípio estético, abrindo caminho a todas as manifestações dó inconsciente e da inconsciência, do irracional e do irracionalismo. Em pouco mais de cinqüenta anos de exercício de uma arte fundada sobre essa base, a crítica pendera toda função de orien-tação pública que porventura tivera, e até a possibilidade e a autoridade para aferir a avalanche crescente das obras produzidas.

O livre jogo da imaturidade e da irresponsabilidade profissionais, e mesmo da simples defi-ciência mental elevada à condição de arte, conduziria Portinari à jocosa observação crítica: "Loucos e crianças sempre existiram, o que não havia antes era quem os levasse a sério."

ANTECEDENTES DO IMPRESSIONISMO0 caminho percorrido do Impressionismo à abstração foi o mais movimentado, contraditório e

tortuoso que a história da arte conheceu. Apresentado pela crítica contemporânea como a revolução que rompeu com as formas do passado, o Impressionismo criou as premissas de um novo conceito estético em oposição às re- miniscências do conceito greco-romano.

Para efeito didático, costuma-se dizer que seus precursores foram Velázquez, Goya, Turner, Constable, Delacroix, etc. Mas, neste caso, a história da pintura está dividida em períodos estanques, incomunicáveis, em que se consideram apenas as influências imediatas, para estudá- los separadamente, tal como se estuda ém anatomia um órgão decepado. A rigor, o Impressio-nismo só pode ser inteiramente entendido quando se avaliam as conquistas da pintura desde o Helenismo até o Romantismo.

Aceitando-se que o Impressionismo foi uma revolução em que culminou o processo evolutivo da pintura ocidental num determinado momento, aceita-se também que ele encerra, no conjunto de

suas possibilidades, as qualidades mais significativas de todo o processo. Neste ponto reside a discordância entre âs correntes que o vêem como uma verdadeira revolução estética e as que o

encaram apenas como o início de um período de decadência da arte.Surgiu o Impressionismo numa época de grandes transformações econômicas e sociais. De vá-

rias maneiras, agudas sensibilidades pressentiam o impasse artístico frente à nova vida que se organizava sob o impulso da industrialização, e algumas delas chegaram a decretar a morte da pintura, prenunciada pela agonia cada vez mais curta de inumeráveis ismos pós-impressionistas.

A aplicação dos elementos da pintura às técnicas artísticas da sociedade industrial e da mo-derna sociedade tecnológica provou que a arte tem fôlego infinito: a cada dia se transfigura, para acompanhar o homem em sua longa jornada. No quadro geral, qualquer que seja o juízo sobre o Impressionismo — revolução estética autêntica ou movimento decadente — ninguém lhe pode negar a importância histórica de precursor das mais significativas tendências das artes visuais do século XX.

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A particularidade que o Impressionismo tem a seu favor, como autêntica revolução, é a de haver colocado em novo nível de avaliação os elementos emoção e razão. Emoção pura motivada pelos sentidos, através de novas formas de estímulo, e razão, não mais moral izante, sociológica ou anedótica, mas pura razão estética que enriquece o patrimônio cultural humano ao abrir- lhe o campo da pintura como terreno especificamente pictural.

A pintura ocidental, desde seu início, foi sempre marcadamente racional. O desenvolvimento da arte pré-helênica revelaria uma aspiração realista, no sentido de que os elementos da sensualidade oriental cedessem lugar à ação racional izadora dos dóricos. O equilíbrio entre a razão e a emoção marcaria o apogeu da arte helênica.

A luta entre esses dois elementos esteve presente em toda a história da arte ocidental, ora ' predominando um, ora o outro. O desejo da reconquista do equilíbrio rompido com o fim do classicismo grego foi uma das maiores aspirações do Renascimento. O que marca a Alta Renascença é o novo equilíbrio entre emoção e razão. Souberam seus artistas criar a forma que provocava a sensação adequada para revelar a razão humana nos dilatados limites de um novo mundo que emergia dos escombros feudais. A técnica que empregavam estava envolta no mesmo clima misterioso dos "milagres" não explicados pela ciência. A nascente História da Arte só encontrava um meio para contornar a dificuldade: atribuir às particularidades individuais toda a complexidade da realização artística.

Apesar de Alberti já ter procurado demonstrar, em seu livro De Pictura, a importância dos meios técnicos para a comunicação do artista, e Leonardo haver teorizado longamente a respeito da técnica, somente com Ludovico Dolce (Diálogos sobre a Pintura) a história e a crítica se encaminham para a análise objetiva do conhecimento pictórico.

A pintura, querendo atingir o intelecto, buscou na representação natural a forma ideal de expressão. A síntese dessa representação foi o domínio das perspectivas linear e aérea, e o som- breado, que, adequadamente conjugados, possibilitavam ao pintor representar em três dimensões os volumes e os espaços. Desde o início, destacou-se o caráter mais apropriadamente artístico do sombreado, cuja aplicação esteve sempre ao arbítrio do pintor, podendo ser realizado indiferentemente, tanto na escala de valor como na escala de tom, sem perder o caráter natural.

A linha de desenvolvimento técnico que buscava o relevo, iniciada por Apolodoro (405 a.C.), culminaria com o esfumado de Leonardo da Vinci, vinte séculos depois. Conforme teorizou o Mestre florentinó, a intensidade de uma sombra corresponde proporcionalmente à intensidade da luz. Quanto maior a intensidade de uma sombra, maior a beleza da luz que surge por ação de contraste. Torna-se evidente, portanto, que o estudo das sombras visava ao controle da luz, ou melhor, das áreas iluminadas (coloridas) do quadro. Quando se fala nas sombras arbitrárias de Caravaggio, está-se reconhecendo o caráter mais livre do emprego das sombras em relação ao da cor, e não criticando seu colorido.

A sombra arbitrária descendia do princípio da luz particular, exaltação do combate entre luz e sombra. Manejando o conhecimento desse princípio, Ticiano Vecéllio conseguia efeitos psicológicos de intensa dramaticidade. A violência das sombras exacerbava o colorido. A técnica de Veneza introduziu-se na Espanha pelas cores e trevas dos quadros de El Greco (1541- 1614).

Mas os venezianos foram também os maiores mestres da pintura tonai, subordinando a forma plástica â composição cromática, com o que faziam surgir massas cromáticas ao invés de mo-

delados plásticos. No emprego do tom, Paulo Veronese não apenas criou escola, como foi insuperável. Maravilhado por sua técnica, escreveria Van Gogh: "A cor exprime alguma coisa em si

mesma; não se pode negar e devemos utilizar-nos disso; o que é belo, realmente belo, é também justo. Quando Veronese pintou os retratos de seu belo mundo nas Bodas de Caná, utilizou toda a

riqueza de sua palheta em violetas sombrios, em tons dourados magníficos. E, ainda, tinha também esse claro azul celeste e um branco nacarado de sua predileção, que não salta para a

frente do quadro. Ele o aplicou atrás, e fez muito bem; por si mesma, essa cor modifica os palácios de mármore e o céu que completa a série das personagens de uma maneira característica. Tão magnífico,essefundo nasce espontaneamente de uma combinação pre-meditada das cores."

Todas essas conquistas técnicas iriam refletir- se na arte da Espanha, somando-se às influências nórdicas que chegavam até lá diretamente, ou através do espírito francês, preparando terreno para o aparecimento de dois dos seus maiores mestres, precursores do Impressionismo: Diogo Velázquez (1599-1660) e Francisco Goya (1746- 1828).

Influenciado pelas iluminuras nórdicase pelas pinturas bizantina, gótica, pré-renascentista e renascentista italianas, o emprego da cor também se desenvolvera em outras partes da Europa. O vivo colorido das Horas e dos Missais seria transportado para os óleos dos irmãos Van Eyck- Hubert ( ? -1426) e Jan (entre 1385 e 1390- 1441), que inauguravam uma nova técnica do emprego desse aglutinante do pigmento. A severidade cromática de Albrecht Dürer (1471-1528), o sensual colorido de Pierre-Paul Rubens (1577- 1640), a misteriosa e bruxuleante luminosidade de Georges de Ia Tour (1593-1652), as formas que se fundiam e diluíam no clímax de lumino-sidade alcançado pelos quadros de Jan Vermeer de Delft (1632-1675), ou o sábio colorido de Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779) demonstravam as infinitas possibilidades da cor, como instrumento de revelação da alma dos gênios.

Até hoje não se fez inteira justiça à importância da arte inglesa dos séculos XVIII e XIX. A pintura inglesa revela, em seu desenvolvimento, coerência e integração com a cultura de seu tempo e, neste particular, sobrepassa todas as escolas pictóricas do período. £ com ela que se dá a primeira grande ruptura com a tradição do Renascimento italiano. Tão científica como fora a arte dos renascentistas, iguala-se à dos impressionistas e pós-impressionistas na especulação e assimilação das conquistas físicas, lançando as bases do próprio Impressionismo. A influência das descobertas de Newton e dos trabalhos de Priestley e Harris permanecia viva, animando as discussões relativas ao emprego da cor.

O espírito inglês, através de seus grandes pintores, William Hogarth (1697-1764), Reynolds, Gainsborough, George Romney (1734-1802), John Hoppner (1759-1810), Turner e Constable, iria assinalar um dos momentos culminantes da história da arte.

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Os discursos de Reynolds sobre pintura, feitos na Academia Real. demonstram a independência com que este pintor encarava a dinâmica da técnica. Com prudência, mas de forma inequívoca, ele faz brilhante crítica ao naturalismo e à imitação mecânica do real, defendendo o estado poético da arte.

Mesmo ligado à tradição — fora o fundador da Academia Real e seu presidente até à morte — forçava a derrubada de certos conceitos que se transformaram em dogmas acadêmicos: "Eu pen-so que uma das primeiras lições que todos os mestres darão aos principiantes para dispor luzes e sombras é a que dá Leonardo da Vinci — saber opor um fundo claro ao lado sombreado da figura e um fundo escuro ao lado iluminado. Se Leonardo da Vinci tivesse vivido o bastante para ver o brilho superior que se obtém por um método precisamente contrário, aproximando luz com luz, e sombra com sombra, não tenho dúvida de que ele o teria admirado."

O sopro de modernidade científica que perpassa por seus quadros, deixando antever a possibilidade da quebra de todas as regras acadêmicas, suscitara a violenta frase de William Blake (1757-1827) de que Reynolds "tinha sido contratado por Satã para deprimir a arte."

Reynolds fora contemporâneo do químico e físico seu compatriota José Priestley (1733- 1804), descobridor do hidrogênio, do oxigênio e do fenômeno da respiração das plantas. Priestley escreveu uma História da Óptica, culminando com os princípios newtonianos. Sabe-se hoje que Moses Harris oferecera um exemplar de seu The Natural System of Color a Reynolds, o que de-monstra a familiaridade do pintor com cientistas de seu tempo.

Preferia Reynolds os tons quentes: vermelhos luminosos, amarelos dourados e terras averme-lhadas. Esta predileção iria propiciar um episódio revelador do clima de especulações teóricas em que vivia a pintura inglesa. Tomando por base a arte do Renascimento, principalmente a dos venezianos, ele afirmara que o equilíbrio de tons que embeleza os quadros é propriedade de do-minantes quentes. Refutando-lhe a tese, Gainsborough pintou o célebre Menino em Azul (1770). Foi o primeiro golpe teórico-prático vibrado contra as concepções renascentistas, derrubando ao mesmo tempo regras e preconceitos. Abria-se caminho a uma maneira cada vez mais livre de se interpretar corretamente a natureza.

Amadurecida por várias influências externas e pelos trabalhos de Joshua Reynolds (1723- 1792) e Thomas Gainsborough (1727-1788), a arte inglesa iria produzir seus dois maiores pin-tores: Turner e Constable.

John Ruskin (1819-1900) estudara apaixonadamente a obra de Joseph Mallord William Turner 11775-1851), tracando-lhe vivo retrato e penetrante análise de sua obra em Os Pintores Modernos. Da obra de Turner tirou a conclusão decisiva para a arte moderna: "Um fiel estudo da cor permitirá sempre discernir a forma, enquanto que o mais aprofundado estudo da forma não permite discernir a cor."

Ninguém melhor que Turner captou os efeitos particulares e o desencadeamento dos ele-mentos naturais. Empregando com mestria os contrastes simultâneos de cores, suas paisagens tornaram-se verdadeiras lições de utilização da cor, deixando antever as possibilidades do Impressionismo. A transparência característica da aquarela foi o meio adequado que encontrou para desenvolver o domínio da luminosidade e dos cambiantes reflexos coloridos da natureza. Contudo, ele considerava suas aquarelas apenas como um método de notação e estudo para a realização da arte maior da pintura a óleo.

Rivalizando com Turner, John Constable (1776-1837) exerceu grande influência sobre a pintura francesa, segundo declarações de Delacroix e Edouard Manet. Ao observar um prado pintado em verde por Constable, Delacroix chegara a uma constatação importantíssima, cuja extensão nem ele mesmo poderia aquilatar: "A maior luminosidade de uma pintura não resulta do emprego de muitas cores, mas sim da utilização racional de várias gamas da mesma cor." Mais tarde Renoir daria novo passo no mesmo sentido deste raciocínio, quando afirmou que a maior luminosidade que se pode conseguir é a do branco sobre branco. Estas constatações seriam elementos fundamentais para o domínio do fenômeno da cor inexistente, um século depois.

Ao analisar as origens do Impressionismo, Herbert Read escreveu em O Sentido da Arte: ". . . se devemos atribuir a um homem mais do que a outro o início dessa grande mudança em nossas vidas (porque afinal de contas importa em que o mundo nos foi revelado sob nova luz), é ao inglês louco que de repente vem para fora do atelier e arrosta o vento e a chuva..." — Constable.

A pintura de Constable refletia uma autêntica vitalidade emotiva, traduzida por uma visão que encontrava nos contrastes simultâneos de cores o meio de externar-se. Foi a mestria dessa forma de expressão revelada no quadro O Carro de Feno — exposto em Paris no "Salon" de 1824 — que levara Delacroix a declarar: "ce Constable me fait un grand bien". Depois de ver O Carro de Feno, Delacroix refez completamente o céu de seu quadro O Massacre de Selo, afirmando ser Constable o "pai da nossa escola de paisagem". Mesmo utilizando o contraste simultâneo de cores, Constable dava grande importância ao claro-escuro, e chegou a defini-lo, numa formulação leonardiana, como "o poder que cria espaço; achamo-lo por toda par

te e em todas as ocasiões na natureza: oposição, união, luz, sombra, reflexo e refração, todos contribuindo para ele."

Numa seqüência cronológica no sentido do Impressionismo, depois de Constable surge Dela-croix. A pintura francesa dos fins do século XVIII e princípios do XIX criara uma grande escola neoclássica, mas não resistira às influências externas, num período em que o desejo de renovação dos meios de expressão abrasava os espíritos mais sensíveis. 0 exemplo característi -co de tal situação é Eugênio Delacroix (1798- 1863), que, desde cedo, começara a buscar fora do país o que melhor satisfizesse a sua ânsia de domínio dos meios técnicos para a revelação de novas idéias.

Atraído pela arte nórdica, visita a Inglaterra em 1825. Seu ardente espírito conservaria para sempre a paixão por Shakespeare, Byron, Reynolds, Hogarth, Gainsborough, Turner, Constable e Bonington. Mais tarde, viajou ao Marrocos e à Espanha. Em 1838, visitou a Bélgica e a Holanda. Seus horizontes ampliavam-se a cada viagem, nutrindo-se nas imagens luxuriantes da África e na vibração cromática dos pintores espanhóis. Mas a influência decisiva iria encontrar em Rubens, cuja exuberância flamenga e vitalidade universal contribuiriam como um gigantesco so-pro para avivar a fogueira espiritual em que se consumiria.

A França ressuscitava a arte do colorido, numa síntese majestosa de tudo o que se fizera, até então, no domínio da violência cromática. Referências sobre o estudo da cor, como método supremo de aprimoramento artístico, aparecem constantemente no célebre Journal de Delacroix, documento de extraordinário valor confessional e autobiográfico penetrando os domínios da crítica sobre literatura e arte.

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Com Delacroix, o emprego das cores liberta-se de todo preconceito e regras acadêmicas. Surgem as grandes composições em francos contrastes de cores nas cenas históricas ou de costumes, mas a concepção geral da pintura é a mesma que animou o neoclassicismo, acrescida da genialidade que não se enquadraria bem sob a etiqueta de romântica nem de nenhuma outra.

O IMPRESSIONISMOCom o Impressionismo dá-se uma nítida ruptura com os postulados da arte do passado. Essa

ruptura é tão significativa que influenciaria as áreas da música, da literatura, da crítica, da moral e dos costumes. O século XX iniciaria a marcha em busca de sua linguagem própria, trilhando os caminhos abertos pelo Impressionismo.

"O Impressionismo foi uma reação ao realismo. à objetividade do realismo, e uma afirmação dos direitos da subjetividade, da personalidade do artista. Este desprendimento em relação à objetividade era um ideal — mas não um ideal intelectual, precisamente porque se baseava na sensação" (21).

Uma das maiores aquisições do Impressionismo foi a do pintor Edouard Manet (1832-1883), que viria a ser uma de suas principais individualidades. Ainda muito jovem ele afirmara que "ha-via de pintar o que via e não o que os outros gostavam de ver." Logo descobriu que para alcançar seu objetivo era necessário adquirir uma técnica à altura de sua ambição, e entregou-se ao estudo dos métodos dos grandes mestres coloristas. O contraste simultâneo passou a ser estudado cuidadosamente, abrindo-lhe novas perspectivas.

A pintura encaminhava-se rapidamente para uma posição científica. Em resposta às acusações de que em seus quadros detinha a dinâmica natural da paisagem para estudá-la, Manet afirmara: "matamos para dissecar". Daí à ciência pura da cor, como arte, foi um passo.

Aprofundando as proposições cromáticas dos impressionistas, Georges Pierre Seurat (1859- 1891) e Paul Signac (1863-1935) criam oponti- Ihismo, ou divisionismo, fazendo com que o observador participasse do quadro, como um de seus elementos, pela integração quadro-especta- dor, através da mistura óptica de cores. Era a introdução, na pintura, dos recursos de impressão gráfica, utilizados anteriormente por Le Blond e Mile, mas ampliados pelas teorias de Chevreul, Helmholtz e Rood.

Nos trabalhos do físico Charles Henry, estudioso de Leonardo da Vinci, encontraria Seurat novos estímulos para o estudo das leis físicas. O entusiasmo científico reforçaria em Seurat a convicção de que a arte é harmonia. Em carta a Maurice Beaubourg (M), define sua concepção estética:

"A Harmonia é a analogia dos contrários, a analogia dos semelhantes, de tom (valor), de cor, de linha, observados segundo a dominante e sob a influência de uma iluminação em combinações alegres, calmas ou tristes.

Os contrários são: Para o valor, um mais luminoso ou mais claro para um mais escuro.Para a cor, as complementares, isto é, um certo vermelho oposto à sua complementar, etc.

(vermelho-verde; laranja-azul; amarei o-violeta).Quanto à linha, as que fazem um ângulo reto.A alegria de valor é a dominante luminosa; de cor, a dominante quente; de linha, as linhas

acima da horizontal.A calma do valor é a igualdade doescuroedo claro; de cor, do quente e do frio e a horizontal

para a linha.A tristeza de valor é a dominante escura; de cor, a dominante fria, e de linha, as direções para

baixo.Técnica.Admitidos os fenômenos da duração da impressão luminosa na retina, a síntese impõe-se

como resultante. O meio de expressão é a mistura óptica dos valores, das cores (de localidades e da cor iluminante: sol, lâmpada de petróleo, gás, etc.), isto é, das luzes e das suas reações (som -bra) segundo as leis do contraste da gradação da irradiação.

A moldura está na harmonia oposta à dos tons, das cores e das linhas do quadro."Os néo-impressionistas Seurat e Signac, em' vez de aplicar a cor em superfícies lisas, aplica-

vam-na em pequenos pontos ou traços, utilizan- do-se apenas das cores primárias. Para a obten-ção do verde, bastava salpicar de azul e amarelo, na quantidade precisa — mais azul escurecia, mais amarelo clareava — a área desejada. A retina se encarregava de produzir o verde. O mesmo processo era empregado para conseguir cada uma das cores compostas. As cores assim pro-duzidas eram muito mais luminosas do qlie as aplicadas já prontas sobre a tela.

Da Lei do Contraste Simultâneo das Cores, de Chevreul, tornou-se o livro de cabeceira de todos os pós-impressionistas. Também citavam com freqüência os trabalhos de Rood e de Helmholtz. O grande injustiçado, que não era lembrado por ninguém, embora estivesse na origem de todo esse processo de conhecimento cromático, era Goethe, cuja reparação só viria a ser feita — em parte — mais tarde, por Robert Delaunay.

A partir do Impressionismo, a pintura enveredou pelo salutar mas perigoso caminho da busca de novas soluções plásticas a qualquer preço. Alargar os limites do emprego da cor constituía o objetivo de quase todos os pintores. Neste quadro geral, destacou-se a figura de Auguste Renoir (1841-1919). Apesar de ter participado desde o primeiro momento do grupo impressionista, sua pintura difere da dos outros integrantes do movimento.

Continuando a linhagem dos grandes coloristas franceses La Tour, Fragonard, Watteau, Chardin e Delacroix, soube Renoir elevar a novos termos o colorido do quadro. Suas flores, carnações e tecidos eram delicados e amenos como a vida a que aspirava boa parte da população de seu tempo, embora a gama de contrastes fosse mais intensa que a de Van Gogh, só não mais violenta porque, cultuando uma tradição, ele utilizava passagens de tons para amortecer os choques cromáticos. A gama de cores ia comu- mente de escuros intensos, que rivalizavam com o efeito do preto de marfim, até o branco absoluto, passando sempre por uma ou duas cores primárias inteiramente puras. Pela técnica utilizada, Renoir não se filia a nenhuma escola. 0 mínimo que se pode dizer dele é que foi um dos maiores coloristas de todos os tempos.

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Em Vincent Van Gogh (1852-1890), o emprego das cores teria outro sentido: o da paixão de-senfreada e da violência. Para André Lhote C23), "Van Gogh é certamente o colorista mais exas-perado da pintura moderna. Em seu nome nascem tantas telas em que se esgotam e se anulam todos os recursos da química." Com ele, a generosa ambição do pintor de tal forma se fundira com o objetivo do homem que se tornaram uma única coisa: "Em pintura desejo dizer algo de confortador comparável à música, desejo pintar homens e mulheres com o quê da eternidade que o halo costumava simbolizar e que hoje procuramos representar pela radiação e vibração do co-lorido."

Tinha razão Van Gogh em lastimar-se por não haver aprendido a ciência das cores em sua ju-ventude. Até a permanência ém Antuérpia, aos 33 anos, ele tinha adquirido apenas certa destreza no desenho e feito alguns quadros pungentes pela dramaticidade do assunto, mas que não bas-tavam para classificá-lo como grande pintor, muito menos como colorista. Nessa época sua pintura era escura, com larga utilização do preto, não evidenciando de nenhuma maneira a erup-ção cromática que ocorreria num período bem próximo. Depois de longo esforço para adquirir o domínio da técnica da pintura de tons, desfrutou apenas pouco mais de três anos dos meios que lhe possibilitariam a plena expressão artística, e assim mesmo já doente e alquebra- do pela miséria.

Numa carta de novembro de 1885, Van Gogh diz ter ouvido falar "de uma experiência feita com uma folha de papel de cor neutra, que se torna verdátrea sobre um fundo vermelho, aver-melhada sobre um fundo verde, azulada sobre um fundo alaranjado. . ." e pedia a seu irmão Théo: "Se encontrares algum livro sobre estas questões das cores, um livro que seja bom, me envia-o antes de qualquer outra coisa, pois é necessário que eu saiba tudo a respeito e não se passa um dia sem que procure me instruir."

Durante sua estada em Paris (meados de 1887), escreveu: 'Tive oportunidade de aprofundar a questão da cor. (...) Neste verão, quando pintava paisagens em Asnieres, percebi mais cores que anteriormente." Pouco mais de um ano depois, já de posse de profundos conhecimentos cromáticos, escreve a Émile Ber- nard: "... o céu do Sul e do Mediterrâneo provoca um alaranjado tão mais intenso quanto mais sobe de tom*a gama dos azuis. A nota preta da porta, dos vidros, da pequena cruz sobre a cumeeira faz que surja um contraste simultâneo de branco e preto agradável à vista, tanto quanto o do azul com o laranja."

Nos últimos anos de vida, Van Gogh constituía sua palheta com as seguintes cores: verme- Ihão, laca de gerânio, carmim laranja de mínio, amarelo do cromo I, II e III (limão, amarelo claro e amarelo escuro), verde-veronese, verde- esmeralda, azul-de-cobalto, ultramarino e azul- da-prússia, branco de prata, branco de zinco, ocre amarelo, terras-de-siena natural e queimada, e preto de marfim. 0 preto às vezes era substituído pelo azul-da-prússia e pelos cinzas- neutros resultantes da mistura do azul-da-prússia, vermelhão e amarelo de cromo escuro.

Desde o início dos tempos históricos até Van Gogh, a pintura tinha sido feita com determinados fins e objetivos de classes ou camadas sociais. Com ele, e-só com ele, a pintura desclassificara-se para tomar-se apenas humana, fora e acima de qualquer classe. É a própria espécie no momento da criação, quando criador e obra se fundem numa mesma natureza, para salvação do homem. Salvação pela fé no poder da obra, mesmo quando a esperança de salvação individual já não existe mais. É O sacrifício de tudo em fanção do puro ideal, é a busca da transcendência das contingências humanas,^ movida pelo que de melhor produziu a aspiração ao belo. Como ele mesmo diria: "uma espécie de fatalidade nos condena a procurar incessantemente a luz."

No século XX, a ciência do emprego da cor assumiria importância primordial na estrutura da obra. Tornava-se claro para todos o conceito de Ruskin: "A missão do pintor é pintar; se ele sabe colorir sua tela, é um pintor, mesmo que não saiba fazer nada mais. . ." Nos maiores artistas posteriores ao Impressionismo, nota-se a subida gradual da importância da cor, até atingir a inde-pendência total que subjuga e incorpora à sua dinâmica os demais elementos do quadro.

Em Paul Cézanne (1839-1906) o Pós-lmpres- sionismo teria seu mais rigoroso colorista. Com ele introduziu-se na pintura o elemento consciente do que se poderia chamar harmonia asso- nante, onde nuances de tons diferentes se equivalem por equilíbrio óptico quando o observador guarda certa distância do quadro. A característica básica da pintura de Cézanne reside na harmonização de contrastes de tons diversos, em que a cor pura surge do emaranhado de delica-das nuances ópticas. Seus trabalhos, ao lado das máscaras africanas, constituíram o elemento propulsor do Cubismo.

Em carta de 15 de abril de 1904, dirigida a Émile Bernard, ele tece algumas considerações teóricas em torno de seu pensamento estético: ". . . tratar a natureza pelo cilindro, a esfera, o cone, tudo isto posto em perspectiva, ou seja, que cada lado de um objeto, de um plano, se dirija para um ponto central. As linhas paralelas ao horizonte dão a extensão, isto é, uma seção da natureza ou, se prefere, do espetáculo que o Pater omnipotens aeterne Deus exibe diante dos nossos olhos. As linhas perpendiculares a esse horizonte dão a profundidade. Ora, para nós, homens, a natureza é mais em profundidade que em superfície, daí a necessidade de introduzir nas nossas vibrações de luz, representadas pelos vermelhos e amarelos, uma quantidade suficiente de azuis para fazer sentir o ar."

Em outra carta, também a Émile Bernard (fevereiro de 1904): "O desenho e a cor não são coisas distintas; à medida que se vai pintando, vai-se desenhando; quanto mais a cor se harmo-niza, mais o desenho se precisa. Quando a cor atingiu sua riqueza, a forma chegou à sua pleni -tude. Os contrastes e as relações de tons, eis o segredo do desenho e do modelado. (...) Dese -nhe; mas é o reflexo que é envolvente, a luz, graças ao reflexo.geral, é o que envolve."

Vivia-se na Europa o período pré^futurista em que vários movimentos de vanguarda estavam prestes a eclodir. Sem princípios ou programa estabelecido, surgiram os fauves, participando do imperioso arrebatamento da vida. "Alguns belos temperamentos, em toda a sua petulância e inquietação da juventude, se encontraram para formar esta labareda: alunos do atelier de Gusta- ve Moreau, Matisse, Marquet, Camoin, Manguin; Friesz e Dufy, vindos do Havre; Derain e Vla- minck, que estão em Chatou; Van Dongen, que está em Montmartre. (. . .) Se lhes chamaram "Fauves" (feras), foi por efeito de um dito espi- rituoso e sem que ninguém alguma vez tivesse pensado em reduzir o Fauvismo a um corpo de doutrinas. Tratava-se de uma explosão, mais ainda, de um escândalo. O seu fulminante raio foi lançado no Salon d'Automne, de 1905. Foi no Salon seguinte que o crítico de arte Vaux- celles, entrando na sala em que estavam expostas as obras de Matisse e dos seus companheiros, e descobrindo, perdidos naquela confusão de cores, alguns pequenos e ajuizados bronzes do es

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cultor Marque, exclamou: "Donatello no meio das feras!" O nome ficaria" (M).Intimamente, o Fauvismo guardava certa relação com o Expressionismo, o que levou Henri

Matisse (1869-1954) a afirmar: "... a tendência da cor deve ser a de servir o melhor possível à expressão." Ficaria famosa a descrição de seu método de transformação da realidade objetiva em obra de' arte: "Na minha frente encontra-se um armário que me dá a sensação de um verme-lho muito vivo. Ponho na tela um vermelho que me satisfaz. Estabelece-se assim uma relação entre esse vermelho e o branco da tela. Ao lado dele coloco um verde, dou o sombreado com um amarelo e de novo haverá entre este verde ou este amarelo e o branco da tela relações que me satisfarão. Mas estes diferentes tons diminuem-se mutuamente, É preciso que os diversos tons que utilizo fiquem equilibrados de tal forma que se não destruam uns aos outros. (...) Uma nova combinação de cores sucederá à primeira e dará a totalidade da minha representação. Sou obri-gado a transpor e é por isso que se afigura que o meu quadro mudou totalmente quando, após modificações sucessivas, o vermelho substituiu nele o verde como cor dominante."

Na mesma época em que começam as exposições dos fauves em Paris, surge o Expressionismo na Alemanha, misturando aos elementos puramente germânicos e nórdicos forte influência dos trabalhos de Van Gogh e Gauguin. Escolhendo a "ponte" como símbolo, o primeiro grupo expressionista, a Brücke (Kirchner, Heckel. Bleyl, Schmidt-Rottluff e mais tarde Nolde) de-sejava demonstrar sua fé na arte do futuro.

Ligados ao Expressionismo alemão, apareceram os trabalhos do norueguês Edvard Munch (1863-1944) e do suíço Ferdinand Hodler (1853-1918). Em sua Crônica da Brücke, Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938) disse: "Acolhemos todas as cores que, direta ou indiretamente, reproduzem o puro impulso criador."

Mesmo depois de sua ligação com a Brücke, Emil Nolde (1867-1956) continuaria "um artista isolado na arte alemã do século XX. Nele a cor torna-se ativa, uma força elementar acionada por um movimento íntimo e um abalo espiritual. Sua pintura se expande na superfície, e ele reduz os graus tonais a poucas unidades de cor, grandes e circunscritas. A figura perde sua forma natural em favor de uma interiorização e de uma sensibilidade apaixonada. O primitivo, o elementar e o terrestre tornam-se evidentes na pintura de Nolde. A tinta a óleo é, para ele, uma matéria que escoa com dificuldade. Sejam nuvens, mar ou casas, animais ou flores, todas as coisas se movimentam num ritmo pesado e são penetradas de uma surda melancolia. Mas, nas aquarelas, suas cores se aclaram na mais suave e bela transparência" (M).

Seguindo-se à Brücke, surgiu em Munique o grupo do Blaue Reiter (Cavaleiro Azul), reunindo Kandinsky, Paul Klee, Frans Marc, August Macke, Max Ernest, etc., que transformaria o Expressionismo em verdadeiro prelúdio da Arte Abstrata.

O ABSTRACIONISMOPairavam no ar, indefinidamente, novos elementos de extraordinárias possibilidades. Em 14 de

julho de 1907, August Macke (1887-1914) declarava: "Coloquei agora toda a minha salvação na busca da cor pura. Na semana passada, tentei compor cores sobre uma tábua sem pensar em nenhum objeto real." Um ano depois, Wilhelm Worringer (Abstraktionund Einfühlung) falava da abstração como "fenômeno contemporâneo e expressão da necessidade interior."

Considerado o pai da pintura abstrata, Kandinsky coloca-se também entre os mais destacados teóricos do abstracionismo. Seus livros Du Spirituel dans l'Art (1910-1912) e Du Point et de Ia Ligne au Plan revelam um espírito voltado para as especulações filosóficas, mas são acima de tudo obras de um profundo conhecedor dos problemas da pintura, guiado por uma extrema sensibilidade à cor.

Segundo ele, a obra de arte compõe-se de dois elementos: "o interior e o exterior. O interior é a emoção na alma do artista; esta emoção tem a capacidade de despertar uma emoção idêntica na alma do observador." O elemento exterior é constituído pelos meios materiais. Afirmava ainda Kandinsky que a arte moderna só existe "quando os signos se transformam em símbolos."

Como tem acontecido inúmeras vezes na história das grandes descobertas, ocorreu também no aparecimento da arte abstrata um feliz acaso (rigidamente dentro das leis da possibilidade), que determinou o ponto inicial de uma arte essencialmente e voluntariamente não objetiva. Essa descoberta de Kandinsky é descrita por seu autor (M): "Deixei meu desenho e, entregue a meus pensamentos, abri a porta do atelier, en- contrando-me brutalmente defronte de um quadro de uma beleza indescritível e incandescente. Estupefato, parei onde estava, fascinado por esta

obra. A pintura não possuía tema, não representava nenhum objeto identificável, era composta unicamente de manchas luminosas de cor. Finalmente me aproximei, e só então foi que vi o que era realmente — minha própria tela que estava colocada de lado sobre o cavalete.. . Uma coisa me ficou então perfeitamente clara: a objetividade, a descrição dos objetos não tinham nenhum lugar em minhas telas e lhes eram até prejudiciais."

Por outro caminho, ao romper a forma tradicional da estrutura do objeto, o movimento cubista também abria as portas da pintura à abstração, com a ruptura entre forma e cor como concepção plástica. Para Picasso, o Cubismo é uma arte que se preocupa acima de tudo com as formas, porque, "quando uma forma está realizada, permanece sempre, para viver sua própria vida." Esta seria a definição do Cubismo ortodoxo ou analítico, seguido por seus criadores Pablo Picasso e Georges Braque (1882-1963).

Braque destacou-se sempre como representante da alta linhagem do intelectualismo plástico. Artista de enormes recursos técnicos, apesar de sua fidelidade cubista, foi também um dos res-ponsáveis pela vitória definitiva das concepções inobjetivas em arte. Sua pintura de valores quen-tes e sombrios, valorizando magistralmente os pretos, pode ser tomada como a essência do re-quinte máximo da Escola de Paris. Em numerosos aforismos, Braque nos revela seus conceitos estéticos: "O pintor não se preocupa em reconstituir uma anedota, mas em constituir um feto pictural. (...) A nobreza vem da emoção contida. (. . .) Não sou um pintor revolucionário. Não procuro a exaltação, o fervor me basta. (...) Onde se faz apelo ao talento, é que feita a imaginação." Vendo a série de suas paisagens deformadas geometricamente. Matisse dissera que pareciam cubos, e daí o rótulo da Escola Cubista.

Menos de um ano após o aparecimento do Cubismo, surge na Rússia um movimento plástico de enorme vitalidade, sintetizando o espírito de vanguarda de toda a Europa. Em 1909 e 1910 Nathalie Gontcharova eMichel Larionov expuseram suas primeiras telas raionistas, autênticas

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raízes da arte abstrata. Segundo Larionov, a pintura raionista, "ao mesmo tempo que conserva'o estímulo da vida real, podia tornar-se ela própria." Nessa pintura, a cor deveria ter hegemonia idêntica è do som na música. Em outras palavras: uma pintuca que seja cor, assim como a música é som.

Aspirando a uma arte cada vez mais colorida, Robert Delaunay (1885-1941) daria outra orien-tação aos trabalhos cubistas, criando o Orfismo. Em 1912, Apollinaire incluiria os nomes de Léger. Picãbia e Mareei Duchamp na lista dos pintores órficos. No Orfismo já se encontram delineados os princípios que orientariam Delaunay em toda a sua vida e assim expostos por Apolli- naire: "... a arte de pintar novos conjuntos com elementos emprestados, não à realidade, mas inteiramente criados pelo artista e dotados por ele de uma potente realidade. As obras dos artistas órficos devem apresentar simultaneamente um prazer estético puro, uma construção que atinja os sentidos e uma significação sublime, quer dizer, o conteúdo. É a arte pura."

Fora Delaunay influenciado inicialmente pelas idéias de Cézanne e mais tarde pelo movimento fauvista. Sua aspiração maior era ultrapassar o que fizeram Seurat e Signac. Apesar de reconhecer a importância dos trabalhos dos pontilhistas, Delaunay fazia-lhes algumas restrições: "Foi o genial Chevreul que, por seus estudos teóricos, chamou a atenção para as leis das cores simultâneas. Seurat foi sensibilizado, mas Seurat não teve audácia para levar a composição até o rompimento com todos os meios convencionais da pintura. A linha e o claro-escuro ainda estão na base plástica de sua arte."

Com Delaunay, as preocupações e especulações cromáticas atingem seu mais alto ponto, e tiveram influência decisiva sobre importantes artistas de outros países, como Franz Marc e Paul Klee. Na estética de Delaunay, "a natureza não é mais um tema para descrição, mas um pre-texto, uma evocação poética de expressão por meio de planos coloridos que se ordenam pelos contrastes simultâneos." Os ritmos de seus quadros derivam de formas drculares em relações de contrastes e dissonâncias na expressão mais severa e mais pura.

Na opinião de Pierre Francastel l21 ),"a pintura de Delaunay é, a um tempo, abstrata e realista; ele abre caminho a toda uma série de pesquisas das formas, em que o equivalente exato é encontrado na escultura de Brancusi e de onde sairia mais tarde a expressão realidades concre-tas, em oposição às formas abstratas ou figurativas nascidas de uma especulação que tem por objetivo a comunicação de um estado de aima ou de uma impressão sentimental, não de uma visão."

Para Delaunay, a cor era ao mesmo tempo forma e assunto, decorrendo daí a principal dife-rença no emprego da cor por ele e pelos grandes coloristas que o antecederam. Enquanto os outros a empregaram para pintar os objetos, ou aspiraram transformá-la na própria vida, ele a utilizou com a finalidade expressa de ser apenas cor, para pintar a própria cor.("I Plana Francmta! - "Ou Cubkme a fArt Abstrair". Paris.

1867.Tal como Delaunay, Kasimir Malevitch (1878- 1935) sofreu as influências de Cézanne, do

Fauvismo e do Cubismo antes de atingir sua linguagem individual universalizada: o Suprema- tismo, contribuição originalíssima para a arte moderna.

Grande animador da vanguarda moscovita — ao lado do Gontcharova, Larionov, Tatlin, Rodchenko e Kandinsky — Malevitch tornou-se não somente uma das figuras centrais da arte russa, mas também do mundo ocidental.

Dominando a técnica figurativa, Malevitch passou pelo Cubismo e em 1913 chegou aos limites extremos dos meios da pintura ao realizar o famoso Quadrado Preto sobre Fundo Branco, desenhado a lápis. Em 1919, pintou a réplica do trabalho anterior: Quadrado Branco sobre Fundo Branco. A arte estava libertada do objeto. Os fundamentos teóricos de sua obra encontram-se no livro publicado na Alemanha pela Bauhaus, em 1927, O Mundo sem Objeto, no qual Malevitch define o Suprematismo como "a supremacia da pura sensibilidade na arte".

Nesse livro, defendendo-se da acusação de conduzir a pintura para um deserto, afirmou: "Mas esse deserto está cheio da sensibilidade objetiva que penetra tudo." Em outro trecho, ele retratou magnificamente o drama do homem frente à imposição do artista: "Também eu fui invadido por uma espécie de timidez e hesitei até a angústia quando se tratou de deixar o "Mundo da vontade e da representação" no qual vivera e criara e em cuja autenticidade acreditara. Mas o sentimento de satisfação que experimentava pela libertação do objeto levou-me cada vez mais longe no deserto, até onde nada era autêntico senão a simples sensibilidade — e foi assim que o sentimento se tornou a essência de minha vida. O quadrado que expusera não era um quadrado vazio, mas o sentimento da ausência do objeto."

Criador de uma pintura pura, as aparências exteriores da natureza não apresentavam qualquer interesse para Malevitch — o essencial residia na natureza da sensibilidade, independentemente

do meio em que germinara.A pintura de Malevitch, em sua coragem extrema, encerra a mesma atitude mística dos

grandes visionários, inventando, ali onde a crítica vira apenas um deserto, "um mundo de for-mas de parentesco geométrico — retângulos, círculos, linhas esbatidas, linhas cruzadas (a cruz teve grande papel nas composições de Malevitch, que, em seu testamento, pediu para ser enterrado com os braços assim dispostos) — sempre conjugadas num espaço neutro e nele criando movimento. O beco sem saída que seu quadro de 1913 aparentemente constituía dera uma possibilidade nova à pintura — e é relativamente à sua invenção que a arte abstrata geométrica subseqüente (como o neoplasticismo de Mon- driaan) se explica e ganha sentido. Arte espiritual, e a mais espiritual de todas, a de Malevitch, que se traduz em poucas obras conhecidas (Seuphor informa, porém, haver 60 peças guardadas em algum lugar da Alemanha), representa a extrema posição idealista do Abstracio- nismo" (M).

Revelando o cerne da teoria estética de um mundo_que antevia, afirmou que a realidade na arte não é mais que o efeito da cor sobre os sentidos.

Em meio a tantos movimentos artísticos surgiu, ligada à Escola de Paris, uma personalidade isolada que traria em sua pintura a marca das principais conquistas do século: Marc Chagall (Vetebsk, Rússia — 1887). Nessa pintura de visões surrealistas em que os objetos hierarqui- zados são iluminados por clarões de relâmpagos, fazendo lembrar El Greco, a unidade aparece "não em proporções espaciais ou formas plásticas, mas em algo de mais fluido, de mais variado, de mais dúctil, para sequir a sua vagabundagem fantástica — a cor" (19).

Conceitualmente, a cor estava liberta para iniciar sua marcha no sentido de participar da so-ciedade que emergia do processo tecnológico. Estavam lançadas as raízes da nova era artística que teria como joio uma requintada arte de consumo. A criança que apenas engatinhava podia

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ser explorada à vontade. Mas, para os espíritos mais avisados, o trigo que estava submerso no joio erá ao mesmo tempo pão e semente, nutrindo o presente e preparando o futuro onde deverá aparecer o pintor, tal como predizia Van Gogh: "um colorista como nunca existiu". A confusão e o descaminho eram apenas aparentes. A arte, revigorada por tantos meios ao seu alcance e deslumbrada com a própria infância, prepara-se para novos embates.

Enquanto a abstração abria caminho na arte européia, o México vivia uma experiência pictó- rica de alcance extraordinário, cujas conseqüências estão longe de se terem esgotado. Com certa independência da Escola de Paris, mas por ela condicionados, procurando reviver origens au-tóctones, os muralistas José Clemente Orozco (1883-1949), Diego Rivera (1886-1957) e David AJfaro Siqueiros (1898-1974) fizeram uso de cores violentas, por vezes brutais, na busca do reen-contro do espírito nacional. Essa técnica — mais nativista em Orozco — tornou-se originalíssima e influenciou a pintura mural de todo o Continen

te, destacando-se como a pintura mais autenticamente popular de nosso século.Cercada da mesma aura popular, revivendo o mistério dos ícones em forte debrum preto, sur-

ge a mágica pintura de Georges Rouault (1871- 1958). No contraste do preto, exacerba o brilho das cores como se fossem as luzes filtradas por um trágico vitral.

Em seu desenvolvimento, a arte inobjetiva ganharia numerosos adeptos e exerceria marcante influência em todos os domínios das artes visuais. Neste panorama, Kandinsky e Piet Mondriaan (1872-1944) apresentam-se como os chefes de duas tendências extremas — tachista ou informalista e neoplasticista - e "entre eles uma dúzia de movimentos ou grupos propõem problemas afins" (x). Antes de adotar os elementos geométricos dos construtivistas em 1921, Kandinsky estimulara com sua obra a corrente informalista que resultaria noTachismo.

Já a abstração de Mondriaan, iniciada em 1911, tenderia progressivamente para a precisão geométrica, dando origem ao Neoplasticismo, difundido pela revista "De Stijl" a partir de 1917. A simplicidade rítmica das formas de Mondriaan, que se baseavam em verticais e horizontais formando retângulos sempre próximos da divisão áurea, corresponde à mestria do emprego das três cores primárias, juntamente com o branco, o cinza e o preto. Os exemplares mais representativos desta fase são os da série Broadwy-Boogie-Woogie (1942-1943), em que transparece a adoção das proposições de Malevitch e do ex-professor da Bauhaus Josef Albers (1888).

Dentro do mesmo princípio de valorização geométrica usado pelo Suprematismo, Constru- tivismo e Concretismo, Victor Vasarely (1908) terminaria por realizar o ideal da Op-Arte, fazendo funcionar a forma num sentido de movimentação e excitação visuais que por vezes tange as raias da alucinação. Desta maneira se inscreveria a Op-Arte no domínio da Arte Cinética, que em seu período mais original se vale da cor como elemento indispensável à criação da ilusão óptica.

Na procura de novos meios de enriquecimento da comunicação visual, vários artistas encontraram na eletrônica os elementos de sua linguagem.

À cor viria juntar-se o som. Buscando a unidade entre som e cor, as experiências iniciadas no século XVIII pelo padre Castel, autor do Clavessin Occulaire, teriam inúmeros conti- nuadores. Entre eles destacaram-se o dinamarquês Wilfred, que em 1905 tenta a realização de seu Ctavilux, finalmente construído em 1919, dando origem à arte Lumia; Wladimir Baranoff- Rossiné, com seu Disco OptofÕnico (1914-1926); Raul Haussmann, também construtor de outro tipo de Optofone (1927); Kurt Schwerdtfeger, criador do Jogo de Luz Colorida Refletida (1923); E. P. Paterson, com seu Circuito Eletrô

nico para controlar fontes de luz colorida por meio de freqüências e de volume de.som, e Nicolas Schõffer, autor de uma Torre Cibernética com finalidade estética. Em vários países surgiram as fontes luminosas para entretenimento público. Todas essas experiências desembocariam nos modernos espetáculos de Son et Lumière.

6O Emprego das Cores no Brasil

"Há pintores que pintam de ouvido."Cindido Portinari

"A mão sabe a cor da cor."

Carlos Drummond de Andrade A Mão

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Do confronto dos três elementos étnicos fundamentais da população brasileira surgiu um gosto estético que cada vez mais se distancia do gosto de cada grupo original. No tocante à cor, os padrões dominantes do gosto europeu deixa- ram-se influenciar pelos dos negros e indígenas, o que gerou um gosto caracteristicamente mestiço, diferenciado do dos demais povos, residindo aí o núcleo de sua originalidade.

Nos períodos de aproximação dos diversos grupos de seu caldeamento e do nascimento de sua síntese, o gosto pelas cores modifica-se a cada estágio.

Período autóctone — As descrições da maioria dos cronistas que tiveram contato com a arte indígena brasileira — produzida em regime estritamente tribal, sem influência de outros povos — demonstram admiração pela sensibilidade revelada no domínio das formas e das cores. As opi-niões de Hans Staden, Jean de Lery, Thevet, Gabriel Soares, Cardim e Vves d'Evreux confirmam o conceito geral.

Frei Gaspar de Carvajal, que em 1540 acompanhou Orellana em sua viagem, assim enalteceu a cerâmica dos índios Omagua:"... havia talhas e cântaros enormes, de mais de vinte e cinco ar-robas, e outras vasilhas pequenas, como pratos, escudelas e candieiros, tudo da melhor louça que já se viu no mundo, porque a ela nem a de Mála- ga se iguala. É toda vidrada e esmaltada de todas as cores, tão vivas que espantam, apresentando, além disso, desenhos e figuras tão compassadas, que naturalmente eles trabalham e desenham como o romano" (91).

Sobre a difundida tese de que vários povos primitivos não distinauiam o azul do verde, omesmo autor nos informa: "Já se observou também que entre os nossos Bororo orientais não existe uma palavra para designar a cor verde, quando eles têm adjetivos para o branco, preto, vermelho, amarelo, roxo e azul. Mas isso será uma exceção entre os nossos índios, que se mos-tram perfeitamente conhecedores de todas as cores, inclusive nas mais sutis gradações de seus matizes."

Influenciada pela riqueza cromática da flora e da fauna, estimulada pela exigência da decora-ção corporal, desenvolveu-se a mais importante das artes dos índios brasileiros: a plumária. 0 interesse por essa manifestação artística acentuou-se entre os estudiosos das coisas brasileiras nas últimas décadas, à medida que se começou a tomar consciência de sua significação e de suas possibilidades estéticas para o enriquecimento cromático de nossas artes visuais.

"Os ornamentos de penas são ricos e variados, entre as várias tribos Tupi-Guarani. Métraux pôde estudá-los detidamente no Museu de Cope- nhague, que possui a mais rica coleção de anti -gos objetos desses índios (...) a rica arte plumária dos Tupinambá até hoje é conservada entre as tribos Tupi do Tapajós, especialmente entre os ApiacáeosMundurucu" (n).

Encontrando à sua disposição as mais variadas espécies de pássaros coloridos, e praticando com mestria a arte de transformar a cor das penas dos pássaros (tapiragem), especialmente do papagaio, os índios manejavam uma gama de cores infinitamente mais rica de tonalidades e variações naturais do que a das paletas com pigmentos corantes dos pintores de qualquer época. Como exemplo, citamos apenas algumas plumas usadas por eles, segundo H. Fénelon e Georgerte Dumas (w):

Vermelho-escarlate — da arara-canga (Ara macao - Linn).Amarelo-escuro - da cauda do japu (Osti- nops decumanus — Pai Ias).Amarelo-limão — do pescoço da guarajuba (Guaruba guarouba — Gmelin).

Azul - do anambé azul (Cotinga cayana). Roxo - do anambé roxo (Cotinga cotinga). Verde — dos periquitos e araras. Pardos-matizados, com brilho de bronze — da pomba trocai (Columba speciosa

— Gmelin).Negro-veludo — da cabeça do saí (Cyanepes cyaneus — Linn).Negro com reflexos metálicos verdes — do dorso do mutum (Crax pinima — Pelzeln).Das cores de origem vegetal as mais usadas eram o preto do jenipapo e o vermelho do uru-

cu (Bixa orellana), este último muito empregado até hoje pelas populações do interior, principalmente no preparo do arroz, obtendo-se com ele uma bela coloração avermelhada.

Períodos colonial e imperial — A tríade rosa, azul e branco tomou-se característica destes pe-ríodos, por sua grande utilização nos altares, forros de igreja, oratórios, estandartes e vestuários para procissões, pinturas de casas, enfeites de interiores e baús. Revestindo-se de caráter simbólico, como em outros países, também no Brasil o branco é ainda hoje a cor para o enxoval de noivas, o rosa e o azul para o de meninas e meninos recém-nascidos.

A arte do primeiro período, essencialmente religiosa, inspira-se em sua maior parte nas ilus-trações dos missais e estampas portuguesas. Seu colorido é cru nas cores dominantes, e os fundos quase sempre rebaixados com preto ou terras, o mesmo acontecendo com as sombras.

No segundo período, com a criação da Imperial Academia de Belas-Artes, a exemplo de vários países europeus a arte se torna dependente do Estado Monárquico, implantando-se então um absolutismo neoclássico. Apesar das restrições acadêmicas, o estudo da cor faz avançar os conhecimentos prático-teóricos, e a primeira geração de pintores acadêmicos já demonstra esse enriquecimento técnico. O amadurecimento do trato com a cor possibilitou a formação de notáveis coloristas, como Almeida Júnior, festejado pela luminosidade de seus quadros, e Batista da Costa, que, atento às sutilezas cromáticas, revelaria em pintura a riqueza de verdes da pai-sagem brasileira.

Período moderno — Abrindo caminho à compreensão das correntes modernas européias,(>*) Darey Rlbako - "Ana Pluméria doa índios KaapotRio, 1967.

Eliseu Visconti introduziu entre nós as conquistas do Impressionismo, ampliando o vocabulário de nossas artes visuais. Neste mesmo sentido, merece destaque, pelo menos, um quadro de Antônio Parreiras, Sete Notas, pintado para o saguão do auditório da Escola Nacional de Música.

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Com um colorido agressivo, procurando temática diferente, Tarsila do Amaral inscreve na pintura brasileira uma nova visão de caráter semi- popular. No mesmo sentido surge a arte de Emiliano Di Cavalcanti (1897-1977), em que as cores são condicionadas pelo sensualismo das formas. Alberto da Veiga Guignard, possuidor de sensibilidade particularíssima, expressaria em cores veladas, da escala de valores, um elevado conteúdo poético, de clima psicológico incon-fundivelmente brasileiro.

Marcando a fase mais importante da pintura nacional. Cândido Portinari realiza a síntese dos vários caminhos de nossa evolução na aplicação da cor, em que os contrastes francos e a crepila-ção cromática atingem os mais altos níveis de mestria. Exemplos eloqüentes encontram-se nos quadros Primeira Missa no Brasil e Chegada de D. João VI.

Com amplas chapadas de valores e tons luminosos, José Pancetti renova o interesse pela pai-sagem marinha.

Nos dias atuais, nossa pintura vive fase de afirmação nacional, com possibilidades de relativo êxito no plano internacional — êxito que não depende apenas do trabalho artístico. Dos vários milhares (por volta de dez) de artistas espalhados por todo o País, somente algumas dezenas conseguem viver exclusivamente da pintura. Neste pequeno número estão alguns de nossos melhores pintores, capazes de ombrear-se tecnicamente com os maiores artistas contemporâneos.

Com o emprego de valores bem cuidados, como o fizera Lasar Segall (1891-1957), Milton Dacosta (1915) e Iberê Camargo (1914) realizam importante obra. O primeiro, em valores claros, pouco numerosos, tirando partido de sensíveis áreas lisas debruadas. O segundo, numa violenta escala soturna, valorizando a intensidade dos pretos.

Num aluvião de primitivos destaca-se O espontâneo colorido de Heitor dos Prazeres (1898- 1966), bem como os vivos contrastes cromáticos de Djanira Mota (1914).

Vindo de outras plagas para inscrever-se e contribuir decisivamente em nosso processo ar-tístico, aparece a hipersensibilidade cromática de Alfredo Volpi (1896).Na área da vanguarda, Abraão Palatnik cria trabalhos cinéticos com dispositivos eletrônicos (cinecromáticos): "uma caixa munida de uma tela sobre a qual aparecem grandes formas em cor pastel animadas de movimentos lentos" (M). Também eletronicamente, Newton de Sá (1932) pesquisa há vários anos a conjugação das artes plásticas, do cinema e da literatura em complexas caixas-espetáculo.Com a descoberta do domínio da cor inexistente, em 1967, estabeleceu-se um debate em di-

ferentes níveis de apreciação, desde os aspectos negativos da concorrência artística às mais diversas especulações baseadas em dados científicos, estéticos e humanísticos. O ambiente artístico, mesmo sem o perceber, lucrou de imediato com os termos da discussão, liderada pelos elementos mais significativos do meio. Elevando-se as preocupações a novos estágios de compreensão e de assimilação, enriqueceu-se de maneira irreversível a subjetividade e, conseqüentemente, passou- se a enxergar mais, a ver um atraente mundo de cores ali onde o olhar displicente nem de leve suspeitava da existência (inexistência) de sutis variações e reverberações da luminosidade.

Nas artes populares e na pintura dos artistas primitivos, a vivacidade do colorido está intima-mente ligada às reminiscências e influências dos amuletos, oratórios, estandartes, paramentos, máscaras, alegorias e decorações ambientais usados nos cultos religiosos e folguedos populares, como chegança, reisado, bumba-meu-boi, cavalhada, maracatu, carnaval, festa junina, etc.

Por complexos elementos subjetivos, durante o período em que se procurava depreciar o ufanismo, a combinação das cores verde e amarela era considerada de mau gosto para uso pes- soai, sendo reservada quase exclusivamente à decoração de festividades oficiais, cívicas e esporti-vas. Atualmente, porém, é usada em larga escala no vestuário, nas artes gráficas e decorativas, nos símbolos e marcas empresariais, na decoração de interiores, etc. E para as amplas camadas populares as cores nacionais evocam, acima de tudo, o clima de euforia da conquista do tricampeonato mundial de futebol.

Num caráter internacionalizante, a partir da década de 60 o uso de cores vivas no vestuário vem-se acentuando. O vermelho, que antes era utilizado apenas nos trajes esportivos, passou a ser adotado pela juventude na roupa cotidiana como forma de protesto. A partir do vermelho, as demais cores puras (azul, verde, amarelo, violeta, etc.) foram incorporadas à moda geral, alar-gando o sentido inicial de contestação, para se

tornarem símbolo de juventude, de descontração e democratização da indumentária de ambos os sexos e de todas as idades.

De modo geral, o que melhor define o gosto pela cor, no Brasil, é sua utilização nos desfiles das Escolas de Samba durante o Carnaval. Em avenidas decoradas com metais polidos, plásticos transparentes à guisa de vítrais, poliéster, jogando com os efeitos da iluminação elétrica, desfi-lam milhares de foliões fantasiados com o máximo de inventiva popular (enfeites de plumas, tecidos brilhantes, brocados, vidrilhos, pedrarias, lantejoulas e materiais sintéticos, em contraste com volumosas roupas ou com a semi-nudez de corpos excitantes de uma população mestiça for-temente marcada pelo sangue negro). Com suas alas, motivos históricos ou populares, figurantes em destaque, mestres-salas e porta-estandartes, tais agremiações apresentam magníficos arranjos cromáticos. A completa desinibição, o colorido, os ritmos e as melodias, longe de formarem um todo erótico, revelam uma alma coletiva nostálgica e de uma pujança telúrica quase aterradora.

De tal forma as cores têm influência nos desfiles das Escolas de Samba que comumente elas são designadas por suas cores diferenciais: Verde e Branco, Império Serrano; Verde e Rosa, Esta-ção Primeira de Mangueira; Vermelho e Branco, Acadêmicos do Salgueiro; Azul e Branco, Portela.

A influência da cor no viver popular revela-se, ainda, em certos termos e expressões que, mesmo não definindo satisfatoriamente a cor desejada, possuem grande poder evocativo ou sabor local, dando colorido à narrativa oral e às obras literárias regionais. Eis alguns exemplos: cor de jambo - moreno claro, no sentido de belo; cor de canela - mulato;cor de cuia - mulato, forma pejorativa; cor de mel - castanho dourado; cor de jabuticaba - designação de olhos pretos; cor de graúna — preto intenso; tição — negro retinto; cafécom-leite - beje; pedrês, o mesmo que cari- jó - branco salpicado de preto; baio - castanho; bico-de-lacre - lábios exageradamente vermelhos; cor de burro quando foge - cor indefinida, gasta; azular - sumir, fugir; verde-periquito - verde intenso; verde-bandeira - aproximado ao verde-esmeralda; verde-abacate - verde-oliva

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claro; .amarelo-canário - amarelo vivo; ruço - par- dacento, cor arruinada, desbotado; rubro-negro — vermelho e preto, cores do Clube de Regatas do Flamengo; tricolor, termo usado para designar o Fluminense Futebol Clube — vermelho, verde e branco; alvinegro (branco e preto) — Botafogo de Futebol e Regatas.

7Elementos de Harmonia

Considerações Gerais"Lacerado pelas palavras-bacantes visíveis tácteis audíveisÒirféu Órftu Òrfele Orfnós Orfvós Orfeies"

Murilo Mendes IEnxergo}

Apesar do grande desenvolvimento das artes visuais, não há uma teoria acabada para o em-prego da cor na pintura, como ocorre com o som na música e a palavra na literatura.

Costuma-se dizer que a música foi a arte que mais demorou a se desenvolver, devido ao tardio aparecimento da grafia musical. No entanto, a teoria musical demonstra uma coerência compa-rável à da literatura, em sua linha ascensional de permanente organização e incorporação dos no-vos meios técnicos, o que não acontece com a pintura.

Desde a Antigüidade Clássica procura-se estabelecer paralelos entre a pintura e a música, entre a cor e o som. A busca inicial de analogia entre esses dois elementos decorria do desejo de provar a origem comum dos sentidos humanos. Quando hoje se afirma que a visão se desenvol-veu com a experiência tátil, ou que a audição só se completa com o auxílio de reminiscências visuais ou táteis, retomam-se antigos problemas ainda em debate, mas numa escala infinitamente mais complexa.

O que retardou o aparecimento da teoria da cor foi adificuldade em explicar o que era a cor, explicação que só se tornou convincente quando se pôde definir a luz e a transformação do estí -mulo luminoso em sensação.

Dividindo as imagens visuais em forma(de- senho das áreas) e cor, constata-se que desde ntájjoras o estudo da forma foi possível, enriquecido sempre com verdades absolutas. A Divi- ní porção de Luca Pacioli é imutável, como são imutáveis as verdades das formas geométri- °ps de Euclides. No emprego da cor a verdade escamoteia-se. Os mais belos coloridos de um período podem negar integralmente a lógica de uma regra aplicada no colorido de outros perío

dos. Isto significará que não há uma lógica para seu emprego, ou que há várias? Exatamente neste particular residiu até o século XVII a dificuldade para o estabelecimento e aceitação de uma teoria: as múltiplas e contraditórias possibilidades de arranjo da infinita gama de cores. A essa dificuldade acrescia a da obrigatoriedade do respeito aos códigos cromáticos (de origem religiosa ou de ordem utilitária), que impediam se aprofundasse a busca das leis físicas capazes de determinar a teoria.

Diferentemente do que se passava com a cor, como não havia contradições fundamentais entre a idéia que se fazia do som e sua realidade física, treze séculos antes de Leonardo tentar a definição de uma teoria das cores já Cassiodoro definira a harmonia musical de maneira razoavel-mente correta.

Desde suas origens grega e latina, o termo harmonia foi bastante impreciso, significando pro-porção, ajustamento e arranjo. Só bem mais tarde ganharia um sentido definido: disposição bem ordenada das partes de um todo. "Quando mesmo dentro da totalidade se percebem os ele-mentos que a integram, cabe denominá-la harmonia" (Goethe). Estas partes poderão estar em repouso (acordes - harmonia em repouso) ou desencadeadas (harmonia em movimento).

Ao afirmar que uma cor e sua complementar produzem o branco, Newton criou o elemento básico do acorde cromático, definindo a disposição das partes (cores opostas) em relação ao todo (luz branca). Uma cor qualquer e sua complementar rebaixada ou degradada formam um acorde que corresponderia em música ò harmonia em repouso. Uma cor dominante entre tonalidades afins produz contrastes que guardam certa analogia com a harmonia em movimento. chamada em música de escrita horizontal (desen- cadeamento, sucessão de sons no tempo — fator da melodia e do ritmo). É evidente que esta analogia só pode ser relativa, uma vez que a música se

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desenvolve no tempo, e a pintura constrói-se no espaço. Mas, mesmo construída no espaço, a apreensão de seu todo se processa no tempo, subordinada a uma hierarquização de valores perceptivos ligada inicialmente à adaptação visual, em seguida ao tempo de latência e depois à interferência psíquica. Encarada pelo ângulo perceptivo, tanto a fruição da pintura como a da música desenvolvem-se no tempo, diferen- ciando-se acenas em índices de quantidade.

Uma pintura de apreensão instantânea era o ideal perseguido pelos cartazistas Cassandra e Paul Colin. Por não ser possível a instantaneida- de almejada, sonhavam com um cartaz de formas tão simples, de apreensão tão rápida, que fosse como "um grito na parede", mas eles sabiam que mesmo o grito mais breve tem certa duração.

A maioria dos termos usados pelos musicólo- gos são igualmente utilizados pelos teóricos da cor: harmonias consonante e dissonante, escala cromática, escalas em modo maior e menor, tom, colorido, ritmo, fuga, etc.

Em busca de vínculos cada vez mais estreitos entre a cor e o som, têm surgido ao longo da História inúmeros trabalhos de caráter experimental que procuram equivalências físicas ou fisiológicas entre os sons e as cores. Apesar de tudo, a sinestesia não conseguiu sair do campo experimental para o científico.A descoberta de Max Planck, segundo a qual a visão cromática é fruto da ressonancia interior da

luz transformada em vibração nervosa, tem sido identificada por alguns estudiosos com o princípio sonoro de Rameau, referente à ressonância natural. Essa vibração já inquietava

Newton, que, ao analisar a relação entre cor e som, indagava: "A qualidade das sensações exci-tadas no fundo do olho pela luz não é de natureza vibratória? Os raios mais refrangíveis não ex-

citam as vibrações mais curtas? O menos refran- gível, a maior? Pode a harmonia ou dissonância das cores nascer das proporções das vibrações propagadas através das fibrilas do nervo óptico

ao cérebro, como a harmonia e dissonância dos sons nasce das proporções das vibrações do ar?"

Vários artistas têm procurado demonstrar a analogia de certas cores com determinados sons, chegando alguns até à afirmação da possibilidade de se enxergar o som e de se ouvir a cor, como Skrjabin, que escreveu a partitura do Prometeu com acompanhamento de cor. Kandinsky comenta o assunto da seguinte forma: "Teórica e também experimentalmente, já se estudou esta questão. Graças a numerosas aproximações entre

144som e cor, e fundamentando-se sobre o princípio da vibração do ar e da luz, tentou-se demonstrar que a pintura também tinha seu contraponto. De outra parte, ensaiou-se fazer com que as crianças pouco dotadas para a música decorassem uma melodia com o auxílio de cores. Mada- me A. Sacharyne-Unkowsky estabeleceu um método especial que permite copiar a música através das cores da natureza, ver os sons em cores e escutar a cor dos sons".

Com vista à maior clareza do texto musical, Wagner recorreu às cores como indicação suple-mentar, escrevendo numa de suas composições: vermelho para as cordas, verde para as madeiras (sopro), negro para os metais. Mas ele não aceitava a sinestesia como elemento de composição, deixando bem clara sua opinião: "Tenho encontrado pessoas inteligentes sem conhecimento musical, para quem as formas dos sons não têm expressão, que tentam interpretá-los por analogia com as impressões das cores; mas nunca encontrei um musicista a quem os sons transmitam idéia de cores, exceto quando acompanhados de explicação verbal."

Do ponto de vista estritamente objetivo, as experiências não confirmam as várias tentativas de relacionamento entre cor e som, tomada por base a emoção. Os maiores êxitos neste campo foram conseguidos com o emprego do espectró- grafo acústico, em que o som emitido exerce sobre o ar uma pressão definida que faz variar o brilho de uma lâmpada especial, impressionando lâminas fotográficas. Desta maneira obtém-se um espectrograma que registra, sob a forma de manchas específicas, os componentes acústicos do som.

A mais difundida relação criada entre os planetas (mais o Sol e a Lua), as cores e os sons éMarte vermelho C -dóSol laranja D -réMercúrio amarelo E —

miSaturno verde F -fáVênus azul G —

solJúpiter índigo. A -láLua violeta B — si

Nesta escala, o relacionamento entre as cores e as notas musicais foi realizado por Newton.Sobre o assunto afirmou Goethe: "O homem sempre intuiu certa relação entre a cor e o som,

segundo demonstram as várias comparações feitas, às vezes superficiais, às vezes profundas. Só que sempre se incorria no seguinte erro: cor e som não se prestam a comparações, mas se po-dem unir ambos em uma forma superior e derivar uma e outro dela, mas cada um em separado. O som e a cor sâo como dois rios que nascem na mesma montanha, porém em condições muito diferentes, e correm em direção contrária, de maneira que não oferecem nenhum ponto de analogia em seus cursos. Ambos são ações elementares que se regem pela lei geral da desunião e unificação, crescimento e decréscimo, movimento e contra-movimento, mas em direções di-ferentes e de forma diferente, sobre elementos intermediários distintos e para sentidos diferen-tes." Estes conceitos de Goethe correspondem aos princípios da Frenologia de F. J. Gall.

HARMONIZAÇÃO DE VALORES E TONSTanto a escala de valores como a de tons obedecem a certas leis gerais de harmonização que

conduzem as partes a uma integração equilibrada dentro do todo.Os limites extremos da escala de valores são o branco, representando a luz, e o preto, sua au-

sência. Nesta escala pode-se inserir também qualquer cor-pigmento, partindo do coeficiente de

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claridade de cada uma delas em relação aos valores intermediários, existentes entre o branco e o preto.

Dando-se coeficiente 100 para o branco ideal, e 0 para o preto absoluto, um azul-de-cobalto com 30% de reflexão luminosa exigirá 70% de degradação para atingir o branco e 29% de rebai-xamento para chegar ao preto. Um amarelo-de- cádmio com 70% de reflexão percorrerá distân-cias exatamente inversas para atingir o branco (30%) e o preto (69%) (ilust. 42). Estas diferenças de claridade é que motivaram os deslocamentos de aproximação e afastamento das cores em relação ao branco e ao preto, na Arvore de Munsell.

Para o trabalho de harmonização empregam- se comumente as cores-pigmento de uso corrente entre os pintores e decoradores. As diferenças de coloração do pigmento de um fabricante para outro (e até de cada remessa do mesmo fabricante), de qualidade da superfície pintada, de espessura da camada de tinta aplicada e, ainda, de iluminação impedem a determinação precisa do grau de reflexão de cada cor. Levando isto em conta, consideram-se então, apenas como dado aproximativo, os índices percentuais de reflexão para os valores e cores enumerados no quadro da coluna ao lado.

A capacidade de refletância de determinados corpos ó que indica a qualidade da cor, criando uma relação entre comprimento de onda, pureza e refletância:

Púrpura com 494c mu, 47% de pureza, 21,25% de refletância.Vermelho com 602 m/i, 75% de pureza, 19,55% de refletância.

Oxido de magnésio....................98%Branco de zinco.........................89%Branco de marfim......................79%Amarelo-de-cádmio puro...........70%Verde-limão...............................60%Cinza médio..............................50%Laranja......................................50%Verdc^esmeralda.....................40%Azul-de-cobalto.........................30%Vermelho-de-cádmio ................19%Azul-ultramarino.......................10%Azul-da-prússia.......................... 6%Preto de marfim........................ 4%

Amarelo com 573 mu, 78% de pureza, 68,50% de refletância.Verde com 520 mu, 30% de pureza. 13,70% de refletância.Azul com 480 mp, 60% de pureza, 20,20% de refletância.Violeta com 565c mn, 43% de pureza, 5,30% de refletância.

ESCALA DE VALORESA organização racional de vários índices de luminosidade das imagens coloridas ou incolores denomina-se escala de valores, em oposição à escala de tons (cromática).Na escala de valores, a harmonia é revelada pelo equilíbrio de três pontos referenciais: máxima luminosidade, máxima obscuridade e luminosidade intermediária entre os dois índices extremos (cinza-médio). O cinza-médio tem grande beleza, funcionando primordialmente como elemento catalisador de induções cromáticas.Numa escala de tons e valores (ilust 42), as cores saturadas degradam-se no sentido do branco e rebaixam-se no sentido do preto. Por isto, as que têm afinidade com o branco — as de maior índice de reflexão luminosa (o amarelo e as cores em que ele predomina) — são mais belas quando se degradam ou se dessa tu ram com o branco do que quando rebaixadas ou escurecidas pela mistura com o preto. No entanto, as cores que guardam afinidade com o preto — as de menor índice de reflexão (vermelhos e azuis) — são mais belas rebaixadas pelo preto do que quando degradadas pelo branco. Assim como as cores claras turvam-se e descaracterizam-se ao serem rebaixadas pelo preto, as escuras aniquilam-se e perdem consistência ao serem degradadas pelo branco.

TONS E VALORESA harmonização dos tons com o emprego do daroescuro apresenta certa facilidade para o

pintor, em relação à harmonização dos tons puros. No entanto, não é fácil dominar superior-mente todas as possibilidades de combinação das escalas de tons e de valores. O simples conhecimento lógico não basta para levar o pintor a este domínio. A sensibilidade exigida para a perfeita harmonização dos tons puros é igualmente necessária na conjugação de tons e valores, quando se trata da aplicação dos princípios enunciados a seguir.

Para a harmonização de um acorde complementar, misturam-se em partes ópticas iguais os dois tons a serem harmonizados e coloca-se a mistura entre eles. A mistura produz um cinza- neutro, que determina o caráter misto da harmonização. Esta poderá ser chamada, também, de equilíbrio pelo tom-rompido. Neste caso, a mistura (cinza-neutro) fará com que a cor fria do acorde funcione como cor dominante, por efeito de ressonância. Da mesma forma, o elemento quente que há na mistura, em ressonância, servirá de passagem ou cor intermediária entre os extremos.

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Tomemos como exemplo o acorde dissonante vermelho-verde. A mistura de ambos produzirá um cinza-neutro que será a cor intermediária com ressonância da cor dominante verde. Igualmente por ressonância, fará a passagem para o vermelho, cor tônica da harmonia. O acréscimo de vermelho ou de verde ao tom- rompido neutro, funcionando como cor inter-mediária, formará novos acordes harmônicos sempre agradáveis.

A eliminação de um dos pólos da contradição é o caminho mais fácil para o equilíbrio do acorde complementar. Basta rebaixar com preto a cor fria, ou degradar com branco a cor quente. Com

o emprego do branco e do preto, podem-se rebaixar igualmente os dois tons do acorde dissonante, conduzindo-o para a área dos cinzas-coloridos.

CINZAS-COLORIDOSPara o enriquecimento da pintura feita à base de valores, é indispensável a utilização dos

cinzas-coloridos. Estes cinzas podem ser empregados com várias finalidades. Em geral, são misturados às cores que sobressaem demasidamente do conjunto, para rebaixá-las. Têm sido usados tanto pelos grandes coloristas, na criação de climas emocionais, como pelos pintores inexperientes, para contornar dificuldades da vibração cromática. Este recurso, no entanto, é mais feliz

que o simples rebaixamento da cor gritante pelo marrom ou pelo preto.Em largas extensões, o cinza-colorido serve também como base para a cor dominante ou,

ainda, como suporte da unidade de coloração geral da pintura (ilust 43).O cinza-colorido é um cinza misturado em proporções variáveis a uma cor qualquer. Pode

obter-se o cinza inicial de duas maneiras: a) pela mistura do branco e do preto; b) pela mistura das três cores primárias, ou de pares de cores complementares. Este último cinza é muito mais belo que o primeiro, devido à riqueza de suas possibilidades cromáticas.

Num esquema cromático rígido, de reminis- cência acadêmica, afirma-se que quando três co-res estão em presença uma da outra apenas uma delas deve ser levada ao máximo de intensidade, a segunda ser diminuída e a terceira levemente sugerida. Este princípio continua válido para as harmonias mistas, de tom e valor, porque o rebaixamento ou degradação de tons já indica a entrada da escala a que pertençam na gama de valores. Nesta gama os cinzas desempenham função primordial.

"Para convencer-se da eloqüência dos cinzas e da faculdade singular que têm os tons de ser vi- vificados por' contraste, não existe experiência mais interessante que o seguinte passatempo: juntar, entre papéis e trapos velhos, todos os que possam ser classificados sob o mesmo rótulo, por exemplo cinza-amarelado. Colocar esses fragmentos, diferentes por suas dimensões e forma, sobre um papel branco: causará surpresa comprovar que tons da mesma natureza, apenas dife-renciados, se animam por justaposição. Deslizando debaixo de alguns desses fragmentos — dei-xando transparecer o branco do fundo — alguns papéis pretos, se obterá um esquema cheio de vida, uma preparação quase suficiente para um quadro. Bastará agregar a essa discreta sinfonia, aqui um tom complementar — neste caso um cinza-azulado—, mais adiante um tom da mesma natureza, bastante violento — um alaranjado —, para lograr um conjunto de grande vivaci- dade" (").

Em que pese à riqueza dos tons misturados a valores, o caminho natural das harmonias mistas é no sentido do claro-escuro colorido. Por esta razão a tríade que encerra todas as suas possibili-dades é a formada pelo branco e pelo preto ao lado de um tom puro. Estes três elementos, re-presentando o desenvolvimento máximo que podem atingir as partos que integram o cinza-colo- rido, constituem fator comprobatôrio do caráter predominantemente de valor da escala harmôni-ca mista. O cinza-colorido é uma síntese evocati- va, e sua beleza advém da força levemente indicada de todas as qualidades latentes das cores e valores que o formam.

Quando vários cinzas-neutros estão uns ao lado dos outros, influenciam-se mutuamente, fa-zendo com que o mais claro deles pareça ainda mais claro e que o mais escuro pareça mais escu-ro ainda. Em presença de um tom puro, eles tendem a tingir-se da cor complementar do tom. O cinza-claro é o campo ideal para a projeção dos tons coloridos. Tal como os cinzas-neutros, os cinzas-coloridos são extremamente sensíveis ao contraste simultâneo, podendo um cinza leve-mente azulado parecer tingido de forte azul, quando colocado ao lado de um laranja saturado.

Conhecidos desde o Renascimento, estes fenômenos foram estudados detidamente por Chevreul, sob a denominação geral de contrastes simultâneos de tons e valores (ilust 67).

Quando bem aplicado, o cinza-colorido provoca a sensação de veladura, de cor potencial em ritmo de desenvolvimento. Daí o seu encanto misterioso. A manipulação desses cinzas pode revelar uma capacidade colorística tão grande quanto a da manipulação dos tons puros.

TONS-ROMPIDOSOs grandes coloristas de todos os tempos valeram-se, na harmonização, dos cinzas-neutros e

dos tons-rompidos para elevar ao máximo a vibração de suas cores. O rebaixamento pela mistura com preto ou marrom só é válido nas cores

escuras, e nas claras elimina-lhes toda a luminosidade, sujando-as, ao passo que o rebaixamento pela ruptura do tom por sua complementar cria novas tonalidades, sempre belas, tanto para as cores claras como para as escuras.

Uma cor primária com sua complementar contêm todos os elementos cromáticos da natureza — por isso, a mistura de ambas em equilíbrio óptico produz o cinza-neutro, eqüidistante das duas cores geratrizes.

Quando se adiciona qualquer quantidade de cor primária à sua complementar, ou da comple-mentar à primária, desde que não atinja o equilíbrio óptico, produz-se a ruptura do tom (ilust. 44). Portanto, o tom-rompido é o tom rebaixado pela mistura com sua complementar, ou com qualquer cor de característica oposta.

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Os tons-rompidos mais comuns são os produzidos pela mistura do vermelho com o verde, do amarelo com o violeta e do azul com o laranja, ou do magenta com o verde, do amarelo com o azul-violetado e do vermelho com o ciano.

Partindo do magenta numa extremidade e do verde na extremidade oposta, à medida que os dois tons-rompidos se aproximam do cinza- neutro, no centro, o magenta ganha maior quantidade de verde, e o verde maior quantidade de magenta. Idêntico fenômeno de interpenetração ocorre com as demais duplas complementares.

Pode-se ainda romper o tom misturando-o com o cinza-neutro produzido pelas três cores primárias.

O que valoriza os cinzas-neutros e os tons- rompidos é a capacidade que têm de substituir os tons intermediários nas harmonias mistas, sem rebaixar demasiadamente o valor cromático da escala.

Harmonização

"Je jouais avec les couleurs comme on pourrait s'exprimer en musique par Ia fugue des phrases coloráe, fuguées."

Robert Delaunay Les Cahiers InédítsDos vários sistemas gráficos ou tridimensionais de representação das cores criados no pas-

sado por Mayer, Lambert, Goethe, Runge, Chevreul, Bezold, Maxwell, Rood, nenhum conseguiu impor-se como método internacional. Apesar do grande prestígio dos trabalhos de Ostwald e de Munsell, seus sistemas de notações e codificações foram sempre mais utilizados com finalidades extra-estéticas, permanecendo restritos a âmbitos regionais.

No campo científico, com emprego obrigatório na área da Física, nosso século conheceu a primeira sistematização gráfica das cores realmente aceita em escala mundial: o diagrama tri- cromático XYZ (tríplice estímulo), recomendado em 1931 pela Comissão Internacional de Ilu-minação (CIE), onde os três coeficientes colori- métricos têm as seguintes correspondências: X = Vermelho, V = Verde e Z = Azul. Este sistema complementa com inúmeras vantagens o sistema RGB (R = Red, G = Green e B = Blue).

A partir da utilização dos dados recomendados pela CIE, as referências às cores tornaram-se mais precisas, por aperfeiçoarem os meios de codificação colorimétrica, expressos matematica-mente, indicando o comprimento de onda correspondente ao estímulo desejado.

Com isto, desenvolve-se cada vez mais a especificidade das três formas de designação das cores. A primeira, verbal, valendo-se por vezes do encanto poético e sugestivo de comparações com elementos naturais, mas sofrendo o mal de uma nomenclatura variável e imprecisa. A segunda, matemática e precisa, mas evocativamente abstrata para o grande público, por tratar apenas das qualidades inerentes aos estímulos. A terceira, linguagem cromática (da própria cor utilizada

na pintura), precisa, concreta e evocativa, mas restrita a um número relativamente pequeno de iniciados.

A grande dificuldade que encontra a aplicação dos códigos referenciais de cores são o des-conhecimento dos elementos específicos das áreas a que se destinam, a inexperiência e incapa-cidade visual da população dos vários países, tornando-se necessária a adoção de métodos que sensibilizem e ensinem a ver mais e melhor.

SISTEMA GRAFICO DE HARMONIZAÇÃO DE CORESOs conhecimentos acumulados nas várias disciplinas que estudam as manifestações cromáti-

cas, em suas inúmeras particularidades, levam- nos a reconhecer que existem na natureza três grupos principais de estímulos visuais. Um formado pelas cores-luz e dois pelas cores-pigmento.

Numa representação em círculo de 12 tons, as cores-luz primárias vermelho, verde e azul- violetado, com as secundárias magenta, amarelo e ciano, prodQzem as terciârias vermelho-violeta- do, laranja, amarelo-esverdeado, verde-azulado, azul e violeta (ilust 45). Nesta disposição, teremos 7/12 de cores predominantemente frias e 5/12 de cores quentes. Exatamente a mesma proporção indicada por Newton em seu círculo cromático. A curiosidade que surge nesta organização é a evidência da relatividade da composição e estrutura da cor, quando se alteram os fatores de lumináncia e refletância. O laranja e o violeta, habitualmente vistos como cores secundárias no círculo cromático de Goethe, aparecem como terciârias, enquanto o azul tirante ao cobalto, que é primária em cor-pigmento opaca, surge como cor terciária.

Desde as descobertas do gravador alemão J. C. Le Blon em 1730. os pintores e os gráficos adotaram o vermelho, o amarelo e o azul como tríade primária. Com o desenvolvimento das pes-quisas físicas e químico-físicas, das indústrias gráficas e das emulsoes e películas para filmes a cores, tornou-se evidente que o vermelho não é cor primária em cor-pigmento. Consagrou-se, então, universalmente, a tríade magenta, amarelo e ciano como a verdadeira geratriz das demais cores-pigmento (ilust. 46), tendo, tal como as cores-luz, 7/12 de cores frias e 5/12 de cores quentes.

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A tríade magenta, amarelo e ciano encontra maior rendimento em precisão cromática nas emulsoes transparentes (películas fotográficas, impressões gráficas, aquarelas, etc.). Daí termos escolhido para elas a denominação de cores-pigmento transparentes, em oposição à outra tríade de cores-pigmento, que chamamos opacas (en- cáustica, óleo, têmpera, etc.).

A mistura do vermelho com o azul em cores- pigmento não produz o violeta, o que demonstra que o vermelho não é cor primária (geratriz), mas, pela facilidade do emprego do vermelho já pronto em cor-pigmento opaca, os pintores continuam a utilizar a tríade indicada por Le Blon (ilust. 47). Esta tríade, ao inverso das anteriores, contém 5/12 de cores frias e 7/12 de cores quentes.CrRCULO DE HARMONIZAÇÃO E MODULO DE MENSURAÇAO

No intuito de estabelecer o maior controle possível sobre as múltiplas manifestações dos fe-nômenos cromáticos relativas às atividades, reunimos uma série de observações num conjunto esquematizado, que denominamos Sistema Gráfico de Harmonização de Cores. O Sistema é constituído por dois Círculos de Harmonização e um Módulo de mensuração.

As mais variadas experiências na manipulação da cor ao longo da História demonstram que todos os fenômenos cromáticos são regidos basicamente por apenas quatro fatores: a) qualidade — características das cores; b) forma — características das áreas coloridas; c) quantidade — ex-tensão das áreas coloridas; d) posicionamento — relacionamento e integração das áreas coloridas.

Para estudar e representar a qualidade das cores, criamos os dois Círculos de harmonização: Círculo 1 e Círculo 2. Ambos estão divididos ao meio, horizontalmente. Na metade superior do Círculo 1, partindo de seu maior índice de,cro- minância, as cores dessaturam-se no sentido do branco central, ao passo que na metade inferior as cores se rebaixam até atingir o preto.

As duas metades do Círculo 2 complementam as duas metades do Círculo 1, de maneira que todos os 12 tons apareoem formando escalas de dessaturação e de rebaixamento na conjugação dos quatro semicírculos.

Os Círculos de harmonização são compostos por sete anéis concêntricos. No primeiro anel, as cores saturadas estão diametralmente opostas à suas complementares. Nos anéis seguintes, de acordo com o semicírculo a que pertençam, elas se degradam até atingir o branco no interior do semicírculo, ou se rebaixam até o ponto no centro do outro semicírculo {ilust. 48).

Objetivando a facilidade de notação, os dois Círculos de harmonização foram assim codifi-cados: a partir da esquerda, junto à linha horizontal que divide cada círculo está o magenta, designado pela letra A. Logo a seguir, no sentido dó movimento dos ponteiros do relógio, situa-se o vermelho-violetado, designado pela letra B. Depois vêm as demais cores com as designações: vermelho = C, laranja = D, amarelo = E, amarelo- esverdeado = F, verde = G, verde-azulado = H, ciano = I, azul = J, azul-violetado = K e violeta « L (ilust 49).

Nesta disposição (Círculo 1), o vermelho (C) em seu maior grau de crominância, no primeiro anel, defronta-se com sua cor complementar:

ciano (I), do lado oposto do mesmo anel, mas pertencente ao outro semicírculo. A seguir, cada um dos valores do vermelho degradado (Cld, C2d, C3d, C4d, C5d, C6d) defronta-se com seu valor complementar rebaixado, colocado no mesmo anel, mas no semicírculo oposto (I1r, I2r, I3r, I4r, I5r, I6r).

Traçando uma reta que passe pelo centro do círculo, teremos no primeiro anel cada um dos tons puros, diametralmente opostos ao seu tom complementar. Nos anéis seguintes, cada se- mitom rebaixado (r) defronta-se com seu semi- tom complementar dessaturado (d), a saber: E1r com K1d, B3r com H3d, e assim por diante, até atingir o branco oposto ao preto, no centro do círculo (ilust 50).

MODULO DE MENSURAÇAOToda harmonia revela uma verdade íntima da cor. A cor isolada ou desajustada perde esta

capacidade. O que denominamos tons sujos, em pintura, são efeitos cromáticos provocados por cores ou valores desajustados. Tais desajustes tanto poderão ser de qualidade como de forma, quantidade ou posicionamento.

Numa relação cromática qualquer, a cor- pigmento expressa sua grandeza através da di-mensão da área de superfície (cor catóptrica). Para a criação de uma harmonia, além da qualidade das cores empregadas é necessário encontrar as mais adequadas relações de proporção

entre quantidades e formas das áreas coloridas, ressaltando o melhor posicionamento para elas. Alterando-se qualquer destes elementos, alteram- se na mesma proporção os resultados harmônicos da obra.

No sentido de oferecer meios mais precisos de medidas e anotações aquém utilize a cor como linguagem, sistematizamos em Módulos de men- suração os dados de quantidade e de posicionamento que geram as formas.

A unidade básica referencial é a Unidade-Pa- drão (UP) de 1cm2. O módulo (M) de 10cm2 surge como organização quadrangular da soma de 100 Unidades-Padrão.

A UP divide-se em 100 partes iguais de 1mm2 cada uma. denominadas subunidades-Pa- drão (sP), ou em 10 linhas-Padrão (IP) de 10mm x 1mm.

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A linha-Padrão é formada por 10 sP, com a dimensão de 10mm x 1mm, ficando assim a Unidade-Padrão dividida por 10 linhas ou por 100 quadrados padronizados (ilust. 51).

Dividindo, somando ou multiplicando as áreas das subunidades, das Unidades-Padrão e dos Módulos, poderemos representar qualquer grandeza de área, infinitesimal ou infinita.

A codificação da representação gráfica das áreas é a seguinte: Unidade-Padrão = UP, dividida em 100 s (desPal a sPj10), 10 linhas horizontais IPh (de IPhl a IPh10) ou em linhas ver- | ticais IPv (de IPv1 a IPv10)

Módulo = M, constituído por 100 UP (de UPal a UPjlO)

COMBINAÇÃO DE CORES

Denomina-se combinação de cores a propriedade que têm certos pares de cores de formar acorde — cores que se ajustam umas às outras, em duplas. Por efeito de ação de contrastes simultâneos, todas as duplas tendem, em maior ou menor grau, a formar acordes conso- nantes ou dissonantes, segundo a natureza das mesmas. Em princípio, pode-se afirmar que toda cor combina com qualquer outra, o que não significa que todo grupo de cores forme uma harmonia. Assim como não existe em termos abolu- tos uma qualificação de cor bela e de cor feia, não existe também dupla de cores irreconciliá- veis, impossíveis de serem combinadas. Uma cor combina com outra por afinidade, semelhança, aproximação, etc., ou por contraste, desseme- Jhança. oposição, etc.

Para formação do equilíbrio no acorde de uma dupla de cores, há três métodos principais:1) Pela intensificação ou diminuição do tom ou do índice de luminosidade de uma das cores, sem perda de

crominância. Tomemos como exemplos as duplas complementares:Magenta-verde:

1. Mantendo o magenta em seu estado natural, pode-se tornar o verde mais claro pela mistura com o amarelo, ou mais escuro, com o azul.

2. Deixando o verde em seu estado natural, pode-se escurecer o magenta com o azul, ou clareá-lo com o amarelo.Amarelo-azu l-vi oletado:

Conservando o amarelo em seu estado natural, pode-se clarear o azul-violetado pela mistura com o ciano, ou escurecê-lo com o magenta.

O amarelo não pode tornar-se mais claro pela mistura com qualquer outra cor. Com o branco, perde cromaticidade, dessa tu rando-se. Seu escurecimento, entretanto, poderá ser obtido pela mescla com o vermelho, quando se torna alaranjado, ou com o azul, tornando-se esver- deado.Ciano-vermelho:

Deixando o vermelho em seu estado natural, pode-se clarear o ciano pela mistura com o verde, ou escurecê-lo com o magenta.

Clareia-se o vermelho misturando-o com o amarelo, e obtém-se o seu escurecimento com o magenta.Pela dessaturação ou rebaixamento do tom, através da mistura com o branco ou com o preto. Nestes

casos a perda de crominância dos tons é inevitável e marcha-se para combinações de valores.Pela utilização do debrum, ou cercadura das cores. O branco, o preto, ou a mistura deles — o cinza —,

sempre equilibram os tons que envolvem. Mas nestes casos já não se pode mais falar em acordes de dois tons. As cores puras, debruadas por eles, criam um acorde de três elementos, que pertence ao grupo dos acordes mistos.

HARMONIA DE TONS, OU CROMATICA

A harmonia cromática expressa o equilíbrio dos elementos mais ativos da escala de tons. Nesta escala as cores puras (tons) substituem as funções dos valores de luzes e sombras (claro- escuro).

Comumente a harmonia é confundida com a combinação ou acorde de cores. Neste, a ação da semelhança e de contraste das partes constitui a unidade e, portanto, seu princípio geral. Mas a harmonia, pressupondo o equilíbrio de um conjunto de partes ou de unidades para formar uma totalidade de novo tipo em relação aos elementos que a integram, exige algo que ultrapasse o simples acorde.

Um vermelho e um verde, um amarelo e um violeta, um azul e um laranja, tomados dois a dois, podem formar acordes, mas não uma harmonia. Para que surja a harmonia é necessária a superação do conflito das forças contrárias, expresso pela ação dàs complementares. Por isso, Newton afirmara que as complementares não são o princípio da harmonia, fundando-se esta numa maneira qualquer de identidade das partes, e não na simples oposição das mesmas.

A dificuldade para a harmonização das cores puras é bem maior do que para a harmonização de valores coloridos ou incolores. Enquanto nesta última os conflitos são eliminados pela adição do branco e do preto, na primeira o conflito só terminará através do equilíbrio harmônico, e não pela extinção da vibração das cores conflitantes.

Desde o Renascimento a harmonia cromática vem sendo definida como o resultado do equilíbrio entre a cor dominante (a que ocupa maior extensão no conjunto, ou seja a maior área da escala) a cor tônica (coloração vibrante que, por ação de contraste complementar, dá o tom ao conjunto) e a cor intermediária (coloração que forma a passagem, meio-termo entre a dominante e a tônica).

Os grandes coloristas modernos — principalmente Robert Delaunay — demonstraram que a mais bela harmonia cromática é exatamente a que indicara Goethe: a formada pelas cores puras do espectro solar; ou ainda a variante que tende para a harmonia mista, feita por Mondriaan em sua série Broadway Boogie-Woogie, em que se equilibram as três cores-pigmento opacas, com a degradação de apenas uma delas, servindo como cor dominante, outra funcionando como tônica e a terceira no papel de intermediária (ou passagem) entre as duas primeiras.

Numa organização racional, André Lhote (Tratado dei Paisaje) esquematizou as funções harmônicas das três cores-pigmento e suas complementares, nos seguintes termos: "A parte mais próxima do olho ou a mais luminosa, em duas palavras, o ponto que deve parecer o mais sólido, terá como cor fundamental o alaranjado. A parte mais carente de luz, ou a mais afastada do olho, a que deva parecer menos sólida, será de dominante azul. Só faltará, para proceder à passagem do laranja ao azul, colocar ao lado do laranja as duas cores primárias que o compõem: o amarelo e o vermelho, e nos compartimentos seguintes, a mescla de cada uma

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dessas cores primárias com o azul. Assim teremos o violeta ao lado do vermelho, e o verde ao lado do amarelo. O laranja e o azul estarão sobre a horizontal e as complementares se encontrarão sobre a diagonal."

Esta unidade harmônica pode interpretar-se como formada pelo contraste de dois acordes consonantes: azul, violeta e^verde; e vermelho, amarelo e laranja. Na primeira tríade, a afinidade é evidente, pela direção comum no sentido do azul. Na segunda, a afinidade se manifesta de modo especial pela tendência à identificação com a luz, revelada pelas cores quentes, tendo o amarelo como cor dominante.

ESCALA CROMÁTICA EM MODO MAIOR OU MENOR

Em geral as cores quentes'"são classificadas como pertencentes ao Modo Maior, constituindo ainda uma relação sensível que por analogia as

vinculam aos sons graves em música. Assim também as cores frias se identificam com os sons agudos e formam a escala em Modo Menor.

No círculo de 12 tons, tomando-se do magenta ao verde (no sentido do movimento dos ponteiros do relógio) como limites da escala, todos os tons intermediários serão quentes, formando a escala em Modo Maior. Os tons frios, que se encontram entre o verde e o magenta, formam o Modo Menor (ilusts. 54 e 55). Por ser o círculo contínuo, e as cores interpenetrarem- se, o verde e o magenta participam de ambas as escalas.

HARMONIA CONSONANTE

No círculo cromático de 12 tons em cor-pig- mento transparente agrupam-se, de um lado, as sete cores aparentadas que guardam maior afinidade com a luz, influenciadas predominantemente pelo amarelo — verde, amarelo-esverdea- do, amarelo, laranja, vermelho, vermelho-viole- tado e magenta —, e do outro as que são afins ao azul, identificadas com a sombra — verde, verde-azulado, ciano, azul, azul-violetado, violeta e ma-genta.

Cada um desses grupos de cores forma uma escala consonante (ilust. 56). Portanto, o caráter harmônico que existe nos acordes consonantes é fruto de afinidades dos tons entre si, pela presença de uma cor geratriz comum, que participa de maneira variável na estrutura de todos eles.

É evidente a presença tanto do vermelho, no primeiro acorde, como do azul, no último. Apesar desta afinidade, quando se tomam três tons seguidos do círculo cromático, o mais quente deles representará a luz, o mais frio a sombra, e o intermediário o elemento da ligação entre os dois extremos, surgindo deste relacionamento a caracterização do acorde.

O que diferencia entre si o acorde e a harmonia é que, para a formação do primeiro, basta que as partes integrantes constituam uma unidade de qualquer classe, ao passo que para a carac

terização da harmonia é necessária a existência de uma cor dominante, de uma cor intermediária e de uma cor tônica.HARMONIA DISSONANTE

Dois tons que se complementam formam sempre uma dissonância — daí chamar-se dissonante a harmonização a que eles servem de base.

E necessário reconduzir a harmonia cromática à sua simplicidade original, principalmente às idéias de Goethe. Nos últimos cem anos têm surgido tentativas de novos métodos de harmonização de complementares que não podem ser levados em consideração, porque em sua maioria eliminam o caráter cromático da harmonia, introduzindo elementos da escala de valores que alteram o sentido preciso de harmonia cromática. Esta harmonização, que se baseia na pureza cromática do tom, não pode admitir nenhum tipo de dessaturação, de rebaixamento, ou a presença de elementos estranhos à escala de tons. Alguns autores, justificando suas posições, costumam citar a formulação de Ruskin, segundo a qual "a degradação é para a cor o mesmo que a curva é para a linha". Mas convém não esquecer que Ruskin era ardoroso defensor da pintura mista, que empregava simultaneamente valores e tons.

Para manter o caráter dissonante na harmonização de um acorde de três tons, sendo dois deles complementares, surge a seguinte particularidade: a de que o mesmo tom que harmoniza uma dupla de tons complementares é capaz de harmonizar todas as demais duplas complementares. O único tom que reúne esta qualidade é o amarelo-esverdeado. Sua constituição originada das potencialidades do amarelo e do azul é um campo fértil para todas as ressonâncias cro- máticas, elementos da maior importância na harmonização de cores fortemente contrastantes.

Na harmonização de acordes dissonantes ocorrem os seguintes fenômenos:4. Acorde complementar magenta-verde. Introduzido neste acorde, o tom amarelo-esverdeado cria uma

dominante de ressonância quente, tendo o verde por base, enquanto o azul contido em sua estrutura funciona como cor intermediária, com ressonância no azul apenas pressentido do magenta. A cor tônica desta harmonia é o magenta.

5. Acorde complementar amarelo-azul-viole- tado. Neste acorde, o amarelo-esverdeado cria uma ressonância quente, tendo o amarelo como base. A pequena quantidade de azul contida no amarelo-esverdeado é que atua como passagem em ressonância com o azul componente do azul-violetado. Nesta organização o azul-viole- tado é a cor tônica.

6. Acorde complementar vermelho-ciano. Neste acorde, o amarelo-esverdeado pode ser encarado como participante em ressonância tanto de uma dominante quente como de uma dominante fria, por sua eqüidistância em relação ao vermelho e ao ciano, significando também que a tônica poderá ser o ciano ou o vermelho. Neste caso de harmonia dissonante, somente a maior ou menor quantidade de área colorida é capaz de definir a cor dominante. Tal fato evidencia o caráter de equilíbrio absoluto deste acorde, levando-se em conta que, o ciano e o vermelho formam a dupla mais ativa das experiências físico- químicas, devido à identidade do azul com a distância e o frio, e à do vermelho com a proximidade e o calor.

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O caráter de harmonizador geral do amarelo- esverdeado é claramente demonstrado pelo esquema traçado no Círculo de harmonização (ilust. 59). No acorde E-K-F, o amarelo-esverdea- do está para o amarelo e o azul-violetado como está para o verde e o magenta no acorde G-A-F. No acorde C-l-F, ele está para o vermelho como está para o ciano: equidistante de ambos.

HARMONIA ASSONANTE

Por harmonia assonante entende-se uma larga escala harmonizada (acordes múltiplos) em que várias cores tônicas se eqüivalem em nível de

saturação e criam, por semelhança ou aproximação estrutural, um acorde tônico, valorizado pela organização e qualidade de outros acordes que funcionam como cor dominante e de passagem.

Dependendo da organização das formas, as harmonias assonantes encontram sua melhor expressão nos dois acordes constituídos pelas seis cores principais: 1) magenta, amarelo e ciano; 2) vermelho, verde e azul-violetado. Quando estas cores estão em presença umas das outras em igualdade de forma e de qualidade, obedecendo à seqüência de posicionamento do Círculo de harmonização, altera-se o conceito anterior da formação de tônicas vinculadas às escalas de Modos Maior, Menor ou Misto.

Na opinião de Goethe, a mais bela harmonia é a do círculo cromático criado pelo homem, no qual a harmonização do acorde assonante provém dos três tons complementares que envolvem os tons primários: o laranja separando o vermelho do amarelo, o verde separando o amarelo do azul, e o violeta separando o azul do vermelho

3 Da Lei do Contraste Simultâneodas Cores

O grande interesse teórico manifestado em alguns setores com vista às artes visuais dos sécu-los XIX e XX está intimamente ligado aos trabalhos de Michel-Eugène Chevreul, químico francês nascido em Angers (1785) e falecido em Paris (1889). Professor de química e diretor das tinturarias para manufatura de gobelins, tornou- se membro da Academia de Ciências em 1826. Em sua obra principal, Da Lei do Contraste Simultâneo das Cores (3S), com meticuloso trabalho de pesquisa, procurou desenvolver os princípios levantados por Leonardo e tratados em ângulos diferentes por Scerffer, Haüy, Goethe e outros autores, relativos ao fenômeno do contraste simultâneo das cores, para explicar cientificamente aquilo que os grandes pintores de todos os tempos percebiam por intuição.

A partir da teoria de Chevreul, as obras de Turner e Constable, que tanta influência exerceram sobre Delacroix, puderam ser analisadas logicamente no tocante à aplicação da cor. Os impressionistas e pós-impressionistas, principalmente Seurat e Signac, alardeavam a influência de Chevreul em suas obras. Com o mesmo intuito, enum clima de entusiasmo científico, Robert Delaunay intitulou uma fase de sua pintura de Contrastes simultâneos.

Como princípio geral, Chevreul afirmara: "Colocar cor sobre uma tela não é apenas colorir dessa cor a parte da tela sobre a qual o pincel foi aplicado; é ainda colorir da cor complementar dessa cor o espaço que lhe é contíguo" (ilust 60).

Em seu livro, Chevreul cita longamente trechos do Tratado Elementar de Física do cientista francês René Just Haüy (1743-1822) e das Memórias de Scherffer, a respeito dos contrastes simultâneo e sucessivo das cores. Falando de outras pesquisas ópticas, refere-se ao físico belga Joseph-Antoine Plateau (1801-1883), mas não faz qualquer alusão a Leonardo e Goethe.

Ao definir a parte principal de suas experiências, diz Chevreul (Capítulo I, itens 77-78-79 e 81): "... é absolutamente necessário distinguir três espécies de contrastes. A primeira inclui o fenômeno relativo ao contraste que denomino simultâneo. A segunda, que se refere ao contraste, chamo sucessivo. E a terceira, que diz respeito ao contraste, nomeio misto.

"78 - No contraste simultâneo das cores, está incluído o fenômeno da modificação que os objetos coloridos parecem sofrer na composição física e na altura do valor de suas respectivas co-res, quando vistas simultâneamente (ilust. 62).

"79 — O contraste sucessivo das cores inclui todos os fenômenos que são observados, quando os olhos foram saturados pela cor de um ou mais objetos durante algum tempo; e quando se des -loca o olhar, percebem-se imagens destes objetos, com a cor complementar à de cada um deles (ilust. 63).

"81 - A distinção do contraste simultâneo e sucessivo torna fácil compreender um fenômeno que podemos chamar de contraste misto, porque resulta do fato de que o olho, tendo visto por algum tempo uma certa cor, vê por outro período a complementar daquela cor, e se uma nova cor lhe é apresentada por um outro objeto, a sensação percebida é a resultante da mistura desta nova cor com a complementar da primeira".

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De maneira lógica, Chevreul demonstra que, como a complementar de uma cor pertence sem-pre ao gênero oposto, ó fácil deduzir que duas cores, uma quente justaposta a uma fria, se exal-tem reciprocamente, de vez que são influenciadas uma pela outra. Duas cores quentes justapostas se esfriam mutuamente, pois cada uma é influenciada pela ação complementar da outra, pertencentes ambas ao gênero frio.

Tome-se como exemplo a dupla vermelho e laranja - o vermelho cobre-se de azul e torna-se mais púrpura, o laranja mais amarelado. Inversamente, duas cores frias tendem a se esquentarem, pois, por justaposição, cada uma participa da complementar da outra, pertencentes ao gênero quente. Ex.: verde-azulado e azul-violetado — o verde ganha amarelo, e o azul, vermelho.

Para facilitar a percepção do contraste, Chevreul elaborou o seguinte Método de observação:

Cores experimentadas

Modificações

N° 1 - Vermelho Inclina-se para o VioletaLaranja Inclina-se para o Amarelo

N° 2 - Vermelho Inclina-se para o Violeta, ou fica menos amareloAmarelo Inclina-se para o Verde, ou fica menos vermelho

N° 3 - Vermelho Inclina-se para o AmareloAzul Inclina-se para o Verde

N° 4- Vermelho Inclina-se para o Amareloíndigo Inclina-se para o Azul

N° 5 - Vermelho Inclina-se para o AmareloVioleta Inclina-se para o índigo

N° 6- Laranja Inclina-se para o VermelhoAmarelo Inclina-se para o Verde brilhante, torna-se menos

vermelhoN° 7 - Laranja Inclina-se para o Vermelho brilhante, ou é menos

marromVerde Inclina-se para o Azul

N° 8 - Laranja Indina-se para o Amarelo, ou é menos marromíndigo Inclina-se para o Azul, ou é mais puro

N° 9- Laranja Inclina-se para o Amarelo, ou é menos marromVioleta Inclina-se para o índigo

N° 10 - Amarelo Inclina-se para o Laranja brilhanteVerde Inclina-se para o Azul

N° 11 - Amarelo Inclina-se para o LaranjaAzul Inclina-se para o índigo

N° 12 - - Verde Inclina-se para o AmareloAzul Inclina-se para o índigo

N° 13 - - Verde Inclina-se para o Amareloíndigo Inclina-se para o Violeta

N° 14 - Verde Inclina-se para o AmareloVioleta Inclina-se para o Vermelho

N° 15 - Azul Inclina-se para ó VerdeI ndigo Inclina-se para o Violeta vivo

N° 16 - Azul Inclina-sè para o VerdeVioleta Inclina-se para o Vermelho

N° 17 — índigo Inclina-se para o AzulVioleta Inclina-se para o Vermelho

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"Pelas experiências descritas neste capítulo — salienta Chevreul — conclui-se, então, que duas superfícies coloridas, em justaposição, exibirão duas modificações para o olho examinar si-multaneamente: uma relativa à altura do valor das respectivas cores, e a outra relativa à compo-sição física destas mesmas cores" (ilust. 65).

Como leis gerais, afirmava: "Todas as cores aumentam de valor sobre um fundo branco, au-mentando também, ligeiramente, seu brilho. Uma vez conhecida a lei de contraste de valore de tom, esta nos ajuda a perceber o fenômeno de o fundo branco cobrir-se da complementar da cor justaposta (ilust. 66). Colocar branco ao lado de uma cor é realçar-lhe o valor, é como se reti -rássemos da cor — por efeito de contraste — a luz branca que diminuía sua intensidade."

Com referência aos fundos cinzas, dizia Chevreul: "Colocar cinza ao lado de uma coré torná-la mais brilhante e, ao mesmo tempo, eqüivale a tingir este cinza com a cor complementarda cor a que foi justaposto. 0 preto rebaixa o valor de todas as cores que lhe sejam justapostas, aumentando o vigor das cores claras, até atingir 6 ponto de maior violência no contraste com o branco absoluto" (ilust. 67).

A ciência contemporânea engloba os três fenômenos distintos descritos por Chevreul, sob a denominação genérica de cores de contraste.

Comentando os contrastes simultâneo e sucessivo, Clarence H. Grahm escreveu em Visão e Percepção Visual (1965): "Há uma grande evidência de que estes dois fenômenos apresentam dois efeitos distintos... Embora exista grande número de teorias, poucas consideram os dados fundamentais relacionados com o processo fisiológico da referida cor de contraste". Segundo Faber Birren, "os fenômenos estudados por Chevreul podem ser bastante óbvios, mas a causa deles ainda permanece um mistério" (36).

8 Cor Inexistente

Mutações Cromáticas "De que vale olhar tem ver?"

Goethe

Sob a denominação de cores induzidas a maioria dos estudiosos do assunto costuma agrupar todos os efeitos cromáticos de indução como decorrência dos contrastes simultâneos de cores. Para melhor sistematizaçâo da matéria, objetivando seu emprego nas artes visuais, dividimos as cores induzidas em dois grupos: mutações cromáticas e cor inexistente.

Entre as mutações cromáticas incluímos as manifestações das cores de contraste ou cores induzidas, tratando dos fenômenos que ocorrem em graus e situações diferentes, por alteração de uma ou mais cores químico-físicas em presença umas das outras.

Por cor inexistente chamamos todos os fenômenos de formação de cores complementarei que surgem ao primeiro contato visual em fundo branco, ou incolor, sob o efeito de certas induções dominantes.

Na área da Física estes fenômenos vêm sendo estudados principalmente a partir dos compo-nentes tricromáticos das chamadas faixas "monocromáticas" do espectro. Estudar essas faixas é como se fosse um mergulho dentro da cor, o desmembramento dos componentes de cada uma, tal como fizera Newton ao desmembrar os componentes da luz branca. Mas, â medida que tais faixas vão sendo melhor estudadas, verifica-se que não são tão monocromáticas como se pensa-va anteriormente.

O gráfico do tríplice estímulo, ou dos estímulos tricromáticos, organizado pela CIE (ilust. 32), baseou-se na constatação da existência em percentagens diferentes de vermelho, verde e azul em todas as faixas do espectro. Portanto, o que chamamos luzes monocromáticas ou homo-gêneas são as que apresentam maior quantidade de determinado croma, identificadas como vermelho puro, verde puro e azul puro. Em última análise, cada cor contém em si mesma os elemen-tos estruturais de todas as demais cores da natureza.

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Assim, a cor que guarda identidade com a luz. em menor escala, relaciona-se também com a sombra, e a que se identifica fundamentalmente com a sombra não deixa de ter vínculos, por menores que sejam, com a luz.

Ao estudarmos as leis dos contrastes simultâneos de cores, inteiramo-nos das ações recípro-cas que as cores exercem umas sobre as outras. Como cada cor reúne em si mesma todos os ele -mentos das demais cores, não seria lógico perguntar de que forma se comportam esses elemen-tos entre si no interior da própria cor?

A partir desta pergunta, foram realizadas várias experiências com cores-pigmento, no intuito de explicar o relacionamento tricromático interno de cada cor. Por fim, constatou-se que este relacionamento se expressa para os sentidos humanos invariavelmente sob o aspecto da contra-dição çromática existente e das diferenças entre luzes e sombras.

Da mesma forma que a luz trava uma perpétua batalha com as trevas, no âmago da cor rea-liza-se idêntica luta, gerada pela ação dos elementos internos, uns contra os outros, como resultado da absorção e reflexão ou refletânçia dos raios luminosos.

Os fenômenos de absorção e refletânçia são bem conhecidos dos estudiosos da cor. Não está ainda suficientemente explicada 6 a reação das diferentes áreas coloridas sob a ação da luz, nos fenômenos das cores induzidas. Até agora estes fenômenos vêm sendo estudados no conjunto das demais cores subjetivas. Mas, à proporção que nos conscientizamos de que as sombras coloridas, as cores de contraste, as mutações cromáticas e as cores induzidas, apesar de constituírem aspectos do mesmo fenômeno de indução de cores, são coisas diferentes, vemos que só poderemos avançar neste caminho se fizermos uma nítida separação entre os vários efeitos, qualifican- do-os segundo seu grau de maior ou menor subjetividade e objetividade.

Numa classificação baseada em tais elementos, seriam subjetivas apenas as imagens posteriores (contrastes sucessivos e mistos), as geradas por excitações e inibições, ou mentais, bem como as patológicas. Em vários graus de diferenciação, todas as cores induzidas (de contraste, mutações cromáticas e cor inexistente) poderiam ser classificadas como cores psicof ísicas.

O processo de reflexão luminosa é hoje bastante claro para todos. A explicação de Newton sobre a cor permanente dos corpos naturais não sofreu modificações substanciais com a teoria da reflexão produzida pelos átomos ativados.

Em condições especiais, quando a reflexão de certos raios luminosos atinge o paroxismo, re-vela colorações latentes em áreas periféricas à da cor saturada, que funciona como cor indutora. Por isto, a coloração complementar das sombras coloridas, dos contrastes simultâneos, das cores de contraste, das mutações cromáticas, das cores induzidas e inexistentes guarda relação direta de oposição às respectivas cores indutoras.

Em índices variáveis, esses fenômenos são permanentes na natureza, mas, como nosso olho está condicionado pela função reguladora do cérebro — ligada à cor permanente dos corpos naturais —, só os percebemos eventualmente, ou quando eles se manifestam de maneira exacerbada, muito acima dos limites normais.

Poderíamos dizer que esta foi a forma encontrada pela natureza para o equilíbrio cromá- tico de suas cores.

Os fenômenos que atualmente chamamos cores de contraste têm recebido várias denomi-nações ao longo da História. Goethe foi dos primeiros a estudá-los e percebeu-lhes a importância decisiva na harmonização cromática, denomi- nando-os cores fisiológicas. A Comissão Interna-cional de Iluminação também os classifica como cores fisiológicas. "Sabe-se que cor de contraste é a cor percebida pelo observador em presença de uma situação tal que uma indutora provoque sobre superfície vizinha a percepção de uma cor que não é fornecida fisicamente e que é a com-plementar fisiológica da indutora. Esta cor de contraste é uma cor subjetiva, resultante de um mecanismo hipotético de inibição nervosa e, por isto, escapa a toda côlorimétrica direta."

Nas últimas décadas, vários pesquisadores criaram métodos para medir as característicasLocalização da cor de contraste amarela sobre o diagrama tricromático CIE. com um indicador' monocrático azul de 460 milimícrons. A: ponto branco com iluminante A; B: cor indutora azul; E: ponto branco teórico; J: cor de contraste amarela.

das cores de contraste. Em 1959 o físico norte- americano Land fez a seguinte experiência: pro-jetou duas fotografias superpostas da mesma cena, a primeira com luz branca e a segunda com luz vermelha. Do ponto de vista físico, as imagens superpostas na tela continham apenas um vermelho mais ou menos dessaturado pela ação da luz branca, mas todos os observadores acreditavam ver um verde, e outros até mesmo um amarelo (principalmente nas imagens de objetos que eles sabiam ser amarelos). "Este princípio já havia sido empregado por Ducos du Hauron (1897); o mérito de Land é o de ter colocado em evidência as notáveis possibilidades deste processo e dos fatores psicológicos implícitos" (í7).

Utilizando o Atlas de Munsell, Jameson e Hurvich (1960) e Wheeler (1962) procuraram definir o matiz, a saturação e a luminosidade das cores de contraste. Em 1962, Kinney apresentou um método baseado em cerca de 30 filtros coloridos, destinados à mensuração de tais cores em diversas condições, por meio de comparação com as cores físicas.

Processo similar vem sendo desenvolvido pelo Professor ROhler no Instituto de Óptica da Medicina, agregado à Faculdade de Física da Universidade de Munique.

Os Professores belgas F. Braun, M. Matthe- euws e G. Thinès criaram um aparelho, denominado cromatoscópio, para análise das cores de contraste, com um dispositivo correspondente à classificação tricromática da CIE. Nele, a cor de comparação resulta da mistura das trôs cores de base e as proporções da mistura determinam as características da cor produzida.

Para obter maior quantidade de misturas e construir uma escala de matizes, luminosidade e saturação a mais larga possível, evitando os valores negativos em certos casos de mistura, os criadores do cromatoscópio escolheram cinco componentes, a fim de que o experimentador sele-cione três que lhe permitam equilibrar a mistura, até atingir uma qualidade considerada ótima.

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Conhecidas as curvas de cada cor, pode-se determinar os componentes tricromáticos dos quatro filtros e do branco, ou seja, as quantidades das três cores fundamentais CIE.Valores tricromáticos dos cinco componentes (38)

X Y ZComponente

(Vermelho)

(Verde)

(Azul)

Azul 0,0282 0,0158 0,1248

Verde 0,0697 0,1543 0,0170

Amarelo 0,7913 0,7332 0,0363

Vermelho 0,1094 0,0483 0,0029

Branco 0,9181 0,8439 0,8065

A determinação da cor de mistura faz-se pelo cálculo dos valores X, Y e Z desta cor. Tais valo-res são obtidos a partir dos coeficientes de remissão (conversão dos valores angulares) e dos valores tricromáticos de cada composto, pelas seguintes fórmulas:

X = X, r, +Xa r2 + X3 r3 (1) Y - Y, r, + Ya r2 + Y3 r3 (2)Z = Z, r, + Z2 r2 + Z3 r3 (3)

nas quais rt r2 r3 são os coeficientes de remissão dos três componentes; e Xj, Yj, Zj,X2,Y2,Za, X3,Y3#Z3, osva- lores tricromáticos destes componentes.

A partir destes dados, é fácil determinar as coordenadas x e y, que permitirão a localização desta cor composta no diagrama CIE.<n) "Journal da Piychotogh Norma!a »t Pathologiqoa" 4- Pari». 1067.

As coordenadas são fornecidas pelas seguintes relações:X"x+Y+Z 8 V*X+Y+Z <4)

Tal como ocorre nas averiguações da área psicofísica, também na da psico-químico-física vêm-se elaborando métodos para a mensuração das cores induzidas. 0 processo básico é derivado da comparação direta da cor induzida com uma amostra pintada em cor-pigmento.

Quando se consegue uma amostra visualmente igual à tonalidade e ao valor da cor induzida, esta amostra é levada ao colorímetro e a medida resultante corresponde ao comprimento de onda, pureza e saturação da cor induzida.

No caso das mutações cromáticas, em que, variando as distâncias, aumenta ou diminui a potência do efeito de indução, com diversas amostras de comparação, pode-se traçar a curva de crescimento e de decréscimo da cor induzida mensurada.

Como princípio geral, temos de considerar que toda cor em presença de outra cor ou valor, assim como todo valor frente a outro valor ou cor, criam invariavelmente colorações ou valores derivados de contrastes simultâneos.

O controle sobre estes efeitos derivados de contrastes obtém-se pelo estudo dos dados de qualidade, quantidade, forma e posicionamento das áreas coloridas.

Tomemos por exemplo o acorde dissonante D-G (laranja-verde), com a grandeza expressa por um retêngulo formado por cinqüenta UP (Uní- dade-Padrão), dividido horizontalmente em duas partes iguais de 25 UP cada uma. Na proximidade da linha que divide os dois quadrados, o laranja parece mais vermelho e o verde mais azulado do que são em realidade.

A Unidade-Padrão c3 (UPc3), em contraste com o verde, toma-se mais avermelhada e ganha em crominância. A subunidade-padrão j 10 (sPjlO) (UPal) da Unidade-Padrão al apresenta as mesmas modificações, mas com maior intensidade, produzindo efeitos proporcionais è diferença das dimensões dos quadrados UPc3 e sPjlO. Sobre fundo laranja, os quadrados verdes UPh3 e sPj5 tornam-se mais azulados e saturados (ilust 69a).

As barras laranja, formadas por oito linhas- Padrão verticais de largura (IPv) e duas IPv de altura, em fundo verde, separadas por distâncias regulares, criam contraste com as barras verdes projetadas sobre o fundo laranja, contraste que as valoriza mutuamente.

No mesmo Módulo surgem três contrastes distintos: o primeiro formado pelas áreas maiores laranja e verde; o segundo pelas verticais e as jÉMNi do fundo; e o terceiro pelas barras verticais entre si (ilust. 69b).

Quando linhas verdes de largura variável, a partir da linha Padrão, são dispostas sobre fundo laranja, a intervalos decrescentes, produz-se a sensação de uma escala de tons que varia do verde azulado da linha mais fina ao verde natural tomado para o teste e que aparece levemente modificado na linha mais grossa (ilust. 69c).

Uma linha verde formada por três IPh, no centro de um quadrado de vinte e cinco UP, de cor laranja, a 1,5m de distância produz a sensação de azul-esverdeado. Uma linha alaranjada de idêntico tamanho, sobre fundo verde, produz a sensação de laranja-avermelhado (ilust. 69d).

Um quadrado alaranjado de quatro UP, ao lado de um quadrado verde da mesma dimensão, no centro de um retângulo formado por quarenta e oito UP azuis-violetadas, produz um acorde em que a indução valoriza todos os tons, assumindo o azul-violetado a função de cor dominante, o verde a de cor de passagem e o laranja a de cor tonai. A beleza dos tons deste acorde deriva da justa indução sofrida por todas as cores em presença umas das outras (ilust. 70).

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No mesmo acorde está um dos limites extremos do equilíbrio tonai. O azul-violetado valoriza-se em crominância e luminosidade, o que também ocorre com o laranja. No entanto, embora perdendo saturação, o verde não fica em inferioridade, funcionando como cor de passagem entre o azul-violetado e o laranja. Esta tríade de cores revela a potência da dupla laranja e azul-violetado, demonstrando que pode ser uma opção na formação de padrões bicolores oriundos da dupla azul-amarelo, que serve de base para o esquema de produção das mais violentas induções nas mutações cromáticas.

Uma série de faixas azuis e amarelas colocadas alternadamente constitui o padrão cromático ideal para a indução de cores. Quando qualquer cor é colocada em pequena quantidade sobre uma das faixas, de forma a estabelecer contato com aoutra cor das faixas laterais, altera-se em cromi nância e luminosidade, dependendo da relacãn entre o tamanho das áreas coloridas e a distância do observador. 10

Um vermelho (C), seccionando uma faixa deazul-violetado (K) que esteja entre duas faixas de amarelo (E), transforma-se em laranja e ganha lu- minosidade. O mesmo vermelho, cortando uma faixa amarela que se encontre entre duas faixas azuis-violetadas, transforma-se em magenta, perdendo luminosidade (ilust. 71). Igual fenômeno de mutação verifica -se com qualquer cor ou valor que sejam colocados em situações idênticas às do vermelho, produzindo efeitos segundo as propriedades constitucionais das cores ou valores testados (ilust. 72).

Quando a cor de teste envolve os padrões formados pelas faixas paralelas azuis e amarelas, notam-se melhor as modificações ocorridas nas partes da cor que estão sobre as referidas faixas azuise amarelas (ilust. 73).

Alteradas as formas e as proporções, as mutações não se manifestam apenas na cor de teste: aparecem também nas cores das faixas que constituem os padrões de análise de mutação (ilust. 74).

Modificando-se a qualidade, a quantidade, a forma e o posicionamento das áreas coloridas, alteram-se todos os resultados. A mais surpreendente das mutações que conseguimos até o mo-mento foi a percepção da transformação do violeta em sua cor contrária: um amarelo alaranjado (ilust. 75).

Para o emprego estético das mutações cromáticas, as mais ricas possibilidades encontram- se na indução de várias cores simultaneamente. Este processo possibilita a indução de áreas intei-ras, produzindo efeitos de irisação e de definições de tons com crominâncias e luminosidades extremamente belas (ilusts. 76, 78 e 79).

Com a alteração de forma, quantidade e posicionamento, as imagens incolores poderão produzir a sensação de escala de valores (ilust. 77).

Ilust. 69 — Variando a forma, a quantidade a o posicionamento, a mesma cor produz efeitos diferentes. Numa estrutura determinada, a cor apresenta alteração da qualidade, quando variam sua quantidade a seu posicionamento: a — o pequeno quadrado de uma sP parece mais azulado que o de uma UP; b - se observadas bem as barras verdes sobre fundo laranja, e as laranjas sobre fundo verde, verifica-se que as formas criam grande variedade de coloraçffo nos limites que demarcam figura e fundo; c — na linha mais fina o verde pareço mais azulado que na barra mais grossa; d — as linhas verde e laranja, em amplo campo de contraste, parecem mais azulada a mais avermelhada, respectivamente, do que quando projetadas sobre fundo neutra

2Cor Inexistente

... "falar somente, ouvindo os intervalos entre as palavras, entre os pensamentos"...Jorge de Lima Invenção de Orfeu (Canto VII - Audição de OrfeuI

... "(perdoar é rito de pais, quando não seja de amantes)."Carlos Drummond de Andrade A Mesa

A força, a suavidade, a beleza ou a desagradável agressividade de certas cores ou de conjunto de corés decorrem do fenômeno de indução, que é a parte dinâmica do colorido. Um matiz é sempre mais belo quando aparece com sua coloração modificada pela justa indução de outras cores. Nesta indução reside a essência da harmonia cromática.

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A partir da ação mútua de contraste simultâneo que uma cor exerce sobre outra, o fenômeno se desencadeia em seqüência, envolvendo todas as cores que de uma forma ou de outra participem do todo. O bom relacionamento ou a desarmonia provém dos elementos estruturais de cada cor posta em confronto.

Como todas as cores resultam de composição tricromática, deve-se considerar que cada uma delas possui, em escala variável, elementos que também participam da constituição das demais, t o que se poderia chamar, em linguagem figurada, de "tríplice personalidade da cor". Ao primeiro estímulo favorável, essas "personalidades" exaltam-se, manifestando o vigor ou a brandura de suas potencialidades.

Na essência da cor encontra-se uma linguagem própria de enorme riqueza expressiva, sem qualquer conotação ou paralelo com outras formas de expressão. A poesia, o lirismo, a vibração, o arrebatamento, o telurismo, a quietude ou o silêncio da cor são mensagens especificamente visuais, podendo formular idéias e sentimentos tão precisos como a palavra ou o som. Assim como Beethoven acreditava que a música era a verdadeira filosofia, a pintura, sem nenhum vínculo com os princípios filosóficos correntes, Pode expressar a filosofia da cor. Uma filosofia dos sentidos, que se desencadeia em reações 16-

gicas sobre a inteligência e o comportamento. Lúdica ou solene, esta pintura amplia os hori-zontes visuais, como extensão da mente e das ações humanas.

No centro do imenso universo das induções cromáticas, situa-se a mais sutil manifestação das cores induzidas: o fenômeno que denominamos cor inexistente, por surgir em áreas incolores, sem o suporte químico da cor-pigmento.

0 domínio do fenômeno da cor inexistente apresenta particularidades diferenciadoras com relação aos contrastes simultâneos de cores e valores. A primeira delas é que a cor não pintada (inexistente) se revela ao simples contato visual, sem necessidade de saturação retiniana, demonstrando não ser uma imagem posterior. Além disso, a cor inexistente é captada por qualquer tipo de máquina fotográfica, sendo capaz de impressionar até os filmes em preto e branco. Este fato a define como fenômeno objetivo, que afasta a hipótese de ser apenas o resultado de "um mecanismo hipotético de inibição nervosa".

À primeira vista, parece surgir o seguinte dilema: ou a cor inexistente não é uma cor de con-traste, ou a cor de contraste não é um fenômeno subjetivo.

A resposta mais lógica, baseada nas experiências de centenas de pesquisadores durante sécu-los, é a da existência de várias modalidades de cores de contraste (cores induzidas). Algumas apresentando caráter predominantemente objetivo, outras apenas subjetivo, ou misto.

A cor de contraste produzida pela cor permanente dos corpos naturais, em sua manifestação mais bela (cor inexistente), é um fenômeno de radiação física, por ativação dos átomos da periferia da cor dominante. Por contraste com a cor indutora. revela a coloração complementar que surge nos corpos chamados incolores. como resíduo de absorções parciais dos raios luminosos incidentes.

Então o controle sobre este fenômeno baseia-se na relatividade da absorção e reflexão dos raios luminosos pela matéria. Como se sabe, mesmo os raios luminosos de cores primárias (in- decomponíveis), denominados monocromáticos ou cores puras, são constituídos por três elementos - XYZ, ou seja: vermelho, verde e azul-viole- tado (ver gráfico dos estímulos tricromáticos CIE, pág. 85) - e nenhum corpo absorve ou reflete integralmente a totalidade dos raios luminosos incidentes. Deduz-se daí que a superfície denominada branca, apesar de refletir a quase totalidade dos raios luminosos, absorve também, em quantidade mínima que seja, parcela de todas as cores contidas na luz incidente. Por isso, quando o componente físico da superfície considerada branca varia de coloração, sabemos estar em presença de nova cor indutora. Como não existe branco nem preto absolutos, também não existem corpos totalmente incolores sob a luz diurna

A dificuldade do domínio da cor inexistente foi encontrar a maneira de tornar visível ao primeiro contato visual essas parcelas mínimas de raios luminosos absorvidos pelas superfícies brancas, fenômeno que pode ser equacionado daseguinte maneira: Cl = , onde Cl corresponde à cor inexistente, rla"i" à reflexão luminosa da área "incolor", e ala"i" à absorção luminosa da área "incolor".COMPONENTES ESTRUTURAIS

Pela diversidade dos percentuais de refletân- cia de cada cor, as áreas "brancas" periféricas a cada uma delas, mesmo sendo iguais, são percebidas de maneiras diferentes, devido à variação dos índices de refletância das cores indutoras. Mas. como cada cor indutora tem comprimento de onda, pureza e grau de refletância diferentes, para tornar visível ao primeiro contato visual sua cor complementar, necessitará de uma organização especial em seus dados de qualidade, quantidade, forma e posicionamento. Mesmo assim, serão variáveis os índices de visibilidade de cada cor inexistente, pela diferença dos fatores refletância, pureza e comprimento de onda, que caracterizam suas indutoras.

Qualidade

O que denominamos qualidade, no trato com as cores, são os inumeráveis desdobramentos possíveis dos parâmetros enunciados por MunseH. matiz, luminosidade e croma (ilust. 80). A conjugação de todos os matizes, com índices variáveis de luminosidade (ou brilho) e de cro- minância (dessa tu ração, ou rebaixamento do tom), pode atingir dezenas de milhares de tonalidades (ilust. 48). Isto significa que. a rigor, existe a possibilidade de dezenas de milhares de cores induzidas, todas regidas pelas características de suas indutoras sob o princípio geral: proximidade ou diferença de luminância entre figura e fundo (ilusts. 81 e 82).

Os acordes harmônicos fundam-se, em primeiro lugar, na qualidade de suas cores componentes. Todos os demais fatores subordinam-se a ela.

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Quantidade

Na avaliação dos contrastes, a extensão das áreas coloridas desempenha importante função. Um acorde de duas cores cria variadíssima gama de coloração induzida, pela simples alteração das quantidades dos elementos do acorde.

O registro e o estudo dessas possibilidades tornaram-se mais fáceis com a criação do método de mensuração das áreas coloridas, constante de nosso Sistema de Harmonização das Cores (ilusts. 51, 52, 53,69. 70. 83, 84 e 85).

Forma

Para o ato de estimulação da retina, a forma tem enorme importância. Intimamente ligada ao lado racional da construção do desenho, a ela podemos nos referir tanto como uma das partes que contornam uma área, ou como o todo da obra. Em geral, é através da forma (desenho) que a pintura se vincula a outras esferas do saber, transmitindo conceitos históricos, religiosos, filosóficos, sociais, políticos, etc. A conscientização das possibilidades especificamente visuais da forma em desencadear estados anímicos de excitação, equilíbrio, movimento, repouso, energia, etc., bem como idéias analógicas ou sensações de reversibilidade, indica estágio bastante elevado no domínio das formas (ilusts. 41, 75 76, 78 e 79).

Como vimos no estudo dos contrastes simultâneos de cores, a parte mais dinâmica da área colorida é a que confina com outras áreas, demarcando a forma. Para o surgimento da cor inexistente, a ampliação ao máximo do comprimento da linha de demarcação de áreas é de primordial importância. Daí a criação de formas complexas, como as das rosáceas dentadas, ante- pondo-se a bastonetes em forma de leme, da re-petição e multiplicação de elementos, tudo no intuito de ampliar ao máximo a dimensão e o número das linhas de contorno entre figura e fundo (itusts. 82. 83. 84, 85. 86 e 87).

Posicionamento

A relação de posicionamento estabelecida pelas cores em qualquer escala ou estrutura tem sempre característica definida. Alterar a posição das cores, mesmo num simples acorde de dois tons de igual quantidade, já é alterar completa-mente a mensagem visual da forma, em seu conjunto, e a relação e efeito das cores, em particu- lar.

O posicionamento é que vivifica a proporção das partes numa estrutura. "A Divina Proporção" de Luca Pacioli, lei imutável, ao estudar as proporções de vários corpos, indicou para a pintura . e o desenho as linhas áureas de posicionamento.

O DOMÍNIO DO FENÔMENONa natureza, as cores estão sempre harmonizadas. Os efeitos de aeração, de luzes incidentes e refletidas, de sombras,

meias-sombras e trevas criam contrastes e passagens necessárias para que cada corpo, ou conjunto de corpos, revele a ple-nitude de suas possibilidade latentes.

O olho experiente percebe a cada momento, na natureza, as mutações cromáticas e os vários efeitos de refração e de indução de cores. Esses cambiantes cromáticos originam-se de reflexão e absorção da luz incidente e dos reflexos lumino-sos circundantes.

Ao realizar-se a análise de uma cor, tomada separadamente, nota-se que uma área ou um corpo coloridos nunca têm a mesma coloração por igual, em toda a superfície. Muitas causas concorrem para essa variedade de colorido den tro da mesma cor, sob a mesma luz. A primeira se deve aos pontos de impacto dos raios luminosos incidentes, que, criando partes mais luminosas, desencadeiam o processo de contraste simultâneo dessas partes com as menos iluminadas. Logo a seguir vêm os efeitos provocados pela reflexão de luzes por outros corpos. O corpo colorido, assim tão contraditório em si mesmo, enfrenta os fatores externos de contraste com outras áreas limítrofes, ou distantes, provocando as inevitáveis induções dominantes.

Todos esses fenômenos são percebidos como variações cromáticas e de luzes e sombras. O que não pode ser esquecido é que tais luzes e sombras, percebidas nos corpos, são fortemente influenciadas pelos componentes tricromáticos da iluminação geral. Portanto, a vibração da cor não está apenas em função de seus elementos consti

tutivos, mas do conjunto de situações no qual ela se insere.Estudo particularizado da cor dominante é indispensável a qualquer processo de harmonização, que. a rigor, é sempre um

processo de indução. Foi exatamente o aprofundamento da análise dos valores da cor dominante (indutora) que possibilitou o dom ínio da cor inexistente.

O primeiro trabalho em que se conseguiu o domínio da cor inexistente foi um quadro de 1,0 x 0,76 m, com rosáceas de 5 cm, próximas umas das outras, a distâncias regulares, e pintadas em diversas tonalidades de amarelo, sobre fundo branco. Do amarelo vibrante, correpondendo à cor, em plena luz, até a terra-de-sombra queimada, funcionando como sombra mais intensa. Pequenas formas em tonalidade azul-acinzentada, por contraste, levavam o amarelo ao seu mais alto grau de exaltação (ilust. 88).

Observado de perto, notava-se que o fundo do quadro era inteiramente branco. Mas no aro interior das rosáceas distinguia-se a cor complementar (violeta), tingindo o branco. A três metros de distância já se percebia a radiação da cor complementar por todo o fundo do quadro, fenômeno que atingia o clímax a uma distância de 12 metros. Idênticos efeitos podiam ser obtidos a distâncias reduzidas, se se inclinasse o quadro, de forma que a vista caísse sobre ele obli- quamente, alterando os graus do ângulo de visibilidade e de incidência da luz.

Os dados principais que concorrem para a produção do fenômeno podem ser sintetizados em seis itens:7. Comprimento de onda das faixas coloridas (dado relativo ao fator qualidade).8. Capacidade de irradiação e vibração (índices de refletância) e de luminosidade, relativos à qualidade da cor.9. Fo.rma das áreas ou figuras que estimule a ação de contrastes (dados referentes à forma e à quantidade).10.Ações de contrastes capazes de levar a cor dominante ao paroxismo (contrastes de qualidade, quantidade, forma e

posicionamento):contraste das várias gamas da cor dominante entre si;contrastes de uma cor (secundária no quadro), fazendo vibrar as diferentes gamas da cor dominante.

11.Grau de refração das faixas coloridas ocasionado pelo ar atmosférico.12. Maior intensidade da cor inexistente, quando vista sobre fundo cinza-claro (relação de luminância entre figura e

fundo).

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As experiências feitas com milhares de pessoas comprovaram que a cor inexistente é percebida ao primeiro contato visual, não exigindo demorada fixação da vista para saturação retiniana. Mesmo os daitônicos

percebem o fenômeno; apenas, eles distinguem um cinza onde os demais vêem a complementar da cor indutora.Podfrse afirmar que a cor inexistente guarda relação direta com o que Chevreul chamou contraste simultâneo de cores e

valor, É necessário esclarecer, porém, que Chevreul, como alguns outros autores, usava a palavra tom para designar valor.Mesmo admitindo teoricamente a existência objetiva do fenômeno, paca indicar a cor complementar que surge no fundo

branco em torno da cor indutora, Chevreul viu-se obrigado a pintar a coloração induzida (ilust. 66, pág. 173) .^porque, da maneira como ele formulara o fenômeno, esta só pode ser percebida por saturação retiniana (cor fisiológica). Portanto, do ponto de vista prático, o que diferencia a cor inexistente do contraste simultâneo de cores e valor é a eli minação da necessidade de saturação retiniana para a percepção do fenômeno. Mas a explicação desta diferença implica a enumeração de dados e conoeitos que terminam por refutar a idéia fundamental da tese de Chevreul, contida na "Lei do Contraste Simultâneo das Cores": a de que uma cor colocada sobre fundo branco produz sempre e da mesma forma, em sua periferia, uma coloração que lhe é complementar

Em experiências realizadas nos últimos vinte e seis anos, verificamos que não corresponde à realidade essa afirmação. Variando a qualidade, a quantidade, a forma e o posicionamento das áreas coloridas, em termos de organização e rela-tividade, uma seqüência de círculos azuis da mesma dimensão pode produzir, no fundo branco sobre o qual se encontrem, a sensação de coloração complementar, ou de irradiação de sua própria cor em várias gamas, bastando para istoaumentar ou diminuir a área branca existente entre eles, dentro de certas proporções (ilust. 81).

Em determinada organização, uma cor pode até transformar-se em sua própria complementar. Ê o que ocorre quando se submete um violeta (L) à mais alta pressão dos padrões de teste amarelos (E) e azuis-violetados (K) (ilust. 75).

A devida avaliação dos mesmos elementos que determinaram o domínio da cor inexistente possibilitou também uma abordagem lógica sobre todas as manifestações harmônicas do colorido, além da sistematização dos dados que influem na formação das cores induzidas e das relações gerais que determinam as mutações cro- máticas.

Assim avançamos um passo no caminho dos sonhos "manipuláveis" e abrimos as portas da especulação de todas as inexistências. Acreditamos que a caminhada seja irreversível. O colo- rista do futuro, tal como sonhara Van Gogh, deve estar sendo forjado em nosso século e foi nosso intuito colaborar para seu advento.

O universo que nos cerca é um mágico caleidoscópio, e as cores induzidas a alma deste universo. A percepção das múltiplas aparências dessas cores indica elevado estágio de conhecimento sensível. Em nossas longas andanças, constatamos que a simples lógica é impotente para levar o homem à conscientização das manifestações mais sutis da natureza.

Chamar a atenção de alguém para estes fenômenos significa enriquecer-lhe o mundo das percepções sensoriais, porque a partir daí não mais poderá fugir ao fascínio das manifestações superiores e ultra-sensíveis das vibrações cromá- ticas, passando a percebê-las freqüentemente na vida cotidiana. Ê conduzi-lo por sendas irreversíveis, no próprio âmago da cor.