D22 Hegel Frente e Verso - Paulo Arantes

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    discurso(22), 1993: 153-165

    Hegel, Frente e Verso

    Nota sobre achados e perdidos em

    Histria da Filosofia

    Paulo Eduardo Arantes *

    Resumo:este artigo visa mostrar as diferenas de leitura entreLa patience du concept(1972) eOAvesso da Dialtica(1988), dois livros em que Grard Lebrun interpreta e discute a filosofia de

    HegelPalavras-chave:dialtica - hegelianismo - historia da filosofia

    Que a vida dessa facase mede pelo avessoJoo Cabral de Melo Neto

    O que se descobre quando viramos do avesso a dialtica hegeliana?

    Segundo Grard Lebrun, nada de muito animador: tudo somado, uma estra-tgia crist de culpabilizao da existncia, mais o seu cortejo de paixestristes, a que no fundo resume o trabalho do negativo. Embora previsvel,essa adeso por extenso ao anti-hegelianismo militante da Ideologia Fran-cesa (alimentado no entanto com recursos prprios e nenhuma concesso

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    terminologia em voga) s se apresentou, pelo menos na forma acabada deum livro, em 1988 - justamente O Avesso da Dialtica, publicado em So

    Paulo naquele ano. At a nada de mais, se no nos lembrssemos que quaseduas dcadas atrs, mais precisamente em 1972, a dialtica no tinha ne-nhum avesso que a incriminasse: ela era literalmente imprenable. Refiro-me ao primeiro livro de Lebrun sobre Hegel,A Pacincia do Conceito. Aquia grande novidade. Visto de frente, o discurso hegeliano no encobria ne-nhum fantasma ideolgico, nenhum apogeu metafsico ou ontoteolgico etc.Todavia, dois anos antes, nada permitia antecipar tamanha reviravolta, pelocontrrio predominavam as prevenes de costume: na sua grande tese (comose dizia ento) sobre a Terceira Crtica, Lebrun no perdia ocasio de lem-brar que o hegelianismo era mesmo uma teodicia, que a confiana na pre-sena de uma razo atuante na histria s deixaria de ser a especulao deum visionrio para se tornar a realidade cotidiana dos estados policiais etc.A lei do gnero assim ordenava: se o autor a ser explicado era Kant, Hegelnunca poderia estar certo, e vice-versa, como se veria no livro seguinte.Tambm no deve ter sido pequena a surpresa de seus admiradores brasilei-ros: os que tiveram a chance de acompanhar, durante a primeira metade dosanos 60, seus cursos na USP, sabiam muito bem que a averso de Lebrunpela dialtica era a bem dizer congnita, to antiga e arraigada quanto ospreconceitos da filosofia universitria francesa - como se sabe, um hbridoespiritualista de neo-kantismo e positivismo. Intil lembrar que tamanhaalergia se manifestava em exposies magistrais, como a aula histrica con-sagrada ao comentrio da convico hegeliana de que as feridas do espritose curam sem deixar cicatrizes. Por certo os motivos anti-hegelianos de

    Deleuze, Derrida e Cia. j no tinham mais nada a ver com as implicnciasde um Brunschvicg e sucessores - como se sabe, entroncavam na fraseologiada transgresso, um veio at ento subterrneo e tardio do modernismofrancs, um arco heterclito que se estendia de Bataille aTel Quel. Quantoa Lebrun, como lembrado, no precisava anunciar que estava em campanhacontra o Logocentrismo ocidental e seus derivados, ou empenhado na for-mulao de uma filosofia da Diferena. Bastava seguir as regras de seumtier- o de um professor formado na escola francesa de filosofia -, dei-xando-se no entanto impregnar discretamente pelos ares do tempo. De qual-

    quer modo, embora partilhasse com a Frana intelectual do momento o pontode honra que mandava maldizer da dialtica em todos os quadrantes, o fato

    que naquele ano de 1972 Lebrun resolveu no obstante contrari-lo. Pre-sumo que tambm por natural esprito de contradio, sem descartar entre-tanto o clculo retrico de s confirmar mais adiante o credo reinante de-pois de faz-lo confessar a opinio oposta. Um passe de armas que s mes-mo a ndole dissertativa de um gnero sem problemas facultava, mas no aqualquer um.

    ***

    A Pacincia do Conceito antes de tudo um notvel exerccio dedesdogmatizao de um sistema filosfico, alm do mais executado, nadamais nada menos, na figura do mais dogmtico sistema de todos os tempos.Sem muito exagero, so cento e cinqenta anos de iluses desfeitas por umdos mais inventivos livros da historiografia filosfica francesa. Simples-mente ficvamos sabendo que no existia filosofia hegeliana alguma, nemmesmo filosofia disso ou daquilo (Histria, Arte, Direito etc.). Numa pala-vra, erradicando-lhe todo e qualquer resduo afirmativo, Lebrun reduzia ohegelianismo ao que lhe parecia ser o essencial, Dialtica, e esta, a umaespcie de revoluo discursiva sem precedentes (ou melhor, havia um elogo saberemos qual ), uma mquina de linguagem especializada em

    pulverizar as categorias petrificadas, as fixaes arcaicas do pensamentodito representativo, encarnado no caso pelo famigerado (depois do Idea-lismo Alemo) Entendimento. Comprimidas por tal engrenagem, as signi-ficaes correntes se punham a flutuar para finalmente confessar que nofundo no eram nada mesmo, a no ser um ninho de contradies cujo re-sultado se desmanchava no ar. No havia doutrina portanto, nada a ensinarou informar. A Dialtica, no final das contas, nada mais era do que umamaneira de falar. Apenas isto, ou ento um delrio, um conto de fadas. Estaa alternativa, de fato muito apertada, na qual Lebrun encerrou ento o

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    hegelianismo, no claro intuito de reabilit-lo contracorrente, embora re-masse a favor dela. A todo o sal do episdio.

    (Diga-se de passagem que, sendo o eixo do livro uma interpretaoque pela primeira vez levava s ltimas conseqncias a palavra de ordemhegeliana que decretava a absoro da Ontologia pela Lgica, seguia-se dao que para muitos deveria ser uma revelao, a saber: que a Dialtica noera nem poderia ser de modo algum uma outra Lgica, por definio supe-rior, empenhada em rivalizar com - e no limite, desautorizar - uma forma depensamento relegada ento s tarefas mais corriqueiras do esprito. S poressa tentativa, que poderia libert-los de um cativeiro secular, a sociedadedos amigos materialistas da Dialtica hegeliana deveria erguer um monu-mento a Grard Lebrun, ainda que ele tenha retomado a palavra dada, poisafinal armara o livro para isso mesmo.)

    De onde teria vindo a Lebrun a idia to inslita de apresentar a dia-ltica como um simples modo de falar? (Alis, no to simples assim.)Quanto inspirao mais remota, confiemos em sua tarimba profissional.Sendo a Histria da Filosofia um feixe de referncias cruzadas sem antesnem depois, possvel que o trabalhasse certa reminiscncia de Aristtelesque no soubesse onde encaixar, justo na primeira hora em que procuravaumsoclepara a dialtica hegeliana. Fosse esta ltima encarada como a di-altica superior do Conceito (como se exprimia Hegel acerca do momentopositivo-racional da exposio especulativa), e o caminho mais natural dasremisses em circuito fechado conduziria viso sinptica de Plato, ondese recobriam por inteiro Dialtica e Cincia. Mas no caso da dialtica pro-priamente dita, seu persistente negativismo no a aparentava recusa aris-

    totlica de conceder dialtica - desfigurada pelo amlgama platnico -mais do que um saber negativo? Inversamente, aquele poder que Aristteleslhe reconhecia, de enfrentar os contrrios sem o apoio de definies prviasnem a promessa de um fundamento futuro, no parecia anunciar Hegel ex-pondo o carter antinmico das determinaes finitas numa espcie de ter-ra de ningum, onde o Entendimento perdia o p e a Razo ainda no che-gara? No se pode descartar a hiptese de que vista de tal analogia, aprimeira sugesto lhe tenha vindo da leitura do livro de Aubenque,LeProblme de ltre chez Aristote, de 1962. que a certa altura do livro

    (mais precisamente p. 293), Aubenque definia a dialtica aristotlica comoumafaon de parler, cuja fora libertadora lhe advinha da desenvoltura

    com que se movia num domnio situado muito alm do reino das essnciasestveis (como se diz em linguagem dissertativa) - por isso os homens podi-am se entender mesmo quando no falavam de nada. - bem possvel quepara essa identificao surpreendente no tenha contribudo pouco uma outralembrana, a de um velho livro de Jean Hyppolite sobre Hegel, Logique etExistence, todo ele centrado tambm na absoro especulativa da Ontologiapela Lgica e na conseqente liberao de uma linguagem indita, em con-dies de substituir o discurso-sobre pelo vir-a-ser do sentido em pessoa,um processo de explicitao de significaes ao trmino do qual encontra-va-se igualmente abolida a transcendncia de um suposto referente separa-do. Assim, de comparao em associao, Lebrun acabou se defrontandocom a evidncia da natureza discursiva da dialtica, arrematada todavia pelaconcluso radical que era preciso tirar: certo, apenas um modo de falar, maspor isso mesmo livre da obrigao (metafsica) de falar sobre alguma coisa.Sem a menor dvida, um verdadeiro achado, mas os achados em Histria daFilosofia so logo perdidos. No obstante ser muito bom, o livro de Hyppoliteera apenas uma excelente fonte de dissertaes. Quanto a Aubenque, suaredescoberta da dialtica (negativa) de Aristteles vinha a ser um sintoma amais da errncia (sic) heideggeriana que lhe servia de horizonte e cuja ret-rica meditativa da perplexidade pela perplexidade no era por certo do gos-to do nosso Autor. O que fazer? Por que no se deixar levar pelo timbreultramoderno daquela frmula? Pois ela no sugeria finalmente que a dia-ltica hegeliana deslizava para o corao da atualidade? Impregnado pelas

    linhas de fora do momento, Hegel voltava a ser um filsofo legvel.Outras peas do quebra-cabea no qual encaixar este primeiro achado

    proveniente dos guardados da Histria da Filosofia, vinham igualmente decasa. Em primeiro lugar, do mtodo historiogrfico preconizado pela refe-rida Escola Francesa, segundo o qual o significado de um sistema filosfi-co permaneceria letra morta caso no desconsiderssemos a inteno dou-trinria que o animava. Compreende-se que o exerccio continuado dessemtodo suspensivo tenha predisposto seu usurio a encarar raciocnios queno lhe diziam mais nada como outros tantos discursos enrolados sobre si

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    mesmos. Lebrun por certo no ignorava o que havia de artifcio nessa de-cantao mas acabara de constatar - relendo Kant dois anos antes - que a

    partir da obra crtica deste ltimo a filosofia mudara a tal ponto de registroque a considerao meramente arquitetnica poderia ocupar sem violnciao primeiro plano, pois de direito j no havia mais nenhuma verdade a ensi-nar. Noutras palavras, constatara que a historiografia dita estrutural e a as-sim chamada autonomia do discurso filosfico revelada por Kant tinham amesma idade, entendendo-se no caso por autonomia a dieta muito magra deuma disciplina concernida exclusivamente pela observao de seu prpriofuncionamento. (Um regime autrquico que Husserl levar ao paroxismo.)Por que no estender essa reviravolta at Hegel? Lebrun no hesitou: assimcomo a Crtica Kantiana ocupara o lugar da Teoria, do mesmo modo o focodo discurso hegeliano s poderia estar na Dialtica, por sua vez decidida-mente negativa e intransitiva.

    Por outro lado, tambm deve ter pesado muito na heresia de Lebrunalgumas certezas herdadas da tradio epistemolgica local - o outro pilarda filosofia universitria francesa -, abafadas durante a temporadaexistencialista de caa ao concreto, ao vivido etc. A reao acadmica,a que no fundo se resumia a mar estruturalista, trouxe de volta antigasdistines, como a sempre assinalada diferena epistemolgica entre objetode conhecimento e objeto real, convico to entranhada a ponto de reunirsob o mesmo programa o respeitvel Prof. Gilles-Gaston Granger e oidelogo Louis Althusser. Entre outras coisas, ambos convergiam na re-jeio do mito especular da viso, como se referia Althusser aos esque-mas perceptivos que sustentavam a noo clssica de conhecimento. Co-

    mentando certa vez (numa resenha de 1969, para ser preciso) a segundaedio do livro de Granger, Pense Formelle et Sciences de lHomme, Lebrunse engajaria por seu turno na luta contra esse mesmo mito (realimentadopelos melhores amigos do vivido, os fenomenlogos) da homogeneidadeentre formas percebidas e objetividades construdas, responsvel pela con-fuso antiquada entre saber cientfico e teoria. Um ano depois, essa evi-dncia da epistemologia francesa reapareceria no seu lugar de origem, se-gundo Lebrun, a crtica kantiana da iluso terica que vitimara as metaf-sicas do passado. Mais um pouco e reencontramos aquela mesma evidncia

    convertida agora na concluso (que Althusser sem dvida aprovaria) de queo assim chamado problema do conhecimento nada mais do que uma cons-

    truo ideolgica (mais exatamente, uma miragem induzida por uma con-cepo instrumental da linguagem), iluso que acompanha todo ato de refe-rncia a contedos que se trataria ento de alcanar e compreender: esse opasso dado pelo hegelianismo enquanto mquina discursiva de triturar sig-nificaes finitas. Ou melhor, o passo surpreendente dado na verdade porLebrun, emparelhando a dialtica hegeliana aos ltimos desdobramentos daepistemologia francesa - o que alis Althusser fizera com Marx.

    Mas ainda faltava o principal, sugerir os antecedentes vanguardistasda revelao - anunciada em sua intensidade filosfica mxima pelo discur-so hegeliano na figura da negao indeterminada em que se resolvia a dis-soluo polmica das categorias do Entendimento - que representava a des-coberta de que um tal modo muito pouco filosfico de falar no dizia, nem

    poderia dizer,rigorosamente nada. Assim sendo, a ltima palavra caberiaao novo surto modernista francs, que irrompera no incio dos anos 60 ecuja plataforma a bem dizer se concentrava no seguinte ponto doutrinrio:tudo se passa como se o processo cultural no seu conjunto girasse em tornode uma experincia-limite, no caso a experincia abissal dos limites da lin-guagem, mais exatamente de uma linguagem irredutvel que, sem jamais secalar, ne dit rien(...)qui soit. Desta fonte originria brota a Literatura,espcie de ato puro voltado inteiramente para o enigma do seu nascimento,que nada designa alm de si mesmo, um ato marcado portanto pela maisabsoluta intransitividade. Dissipada a iluso referencial, ficava claro final-mente que o verdadeiro assunto da Literatura sempre foi a prpria Literatu-

    ra. Alis ningum entra em Literatura (o galicismo diz tudo) porque temalgo a dizer, mas para enunciar a experincia-limite de que justamente jno h mais nada a dizer. Essa fraseologia vinha de longe, pelo menos (enoutra chave) desde os tempos em que Malraux via nas telas de Manet pin-tura sobre pintura. Bataille e congneres acrescentaram-lhe opathossubli-me da transgresso. Barthes e aNouvelle Critiqueforneceram-lhe um su-plemento cientfico, cabendo enfim a Foucault redigir a Suma desse ltimosobressalto modernista,Les Mots et les Choses. Arrematando os momen-tos de apogeu retrico do livro com breves incurses regio mais remota

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    em que a linguagem reencontra o seu ser bruto, Foucault dava a entenderque tambm estava balizando uma espcie de histria subterrnea de inven-

    o da Literatura, cujo marco zero recuaria at Mallarm para depois saltarat a linha de frente da mais perfeita experimentao telquelista - derradei-roptard mouill de uma vanguarda h tempo desativada, como atestammodelos inverossmeis como um Raymond Roussel ou tal pgina retardat-ria de Maurice Blanchot. Mas naquele derradeiro arranco contava menos ainviabilidade artstica de tais obras terminais do que as alegaes que deve-riam ilustrar, a comear pelo livro-manifesto de Foucault acerca do nadasemntico em torno do qual girava o discurso literrio. Deixando-se envol-ver pelo panorama entreaberto por Foucault (verdadeiro mito de origemacerca da preeminncia moderna da forma), compreende-se que Lebrun,fechando o crculo, tenha finalmente atinado com o destino que esperavaseu tema. Afinal as leituras hegelianas de Mallarm no estavam abundan-

    temente documentadas? Pois agora ficaramos sabendo que a palavra poti-ca que enunciava labsente de tous bouquets, minando a presena plenado mundo, tinha a mesma idade arqueolgica do contradiscurso hegeliano.Assim, sem precisar forar muito a nota, Lebrun foi empurrando a autono-mia do discurso filosfico moderno, um discurso sem territrio personifi-cado superlativamente pela dialtica hegeliana - como antes, de maneiramais branda pela livre Reflexo das filosofias transcendentais -, at os con-fins da Literatura que por definio (francesa) s vem ao mundo uma vezrompida a barreira ilusionista da figurao. Quem diria? Hegel no lbumde famlia da Ideologia Francesa. Antes de tirar o chapu, admiremos tam-bm, na sua justa e espontnea ambivalncia, o humor (nunca se sabe at

    que ponto calculado) dessa reconciliao intempestiva.

    ***

    Como ficamos? Sendo a Histria da Filosofia aquilo que se sabe, noespanta que num certo sentido continussemos na mesma. A demonstraode que a dialtica hegeliana tinha a mesma idade discursiva do momento

    filosfico francs - cuja certido de nascena no obstante era a rupturaespalhafatosa com asfadaisesda dialtica humanista do perodo anterior -

    esgotava-se em si mesma. O paradoxo valia por certo como prova de atuali-dade, mas como todos nadavam a favor da corrente, o assunto estava encer-rado. Nem mesmo se chegou a colocar a questo do que fazer com a dial-tica assim entendida. Numa palavra, uma gageure sustentada de ponta aponta, porm sem futuro.

    Dezesseis anos depois uma reviravolta do pr ao contra? Quanto aofundo, de modo algum. Como ficou dito, todo o mal que a nova intelignciapensava da dialtica e seus derivados, Lebrun tambm pensava, simples-mente decidira apresentar o seu requisitrio apenas depois de exp-la emfuncionamento na fora da idade, alis atualssima. Pode-se por certo lasti-mar, mas no seria correto falar numa simples recada a propsito desseretorno rotina do Hegel cristo e metafsico. De resto, fora anunciado ao

    longo do livro, embora discretamente, que se estava reservando a questoespinhosa do Sistema - como uma polmica em princpio sem a menor in-teno de cincia podia ser ao mesmo tempo a exposio do sistema-da-verdade? - para um estudo posterior, que sabemos qual e j devia estarquase pronto naquela mesma poca. Alm do mais, ficara acintosamentesem resposta a mais corriqueira objeo (coisa que o Prof. Lebrun no po-deria fingir ignorar por muito tempo): qualquer estudante sabe que Hegelno passara a vida fechado em copas (ou cuidando exclusivamente de ques-tes de mtodo, o que d no mesmo), mas opinava sistematicamente sobretudo - se havia algum que de fato falara sobre Deus e sua poca, fora elemesmo. Chegaria portanto o momento de redefinir o nada sobre o qual a

    dialtica hegeliana tambm baseara a sua causa, e no qual tantos leitoresotimistas apostaram todas as suas fichas.

    Para comear, voltando a distinguir o que Hegel nunca confundira,apenas enigmaticamente articulara, o momento negativo da dialtica e opositivo-racional, que vem a ser a instncia final do arremate especulativo.O cenrio familiar: nada deu tanta dor de cabea esquerda hegeliana,interessada em isolar o Mtodo, este sim revolucionrio, do Sistema con-servador, quanto essa encruzilhada desconcertante. Ora, a primeira coisaque se aprende na escola (francesa de histria da filosofia) a evitar essas

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    mutilaes. Mesmo assim so essas as cartas que Lebrun gosta de baralhar. primeira vista, no que mais se aplicava o livro de 72 seno em flertar com

    aquele lugar-comum, expurgando o lixo doutrinrio e retendo apenas a li-o do Mtodo? Por pura provocao, est claro. Em lugar da lgebra darevoluo com a qual sonhava, depois da alem, a linhagem radical daintelligentsiarussa oitocentista, uma subverso sinttica que em princpiodesbancava as promessas da primeira, um abalo ssmico propagando-se atra-vs da escrita de vanguarda e outros descentramentos - em lugar de Heine eAlexander Herzen, Philippe Solers e Kristeva. Torno a repetir que Lebrunsubscrevia o credo parisiense da revoluo pela linguagem sem no entantojamais transigir com as facilidades do jargo que o alimentava. Limitava-sea aclimatar aquela substituio de radicalismos aos hbitos da escola men-cionada, acalmando as conscincias agradecidas pelo aggiornamentosemconcesses.

    Feita a ressalva depois de registrada a sensao familiar de que nossoAutor poderia estar ressuscitando - por certo com ms intenes - uma ve-lha tbua de salvao do pensamento progressista, voltemos manobra dealto bordo que consiste em devolver o hegelianismo retaguarda do Oci-dente depois de uma curta porm necessria temporada nos postos avana-dos da vanguarda. Como ficou dito, a aparente marcha r precisava pri-meiro distinguir para depois fundir num s bloco a cara feia do verdadeiroHegel, advogado das foras reativas, das coisas de no, como diria o poeta.Ateno portanto: o hegelianismo no se reduz dialtica, sua ltima pala-vra positiva e proferida na hora especulativa da totalidade reconstruda; emais, justamente nessa hora grave da teologia integral - ou do mais

    deslavado integrismo - que se fecha o ciclo negativo das dialticasaniquiladoras que o filsofo especulativo nos fez percorrer. No foi certa-mente por acaso que Lebrun - embora na forma ps-datada de uma revolu-o discursiva - trouxe para o primeiro plano o lado exerccio ctico eniilizante da dialtica, correndo o risco sem dvida calculado de estenderindevidamente ao conjunto do pensamento hegeliano a patologia da nega-o indeterminada, que este ltimo isolara como quem isola um vrus desdea Introduo da Fenomenologia. Desnecessrio frisar a esta altura queLebrun, melhor do que ningum, sabia que a dialtica negativa, como o

    prprio Hegel denominava a existncia bruta dela, no era toda a Dialtica,que a negao enfim comportava sempre uma segunda negao e que esta,

    sem transformar a primeira numa miragem, tinha o condo de converterperdas em ganhos. Da ocoup de thtrepremeditado por Lebrun precisarapresentar-se como a sbita revelao de um contgio progressivo, o vrusdo niilismo inoculado pela dialtica alastrando-se at contaminar todo osistema. A rigor, as etapas da metamorfose da dialtica, a demonstraopasso a passo de que o avesso de um discurso de vanguarda que por issomesmono d em nada justamente uma estratgia crist nadificante, nose desenrola sob nossos olhos: ela j se consumou quando abrimos o segun-do volume. Sobram quando muito alguns alinhavos da alta costura que uma verdadeira dissertao francesa, do tipo: o quepodia parecersubver-so,era na verdadea transfigurao, a manifestao, a explicitao etc., deum princpio, de uma totalidade etc., de cujosagissementsno se pode evi-

    dentemente esperar nada de bom etc. Convenhamos que o arrombamentodessa enorme porta aberta o preo pago pela amputao drstica a que oprimeiro livro devia sua fora inventiva. No esta que falta ao segundo,at porque o que no falta nele so argumentos novos em defesa de uma tesetradicional. O mais atraente deles o que melhor ilustra essa inverso desinal do niilismo por trs dos bastidores - pois afinal isso o que se passade um livro ao outro.

    Mesmo para um leitor de boa vontade, nada mais desconcertante eacabrunhador do que a filosofia hegeliana da histria. Por outro lado, no a histria-do-mundo a viga mestra da tradio hegeliana, a prpria mquinado mundo em pessoa - e uma das maiores fixaes doutrinrias do marxis-

    mo filosofante, tanto assim que embora lhe reconhea o fundo de fabulaoespeculativa no consegue se desvencilhar da tentao recorrente de reedit-la? Admiremos novamente o que ainda pode a histria (francesa) da filoso-fia, nas mos de um dos seus maiores mestres: Lebrun no s encontrouuma frmula que especifica aquele mal-estar, mas consegue juntar as duaspontas do seu argumento contra-hegeliano enquanto martela a idia fixa deque falvamos, servindo sem querer causa dos que gostariam de se livrardaquele atraso de vida, mas no a troco de sucedneos. Mitologia por mito-logia, ao que parece ficamos na mesma trocando aHistoria ancilla theologiae

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    (de Santo Agostinho a Hegel) pela inocncia do devir que em princpioela teria recalcado, ou o Esprito-do-Mundo, pelo Eterno Retorno do Mes-

    mo. bem verdade tambm que ao dinamitar a Weltgeschichte Lebrun d aboa notcia para um pblico blas, acostumado a fazer pouco das filosofiasda histria desde os tempos em que Lvi-Strauss encarou Sartre no ltimocaptulo daPense Sauvage. - O que mais constrange, sobretudo quem ain-da no tem a sensibilidade embotada do profissional, nasLies sobre aFilosofia da Histria Mundialno a habitual complicao conceitual, nestecaso at bem rara, mas a sensao desoladora de estar lendo um livro que jnasceu velho, no s quando comparado com o que havia de mais vivo nahistoriografia da poca (pensemos nos historiadores franceses que estrea-ram sob a Restaurao), mas no que sabia qualquer jornalista ingls oufrancs (ainda mais quando socialista) acerca dos grandes temas da atuali-dade, entre eles a Revoluo de Julho, abordado nas ltimas pginas das

    Lies, mesmo descontando-se o fato de que se tratava apenas de um pro-fessor de filosofia, ainda por cima alemo. Sem tomar esse rumo, muito aocontrrio, Lebrun corta pela raiz a possibilidade de tais comparaes,enfatizando em contrapartida a estranheza do discurso hegeliano sobre aHistria: nem narrativo, nem explicativo, em nenhum momento essa escritade estatuto epistemolgico indefinido pretendeu rivalizar seja com a crni-ca tradicional, seja com o conhecimento histrico propriamente dito, fazerda Histria-do-Mundo uma super-intriga ou apresentar-se como um sa-ber superlativo. Completemos: os grandes enunciados desse discurso tam-bm operam por assim dizer no vazio,mas como no se referem a nada, nolevam a nada. S que agora esse nada epistemolgico - no qual se detivera,

    sem nome-lo por extenso, a Pacincia do Conceito - toma corpo numacons-telao de formas meio-conceituais meio-imaginativas chamadaWeltgeschichte, numa palavra, ganha uma significao precisa, ou melhor,esse nada com sinal trocado a sombra projetada por uma espcie de buscafilistina do sentido a todo custo (igual a segurana). Produo desenfrea-da de sentido enquanto justificao (no caso, do acontecimento): esse otrao mais saliente do niilismo que Lebrun traz de volta, invertendo-lhe osinal, como se disse. O ncleo do argumento reunificado poderia ento serparafraseado mais ou menos como segue. Assim como a manifestao do

    Absoluto - o Sistema-da-Verdade que a redescoberta da dialtica negativano poderia pura e simplesmente cancelar - o avesso disciplinador (na

    acepo que o termo adquiriu com Foucault) do discurso ultra-iluministaem que as determinaes tradicionais do pensamento figurativo confessama prpria nulidade, do mesmo modo a Histria Mundial, que nada edifica etudo devasta (no nos esqueamos de que algumas interpretaes do con-ceito hegeliano de histria principiam por uma meditao sobre as runas),tambm produz um sentido superior acumulando escombros, sobras da his-tria, montes de tijolos recobertos por um sentido que escolheu o sofri-mento como o seu portador.

    O achado no est por certo na ressurreio dos temas teolgicos. Ondeento? Salvo engano, num conjunto de aproximaes que dispensam taisreferncias, e por isso do o que pensar. Se fato que a Weltgeschichtehegeliana, longe de ser o sal da terra, a exposio completa da atividade

    nadificante do Esprito-do-Mundo, por que no retardar um pouco o des-fecho previsvel e sondar ainda a quente o terreno recm desobstrudo? Nomagma de formas meio-conceituais meio-imaginativas em que se decom-pe o enigma especulativo do Esprito-do-Mundo, sobretudo caracterizadoagora em sua atuao de maneira to moderna, deve haver certamente algomais do que Teologia, Primeiro Motor Imvel, a culpabilizao do devirinocente condenado a justificar-se etc. - Intil prosseguir pois vejo que es-tou simplesmente pedindo o impossvel a Lebrun, que retroceda ao primei-ro movimento de sua demonstrao: imagino que o autor de A Pacincia doConceito, mesmo pensando na revelao de Deus como Esprito, no anun-ciaria to rapidamenteque s esta megaentidade (alm do mais grega de

    nascena) se manifesta devastando e destruindo. Mas isto j uma outrahistria.

    Abstracts: This article discusses interpretative differences between LebrunsLa patiente du con-cept(Paris, 1972) andO Avesso da Dialtica(So Paulo, 1988), two books dedicated to the lectureof Hegels philosophy.Key-words: dialectic - hegelianism - history of philosophy

    Arantes, P.,discurso (22), 1993: 153-165 165164 Arantes, P.,discurso(22), 1993: 153-165