CYRO PEREIRA Luciana Sayure Shimabuco

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    Um olhar comparativo entre duas propostas de edição do Estudo Rítmico n.3 para piano solo de Cyro Pereira 

    Luciana Sayure Shimabuco1 

    [email protected] 

    Resumo: Este artigo expõe os resultados parciais do projeto de edição da obra integral parapiano solo de Cyro Pereira e, para tanto, apresenta duas edições do  Estudo Rítmico n. 3,composto em 1963. Após a abordagem de aspectos musicais da obra, expõe as escolhaseditoriais que, fundamentadas em procedimentos analíticos, contribuíram para a definição daedição crítica na solução de equívocos e ambiguidades detectados nos documentos levantados.

    Palavras-chave: Cyro Pereira; piano; edição crítica; Estudo Rítmico n. 3.

    Abstract: This article brings the partial results obtained through the editing process of Cyro

    Pereira's complete works for piano solo and, for that, it presents two editions of the  Estudo Rítmico n. 3, composed in 1963. Following the approach of musical aspects of the piece, itexhibits the editorial choices which, based on analytical procedures, have contributed for thedefinition of the critical edition in the solution of mistakes and ambiguities detected in thedocuments considered.

    keywords: Cyro Pereira, piano, critical edition, Estudo Rítmico n. 3. 

    IntroduçãoA obra para piano solo de Cyro Pereira compreende um total de 40 peças compostas

    entre 1948 e 2001 e organizadas em 16 peças avulsas e 24 peças reunidas em 6 ciclos. Este

    repertório percorre toda a trajetória do compositor, bem como revela fortes características eelementos tanto da tradição musical erudita quanto de gêneros da música popular urbana,apresentando um vocabulário harmônico que remete ao romantismo musical tardio, comconstantes processos modulatórios, e a sonoridades oriundas da música jazzística e de gênerosnacionais como o choro e a valsa brasileira.

    Se o repertório sinfônico e camerístico do compositor tem sido divulgado por meio deconcertos e gravações, a sua produção para piano permanece desconhecida, fato que emergecomo justificativa primeira ao projeto de edição da sua obra para piano, com o objetivo dedisponibilizar um texto musical fiel às intenções do compositor, acompanhado de aparatocrítico que – fundamentado em procedimentos analíticos – justifique as intervenções editoriais

    que se fizeram necessárias.

    O projeto de edição acatou como principal referencial teórico a tese de doutorado“Editar José Maurício Nunes Garcia”, defendida em 2000, na UNIRIO. Esta tese, ainda queaborde um compositor de contexto histórico e musical muito distinto do abordado por esteprojeto, oferece precisas informações acerca de metodologias para estabelecimento de textos,de dificuldades inerentes a este processo, bem como de distintas propostas de edição.

    Os procedimentos de edição das peças para piano seguiram caminhos muitosemelhantes no que concerne localização, identificação e estudo das fontes, bem como

    1 Professora Doutora dos programas de Graduação e Pós-Graduação do Departamento de Música da ECA-USP.O presente trabalho resulta de projeto de pesquisa apoiado pelo CNPq.

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    compartilharam os mesmos critérios de editoração. No entanto, o Estudo Rítmico n. 3 assumiuuma trajetória diferenciada, por isso acatado como objeto do estudo que se segue.

    O Estudo Rítmico n. 3: aspectos musicais

    Os três  Estudos Rítmicos2

      para piano solo foram compostos entre os anos de 1960 e1963, período no qual a atividade composicional de Cyro Pereira assumiu maior fôlego pormeio da produção de obras para diversas formações instrumentais, tais como a Suíte

     Brasiliana n. 1 para orquestra (1962), o Quarteto de cordas n. 1 (1964), a Sonata para violinoe piano (1964) e a Fantasia para piano e orquestra (1963), obra esta premiada pela AcademiaBrasileira de Música.

    A proposta rítmica destes estudos é a exploração de polimetrias e polirritmias,geralmente conjugadas a um elemento ostinato. Assim, já no início do  Estudo Rítmico n. 3,são observadas polimetrias envolvendo as duas mãos do pianista, tal qual se observa nasobreposição dos metros 3/4 e 6/8. Quanto às polirritmias, encontram-se os seguintes

    exemplos: 4:3 (figura 2 – comp.22), 3:2 (figura 2 – comp.34), 7:6 (figura 2 – comp.51) e 7:3(figura 2 – comp.59).

    As configurações harmônicas e melódicas se fundamentam prioritariamente sobre omodo lídio, definido já no ostinato que percorre toda a peça e resulta da justaposição de duastríades maiores arpejadas em uma distância de 2ª.maior. No entanto, a esse lídio apresentadopelo ostinato da mão esquerda o compositor sobrepõe – na mão direita – o mesmo lídio,porém com a 5ª. elevada, transformado no terceiro modo da escala menor melódicaascendente. Essa sobreposição gera sempre uma relação cromática, resultante justamente doconflito entre a 5ª. justa e a 5ª. aumentada, tal qual pode ser observado entre as notas  fá (mãoesquerda) e fá# (mão direita) dos compassos 14 e 15 da figura 2. Outras estruturas escalaressão ocorrentes, mas a sonoridade deste modo lídio, sempre com este embate entre duas 5ªs.,perpassa toda a peça.

    Formalmente, a peça não transcorre de forma seccionada, já que propõe um discursocontínuo garantido pelo ostinato quase ininterrupto, bem como pela recorrência de umelemento escalar ascendente que assume status temático, denominado de elemento melódico(figura 2 – comp.14-21). Na introdução o ostinato é aos poucos configurado, por meio doacréscimo gradativo de notas, em um processo que se inicia com uma única nota e se estendeaté a emergência total do ostinato. Este procedimento é retrogradado no final da peça, em umacoda que submete o ostinato a um decréscimo gradativo de notas.

    Sobre as opções editoriais no Estudo Rítmico n. 3Por este projeto acatar a obra de um compositor vivo, dificuldades recorrentes em

    processos de edição, tais como as que envolvem autenticidade e datação de documentos,foram minimizadas. Da mesma maneira, problemáticas de outras ordens, dentre as quaisequívocos e ambiguidades notacionais e variantes entre distintos documentos de uma mesmaobra, foram amenizadas pelas freqüentes consultas ao compositor.

    Durante a trajetória da edição do  Estudo Rítmico n. 3, um aspecto estabeleceu umproblema imprevisto no estágio em que a edição se encontrava. Dois documentos referentes a

    2 Dos Estudos Rítmicos, apenas os números 2 e 3 tiveram seus documentos localizados.

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    este  Estudo haviam sido localizados e catalogados durante o recenseamento: uma cópia fac-símile do primeiro autógrafo de 1963, cujo documento original não foi localizado, e umautógrafo da década de 1990. A edição foi então realizada acatando – por recomendação dopróprio compositor – o autógrafo da década de 1990 como documento-referência, ainda que ofac-símile do autógrafo de 1963 tenha sido recorrentemente consultado na solução de

    equívocos e ambiguidades notacionais.

    Com a edição já concluída e avalizada pelo compositor como definitiva, um terceirodocumento foi localizado: um apógrafo original da década de 1960, confeccionado pelocopista Hatto Schiniter sob supervisão do compositor. A análise deste novo documentorevelou escolhas composicionais distintas daquelas demonstradas pelos documentosanteriormente localizados, o que instigou a elaboração de uma segunda versão editorialfundamentada neste último documento catalogado.

    Posto isto, este artigo expõe as duas versões editoriais da obra, bem como aparatocrítico que apresenta e justifica as escolhas editoriais, em cada uma das versões, diante da

    detecção de equívocos e dubiedades notacionais nos documentos e de divergênciasencontradas entre as fontes.

    Salienta-se que as observações serão indicadas pelos números dos compassos aosquais se referem, seguidos – quando necessário – de número referente ao tempo. Assim, 2indica “compasso 2”, e 2.3 indica “compasso 2, 3º tempo”. Passagens que envolvam mais deum compasso serão indicadas pelos números referentes aos compassos de início e de término.Assim, 23-25 indica “do compasso 23 ao 25”.

    As abreviaturas empregadas estão abaixo listadas:• Doc.1: documento 1, referente à cópia fac-símile do primeiro autógrafo de 1963• Doc.2: documento 2, referente ao autógrafo da década de 90• Doc.3: documento 3, referente ao apógrafo de 1963• m.d.: mão direita• m.e.: mão esquerda• comp.: compasso (s)• c.a.: correções autógrafas, inseridas pelo compositor nas cópias impressas geradaspela pesquisa

    Versão Editorial 1 - Estudo Rítmico n. 3

    Esta versão foi elaborada a partir dos documentos 1 e 2, tendo sido este último acatadocomo documento-referência por recomendação do compositor.

    30-33/m.d.: Doc.1 traz a nota dó sustentada dos comp. 30-33, ao passo que, em Doc.2, esta nota ocorre apenas no comp. 30. Esta versão acata a opção proposta por Doc.1 (c.a.).

    34-41/m.d.: em Doc.1, esta passagem repete literalmente os comp. 14-21 dos Doc.1 e2. Optou-se pela inserção das quiálteras que constam em Doc.2, a qual proporciona variedadena apresentação do elemento melódico.

    48-51/ m.d.:  foi inserida a nota dó  sustentada, tal qual a passagem dos comp. 30-33

    (c.a.).

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    Fig. 2: Estudo Rítmico n. 3, versão 1 

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    Versão Editorial 2 - Estudo Rítmico n. 3Esta versão foi elaborada a partir dos documentos 1, 2 e 3, tendo sido este último

    acatado como documento-referência. Observa-se inicialmente que, em Doc.3, o andamentometronômico indicado pelo compositor estabelece 116 para a mínima pontuada. Trata-se deum andamento não factível, o que leva a crer em um equívoco quanto à figura de valor

    adotada como referência de andamento. Com isso, entendemos que o andamento pretendidopelo compositor seja o de 116 para a semínima pontuada, o que implica na metade davelocidade. Este será o andamento adotado por esta versão.

    35-40/m.d.: nesta passagem, que representa a 2ª. exposição do elemento melódico, hádivergência entre os três documentos. Em Doc.1, a passagem é similar aos comp. 14-21,apresentada por meio de acordes em semínimas; em Doc.2, apresenta estes mesmos acordes,mas arpejados em tercinas (figura 2 – comp. 35-40); em Doc.3, a passagem se dá emcolcheias. Optou-se por Doc.3, favorecendo o aumento gradativo de densidade a cada vez queo elemento melódico é apresentado.

    57-66: esta passagem está grafada apenas em Doc.3, o que gera um acréscimo de 8compassos em relação a Doc.2 e de 11 compassos em relação a Doc.1. Optou-se pela inclusãodesta passagem por desenvolver o motivo apresentado na seção que tem início no comp.51, além de representar o ponto culminante da obra tanto em registro como em intensidade.

    75.3/m.d.: esta figuração de quatro semicolcheias alude ao motivo formado pelasnotas dó-fá#-sib, já exposto nos comp.52-57. Com isso, não foi acatada a opção proposta porDoc.3, a qual traz as notas sib-fá#-lá (figura 3).

    Fig. 3: Estudo Rítmico n. 3, comp. 75-80 (Doc.3)

    76-82/m.d.: em Doc.1 e 3, o elemento melódico assume uma configuração rítmicadistinta da proposta pela passagem equivalente no Doc.2 (figura 3). Embora o resultadosonoro seja virtualmente o mesmo, em decorrência do andamento rápido do estudo, a opção

    oferecida por Doc.2 foi a acatada por esta versão, pelo fato de as semínimas sugerirem umdestaque duracional e mesmo de intensidade que proporciona um sutil recurso de variação.

    84-85/m.d.: em Doc.2 (figura 2 – comp. 76-77), um fragmento do elemento melódicoé apresentado em arpejos tercinados. Optou-se pela solução apresentada em Doc.1 e 3, com aapresentação deste fragmento por meio de acordes em semínimas, resguardando o recurso datercina para a última exposição do elemento melódico. 

    85.3/m.d.: A passagem dos compassos 84-87 apresenta o elemento melódico em réblídio, sem a 5ª elevada, isto é, com o láb. Optou-se por Doc.1 e 2 (figura 2 – comp. 76),substituindo o láb por lá bequadro e mantendo a alteração da 5ª proposta em todas as

    apresentações do elemento melódico.

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    89.2/m.e.: em Doc.1 e 2, o ostinato mantém sua configuração original. No entanto, emDoc.3, este ostinato é submetido a uma alteração rítmica, por meio da inserção de duína.Optou-se por esta alteração rítmica, a qual oferece uma pontuação que valoriza o retorno doelemento melódico no compasso 90.

    90-97/m.d.: em Doc.1 e 2, a 3ª exposição do elemento melódico ocorre em semínimas(figura 2 – comp. 82-89). Optou-se por Doc.3, que propõe a exposição deste elemento pormeio de arpejos tercinados e favorece o aumento gradativo de densidade a cada exposição doelemento melódico. Esta versão propõe uma notação diferenciada daquela utilizada em Doc.3,como demonstra as figuras 4a e 4b.

    Fig. 4a: Estudo Rítmico n. 3, comp. 91-92 (Doc.3)

    Fig. 4b: Estudo Rítmico n. 3, comp. 90-91 (versão2)

    121-126:  Doc.3 traz, como elemento conclusivo da peça, ágeis figurações arpejadasascendentes (figura 5). Por solicitação do compositor, estas figurações foram excluídas nestaversão (c.a.).

    Figura 5: Estudo Rítmico n. 3, comp. 121-126 (Doc.3) 

    Fig. 5: Estudo Rítmico n. 3, comp. 121-126 (Doc.3)

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    Fig. 5: Estudo Rítmico n. 3, versão 2 

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    Considerações FinaisO estudo dos documentos localizados por esta pesquisa evidencia que, apesar de seu

    métier composicional, Cyro Pereiraproduziu textos musicais com pontos inconsistentes no que se refere a clareza e

    precisão na notação, já que todos os documentos levantados apresentam informações

    contraditórias, ambíguas ou incompletas, bem como equívocos notacionais. Muitas destasdubiedades foram detectadas por meio de procedimento analítico, reconhecidas comoelementos incoerentes à configuração rítmica, motívica e harmônica da peça.

    A opção por se realizar uma segunda versão editorial, fundamentada no terceirodocumento localizado (cuja data de confecção é anterior à do documento acatado comoreferência na primeira versão editorial) ressalta a preocupação em se desprender dopreconceito evolucionista, contra o qual alerta Maria Caraci Vela ao apontar que “a existênciade diversas redações do autor não atesta, necessariamente, um caminho do ‘pior’ para o‘melhor’, do insatisfatório ao definitivo” (Apud Figueiredo 2000:25).

    Sobretudo, o fato de a segunda versão – a qual se originou da descoberta de umdocumento quando a primeira versão já estava concluída e abonada pelo compositor – tersido, por fim, considerada por Cyro Pereira como a mais fiel às suas intenções, suscita aquestão sobre até que ponto uma edição pode ser considerada definitiva, já que apossibilidade de descoberta de um documento deixa uma via sempre aberta ao surgimento denovos dados acerca das decisões composicionais.

    Fig. 7: Compassos inicias do  Estudo Rítmico n. 3. Cópia impressa autorizada e assinada pelocompositor

    Referências bibliográficasFIGUEIREDO, Carlos Alberto. Editar José Maurício Nunes Garcia. Doutorado, Música, UNIRIO, 2000.MONTEIRO, Eduardo Henrique Soares.  Edição crítica do Quintetto op. 18 de Henrique Oswald.  Livre

    docência, USP, 2009.PERPÉTUO, Irineu. Cyro Pereira, maestro. São Paulo: DBA, 2005.SHIMABUCO, Luciana Sayure.  Dá Licença, Maestro: a trajetória musical de Cyro Pereira.  Dissertação de

    Mestrado defendida na Universidade Estadual de Campinas. Campinas: 1998.