CURSO DE DIREITO DO TRABALHO - Maurício Godinho Delgado - Completo

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CURSO DIRETO DO TRABALHO Mauricio Godinho Delgado LIVRO 1 INTRODUÇÃO E PARTE GERAL CAPÍTULO I CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO I. INTRODUÇÃO O Direito do Trabalho é ramo jurídico especializado, que regula certo tipo de relação laborativa na sociedade contemporânea. Seu estudo deve iniciar-se pela apresentação de suas características essenciais, permitindo ao analista uma imediata visualização de seus contornos próprios mais destacados. É o que será feito neste primeiro capítulo deste Curso: aqui serão estudados tópicos como definição, denominação, conteúdo e função do Direito do Trabalho. Serão examinadas, também, a área do Direito em que ele se situa e a divisão interna que caracteriza o ramo justrabalhista. Em seguida (Capítulo II), serão examinados os traços que envolvem a relação desse ramo especializado com o conjunto geral do Direito. Trata-se de problemas como: autonomia do Direito do Trabalho, seu posicionamento no plano jurídico geral (natureza jurídica) e, finalmente, suas relações com outros ramos do universo do Direito. Firmada uma consistente visão característica do Direito do Trabalho, o analista passará, então, à

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A C R D O

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CURSO DIRETO DO TRABALHO

Mauricio Godinho DelgadoLIVRO 1

INTRODUO E PARTE GERAL

CAPTULO I

CARACTERIZAO DO DIREITO DO TRABALHO

I. INTRODUO

O Direito do Trabalho ramo jurdico especializado, que regula certo tipo de relao laborativa na sociedade contempornea. Seu estudo deve iniciar-se pela apresentao de suas caractersticas essenciais, permitindo ao analista uma imediata visualizao de seus contornos prprios mais destacados.

o que ser feito neste primeiro captulo deste Curso: aqui sero estudados tpicos como definio, denominao, contedo e funo do Direito do Trabalho. Sero examinadas, tambm, a rea do Direito em que ele se situa e a diviso interna que caracteriza o ramo justrabalhista.

Em seguida (Captulo II), sero examinados os traos que envolvem a relao desse ramo especializado com o conjunto geral do Direito. Trata-se de problemas como: autonomia do Direito do Trabalho, seu posicionamento no plano jurdico geral (natureza jurdica) e, finalmente, suas relaes com outros ramos do universo do Direito.

Firmada uma consistente viso caracterstica do Direito do Trabalho, o analista passar, ento, retrospectiva de sua evoluo histrica, quer no mundo ocidental (Captulo III), quer no Brasil (Captulo IV).

Estes quatro captulos, portanto, completam a apresentao inicial ao leitor desse ramo jurdico especializado, o Direito do Trabalho.

II. DEFINIO

Definir um fenmeno consiste na atividade intelectual de apreender e desvelar seus elementos componentes e o nexo lgico que os mantm integrados. Definio , pois, a declarao da estrutura essencial de determinado fenmeno, com seus integrantes e o vnculo que os preserva unidos.

Na busca da essncia e elementos componentes do Direito do Trabalho, os juristas tendem a adotar posturas distintas. Ora enfatizam o Direito Material do Trabalho, compreendendo o Direito Individual e o Direito Coletivo e que tende a ser chamado, simplesmente, de Direito do Trabalho, no sentido lato , pode, finalmente, ser definido como: complexo de princpios, regras e institutos jurdicos que regulam a relao empregatcia de trabalho e outras relaes normativamente especificadas, englobando, tambm, os institutos, regras e princpios jurdicos concernentes s relaes coletivas entre trabalhadores e tomadores de servios, em especial atravs de suas associaes coletivas.Como o leitor j percebe, h certa diviso interna ao Direito do Trabalho, englobando o segmento do Direito Individual e o do Direito Coletivo, que podem (ou no) ser considerados separadamente. Esta diviso, contudo, ser mais bem examinada no item VII do presente Captulo.

III. DENOMINAO

A denominao Direito do Trabalho tornou-se hegemnica no plano atual dos estudos jurdicos; est consagrada na doutrina, na jurisprudncia e tambm nos inmeros diplomas normativos existentes na rea.

Em conseqncia, o presente estudo ganha certo sabor rememorativo, voltado, essencialmente, a relembrar os diversos eptetos que, em momentos histricos anteriores, j tentaram disputar preferncia para a designao do ramo jurdico especializado em anlise. De todo modo, este estudo contribui tambm para tornar mais claras certas caractersticas prprias ao Direito do Trabalho.

Nesse quadro, o ramo jurdico em anlise j recebeu diferentes denominaes desde o incio de sua existncia, no sculo XIX, a par da hoje consagrada Direito do Trabalho. Trata-se, principalmente, de: Direito Industrial, Direito Operrio, Direito Corporativo, Direito Sindical e Direito Social. Nenhum desses eptetos alternativos, contudo, prevaleceu ou afirmou-se hegemonicamente no tempo, certamente em face de cada um deles apresentar tantos ou mais problemas e insuficincias quanto os perceptveis no consagrado ttulo Direito do Trabalho.

O designativo Direito Industrial claramente inadequado para espelhar o preciso objeto a que pretende se referir. Influenciado pela circunstncia de que este ramo jurdico especializado surgiu, nas primeiras experincias europias, efetivamente vinculado dinmica da crescente industrializao capitalista, o epteto, porm, sob certa tica, muito mais amplo do que o fenmeno a que quer referir-se. De fato, na expresso Direito Industrial est sugerida a presena de regras, institutos e princpios que no se circunscrevem propriamente rea justrabalhista, interessando tambm ao Direito Comercial e Direito Econmico (por exemplo, invenes, patentes, relaes tecnolgicas, etc.).

H uma segunda inadequao neste superado ttulo: ao mesmo tempo em que se mostra excessivamente amplo (sugerindo relaes de Direito Econmico ou Comercial), ele tambm se mostra, por outro lado, incapaz de captar todo o vasto conjunto de relaes justrabalhistas, que se estabelecem e desenvolvem-se por muito alm do estrito segmento industrial, abrangendo, tambm, ilustrativamente, os enormes setores tercirios e primrios da economia. Ao fixar, desse modo, em um setor econmico, a indstria, o critrio de escolha de sua denominao o nome Direito Industrial lanou enganosa pista acerca do ramo jurdico que pretendia identificar, comprometendo sua prpria existncia como denominao desse segmento jurdico.

A expresso Direito Operrio tem histria e destino semelhantes aos do epteto anterior. Tambm influenciada pela circunstncia de que o Direito do Trabalho, de fato, originalmente surgiu no segmento industrial capitalista, envolvendo, portanto, relaes entre operrios e empregadores, este nome elegeu como critrio para identificao do novo ramo jurdico o tipo especfico de empregado da indstria, o operrio. Ao incorporar tal critrio, esta segunda denominao tambm iria mostrar-se inadequada identificao do objeto a que pretendia se referir. Na verdade, de um lado, reduzia o fenmeno amplo e expansionista do Direito do Trabalho a seu exclusivo segmento original, o operariado (e logo, indstria); de outro lado, enfocava preferentemente o novo ramo jurdico a partir somente de um de seus sujeitos (o empregado operrio), em vez de enfatizar a sua categoria nuclear, a relao jurdica empregatcia. As deficincias dessa expresso, em contraponto riqueza e amplitude do fenmeno que pretendia identificar, comprometeram sua utilizao pelos autores mais modernos desse ramo jurdico especializado.

A denominao Direito Sindical obviamente inadequada. Impressionada pela importncia das organizaes coletivas obreiras em certos modelos de (particularmente, o anglo-americano), a expresso veio reduzir toda a complexidade do fenmeno do Direito do Trabalho (inclusive do Direito Individual do Trabalho) ao papel cumprido por um dos agentes de construo e dinamizao desse ramo jurdico: os sindicatos. De todo modo, mesmo nas experincias justrabalhistas de normatizao autnoma, no h como eliminar-se o fato de que a relao jurdica nuclear do Direito Individual passa-se entre empregado e empregador, ainda que comparecendo o sindicato como importante interveniente. A inadequao desse terceiro nome ainda mais clara quando se percebe que, mesmo nos modelos mais autoritrios de gesto trabalhista (onde o sindicato no cumpre papel de destaque), continua a existir um complexo universo de regras, institutos e princpios justrabalhistas regendo as relaes de emprego na sociedade respectiva.

A expresso Direito Corporativo tambm flagrantemente inadequada. Tornou-se comum durante as experincias juspolticas autoritrias prevalecentes na Europa do entre-guerras do sculo XX, em especial o fascismo italiano. O nome, na verdade, construiu-se mais como instrumento de elogio ao tipo de modelo de gesto sociopoltica a que se integrava do que vinculado preocupao cientfica de identificar, com preciso, o objeto a que se reportava. De todo modo, a idia de corporao apenas dissimulava a relao sociojurdica nuclear desenvolvida no estabelecimento e na empresa (a relao de emprego), no traduzindo, portanto, com adequao, o aspecto cardeal do ramo jurdico especializado do Direito do Trabalho. Comprometido com o iderio e prticas autoritrias do regime poltico a que servia, esse ttulo e eclipsou-se na cultura justrabalhista to logo expurgada a experincia autocrtica fascista no findar da Segunda Guerra Mundial.

A denominao Direito Social, diferentemente das anteriores, mantm ainda relativo prestgio entre alguns autores do Direito do Trabalho. , contudo, nome destacado pela marca da ambigidade.

Do ponto de vista histrico, tal ambigidade apresenta-se em face de este epteto ter se fortalecido precisamente em contextos culturais de maior autocracia no que concerne ao modelo de gesto justrabalhista (como verificado nos experimentos corporativistas do Direito do Trabalho), embora ressurja modernamente associado tambm a propostas e crticas justrabalhistas de inspirao inquestionavelmente democrticas. Do ponto de vista terico, a ambigidade apresenta-se pela circunstncia de a expresso social traduzir, na verdade, caracterstica atvica a qualquer ramo jurdico, no podendo, desse modo, identificar com singularidade um nico deles. Ainda que se argumentasse que certos ramos tm contedo social maior do que outros (o Direito do Trabalho em contraposio ao civilista Direito das Obrigaes, por exemplo), no se poderia, em contrapartida, negar que tal caracterstica no exclusiva do ramo juslaboral, hoje. Observe-se que o contedo social do Direito do Consumidor ou do Direito Ambiental no seguramente inferior quele inerente ao Direito do Trabalho.

De todo modo, seja por sua dubiedade terica, seja por sua perigosa dubiedade histrica, no parece conveniente insistir-se na expresso Direito Social para designar-se o complexo unitrio de regras, institutos e princpios jurdicos que demarcam o Direito do Trabalho.

Est, portanto, consagrada a prevalncia da expresso Direito do Trabalho para identificar esse ramo jurdico especializado surgido no sculo XIX.

Reconhea-se, porm, que a expresso no perfeita. Afinal, a palavra trabalho refere-se a objeto mais amplo (trabalho autnomo, por exemplo) do que o objeto prprio ao ramo justrabalhista, que regula, basicamente, o trabalho empregaticiamente contratado. Sob esse enfoque, a expresso Direito Empregatcio talvez fosse mais precisa.

Entretanto, ainda assim, mesmo do ponto de vista terico, deve-se preservar o epteto Direito do Trabalho. que, de um lado, o trabalho empregatcio constitui a mais relevante modalidade de relao trabalhista lato sensu existente no mundo contemporneo, justificando-se, pois, que a espcie mais importante oferte o designativo cabvel ao prprio gnero (procedimento, alis, muito comum na linguagem). De outro lado, a tendncia expansionista do Direito do Trabalho tem estendido suas normas a categorias de prestadores de trabalho que no so, tecnicamente, empregados (como ocorre com o trabalhador avulso). Nesse contexto de expanso, o empregado mantm-se como a figura central da normatividade justrabalhista, embora no possa mais ser considerado o nico tipo de trabalhador abrangido pelo ramo jurdico especializado a que deu origem.

IV. CONTEDO

Todo sistema consiste em um conjunto de partes coordenadas, que se articulam organicamente, formando um todo unitrio. No obstante formado por um complexo de partes componentes, qualifica-se todo sistema por ter uma categoria bsica, que lana sua marca especfica e distintiva ao conjunto do sistema correspondente.

O Direito do Trabalho, como sistema jurdico coordenado, tem na relao empregatcia sua categoria bsica, a partir da qual se constroem os princpios, regras e institutos essenciais desse ramo jurdico especializado, demarcando sua caracterstica prpria e distintiva perante os ramos jurdicos correlatos.

O contedo do Direito do Trabalho molda-se tambm a partir dessa sua caracterstica sistemtica especfica. Assim, ser em torno da relao empregatcia e de seu sujeito ativo prprio, o empregado que ser firmado o contedo principal do ramo justrabalhista. Sob esse ponto de vista, o Direito do Trabalho despontar, essencialmente conforme j falavam Hueck e Nipperdey , como o Direito de todo e qualquer empregado. Este o contedo bsico desse ramo jurdico: todas as relaes empregatcias estabelecem-se sob sua normatividade. Esclarea-se, porm, que existem relaes empregatcias que, embora situando-se dentro do ramo justrabalhista, regulam-se por normatividade jurdica especialssima, distinta dos demais empregados (ou, pelo menos, muito mais restrita). E o que se passa com os empregados domsticos no Brasil.

Sob o ponto de vista de seu contedo, o Direito do Trabalho fundamentalmente, portanto, o Direito dos empregados, especificamente considerados. No , porm, o Direito de todos os trabalhadores, considerados em seu gnero. Excluem-se da rea de abrangncia desse ramo jurdico especializado, em conseqncia, inmeras categorias especficas de trabalhadores no empregatcios. Citem-se, ilustrativamente, os trabalhadores autnomos, os eventuais, os estagirios, alm do importante segmento dos servidores pblicos no empregaticiamente contratados (servidores sob regime administrativo).

H categorias de trabalhadores no empregados que ingressaram no Direito do Trabalho, no pela natureza de sua relao jurdica particular (que no empregatcia), porm em decorrncia de expressa determinao legal. No Brasil, h um exemplo desse tipo de situao especial: os trabalhadores avulsos. De fato, embora no sendo, tecnicamente, empregados, tm recebido, desde incio do sculo XX, a extenso do manto justrabalhista sobre suas relaes com seus tomadores de servios. Hoje, tal extenso est reconhecida pela Carta Magna (art. 7, XXXIV).

Sinteticamente, o Direito do Trabalho abrange todo e qualquer empregado (embora a categoria domstica seja absorvida neste ramo jurdico mediante normatividade especial e restritiva). Abrange ainda determinados trabalhadores que no so empregados, mas que foram legalmente favorecidos pelo padro geral da normatividade trabalhista (caso dos avulsos).

H, finalmente, uma situao singular no Direito do Trabalho brasileira: trata-se do pequeno empreiteiro (operrio ou artfice, segundo a linguagem da CLT).

De fato, o artigo 652, a, III, da Consolidao das Leis do Trabalho, fixa a competncia da Justia do Trabalho para conhecer e julgar causas propostas por esse pequeno empreiteiro contra o tomador de seus servios (dono da obra). Qual a extenso do dispositivo celetista: meramente processual ou, a um s tempo, com carter processual e tambm material trabalhista?

Parece claro, pela natureza da regra enfocada (art. 652, CLT, de ntido carter processual, fixando hipteses de competncia da Justia do Trabalho) que a inteno da lei foi de apenas viabilizar o mais simples acesso ao Judicirio a esse trabalhador autnomo humilde, franqueando-lhe o jus postulandi trabalhista e a singeleza das prticas processuais vigorantes no processo do trabalho. Evidentemente que a extenso de direitos materiais trabalhistas suporia texto legal ntido nesse sentido (como Ocorreu com o trabalhador avulso, ao contrrio do que se passa no citado artigo 652, CLT). que a equiparao, na prtica, da situao desse trabalhador autnomo modesto do empregado no poderia ser feita pela via dos artigos 2 e 3, CLT que firmamos elementos ftico-jurdicos da relao empregatcia ,j que inexiste, no mnimo, a subordinao no quadro da relao jurdica civilista estabelecida entre empreiteiro e dono da obra. A extenso expressa de direitos, em quadro de ausncia do complexo unitrio de elementos ftico-jurdicos da relao de emprego, teria de resultar, portanto, de comando legal especfico, independente do modelo jurdico fixado pelos artigos 2 e 3 da Consolidao.

Desse modo, no contexto hermenutico ora predominante, o pequeno empreiteiro tipificado pela CLT no considerado titular de direitos trabalhistas. Assim, pode pleitear na esfera judicial laborativa apenas os direitos civis inerentes a seu contrato civil pactuado com o dono da obra (preo, pagamento, etc.). Evidentemente que, em situaes fticas to fronteirias, como a presente, o operador jurdico dever aferir, inicialmente, se no foi efetivada simulao de pequena empreitada, encobrindo efetiva relao empregatcia entre as partes (caso em que o empreiteiro no seria autnomo, mas efetivo empregado). Porm, concluindo-se tratar-se de real pequeno empreiteiro, seus pedidos sero mesmo civis, embora veiculados no mbito judicial trabalhista.

V. FUNES

Todo Direito, como instrumento de regulao de instituies e relaes humanas, atende a fins preestabelecidos em determinado contexto histrico. Sendo as regras e diplomas jurdicos resultado de processos polticos bem-sucedidos em determinado quadro sociopoltico, sempre tendero a corresponder a um esturio cultural tido como importante ou at hegemnico no desenrolar de seu processo criador. Todo Direito , por isso, teleolgico, finalstico, na proporo em que incorpora e realiza um conjunto de valores socialmente considerados relevantes.

O Direito do Trabalho no escapa a essa configurao a que se submete todo fenmeno jurdico. Na verdade, o ramo juslaboral destaca-se exatamente por levar a certo clmax esse carter teleolgico que caracteriza o fenmeno do Direito. De fato, o ramo justrabalhista incorpora, no conjunto de seus princpios, regras e institutos, um valor finalstico essencial, que marca a direo de todo o sistema jurdico que compe. Este valor e a conseqente direo teleolgica imprimida a este ramo jurdico especializado consiste na melhoria das condies de pactuao da fora de trabalho na ordem socioeconmica. Sem tal valor e direo finalstica, o Direito do Trabalho sequer se compreenderia, historicamente, e sequer justificar-se-ia, socialmente, deixando, pois, de cumprir sua funo principal na sociedade contempornea.

A fora desse valor e direo finalsticos est clara no ncleo basilar de princpios especficos do Direito do Trabalho, tornando excetivas normas justrabalhistas vocacionadas a imprimir padro restritivo de pactuao das relaes empregatcias.

Essa funo central do Direito do Trabalho (melhoria das condies de pactuao da fora de trabalho na ordem socioeconmica) no pode ser apreendida sob uma tica meramente individualista, enfocando o trabalhador isolado. Como prprio ao Direito e fundamentalmente ao Direito do Trabalho, em que o ser coletivo prepondera sobre o ser individual , a lgica bsica do sistema jurdico deve ser captada tomando-se o conjunto de situaes envolvidas, jamais sua frao isolada. Assim, deve-se considerar, no exame do cumprimento da funo justrabalhista, o ser coletivo obreiro, a categoria, o universo mais global de trabalhadores, independentemente dos estritos efeitos sobre o ser individual destacado.

Uma segunda funo notvel do Direito do Trabalho seu carter modernizante e progressista, do ponto de vista econmico e social. Nas formaes socioeconmicas centrais a Europa Ocidental, em particular , a legislao trabalhista, desde seu nascimento, cumpriu o relevante papel de generalizar ao conjunto do mercado de trabalho aquelas condutas e direitos alcanados pelos trabalhadores nos segmentos mais avanados da economia, impondo, desse modo, a partir do setor mais moderno e dinmico da economia, condies mais modernas, geis e civilizadas de gesto da fora de trabalho.

verdade que esse carter progressista no se percebe com tanta clareza no caso brasileiro, em face da conformao retrgrada e contraditria do modelo trabalhista do pas, inspirado em padro mais primitivo de organizao socioprodutiva. No obstante, tal carter progressista e modernizante mantm-se como luminar para o aperfeioamento legislativo da sociedade brasileira (dirigido, pois, ao legislador) e como luminar para o prprio processo de interpretao das normas justrabalhistas existentes, adequando-as evoluo social ocorrida (dirigido, pois, ao intrprete e aplicador do Direito).

Contudo, mesmo no caso brasileiro, pelo menos no plano do Direito Individual do Trabalho, regulatrio do contrato de emprego, a ordem justrabalhista emerge como importante instrumento civilizatrio no que tange utilizao da fora de trabalho no mercado laborativo do pas. Em conformidade com o exposto por uma das maiores autoridades brasileiras acerca da equao emprego/desemprego e demais aspectos econmicos do mercado de trabalho, Marcio Pochmann, no contexto de profunda anlise sobre a estrutura e funcionamento do mundo laborativo no Brasil, cabe se reconhecer que o emprego assalariado formal representa o que de melhor o capitalismo brasileiro tem constitudo para a sua classe trabalhadora, pois vem acompanhado de um conjunto de normas de proteo social e trabalhista.

No pas, a funo progressista e modernizante do Direito do Trabalho, sua funo civilizatria bsica, fortemente comprometida tambm pela resistncia generalizao desse padro de contratao laborativa (o Direito do Trabalho e seu contrato de emprego), uma vez que, no incio do sculo XXI, muito menos de 25 milhes de trabalhadores encontram-se formalmente registrados como empregados, no segmento privado, em contraponto disseminao generalizada de diversas modalidades de precarizao trabalhista. Note-se que esse quadro desolador, derivado de antiga resistncia cultural que responde pelos constrangedores ndices de concentrao de renda em nossas economia e sociedade, recebeu inquestionveis impulsos oficiais na dcada de 1990, mediante uma poltica trabalhista de franco desprestgio ao Direito do Trabalho e indisfarvel incentivo precarizao da contratao laborativa de seres humanos no pas.

Nesta linha, a Fundao IBGE detetou, em 2001, em sua Pesquisa Nacional de Amostra por Domiclios (Pnad), dentro do enorme universo do trabalho no regulado normativamente no Brasil (composto por mais de 43 milhes de pessoas), nada menos do que 18,2 milhes de empregados sem carteira assinada, ao lado de outros 16,8 milhes de trabalhadores autnomos, a par de quase 9 milhes de trabalhadores no remunerados ou que se situam no chamado setor de subsistncia. Ainda que se admita, como pertinente, que certo percentual dos 35 milhes de pessoas prestadoras de servios onerosos acima indicadas (18,2 milhes + 16,8 milhes) corresponda efetivamente a trabalhadores autnomos ou eventuais, no h como se refutar a presena de dezenas de milhes de indivduos que prestam servios nos moldes empregatcios no Brasil, sem que lhes esteja sendo assegurado o rol de garantias e direitos trabalhistas. Ou seja, na medida em que o ramo justrabalhista naturalmente eleva as condies de pactuao da fora do trabalho no mercado laborativo, seu solapamento generalizado desponta como importante instrumento concentrador de renda no pas.

Retomando-se o exame das funes juslaborativas gerais, evidente que seria ingenuidade negar-se que o Direito do Trabalho no tenha, tambm e de modo concomitante, uma funo poltica conservadora. Esta existe na medida em que esse ramo jurdico especializado confere legitimidade poltica e cultural relao de produo bsica da sociedade contempornea. O reconhecimento dessa funo, entretanto, no invalida o diagnstico de que a normatividade autnoma e heternoma justrabalhista que assegurou, ao longo dos dois ltimos sculos, a elevao do padro de gesto das relaes empregatcias existentes e do prprio nvel econmico conferido retribuio paga aos trabalhadores por sua insero no processo produtivo.

Cabe acrescer-se, por fim, a funo civilizatria e democrtica, que prpria ao Direito do Trabalho. Esse ramo jurdico especializado tornou-se, na Histria do Capitalismo Ocidental, um dos instrumentos mais relevantes de insero na sociedade econmica de parte significativa dos segmentos sociais despossudos de riqueza material acumulada, e que, por isso mesmo, vivem, essencialmente, de seu prprio trabalho. Nesta linha, ele adquiriu o carter, ao longo dos ltimos 150/200 anos, de um dos principais mecanismos de controle e atenuao das distores socioeconmicas inevitveis do mercado e sistema capitalistas. Ao lado disso, tambm dentro de sua funo democrtica e civilizatria, o Direito do Trabalho consumou-se como um dos mais eficazes instrumentos de gesto e moderao de uma das mais importantes relaes de poder existentes na sociedade contempornea, a relao de emprego.

VI. ABRANGNCIA DA REA JURDICO-TRABALHISTA

O estudo do Direito do Trabalho, na qualidade de ramo jurdico delimitado, deve ser acompanhado da viso panormica dos segmentos jurdicos originados em funo de sua categoria socioeconmica bsica (a relao empregatcia), os quais, aps desenvolvidos, se estruturaram, contudo, em ramos prprios e distintos, verdadeiramente autnomos do segmento justrabalhista.

Deve ser acompanhado, desse modo, pela identificao de rea jurdica mais ampla, composta de ramos jurdicos prximos, dotados de certa afinidade entre si, embora com autonomia claramente preservada. Essa afinidade resulta do fato de todos eles, de um modo ou de outro e com intensidade diferente, relacionarem-se com a categoria bsica do Direito do Trabalho, a relao de emprego. Todos esses ramos jurdicos afins formam aquilo que pode ser chamado de rea jurdico-trabalhista em sentido lato, no interior da qual ocupa posio de destaque o Direito do Trabalho.

De fato, a relao de emprego, ao consistir na categoria nuclear do sistema produtivo capitalista, ganhou notvel potencial de criao de relaes socioeconmicas e jurdicas correlatas, a ela, de algum modo, vinculadas, dando origem a um diversificado nmero de ramos jurdicos prximos e associados. Embora todos esses ramos referenciem-se, inquestionavelmente, relao empregatcia (e, na verdade, sequer se compreendam, caso inexistente a relao de emprego), alguns estruturam-se tendo como categoria nuclear relao jurdica prpria e especfica, que no se confunde com a relao de emprego. E o que se passa, por exemplo, com o Direito Acidentrio do Trabalho: o ncleo de construo de suas regras e institutos jurdicos encontra-se em uma relao jurdica complexa, de que participa tambm o Estado.

A rea justrabalhista, no sentido lato compreendida como a rea de estruturao e dinmica de ramos jurdicos especializados construdos a partir da induo bsica propiciada pela relao de emprego , , desse modo, significativamente larga. Nesta rea encontram-se, portanto, no somente os princpios, regras e institutos jurdicos caractersticos do Direito do Trabalho, como tambm regras, princpios e institutos jurdicos dirigidos a regular a estruturao e dinmica de relaes sociojurdicas que se desenvolvem com dinamismo prprio, mesmo que a partir da induo inicial propiciada pela relao empregatcia.

Nessa lata acepo, a rea jurdico-trabalhista abrange, pelo menos, os seguintes grupos de ramos jurdicos: a) Direito Material do Trabalho, englobando o Direito Individual do Trabalho e o Direito Coletivo do Trabalho; b) Direito Internacional do Trabalho; c) Direito Pblico do Trabalho, englobando o Direito Processual do Trabalho, o Direito Administrativo do Trabalho, o Direito Previdencirio e Acidentrio do Trabalho e, finalmente, o Direito Penal do Trabalho (h forte e consistente dissenso sobre a real existncia autnoma deste ltimo ramo).

Na acepo restrita, o Direito do Trabalho, como conjunto de princpios, regras e institutos jurdicos dirigidos regulao das relaes empregatcias e outras relaes de trabalho expressamente especificadas, no abrange, obviamente, ramos jurdicos em que a categoria bsica no seja a relao empregado-empregador, mas relaes nucleares prprias. Por essa razo, no abrange, ilustrativamente, o Direito Previdencirio, que trata de relaes tanto de empregado como empregador, enquanto sujeitos especficos, com o Estado/Previdncia. Tambm no abrange o Direito Processual do Trabalho, que se estrutura em torno da relao processual trilateral e angular, autor-ru-Estado/juiz.

Nessa mais restrita acepo, o Direito do Trabalho corresponderia, efetivamente, apenas ao Direito Material do Trabalho (chamado, comumente, de Direito do Trabalho, to-s), o qual abrangeria o Direito Individual do Trabalho (que envolve a Teoria Geral do Direito do Trabalho) e o Direito Coletivo do Trabalho.

No Direito Material do Trabalho (ou Direito do Trabalho, no sentido estrito) comparecem, obviamente, regras institutos prprios ao Direito Internacional do Trabalho, em especial no tocante s fontes justrabalhistas (tratados e convenes internacionais, notadamente).

Tambm comparecem ao Direito Material do Trabalho princpios, institutos e regras do Direito Administrativo do Trabalho, uma vez que a ao administrativa do Estado no mbito da gesto empresarial cria direitos e deveres s partes contratuais trabalhistas, influindo no esturio de condutas jurdicas prprias ao Direito do Trabalho. E o que ocorre, por exemplo, na fundamental rea de sade e segurana do trabalho, em que a ao administrativa e fiscalizadora do Estado tende a ser intensa.

VII. DIVISO INTERNA DO DIREITO DO TRABALHO

A diviso interna do Direito do Trabalho (ou Direito Material do Trabalho) compreende dois segmentos jurdicos (se englobada a Teoria Geral no primeiro desses segmentos): o Direito Individual do Trabalho e o Direito Coletivo do Trabalho.O Direito Coletivo uno, no comportando divises internas significativas, respeitadas suas vrias matrias componentes.

J o Direito Individual do Trabalho estrutura-se a partir de dois segmentos claramente diferenciados: a parte geral, compreendendo a Introduo e Teoria Geral do Direito do Trabalho, e a parte especial, que compreende o estudo do contrato de trabalho, de um lado, e, de outro lado, o exame dos contratos especiais de trabalho.

A parte especial pode ser desdobrada de modo distinto, sem prejuzo do exame de suas matrias integrantes. Assim, mantm-se como segmento principal de estudo, o contrato empregatcio, lanando-se, complementarmente, a anlise das situaes justrabalhistas especiais (em vez da referncia apenas aos contratos especiais). Nessas situaes justrabalhistas especiais encontram-se o trabalho da mulher, o trabalho do menor, o trabalho em circunstncias insalubres, perigosas e penosas, e, finalmente, o trabalho pactuado mediante contratos empregatcios especiais.

Esquematicamente, assim se enunciaria a rea jurdica trabalhista, lato sensu:

rea justrabalhista no sentido amplo.

a) Direito Material do Trabalho

Direito Individual do trabalho

Direito Coletivo do Trabalho

b) Direito Internacional do Trabalho

c) Direito Publico do Trabalho

Direito Processual do Trabalho

Direito Administrativo do Trabalho

Direito Previdencirio e Acidentrio do Trabalho

Direito Penal do Trabalho (?)

Esquematicamente, o Direito do Trabalho (isto , Direito Material do Trabalho), em sua acepo restrita, assim se enunciaria:

Direito (Material) do Trabalho.

a) Direito Individual do Trabalho

(Parte Geral: Introduo e Teoria Geral do Direito Material do Trabalho. Parte Especial: Contrato de Trabalho e Situaes Espregatcias Especiais).

b)Direito Coletivo do Trabalho

Reafirme-se ser controvertida a efetiva existncia de um ramo prprio e autnomo, sob o ttulo de Direito Penal do Trabalho. Afinal, no esto atendidos aqui os requisitos cientficos autonomizao desse suposto ramo jurdico: complexidade de matrias, princpios prprios, teorias prprias, etc.

CAPTULO II

AUTONOMIA E NATUREZA JURIDICADO DIREITO DO TRABALHO

I. INTRODUO

A apresentao das caractersticas essenciais do Direito do Trabalho, que permita ao analista a visualizao de seus contornos prprios mais destacados, no se completa sem o exame dos traos que envolvem a relao desse ramo especializado com o conjunto geral do Direito.

Esses traos so dados, fundamentalmente, pelo estudo da autonomia do ramo juslaborativo, de seu posicionamento no plano jurdico geral (sua natureza jurdica, em suma), e, finalmente, a investigao de suas relaes com outros ramos do universo do Direito.

II. AUTONOMIA

Autonomia (do grego auto, prprio, e nome, regra), no Direito, traduz a qualidade atingida por determinado ramo jurdico de ter enfoques, princpios, regras, teorias e condutas metodolgicas prprias de estruturao e dinmica.A conquista da autonomia confirma a maturidade alcanada pelo ramo jurdico, que se desgarra dos laos mais rgidos que o prendiam a ramo ou ramos prximos, sedimentando via prpria de construo e desenvolvimento de seus componentes especficos. Nessa linha, pode-se afirmar que um determinado complexo de princpios, regras e institutos jurdicos assume carter de ramo jurdico especfico e prprio quando alcana autonomia perante os demais ramos do Direito que lhe sejam prximos ou contrapostos.

O problema da autonomia no exclusivo do Direito e seus ramos integrantes. As prprias cincias o enfrentam, necessariamente. Neste plano cientfico especfico, pode-se dizer que um determinado conjunto de proposies, mtodos e enfoques de pesquisa acerca de um universo de problemas assume o carter de ramo de conhecimento especfico e prprio quando tambm alcana autonomia perante os demais ramos de pesquisa e saber que lhe sejam correlatos ou contrapostos.

Quais so os requisitos para a afirmao autonmica de certo campo do Direito?

O jurista italiano Alfredo Rocco sintetizou, com rara felicidade, a trade de requisitos necessrios ao alcance de autonomia por certo ramo jurdico. Trata-se, de um lado, da existncia, em seu interior, de um campo temtico vasto e especfico; de outro lado, a elaborao de teorias prprias ao mesmo ramo jurdico investigado; por fim, a observncia de metodologia prpria de construo e reproduo da estrutura e dinmica desse ramo jurdico enfocado.

A esses trs requisitos, acrescentaramos um quarto, consubstanciado na existncia de perspectivas e questionamentos especficos e prprios, em contraposio aos prevalecentes nos ramos prximos ou correlatos.

O Direito do Trabalho, cotejado com o conjunto desses quatro requisitos conquista de sua autonomia, atende largamente ao desafio proposto. De fato, so bvias e marcantes a vastido e especificidade do campo temtico desse ramo jurdico especializado. Basta enfatizar que a relao empregatcia categoria central do ramo justrabalhista jamais foi objeto de teorizao e normatizao em qualquer poca histrica, antes do advento da moderna sociedade industrial capitalista. Basta aduzir, ainda, institutos como negociao coletiva e greve, alm de temas como durao do trabalho, salrio, com sua natureza e efeitos prprios, poder empregatcio, alm de inmeros outros assuntos, para aferir-se a larga extenso das temticas prprias ao Direito do Trabalho.

amplo tambm o nmero de teorias especificas e distintivas do ramo justrabalhista. Ressaltem-se, ilustrativamente, as fundamentais teorias justrabalhistas de nulidades e de hierarquia das normas jurdicas ambas profundamente distantes das linhas gerais hegemnicas na teorizao do Direito Civil (ou Direito Comum).

tambm clara a existncia de metodologia e mtodos prprios ao ramo jurdico especializado do trabalho. Neste passo, a particularidade justrabalhista to pronunciada que o Direito do Trabalho destaca-se pela circunstcia de possuir at mesmo mtodos prprios de criao jurdica, de gerao da prpria normatividade trabalhista. o que se ressalta, por exemplo, atravs dos importantes mecanismos de negociao coletiva existentes.

Por fim, o Direito do Trabalho destaca-se igualmente pelo requisito de incorporar perspectivas e questionamentos especficos e prprios. De fato, este ramo especializado enfoca problemas afins a outros ramos jurdicos de modo inteiramente distinto ao perfilado pelos ramos tradicionais. Veja-se a relao credor/devedor, que, no Direito Civil, , em geral, normatizada sob a perspectiva bsica favorvel ao devedor: o Direito Obrigacional Civil constri-se sob a tica do devedor, elaborando princpios e regras segundo essa perspectiva primordial. J o Direito Individual do Trabalho constri-se sob a tica do credor trabalhista, o empregado, elaborando, conseqentemente, princpios e regras de matriz e direcionamento sumamente diversos dos civilistas clssicos.

Desde a plena institucionalizao do Direito do Trabalho, no sculo XX, j no se coloca em dvida a autonomia justrabalhista. Seja pelo exame analtico dos quatro requisitos necessrios ao alcance da autonomia de qualquer ramo jurdico ou cientfico, seja pela pujante reunio de estruturas e dinmicas de largo impacto social estritamente vinculadas rea justrabalhista (sindicatos, regras coletivas negociadas, greves, organizao obreira no estabelecimento e na empresa, legislao trabalhista intensa, etc.), seja pelo j longnquo distanciamento das origens e fase de afirmao do ramo justrabalhista, h muito j no se questiona mais a bvia existncia de autonomia do Direito do Trabalho no contexto dos ramos e disciplinas componentes do universo do Direito e da cincia dirigida a seu estudo. O questionamento que talvez deva ser colocado pelo estudioso do Direito de ordem inteiramente diversa.

De fato, o debate envolvente a esse tema certamente no ser mais frutfero hoje, se se limitar a discutir sobre a existncia ou no da autonomia do Direito do Trabalho e de sua disciplina de pesquisa e reflexo. Tal discusso teve sentido na fase de afirmao do ramo justrabalhista, quando o segmento novo naturalmente tendia a digladiar com o bero terico e cultural que abrigou seu nascimento, o Direito Obrigacional Civil. O debate contemporneo, o debate da maturidade do Direito do Trabalho certamente no versar sobre sua autonomia inquestionvel, sob qualquer enfoque que se tome o tema , mas, em vez disso, sobre os limites da autonomia do ramo especializado e os compatveis critrios de integrao desse ramo no conjunto do universo jurdico. Ilustrativamente, os critrios de integrao e harmonizao do Direito do Trabalho e seus princpios especficos normatividade constitucional (veja-se a perplexidade provocada pela norma constitucional de 1988, de nulidade das admisses irregulares de servidores mesmo celetistas); ou ainda os critrios de integrao e harmonizao do Direito do Trabalho ao Direito Administrativo (veja-se a extrema dificuldade do ramo justrabalhista de conferir consistncia aos princpios administrativistas de legalidade e moralidade, quando em aparente confronto com princpios justrabalhistas especficos). Nesta mesma linha, podem se contrapor, tambm, o debate entre princpios justrabalhistas e tica jurdica (como sugerido, contemporaneamente, pelo tema do trabalho ilcito e seus efeitos no Direito do Trabalho).

Este novo e consistente debate um dos que mais devem instigar os estudiosos do Direito do Trabalho no processo de avano da modernizao e democratizao da sociedade brasileira no incio do terceiro milnio.

A propsito, em obra j construda no novo milnio, buscamos enfrentar esse instigante debate. De um lado, indicando o tronco fundamental do ramo justrabalhista, seu ncleo basilar, sem o qual no se pode referir, com seriedade, prpria existncia do Direito do Trabalho. Trata-se, aqui, do ncleo basilar de princpios especiais juslaborativos.

De outro lado, estudando os princpios gerais do Direito aplicveis ao Direito do Trabalho, com a percepo, nesse grupo genrico, de um ncleo tambm basilar, perante o qual o ramo justrabalhista no pode ser desinteressado ou impermevel.III. NATUREZA JURDICA

A pesquisa acerca da natureza de um determinado fenmeno supe a sua precisa definio como declarao de sua essncia e composio seguida de sua classificao, como fenmeno passvel de enquadramento em um conjunto prximo de fenmenos correlatos. Definio (busca da essncia) e classificao (busca do posicionamento comparativo), eis a equao compreensiva bsica da idia de natureza.

Encontrar a natureza jurdica de um instituto do Direito (ou at de um ramo jurdico, como o Direito do Trabalho) consiste em se apreenderem os elementos fundamentais que integram sua composio especfica, contrapondo-os, em seguida, ao conjunto mais prximo de figuras jurdicas (ou de segmentos jurdicos, no caso do ramo justrabalhista), de modo a classificara instituto enfocado no universo de figuras existentes no Direito.

atividade lgica de classificao, pela qual se integra determinada figura jurdica no conjunto mais prximo de figuras existentes no universo do Direito, mediante a identificao e cotejo de seus elementos constitutivos fundamentais.

Encontrar a natureza jurdica do Direito do Trabalho consiste em fixarem-se seus elementos componentes essenciais, contrapondo-os ao conjunto mais prximo de segmentos jurdicos sistematizados, de modo a classificar aquele ramo jurdico no conjunto do universo do Direito. medida que esse universo do Direito tem sido subdividido em dois grandes grupos (Direito Pblico versus Direito Privado), a pesquisa da natureza jurdica do Direito do Trabalho importa em classificar tal ramo especializado em algum dos grandes grupos clssicos componentes do Direito.

H uma dificuldade inicial razovel no que tange a essa pesquisa. que os autores sequer se harmonizam a respeito dos critrios informadores dessa clssica subdiviso, percebendo-se at mesmo o questionamento taxativo sobre a prpria validade cientfica da tipologia Direito Pblico/Direito Privado. No obstante tais obstculos, indubitvel a validade da referida tipologia, que tem ainda expressivo interesse prtico para se compreender a essncia e posicionamento comparativo dos diversos ramos jurdicos componentes do universo do Direito.

No quadro do largo espectro de critrios voltados diferenciao entre os segmentos pblico e privado do Direito, dois surgem como mais objetivos e abrangentes: o critrio do interesse (oriundo da tradio romana) e o critrio da titularidade (de origem mais recente, na Idade Moderna).

Pelo critrio tradicional, a natureza do interesse prevalente no ramo jurdico (privada ou pblica) que determinaria seu posicionamento classificatrio em um dos grupos bsicos do universo jurdico. J pelo critrio moderno, a titularidade primordial dos direitos e prerrogativas prevalecentes no ramo jurdico (detida por entes pblicos ou, em contrapartida, por pessoas ou grupos privados) que responderia por seu pretendido posicionamento classificatrio.

Roberto de Ruggiero encontra a melhor frmula de concretizao da mencionada tipologia, ao combinar, em um todo coerente, os dois critrios acima enfocados. Para o autor, pblico ser o Direito que tenha por finalidade regular as relaes do Estado com outro Estado ou as do Estado com seus sditos (idia de titularidade), procedendo em razo do poder soberano e atuando na tutela de bem coletivo (idia de interesse). Privado, por sua vez, ser o Direito que discipline as relaes entre pessoas singulares (titularidade), nas quais predomine imediatamente o interesse de ordem particular (interesse). No h dvida de que o critrio combinado acima exposto est ainda excessivamente influenciado pela viso individualista to cara ao velho Direito Civil e que hoje, cada vez mais, mostra-se inadequada aos avanos democratizantes da sociedade ocidental contempornea. De todo modo, o critrio combinado pode ainda ser vlido e til, desde que se substituindo a noo de pessoas singulares por pessoas privadas, singulares ou coletivas; desde que se substitua, ainda, a noo de interesse de ordem particular por interesse de ordem particular, setorial ou comunitria.

Nesse debate terico, o Direito do Trabalho j foi classificado como componente do Direito Pblico, por autores de distinta especializao jurdica. Prepondera, hoje, entretanto, a classificao do ramo justrabalhista no segmento do Direito Privado. H autores, contudo, que consideram esse ramo jurdico inassimilvel a qualquer dos dois grandes grupos clssicos, enquadrando-se em um terceiro grande grupo de segmentos jurdicos, o Direito Social.

O posicionamento no grupo do Direito Pblico estriba-se, fundamentalmente, no carter imperativo marcante das regras trabalhistas e na tutela prxima tpica de matriz pblica que confere aos interesses laborais acobertados por suas regras. Nos modelos justrabalhistas mais autoritrios, esse posicionamento classificatrio socorre-se ainda da tendncia publicizante (ou estatizante) que tais modelos conferem a instituies e prticas trabalhistas: por exemplo, a natureza paraestatal normalmente atribuda a certas instituies essenciais do novo ramo jurdico (principalmente os sindicatos) ou o papel interventivo explcito do Estado nos procedimentos privados de negociao coletiva (como atravs dos dissdios coletivos, por exemplo).

No obstante os aspectos mencionados, tal procedimento classificatrio claramente equivocado.

que a natureza jurdica de qualquer ramo do Direito no se mede em funo da imperatividade ou dispositividade de suas regras componentes. Se tal critrio fosse decisivo, o Direito de Famlia, formado notadamente por regras imperativas, jamais seria ramo componente do Direito Civil.

De outro lado, o intervencionismo autoritrio que intenta estatizar instituies (como os sindicatos) ou mtodos (como o da negociao coletiva) prprios sociedade civil intervencionismo tpico dos modelos justrabalhistas de normatizao estatal subordinada no consegue alterar a natureza da relao jurdica essencial normatizada pelo Direito do Trabalho, que se mantm como relao jurdica especfica do mbito socioeconmico privado. Finalmente, esse intento de estatizao de instituies e mtodos to prprios sociedade civil corresponde, na verdade, a uma experincia historicamente delimitada, em harmonia s experincias de gesto autocrtica das relaes polticas e trabalhistas que tiveram importncia na histria ocidental do sculo XX. Por essa razo, sua eventual validade fica estritamente circunscrita ao modelo autoritrio a que se vincula e serve, no indicando, contudo, a essncia e posicionamento classificatrio do ramo justrabalhista especializado.

A eleio de um terceiro segmento jurdico especfico (consubstanciado no Direito Social), ao lado do Direito Pblico e do Direito Privado, para abranger o Direito do Trabalho, como se este fosse parte de um terceiro gnero, tem razes em Otto von Gierke, em fins do sculo XIX, tendo sido incorporada por autores civilistas, como Paul Roubier, e juslaboristas, como Arthur Nikisch). No obstante, constitui intento passvel de substantivas crticas, quer do ponto de vista cientfico, quer do ponto de vista prtico.

que o ncleo do Direito do Trabalho (relao empregatcia) no corresponde a uma categoria jurdica incomunicvel com outras categorias correlatas de ramos jurdicos prximos (por exemplo, relao de trabalho autnomo, relao de sociedade, de mandato, etc.), o que afasta a necessidade terica de se formular, para esse ramo especializado, um gnero prprio, distinto do gnero a que se filia, ilustrativamente, o Direito Obrigacional Civil.

De par com isso, a particularidade maior do Direito do Trabalho perante o Direito Obrigacional Civil a relevncia da noo do ser coletivo em seu interior, em contraposio ao individualismo prevalecente no Direito Civil no , como visto, caracterstica isolada do ramo justrabalhista, estando hoje presente em outros ramos do Direito Privado, como o Direito do Consumidor. De todo modo, o carter social do fenmeno jurdico est presente em qualquer ramo do Direito (mesmo no mais individualista existente), no sendo apangio do ramo justrabalhista. Finalmente, a dubiedade terica (e mesmo histrica) desse suposto segmento (como j ressaltado) compromete sua prpria funcionalidade para o estudo da natureza jurdica do Direito do Trabalho.

Enfocada a substncia nuclear do Direito do Trabalho (relao de emprego) e seu cotejo comparativo com a substncia dos demais ramos jurdicos existentes, no h como escapar-se da concluso de que o ramo justrabalhista situa-se no quadro componente do Direito Privado. A medida que a categoria nuclear do Direito do Trabalho essencialmente uma relao entre particulares (a relao empregatcia), esse ramo jurdico, por sua essncia, situa-se no grupo dos ramos do Direito Privado em que preponderam relaes prprias sociedade civil, pactuadas entre particulares. A justeza dessa concluso terica mais se evidencia pela circunstncia de ter essa classificao aptido de abranger desde os modelos mais democrticos e descentralizados de normatizao trabalhista at os modelos mais autoritrios de normatizao juslaboral. que se sabe, afinal, que a tutela do Estado sobre relaes privadas no incompatvel com a natureza de Direito Privado do ramo jurdico em exame como se percebe, por exemplo, pelo caso do Direito de Famlia.

bvio que a concepo de Direito Privado no pode manter-se prisioneira da viso individualista hegemnica no velho Direito Civil e que sempre se espraiou pelo conjunto da Teoria do Direito. As relaes jurdicas privadas envolvem tanto um largo universo de vnculos em que prepondera a perspectiva individual de interesses, como um cada vez mais relevante universo de vnculos em que prepondera a perspectiva grupal, coletiva ou at mesmo social de interesses. Mais que isso, h relaes que simplesmente se travam entre seres coletivos como visto no Direito do Trabalho, em especial no ramo juscoletivo independentemente do impacto individual que produzem no mbito isolado de cada pessoa. Apenas sob esta compreenso atualizada e abrangente que se torna adequada e rica a discusso sobre o presente tema.

Esclarea-se, finalmente, que a natureza jurdica do Direito do Trabalho j foi considerada mista por alguns autores, como se fosse este ramo um conbio indissocivel e inseparvel de instituies de Direito Pblico e Direito Privado. Nesta linha, o presente debate classificatrio perderia sentido quanto ao segmento justrabalhista, pois ele seria uma mistura dos dois segmentos.

Entretanto, a concepo de Direito misto falha, quer por no captar a existncia de uma identidade prpria ao ramo justrabalhista, quer por centrar seu critrio de anlise no tipo de regras jurdicas componentes do mencionado ramo.

Contraps-se viso de Direito misto a concepo de Direito unitrio, pela qual a reunio de institutos de origem diversa no Direito do Trabalho no lhe retiraria a coerncia e diretriz uniformes. Em conseqncia, ele formaria um ... todo orgnico, diferenciado e tanto quanto possvel auto-suficiente. A concepo unitria, mais correta, do ponto de vista cientfico, integra-se, naturalmente, ao debate sobre a classificao do ramo juslaboral no Direito Pblico, Privado ou Social.

IV.RELAES DO DIREITO DO TRABALHO COM OUTROS CAMPOS DO DIREITO

O Direito do Trabalho, embora sendo um ramo jurdico especializado, mantm relaes permanentes e, s vezes, estreitas com outros campos do Direito.

1. Relaes com o Direito Constitucional

O Direito Constitucional campo decisivo no processo de insero justrabalhista no universo geral do Direito. Em seguida ao deflagrar da tendncia de constitucionalizao do ramo juslaborativo, com as Cartas Mximas de 1917, no Mxico, e 1919, na Alemanha (no Brasil, a tendncia iniciou-se com a Carta de 1934), as relaes entre as duas reas acentuaram-se, significativamente.

Aps a Segunda Guerra Mundial, superadas, na Europa, as experincias traumticas e constrangedoras do fascismo e nazismo, as novas Constituies promulgadas em importantes pases europeus conferiram novo status ao processo de constitucionalizao justrabalhista. E que passaram a inserir nos Textos Magnos no s direitos laborativos, mas principalmente princpios jurdicos, vrios deles associados mesma perspectiva de construo e desenvolvimento do Direito do Trabalho: trata-se, ilustrativamente, dos princpios da dignidade humana, da valorizao sociojurdica do trabalho, da subordinao da propriedade privada sua funo social, da justia social como facho orientador das aes estatais e da sociedade civil, etc. Nesta linha, as Constituies da Frana (1946), Itlia (1947), Alemanha (1949); posteriormente, as Cartas Magnas de Portugal (1976) e Espanha (1978).

No Brasil, a mesma tendncia de constitucionalizao verificou-se: comeada em 1934, foi mantida em todas Constituies posteriores, mesmo as de natureza autocrtica (1937, 1967, 1969). Entretanto, tal tendncia adquiriu novo status apenas com a Carta Magna de 1988. E que esta, em inmeros de seus preceitos e, at mesmo, na disposio topogrfica de suas normas (que se iniciam pela pessoa humana, em vez de pelo Estado), firmou princpios basilares para a ordem jurdica, o Estado e a sociedade grande parte desses princpios elevando ao pice o trabalho, tal como a matriz do ps-guerra europeu.

Neste perodo de crise e transio da rea juslaborativa, o reporte permanente Constituio e aos princpios basilares do Direito Constitucional, ao lado dos essenciais do ramo justrabalhista, veio condutor fundamental para o estudioso e operador do Direito do Trabalho.

2.Relaes com Princpios Gerais de Direito e de outros Ramos Jurdicos

O Direito do Trabalho, como ramo jurdico especial, porm no singular ou anmalo, integra-se ao universo jurdico geral, guardando, claro, suas especificidades, mas tambm se submetendo a vnculos com o ncleo jurdico principal.

Parte significativa desses vnculos formada pelos princpios gerais de Direito que atuam no ramo justrabalhista, alm dos princpios especiais de outros segmentos jurdicos que tambm cumprem papel de relevo no Direito do Trabalho. Na verdade, pode-se dizer que os princpios gerais do Direito (que, hoje, em grande medida, so princpios constitucionais), que se aplicam ao ramo justrabalhista especializado, demarcam os laos essenciais que este ramo, no obstante suas particularizaes, tem de manter com o restante do direito.

claro que tais princpios externos ao Direito do Trabalho sofrem adequaes inevitveis ao ingressarem no ramo especializado; tais adequaes no so aptas, contudo, a transform-los em princpios especficos ao campo justrabalhista, nem a descaracteriz-los, inteiramente, como princpios gerais.

H diversos princpios gerais (ou especiais de outros ramos jurdicos) que tm relevncia no Direito do Trabalho. Aqui, entretanto, cabe adiantar-se apenas o grupo principal dos princpios gerais, composto de trs planos de diretrizes.

Em um dos planos, o princpio da dignidade humana e diversas diretrizes associadas a esta basilar: o princpio da no-discriminao, o princpio da justia social e, por fim, o princpio da eqidade. Em outro plano, os princpios da proporcionalidade e da razoabilidade (o primeiro tambm formulado como princpio da proibio do excesso). Em um terceiro plano, o princpio da boa-f e seus corolrios, os princpios do no-enriquecimento sem causa, da vedao ao abuso do direito e da no alegao da prpria torpeza.

Como j sugerido por este autor em outra obra, a importncia desses trs princpios tambm aqui, na rea justrabalhista (assim como, em geral, no restante do Direito), to exponencial que podem ser arrolados como parte integrante do cerne do Direito do Trabalho mas ao que so a parte do cerne do Direito do Trabalho que se comunica de modo prximo e intenso com o restante do Direito ou alguns dos segmentos mais importantes deste. No so, desse modo, a parte que se distancia, que se afasta, que marca a distino juslaboral perante os demais segmentos jurdicos (parte esta capitaneada pelos princpios especiais do Direito do Trabalho). So, ao reverso, a parte que assegura a comunicao e integrao do Direito do Trabalho com o universo jurdico mais amplo circundante.

Tais princpios gerais do Direito atuantes no ramo justrabalhista caracterizam-se por incorporar diretrizes centrais da prpria noo de Direito, seja englobando valores essenciais da vida humana, elevados ao pice pelas modernas constituies democrticas (como o princpio da dignidade do ser humano), seja referindo-se a comandos diretores fundamentais para as relaes entre os sujeitos de direito (como O princpio da razoabilidade e/ou proporcionalidade e o princpio da boa-f).

So, desse modo, princpios que se irradiam por todos os segmentos da ordem jurdica, cumprindo o relevante papel de assegurar organicidade e coerncia integradas totalidade do universo normativo de uma sociedade poltica. Nessa linha, esses princpios gerais, aplicando-se aos distintos segmentos jurdicos especializados, preservam a noo de unidade da ordem jurdica, mantendo o Direito como um efetivo sistema, isto , um conjunto de partes coordenadas.

O estudo mais aprofundado sobre o tema dos princpios inclusive os externos ao Direito do Trabalho, mas a ele aplicveis ser feito no Captulo VI do presente Curso.

3. Relaes com o Direito Civil

A matriz de origem do Direito do Trabalho o Direito Civil, em especial, seu segmento regulatrio das obrigaes. Em conseqncia, permanecem inevitveis as relaes entre os dois campos do Direito.

No h dvida, porm, de que a autonomizao do ramo justrabalhista conduziu separao das duas esferas jurdicas, buscando o Direito do Trabalho, ao longo de quase dois sculos, firmar suas particularidades, em contraponto ao esturio original de onde se desprendeu.

Contudo, ainda assim, h importantes institutos, regras e princpios do Direito Civil que preservam interesse rea justrabalhista. Ilustrativamente, os critrios de fixao de responsabilidade civil, fundada em culpa, que se aplicam a certas situaes de interesse trabalhista (veja-se o caso da responsabilidade do empregador em vista de dano acidentrio art. 7, XXVIII, CF/88). claro que avanos verificados no plano civilista podem, sem dvida, atingir tambm o ramo juslaboral, se houver a necessria compatibilidade de segmentos jurdicos. Nesta linha, a tendncia do novo Cdigo Civil de objetivar, em certa medida e em determinadas situaes, a responsabilidade do empregador perante seu empregado, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (pargrafo nico do art. 927 do CCB/2002, vigorante desde 11.01.2003).

Por outro lado, a teoria civilista de nulidades. Embora o ramo justrabalhista tenha elaborado, como sua regra geral, teoria de nulidades especfica e distinta, a velha matriz do Cdigo Civil ainda aplica-se em algumas situaes de vcios nos elementos constitutivos do contrato de trabalho. o que se passa no tocante ilicitude do objeto do contrato empregatcio.

Esse tipo de relao verifica-se tambm no que tange teoria hierrquica de normas justrabalhistas. Embora o Direito do Trabalho tambm tenha elaborado teoria prpria, muito diferente da oriunda do Direito Civil, esta ainda preserva-se influente em certos casos de conflitos de regras jurdicas no ramo juslaborativo (notadamente, quando se tratar de regras proibitivas estatais).

O Direito Civil, por fim, fonte subsidiria do Direito do Trabalho, em situaes de lacunas nas fontes principais desse ramo jurdico (art. 8, CLT). Cabe notar, porm, que a aplicao da regra civilista no tem o condo de revogar regra juslaborativa especial: que, em tal caso, no ter havido lacuna, inviabilizando a analogia pretendida; alm disso, a regra especial no se invalida, por fora do surgimento de regra geral distinta, do mesmo modo que no tem aptido para influir no campo de atuao desta.

Registre-se que inmeras dessas relaes sero retomadas ao longo do presente Curso de Direito do Trabalho.

4. Relaes com o Direito Previdencirio

Os vnculos do Direito do Trabalho com o ramo previdencirio so histricos: os dois segmentos jurdicos praticamente nasceram do mesmo processo de interveno do Estado no mercado de trabalho, a partir da segunda metade do sculo XIX, na Europa Ocidental.

Hoje tais vnculos preservam-se estreitos, uma vez que parte significativa da arrecadao da Previdncia Oficial, no sistema brasileiro, origina-se da folha de salrios das empresas, tomando como base de clculo, no caso dos empregados, as verbas de natureza salarial por eles recebidas, inclusive as equiparadas aos salrios para tais fins, como as gorjetas (arts. 29, 1, e 457, caput, CLT).

A Constituio de 1988, em seu texto original, firmava relao mais rigorosa entre folha de salrios (includas as gorjetas, como exposto) e salrio-de-contribuio (antigo art. 195, I, CF/88). Desde a Emenda Constitucional 20, de 15.12.1998, a contribuio social passou a incidir, no tocante entidade empresarial e respeitadas outras bases de clculo (receita, faturamento, lucro), sobre a folha de salrios e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer ttulo, pessoa fsica que lhe preste servio, mesmo sem vnculo empregatcio (art. 195, I, a, CF/88; grifos acrescidos).

O parmetro do salrio-de-contribuio do empregado, evidentemente, submete-se mesma regra constitucional, centrada na noo de salrio e parcelas a este equiparadas, como as gorjetas (art. 195, II, CF/88).

A matria ganhou maior importncia para o Direito do Trabalho em virtude da nova competncia do Judicirio Trabalhista, fixada pela mesma Emenda Constitucional 20/98, de executar, de ofcio, as contribuies sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acrscimos legais, decorrentes das sentenas que proferir (art. 114, 3, CF/88, conforme EC 20, de 1998).

Neste quadro, a diferenciao entre parcelas salariais (e equiparadas, como as gorjetas tidas como remunerao) e parcelas no-salariais, em especial as indenizatrias, passou a ser fundamental na prtica processual trabalhista. que no incide contribuio previdenciria sobre parcela rigorosamente indenizatria, por no se tratar, como e bvio, de salrio, e nem mesmo de rendimento do trabalho, porm mero ressarcimento de despesas em funo da prestao de servios ou de parcelas trabalhistas cuja efetiva fruio foi frustrada. claro que verbas relativas a apenaes (multas) tambm no tm natureza de salrio ou rendimento.

Para a anlise mais circunstanciada de tais conceitos e distines, verificar o Captulo XXI deste Curso, que trata de remunerao e salrio.

CAPTULO III

ORIGEM E EVOLUO DO DIREITO DO TRABALHO

1. INTRODUO

O Direito do Trabalho produto do capitalismo, atado evoluo histrica desse sistema, retificando-lhe distores econmico-sociais e civilizando a importante relao de poder que sua dinmica econmica cria no mbito da sociedade civil, em especial no estabelecimento e na empresa.

A existncia de tal ramo especializado do Direito supe a presena de elementos socioeconmicos, polticos e culturais que somente despontaram, de forma significativa e conjugada, com o advento e evoluo capitalistas.

Porm o Direito do Trabalho no apenas serviu ao sistema econmico deflagrado com a Revoluo Industrial -, no sculo XVIII, na Inglaterra; na verdade, ele fixou controles para esse sistema, conferiu-lhe certa medida de civilidade, inclusive buscando eliminar as formas mais perversas de utilizao da fora de trabalho pela economia.

Compreender-se o tipo de relao construdo entre Direito do Trabalho e capitalismo o que justifica, primordialmente, o presente captulo deste Curso.

II. ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO DIREITO DO TRABALHO PROPOSIES METODOLGICAS

Cincia traduz a idia de estudo sistemtico e objetivo acerca de fenmenos, com o conjunto de conhecimentos resultantes desse processo. A busca de uma satisfatria objetividade e sistematicidade na anlise do fenmeno enfocado impe ao estudioso o respeito a mtodos de observncia e reflexo sobre o respectivo fenmeno; o respeito, portanto, a um conjunto de procedimentos racionais que permitam reflexo cientfica descobrir e demonstrar a efetiva estrutura e dinmica do fenmeno analisado.

A Filosofia da Cincia tem exaustivamente discutido os limites da objetividade que se pode alcanar nas concluses das Cincias Sociais em comparao com a objetividade mais satisfatria atingida pelas Cincias Fsicas e Biolgicas. que a ao humana lana sempre um dado de criatividade (ainda que contingenciada) e, portanto, de incerteza ao objeto enfocado por aquelas cincias (os atos e elaboraes humanas, individuais ou societrios). To importante quanto isso, o prprio universo de teorias, mtodos e hipteses de investigao manejado pelo cientista (que em seu conjunto formaria o que se tem chamado de paradigma), incorporaria, necessariamente, uma certa perspectiva de interesses sociais, comprometendo o objetivismo e neutralidade plenos pretendidos quanto anlise efetuada.

No obstante essas reconhecidas limitaes das Cincias Humanas e Sociais, em geral, e a diversidade s vezes larga entre os modelos paradigmticos de abordagem cientfica que compem tais cincias, inquestionvel a validade cientfica desses ramos especializados de conhecimento. que, resguardadas tais limitaes, induvidoso, hoje, que os fenmenos humanos e sociais podem ser objeto de pesquisa e reflexo fundamentalmente objetivas e sistemticas, hbeis a descortinar e demonstrar a essncia de sua estruturao e dinmica especficas.

A dissenso entre os paradigmas cientficos no impede, assim, o encontro de alguns pontos relevantes de contato no que tange pesquisa cientfica acerca dos fenmenos examinados. Esses pontos se elegem, desse modo, como elementos imprescindveis no contexto de qualquer pesquisa cientfica sobre fenmenos produzidos socialmente.

Alcanam esse patamar de destaque trs proposies de mtodos correntes nas Cincias Sociais. A primeira proposio informa que todo fenmeno social tem uma categoria fundamental, categoria que lhe nuclear e sem a qual o prprio fenmeno no existiria. A segunda proposio informa que, a despeito de dotado de uma categoria fundamental, todo fenmeno no resulta de um nico elemento (ou, se se preferir, de uma nica determinao), decorrendo de um complexo combinado de determinaes. Finalmente, a terceira proposio de mtodo informa que a pesquisa e reflexo sobre um fenmeno social no se esgota no exame de sua criao, de sua origem, tendo de incorporar as vicissitudes de sua reproduo social. Enquanto processo, o fenmeno determina-se no somente por sua origem, mas tambm em funo de sua reproduo ao longo da histria.

Essas trs proposies se aplicam, como visto, anlise de qualquer fenmeno social. Aplicam-se, assim, tambm pesquisa, reflexo e compreenso do Direito, como fenmeno social. Aplicam-se, certamente, ao estudo do Direito do Trabalho e de seu papel e sentido na histria do mundo ocidental contemporneo.

III. POSICIONAMENTO DO DIREITO DO TRABALHO NA HISTRIA

O Direito do Trabalho como qualquer ramo jurdico constitui um complexo coerente de institutos, princpios e normas jurdicas, que resulta de um determinado contexto histrico especfico. A localizao do preciso momento em que esse contexto se forma supe, inicialmente, a observncia do procedimento metodolgico de identificar a categoria bsica do ramo jurdico analisado, a sua categoria nuclear, dominante, sem a qual no existiria o fenmeno jurdico em questo.

Como sugere a primeira das proposies de mtodo enunciadas, todo fenmeno quer os materiais, quer os ideais (como o Direito) tem uma categoria bsica, um elemento-pilar que lhe confere identificao prpria e sem o qual o fenmeno no poderia existir. A busca e isolamento da categoria fundamental de certo fenmeno permite se eliminar a procura errtica do fenmeno enfocado em contextos histrico-sociais em que esse fenmeno seria tcnica e historicamente invivel, por inexistir naqueles contextos, como dado relevante, a categoria nuclear identificada. De tato, objetivamente invivel a existncia do fenmeno enfocado em momentos histricos em que a categoria nuclear desse mesmo fenmeno no exista como dado histrico-social relevante.

Qual a categoria central do Direito do Trabalho, a categoria sem a qual esse ramo jurdico especializado no existiria? Obviamente, est-se falando do trabalho subordinado, mais propriamente da relao empregatcia. O ncleo fundamental do Direito do Trabalho situa-se, sem dvida, na relao empregatcia de trabalho, construindo-se em torno dessa relao jurdica especfica todo o universo de institutos, princpios e regras caractersticas a esse especfico ramo jurdico.

Ora, a existncia do trabalho livre (isto , juridicamente livre) pressuposto histrico-material do surgimento do trabalho subordinado (e, via de conseqncia, da relao empregatcia). Pressuposto histrico porque o trabalho subordinado no ocorre, de modo relevante, na histria, enquanto no assentada uma larga oferta de trabalho livre no universo econmico-social. Pressuposto material (e lgico) porque o elemento subordinao no se constri de modo distintivo seno em relaes em que o prestador no esteja submetido de modo pessoal e absoluto ao tomador dos servios (como ocorre na servido e escravatura, por exemplo). Em decorrncia dessa conexo histrica, material e lgica entre trabalho livre e trabalho subordinado, percebe-se que as relaes jurdicas escravistas e servis so incompatveis com o Direito do Trabalho. que elas supem a sujeio pessoa do trabalhador e no a sua subordinao.

Subordinao conceito que traduz a situao jurdica derivada do contrato de trabalho mediante o qual o empregado se obriga a acolher a direo do empregador sobre o modo de realizao da prestao de servios. Consiste, assim, no plo reflexo e combinado do poder de direo (tambm de matriz jurdica), exercitado pelo empregador ao longo da relao de emprego. A subordinao , pois, enfocada pela ordem jurdica sob um prisma estritamente objetivo, atuando sobre o modo de realizao da prestao pactuada. No gera um estado de sujeio pessoal (prisma subjetivo) do prestador de servios razo por que supe e preserva a liberdade do prestador. J a sujeio subjetiva, atuando sobre a pessoa do trabalhador razo por que supe e reproduz sua falta de liberdade pessoal.

O pressuposto histrico-material (isto , trabalho livre) do elemento nuclear da relao empregatcia (trabalho subordinado) somente surge, na histria ocidental, como elemento relevante, a contar da Idade Moderna. De fato, apenas a partir de fins da Idade Mdia e alvorecer da Idade Moderna verificaram-se processos crescentes de expulso do servo da gleba, rompendo-se as formas servis de utilizao da fora de trabalho. Esse quadro lanaria ao meio social o trabalhador juridicamente livre dos meios de produo e do proprietrio desses meios.

O elemento nuclear da relao empregatcia (trabalho subordinado) somente surgiria, entretanto, sculos aps a crescente destruio das relaes servis. De fato, apenas j no perodo da Revoluo Industrial que esse trabalhador seria reconectado, de modo permanente, ao sistema produtivo, atravs de uma relao de produo inovadora, hbil a combinar liberdade (ou melhor, separao em face dos meios de produo e seu titular) e subordinao. Trabalhador separado dos meios de produo (portanto juridicamente livre), mas subordinado no mbito da relao empregatcia ao proprietrio (ou possuidor, a qualquer ttulo) desses mesmos meios produtivos eis a nova equao jurdica do sistema produtivo dos ltimos dois sculos.

A relao empregatcia, como categoria socioeconmica e jurdica, tem seus pressupostos despontados com o processo de ruptura do sistema produtivo feudal, ao longo do desenrolar da Idade Moderna. Contudo, apenas mais frente, no desenrolar do processo da Revoluo Industrial, que ir efetivamente se estruturar como categoria especfica, passando a responder pelo modelo principal de vinculao do trabalhador livre ao sistema produtivo emergente. Somente a partir desse ltimo momento, situado desde a Revoluo Industrial do sculo XVII (e principalmente sculo XVIII), que a relao empregatcia (com a subordinao que lhe inerente) comear seu roteiro de construo de hegemonia no conjunto das relaes de produo fundamentais da sociedade industrial contempornea. Apenas a partir do instante em que a relao de emprego se torna a categoria dominante como modelo de vinculao do trabalhador ao sistema produtivo, que se pode iniciar a pesquisa sobre o ramo jurdico especializado que se gestou em torno dessa relao empregatcia. Esse instante de hegemonia de generalizao e massificao da relao de emprego no universo societrio somente se afirma com a generalizao do sistema industrial na Europa e Estados Unidos da Amrica; somente se afirma, portanto, ao longo do sculo XIX.

O Direito do Trabalho , pois, produto cultural do sculo XIX e das transformaes econmico-sociais e polticas ali vivenciadas. Transformaes todas que colocam a relao de trabalho subordinado como ncleo motor do processo produtivo caracterstico daquela sociedade. Em fins do sculo XVIII e durante o curso do sculo XIX que se maturaram, na Europa e Estados Unidos, todas as condies fundamentais de formao do trabalho livre mas subordinado e de concentrao proletria, que propiciaram a emergncia do Direito do Trabalho.

Por essa razo, cientificamente desnecessria a busca de manifestaes justrabalhistas em sociedades anteriores sociedade industrial contempornea. Nas sociedades feudais e antigas, a categoria do trabalho subordinado pode, eventualmente, ter surgido como singular exceo , mas jamais foi uma categoria relevante do ponto de vista socioeconmico. Muito menos erigiu-se em categoria socialmente dominante, a ponto de poder gerar um fenmeno de normatizao jurdica abrangente como o Direito do Trabalho. O Direito do Trabalho , desse modo, fenmeno tpico do sculo XIX e das condies econmicas, sociais e jurdicas ali reunidas.

IV. PROCESSO DE FORMAO E CONSOLIDAO DO DIREITO DO TRABALHO

O isolamento da categoria fundamental sobre a qual se constri o Direito do Trabalho (a relao de emprego) tarefa essencial para se encontrar seu preciso posicionamento na histria, eliminando-se a pesquisa errtica em torno de perodos em que esse ramo jurdico especializado seguramente no poderia gestar-se e desenvolver-se.

Fixado, contudo, o posicionamento histrico desse Direito, a pesquisa deve socorrer-se de uma segunda proposio de mtodo, qual seja a que informa que todo fenmeno resulta de mltiplas determinaes. Tal proposio permite apreender-se o conjunto diversificado de determinaes e fatores que conduziram emergncia e consolidao do ramo jurdico pesquisado. Assentado que qualquer fenmeno scio-histrico resulta de um complexo diferenciado e combinado de fatores, cabe identificarem-se as mltiplas determinaes que deram origem ao fenmeno sociojurdico do Direito do Trabalho.

O Direito do Trabalho surge da combinao de um conjunto de fatores, os quais podem ser classificados em trs grupos especficos: fatores econmicos, fatores sociais, fatores polticos. Evidentemente que nenhum deles atua de modo isolado, j que no se compreendem sem o concurso de outros fatores convergentes. Muito menos tm eles carter estritamente singular, j que comportam dimenses e reflexos diferenciados em sua prpria configurao interna (no h como negar-se a dimenso e repercusso social e poltica, por exemplo, de qualquer fato fundamentalmente econmico). Entretanto, respeitadas essas limitaes, a classificao sugerida mantm-se vlida e funcional, por permitir uma viso abrangente do conjunto do processo de construo e consolidao do ramo justrabalhista.

Do ponto de vista econmico, so fatores que propiciaram as condies favorveis ao surgimento do novo ramo jurdico especializado: de um lado, a utilizao da fora de trabalho livre mas subordinada como instrumento central de relao de produo pelo novo sistema produtivo emergente; de outro lado, a circunstncia de esse novo sistema produtivo tambm gerar e desenvolver uma distinta modalidade de organizao do processo produtivo, a chamada grande indstria. Essa nova modalidade suplantou as formas primitivas de organizao da produo, consubstanciadas no artesanato e na manufatura.

Esclarea-se este ltimo fator: a expresso grande indstria traduz um modelo de organizao do processo produtivo, baseado na intensa utilizao de mquinas e profunda especializao e mecanizao de tarefas, de modo a alcanar a concretizao de um sistema de produo seqencial, em srie rotinizada. O modelo da grande indstria conduziu utilizao macia e concentrada da fora de trabalho assalariada, que se torna instrumento integrante do sistema industrial caracterstico do capitalismo emergente.

Surge, por fim, tambm como relevante fator econmico, o processo generalizado e crescente de concentrao industrial (concentrao empresarial ou de capital, no sentido mais amplo), caracterstico dos pases europeus ocidentais e dos Estados Unidos da Amrica de fins do sculo XVIII e principalmente desenrolar do sculo XIX. Esse processo sobretudo ter o condo de acentuar outros fatores convergentes, como a utilizao macia da fora de trabalho pelo sistema produtivo e a formao de grandes contingentes urbanos operrios naquelas sociedades.

Do ponto de vista social, so fatores que propiciaram as condies favorveis ao surgimento do Direito do Trabalho: a concentrao proletria na sociedade europia e norte-americana em torno das grandes cidades industriais; o surgimento de uma inovadora identificao profissional entre as grandes massas obreiras, a partir de um mesmo Universo de exerccio de sua fora de trabalho universo consubstanciado no estabelecimento ou empresa.

Finalmente, do ponto de vista poltico, so fatores que conduziram ao surgimento do Direito do Trabalho as aes gestadas e desenvolvidas no plano da sociedade civil e do Estado, no sentido de fixar preceitos objetivos para a contratao e gerenciamento da fora de trabalho componente do sistema produtivo ento estruturado.

No plano da sociedade civil, tem fundamental relevncia a descoberta, pelos trabalhadores, da ao coletiva (em vez da simples ao individual) como instrumento de atuao, quer no mbito poltico (perante o Estado, principalmente), quer no mbito essencialmente profissional (perante o empregador ou empregadores, portanto). Em seguida, o aperfeioamento dessa estratgia coletiva de ao, mediante a formao e consolidao de organizaes coletivas de trabalhadores, seja sindicais, seja mais nitidamente polticas. Por fim, como sntese de todo esse processo, o surgimento de movimentos claramente polticos, com forte participao obreira, de que so exemplos marcantes o associacionismo sindical nacional e internacional, o socialismo, o comunismo.

Ainda no plano da sociedade civil, essa descoberta da ao coletiva tendeu a gerar modalidades novas de normatizao jurdica, abrangendo, em geral, segmentos de ponta do mercado econmico e as categorias mais avanadas do movimento operrio-sindical. Tal normatizao tpico Direito autnomo em contraposio ao heternomo estatal, ainda no surgido constitua-se de acordos coletivos, entre empregados e empregadores, entre sindicatos e grupos de empresas, entre sindicatos operrios e sindicatos patronais; de regulamentos de empresa; de conciliao de greves e conflitos coletivos de trabalho; de estatutos sindicais; de atividades cooperativas, e assim por diante. bvio que essa produo normativa autnoma, embora provocada, fundamentalmente, por um processo de organizao e mobilizao obreiras, evidenciava tambm a elaborao (consciente ou no) de uma estratgia empresarial alternativa, no sentido de assimilar e conferir instrumentos novos gesto trabalhista interna ao sistema produtivo.

No plano da sociedade poltica, o Estado, ainda no sculo XIX, comea a construir respostas diferenciadas mobilizao e presso vindas dos trabalhadores organizados. Nessa linha, ao lado da primitiva concepo de impermeabilidade poltica s presses operrias, afirma-se tambm uma linha de atuao estatal que incorpora a normatizao autnoma surgida na sociedade civil, sem estabelecer uma clara matriz de incompatibilidade entre o Direito autnomo negociado e o Direito heternomo produzido. o que se passou inquestionavelmente com a Inglaterra.

De par com isso, surgem ainda outras alternativas de ao estatal, reconhecedoras da existncia e relevncia da realidade e presses obreiras, embora procurando sistematizar respostas mais centralmente dirigidas em face desse novo e crescente processo. A poltica social de Bismarck, na Alemanha de fins do sculo XIX, ilustra com perfeio uma vertente dessa estratgia alternativa.

No contexto histrico-social em que se renem esses fatores econmicos, sociais e polticos, o Direito vigorante poca, consistente no Direito Civil, de formao liberal-individualista, no tinha resposta jurdica adequada ao fato novo da relao empregatcia. A matriz civilista clssica tendia a reduzir todas as questes surgidas no interior da relao de emprego a questes tpicas e prprias ao velho modelo de contrato bilateral. Portanto, questes de natureza civil e contratual, tratadas sob a tica individual dos sujeitos isolados da relao empregatcia de um lado, o empregador e, de outro lado, o empregado. Ambos tomados, pelo Direito Civil, como se indivduos singelos fossem.

Os segmentos sociais dos trabalhadores, a contar da segunda metade do sculo XIX, descobriram a ao coletiva, por meio da qual compreenderam, no transcorrer do processo, que seus dramas, necessidades e interesses no se explicavam a partir da tica exclusivamente contratual-civil e individual. Esses segmentos, socialmente dominados e juridicamente subordinados na estrutura do processo produtivo, passaram a formular, em contraposio ao esturio jurdico liberal e individualista da poca, propostas de normatizao de carter coletivo, abrangentes do conjunto dos trabalhadores envolvidos e subordinados. Dessa maneira, os trabalhadores, atravs de sua ao sociopoltica, conseguiram contrapor ao sujeito individual assimilado pelo Direito Civil da poca a idia de sujeito coletivo.

Todo esse processo desvelava a falcia da proposio jurdica individualista liberal enquanto modelo explicativo da relao empregatcia, eis que se referia a ambos os sujeitos da relao de emprego como seres individuais singelos. Na verdade, perceberam os trabalhadores que um dos sujeitos da relao de emprego (o empregador) sempre foi um ser coletivo, isto , um ser cuja vontade era hbil a detonar aes e repercusses de impacto social, seja certamente no mbito da comunidade do trabalho, seja eventualmente at mesmo no mbito comunitrio mais amplo. Efetivamente, a vontade empresarial, ao se concretizar em ao, atinge um universo bastante amplo de pessoas no conjunto social em que atua. Em comparao a ela, a vontade obreira, como manifestao meramente individual, no tem a natural aptido para produzir efeitos alm do mbito restrito da prpria relao bilateral pactuada entre empregador e empregado. O Direito Civil tratava os dois sujeitos da relao de emprego como seres individuais, ocultando, em sua equao formalstica, a essencial qualificao de ser coletivo detida naturalmente pelo empregador.

O movimento sindical, desse modo, desvelou como equivocada a equao do liberalismo individualista, que conferia validade social ao do ser coletivo empresarial, mas negava impacto maior ao do trabalhador individualmente considerado. Nessa linha, contraps ao ser coletivo empresarial tambm a ao do ser coletivo obreiro. Os trabalhadores passaram a agir coletivamente, emergindo na arena poltica e jurdica como vontade coletiva (e no mera vontade individual). Os movimentos sociais urbanos e, em particular, o sindicalismo e movimentos polticos de corte socialista (ou matiz apenas trabalhista) conseguem generalizar, portanto, seus interesses, vinculados aos segmentos assalariados urbanos, ao conjunto da estrutura jurdica da sociedade. Contrapem-se, assim, ao esturio jurdico liberal civilista dominante. O Direito do Trabalho uma das expresses principais dessa contraposio e generalizao da vontade coletiva vinda de baixo.

bvio que, numa etapa seguinte, o Direito do Trabalho europeu e norte-americano passaria a incorporar tambm em seu universo normativo a resposta jurdica dada pelo Estado ao avano dessa organizao obreira vinda de baixo. Contudo, a origem peculiar desse ramo jurdico especializado fundamental no processo de caracterizao do padro normativo do Direito do Trabalho nos pases desenvolvidos ocidentais. E que a circunstncia de surgir o Direito do Trabalho de um processo de luta, organizao e representao de interesses do conjunto da classe trabalhadora, ou pelo menos de seus segmentos mais avanados, fez com que esse novo ramo jurdico incorporasse, em seu interior nuclear, as dinmicas prprias atuao coletiva. A posterior assimilao pelo Direito do Trabalho das inevitveis estratgias de resposta e contraposio estatal ao obreira no teria o condo de suprimir ou romper a legitimidade poltica e fora jurgena (criadora do Direito) dessa dinmica democrtica original. Nesse sentido, o Direito do Trabalho dos pases desenvolvidos ocidentais que no por outra razo mantiveram-se dentro da experincia bsica democrtica seria um Direito do Trabalho sempre hbil a contemplar um largo espao produo normativa por parte dos prprios agentes sociais, no obstante a ao especfica do Estado.

V. FASES HISTRICAS DO DIREITO DO TRABALHO

O processo de formao e consolidao do Direito do Trabalho nos ltimos dois sculos conheceu algumas fases que tm caractersticas distintas entre si. Na busca da compreenso mais satisfatria desse ramo jurdico especializado, importante perceber-se a diferenciao que a dinmica de construo do universo trabalhista vivenciou na experincia dos pases de capitalismo central.

No que diz respeito ao Direito do Trabalho dos principais pases capitalistas ocidentais, os autores tendem a construir periodizaes que guardam alguns pontos fundamentais em comum. Um desses marcos fundamentais est no Manifesto Comunista, de Marx e Engels, em 1848. Outro dos marcos que muitos autores tendem a enfatizar est, em contrapartida, na Encclica Catlica Rerum Novarum, de 1891. Um terceiro marco usualmente considerado relevante pelos autores reside no processo da Primeira Guerra Mundial e seus desdobramentos, como, por exemplo, a formao da OIT Organizao Internacional do Trabalho (1919) e a promulgao da Constituio Alem de Weimar (1919). tambm desse mesmo perodo a Constituio Mexicana (1917). As duas cartas constitucionais mencionadas foram, de fato, pioneiras na insero em texto constitucional de normas nitidamente trabalhistas ou, pelo menos, pioneiras no processo jurdico fundamental de constitucionalizao do Direito do Trabalho, que seria uma das marcas distintivas do sculo XX.

H uma especfica tipologia (dos autores Granizo e Rothvoss), bastante recorrente em manuais sobre Direito do Trabalho, que foi claramente delineada a partir desses marcos histricos acima apontados. Esses dois autores percebem a existncia de quatro fases principais na evoluo do Direito do Trabalho: formao, intensificao, consolidao e autonomia.

A fase da formao estende-se de 1802 a 1848, tendo seu momento inicial no Peels Act, do incio do sculo XIX na Inglaterra, que trata basicamente de normas protetivas de menores. A segunda fase (da intensificao) situa-se entre 1848 e 1890, tendo como marcos iniciais o Manifesto Comunista de 1848 e, na Frana, os resultados da Revoluo de 1848, como a instaurao da liberdade de associao e a criao do Ministrio do Trabalho. A terceira fase (da consolidao) estende-se de 1890 a 1919. Seus marcos iniciais so a Conferncia de Berlim (1890), que reconheceu uma srie de direitos trabalhistas, e a Encclica Catlica Rerum Nova rum (1891), que tambm fez referncia necessidade de uma nova postura das classes dirigentes perante a chamada questo social. A quarta e ltima fase, da autonomia do Direito do Trabalho, tem incio em 1919, estendendo-se s dcadas posteriores do sculo XX. Suas fronteiras iniciais estariam marcadas pela criao da OIT (1919) e pelas Constituies do Mxico (1917) e da Alemanha (1919).

No h dvida de que a periodizao de Granizo e Rothvoss bastante descritiva de importantes eventos da Histria do Direito do Trabalho. Contudo, semelhana de outras periodizaes correntes, tem o inconveniente de no permitir nenhuma compreenso mais sistemtica sobre o padro de organizao do mercado de trabalho e de sua normatizao jurdica nos pases desenvolvidos ocidentais. periodizao descritiva mas no explicativa da substncia do Direito do Trabalho e dos modelos justrabalhistas a que se refere tal periodizao.

Por essa razo mantm-se aberto o espao para a busca de uma periodizao que permita o alcance de uma compreenso mais global, abrangente e sistemtica da experincia justrabalhista dos pases desenvolvidos centrais. Nessa linha, enxergamos trs fases principais no desenvolvimento emprico-normativo do Direito do Trabalho, desde o sculo XIX, s quais se acrescenta, hoje, um quarto perodo, abrangente das ltimas dcadas do sculo XX.A primeira fase a das manifestaes incipientes ou esparsas, que se estende do incio do sculo XIX (1802), com o Peels Act ingls, at 1848. A segunda fase, da sistematizao e consolidao do Direito do Trabalho, estende-se de 1848 at 1919. A terceira fase, da institucionalizao do Direito do Trabalho, inicia-se em 1919, avanando ao longo do sculo XX. Sessenta anos depois, em torno de 1979/80, deflagra-se no Ocidente um processo de desestabilizao e reforma dos padres justrabalhistas at ento imperantes (que produzir mais fortes reflexos no Brasil em torno da dcada de 1990). Trata-se da fase de crise e transio do Direito do Trabalho.1. Manifestaes incipientes ou Esparsas

A fase das manifestaes incipientes ou esparsas inicia-se com a expedio do Peels Act (1802), diploma legal ingls voltado a fixar certas restries utilizao do trabalho de menores.

Essa fase qualifica-se pela existncia de leis dirigidas to-somente a reduzir a violncia brutal da super explorao empresarial sobre mulheres e menores. Leis de carter humanitrio, de construo assistemtica. O espectro normativo trabalhista ainda disperso sem originar um ramo jurdico prprio e autnomo.

Trata-se tambm de um espectro esttico de regras jurdicas, sem a presena significativa de uma dinmica de construo de normas com forte induo operria. A diversidade normativa que no futuro caracterizaria o Direito do Trabalho no se faz ainda clara. Afinal, inexistia na poca uma unio operria com significativa capacidade de presso e eficaz capacidade de atuao grupal no contexto das sociedades europias e norte-americana. oportuno lembrar que a estratgia de atuao operria e socialista ainda est, neste momento histrico, fortemente permeada pelas concepes insurrecionais e/ou utpicas,