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Cultura, poder e memória na narrativa ficcional de Jorge Luis Borges Marcelo Neder Cerqueira 1 1. A narrativa ficcional de Jorge Luis Borges, com destaque para o conjunto de contos reunidos em Ficções (1944) – onde estão incluídas algumas de suas narrativas fantásticas mais referenciadas, tais como A biblioteca de babel (1941) e Funes, o memorioso (1944) – será analisada a partir de um prisma específico: o entrelaçamento da ficção com a realidade na experiência transitória do tempo, na memória e na transformação (morte). Para tanto, pretende-se fazer uma breve discussão teórico- metodológica junto às inovações epistemológicas vivenciadas pelo campo da história ao longo do século XX (especialmente a partir da relação entre memória e história, cultura política, história social e história oral). Sem perder de vista a incursão no texto de Borges, pretende-se estabelecer algumas ilações junto ao conceito de experiência histórica, trabalhado por Walter Benjamin a partir de suas considerações sobre a história, bem como sobre a arte narrativa – trata-se precisamente do conjunto de fragmentos Sobre o conceito da história (1940) e do artigo O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1936), ambos presentes no volume Magia e Técnica, Arte e Política (BENJAMIN, 1994) das obras escolhidas do autor. 2. Na adaptação de François Truffaut da ficção científica Fahrenheit 451 (1966), de Ray Bradbury – uma distopia futura sobre um mundo controlado pela televisão – uma força policial de bombeiros queima livros e bibliotecas enquanto rebeldes escondidos na floresta memorizam romances inteiros, passados de boca a boca para as novas gerações. A imagem é bastante sugestiva para se pensar metodologicamente a narrativa ficcional enquanto fonte histórica, considerando algumas possíveis relações entre literatura, história, memória e história oral na projeção de uma “história de baixo para cima” – para usar uma expressão chave para os estudos de Edward Thompson 1 Doutorando em História Social na Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Teoria Política na Universidade Federal Fluminense (UFF). Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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Cultura, poder e memória na narrativa ficcional de Jorge Luis Borges

Marcelo Neder Cerqueira 1

1.

A narrativa ficcional de Jorge Luis Borges, com destaque para o conjunto de

contos reunidos em Ficções (1944) – onde estão incluídas algumas de suas narrativas

fantásticas mais referenciadas, tais como A biblioteca de babel (1941) e Funes, o

memorioso (1944) – será analisada a partir de um prisma específico: o entrelaçamento

da ficção com a realidade na experiência transitória do tempo, na memória e na

transformação (morte). Para tanto, pretende-se fazer uma breve discussão teórico-

metodológica junto às inovações epistemológicas vivenciadas pelo campo da história ao

longo do século XX (especialmente a partir da relação entre memória e história, cultura

política, história social e história oral). Sem perder de vista a incursão no texto de

Borges, pretende-se estabelecer algumas ilações junto ao conceito de experiência

histórica, trabalhado por Walter Benjamin a partir de suas considerações sobre a

história, bem como sobre a arte narrativa – trata-se precisamente do conjunto de

fragmentos Sobre o conceito da história (1940) e do artigo O narrador: considerações

sobre a obra de Nikolai Leskov (1936), ambos presentes no volume Magia e Técnica,

Arte e Política (BENJAMIN, 1994) das obras escolhidas do autor.

2.

Na adaptação de François Truffaut da ficção científica Fahrenheit 451 (1966),

de Ray Bradbury – uma distopia futura sobre um mundo controlado pela televisão –

uma força policial de bombeiros queima livros e bibliotecas enquanto rebeldes

escondidos na floresta memorizam romances inteiros, passados de boca a boca para as

novas gerações. A imagem é bastante sugestiva para se pensar metodologicamente a

narrativa ficcional enquanto fonte histórica, considerando algumas possíveis relações

entre literatura, história, memória e história oral na projeção de uma “história de baixo

para cima” – para usar uma expressão chave para os estudos de Edward Thompson

1 Doutorando em História Social na Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Teoria Política na Universidade Federal Fluminense (UFF). Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

sobre a formação da classe operária inglesa (THOMPSON, 1968). Trata-se

especificamente de identificar em que medida o discurso artístico (a narrativa ficcional e

literária) se configura enquanto espaço de contra-narrativa nos processos históricos de

ideologização que marcam as transformações modernas.

Tomando algumas questões postas pela história oral e pelos diálogos entre

história e antropologia (com destaque para a importância da cultura nas “novas”

abordagens históricas), podemos situar um processo de redimensionamento da

qualificação da fonte histórica. Estamos particularmente interessados em verificar, por

exemplo, em que medida os problemas e soluções levantados pela abordagem

metodológica da história oral (dos testemunhos recolhidos através de depoimentos e

entrevistas que implicam a reflexão sobre o tempo presente e a relação entre memória e

história) são extensivos não só para a problematização do objeto histórico como um

todo, mas especialmente para as pesquisas sobre literatura. Neste sentido, se é verdade

que toda história é uma história contemporânea – ou, como sintetiza o jargão, “só há

história contemporânea” – destaca-se o olhar parcial, interessado e subjetivo do tempo

presente que media e mobiliza toda a experiência (histórica) de conhecimento histórico.

A superação da oposição entre memória e história, falso e verdadeiro, mito e

realidade impõe-se à base do argumento epistemológico da história oral, mas também

atravessa a formação de diferentes escolas historiográficas. Desde o princípio do século

XX, destacando as inovações epistemológicas ensejadas pela Escola dos Annales, com

Marc Bloch e Lucien Febvre, passando pela história social da escola de marxistas

ingleses como Edward Thompson e Raymond Willians, como também pelas diferentes

matizes da micro-história italiana, como Carlo Ginzburg e Alessandro Portelli (para

citar algumas das escolas mais significativas e influentes), podemos identificar, em

meio a heterogeneidade de abordagens ideológicas e historiográficas, uma tendência

epistemológica em comum na desconstrução do ideal positivo iluminista que toma a

história como uma ciência objetiva do passado, comprometida com o estabelecimento

de uma verdade histórica absoluta.

O entrelaçamento da ficção com a realidade se apresenta como uma violenta

experiência histórica constitutiva da passagem à modernidade na virada para o século

XX. Observando de forma mais abrangente, podemos destacar a culminância das duas

Grandes Guerras Mundiais como um evento histórico inter-relacionado que emerge da

conjuntura de crise do liberalismo e de acirramento das disputas políticas e sociais

vivenciada já desde o fim do século XIX – um evento dispersivo e multifacetado que

sintetiza a intensidade das contradições modernas. As inovações epistemológicas

encetadas pelas diferentes áreas do conhecimento e nas artes (com certo grau de

reciprocidade) encontram estranha ligação com esta conjuntura de crise; levam à

transformação de toda uma forma de pensar; falam da necessidade de criação de novas

ferramentas metodológicas e conceituais para se pensar a sociedade, a história e a

própria ideia de sujeito; colocam em questionamento as certezas e garantias asseguradas

pelo Iluminismo no curso do “progresso da civilização”. Os estudos culturais, mormente

os estudos sobre literatura, vem enfatizando a instrumentação sensível e a aguçada

imaginação sociológica que capacitou diferentes movimentos estético-expressivos a

ouvir a radicalidade destas transformações sociais e pensar alternativas a partir da

própria práxis artística. Os movimentos estéticos que marcam o começo do século XX

despontam como uma resposta invertida a esta conjuntura de crise; contraditoriamente,

a riqueza criativa e experimental, característica marcante destes movimentos, segue

produzindo inúmeros efeitos para o pensamento social e para a formação de novas

culturas políticas 2.

Um mesmo empreendimento crítico parece então ser repetido em diferentes

demandas por voz e escuta que mobilizaram os intelectuais a pensar o tempo presente (e

agir na história em movimento). Nas palavras de Benjamin, a intensidade e violência da

referida crise social que assolapou o mundo na primeira metade do século XX se revela

também como elaboração de um problema histórico, situado logo ao início do ensaio O

Narrador:

É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.

(...)

2 Esta contradição parece ser justamente a pedra de toque da interpretação de Carl Schorske sobre a modernidade vienense na virada para o século XX.

Uma das causas deste fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. (...) Com a guerra mundial, tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha; não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com a experiência transmitida de boca em boca. (...) Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos, se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano. (BENJAMIN, 1994, p. 198)

Um movimento análogo pode ser observado na demanda por voz e escuta que

mobilizou (e ainda mobiliza) as narrativas históricas a manterem viva e de forma

engajada a memória do Holocausto da Segunda Guerra Mundial. De fato, os novos

alinhamentos e composições políticas que seguem às duas Guerras Mundiais, e,

posteriormente, de forma expansiva, avançando pela Guerra Fria e pela dissolução da

União Soviética, oferecem uma gama muito vasta de experiências históricas

“silenciadas” ou reprimidas. Os historiadores e intelectuais não estão alheios a este

processo político mais amplo; as chamadas “querelas dos historiadores” sinalizam um

movimento disperso e heterogêneo de recuperação de algumas destas narrativas

silenciadas para fins diversos (e não sem certo grau de “revisionismo” das narrativas

ditas “oficiais” sobre a história em movimento). Este movimento complexo e

contraditório atualiza as disputas políticas e históricas, promovendo novos alinhamentos

e correlações de forças. Os estudos de história contemporânea ou história do tempo

presente, com destaque para a história oral, respondem a esta demanda, aproximando os

historiadores a uma heterogeneidade de narrativas e experiências históricas que

favorecem certo distanciamento da “retórica oficial”. Sem querer avançar

demoradamente no mérito deste debate, o acréscimo de “narrativas paralelas” ou mesmo

a vastidão de pontos de vista específicos, referidos a comunidades políticas particulares,

oferecendo novos olhares sobre as formações históricas, vem sendo observado como

indicativo de consolidação de sociedades democráticas. Todavia, mesmo esta relação

não se apresenta de forma tão simples e direta, como veremos posteriormente.

3.

Henry Rousso, em seu artigo A memória não é mais o que era (ROUSSO, 2001),

pontuando as lacunas e imperfeições constitutivas de toda fonte histórica, destaca a

necessária superação das oposições e dicotomias clássicas entre “mito e realidade” e

“memória e história” (ROUSSO, 2001, p. 97). Destaca-se a forma como a história da

memória coloca em evidência o próprio posicionamento do historiador (o lugar e os

limites de onde o historiador fala). Para Rousso: “a história da memória é um excelente

exercício crítico – e um exercício permanente – sobre o próprio ofício do historiador,

muito diferente de qualquer pretensão à normatividade.” (ROUSSO, 2001, p. 98). Em

movimento análogo, Michael Pollack, em conferência sobre Memória e Identidade

Social destaca a partir da especificidade da fonte oral a sua semelhança com a fonte

escrita. Quer dizer, o lugar de diferença estaria menos na qualificação da fonte e mais

na abordagem crítica do historiador, compreendendo os limites e condicionamentos que

situam o “documento” ou fonte histórica.

Se a memória é socialmente construída, é óbvio que toda a documentação

também o é. Para mim não há diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral. A crítica da fonte, tal como todo o historiador aprende a fazer, deve, a meu ver, ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Deste ponto de vista, a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita. Nem a fonte escrita pode ser tomada tal e qual ela se apresenta. (POLLACK, 1992, p. 8)

Alessandro Portelli, em seu artigo O massacre de Civitella Val di Chiana

(Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum, pontua com

bastante clareza a superação do paradigma iluminista na compleição dos fenômenos

históricos:

Representações e ‘fatos’ não existem em esferas isoladas. As representações se utilizam dos fatos e alegam que são fatos; os fatos são reconhecidos e organizados de acordo com as representações; tanto fatos como representações convergem na subjetividade dos seres humanos e são envoltos em sua linguagem. Talvez esta interação seja o campo específico da história oral, que é contabilizada como história com fatos reconstruídos, mas também aprende, em sua prática de trabalho de campo dialógico e na confrontação crítica com a alteridade dos narradores, a entender as representações. (PORTELLI, 2001, p. 111)

Um pouco mais à frente o autor ainda conclui:

(...) um mito não é necessariamente uma história falsa ou inventada; é, isso sim, uma história que se torna significativa na medida em que amplia o significado de um acontecimento individual (factual ou não), transformando-o na formalização simbólica e narrativa das auto-representações partilhadas por uma cultura. (PORTELLI, 2001, p.121)

As citações destacadas são válidas também para os estudos sobre literatura e

história. Portelli destaca a importância de se estudar a memória como uma construção

social; para o autor, não existe uma memória comunitária “pura e espontânea”: “(...)

estamos lidando com uma multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente

divididas, todas, de uma forma ou de outra, ideológica e culturalmente mediadas”

(PORTELLI, 2001, p. 106). O conceito de mediação, observado no conjunto da obra de

Theodor Adorno, pontua a influência da Escola de Frankfurt nos estudos sobre cultura,

história e política. Como destaca Raymond Willians referindo-se a Adorno: “(...) a

mediação está no objeto em si e não entre o objeto e aquilo que é elevado”

(WILLIANS, 1979, p. 102). Não podendo separar a forma discursiva (retórica) do

objeto ou do documento histórico em si, a pesquisa histórica implica a compreensão da

polifonia e da pluralidade de interesses que dão movimento aos processos históricos. De

fato, isto que parece delimitar-se como campo específico da história oral ganha uma

dimensão ampla, extensiva à práxis de todo intelectual, reconhecidamente implicado no

seu próprio objeto. Talvez seja este o sentido fundamental de se pensar o ofício do

historiador como uma arte artesanal, sugerido por Benjamin em suas considerações

sobre a perda da arte narrativa na sociedade burguesa, recuperada por Ginzburg na

figura do luthier de instrumentos musicais; um ensaiador por excelência (GINZBURG,

2002).

Ao propor a expressão conceitual “enquadramento da memória”, Michael

Pollack acentua as relações entre história e ideologia – uma verdadeira “dialética do

esclarecimento”, se poderia dizer. Todo o olhar, como um feixe de luz, produz a sua

referida cegueira ou sombra, acentuando ou distorcendo determinados aspectos em

detrimento de outros. Não obstante, “enquadramento” alude ao corte cinematográfico ou

fotografia: a prima metáfora dos estudos semióticos que está na base do conceito de

ideologia e do seu efeito de “distorção”, estudado por Karl Marx. Interessa então

perceber as relações entre o discurso histórico, a memória e a política (as relações de

poder que tencionam e mobilizam os discursos históricos). Quer dizer, compreender a

dimensão do interesse de dado olhar, discurso ou memória que consciente ou

inconscientemente direciona e “enquadra” determinada visão ou narrativa histórica.

Estamos muito além da ideia de “falsa consciência” que engessa a compreensão do

conceito Ideologia. A atual conjuntura favorece a busca de certa ambiguidade analítica

que seja capaz de dar conta da contradição e pluralidade da condição humana. A obra de

Marx deve ser compreendida justamente naquilo que, se distanciando do paradigma

iluminista, torna-se hábil na observação das contradições da sociedade moderna,

desmistificando a ilusão, sensação de “inocência” ou efeito de impessoalidade

transmitida pelos processos hegemônicos de dominação burguesa na passagem à

modernidade.

Para Pollack a memória deve ser entendida como “um fenômeno coletivo e

social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações,

transformações, mudanças constantes” (POLLACK, 1992, p. 2). A compreensão da

relação entre memória e história deve ser então observada na longa duração das

formações sociais. Neste sentido, Pollack destaca a relação entre memória, identidade e

tradição, também ressaltada no texto referencial de Jacques Le Goff sobre memória e

história (LEGOFF, 1984). Trata-se de um ponto chave para se pensar a interação entre

história e antropologia, ou a importância da cultura nas pesquisas históricas. Assim,

mesmo as comunidades políticas mais “naturalizadas” socialmente, como as nações, são

identificadas como “comunidades afetivas” – ressaltando a expressão destacada pelo

autor na obra de Halbwachs (HALBWACHS, 1990) 3.

Há muito a compreensão do conceito de ideologia superou o paradigma da “falsa

consciência”. E por mais que os efeitos ilusórios sejam constitutivos de toda ideologia

ou representação, a superação da oposição falso/verdadeiro é vivenciada hoje em dia

com certo consenso dentro das ciências humanas como um todo. Entretanto, se em 3 Vale destacar certa proximidade da ideia de “comunidade afetiva” com a expressão “comunidades imaginadas”, de Benedict Anderson.

princípios do século XX as ferramentas analíticas estavam viciadas pelos modelos e

concepções fechadas do processo histórico (e civilizatório, porque comprometido com a

expansão colonial e com uma história linear de consagração do mundo burguês e do

Ocidente), hoje em dia, em princípios do século XXI, contraditoriamente, parece ser o

excesso de relativismo o mesmo equivalente que sustenta a expansão do mesmo

processo civilizatório. Acentuar a pluralidade e diversidade dos pontos de vista que

atravessam a história não significa crer na existência de um mundo retórico totalmente

independente e autônomo. Para o pesquisador, considerar os efeitos incontroláveis e

incomensuráveis do movimento de reprodução e circulação das ideias não significa

redundar na vala comum idealista. É preciso, pois, observar cada caso e contexto com

especial atenção, levando em conta os condicionantes contextuais e as relações de força

na condução das escolhas políticas que fazem os processos históricos.

Compreender como esta inversão, promovida pelo excesso de relativismo, dá

continuidade e legitimidade ao mesmo processo de expansão civilizacional e dominação

– absolvendo e reestabelecendo certa “inocência” retórica do Ocidente burguês,

livrando o peso e a responsabilidade dos crimes históricos cometidos – parece ser o

ponto crucial e, ao mesmo tempo, mais sutil das indagações de Carlo Ginzburg em

Relações de Força: história, retórica e prova. Na contramão da tendência do vasto

relativismo das interpretações céticas e “pós-modernas”, o autor questiona a atual

redução da historiografia à sua dimensão simplesmente retórica e narrativa. Para o

autor, a prova se apresenta apenas superficialmente como um elemento alheio e

separado da retórica: “as provas, longe de serem incompatíveis com a retórica,

constituem seu núcleo fundamental” (GINZBURG, 2002, 63). Retomando o sentido de

experiência no ato de provar – experimentar – o autor advoga pelo conhecimento

possível (pelo diálogo possível), que no extremo significa também a defesa por um

convívio ou humanidade possível.

O meu objetivo (...) é vencer os cépticos em seu próprio terreno, revelando, por meio de um exemplo extremo, as implicações cognitivas das escolhas narrativas (incluindo as narrativas de ficção). Contra a ideia rudimentar de que os modelos narrativos intervém no trabalho historiográfico apenas no

final, para organizar o material coletado, busco mostrar que, pelo contrário, eles agem durante todas as etapas da pesquisa, criando interdições e possibilidades.

(...) A ideia de que as fontes, se dignas de fé, oferecem um acesso imediato à

realidade ou, pelo menos, um aspecto parcial da realidade, me parece igualmente rudimentar. As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem muros que obstruem a visão, como pensam os cépticos: no máximo poderíamos compará-las a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquer fonte implica já um elemento construtivo. Mas a construção (...) não é incompatível com a prova; a projeção do desejo, sem a qual não há pesquisa, não é incompatível com os desmentidos infligidos pelo princípio de realidade. O conhecimento (mesmo o conhecimento histórico) é possível (GINZBURG, 2002, pp. 44-45).

Ginzburg está preocupado com tons de perversão e cinismo que em alguns casos

o argumento relativista parece favorecer. Neste caso, a impossibilidade de se estabelecer

uma “verdade histórica”, ao invés de situar e posicionar “organicamente” o intelectual

em sua comunidade política acaba, contraditoriamente, produzindo em efeito contrário:

um efeito de velamento ou mascaramento da própria posição como um lugar vazio de

responsabilidade política, que curiosamente aceita ou consente com a “lei do mais

forte”, forma torpe de realismo (ou fatalismo) político, como instância última que

justifica e ao mesmo tempo alivia a culpa do exercício da dominação e da violência

(este parece ser precisamente a crítica que o autor faz aos textos de Montaigne referidos

à colonização nas Américas) 4. Ginzburg identifica em Nietzsche o referencial das teses

cépticas que sustentam o relativismo em voga e busca em uma releitura da Retórica de

Aristóteles a desconstrução da própria ideia de “retórica” superando a oposição

verdade/falsidade. Para o autor, a relação entre história, retórica e prova deve ser

articulada no âmbito da “verdade provável” e da “verossimilhança”.

4.

Jorge Luis Borges reúne de forma sintética a intensidade deste debate em sua

obra ficcional. É preciso compreender a dificuldade deste empreendimento. Voltemos

4 Sobre a discussão do lugar do intelectual e historiador (ou das ideias) nas formações históricas e sociais, as observações de Edward Said sobre As Representações dos Intelectuais (SAID, 2005) apontam para atualidade do pensamento de Gramsci sobre o conceito de “intelectual orgânico”. O debate está referido à questão da formação das ideias e a tensão do pensamento crítico em favor ou contra os limites e interesses orgânicos do próprio discurso.

ao argumento de Ginzburg: “vencer os cépticos em seu próprio terreno” – a obra de

Borges ganhou enorme destaque entre historiadores e cientistas sociais numa espécie de

revival de “novas velhas” polarizações entre racionalismo e irracionalismo. Sua

literatura vem sendo identificada no âmago do relativismo (em alguma medida,

hegemônico) dos meios intelectuais contemporâneos. Os contos reunidos em Ficções

travam um debate filosófico, intertextual e conceitual que sensibiliza o leitor à

experiência polifônica e subjetiva do tempo e da história. Destaca-se a forma como a

sua narrativa problematiza as categorias tempo e memória. O entrelaçamento entre

verdadeiro e falso – ser e parecer, para outra formulação de um mesmo problema –

pode ser encarado como uma questão de fundo que atravessa as diferentes narrativas de

Ficções. Destaca-se também o lugar ambíguo do narrador-contista, ao mesmo tempo

dentro e fora do próprio relato (a abundante utilização de recursos meta-textuais através

de notas fala a este posicionamento ambíguo, aprofundando a experiência desnorteante

de seu relato). Na obra ficcional de Borges, a dialética entre cegueira e visão discorre na

escrita enigmática sob a forma de um labirinto; como um jogo de espelhos infinitos. A

cegueira produzida pelo clarão da luminosidade como referência crítica aos pontos

cegos do Iluminismo. Os inúmeros textos, conferências, ensaios e diálogos recolhidos

na forma “Borges oral”, como costumam situar parte considerável de sua obra,

especialmente sua obra tardia, parecem repetir em sua própria vida a mesma experiência

entrelaçada entre verdadeiro e falso, sugerida pela progressiva cegueira que acometeu o

escritor 5. Retomando a anedota referida inicialmente sobre a distopia futura de

Fahrenheit 451, a linguagem ficcional borgiana radicaliza a narrativa como experiência

subjetiva, inspirada na força sonora, motriz da poesia e da arte de intercambiar

experiências.

Cabe dizer ainda, inspirado pelo método indiciário sugerido por Ginzburg, bem

como pela sua compreensão da prova como núcleo fundamental da retórica, que o texto

de Borges apenas parcialmente pode reduzir-se à influência filosófica de certa “devoção

5 Aquilo que na música “Tudo fora de lugar”, de Guinga e Aldir Blanc, conduz a metáfora do poeta como cego que vê na escuridão: “Que eu não ponho cada coisa em seu lugar / Comigo nunca foi assim / Princípio, meio e mais o fim / Que o meu fim é no começo das estórias / Onde eu morro pra nascer / No escuro é que eu sei ver”.

à Schopenhauer”, como mesmo escreve o autor em 1969, prefaciando sua “primeira

poesia”, escrita em 1923 – o jovem Borges de Fervor de Buenos Aires, que se encanta

com os arrabaldes da cidade porteña quando “volta ao Sul”. O caminho analítico via

Edgar Alan Poe ou pela dramaturgia do Sturm and Drung (“tempestade e ímpeto”,

numa tradução livre), constitutivo do romantismo alemão e da literatura fantástica é

extremamente plural na formação de um olhar crítico sobre o liberalismo tradicional e

não deve ser reduzido à tendência niilista em voga no excesso do relativismo pós-

moderno 6. O paradigma indiciário de Carlo Ginzburg habilita a confluência de Alan

Poe junto aos estudos sobre o inconsciente e o método analítico sugerido por Freud 7. A

aproximação com o método clínico apenas aparentemente se configura num terreno

distante dos estudos sobre metodologia da história. Uma breve incursão na primeira das

Cinco Lições de Psicanálise já posiciona a célebre comparação de Freud entre o

“sofrimento das reminiscências”, característica dos sintomas histéricos (que embaraçam

o sujeito na experiência de um passado traumático), com uma simples caminhada pelo

centro de Londres: “uma comparação com outros símbolos mnêmicos de gênero

diferente talvez nos permita compreender melhor este simbolismo: os monumentos com

que ornamos nossas cidades são também símbolos dessa ordem” (FREUD, 1974, pp.

18-19).

Editada originalmente em 1944 e dividida em duas partes – O jardim das

veredas que se bifurcam (1941) e Artifícios (1944) – Ficções marca decisivamente a

trajetória da obra ficcional de Borges. Destaca-se certa unidade que atravessa os

diversos contos. Uma das discussões mais instigantes que podemos identificar com

certa recorrência está no questionamento do sentido autoral e do próprio conceito de

plágio. A suposição ousada, desenvolvida de formas variadas, considera um universo 6 Nesse sentido, viemos interpretando a obra de Arthur Schnitzler naquilo que ela se diferencia da torrente de irracionalismo que arrasta a Europa centro-oriental, no âmbito da língua alemã, em princípios do século XX. Estamos particularmente interessados na composição de “outra racionalidade”, que se diferencia do racionalismo iluminista, mas que por diferentes condicionantes históricos, políticos e sociais, na vivência do impasse produzido pelo antissemitismo, também se afasta do irracionalismo político manipulado pelos movimentos pangermanistas de inspiração wagneriana que ganham as massas descontentes na referida conjuntura (NEDER CERQUEIRA, 2010). 7 A aproximação de Edgard Alan Poe junto à metodologia indiciária de Carlo Ginzburg pode ser estabelecida no conto “A Carta Roubada” (POE, 1997). Em Mitos, emblemas e sinais (GINZBURG, 1986), o historiador sugere a aproximação entre o detetive e o médico na composição de uma metodologia clínica.

mental, temporal e não espacial, que não respeita os limites do próprio indivíduo. Em

“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, da primeira parte de Ficções, a narrativa trava a busca

por uma enciclopédia apócrifa que descreve um planeta imaginário onde se desconhece

o conceito de plágio: “nos hábitos literários também é todo-poderosa a ideia de um

sujeito único. É raro que os livros sejam assinados. Não existe o conceito de plágio:

ficou estabelecido que todos as obras são de um autor, que é intemporal e anônimo.”

(BORGES, 2007, p. 26) A mesma metáfora pode ser observada, sobre outra perspectiva

(e com implicações mais radicais), em “Pierre Menard, autor do Quixote”. O

personagem de Borges pretende compor um Quixote contemporâneo, mas não outro

Quixote, senão justamente o Quixote original. Sem avançar nas muitas implicações

filosóficas sugeridas pelo argumento fantástico do conto – com destaque para a

discussão da “história como mãe da verdade” – o conto desenvolve o argumento no

limite do impossível, destacando a composição da “técnica do anacronismo

deliberado”, de Pierre Menard. Ao cotejar trechos das duas versões do Quixote,

idênticas do princípio ao fim, a “tosca” afirmação quixotesca soa formidável no texto de

Menard – seguindo a conclusão do narrador: “a verdade histórica para ele não é o que

aconteceu, mas o que julgamos que aconteceu” (BORGES, 2007, p. 43). De fato, a

ideia que por detrás de Homero havia muitos autores, assim como, por detrás do nome

J. Bach, toda uma escola artesanal de gerações de artistas, produz um encanto crítico e

certa identidade ao vasto campo intelectual comprometido na desconstrução do

racionalismo iluminista, especialmente da ideia tradicional de indivíduo racional,

autocontrolado e senhor de si, hegemônica na passagem à modernidade e constitutiva da

crise do liberalismo no final do século XIX.

Na narrativa ficcional de Borges tudo o que é possível é (assim como na

estrutura dramatúrgica do sonho). As atuais polêmicas em torno do conceito de direito

autoral e propriedade intelectual vem constituindo-se de forma cada vez mais eloquente

na sociedade contemporânea. Paralelamente a uma série de conquistas no âmbito do

direito no que diz respeito à ideia de um patrimônio cultural e coletivo, bem como de

certa conquista dos movimentos sociais quanto à necessidade de incluir a complexidade

das variáveis culturais na elaboração das políticas públicas, a sugestiva imagem do

universo virtual da internet como uma vasta biblioteca não-espacial se apresenta de

forma eloquente, ao mesmo tempo que perigosa – porque não exatamente alheia do

controle político do mercado das grandes corporações e dos Estados – vem impelindo os

intelectuais a buscarem novas alternativas conceituais, jurídicas e políticas para

enfrentar o problema.

Para compreender melhor a unidade existente entre o conjunto dos contos –

unidade que pode ser também observada na singularidade ou especificidade de cada

conto – uma breve revisão de alguns argumentos fantásticos ainda pode ser interessante.

Em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius o tom investigativo, embebido do suspense típico do

conto policial percorre toda a misteriosa busca por uma enciclopédia pirata, onde consta

a descrição de um país imaginário chamado Uqbar. A busca pelo absurdo, partindo de

uma controversa noturna com o amigo Bioy Casares, mobiliza a procura do volume

apócrifo da enciclopédica anglo-americana – com um capítulo subterrâneo, uma

numeração alterada, com informações básicas sobre a geografia, a política e a história

do falso país. “A seção Idioma e Literatura era breve. Apenas um traço memorável:

anotava que a literatura de Uqbar era de caráter fantástico e que suas epopeias e

lendas jamais se referiam à realidade, mas tão-só a regiões imaginárias Mlejnas e

Tlön...” (BORGES, 2011, pp. 15-16).

Das temporadas com o pai no hotel em Adrogué – os contos de Borges reservam

também diversas referências autobiográficas que se misturam na narrativa – o narrador

recorda a figura do inglês Herbert Ashe, engenheiro de ferrovias do Sul, morto

inesperadamente pela ruptura de um aneurisma. Dentre seus pertences legados no hotel

(na ocasião de sua morte, Ashe lá estava hospedado), um pacote do correio postal,

remetido do Brasil, ficara abandonado no bar do hotel. Por descoberta casual, no

frontispício no volume contava o décimo primeiro tomo de uma enciclopédia sobre o

planeta de nome Tlön.

Fazia dois anos que eu descobrira num tomo de certa enciclopédia pirata

uma descrição sumária de um falso país; agora, o acaso me deparava algo mais precioso e mais árduo. Tinha nas mãos um vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido, com suas arquiteturas e querelas, com o pavor de suas mitologias e o rumor de suas línguas, com seus imperadores e mares,

com seus minerais e pássaros e peixes, com sua álgebra e seu fogo, com sua controversa teológica e metafísica. Tudo isso articulado, coerentemente, sem visível propósito doutrinário ou paródico. (18)

Mobilizada pelo achado, a narrativa desenvolve então o argumento fantástico de

diferentes maneiras. Podemos encontrar diversos temas, expressões, frases enigmáticas

ou imagens ambíguas que variam sobre o achado absurdo – como leitmotiv (para usar

uma expressão constitutiva do romantismo alemão inspirada na obra de Wagner), que

percorre a caracterização do estranho planeta. Destaca-se também certa reivindicação

emancipatória – não sem algum exagero – do imaginário e da subjetividade. Abaixo

segue alguns trechos:

As nações desse planeta são – congenitamente – idealistas. Sua

linguagem e as derivações de sua linguagem – religião, as letras, a metafísica – pressupõe o idealismo. O mundo, para eles não é um concurso de objetos no espaço; é uma série heterogênea de atos independentes. É sucessivo, temporal, não espacial. (p. 20)

(...) O fato de ninguém crer na realidade dos substantivos faz com que,

paradoxalmente, seja infinito o seu número. Os idiomas do hemisfério boreal de Tlön possuem todos os nomes das línguas indo-européias – e muitos outros mais. (p. 21)

(...) Não é exagero afirmar que a cultura clássica de Tlön compreende uma

única disciplina: a psicologia. (p. 21) (...) (...) os homens desse planeta concebem o universo como uma série de

processos mentais que não se desenvolvem no espaço, mas de modo sucessivo no tempo. (...) Melhor dizendo; não concebem que o espaço perdure no tempo. (p. 21)

(...) (...) Esse monismo ou idealismo total invalida a ciência. Explicar (ou

julgar) um fato é uni-lo a outro; essa vinculação, em Tlön, é um estado posterior do sujeito, que não pode afetar ou iluminar o estado anterior. Todo o estado mental é irredutível: o mero fato de nomeá-lo – id est, de classificá-lo – implica um falseamento. (pp. 21-22)

(...) Uma das escolas de Tlön chega a negar o tempo: argumenta que o

presente é indefinido, que o futuro não tem realidade senão como esperança presente, que o passado não tem realidade senão como recordação presente. Outra escola declara que todo o tempo já transcorreu e que nossa vida é apenas

recordação, ou reflexo crepuscular, sem duvida falseado e mutilado, de um processo irrecuperável. Outra, que a história do universo – e nela nossas vidas e o mais tênue detalhe de nossas vidas – é a escrita que um Deus subalterno produz para se entender com um demônio. Outra, que o universo é comparável a essas criptografias em que não valem todos os símbolos e que só é verdade o que acontece a cada trezentas noites. Outra, que, enquanto dormirmos aqui, estamos desperto noutra parte e assim cada homem é dois homens. (pp. 22-23)

(...) Todos os homens, no vertiginoso instante do coito, são o mesmo homem.

Todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare são Shakespeare. (p. 24)

(...) Um livro que não contenha seu contralivro é considerado incompleto. (p.

26)

Todas as passagens destacadas acima desenvolvem com radicalidade o mesmo

tema: conferir certa autonomia e independência às “representações”, falando de forma

um tanto abrangente. Em outras palavras, as passagens acima destacadas sublinham

uma dada pulsão auto-reprodutiva das ideias (representada no pressuposto idealista de

um mundo temporal não-espacial). Sem dúvida há certo exagero, não no sentido do

“erro”, mas da caricatura, típico da narrativa fantástica e do corpo metamórfico do

fantástico que recorrentemente leva ao extremo o argumento proposto. Borges sugere

mais uma vez a imagem do labirinto: “Tlön pode ser um labirinto, mas é um labirinto

urdido por homens, um labirinto destinado a ser ordenado por homens” (BORGES,

2007, p. 32).

Em Biblioteca de Babel, Borges desenvolve o argumento fantástico da

“biblioteca interminável” como labirinto infinito. Trata-se de uma das imagens mais

recorrentes do escritor. Corredores, muros, hexágonos, andares, prateleiras, livros que se

repetem em abismos numa enormidade sem fim. A descrição da Biblioteca reúne

passagens fabulosas: “à esquerda e à direita do corredor há dois gabinetes minúsculos.

Um permite dormir em pé; o outro, satisfazer as necessidades finais” (BORGES, 2007,

p. 69). Uma escada espiral que atravessa corredores em andares “rumo ao mais

remoto”. “No corredor há um espelho que fielmente duplica as aparências”

(BORGES, 2007, p. 69). A Biblioteca é total; reúne todas as línguas num universo

cacofônico e multiforme feito da combinação indefinida de seus algarismos. Não há na

vasta biblioteca dois livros idênticos. Impossível discernir entre o verdadeiro e o falso.

Por vez o que difere um livro ou tratado de um correspondente apócrifo não passa de

uma vírgula ou espaço em branco. Em Biblioteca de Babel os homens são bibliotecários

imperfeitos que se aventuram pelo labirinto em busca de sentido. Assim, um mesmo

desenvolvimento narrativo de levar à exaustão o argumento fantástico variando sobre o

mesmo tema de diferentes maneiras pode ser observado na Biblioteca de Babel. Der

forma semelhante a outros contos do autor, o sugestivo uso de notas compondo uma

dimensão meta-textual duplica a experiência de entrelaçamento da ficção com a

realidade, assim como a inclusão de experiências autobiográficas do escritor em meio

ao texto ficcional. No caso específico da Biblioteca, vale lembrar ainda que Borges foi

diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires. Abaixo destacamos algumas passagens

que variam sobre o argumento fantástico sugerido por Borges:

A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco prateleiras; cada prateleira contém trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro tem quatrocentas e dez páginas; cada página, quarenta linhas; cada linha, umas oitenta letras de cor negra. Também há letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas. (p. 70)

(...) Um, que meu pai viu num hexágono do circuito quinze noventa e quatro

constava das letras M C V perversamente repetidas desde a primeira linha até a última. Outro (muito consultado nesta zona) é um mero labirinto de letras, mas a penúltima página diz: “Oh tempo tuas pirâmides”. Já se sabe: por uma linha razoável ou uma informação correta há léguas de insensatas cacofonias, de mixórdias verbais e incoerências. (pp. 71-72)

(...) Durante muito tempo acreditou-se que esses livros impenetráveis

correspondessem a línguas pretéritas ou remotas. É verdade que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem bem diferente da que falamos agora; é verdade que algumas léguas à direita a língua é dialetal e que, noventa andares mais acima, é incompreensível. Tudo isso, volto a dizer, é verdade, mas quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a idioma algum, por dialetal ou rudimentar que seja. Houve quem insinuasse que cada letra podia influir na subsequente e que o valor de M C V na terceira linha da página 71 não era o que a mesma série pode ter noutra posição de outra página, mas essa vaga tese não prosperou. (p. 72)

(...) Faz quinhentos anos, o chefe de um hexágono superior deu com um livro

tão confuso quanto os demais, porém que tinha, porém, quase duas folhas de

linhas homogêneas. Mostrou o seu achado a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em português; outros lhe disseram que em iídiche. Antes de um século puderam estabelecer o idioma: um dialeto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico. Também se decifrou o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variantes com repetição ilimitada. Esses exemplos permitiram que um bibliotecário de gênio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Esse pensador observou que todos os livros, por diversos que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula as vinte e duas letras do alfabeto. Também alegou um fato que todos os viajantes confirmaram: “Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos”. Dessas premissas irrefutáveis deduziu que a Biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos (numero, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catalogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito. (p. 73)

(...) Também se esperou então o esclarecimento dos mistérios básicos da

humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É verosímil que esses graves mistérios possam ser explicados em palavras: se a linguagem dos filósofos não bastar, a multiforme Biblioteca produzirá o idioma inaudito que for necessário e os vocabulários e gramáticas desse idioma. Faz já quatro séculos que os homens esgotam os hexágonos… (p. 74)

(...) Volto a dizer: basta que um livro seja possível para que exista. Somente

fica excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é também uma escada, embora, sem dúvida, haja livros que discutem e negam e demonstram essa possibilidade e outros cuja estrutura é correspondente a uma escada. (p. 76)

(...) A escrita metódica me distrai da presente condição dos homens. A

certeza de que tudo está descrito nos anula ou faz de nós fantasmas. Conheço distritos em que os jovens se prosternam diante dos livros e beijam com barbárie as páginas, mas não sabem decifrar uma única letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que inevitavelmente degeneram em banditismo dizimaram a população. Creio ter mencionado os suicídios, cada ano mais frequentes. Talvez a velhice e o medo me enganem, mas suspeito que a espécie humana – a única – está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta. (p. 78)

Dos contos reunidos em Ficções, talvez seja Funes, o memorioso o mais rico em

imagens e metáforas que falam alegoricamente da relação entre a memória e a história –

bem como da contradição constitutiva do conhecimento na sua dialética entre cegueira e

visão, memória e esquecimento. A reflexão sobre o tempo, a morte e a memória

configura-se como um dos temas centrais da narrativa ficcional de Borges. Tal como

outros contos do autor, podemos identificar uma série de detalhes em comum no

desenvolvimento de seu argumento fantástico. O conto relata as habilidades de Ireneo

Funes, um excêntrico rapaz de Fray Bentos – cuja mania pela cronometragem precisa do

tempo caracteriza-o como verdadeiro relógio pela simples consulta do dia; Fray Bentos:

uma pequena cidade uruguaia onde o narrador (um intelectual da capital argentina)

passa suas férias de veraneio e conhece casualmente Funes, sua voz zombeteira, seu

sotaque suburbano, sem os “sibilos italianos de agora” (BORGES, 2007, p. 99).

Após um acidente com um cavalo redomão, Funes torna-se paralítico. No

instante momento do acidente, porém, o rapaz percebe imediatamente o

desenvolvimento de suas habilidades mnêmicas. Ao retornar a Fray Bentos dois anos

mais tarde, o narrador trava um diálogo com o rapaz. Destaca-se a caracterização de

Funes, típica da narrativa de Borges: um compadrito dos “arrabaldes sul-americanos”,

que afronta, por sua universalidade de pensamento, a relação centro-periferia e o

controle hegemônico da sabedoria. “Recordo-me dele, a cara de índio taciturna e

singularmente remota, atrás do cigarro. Recordo (creio) suas mãos afiladas de

trançador. Recordo, perto daquelas mãos, uma cuia de mate, com as armas da Banda

Oriental” (BORGES, 2007, p. 99). De fato, a caracterização do narrador como um

intelectual da capital, bem como a considerável distancia entre Funes e o narrador, é

bastante significativa; trata-se, pois, do reconhecimento da sabedoria fantástica de

Funes, ou da universalidade do conhecimento filosófico na composição de um

“Zaratrusta xucro e vernáculo” (BORGES, 2007, p. 100).

A minha deplorável condição de argentino impedir-me-á de incorrer no ditirambo – gênero obrigatório no Uruguai; quando o tema é um uruguaio. Literato, metido, portenho. Funes não disse essas palavras injuriosas, mas de um

modo suficiente me consta que eu representava para ele tais desventuras (BORGES, 2007, p. 100).

Destaca-se também a forma repetida de narração iniciada pela expressão

“recordo-me”; uma constante em toda a narrativa, que se propõe, finalmente, a relatar

um diálogo travado entre o jovem memorioso e o narrador, quando este retorna a cidade

Fray Bentos. O diálogo segue em meio à escuridão do quarto de Funes. São inúmeras as

referências do narrador à voz de Funes em meio à escuridão. “A voz de Funes, de

dentro da escuridão, continuava falando” (BORGES, 2007, p. 105). Ou ainda: “Então

vi a cara da voz que havia falado a noite toda” (BORGES, 2007, p. 108). A narrativa

segue então explorando de diferentes maneiras o argumento fantástico do jovem rapaz

de memória infalível que enfrenta os limites da própria vida. A imagem da memória

total repete alegoricamente a experiência aterradora da condição humana sugerida por

Borges em a biblioteca de Babel: “talvez todos saibamos no fundo que somos imortais

e que mais cedo ou mais tarde, todo homem fará todas as coisas e saberá tudo”.

(BORGES, 2007, p. 105). Ao que devemos ainda acrescentar: saber tudo tem o

equivalente no não saber nada. A memória infalível de Funes fala, pois, ao seu inverso

contraditório. As distorções constitutivas da literatura fantástica inserem-se na

caricatura da metamorfose e transformações humanas.

Abaixo seguem algumas passagens recortadas que desenvolvem argumento do

conto. O ponto mais difícil do relato do narrador trata precisamente do diálogo travado

com Funes.

Chego, agora, ao ponto mais difícil do meu relato. Este (é bem verdade que já o sabe o leitor) não tem outro argumento senão esse diálogo de há já meio século. Não tratarei de reproduzir as suas palavras, irrecuperáveis agora. Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que Ireneo me disse. O estilo indireto é remoto e fraco; eu sei que sacrifico a eficácia do meu relato; que os meus leitores imaginem os períodos entrecortados que me abrumaram essa noite. (pp. 103-104)

(...) Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o azulego o derrubou,

ele havia sido o que são todos os cristãos; um cego, um surdo, um aturdido, um desmemoriado. (Tratei de recordar-lhe a percepção exata do tempo, a sua

memória de nomes próprios; não me deu a menor importância.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paralítico. Fato pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora a sua percepção e sua memória eram infalíveis. (p. 104)

(...) (...) Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três

vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia duvidado nunca, mas cada reconstrução tinha exigido um dia inteiro. Disse-me: Eu sozinho tenho mais lembranças do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Meu sonho é como a vigília de vocês. E ainda, por volta do amanhecer: Minha memória, senhor, é como um monte de lixo. Uma circunferência numa lousa, um triângulo retângulo, um losango, são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo acontecia com Ireneo em relação às tempestuosas crinas de um potro, a uma ponta de gado numa coxilha, ao fogo bruxuleante e às cinzas inumeráveis, às muitas faces de um morto em um grande velório. Não sei quantas estrelas via no céu. (p. 105)

(...) Com efeito, Funes não apenas recordava cada folha de cada árvore de

cada monte, mas também cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria logo por cifras. Foi dissuadido por duas considerações: a consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não havia acabo ainda de classificar todas as lembranças da infância. (pp. 106-107)

(...) Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cachorro

abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; incomodava-o que o cachorro das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro (visto de frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no a cada vez. (p. 107)

(...) Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido

espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente preciso. (p. 107)

Para o vertiginoso e labiríntico mundo de Funes, cuja memória é total e

infalível, o sono configura-se como lugar de esquecimento. “Para ele dormir é muito

difícil. Dormir é distrair-se do mundo” (BORGES, 2007, p. 108). Talvez porque sua

perene vigília seja ela mesma um sonho constante; um lugar mental absoluto, eterno.

Funes pode ser tomado como a própria metáfora da Biblioteca de Babel. O mundo

multiforme de Borges repete-se nos diferentes argumentos fantásticos de Ficções. Em

Funes, o memorioso, a falibilidade do conhecimento humano, da própria vida humana,

se apresenta também como um problema de ordem metodológica: “Tinha aprendido

sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era

muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No

mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos” (BORGES,

2007, p. 108).

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