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CULTURA E TÉCNICA NO PENSAMENTO EDUCACIONAL DE ALCEU AMOROSO LIMA Alvaro de Oliveira Senra (CEFET-RJ) Introdução O autor aqui apresentado sempre participou da vida brasileira na condição de protagonista, defendendo apaixonadamente suas convicções na ação política concreta, no debate das ideias e nas salas de aula. Alceu Amoroso Lima não foi exclusivamente um educador. Mas, sendo educador, exerceu esse ofício com brilhantismo e em coerência com seu pensamento Tendo, após sua conversão em 1928, aderido ao catolicismo conservador, hierárquico e militante, na maturidade seu posicionamento foi, gradativamente, assumindo a defesa da liberdade, da democracia e dos direitos humanos. O catolicismo se manteve como elo entre trajetória pessoal, compromisso político e vida profissional, mas Alceu Amoroso Lima, a partir da década de 1940, soube se distanciar de seus aspectos mais rígidos e reacionários, enriquecendo seu pensamento e se colocando em defesa da liberdade. Para ele, nas diversas obras em que publicou e nas instituições em que lecionou, a educação teria como objetivo a dignificação da pessoa humana. Alceu Amoroso Lima foi um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX. Ele nasceu no Rio de Janeiro, capital da recém-proclamada República, no ano de 1893, e formou- se em Direito em 1914. Sua vida foi longa e produtiva, estendendo-se por 90 anos cruciais da história de nosso país. Alceu vivenciou e foi protagonista de fenômenos de extrema importância para a sociedade brasileira, como a industrialização e a urbanização, que deixaram para trás séculos de vida centrada no mundo rural. De forma mais relacionada ao tema abordado neste texto, ele foi figura central no conflituoso processo de transformações experimentado pela Igreja Católica 1 a partir de meados do século passado; também com grande destaque, participou dos debates relacionados à presença católica na implantação e extensão de uma grande rede de educação pública no país, após a década de 1930. Alceu veio a falecer na cidade de Petrópolis, em 1983. 1 A partir deste ponto do texto, denominada simplesmente Igreja.

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CULTURA E TÉCNICA NO PENSAMENTO EDUCACIONAL DE ALCEU

AMOROSO LIMA

Alvaro de Oliveira Senra (CEFET-RJ)

Introdução

O autor aqui apresentado sempre participou da vida brasileira na condição de

protagonista, defendendo apaixonadamente suas convicções na ação política concreta, no

debate das ideias e nas salas de aula. Alceu Amoroso Lima não foi exclusivamente um

educador. Mas, sendo educador, exerceu esse ofício com brilhantismo e em coerência com

seu pensamento

Tendo, após sua conversão em 1928, aderido ao catolicismo conservador, hierárquico

e militante, na maturidade seu posicionamento foi, gradativamente, assumindo a defesa da

liberdade, da democracia e dos direitos humanos.

O catolicismo se manteve como elo entre trajetória pessoal, compromisso político e

vida profissional, mas Alceu Amoroso Lima, a partir da década de 1940, soube se distanciar

de seus aspectos mais rígidos e reacionários, enriquecendo seu pensamento e se colocando em

defesa da liberdade. Para ele, nas diversas obras em que publicou e nas instituições em que

lecionou, a educação teria como objetivo a dignificação da pessoa humana.

Alceu Amoroso Lima foi um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX. Ele

nasceu no Rio de Janeiro, capital da recém-proclamada República, no ano de 1893, e formou-

se em Direito em 1914. Sua vida foi longa e produtiva, estendendo-se por 90 anos cruciais da

história de nosso país. Alceu vivenciou e foi protagonista de fenômenos de extrema

importância para a sociedade brasileira, como a industrialização e a urbanização, que

deixaram para trás séculos de vida centrada no mundo rural. De forma mais relacionada ao

tema abordado neste texto, ele foi figura central no conflituoso processo de transformações

experimentado pela Igreja Católica1 a partir de meados do século passado; também com

grande destaque, participou dos debates relacionados à presença católica na implantação e

extensão de uma grande rede de educação pública no país, após a década de 1930. Alceu veio

a falecer na cidade de Petrópolis, em 1983.

1 A partir deste ponto do texto, denominada simplesmente Igreja.

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A experiência crucial de sua vida foi a conversão ao catolicismo, em 1928. Nos anos

de sua juventude, ele havia se distanciado da fé católica, por influência de idéias com que

travara conhecimento quando estudante, como o evolucionismo e o liberalismo. A partir de

1924, no entanto, uma crescente inquietação o fez buscar contato com membros do Centro

Dom Vital, uma organização católica de grande ativismo. Mais tarde, Alceu se destacaria

tanto como liderança católica, que viria a presidir esta entidade por nada menos que 38 anos.

A reaproximação com o catolicismo foi um processo demorado e sofrido, que o levou

ao distanciamento de vários amigos de juventude. Finalmente, aos 35 anos de idade, Alceu

Amoroso Lima se confessou e se assumiu como católico. Sua vida, a partir de então, passou

por uma mudança radical, se confundindo com a trajetória do catolicismo no Brasil,

assumindo integralmente seus pressupostos.

Cultura e técnica no pensamento educacional de Alceu Amoroso Lima

Homem com múltiplos interesses e frentes de atuação, costurados por um catolicismo

vibrante e comprometido, Alceu Amoroso Lima foi advogado, jornalista, tradutor, crítico

literário e escritor, entre outros. Foi também um grande educador.

Advogado de formação, sua carreira docente foi iniciada em 1932, ano em que

começou a lecionar sociologia no Instituto Católico de Estudos Superiores, entidade vinculada

ao Centro Dom Vital. Essa experiência alicerçou uma longa carreira, que se estenderia pelas

décadas seguintes. (Ferreira, 2001, p. 3130)

Em 1937 assumiu o cargo de reitor da Universidade do Distrito Federal, em um

contexto político de forte combate às idéias de esquerda, o que incluía demissões de

professores suspeitos de simpatizar com o comunismo. A partir da década seguinte, Alceu

lecionaria na Universidade do Brasil (atual UFRJ) e na PUC do Rio de Janeiro, vindo a se

aposentar no ano de 1963. Também deu cursos em universidades nos Estados Unidos e na

França. Sua destacada atuação levou-o, em 1935, à participação como membro do Conselho

Nacional de Educação, em que permaneceu durante 35 anos. (Cury, 1999, p. 39)

A condição de educador vinculava Alceu a uma das áreas mais estratégicas de atuação

da Igreja Católica no mundo moderno. Afinal, desde as Revoluções Liberais, no final do

século XVIII e início do século XIX a educação se tornou preocupação dos Estados nacionais,

desalojando a Igreja de um monopólio secular.

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Os Estados nacionais e liberais modernos buscaram organizar a educação pública em

torno de seus princípios políticos e de suas necessidades econômicas: desta forma, os

programas escolares valorizavam o civismo, o pertencimento à comunidade nacional, a

instrução prática da língua e da matemática, etc. Desvinculados da religião, tendiam também

para o laicismo, excluindo a religião dos programas escolares e deslocando-a para o âmbito

pessoal e familiar.

Essas medidas desagradaram profundamente os católicos, que procuraram reagir

defendendo a existência de sua rede de escolas (geralmente voltada para a educação de elites)

e lutando para reintroduzir o ensino religioso nas redes públicas em constante expansão.

A Igreja Católica publicou sucessivos documentos, elaborando e difundindo suas

idéias educacionais. Em 1929, por exemplo, o Papa Pio XI publicou a encíclica Divini Illius

Magistri, no qual defendia o papel privilegiado da Igreja na educação, em virtude de “dois

títulos de origem sobrenatural”:

O primeiro provém da expressa missão e autoridade suprema de magistério que lhe foi

dada pelo seu Divino fundador: “Todo o poder me foi dado no céu e na terra. Ide, pois,

ensinai todos os povos, batizando-os em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo,

ensinando-os a observar tudo o que vos mandei. E eu estarei convosco até a consumação dos

séculos”. O segundo título é a maternidade sobrenatural, pela qual a Igreja, Esposa imaculada

de Cristo, gera, nutre, educa as almas na vida divina da graça, com os seus sacramentos e o

seu ensino. Pelo que, com razão, afirma S. Agostinho: “Não terá Deus como Pai quem se tiver

recusado a ter a Igreja como Mãe.”. Portanto, o próprio objeto da sua missão educativa, isto é,

“na fé e na instituição dos costumes, o próprio Deus fez a Igreja participante do magistério

divino e, por benefício seu, imune de erro, por isso ela é mestra suprema e seguríssima dos

homens, e que lhe é natural o inviolável direito à liberdade de magistério.”(Carta Encíclica

Divini illius Magistri. www.vatican.va. Acessado em 08 de setembro de 2012).

Toda uma série de documentos e discursos posteriores indica a centralidade da

educação para os dirigentes católicos. Segundo as palavras do Papa Pio XI, em discurso

proferido em 1953: “a Educação é, de fato, e sem sombra de dúvida, sob seu aspecto mais

essencial, a mais atualizada forma de apostolado. Não afirmamos isso sem reflexão. A

Educação é, verdadeiramente, a modalidade mais moderna de Apostolado.” (Cruz, 1966, p.

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As transformações que a Igreja viveria na década de 1960 mantiveram a prioridade

concedida à educação. O Concílio Vaticano II, considerado como um marco na abertura do

catolicismo ao diálogo com o mundo moderno, aprovou a Declaração Gravissimum

Educationis, que reivindicou para a Igreja um papel educacional que deriva de sua natureza

transcendente:

A Santa Mãe Igreja tem sua responsabilidade quanto ao progresso e

expansão da educação, uma vez que, para cumprir o mandato recebido

de seu divino Fundador, a saber, o de anunciar o mistério da salvação

aos homens todos e o de tudo restaurar em Cristo, deve cuidar de toda

a vida do homem, também da terrena enquanto conexa com a vocação

celeste. (Declaração Gravissimum Educationis, 2000, p. 582)

Em todos esses documentos, há uma linha de coerência que permeia as posições

defendidas pelo catolicismo institucional para a educação: o direito da Igreja a ter sua próprias

escolas, a prerrogativa concedida às famílias católicas em escolher a educação que convém

para seus filhos (resumida na bandeira da “liberdade de ensino”), a negação ao Estado do

monopólio de educar e a introdução do ensino religioso nas escolas públicas.

A citação dos documentos católicos para a educação permite a compreensão de muitas

das posturas adotadas por Alceu Amoroso Lima ao longo de sua vida. Sua condição de

militante católico apaixonado o levou, principalmente na década de 1930, a assumir as

posições defendidas vigorosamente pela Igreja:

Nos anos 30, ainda que presente à defesa básica da liberdade de ensino e do direito de

a família escolher a educação que mais lhe conviesse, Alceu não questionou o princípio de

uma educação primária pública e gratuita. Como político conservador, católico e simpatizante

de um regime hierárquico-autoritário, opôs-se tenazmente à laicidade no ensino púbico.

(Cury, 1999, p. 41)

A postura de católico militante levou Alceu a combater sem tréguas não somente a

escola pública laica (condição que esta tivera durante toda a Primeira República, entre 1889 e

1930), como, também, a influência norte-americana que via nas idéias da Escola Nova que

eram adotadas por vários educadores brasileiros (idéias que Alceu considerava inimigas da

civilização espiritual cristã e de sua pedagogia). Após a vitória da Revolução de 1930, ele

apoiou e justificou a reintrodução, por Francisco Campos, Ministro da Educação do governo

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provisório de Getúlio Vargas, do ensino religioso na educação pública. Alceu se tornou, ao

longo do período Vargas (1930-1945), “o principal interlocutor da Igreja Católica com o

Ministério da Educação e Saúde Pública.” (Cury, 1999, p. 42)

Nos últimos anos da década de 1930, no entanto, Alceu se afastou gradativamente da

visão católica autoritária que havia regido sua atuação após sua conversão ao catolicismo, em

1928.

O decorrer da década de 1940 reservou para Alceu uma revisão de sua convicção de

cruzado da “neocristandade”. Sua postura crítica e seu afastamento em relação às posições

conservadoras adotadas pela hierarquia se ampliaram à medida em que ele foi tomando

contato com pensadores católicos defensores do diálogo com o mundo moderno e com

práticas sociais inovadoras de clérigos e leigos católicos europeus, como as experiências dos

“padres operários” na França logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Para ele, os anos

1950 foram o tempo de uma transição, “de ‘católico leigo oficial’ ao Alceu que vai, em uma

postura mais livre dos ditames institucionais, adotar posicionamentos inovadores no âmbito

da Igreja nacional.” (Costa, 2006, p. 106-107)

Esse reencontro pessoal de Alceu com posturas mais tolerantes e democráticas

resultou em conflitos com a hierarquia católica. Sintomático foi seu afastamento em relação à

principal liderança religiosa brasileira àquela época, o Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro,

D. Jaime de Barros Câmara. Ao mesmo tempo, permitiu a Alceu uma considerável liberdade

de ação, que ele explorou não somente como educador, mas, também, como um ativo

jornalista, colaborador de alguns dos mais importantes órgãos da imprensa.

Seria o advento do Regime Militar, em 1964, que libertaria toda a energia democrática

de Alceu. Embora não apoiasse muitas das posturas adotadas durante o último período do

governo de João Goulart, divergindo da radicalização política em curso no início do ano de

1964, Alceu Amoroso Lima combateu as medidas de restrição à liberdade impostas pelos

militares em sua coluna no Jornal do Brasil, e se opôs sistematicamente ao primeiro governo

militar, comandado pelo General Humberto Castelo Branco. Em 1966, ele liderou um

manifesto de intelectuais contra novas medidas de exceção adotadas pelos militares. (Ferreira,

2001, p. 3132)

Essa postura crítica em relação ao Regime Militar se estendeu até o fim de sua vida,

não se restringindo aos aspectos políticos, como a repressão e os limites impostos à liberdade

de pensamento. Abarcou também os resultados das políticas econômicas adotadas pelos

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militares, que agravaram a desigualdade social, piorando em muito as condições de vida dos

trabalhadores. Desta forma, até o fim de sua vida, em 1983, Alceu Amoroso Lima foi um

homem que se posicionou e assumiu de frente suas convicções. Adulto, ele teve a coragem de

transformar sua fé política, sem nunca renunciar à fé cristã e católica.

Foram selecionados, para os objetivos e dentro dos limites deste texto, pequenos

trechos de três obras: Política (1932), Debates pedagógicos (1934) e Cultura e técnica

(1965). Na Bibliografia estão relacionadas outras publicações de Alceu Amoroso Lima.

Em Política e Debates pedagógicos, o posicionamento adotado por um católico

militante e completamente afinado com as posições oficiais da Igreja levou-o a defender

pontos que, ainda hoje, são reivindicados pelos católicos, entre eles a necessidade do ensino

religioso para a formação integral do homem, a centralidade da família na escolha da

educação a ser dada aos filhos, a ênfase na autonomia pedagógica das escolas católicas e a

introdução do ensino religioso nas escolas públicas.

Em Política, publicado em 1932, percebe-se a veemente defesa da família como

principal agente educador e sua priorização em relação ao Estado, alicerçando uma das

principais argumentações utilizadas pelos católicos até hoje, que vê nas famílias e no seu

direito à escolha das opções a serem adotadas na educação dos filhos um reduto da “liberdade

de educar”, uma trincheira diante da tendência de uma educação uniformizadora e laicista

imposta e ministrada pelo Estado:

A educação da prole é dever primordial da família e seu direito natural. A vida social,

porém, pelas suas dificuldades, exige que a família seja auxiliada em sua tarefa formadora das

novas gerações. Daí nasce a escola como instituição necessária, que tem sua importância

como grupo autônomo, assegurada pelas exigências da vida em comum. A escola é um grupo

natural, por acidente, podemos dizer, pois nasce não naturalmente, como a família ou o

Estado, mas como instituição voluntária especializada, se bem que exigida, pela finalidade

natural da família. A escola, portanto, completa a família e é a segunda célula social, pois visa

a propagação natural dessa. Tudo o que separe, portanto, essas duas instituições é nocivo ao

bem comum. E tudo o que torna cada vez mais solidárias as suas atividades, distintas mas

nunca separadas, é benéfico e necessário ao bem comum. É sobre o modelo da família,

portanto, que a escola se deve formar, de preferência ao modelo de Estado, se bem que

participe também da natureza deste. (Lima, 1932, p. 43-44)

Completa o autor, definindo o lugar da escola na sociedade moderna:

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A escola é o grupo intermediário, por excelência, ente a família e o

Estado, na ordem da formação moral do homem, como a corporação

ou o sindicato, como se diz modernamente, também é o grupo

intermediário por excelência entre a família e o Estado, na ordem da

formação econômica e política do homem. (Lima, 1932, p. 44)

Por sua vez, a importância reservada pelo autor à educação religiosa pode ser vista no

trecho a seguir da Introdução ao livro Debates Pedagógicos, na qual que se define que o ideal

pedagógico católico, “unificado pela finalidade última do homem, o qual não é um ideal

abstrato em sim um ser concreto, o ser em si, o Deus vivo que se fez homem para nos salvar.

A educação religiosa, portanto, é a chave de toda a filosofia, a ciência e arte pedagógica.”

(Lima, 1934, p. X)

Mais adiante, na mesma obra, Alceu comemorou a reintrodução do ensino religioso

nas escolas públicas, que havia sido banido ao longo de toda a Primeira República (1889-

1930) após a vitória do movimento revolucionário de 1930:

O grande acontecimento de hoje, para apenas para nós católicos, mas

para todo o Brasil, é sem dúvida alguma, o decreto que “facultou” de

novo o ensino da religião nas escolas públicas nacionais. O regime

laicista teve quarenta anos para dar provas de si. Durante o tempo que

ruiu em outubro de 1930, foi ele que informou toda a nossa instrução

pública primária, secundária, normal e superior. Durante esse período,

em nenhuma escola pública da nação, foi possível dar às novas

gerações que se sucederam qualquer noção positiva quanto aos seus

deveres de ordem moral ou religiosa. Deus fora completamente

excluído da formação dos brasileiros, em tudo que fosse instrução

fornecida pelos poderes públicos. O Estado não chegou ao

monopólico pedagógico que é o resultado inevitável e lógico da

pedagogia laicista mas seccionou radicalmente o ensino púbico do

privado, a escola da família, introduzindo na consciência das novas

gerações, que os seus professores modelam, uma indiferença mortal

por toda ordem de deveres. (Lima, 1934, p. 85-86)

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De forma coerente com sua opção autoritária e conservadora naquele período de sua

vida e da história do país, o “reencontro” do Estado com o catolicismo, verificado na década

de 1930, seria um ajuste de contas com a Primeira República liberal e laicista, visto como um

período de dissociação entre o Estado brasileiro e seu povo, esmagadoramente católico.

Dando um salto de trinta anos na história brasileira e na trajetória pessoal do autor

aqui abordado, chega-se à década de 1960. Um Alceu Amoroso Lima emancipado das

concepções autoritárias que guiaram sua atuação até o fim da década de 1930, e reencontrado

com a condição de homem de convicções democráticas, abordou o tema do ensino técnico, até

hoje objeto de vivo debate quanto à sua natureza e à sua relação com a formação mais

generalista dos alunos.

Em 1965, Alceu Amoroso Lima, então membro do Conselho Federal de Educação,

publicou palestra intitulada Cultura e técnica. A temática diferenciada pode, em grande parte,

ser explicada pelo contexto em que vivia o País, após a derrubada do governo de João

Goulart, em 1964, e o início Regime Militar, que se estenderia até o ano de 1985.

As políticas educacionais implantadas pelos governos militares, além do seu caráter

repressivo de natureza anticomunista (desmantelamento de programas de alfabetização de

massas implantados anteriormente; repressão ao movimento estudantil e despolitização

forçada da Universidade; demissão de professores), tiveram como objetivo estreitar os

vínculos entre a educação escolar e as necessidades do capital. É preciso lembrar que as

políticas econômicas dos governos militares favorecem enormemente a expansão capitalista

no Brasil, adotando políticas de favorecimento às grandes empresas, nacionais e estrangeiras.

Gradativamente, os militares foram desenhando uma política educacional que se

caracterizou, além de seus aspectos ideológicos, pela relação direta entre educação e produção

capitalistas, definida na reforma do ensino do 2º grau, em 1971, que obrigou à

profissionalização; pela pesquisa vinculada às necessidades de expansão do capital; e pelo

descomprometimento com os recursos para e educação pública e gratuita, favorecendo a

educação privada, que se tornou em um negócio lucrativo e apoiado pelo Estado. (Germano,

1994, p. 105-106)

Naquele contexto, as palavras de Alceu Amoroso Lima assumiram grande relevância.

Ele criticou duramente as concepções que privilegiavam o ensino técnico e instrumental, que

encontravam ambiente favorável à sua difusão sob as novas políticas educacionais adotadas

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pelo Regime Militar. Para Alceu, segundo essa concepção, que prioriza o ensino técnico em

detrimento da formação geral,

a cultura é um ornamento; a técnica uma necessidade. A cultura é

acidental; a técnica essencial. A cultura é o devaneio; a técnica, A

precisão. A cultura é a fantasia; a técnica, a verdade. A cultura é a

facilidade; a técnica é o esforço. A cultura é a improvisação; a técnica,

a aplicação. E assim por diante. A cultura e a técnica seriam duas

direções opostas do mesmo espírito. Válidas, ambas, sem dúvida, mas

nitidamente separadas, por natureza e exigindo, de nossa parte, uma

opção: ou escolhemos o caminho da tecnologia e da conseqüente

Tecnocracia, ou o caminho do culturalismo. Essa concepção do

problema é a mais disseminada e a mais inconsciente também. Leva,

naturalmente, ao mal entendido que separa o homem de pensamento

do homem de ação. (Lima, 1965, p. 3)

O autor rebateu veemente aquela concepção, que instrumentaliza a educação em

função de interesses econômicos, abrindo mão da formação cultural geral, tão necessária à

plena compreensão de um mundo complexo e em rápida mudança. Para Alceu, não restam

dúvidas sobre a primazia da cultura:

A técnica é um meio e a cultura um fim. Técnica, um meio de ação e

aperfeiçoamento, cultura, uma integração e um resultado da aplicação

deste meio. Como a máquina, flor da técnica transitiva, é um

instrumento dirigido pelo homem, sob pena de inverter uma relação

natural e mecanizar o homem, em vez de ser este a humanizar a

máquina. Como o processo educativo se perturba todo quando

convertemos o método de ensinar em finalidade da educação. A

relação, portanto, entre técnica e cultura é de complementaridade

hierárquica. (Lima, 1965, p. 4)

Tem-se, aqui, uma aproximação entre o ideal de educação de um homem de formação

humanista e cristã, e as correntes mais à esquerda do pensamento educacional, que, desde o

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século XIX, se opuseram à diferenciação existente entre a formação geral destinada às elites e

a instrução voltada ao trabalho oferecida aos pobres.

Bibliografia

1 – Obras de Alceu Amoroso Lima:

LIMA, Alceu A. Política. Rio de Janeiro: Livraria Getúlio M. Costa, 1932.

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