Cronicas 2

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FUGA FERNANDO SABINO Mal o pai colocou o papel na máquina, o menino começou a empurrar uma cadeira pela sala, fazendo um barulho infernal. - Pára com esse barulho, meu filho falou, sem se voltar. Com três anos já sabia reagir como homem ao impacto das grandes injustiças paternas: não estava fazendo barulho, estava só empurrando uma cadeira. - Pois então pára de empurrar a cadeira. - Eu vou embora foi a resposta. Distraído, o pai não reparou que ele juntava ação às palavras, no ato de juntar do chão suas coisinhas, enrolando-as num pedaço de pano. Era a sua bagagem: um caminhão de plástico com apenas três rodas, um resto de biscoito, uma chave (onde diabo meteram a chave da dispensa? a mãe mais tarde irá dizer), metade de uma tesourinha enferrujada, sua única arma para a grande aventura, um botão amarrado num barbante. A calma que baixou então na sala era vagamente inquietante. De repente, o pai olhou ao redor e não viu o menino. Deu com a porta da rua aberta, correu até o portão:

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FUGA – FERNANDO SABINO

Mal o pai colocou o papel na máquina, o menino começou a

empurrar uma cadeira pela sala, fazendo um barulho

infernal.

- Pára com esse barulho, meu filho – falou, sem se voltar.

Com três anos já sabia reagir como homem ao impacto das

grandes injustiças paternas: não estava fazendo barulho,

estava só empurrando uma cadeira.

- Pois então pára de empurrar a cadeira.

- Eu vou embora – foi a resposta.

Distraído, o pai não reparou que ele juntava ação às

palavras, no ato de juntar do chão suas coisinhas,

enrolando-as num pedaço de pano. Era a sua bagagem: um

caminhão de plástico com apenas três rodas, um resto de

biscoito, uma chave (onde diabo meteram a chave da

dispensa? – a mãe mais tarde irá dizer), metade de uma

tesourinha enferrujada, sua única arma para a grande

aventura, um botão amarrado num barbante.

A calma que baixou então na sala era vagamente

inquietante. De repente, o pai olhou ao redor e não viu o

menino. Deu com a porta da rua aberta, correu até o portão:

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- Viu um menino saindo desta casa? – gritou para o operário

que descansava diante da obra do outro lado da rua, sentado

no meio-fio.

- Saiu agora mesmo com uma trouxinha – informou ele.

Correu até a esquina e teve tempo de vê-lo ao longe,

caminhando cabisbaixo ao longo do muro. A trouxa,

arrastada no chão, ia deixando pelo caminho alguns de seus

pertences: o botão, o pedaço de biscoito e – saíra de casa

prevenido – uma moeda de 1 cruzeiro. Camou-o, mas ele

apertou o passinho, abriu a correr em direção à Avenida,

como disposto a atirar-se diante do ônibus que surgia a

distância.

- Meu filho, cuidado!

O ônibus deu uma freada brusca, uma guinada para a

esquerda, os pneus cantaram no asfalto. O menino,

assustado, arrepiou carreira. O pai precipitou-se e o

arrebanhou com o braço como a um animalzinho:

- Que susto que você me passou meu filho – a apertava-o

contra o peito, comovido.

- Deixa eu descer, papai. Você está me machucando.

Irresoluto, o pai pensava agora se não seria o caso de lhe dar

umas palmadas:

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- Machucando, é? Fazer uma coisa dessas com seu pai.

- Me larga. Eu quero ir embora.

Trouxe-o para casa e o largou novamente na sala – tendo

antes o cuidado de fechar a porta da rua e retirar a chave,

como ele fizera com a da dispensa.

- Fique aí quietinho, está ouvindo? Papai está trabalhando.

- Fico, mas vou empurrar esta cadeira.

E o barulho recomeçou.

O MÉDICO E O MONSTRO – PAULO MENDES CAMPOS

Avental branco, pincenê vermelho, bigodes azuis, ei-lo,

grave, aplicando sobre o peito descoberto duma criancinha

um estetoscópio, e depois a injeção que a enfermeira lhe

passa.

O avental na verdade é uma camisa de homem adulto a

bater-lhe pelos joelhos; os bigodes foram pintados por sua

irmã, a enfermeira; a criancinha é uma boneca de olhos

cerúleos, mas já meio careca, que atende pelo nome de

Rosinha; os instrumentos para exame e cirurgia saem duma

caixinha de brinquedos.

Ela, seis anos e meio; o doutor tem cinco. Enquanto

trabalham, a enfermeira presta informações:

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- Esta menina é boba mesmo, não gosta de injeção, nem

de vitamina, mas a irmãzinha dela adora.

O médico segura o microscópio, focaliza-o dentro da boca

de Rosinha, pede uma colher, manda a paciente dizer aaá.

Rosinha diz aaá pelos lábios da enfermeira. O médico

apanha o pincenê, que escorreu de seu nariz, rabisca uma

receita, enquanto a enfermeira continua:

- O senhor pode dar injeção que eu faço ela tomar de

qualquer jeito, porque é claro que se ela não quiser, né, vai

ficar muito magrinha que até o vento carrega.

O médico, no entanto, prefere enrolar uma gaze em torno

do pescoço da boneca, diagnosticando:

- Mordida de leão.

- Mordida de leão? - pergunta, desapontada, a

enfermeira, para logo aceitar este faz-de-conta dentro do

outro faz-de-conta. - Eu já disse tanto, meu Deus, para essa

garota não ir na floresta brincar com Chapeuzinho

Vermelho...

Novos clientes desfilam pela clínica: uma baiana de

acarajé, um urso muito resfriado, porque só gostava de neve,

um cachorro atropelado por lotação, outras bonecas de

vários tamanhos, um Papai Noel, uma bola de borracha e até

mesmo o pai e a mãe do médico e da enfermeira.

De repente, o médico diz que está com sede e corre para

a cozinha, apertando o pincenê contra o rosto. A mãe se

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aproveita disso para dar um beijo violento no seu amor de

filho e também para preparar-lhe um copázio de vitaminas:

tomate, cenoura, maçã, banana, limão, laranja e aveia. O

famoso pediatra, com um esgar colérico, recusa a formidável

droga.

- Tem de tomar, senão quem acaba no médico é você

mesmo, doutor.

Ele implora em vão por uma bebida mais inócua. O copo

é levado com energia aos seus lábios, a beberagem é provada

com uma careta. Em seguida, propõe um trato:

- Só se você depois me der um sorvete.

A terrível mistura é sorvida com dificuldade e

repugnância, seus olhos se alteram nas órbitas, um engasgo

devolve o restinho. A operação durou um quarto de hora.

A mãe recolhe o copo vazio com a alegria da vitória e

aplica no menino uma palmadinha carinhosa, revidada com

a ameaça dum chute. Já estamos a essa altura, como não

podia deixar de ser, presenciando a metamorfose do médico

em monstro.

Ao passar zunindo pela sala, o pincenê e o avental são

atirados sobre o tapete com um gesto desabrido. Do antigo

médico resta um lindo bigode azul. De máscara preta e

espada, Mr. Hyde penetra no quarto, onde a doce enfermeira

continua a brincar, e desfaz com uma espadeirada todo o

consultório: microscópio, estetoscópio, remédios, seringa,

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termômetro, tesoura, gaze, esparadrapo, bonecas, tudo se

derrama pelo chão. A enfermeira dá um grito de horror e

começa a chorar nervosamente. O monstro, exultante,

espeta-lhe a espada na barriga e brada:

- Eu sou o Demônio do Deserto!

Ainda sob o efeito das vitaminas, preso na solidão escura

do mal, desatento a qualquer autoridade materna ou

paterna, com o diabo no corpo, o monstro vai espalhando

terror a seu redor: é a televisão ligada ao máximo, é o divã

massacrado sob os seus pés, é uma corneta indo tinir no

ouvido da cozinheira, um vaso quebrado, uma cortina que se

despenca, um grito, um uivo, um rugido animal, é o doce

derramado, a torneira inundando o banheiro, a revista nova

dilacerada, é, enfim, o flagelo à solta no sexto andar dum

apartamento carioca.

Subitamente, o monstro se acalma. Suado e ofegante,

senta-se sobre os joelhos do pai, pedindo com doçura que

conte uma história ou lhe compre um carneirinho de

verdade.

E a paz e a ternura de novo abrem suas asas num lar

ameaçado pelas forças do mal.

QUEM SABE DEUS ESTÁ OUVINDO – RUBEM BRAGA

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Outro dia eu estava distraído chupando um caju na

varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde

botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a

castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem

sequer me dar conta do que fazia.

Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção:

a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saída terra,

em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei cedo, e

vi que durante a noite aquela coisa verde lançara para o ar

um caule com pequenas folhas. É impressionante a rapidez

com que essa plantinha cresce e vai abrindo folhas novas.

Notei que a empregada regava com especial carinho a planta,

e caçoei dela:

- Você vai criar um cajueiro aí?

Embaraçada, ela confessou: tinha de arrancar a

mudinha, naturalmente; mas estava com pena.

- Mas é melhor arrancar logo, não é?

Fiquei em silêncio. Seria exagero dizer: silêncio

criminoso - mas confesso que havia nele um certo remorso.

Um silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um

cajueiro, e seria uma tolice permitir que ele crescesse mais

alguns centímetros, sem nenhum futuro. Eu fora culpado,

com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isso a

empregada não sabe; ela pensa que tudo foi obra do acaso.

Arrancar a plantinha com a minha mão – disso eu não seria

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capaz; nem mesmo dar ordem para que ela o fizesse. Se ela o

fizer, darei de ombros e não pensarei mais no caso; mas que

o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e

sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas

igualmente ignaros: eu, o deus da Vida, ela, o da Morte.

Hoje pela manhã ela começou a me dizer alguma coisa -

"seu Rubem, o cajueirinho..." - mas o telefone tocou, fui

atender, e a frase não se completou. Agora mesmo ela voltou

da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e transplantou

para ele a mudinha.

Veio me mostrar:

- Eu comprei um vaso...

- Ahn...

Depois de um silêncio eu disse:

- Cajueiro sente muito a mudança, morre à-toa...

Ela olhou a plantinha e disse com convicção:

- Esse aqui não vai morrer, não senhor.

Eu devia lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo,

daqui a uma, duas semanas. Ela espera, talvez, que eu o leve

para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem onde

plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse

pela compra do vaso, e ficara aliviada com minha

indiferença. Antes de me sentar para escrever, eu disse,

sorrindo, uma frase profética, dita apenas por dizer:

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- Ainda vou chupar muito caju desse cajueiro!

Ela riu muito, depois ficou séria, levou o vaso para a

varanda, e, ao passar por mim na sala, disse baixo, com

certa gravidade:

- É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está

ouvindo o que o senhor está dizendo...

Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar

muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros

assuntos maiores.

HORÓSCOPO - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

- Telefonaram do escritório, bem. Seu chefe mandou

perguntar por que você não foi trabalhar.

- E você deu o motivo?

- Não.

- Podia ter dado.

- Ora, Alfredinho, isso é motivo que se dê?

- Por que não? Se há motivo, está justificado. Sem motivo é

que não cola.

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- Então eu ia dizer ao seu chefe que você não trabalha hoje

porque o seu horóscopo aconselha: "Fique em casa

descansando"?

- E daí, amor? Se meu signo é Touro, e se Touro acha

conveniente que eu não faça nada, como é que eu vou

desobedecer a ele?

- É, mas com certeza seu chefe não é Touro, e não vai achar

graça nisso.

- Ele é Áries, está ouvindo? E o dia não está para relações

entre Áries e Touro. Pega aí o jornal. Faz favor de ler com

esses belos olhos cor de pervinca: "Áries - Evite

rigorosamente discussões com subordinados".

- Mas se ele evitar, não tem perigo para você.

- Ele pode evitar, sim, deve evitar. E para colaborar com ele,

eu fico em casa.

- Mas se você não comparece, ele pode vir ao telefone e pegar

numa discussão danada com você, dessas de sair fogo.

- Não atendo telefone durante o dia. Não posso atender. Não

vê que estou descansando, que o horóscopo me mandou

descansar? É favor não fazer rebuliço nesta casa. Amor e

paz, para o descanso do guerreiro.

- Pra mim você está é com preguiça, e das bravas.

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- Posso estar com preguiça, e daí? Preguiça é relaxante,

restaura as energias, predispõe para o trabalho no dia

seguinte. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Se

eu não faço nada hoje, não é porque estou com preguiça. É

em atenção a um mandamento superior, à mensagem que

vem dos astros, você não percebe?

- Percebo, sim, mas não concordo.

- Pode se saber por que a excelentíssima não concorda com

aquilo que percebe e que está devidamente explicado?

- Pode.

- Então explica, vamos.

- Gozado, Alfredinho, até parece que para você só existem

dois signos no zodíaco: Touro e Áries, você e o patrão.

- Espera lá, você queria que eu não prestasse atenção em

Touro? Áries eu li hoje por acaso, porque está ao lado de

Touro, em coluna paralela.

- Coincidência: você saber que seu chefe é Áries, e...

- É sim.

- E por que você guardou na cabeça que ele é Áries?

- Ora por quê! Ele fez anos no mês passado, amorzinho. Até

contei a você que oferecemos a ele uma batedeira. Soubemos

que a mulher dele precisava de batedeira, fizemos uma

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vaquinha e pronto. Mas por que você diz que para mim só

existem dois signos?

- Pelo menos Sagitário você ignora.

- Como que eu ia ignorar Sagitário, se é o signo de você,

minha orquídea de novembro 25?

- É, mas esqueceu de ler que o dia é propício para reuniões

sociais de Sagitário, e saiba que esta sua orquídea de

novembro 25 vai reunir hoje as amigas aqui em casa. Trate

de se mandar, querido.

- Sem essa! Touro me manda descansar em casa, e você me

enche a casa com mulheres?

- É, Sagitário não ia fazer isso comigo! Eu já tinha

harmonizado Touro com Áries!

- Pode continuar harmonizando, se for descansar em casa do

Tostes, que é Virgem, eu sei, ele é nosso padrinho de

casamento. O horóscopo do Tostes recomenda prestar

serviço a um amigo. Assim, Touro, Virgem, Áries e Sagitário

ficam inteiramente harmonizados, cada um na sua, um por

todos, todos por um. Ande, vá se vestir rapidinho, rapidinho,

e rua, seu vagabundo!

CASO DE RECENSEAMENTO - CARLOS DRUMMOND DE

ANDRADE

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O agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio

longínqüo, aonde nunca chegam as notícias.

- Não quero comprar nada.

- Eu não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo

da população e lhe peço o favor de me ajudar.

- Ah moço, não estou em condições de ajudar ninguém.

Tomara eu que Deus me ajude. Com licença, sim?

E fecha-lhe a porta.

Ele bate de novo.

- O senhor outra vez?! Não lhe disse que não adianta me

pedir auxílio?

- A senhora ano me entendeu bem, desculpe. Desejo que me

auxilie mas é a encher esta papel. Não vai pagar nada, não

vou lhe tomar nada. Basta responder a umas perguntinhas.

- Não vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito

ocupada, até logo!

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A porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta

reestabelecer o diálago.

- Sabe de uma coisa? Dê o fora depressa e antes que eu

chame meu marido!

- Chame sim, minha senhora, eu me explico com ele. ( Só

Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma idéia

na cabeça: é preciso preencher o questionário, é preciso

preencher o questionário, é preciso preencher o

questionário).

- Que é que há? - resmunga o marido, sonolento, descalço e

sem camisa, puxado pela mulher.

- É esse camelô aí que ano quer deixar a gente sossegada!

- Não sou camelô, meu amigo, sou agente do censo...

- Agente coisa nenhuma, eles inventam uma besteira

qualquer, depois empurram a mercadoria!

A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo!

O marido faz-lhe um gesto para calar-se, enquanto ele

estuda o rapaz, suas intenções. O agente explica-lhe tudo

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com calma, convence-o de que não é nem camelô, nem

policial, nem cobrador de impostos, nem enviado de Tenório

Cavalcanti.

A idéia de recenseamento, pouco a pouco, vai-se instalando

naquela casa, penetrando naquele espírito. Não custa

atender o rapaz, que é bonzinho e respeitoso. E como não há

despesa, nem ameaça de despesa ou incômodo de qualquer

ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de ser

objeto - pela primeira vez na vida - da curiosidade do

governo.

- O senhor tem filhos, seu Ediraldo?

- Tenho três, sim senhor.

- Pode me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de

cada um?

- Pois não. Tenho Jorge Independente, de 14 anos; o Miguel

Urubatã, de 10; e a Pipoca, de 4.

- Muito bem, me deixe tomar nota. Jorge... Urubatã... E a

Pipoca, como é mesmo o nome dela?

- Nós chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.

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- Se pudesse me dizer como é que ela foi registrada...

- Isso eu não sei, não me lembro.

E voltando-se para a cozinha:

- Mulher, sabes o nome de Pipoca?

A mulher aparece, confusa.

- Assim de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta.

Reviraram a gaveta, não acham a certidão de registro civil.

- Só perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o

nome. Pra nós ela é Pipoca, tá bom?

- Pois então fica se chamando Pipoca, decide o agente. Muito

obrigado, seu Ediraldo, muito obrigado minha senhora,

disponham!

FLOR DE MAIO - RUBEM BRAGA

Entre tantas notícias do jornal - o crime do Sacopã, o disco

voador em Bagé, a nova droga antituberculosa, o andaime

que caiu, o homem que matou outro com machado e com

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foice, o possível aumento do pão, a angústia dos Barnabés -

há uma pequenina nota de três linhas, que nem todos os

jornais publicaram.

Não vem do gabinete do prefeito para explicar a falta dágua,

nem do Ministério da Guerra para insinuar que o país está

em paz. Não conta incidentes de fronteira nem desastre de

avião. É assinada pelo senhor diretor do Jardim Botânico, e

nos informa gravemente que a partir do dia 27 vale a pena

visitar o Jardim, porque a planta chamada "flor-de-maio"

está, efetivamente, em flor.

Meu primeiro movimento, ao ler esse delicado convite, foi

deixar a mesa da redação e me dirigir ao Jardim Botânico,

contemplar a flor e cumprimentar a administração do horto

pelo feliz evento. Mas havia ainda muita coisa para ler e

escrever, telefonema a dar, providências a tomar. Agora já

desce a

noite, e as plantas em flor devem ser vistas pela manhã ou à

tarde, quando há sol - ou mesmo quando a chuva as

despenca e elas soluçam no vento, e choram gotas e flores no

chão.

Suspiro e digo comigo mesmo - que amanhã acordarei cedo e

irei. Digo, mas não acredito, ou pelo menos desconfio que

esse impulso que tive ao ler a notícia ficará no que foi - um

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impulso de fazer uma coisa boa e simples, que se perde no

meio da pressa e da inquietação dos minutos que voam.

Qualquer uma destas tardes é possível que me dê vontade

real, imperiosa, de ir ao Jardim Botânico, mas então será

tarde, não haverá mais "flor-de-maio", e então pensarei que é

preciso esperar a vinda de outro outono, e no outro outono

posso estar em outra cidade em que não haja outono em

maio, e sem outono em maio não sei se em alguma cidade

haverá essa "flor-de-maio".

No fundo, a minha secreta esperança é de que estas linhas

sejam lidas por alguém - uma pessoa melhor do que eu,

alguma criatura correta e simples que tire desta crônica a

sua única substância, a informação precisa e preciosa: do

dia 27 em diante as "flores-de-maio" do Jardim Botânico

estão

gloriosamente em flor. E que utilize essa informação saindo

de casa e indo diretamente ao Jardim Botânico ver a "flor-de-

maio" - talvez com a mulher e as crianças, talvez com a

namorada, talvez só.

Ir só, no fim da tarde, ver a "flor-de-maio"; aproveitar a única

notícia boa de um dia inteiro de jornal, fazer a coisa mais

bela e emocionante de um dia inteiro da cdade imensa. Se

entre vós houver essa criatura, e ela souber por mim a

notícia, e for, então eu vos direi que nem tudo está perdido, e

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que vale a pena viver entre tantos sacopãs de paixões

desgraçadas e tantas COFAPs de preços irritantes; que a

humanidade possivelmente ainda poderá ser

salva, e que às vezes ainda vale a pena escrever uma crônica.

Chatear e Encher – PAULO MENDES CAMPOS

Um amigo meu me ensina a diferença entre ―chatear‖ e

―encher‖.

Chatear é assim:

Você telefona para um escritório qualquer na cidade.

- Alô! Quer me chamar por favor o Valdemar?

- Aqui não tem nenhum Valdemar.

Daí a alguns minutos você liga de novo:

- O Valdemar, por obséquio.

- Cavalheiro, aqui não trabalha nenhum Valdemar.

- Mas não é do número tal?

- É, mas aqui não trabalha nenhum Valdemar.

Mais cinco minutos, você liga o mesmo número:

- Por favor, o Valdemar já chegou?

- Vê se te manca, palhaço. Já não lhe disse que o diabo

desse Valdemar nunca trabalhou aqui?

- Mas ele mesmo me disse que trabalhava aí.

- Não chateia.

Daí a dez minutos, liga de novo.

- Escute uma coisa! O Valdemar não deixou pelo menos um

recado?

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O outro desta vez esquece a presença da datilógrafa e diz

coisas impublicáveis.

Até aqui é chatear. Para encher, espere passar mais dez

minutos, faça nova ligação:

- Alô! Quem fala? Quem fala aqui é o Valdemar. Alguém

telefonou para mim?

TURCO - FERNANDO SABINO

Assim que chegou a Paris, foi cortar o cabelo, coisa que não

tivera tempo de fazer ao sair do Rio. O barbeiro, como os de

toda parte, procurou logo puxar conversa:

— Eu tenho aqui uma dúvida, que o senhor podia me

esclarecer.

— Pois não.

— Eu estava pensando... A Turquia tomou parte na última

guerra?

— Parte ativa, propriamente, não. Mas de certa maneira

esteve envolvida, como os outros países. Por quê?

— Por nada, eu estava pensando. A situação política lá é

meio complicada, não?

Seu forte não era a Turquia. Em todo caso respondeu:

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— Bem, a Turquia, devido a sua situação geográfica...

Posição estratégica, não é isso mesmo? O senhor sabe, o

Oriente Médio...

O barbeiro pareceu satisfeito e calou-se, ficou pensando.

Alguns dias depois ele voltou para cortar novamente o

cabelo. Ainda não se havia instalado na cadeira, o barbeiro

começou:

— Os ingleses devem ter muito interesse na Turquia, não?

Que diabo, esse sujeito vive com a Turquia na cabeça —

pensou. Mas não custava ser amável, além do mais, ia

praticando o seu francês:

— Devem ter. Mas têm interesse mesmo é no Egito. O canal

de Suez.

— E o clima lá?

— Onde? No Egito?

— Na Turquia.

Antes de voltar pela terceira vez, por via das dúvidas

procurou informar se com um conterrâneo seu, diplomata

em Paris e que já servira na Turquia.

— Desta vez eu entupo o homem com Turquia decidiu-se.

Não esperou muito para que o barbeiro abordasse seu

assunto predileto:

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— Diga-me uma coisa, e me perdoe a ignorância: a capital da

Turquia é Constantinopla ou Sófia?

— Nem Constantinopla nem Sófia. É Ancara.

E despejou no barbeiro tudo que aprendera com seu amigo

sobre a Turquia. Nem assim o homem se deu por satisfeito,

pois na vez seguinte foi começando por perguntar:

— O senhor conhece muitos turcos aqui em Paris?

Era demais:

— Não, não conheço nenhum. Mas agora chegou a minha vez

de perguntar: por que diabo o senhor tem tanto interesse na

Turquia?

— Estou apenas sendo amável — tornou o barbeiro,

melindrado: — Mesmo porque conheço outros turcos além do

senhor.

— Além de mim? Quem lhe disse que sou turco? Sou

brasileiro, essa é boa.

— Brasileiro? — e o barbeiro o olhou, desconsolado:

— Quem diria! Eu seria capaz de jurar que o senhor era

turco. . .

Mas não perdeu tempo:

— O Brasil fica é na América do Sul, não é isso mesmo?

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NEIDE - RUBEM BRAGA

O céu está limpo, não há nenhuma nuvem acima de nós. O

avião, entretanto, começa a dar saltos, e temos de pôr os

cintos para evitar uma cabeçada na poltrona da frente. Olho

pela janela: é que estamos sobrevoando de perto um grande

tumulto de montanhas. As montanhas são belas, cobertas de

florestas; no verde escuro há manchas de ferrugem de

palmeiras, algum ouro de ipê, alguma prata de embaúba, e

de súbito uma cidade linda e um rio estreito. Dizem me que é

Petrópolis.

É fácil explicar que o vento nas montanhas faz corrente para

baixo e para cima, como também o ar é mais frio debaixo da

leve nuvem. A um passageiro assustado o comissário diz que

"isso é natural". Mas o avião, com o tranqüilo conforto imóvel

com que nos faz vencer milhas em segundos, havia nos

tirado o sentimento do natural. Somos hóspedes da

máquina. Os motores foram revistos, estão perfeitos,

funcionam bem, e temos nossas passagens no bolso; tudo

está em ordem. Os solavancos nos lembram de que a

natureza insiste em existir, e ainda nos precipita além dela,

para os reinos azuis da Metafísica. Pode o avião vencer a

montanha e desprezar as passagens antigas que a

humanidade sempre trilhou. Mas sua vitória não pode ser

saboreada de perto: mesmo debaixo, a montanha ainda fez

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sentir que existe e à menor imprudência da máquina o

gigante vencido a sorverá de um hausto, e a destruirá. Assim

a humilde lagoa, assim a pequena nuvem: a tudo isso somos

sensíveis dentro de nosso monstro de metal.

A menina disse que era mentira, que não se via anjo nenhum

nas nuvens. O homem, porém, explicou que sim, e pediu que

eu confirmasse. Eu disse:

— Tem anjo sim. Mas tem muito pouco. Até agora desde que

saímos eu só vi um, e assim mesmo de longe. Hoje em dia há

muito poucos anjos no céu. Parece que eles se assustam com

os aviões. Nessas nuvens maiores nunca se encontra

nenhum. Você deve procurar nas nuvenzinhas pequenas,

que ficam separadas umas das outras; é nelas que os anjos

gostam de brincar. Eles voam de uma para outra.

A menina queria saber de que cor eram as asas dos anjos e

de que tamanho eles eram. O homem explicou que os anjos

tinham as asas da mesma cor daquele vestidinho da menina;

e eram de seu tamanho. Ela começou a duvidar novamente,

mas chamamos o comissário de bordo. Ele confirmou a

existência dos anjos com a autoridade de seu ofício; era

impossível duvidar da palavra do comissário de bordo, que

usa uniforme e voa todo dia para um lado e outro, e além

disso ele tinha um argumento impressionante: "Então você

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não sabia que tem anjos no céu?" E perguntou se ela tinha

vontade de ser anjo.

— Não.

— Que é que você quer ser?

— Aeromoça!

E começou a nos servir biscoitos; dois passageiros que

estavam cochilando acordaram assustados porque ela

apertou o botão que faz descer as costas das poltronas; mas

depois riram e aceitaram os biscoitos.

— A Baía de Guanabara!

Começamos a descer. E quando o avião tocava o solo,

naquele instante de leve tensão nervosa, ela se libertou do

cinto e gritou alegremente:

— Agora tudo vai explodir.

E disse que queria sair primeiro porque estava com muita

pressa, para ver as horas na torre do edifício ali perto: pois já

sabia ver as horas.

Não deviam ter lhe ensinado isso. Ela já sabe tanta coisa! As

Page 26: Cronicas 2

horas se juntam, fazem os dias, fazem os anos, e tudo vai

passando, e os anjos depois não existem mais, nem no céu,

nem na terra.

A ABOBRINHA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Quando a senhora foi descer do lotação, o motorista

coçou a cabeça:

- Mil cruzeiros! Como é que a senhora quer que eu

troque mil cruzeiros?

- Desculpe, me esqueci completamente de trazer trocado.

- Não posso não. Madame não leu o aviso - olha ele ali -

que o troco máximo é de 200 cruzeiros?

- Eu sei, mas que é que hei de fazer agora? O senhor

nunca esqueceu nada na vida?

- Quem sabe se procurando de novo na bolsa...

- Já procurei.

Procura outra vez.

Ela vasculhava, remexia, nada. Nenhum cavalheiro

(como se dizia no tempo de meu pai) se moveu para salvar a

situação, oferecendo troco ou se prontificando a pagar a

passagem. Àquela hora não havia cavalheiros, pelo menos no

lotação.

- Então o senhor me dá licença de saltar e ficar devendo.

Page 27: Cronicas 2

- Pera aí. Vou ver se posso trocar.

Podia. Tirou do bolso de trás um bolo respeitável, foi

botando as cédulas sobre o joelho, meticulosamente.

- Tá aqui o seu troco. De outra vez a madame já sabe,

hein?

Ela desceu, o carro já havia começado a chispar, como é

destino dos lotações, quando de repente o motorista freou e

botou as mãos à cabeça:

- A abobrinha! Ela ficou com a abobrinha!

Voltando-se para os passageiros:

- Os senhores acreditam que em vez de guardar a nota

de mil, eu de burro devolvi com o troco?

Botou a cabeça fora do carro, à procura da senhora, que

atravessava a rua, lá atrás:

- Dona! Ó dona! A nota de mil cruzeiros!

Ela não escutava. Ele fazia sinais, pedia aos transeuntes

que a chamassem, o trânsito entupigaitava-se, buzinas

soavam.

- Toca! Toca!

Os passageiros não pareciam interessados no prejuízo,

como antes não se condoeram do vexame da senhora.

- Como é que eu posso tocar se perdi mil cruzeiros,

gente? Quem vai me pagar esses mil cruzeiros?

Encostou o veículo e, num gesto solene:

Page 28: Cronicas 2

- Vou buscar meu cabral. A partir deste momento confio

este carro, com todos os seus pertences, à distinção dos

senhores passageiros.

- Deixa que eu vou - disse um deles, garoto. E

precipitou-se para fora, antes do motorista.

- Será que esse tiquinho de gente consegue?

Via-se o garoto correndo para alcançar a senhora,

tocando-a pelo braço, os dois confabulando. Ela abria de

novo a bolsa, tirava objetos, o pequeno ajudava. Enquanto

isso, o motorista carpia:

- Esta linha é de morte. Primeiro querem que a gente

troque um conto de réis, como se o papai fosse o Tesouro

Nacional ou o Banco do Brasil. Depois carregam o troco e o

dinheiro trocado, que nem juro. Essa não! E esse garoto que

não acaba com a conversa mole? Sei lá até se ele volta.

Os passageiros impacientavam-se com a demora da

expedição. O guarda veio estranhar o estacionamento e

recebeu a explicação de força-maior:

- Quem é que me paga meus mil cruzeiros? O Serviço de

Trânsito?

Voltou o garoto, sem a nota. A senhora tinha apenas 987

cruzeiros, ele vira e jurava por ela.

- Toca! Toca!

Page 29: Cronicas 2

- Tão vendo? Um prejuízo desses antes do almoço é de

tirar a fome e a vontade de comer.

Disse isso em tom frio, sem revolta, como simples

remate. E tocou. Perto do colégio, o garoto desceu, repetindo,

encabulado:

- Pode acreditar, ela não tinha mesmo o dinheiro não.

O motorista respondeu-lhe baixinho:

- Eu sei. Já vi que está ali debaixo da caixa de fósforos.

Mas se eu disser isso, esse povo me mata.

Confusão com São Pedro – FERNANDO SABINO

Você vai neste avião, eu vou no próximo-

decidiu

de súbito, no último instante, quando o alto-falante já

invocava os

passageiros: queiram apresentar suas despedidas e boa

viagem.

Ele deu um suspiro desalentado. Já fora um custo

convencer a

mulher de viajarem de avião. Ela dizia que tinha medo, por

que não vamos

de trem? E passara a noite toda naquela conversa, olha, meu

bem, tenho um pressentimento ruim.

Page 30: Cronicas 2

Quando já estavam praticamente embarcados, vinha com

novidade.

- Que bobagem é essa?

- Eu vou no outro- insistiu ela, aflita: - Tem outro

avião

daqui a meia hora.

- Mas por que isso assim de repente?

Ela o olhava nos olhos como se se despedisse dele para

sempre:

- Não podemos correr tanto risco juntos, meu bem, seja

razoável.

Temos nossos filhos, imagine se acontece alguma coisa.

- Não vai acontecer nada, mulher.

- Eu sei que não tem perigo, que é o transporte mais

seguro do

mundo, e as estatísticas, e essa coisa toda, você já me

explicou. Mas

pense um pouco nos nossos filhos, pelo amor de Deus! Eu

indo num e você

Page 31: Cronicas 2

noutro, sempre é uma chance de pelo menos um de nós dois

escapar.

- Olha aí, já estão chamando de novo. Vamos embora,

mulher.

Ela fincara pé, irredutível. Sem mais tempo para

argumentar,

ele acabou cedendo:

- Está bem, seja como você quiser! Mas então vai nesse,

eu vou

no outro. Se eu deixar você aqui, você acaba não indo.

Despediu-se dela, aborrecido, e foi tratar da

transferência de

sua passagem.

A mulher entrou no avião como num túmulo, o coração

aos pulos.

A porta se fechou, desligando-a para sempre do mundo. A

seu lado, viajava um padre, alheio a tudo, mergulhado no

breviário.

De súbito o avião, já em pleno vôo, começou a jogar.

Eu não

Page 32: Cronicas 2

disse? eu não disse? Entraram numa nuvem escura e nunca

mais que saíam

dela.

Em pânico, chamou o comissário: não é nada, minha

senhora, uma

pequena tempestade, estamos fazendo vôo cego.

Vôo cego! Sentindo-se perdida, voltou-se para o padre:

- Estou com tanto medo, seu padre.

O padre a olhou, desconfiado:

- Reza, que é melhor.

E voltou ao seu breviário. Rezar? Não, ela não sabia

rezar.

Lembrou-se de São Pedro, que era quem devia manobrar

chuvas e

tempestades - juntou as mãos e pediu-lhe auxilio:

- São Pedro, piedade de mim. Tenho meus filhos para

criar. Fui

criada sem mãe, o senhor não imagina a falta que uma mãe

faz. Todos na

Page 33: Cronicas 2

minha família ficaram assim feito eu, só porque não tiveram

mãe. Que

será dos meus filhos sem mãe, São Pedro, mãe faz muito

mais falta que

pai, por favor me protege, se for preciso transfere essa

tempestade para

o avião dele, mas me salva desta que noutra eu nunca mais

hei de me

meter.

A falta de mãe não lhe abalara o prestígio junto a São

Pedro-

tanto assim que em pouco o avião deixava para trás a

tempestade e saía

para um céu azul, e logo descia no aeroporto sem mais

novidades. Estava

salva!

Comprou uma revista, sentou-se num canto e pôs-se a

esperar o

avião do marido. Esperou meia hora. Como ele nunca mais

chegasse, correu, já aflita, a informar-se no balcão.

Soube que não havia nada de especial: as más condições do

tempo às vezes

ocasionavam algum atraso.

Page 34: Cronicas 2

- Más condições do tempo?

Não tinha dúvida, era a tempestade que mandara para

ele. Roída

de remorsos, juntou as mãos ali mesmo, em frente ao

funcionário

assombrado:

- São Pedro, essa não! não faça isso comigo. Era

mentira, o

senhor não vai me levar a sério. O pai faz muito mais falta

que a mãe,

quem é que foi meter uma bobagem dessa na minha

cabeça? Ele trabalha

para sustentar a familha, eu não faço nada que preste. E

logo ele, tão

bom que ele é, tão carinhoso, por favor, São Pedro, não faça

isso com

ele, joga essa tempestade para cima de outro que não tenha

filhos, para

cima dele não!

Em pouco São Pedro voltava a atendê-la, fazendo o

marido

desembarcar no aeroporto, são e salvo:

Page 35: Cronicas 2

- Que cara é essa? Você está parecendo um fantasma!

Aconteceu

alguma coisa?

Ela se abraçou a ele, ansiosa:

- Você está bem? Você me perdoa?

- Eh, que novidade você vai inventar agora? Perdoar

o quê,

mulher?

- Tudo por minha culpachoramingou ela.- Mas graças a

Deus você

está salvo. Fiz uma confusão enorme com São Pedro, você

nem imagina. Da

próxima vez, quer saber de uma coisa? vou com você,

morreremos juntos,

nossos filhos que se danem.

Ele a olhou, francamente apreensivo."Acho que essa

minha mulher

está ficando maluca", pensou.

CORAÇÃO MATERNO – PAULO MENDES CAMPOS

Page 36: Cronicas 2

Duas horas da tarde. Ali no início do Morro da Viúva

fizeram

sinal: duas senhoras, ambas de cabelos brancos,

preparavam-se para

entrar no lotação, quando o motorista gritou:"Um lugar só".

A velhinha

mais velha, já com o pé colocado no carro com imensa

dificuldade,

conseguiu retirar a perna comprometida, com dificuldade

ainda maior, sob

os protestos persuasivos da velha mais moça, que dizia:

- Vai, mamãe, vai a senhora, eu vou em outro.

A mãe se desmanchando em timidez, medo e bondade,

sorria:

Na condução - 51

- Não, minha filha, eu não posso te deixar aqui sozinha.

- Vai, mamãe.

- Não, minha filha.

- Pelo amor de Deus, mãe; o homem está esperando.

Page 37: Cronicas 2

- Mas.., minha filha?!

Os passageiros aguardavam com a tolerante paciência

de quem tem

ou já teve mãe. O motorista fez força (e o conseguiu,

parabéns) para

refrear a sua fúria de Averno.

- Vai, mãezinha; aqui neste ponto é difícil arranjar

dois

lugares.

- Não posso te deixar sozinha, minha filha. Nunca!

Diante do impasse, levantou-se, resoluto um senhor

sentado no

banco da frente, oferecendo-se para ir em pé, as duas

senhoras iriam

sentadas. Ah, mas isso não, aparteou o motorista, era

contra o

regulamento, dava multa. O amável passageiro descompôs o

regulamento do

tráfego e os demais regulamentos: eram desumanos. Ao pé

da calçada, o

torneio sentimental de mãe e filha continuava:

Page 38: Cronicas 2

- Vai, vai, mãe.

- Não posso ir sem você, minha filha.

Quem viu a necessidade eventual de perder docemente

a paciência

foi a filha. Usando de energia adequada ao momento,

segurou o braço da

velhinha (mas velhinha mesmo, frágil, frágil), empurrou-a

com o mínimo

de força necessária, proferiu uma ordem imperiosa:

- Vai, mãe.

E a velha mais moça se afastou em passadas

compridas, impedindo

a contramarcha da velha mais velha, que estava no limite

extremo de sua

timidez, e não teve outro jeito senão agarrar-se ao braço do

motorista,

entrar penosamente, sorrir pedindo perdão para todos os

passageiros. Ajeitou-se no banco,

esperou o barulho do motor e comentou para a vizinha

(que a olhava,

compreendendo tudo, as velhas, as mães, o cosmos):

Page 39: Cronicas 2

- Coitadinha! Eu fico morrendo de pena de deixar ela aí,

só, tão

longe!

Longe de onde? Das entranhas que criaram uma

menina. Longe. Só.

A viagem para o centro foi recomeçada, sem novidades,

todos

voltaram para dentro de si mesmos, esquecidos do episódio.

A mãe, no

entanto, furtiva (certa de que já causara bastante

transtornos naquele

dia) inspecionava todos os lotações que ultrapassavam o

nosso, aflita em

sua quietude, buscando lobrigar a filha. Mas foi só quando

o lotação

entrou na Avenida, e parou diante de um sinal, que, enfim, a

velha mais

moça, a filha, apareceu em um lotação ao nosso lado. As

duas se sorriram

como depois de uma longa e apreensiva travessia. A

velhinha chegou a

fazer graça:

Page 40: Cronicas 2

- Graças a Deus, minha filha! Você ainda chegou antes

de mim.

- Eu não disse, mãe, que não tinha perigo?

A filha desceu na esquina, chegou até perto da janela

do nosso

lotação, segurou a mão de sua mãe:

- Agora vai direitinha, viu?

- Você pode ir descansada, minha filha.

O lotação arrancou de novo, gestos de adeus, a

harmonia voltou

ao rosto da nossa velhinha, que tranqüilizou também a

vizinha de banco:

- Ela vai trabalhar no Ministério; eu vou para casa,

moro no Rio

Comprido.

NA ESCOLA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Democrata é Dona Amarílis, professora na escola

pública de uma

Page 41: Cronicas 2

rua que não vou contar, e mesmo o nome de Dona Amarílis é

inventado, mas

o caso aconteceu.

Ela se virou para os alunos, no começo da aula, e falou

assim:

- Hoje eu preciso que vocês resolvam uma coisa muito

importante.

Pode ser?

- Pode - a garotada respondeu em coro.

- Muito bem. Será uma espécie de plebiscito. A

palavra é

complicada, mas a coisa é simples. Cada um dá sua opinião,

a gente soma

as opiniões e a maioria é que decide. Na hora de dar opinião,

não falem

todos de uma vez só, porque senão vai ser muito difícil eu

saber o que é

que cada um pensa. Está bem?

- Está - respondeu o coro, interessadíssimo.

Page 42: Cronicas 2

- Ótimo. Então, vamos ao assunto. Surgiu um

movimento para as

professoras poderem usar calça comprida nas escolas. O

governo disse que

deixa, a diretora também, mas no meu caso eu não quero

dicidir por mim.

O que se faz na sala de aula deve ser de acordo com os

alunos. Para

todos ficarem satisfeitos e um não dizer que não gostou.

Assim não tem

problema. Bem, vou começar pelo Renato Carlos. Renato

Carlos, você acha

que sua professora deve ou não deve usar calça comprida na

escola?

- Acho que não deve - respondeu, baixando os olhos.

- Por quê?

- Porque é melhor não usar.

- E por que é melhor não usar?

- Porque minissaia é muito mais bacana.

Page 43: Cronicas 2

- Perfeito. Um voto contra. Marilena, me faz um favor,

anote aí

no seu caderno os votos contra. E você, Leonardo, por

obséquio, anote os

votos a favor, se houver. Agora quem vai responder é Inesita.

- Claro que deve, professora. Lá fora a senhora usa, por

que vai

deixar de usar aqui dentro?

- Mas aqui dentro é outro lugar.

- É a mesma coisa. A senhora tem uma roxo-cardeal

que eu vi

outro dia na rua, aquela é bárbara.

- Um a favor. E você, Aparecida?

- Posso ser sincera, professora?

- Pode, não. Deve.

- Eu, se fosse a senhora, não usava.

- Por quê?

Page 44: Cronicas 2

- O quadril, sabe? Fica meio saliente...

- Obrigada, Aparecida. Você anotou, Marilena?

Agora você,

Edmundo.

- Eu acho que Aparecida não tem razão, professora. A

senhora

deve ficar muito bacana de calça comprida. O seu quadril é

certinho.

- Meu quadril não está em votação, Edmundo. A calça,

sim. Você é

contra ou a favor da calça?

- A favor 100%.

- Você, Peter?

- Pra mim tanto faz.

- Não tem preferência?

- Sei lá. Negócio de mulher eu não me meto, professora.

Page 45: Cronicas 2

- Uma abstenção. Mônica, você fica encarregada de

tomar nota dos

votos iguais ao de Peter: nem contra nem a favor, antes pelo

contrário.

Assim iam todos votando, como se escolhessem o

Presidente da

República, tarefa que talvez, quem sabe? no futuro sejam

chamados a desempenhar. Com a maior circunspeção. A

vez

de Rinalda:

- Ah, cada um na sua.

- Na sua, como?

- Eu na minha, a senhora na sua, cada um na dele,

entende?

- Explique melhor.

- Negócio seguinte. Se a senhora quer vir de pantalona,

venha.

Eu quero vir de midi, de máxi, de hort, venho. Uniforme é

papo furado.

Page 46: Cronicas 2

- Você foi além da pergunta, Rinalda. Então é a favor?

- Evidente. Cada um curtindo à vontade.

- Legal!exclamou Jorgito.- Uniforme esta superado,

professora.

A senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de

qualquer jeito.

- Não pode - refutou Gilberto.- Vira bagunça. Lá em

casa ninguém

anda de pijama ou de camisa aberta na sala. A gente tem de

respeitar o

uniforme.

Respeita, não respeita, a discussão esquentou, Dona

Amarílis

pedia ordem, ordem, assim não é possível, mas os grupos

se haviam

extremado, falavam todos ao mesmo tempo, ninguém se

fazia ouvir, pelo

que, com quatro votos a favor de calça comprida, dois

contra, e um

tanto-faz, e antes que fosse decretada por maioria absoluta

a abolição

Page 47: Cronicas 2

do uniforme escolar, a professora achou prudente declarar

encerrado o

plebiscito, e passou à lição de História do Brasil.

REUNIÃO DE MÃES - FERNANDO SABINO

Na reunião de pais só havia mães. Eu me sentiria

constrangido em

meio a tanta mulher, por mais simpáticas me parecessem, e

acabaria nem

entrando - se não pudesse logo distinguir, espalhadas no

auditório, duas

ou três presenças masculinas que partilhariam de meu

ressabiado zelo

paterno.

Sentei-me numa das últimas filas, para não causar

espécie à

seleta assembléia de progenitoras. Uma delas fazia tricô, e

várias

conversavam, já confraternizadas de outras reuniões. O

Padre-Diretor

tomou assento à mesa, cercado de professoras, e deu início à

sessão.

Page 48: Cronicas 2

Eu viera buscar Pedro Domingos para levá-lo ao

médico, mas

desta vez cabia-me também participar antes da reunião.

Afinal de contas

andava mesmo precisando de verificar pessoalmente a

quantas o menino

andava.

O Padre-Diretor fazia considerações gerais sobre o

uniforme de

gala a ser adotado. A gravatinha é azul?perguntou uma das

mães. Meia

três-quartos?perguntou outra. E o emblema no

bolsinho?perguntou uma

terceira. Outra ainda, à minha frente, quis saber se tinha

pesponto-

mas sua pergunta não chegou a ser ouvida.

Invejei-lhes a desenvoltura. Tive vontade de perguntar

também

alguma coisa, para tornar mais efetivo meu interesse de pai

- mas temi

aquelas mães todas voltando a cabeça, curiosas e

surpreendidas, ante uma

destoante voz de homem, meio gaguejante talvez de

insegurança. Poderia

Page 49: Cronicas 2

também não ser ouvido - e se isso me acontecesse eu sumiria

na cadeira.

Além do mais, não me ocorria nada de mais prático para

perguntar senão o

que vinha a ser pesponto.

Acabei concluindo que tanta perguntação quebrava

um pouco a

solene compostura que devíamos manter, como responsáveis

pelo destino de

nossos filhos. E dispensei-me de intervir, passando a ouvir a

explanação

do Padre-Diretor:

- Chegamos agora ao ponto que interessa: o quinto ano.

Depois de

cuidadosa seleção, foi dividido em três turmas - a turma 14,

dos mais

adiantados; a turma 13, dos regulares; e a turma 12, dos

atrasados,

relapsos, irrequietos, indisciplinados. Os da 13 já não são lá

essas coisas, mas os da

12 posso assegurar que dificilmente irão para a frente, não

querem nada

com estudo.

Page 50: Cronicas 2

Fiquei atento: em qual delas estaria o menino? Pensei

que o

Diretor ia ler a lista de cada turma - o meu certamente na

14. Não leu,

talvez por consideração para com as mães que tinham

filhos na 12.

Várias, que já sabiam disso, puseram-se a falar ao mesmo

tempo: não era

culpa delas; levavam muito dever para casa, não se

habituavam com o

semi-internato. Uma - a do tricô, se não me engano - chegou

mesmo a se

queixar do ensino dirigido, que a seu ver não estava dando

resultado.

Outra disse que tinha três filhos, faziam provas no mesmo

dia, como

prepará-los de uma só vez? O Padre-Diretor sacudiu a

cabeça, sorrindo

com simpatia - não posso nem ao menos lastimar que a

senhora tenha tanto

filho. E voltou a falar nos relapsos, um caso muito sério. Não

vai esse

Padre dizer que meu filho está entre eles, pensei.

Irrequieto,

indisciplinado. Ah, mas ele havia de ver comigo: entre os

piores!

Page 51: Cronicas 2

E por que não? Quietinho, muito bem mandado,

filhinho do papai,

maria-vai-com-as-outras ele não era mesmo não. Desafiei o

auditório,

acendendo um cigarro: ninguém tinha nada com isso.

Criança ainda, na

idade mesmo de brincar e não levar as coisas tão a sério. O

curioso é

que não me parecesse assim tão vadio - jogava futebol na

rua, assistia à

televisão, brincava de bandido, mas na hora de estudar o

rapazinho

estudava, então eu não via? Quem sabe se procurasse

ajudá-lo, dar uma

mãozinha... Mas essas coisas que ele andava estudando eu

já não sabia

de cor, tinha de aprender tudo de novo. Outro dia, por

exemplo, me

embatucou perguntando se eu sabia como se chamam os

que nascem na Nova

Guiné. Ninguém sabe isso, meu filho, respondi gravemente.

Ah, não sabe?

Pois ele sabia: guinéu! Não acreditei, fui olhar no dicionário

para ver se era mesmo. Era. Talvez estivesse na turma 13,

bem que

Page 52: Cronicas 2

sabia lá uma coisa ou outra, o danadinho.

Agora o Diretor falava na comida que serviam ao

almoço. Da

melhor qualidade, mas havia um problema - os meninos se

recusavam a comer

verdura, ele fazia questão que comessem, para manter dieta

adequada. No

entanto, algumas mães não colaboravam. Mandavam

bilhetinhos pedindo que

não dessem verdura aos filhos.

Eis algo que eu jamais soube explicar: por que menino

não gosta

de verdura? Quando menino eu também não gostava.

- Pedem às mães que mandem bilhetinhos e não é só

isso: usam

qualquer recurso para não comer verdura. Hoje mesmo me

apareceu um com

um bilhete da mãe dizendo: não obrigar meu filho a comer

verdura. Só que

estava escrito com a letra do próprio menino.

Chegava era a hora de levá-lo ao médico - uma

professora amiga

Page 53: Cronicas 2

foi buscá-lo para mim.

- Meu filho - perguntei, ansioso, assim que saímos: -

Em que

turma você está? Na 12 ou na 13?

- Na 14ele respondeu, distraído. Respirei com alívio: e

nem

podia ser de outra maneira, não era isso mesmo?

- Fico satisfeito de saber - comentei apenas.

Ele não perdeu tempo:

- Então eu queria te pedir um favor - aproveitou-se

logo:- Que

você mandasse ao Padre-Diretor um bilhete dizendo que eu

não posso comer

verdura.

O risadinha (1)- PAULO MENDES CAMPOS

Seria melhor dizer que ele não teve infância. Mas não é

verdade.

Page 54: Cronicas 2

Eu o conheci menino, trepando às árvores, armando

alçapão para

canários-da-terra, bodoqueando as rolinhas, rolando pneu

velho pelas

ruas, pegando traseira de bonde, chamando o Professor

Asdrúbal de

Jaburu. Foi este último um dos mais divertidos e perigosos

brinquedos da

nossa infância: o velho corria atrás da gente brandindo a

bengala, seus

bastos bigodes amarelos fremindo sob as ventas vulcânicas.

Nestor, em suma, teve a meninice normal de um

filho de

funcionário público em nosso tempo, tempo incerto, pois os

recursos da

Fazenda na província eram magros, e os pagamentos se

atrasavam,

enervando a população.

Seus companheiros talvez nem soubessem que se

chamasse Nestor;

era para todos o Risadinha. Falava pouco e ria muito, um

riso de fato

diminutivo, nascido de reservados solilóquios, quase sempre

extemporâneo.

Page 55: Cronicas 2

Certa feita, na aula de

francês, quando entoávamos em coro o presente do

subjuntivo do verbo

sôen aller, Risadinha pespegou uma bólide de papel bem na

ponta do nariz

do professor, que era muito branco, pedante a capricho e

tinha o nome de

Demóstenes. O rosto do mestre passou do pálido ao

rubro das suas

tremendas cóleras. Um dos seus prazeres, sendo-lhe vetado

por lei

castigar-nos com o bastão, era desfiar em cima do culpado

uma série de

insultos preciosos, que ele ia escandindo um por um, sem

pressa e com

ódio.

- Levante-se, seu Nestor! Sa-cri-pan-ta! Ne-gli-gen-

te!

Si-co-fan-ta! Tu-nan-te! Man-dri-ão! Ca-la-cei-ro! Pan-di-lha!

Bil-tre!

Tram-po-li-nei-ro! Bar-gan-te! Es-trói-na! Val-de-vi-

nos!

Va-ga-bun-do!...

Page 56: Cronicas 2

Pegando a deixa da única palavra inteligível, Risadinha

erguia

o dedo no ar e protestava, com ar ofendido:

- Vagabundo, não, professor.

Era um artista do cinismo, e sua momice de inocência

era de

tal arte que até mesmo seu Demóstenes não conseguia

conter o riso.

Como também somente ele já arrancara uma gargalhada do

padre-prefeito,

um alemão da altura da catedral de Colônia, num dia em

que vinha

caminhando lento e distraído, fora da forma.

- Por que o senhorr não está na forma?perguntou-lhe

rosnando

o padre, como se estivesse de promotor da Inquisição,

diante de um

herege horripilante.

- E porque estou com meu pezinho machucado,

respondeu com doçura

o Risadinha.

Page 57: Cronicas 2

- E por que senhorr não está mancando?

Risadinha olhou com espanto para os seus próprios

pes, começando

a mancar vistosamente:

- Desculpe, seu padre, é porque eu tinha esquecido.

Aula de inglês – RUBEM BRAGA

- Is this an elephant?

Minha tendência imediata foi responder que não; mas a

gente não

deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar

que lancei à

professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e

tinha o ar de

quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei

com a maior

atenção o objeto que ela me apresentava.

Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa

leviana

poderia concluir às pressas que não se tratava de um

elefante. Mas se

tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele

de ser um

Page 58: Cronicas 2

elefante; e mesmo que morra em conseqüência da brutal

operação, continua

a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em

princípio, tão

elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-

me de

averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas

patas, como

costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui

descobrir o

pequeno rabo que caracteriza õ grande animal e que, às

vezes, como já

notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça

infantil.

Terminadas as minhas observações, voltei-me para a

professora e

disse convictamente:

- No, it's not!

Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora

de minha

resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente me

perguntou:

- Is it a book?

Page 59: Cronicas 2

Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha

vida no meio

de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de

distinguir um

livro à primeira vista no meio de quaisquer outros objetos,

sejam eles

garrafas, tijolos ou cerejas maduras - sejam quais forem.

Aquilo não era um livro, e mesmo

supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo

não seria um

deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta

demorou no

máximo dois segundos:

- No, it's not!

Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita - mas so por

alguns

segundos. Aquela mulher era um desses espíritos

insaciáveis que estão

sempre a se propor questões, e se debruçam com uma

curiosidade aflita

sobre a natureza das coisas.

- Is it a handkerchief?

Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer

a verdade,

não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse

hipoteca...

Page 60: Cronicas 2

Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca?

Handkerchief! Era

uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática;

talvez fosse chefe

de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito

provavelmente,

enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:

- No, it's not!

Minhas palavras soaram alto, com certa violência,

pois me

repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos

meus arredores

pudesse ser um handkerchief.

Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez,

porém, a

pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia

uma luz de

malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de

desafio. Sua

voz era mais lenta que das outras vezes; nao sou

completamente ignorante

em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha

a certeza

de que se tratava de uma pergunta decisiva.

- Is it an ash-tray?

Page 61: Cronicas 2

Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro

lugar porque

eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em

segundo lugar

porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei

uma

extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray. Sim. Era

um objeto de

louça de forma oval, com

cerca de treze centímetros de comprimento. As bordas

eram da altura

aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias

curvas - duas ou

trêsna parte superior. Na depressão central, uma espécie

de bacia

delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de

cigarro fumado

(uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um

palito de

fósforos já riscado. Respondi:

- Yes!

O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora

teve o

rosto completamente iluminado por uma onda de

alegria; os olhos

Page 62: Cronicas 2

brilhavam - vitória! vitória!e um largo sorriso desabrochou

rapidamente

nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e

inquieta.

Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de

estender o braço

e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito

excitada:

- Very well! Very well!

Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no

lidar com

mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me

perturbou;

tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.

Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira

aula; andei

na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja,

alguns belos

cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar

um. Certamente

teria entabulado uma longa conversação com o embaixador

britânico, se o

encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da

boca e lhe

diria:

- It's not an ash-tray!

Page 63: Cronicas 2

E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu

sabia

falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador

ver que sua

língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do

país junto

a cujo governo é acreditado.

OUSADIA – FERNANDO SABINO

A moça ia no ônibus muito contente desta vida, mas, ao

saltar, a

contrariedade se anunciou:

- A sua passagem já está paga - disse o motorista.

- Paga por quem?

- Esse cavalheiro aí.

E apontou um mulato bem vestido que acabara de

deixar o ônibus,

e aguardava com um sorriso junto à calçada.

Page 64: Cronicas 2

- É algum engano, não conheço esse homem. Faça o

favor de

receber.

- Mas já está paga...

- Faça o favor de receber!insistiu ela, estendendo o

dinheiro e falando bem alto para que o homem ouvisse:- Já

disse que não

conheço! Sujeito atrevido, ainda fica ali me esperando, o

senhor não

está vendo? Vamos, faço questão que o senhor receba minha

passagem.

O motorista ergueu os ombros e acabou recebendo:

melhor para ele, ganhava duas vezes.

A moça saltou do ônibus e passou fuzilando de

indignação pelo

homem.

Foi seguindo pela rua, sem olhar para ele.

Se olhasse, veria que ele a seguia, meio ressabiado, a

alguns

passos.

Page 65: Cronicas 2

Somente quando dobrou à direita para entrar no

edifício onde

morava, arriscou uma espiada: lá vinha ele! Correu para o

apartamento,

que era no térreo, pôs-se a bater, aflita:

- Abre! Abre aí!

A empregada veio abrir e ela irrompeu pela sala,

contando aos

pais atônitos, em termos confusos, a sua aventura:

- Descarado, como é que tem coragem? Me seguiu até

aqui!

De súbito, ao voltar-se, viu pela porta aberta que o

homem ainda

estava lá fora, no saguão. Protegida pela presença dos

pais, ousou

enfrentá-lo:

- Olha ele ali! É ele, venham ver! Ainda está ali,

o

sem-vergonha. Mas que ousadia!

Page 66: Cronicas 2

Todos se precipitaram para a porta. A empregada levou

as mãos à

cabeça:

- Mas a senhora, como é que pode! É o Marcelo.

- Marcelo? Que Marcelo?a moça se voltou,

surpreendida.

- Marcelo, o meu noivo. A senhora conhece ele, foi quem

pintou o

apartamento.

A moça só faltou morrer de vergonha:

- É mesmo, é o Marcelo! Como é que eu não reconheci!

Você me

desculpe, Marcelo, por favor.

No saguão, Marcelo torcia as mãos, encabulado:

- A senhora é que me desculpe, foi muita ousadia...

Mendigo – PAULO MENDES CAMPOS

Page 67: Cronicas 2

Eu estava diante duma banca de jornais na Avenida,

quando a mão

do mendigo se estendeu. Dei-lhe uma nota tão suja e tão

amassada quanto

ele. Guardou-a no bolso, agradeceu com um seco obrigado e

começou a ler

as manchetes dos vespertinos. Depois me disse:

Na rua - 71

- Não acredito um pingo em jornalistas. São muito

mentirosos.

Mas tá certo: mentem para ganhar a vida. O importante é o

homem ganhar a

vida, o resto é besteira.

Calou-se e continuou a ler notícias eleitorais:

- O Brasil ainda não teve um governo que prestasse.

Nem rei, nem

presidente. Tudo uma cambada só.

Reconheceu algumas qualidades nessa ou naquela

figura (aliás,

com invulgar pertinência para um mendigo), mas isso, a

seu ver, não

Page 68: Cronicas 2

queria dizer nada:

- O problema é o fundo da coisa: o caso é que o

homem não

presta. Ora, se o homem não presta, todos os futuros

presidentes também

serão ruínas. A natureza humana é que é de barro ordinário.

Meu pai,

por exemplo, foi um homem bastante bom. Mas não deu

certo ser bom

durante muito tempo: então ele virou ruim.

Suspeitando de que eu não estivesse convencido da

sua teoria,

passou a demonstrar para mim que também ele era um

sujeito ordinário

como os outros:

- O senhor não vê? Estou aqui pedindo esmola,

quando poderia

estar trabalhando. Eu não tenho defeito físico nenhum e

até que não

posso me queixar da saúde.

Tirei do bolso uma nota de cinqüenta e lhe ofereci

pela sua

Page 69: Cronicas 2

franqueza.

- Muito obrigado, moço, mas não vá pensar que eu vou

tirar o

senhor da minha teoria. Vai me desculpar, mas o senhor

também no fundo é

igualzinho aos outros. Aliás, quer saber de uma coisa? Houve

um homem de

fato bom, cem por cento bom. Chamava-se Jesus Cristo. Mas

o senhor viu o

que fizeram com ele?!

DIPLOMA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

- Olha o diploma da mamãe! Quem tem sua mamãe

deve lhe oferecer

este diploma!

Era atrás do edifício da Noite, na passagem lamacenta

onde se

aglomeram vendedores de canetas automáticas de dez

cores, e outros

artigos. O rapaz aproximou-se da banca onde se exibiam

os diplomas.

Page 70: Cronicas 2

Pediu licença para pegar num deles, enquanto o vendedor

continuava

gritando a mercadoria sentimental.

Mirou e remirou o papel com atençao.

- Onde é que bota o retrato?

- Que retrato?inquiriu o camelô.

- O meu, para oferecer a ela...

- Ah, compreendo, o cavalheiro quer oferecer um

retratinho a sua

mamãe. Muito bem, pode colocar sua bonita estampa nas

costas do diploma,

está vendo?

Timidamente, o rapaz formulou a objeção:

- Mas, se ela enquadrar o diploma e pendurar na

parede, o

retrato fica escondido nas costas.

- Perfeitamente, nesse caso ela pode pendurar o

quadro de

Page 71: Cronicas 2

costas, e o amigo fica aparecendo.

- Isso não. Eu queria botar meu retrato na frente do

diploma,

junto disso tudo que está escrito aí.

- Não tem problema, cola aqui neste canto, fica até

mais

interessante.

O rapaz tirou um embrulhinho do bolso, tirou do

embrulhinho

sua fotografia em tamanho de postal, aplicou-a sobre o

diploma, no lugar

indicado pelo vendedor. Reconheceu, consternado:

- Cabe não.

- Cabe sim. Com licença, cavalheiro. Olhe como ficou

bacana.

- Assim ele tapa as letras da escrita.

- Ora, só umas letrinhas. A maioria das palavras

continua

Page 72: Cronicas 2

visível. Que importância tem tapar algumas palavras? O

cavalheiro

cobre elas com o carinho da sua fotografia.

O rapaz continuava indeciso. Dar um diploma a sua

mãe, no Dia

das Mães, era idéia nova, excitante. Não entendia bem o

que fosse

diploma, porém, certamente, sua mãe o merecia; e se o

diploma levasse o

retrato dele, deixava de ser um diploma qualquer, oferecido

a qualquer

mãe. Mas, como, se não tinham previsto o lugar para o

retrato do filho?

- Vai levar?perguntou o camelô, desejoso de fechar o

negócio e

voltar à pregação oratória - pois eles gostam ainda mais de

falar à

multidão do que de vender.

- Bem... eu levo. Corto o peito do meu retrato, assim

ele cabe

sem ofender as palavras. E como é que eu faço para

mandar para

Inajaroba?

Page 73: Cronicas 2

- Onde fica isso, meu chapa?

- Sergipe, então não sabe?

- Até este momento não sabia, mas não tem problema.

Enrola,

bota no Correio, vai de avião.

- Chega todo esbandalhado.

- Então, passa ali na papelaria e pede para botar

enchimento,

fazer uma embalagem bem legal.

- Mais um favorzinho, moço - e o rapaz baixou a voz e a

cabeça.

- Vai dizendo, vai dizendo.

- Pode ler para mim o que está escrito aí? Eu não

gostava que

minha mãe recebesse o diploma sem eu saber o que estou

mandando dizer

nele...

Page 74: Cronicas 2

- Com todo o prazer - e leu com ênfase, para o rapaz e

para o

grupo em redor, a declaração de amor de um filho a sua

mamãe, em forma

de diploma.

A OUTRA NOITE – RUBEM BRAGA

Outro dia fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma

noite de

vento sul e chuva, tanto lá como aqui. Quando vinha para

casa de táxi,

encontrei um amigo e o trouxe até Copacabana; e contei a ele

que lá em

cima, além das nuvens, estava um luar lindo, de Lua cheia;

e que as

nuvens feias que cobriam a cidade eram, vistas de cima,

enluaradas,

colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal.

Depois que o meu amigo desceu do carro, o chofer

aproveitou um

sinal fechado para voltar-se para mim:

- O senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua

conversa.

Page 75: Cronicas 2

Mas, tem mesmo luar lá em cima?

Confirmei: sim, acima da nossa noite preta e

enlamaçada e

torpe havia uma outra - pura, perfeita e linda.

- Mas, que coisa...

Ele chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o

céu fechado

de chuva. Depois continuou guiando mais lentamente. Não

sei se sonhava

em ser aviador ou pensava em outra coisa.

- Ora, sim senhor...

E, quando saltei e paguei a corrida, ele me disse

um"boa noite"

e um"muito obrigado ao senhor" tão sinceros, tão veementes,

como se eu

lhe tivesse feito um presente de rei.