Cristina Paniago - Meszaros e a Incontrolabilidade Do Capital

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 Maria Cristina Soares Paniago MÉSZÁROS E A INCONTROLABILIDADE DO CAPITAL

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Debate da lukáciana Cristina Paniago sobre o debate em Meszaros sobre a incontrolabilidade do capital

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  • Maria Cristina Soares Paniago

    MSZROS E A INCONTROLABILIDADE DO CAPITAL

  • Creative Commons - CC BY-NC-ND 3.0

    Diagramao: Estevam Alves Moreira NetoReviso: Luciano Accioly Lemos Moreira e Estevam Alves Moreira NetoCapa: Marcos Brado Rodrigues

    ISBN XXX-XX-XXXX-XXX-X

    1. XXX 2. XXX 3.XXX 4. XXXX

    Esta obra foi licenciada com uma licena Creative Commons - Atribuio - NoComercial - SemDerivados 3.0 Brasil.

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    1 edicao: EDUFAL2 edio - revista: agosto de 2012

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  • Maria Cristina Soares Paniago

    MSZROS E A INCONTROLABILIDADE DO CAPITAL

    2a edio - revista

    Instituto Lukcs

    So Paulo, 2012

  • minha me... sempre presente em minha memria.Aos meus filhos Ana e Andr.Ao Serginho.Por tudo.

  • SUMRIO

    NOTA 2a EDIO.............................................................................7

    PREFCIO..............................................................................................9

    INTRODUO....................................................................................13

    CAPTULO 1 - CONCEPO MARXIANA DE CAPITAL, SEGUNDO MSZROS ......................................................................21

    1.1 Desenvolvimento Histrico do Capital ao Capitalismo........211.2 Personificaes do Capital e Comando sobre o Trabalho....251.3 Exigncias Reprodutivas do Sistema Orgnico do Capital....311.4 Contradies Imanentes e Natureza de Causa Sui.....................361.5 Esgotamento dos Ajustes Estratgicos...................................42

    CAPTULO 2 - CRISE ESTRUTURAL E ATIVAO DOS LIMITES ABSOLUTOS DO SISTEMA DO CAPITAL.................45

    2.1 Produo Genuna e Produo Destrutiva..............................452.2 Crise Estrutural e Rejeio do Capital s Restries.................502.3 Fundamentos da Crise Estrutural............................................532.4 Ativao dos Limites Absolutos...............................................62

  • CAPTULO 3 - ESTADO E CAPITAL : UMA RELAO DE COMPLEMENTARIDADE NA BASE MATERIAL........................75

    3.1 Por que a necessidade do Estado Moderno?..........................753.2 Ao Corretiva e Coesiva do Estado Moderno.....................803.3 Elementos Constitutivos da Reciprocidade Dialtica

    entre Estado e Capital................................................................833.4 Defeitos Estruturais do Sistema do Capital..............................863.5 Diferenas Estruturais de Funes..........................................91

    CAPTULO 4 - DESAFIO HISTRICO DA OFENSIVA SOCIALISTA........................................................................................99

    4.1 Fracasso do Reformismo e Luta Emancipatria do Trabalho.................................................................................99

    4.2 Poltica Defensiva , Parlamento e o Poder Material do Capital..................................................................................108

    4.3 Condies Objetivas da Ofensiva Socialista........................1194.4 Sujeito Ativo da Alternativa Socialista...................................123

    CAPTULO 5 - INCONTROLABILIDADE DO CAPITAL.....1295.1 Fundamentos Ontolgicos da Incontrolabilidade

    do Capital..................................................................................1295.2 Unidades Industriais e a Questo do Controle

    sobre o Sistema Global............................................................1385.3 Concepes Existentes de Controle......................................1415.4 O Sistema do Capital Irreformvel e Incontrolvel............149

    CONCLUSO....................................................................................153

    BIBLIOGRAFIA................................................................................161

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    NOTA 2 EDIO

    A 1 edio deste livro foi realizada pela Editora da Universidade Federal de Alagoas (EDUFAL), em 2007, numa pequena tiragem, depois seguida de uma 2 reimpresso que se esgotou rapidamente. H muito se intentava republicar o livro para atender demanda que recebamos, mas no foi possvel concretiz-la em razo das repetidas negativas da EDUFAL. Pensamos que hoje este problema est resolvido, tendo em vista a oportunidade de republic-lo pelo Instituto Lukcs.

    O estudo de Mszros, aqui realizado, traz as principais teses de-senvolvidas pelo autor no Para Alm do Capital. Esta obra densa e provocativa aborda os fundamentos da crise estrutural vivida pelo capitalismo contemporneo, numa tentativa claramente explicitada de contribuir, aps Marx, para uma teoria revolucionria de transi-o ao socialismo.

    Esta 2 edio do livro reproduz integralmente o contedo da 1 edio. No entanto, cabe fazer uma atualizao das obras de Msz-ros publicadas aps a redao deste livro. publicao de Para Alm do Capital em portugus, no ano de 2002, seguiu-se mais 8 ttulos do autor, editados pela Boitempo Editorial. So eles: O Sculo XXI (2003), A Educao para o Capital (2005), O Desafio e o Fardo do Tempo Histrico (2007), A Crise Estrutural do Capital (2009), Estrutura Social e Formas de Conscincia (2009), Atualidade Histrica da Ofensiva Socialista (2010), Estrutura Social e Formas de Conscincia II (2011), A obra de Sartre (2012).

    A presente publicao tem o intuito de introduzir o leitor na discusso proposta por Mszros, e de provocar a curiosidade que leve o leitor a mergulhar nessa obra original e estimulante de 1102 pginas. O eixo condutor do livro a Incontrolabilidade do Capital, sem

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    o qual toda a crtica ao capital realizada por Mszros e a inviabili-dade de sua superao atravs de mediaes polticas perderiam o sentido.

    Mszros, assistente de Lukcs nos anos 50, na Hungria, expres-sa no Para Alm do Capital uma profunda influncia do mestre em sua formao intelectual e na impostao ontolgica por ele adotada na investigao da totalidade dos temas tratados.

    A crtica radical, sem nenhuma concesso poltica ou terica, que faz das sociedades capitalistas e ps-capitalistas, leva-o inevitavel-mente a resgatar a possibilidade, e a necessidade, de se constituir uma alternativa destrutividade do capital, j posta por Marx no sculo XIX. Para Mszros, a transio ao socialismo est na ordem do dia. Portanto, compreender a necessidade da superao do capi-tal uma exigncia vital para se obter xito na luta pela emancipao do trabalho.

    na fundamentao desta anlise que este livro pretende intro-duzir o leitor.

    Vamos a ele.A autora.

    Macei, Abril de 2012.

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    PREFCIO

    Vivemos, hoje, um tempo que eu chamo de tempo de covardia. Covardia por parte da maioria dos intelectuais. No uma covardia subjetiva, ainda que esse aspecto tambm possa estar presente. Mas, uma covardia objetiva, isto , a admisso da derrota da proposta de transformao radical do mundo e, mais ainda, a defesa de que, na verdade, no foi uma derrota de uma causa real, mas simplesmente o reconhecimento de que se tratava de uma aspirao completamen-te descabida. Segundo esses intelectuais, a pretenso, surgida a partir do sculo XIX, de que a razo humana seria capaz de compreender o mundo na sua integralidade e de que a ao humana poderia trans-form-lo radicalmente no passou de uma utopia sem fundamento real. Desse modo, a verdadeira e nica alternativa seria o aperfeio-amento, a humanizao da ordem social capitalista.

    Trata-se de uma covardia porque significa abandonar a causa possvel da construo de um mundo efetivamente igualitrio e livre e abraar a causa impossvel da construo desse mundo sob a lgica do capital ou mesmo de admitir, simplesmente, que a desigualdade social insupervel.

    Esta covardia se manifesta tanto entre os conservadores como entre os chamados progressistas. Entre os primeiros, porque, uns mais outros menos, assumiram, conscientemente, a defesa do ca-minho neoliberal, sabidamente produtor de imensas desigualdades sociais, como a nica alternativa para a humanidade. Entre os se-gundos, de maneira ainda mais expressiva, porque antes advogavam, embora tambm com variantes, o socialismo como alternativa pos-svel e superior para a humanidade. E, agora, diante dos monumen-tais problemas que a humanidade enfrenta, apequenaram-se e, para serem aceitos pelo establishment, isto , para no serem chamados de

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    jurssicos, de ultrapassados, de utpicos; para no estar sempre do lado dos perdedores, passaram a defender o aperfeioamento dessa ordem social como a nica e melhor alternativa.

    Ambas as posies, dos conservadores e dos chamados progres-sistas, passam pela afirmao de que possvel controlar o capital, ou seja, de que se pode obrig-lo a no produzir desigualdades so-ciais cada vez mais aberrantes. E esse controle se daria atravs do Estado e dos organismos da chamada sociedade civil.

    Por outro lado, essa covardia se torna ainda maior quando se v, a cada dia que passa, que os problemas da humanidade se tornam mais graves e prementes. E que , claramente, a lgica do capital a responsvel ltima por esses problemas.

    Defender, nesse momento de pensamento nico avassalador, a tese de que impossvel controlar o capital, de que no h fora nenhuma no mundo capaz de impedi-lo de produzir cada vez mais desigualdades sociais, de que no possvel construir uma comu-nidade autenticamente humana sob a lgica do capital, exige uma grande dose de coragem intelectual e moral. Maior ainda se con-siderarmos que as profundas e devastadoras derrotas sofridas por aqueles que assumiram a luta pela transformao radical do mundo e pela construo e uma sociedade comunista pareceram comprovar empiricamente a inviabilidade desse projeto. O preo pago por isso alto, especialmente dentro da academia, mas tambm fora dela.

    Mas, felizmente, ainda h intelectuais que no se acovardaram nem diante das derrotas nem diante da imensidade das tarefas. In-telectuais que no s proclamam, mas buscam fundamentar, com profundidade e rigor, a possibilidade e a necessidade de superao radical do capital e de toda a sociabilidade que se ergue a partir dele.

    Entre esses encontra-se um, de enorme estatura intelectual, que teve a coragem de situar-se na linha de frente da luta pelo resgate do instrumental metodolgico de carter radicalmente crtico e revolu-cionrio e pela defesa, racional e rigorosa, do socialismo como for-ma superior de sociabilidade. Este autor se chama Istvn Mszros.

    Uma das teses centrais da sua obra mxima, intitulada Para Alm do Capital, justamente a da incontrolabilidade do capital. E sobre essa temtica que se debrua Maria Cristina Soares Paniago, autora do livro: Mszros e a incontrolabilidade do capital.

    O mrito da tese de doutorado de Maria Cristina Soares Paniago, ora publicada em livro, reside precisamente em sistematizar toda a argumentao contida na obra de Mszros a respeito dessa proble-mtica. A autora mostra como Mszros resgata a anlise feita por

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    Marx da natureza essencial do capital. Anlise essa que desvela os mecanismos intrnsecos de sua reproduo e que fundamentam a tese da sua incontrolabilidade. Mas, a autora tambm mostra como Mszros atualiza essa anlise marxiana, explicitando as contradi-es em que se enreda hoje o capital e como isso comprova, cada vez mais, a impossibilidade do seu controle.

    Se, na primeira fase de constituio do capitalismo, este ainda podia abrir, de algum modo, horizontes para a maioria da humani-dade, nestes ltimos tempos fica cada vez mais clara a dissociao entre os fins da humanidade e os fins da reproduo do capital. Pois este, ao mesmo tempo em que produz imensa quantidade de riquezas tambm produz desigualdades sociais, misria, pobreza e destruio em nveis nunca vistos na histria da humanidade.

    A pretenso de controlar o capital no nova. Ela teve seus in-cios j em vida de Marx, quando a social-democracia alem abando-nou o caminho revolucionrio e orientou a luta da classe trabalha-dora em direo tomada (no destruio, como entendia Marx) do Estado burgus para, por meio dele, realizar reformas cada vez mais amplas e, desse modo, chegar ao socialismo.

    Por outro lado, todas as revolues de tipo sovitico, por circuns-tncias que no vem ao caso discutir aqui, acabaram tambm atri-buindo ao Estado a tarefa de dirigir as transformaes que levariam superao do capital e construo de uma sociedade socialista.

    Mais recentemente, o famoso Estado de Bem-estar Social criou, em muitssimas pessoas, a convico de que se havia encon-trado o caminho para uma distribuio mais igualitria da riqueza, mesmo no interior do prprio capitalismo.

    Do mesmo modo, e desde o pleno amadurecimento do capita-lismo, no sculo XIX, inumerveis tentativas tm sido feitas, por rgos internacionais e governos de todos os pases, no sentido de erradicar a fome, a pobreza, a misria e as desigualdades sociais de toda ordem.

    Qualquer pessoa, que percorra, com olhos no preconceituosos, a histria, do sculo XIX at os dias de hoje, perceber a falncia de todas essas tentativas e de como as desigualdades sociais no s no diminuram, mas, ao contrrio, tornaram-se cada dia mais amplas e profundas.

    Ao mostrar como capital, trabalho e Estado constituem uma uni-dade indissolvel, comandada pelo primeiro, Mszros desmonta toda a argumentao daqueles e so a ampla maioria que pre-tendem atribuir ao Estado, aos prprios empresrios e/ ou a orga-

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    nismos da assim chamada sociedade civil a tarefa de impor limites ao capital, obrigando-o a atender as necessidades humanas e no aquelas da sua reproduo.

    A tarefa de expor, de modo sistemtico e rigoroso, toda a argu-mentao de Mszros, em Para Alm do Capital, contrapondo-a de outros autores que sustentam a possibilidade de controle do capital, no pequena se considerarmos que essa obra tem mais de mil p-ginas e de uma grande densidade. Mas, essa tarefa foi realizada por Maria Cristina Soares Paniago com rara eficincia e felicidade. Por isso mesmo, um livro que nos ajudar a eliminar as iluses de que possvel construir um mundo igualitrio e livre sem a superao radical do capital. Tambm nos ajudar a solidificar a convico de que somente a erradicao do capital, atravs da luta da classe tra-balhadora e de todos os que a ela se aliarem, e sua substituio pelo trabalho associado poder ser o ponto de partida de uma forma de sociabilidade que permita a todos os seres humanos uma vida efeti-vamente digna.

    Ivo Tonet

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    INTRODUO

    A humanidade vive momentos intranquilos. Ao mesmo tempo em que chegamos a uma era com nveis de desenvolvimento da tc-nica, da cincia, da cultura, da informao e da produo material de riqueza nunca vistos, encontramo-nos beira de um desequil-brio ecolgico de propores desastrosas, que acompanhado por um descarte progressivo de enormes contingentes de populaes suprfluas, pois no mais necessrias acumulao privada da rique-za que caracteriza o capitalismo global, nos leva a temer pelo futuro.

    Este livro pretende trazer discusso questes, contrrias ao senso comum, que questionam se este curso de desenvolvimento histrico seria irreversvel. Para isso, nos propusemos a realizar um estudo sobre uma obra singular - pelas teses revolucionrias que de-fende Para Alm do Capital - rumo a uma teoria da transio, de Istvn Mszros.

    Mszros, nesta obra, direto e contundente ao afirmar que no h sada para o capital. Qualquer alternativa de superao dos graves problemas que ameaam a sobrevivncia da humanidade implica em se ir para alm do capital.

    Muitas estratgias polticas inovadoras se propuseram a cor-rigir os rumos desumanizadores e desestabilizadores do desenvol-vimento capitalista. No entanto, o que se verificou foi a falncia de todas elas. Os danosos efeitos sociais do neoliberalismo constituem, quanto a isso, uma prova irrefutvel.

    A inviabilidade das reformas se deve ao fato de elas deixarem intacta a reproduo do sistema do capital. O que significa manter as condies materiais e histricas imprescindveis acumulao do capital, impulsionada pela busca incessante do lucro.

    Como, ento, colocar restries necessidade vital do prprio

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    sistema em submeter as necessidades humanas realizao do lu-cro? Como regular ou impor politicamente restries a tal necessi-dade vital do capital, uma vez que a valorizao do valor s existe dentro desse movimento sempre renovado. Por isso o movimento do capital insacivel.? (Marx,1983:129)

    Essas questes a respeito da possibilidade de controle sobre o ca-pital esto na base da investigao que resultou na elaborao deste livro1, e na definio de Para Alm do Capital, como objeto de nossa pesquisa.

    Esta obra de Mszros a mais dura crtica contempornea s teses, de todos os matizes, que propem o controle sobre o capital atravs de mediaes polticas.

    Mszros2, filsofo hngaro, e antigo assistente de Gyrg Lukcs na Universidade de Budapest na dcada de 50, pretende com o Para Alm do Capital provocar uma contundente crtica revolucionria, por um lado, da avaliao histrica do socialismo sovitico que orientou grande parte das experincias revolucionrias no sc. XX, e, por outro, da hegemonia terico-poltica reformista que dominou a esquerda nas ltimas dcadas. Contrape-se terica e politicamen-

    1 Este livro tem por base o estudo realizado no doutorado, cuja tese foi defendida na Escola de Servio Social - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Durante este perodo contamos com bolsa concedida pelo CNPq.

    2 Istvn Mszros, que j esteve no Brasil em 1983, 1996, 2004 e 2006, nasceu na Hungria em 1930. Antes de entrar na Universidade em 1949, trabalhou como operrio em fbricas de avies, tipografia e em indstria txtil. Na Universi-dade, depois de ser perseguido e quase sofrer uma expulso por estudar com G. Lukcs, tornou-se seu assistente entre 1951 e 1956, em seguida deixando a Hungria em razo da invaso militar sovitica. Publicou seu primeiro livro em 1955, sua tese de doutorado, sob o ttulo Stira e Realidade: Contribuio para a Teoria da Stira. Durante sua permanncia na Itlia, pas para onde se dirigiu aps sair da Hungria, publicou outros dois livros: A Revolta dos Intelectuais na Hungria e Attila Jzsef e a Arte Moderna. Aps passar alguns anos na Itlia, em 1959, muda-se para a Inglaterra onde reside at hoje, sendo atualmen-te professor aposentado da Faculdade de Artes da Universidade de Sussex. Na Inglaterra, continuou a publicar seus livros muitos deles j publicados no Brasil: Marx : A Teoria da Alienao, Zahar Editores, 1981 e Boitempo Editorial, 2006; A Necessidade do Controle Social, Editora Ensaio, 198; Produo Destrutiva e Estado Capitalista, Editora Ensaio, 1989; A Obra de Sartre, Editora Ensaio, 1996; Filosofia, Ideologia e Cincia Social, Editora Ensaio, 1993; O Poder da Ideologia, Editora Ensaio, 1996 e Boitempo Editorial, 2004; Para Alm do Capital, Boitempo Editorial, 2002; . Em 1951, ainda na Hungria, foi ganhador do prmio Attila Jszef, e em 1970, j residindo na Ingla-terra, seu livro Marx:A Teoria da Alienao foi premiado pelo Isaac Deutscher Memorial. (Mszros, 1984)

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    te a todos aqueles, que, diante das enormes dificuldades de se cons-truir uma ordem socialista aps a derrota da experincia sovitica, optaram por estratgias de reformas no sistema do capital, atravs de crescentes restries sua lgica reprodutiva imanente, da reva-lorizao da poltica ou da criao de novos mecanismos de controle social mais autnomos. Mszros argumenta ser uma tentativa fada-da ao fracasso a reverso da lei de valorizao do valor a favor dos trabalhadores, o que significa, enfim, a continuidade da explorao do trabalho e da apropriao do trabalho excedente pelo capital.

    Tais orientaes ao poltica dos trabalhadores so extensivas, hoje, maioria da esquerda. Se ampliarmos o espectro poltico para alm da renovao socialdemocrata e sua verso neoliberal, e dei-xarmos de lado aspectos significativos que diferenciam os diversos setores da esquerda, podemos observar igual contedo nas diversas propostas, tanto de tericos envolvidos com a discusso da necess-ria expanso da democracia a todas as esferas das atividades sociais e econmicas, quanto daqueles envolvidos diretamente em formular um projeto poltico imediato, cujo teor fundamental a imposio de restries ao capital. Esses ltimos se baseiam na necessidade da poltica buscar um novo lugar de atuao: a esfera pblica no-estatal (os conselhos de sade, de oramento participativo, etc.)3, ou de partir para a transformao das estruturas bsicas da sociedade, gra-dualmente, atravs de experimentalismos institucionais4 e da combi-

    3 Ver Genro (2000), formulador terico-poltico das propostas de combinao de democracia direta e democracia representativa, como o Oramento Partici-pativo, que tm orientado as administraes municipais do Partido dos Traba-lhadores. Fazemos nossas as palavras de Frederico (2000), quando se refere ao livro de Tarso Genro e prope como sendo mais producente, ao ser criticamen-te examinado, sair-se do discurso epistemolgico e dar a devida ateno crtica ontolgica. A poltica e suas inovaes institucionais, sem considerao da base ontolgica do que se pretende transformar, torna-se puro reflexo de desejo e subjetividades bem intencionadas.

    4 Habermas um autor bastante utilizado para fundamentar teoricamente estas iniciativas. O capital e o Estado devem, segundo ele, ser influenciados pelas esferas pblicas autnomas, motivadas pela solidariedade e por uma formao poltica da vontade, e no eliminados. Para Habermas o poder de integrao da solidariedade deveria ser capaz de resistir s foras (...) [do] dinheiro e [do] poder administrativo. O que deveria ser visado nesse novo arranjo entre o mundo da vida e o sistema no seria a luta diretamente por dinheiro ou po-der, mas sim a luta por definies. Da poderia surgir as esferas pblicas au-tnomas, as quais teriam de alcanar uma combinao de poder de autolimita-o meditada que poderia tornar os mecanismos de autorregulao do Estado e da economia suficientemente sensveis diante dos resultados orientados a fim da formao radicalmente democrtica da vontade.(Habermas,1995:112-113)

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    nao de novos regimes de propriedades convivendo numa mesma economia5.

    O que h de comum em todas as posies aqui referidas a hi-ptese da possibilidade de controle sobre o capital e a crena de que se podem criar espaos de autonomia (de aprendizagem social) pa-ralelos ao livre desenvolvimento da lgica do capital, reservando-se esferas especficas de experincias institucionais alheias s leis gerais da autorreproduo do capital.

    Quando no se observa em posies com esse contedo a ex-pressa capitulao ao sistema do capital, verifica-se nelas a crena na possibilidade de se conquistar o socialismo atravs de reformas e con-troles sociais mais democrticos sobre o capital, a serem experimen-tados por meio da revalorizao da poltica, sem que se leve em conta as determinaes objetivas e imanentes do prprio funcionamento vital do sistema. Na medida em que, para Marx, a relao-capital uma relao de compulso que no se apoia em quaisquer relaes pessoais de dominao e dependncia, mas surge simplesmente da diferena nas funes econmicas.6, mantidas operantes as condi-es de sua reproduo material e intocada a diferena das funes econmicas na relao capital-trabalho, resta-nos atuar apenas nos limites absorvveis pela relao dominante, mas jamais no sentido

    5 Singer aponta para uma nova forma de organizao de empresas, as quais de-veriam se submeter aos princpios do cooperativismo, particularmente da autogesto, que imporiam restries ao capital, agora sob a propriedade de trabalhadores e consumidores, e inibiriam a concentrao do capital atravs do controle e regulao poltica por eles exercidos. (Singer, 2000:45-46) Tambm Bihr considera vivel subtrair do sistema do capital espaos para produo an-ticapitalista com base na cooperao e no na competio, com o objetivo de recuperao gradual do controle sobre o processo de produo material pelos trabalhadores. Prope uma estratgia cujo objetivo criar simultaneamente as condies de uma presso transformadora sobre o capitalismo atual, para modificar suas regras do jogo em um sentido favorvel aos trabalhadores, atra-vs de uma srie de reformas; e as condies de uma ruptura revolucionria posterior. (Bihr,1999:224)

    6 K. Marx. Grundrisse. Penguin Books, Harmondsworth, 1973, p. 426. (apud Mszros:607/708).

    Todas as referncias bibliogrficas de autores citados por Mszros, aqui uti-lizadas, constaro em nota de rodap, com a devida indicao da numerao de pgina do Para Alm do Capital. Em todas as demais citaes de autoria de Mszros, para evitar a repetio do ano de publicao da obra (texto base de nossa investigao), optamos por indicar apenas o nmero de pgina entre pa-rnteses. A primeira numerao refere-se edio do original em ingls (Msz-ros, 1995), vindo em seguida (separada por uma barra), a numerao da edio brasileira (Mszros, 2002)

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    de sua superao.Em ltima instncia, transforma-se uma questo ontolgica em

    uma questo de aperfeioamento do conhecimento de formas de administrao, ainda que em favor das classes despossudas, da re-lao capital-trabalho. Ao assim procederem, operam uma inverso hierrquica j apontada por Coutinho como idealista, que coloca a explicao epistemolgica acima da investigao ontolgica, ou seja, subordina-se a anlise ontolgica e as categorias objetivas do real s inovaes prtico-polticas, que, por ltimo, encontram-se limitadas pelas determinaes vitais do sistema do capital, mais do que nunca, totalizante e globalmente abrangente. (Coutinho,1972:184)

    So raros os estudos, hoje, que levam em conta a necessidade de se entender o mundo por meio de uma investigao ontolgica. Ou que, frente s derrotas histricas da luta pelo socialismo, no optem pela capitulao frente ordem do capital, ou , ainda, adotem como pressuposto terico a reconciliao ou convivncia pacfica (a despeito dos conflitos naturais de interesses) entre o capital e trabalho. nesse campo de investigao, no qual se visa captar a natureza gentico-ontolgica das categorias determinantes do siste-ma do capital, que se insere o estudo de Mszros. Para Mszros, todas essas propostas encontram-se comprometidas em sua origem, em razo do fundamento ontolgico do sistema do capital ser um modo de sociometabolismo incontrolvel, e s existir com base na explorao de seu antagonista estrutural, o trabalho.

    Em funo disso, julgamos necessrio investigar o modo de ser do sistema do capital, sua base ontolgica, para podermos entender as possibilidades da poltica como um terreno objetivamente de-limitado. A partir da, poder-se-ia desvendar o verdadeiro papel do sujeito social numa sociedade que tem na alienao (Entfremdung) uma decisiva garantia a sua existncia, e compreender at onde, e em que medida, a poltica poderia exercer sua funo emancipatria no sentido de uma sociedade socialista.

    Esse caminho terico-metodolgico no tem mobilizado muitos pesquisadores. Ao contrrio, depois do desaparecimento do mun-do bipolar, como alguns gostam de se referir ao principal resulta-do da derrocada do bloco sovitico, cada vez menor o nmero daqueles que encontram estmulo investigativo na condenao do sistema do capital, pois o capitalismo, agora, teria consagrado sua supremacia histrica, sem chance de existir qualquer formao so-cial que o suplantasse. Nesse sentido, por um lado, a maioria dos investigadores pensa que todo esforo deve se voltar atenuao

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    das injustias e desigualdades que o caracterizam, a partir da ao poltica delimitada por seus pressupostos e no contexto da ordem possvel; por outro, julga que se deve extrair de suas transformaes produtivas mais recentes todo proveito aos trabalhadores. Qualquer outra atitude estaria condenada pelo anacronismo dos velhos para-digmas (leia-se: fundados em Marx).

    Tendo sempre em foco compreender as velhas questes colo-cadas sobre o livre desenvolvimento da humanidade, considerado em todas as suas dimenses materiais e espirituais, ainda que isso signifique, para a maioria, colocar-se na contramo da histria, pre-ferimos recorrer base terica originada em Marx, sua crtica sociedade burguesa, atravs de um seu intrprete e atualizador Istvn Mszros.

    A afirmao sobre a incontrolabilidade do capital, sustentada por Mszros, s pode ser compreendida como resultado de uma exaus-tiva elucidao das bases ontolgicas do capitalismo, uma vez que o sentido de sua pesquisa orientado pelo prprio real, sendo movi-do pela necessidade de se identificar as conexes universais, bem como as snteses concretas7 caracterizadoras de uma totalidade historicamente determinada. Desse modo, a afirmao ontolgica da incontrolabilidade do capital, de acordo com a profunda anlise realizada por Mszros sobre o modo de funcionamento real do sistema do capital, adquire um sentido de sntese.

    A partir dessa abordagem gentico-ontolgica da produo e re-produo social sob o domnio do capital, o Para Alm do Capital 8 de Mszros traz inovadoras contribuies para a compreenso do mun-do atual, especialmente para o Servio Social, que necessita no s compreender as causas dos males sociais, mas que pretende tambm combat-las.

    Por isso, do maior interesse compreender profundamente as anlises desenvolvidas no Para Alm do Capital, em especial, a afirma-

    7 Mszros faz parte da mesma tradio filosfica inaugurada por Marx (sem desconsiderar a adoo crtica, feita por este, da dialtica hegeliana), na qual a razo dialtica e o estudo gentico-ontolgico das categorias determinantes do social constituem marcos definidores. Ver mais sobre a reproduo, no plano do pensamento, das determinaes do prprio real em Coutinho (1972).

    8 O ttulo Para Alm do Capital -, de acordo com o prefcio redigido pelo autor, portador de trs significados: ir alm do capital em si e no meramente alm do capitalismo, ir alm do projeto inacabado de O Capital de Marx, e do projeto marxiano articulado sob as circunstncias da ascendncia global da sociedade de mercado no sculo XIX. (xxi/45)

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    o da incontrolabilidade do capital. Pois se Mszros estiver certo grande parte da produo terico-poltica mais recente perde seu fio condutor, qual seja, a possibilidade de democratizao do capital e sua superao gradual a partir da construo de espaos de autono-mia do trabalho no interior do prprio sistema dominante.

    No decorrer do estudo, observamos que a questo da natureza incontrolvel do capital estava sempre presente e inter-relacionada com os demais temas abordados por Mszros, quando analisa o modo de controle sociometablico hierrquico e explorador do ca-pital. Optamos por reconstituir, sob uma nova organizao sinttica, as determinaes essenciais, e as conexes causais, que explicitam a incontrolabilidade do capital, com base na leitura imanente do texto. O que exige um mergulho na sua estrutura categorial que vai muito alm de sua mera apresentao lgico-formal.

    O contedo deste livro expe a reconstituio realizada dos fun-damentos ontolgicos da incontrolabilidade do capital, formulados por Mszros, nas partes I, II e III do Para Alm do Capital. 9

    Diante da concluso a que chega Mszros da total impossibi-lidade de controle do capital e, com a saturao do sistema, da ame-aa que isso representa para a sobrevivncia da humanidade , seu estudo aponta, a partir de Marx, para a necessidade de uma alterna-tiva socialista. O que implica na superao radical do capitalismo, como nico meio de se acabar com a explorao do trabalho, e, por conseguinte, de se ir para alm do capital. Recupera a ideia marxiana da constituio de uma nova forma histrica que deve contemplar a reintegrao da produo e do controle de todas as atividades da vida, a ser exercido pelos verdadeiros sujeitos da produo por meio da autoadministrao dos produtores livremente associados.

    De acordo com esses objetivos, Mszros desenvolve as linhas gerais de uma teoria da transio para o socialismo que reivindica uma reformulao das estratgias originais de emancipao socialis-ta, que se tornou necessria diante das mutveis condies histricas dos ltimos 150 anos.

    9 Vale salientar que nossa investigao pretende reproduzir apenas uma das po-lmicas teses formuladas por Mszros dentre as demais existentes no Para Alm do Capital. O livro composto por quatro partes (com 20 captulos), um apndice e um ndice onomstico, totalizando 1102 pginas.

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    CAPTULO 1 - CONCEPO MARXIANA DE CAPITAL, SEGUNDO MSZROS

    1.1. Desenvolvimento Histrico do Capital ao Capitalismo

    de fundamental importncia, para compreendermos a tese de Mszros sobre a incontrolabilidade do capital e suas implicaes para a reproduo social, que comecemos pelo seu conceito de capi-tal e pelo modo como concebe o funcionamento do sistema org-nico do capital. Para Mszros, h uma distino fundamental entre capital e capitalismo: as experincias revolucionrias que marcaram o sculo XX seriam evidncias de que a permanncia do capital to-talmente possvel em sociedades ps-capitalistas, em cujos processos de constituio as caractersticas definidoras do capitalismo tenham sido largamente alteradas. Como, tambm, se nos voltarmos aos s-culos que antecederam a efetiva dominao global do capital sobre todas as atividades humanas, podemos encontrar formas primitivas transitrias de capital o capital usurrio e o capital comercial, j existentes desde a Antiguidade. Apoiando-se nos Grundrisse de Marx, Mszros reconstitui o longo processo histrico de transformao dessas formas incipientes no capital dominante de hoje para enfati-zar que o capital no uma simples relao, mas um processo, em cujos vrios momentos sempre capital 10. Em todo processo his-trico-social, cada um dos momentos do capital se apresenta de for-ma variada, de acordo com as caractersticas das fases que marcam sua origem, desenvolvimento e maturidade plena. esse processo que nos indica a progressiva constituio de sua natureza e o grau de

    10 K. Marx. Grundrisse, Penguin Books, Harmondsworth, 1973, p.258-259. (apud Mszros:609/711)

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    controle que passar a exercer na produo social. Para Marx o

    capital comercial apenas capital circulante, e capital circulante a primeira forma de capital; na qual ele ainda no se tornou de modo algum o fundamento da produo. Uma forma mais desenvolvida capital dinheiro, e juro dinheiro, usura, cuja aparncia independente pertence do mesmo modo a um estgio anterior.11

    O capital, portanto, existe muito antes de sua forma capitalista, como tambm todos os aspectos da forma plenamente desenvolvi-da do capital incluindo a mercantilizao da fora de trabalho, que o passo mais importante para alcanar a forma mais desenvolvida, a capitalista apareceram em algum grau na histria muito tempo an-tes da fase capitalista, em alguns casos, at milnios antes.(603/703)

    O fato de Mszros afirmar esta distino entre capital e capita-lismo, contudo, no o leva, de modo algum, a negar que, enquanto capital, ele mantenha, em todas as suas fases, desde a mais primitiva at a ps-capitalista, a sua natureza mais profunda. Isso no quer di-zer, para nosso autor, que seja a-histrico, mas que a invariabilidade do capital se refere sua natureza e s suas determinaes mais essenciais, mas no ao modo e s formas de existncia adotadas historicamente. Ele cita Marx ( A natureza do capital permanece a mesma tanto em sua forma desenvolvida como na subdesenvolvida ), para demonstrar que a permanncia da natureza mais profunda do capital no implica na ahistoricidade. Pelo contrrio, em suas palavras, afirma que isto no absolutamente uma sugesto de que o capital possa fugir s restries e limites da histria, inclusive delimitao histrica de seu perodo de vida. Tal historicidade, sabemos, corresponde ao quadro de uma ontologia social dial-tica de fundamentao objetiva, que no deve ser confundida com as tradicionais variedades teolgicas ou metafsicas da ontologia. (112-113/184)

    Nesse sentido, para Mszros,

    O papel socialmente dominante do capital em toda a histria moderna bvio. No entanto, necessrio explicar como possvel que, sob certas con-dies, uma dada natureza (a natureza do capital) se desdobre e se realize de acordo com sua natureza objetiva, com suas potencialidades e limitaes inerentes seguindo suas prprias leis internas de desenvolvimento (apesar at dos antagonismos mais violentos com as pessoas negativamente afetadas por seu modo de funcionamento), desde a forma subdesenvolvida at a forma da

    11 K. Marx. Grundrisse, p.253. (apud Mszros:nota 105 609/nota 16 - 711)

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    maturidade. (113/184)

    Essas leis internas de desenvolvimento prprias natureza mais profunda do capital que vo indicar sua linha de continuidade e apontar os limites relativos e absolutos dentro dos quais o poder sempre historicamente ajustado do capital se afirma transhistori-camente atravs de muitos sculos. (113/185) Compreender essa dialtica objetiva do histrico e transistrico implica tambm, de acordo com a anlise de Mszros, em conceber o processo de cons-tituio da forma capitalista do capital como resultado de um longo processo cumulativo, no uniforme, de suas formas de domina-o historicamente precedentes, tais como a famlia, o controle do processo de trabalho, as instituies de intercmbio, as formas po-lticas de dominao, etc., as quais se fundiram num novo sistema poderoso e coerente. (133-134/207) Metodologicamente, temos aqui algo decisivo: trata-se de explicar o capital pelo seu processo histrico-gentico, com o que nosso autor rejeita todas as tentativas burguesas de explicar o mundo do ponto de vista do sistema do ca-pital j desenvolvido ou, ento, de fundamentar uma apologtica eternizadora do capital, segundo a qual a dominao em si [seria] natural e insupervel. (137/211)

    A histria do desenvolvimento do capital, de suas fases mais primitivas at hoje, indica, conforme Mszros, que o capital um modo de controle e no um ttulo legal de controle. (368/450) Ex-pressa-se na propriedade constitucionalmente assegurada, mas no tem nela sua origem. No se pode trat-lo como uma entidade ma-terial ou um mecanismo igualmente neutro que possa estar na posse de um ou outro indivduo aleatoriamente, pois o capital sempre uma relao social. (717/837) Uma relao social fundada no tra-balho social, no trabalho assalariado, cujo requisito histrico foi a completa separao a quebra da unidade do trabalho vivo e as condies objetivas de sua atividade produtiva. O capital encontra sua base de existncia sobre a sujeio do trabalho vivo, ao mesmo tempo em que s pode apresentar-se como a contrapartida - como trabalho acumulado, objetivado e alienado - , do sujeito que traba-lha. Ainda, segundo Mszros,

    De fato, esta separao alienada e em relao ao sujeito que trabalha implacavelmente dominadora/adversa constitui a prpria essncia do capital como um modo de controle social. Assim, nenhum economista poltico ou filsofo que se identifiquem com o ponto de vista do capital pode concebivel-mente divisar a reconstituio da unidade em questo, j que esta ltima ipso facto implicaria no apenas terminar com a dominao do capital sobre a so-

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    ciedade, mas simultaneamente tambm a liquidao do ponto de vista a partir do qual eles constroem seus sistemas tericos. (351-352/431)

    O modo de controle institudo pelo capital s pde se desen-volver quando transformou/submeteu todo trabalhador ao assala-riamento, uma vez que este passou a se defrontar, na sociedade de mercado, com o mais absurdo de todos os dualismos concebveis: a oposio entre os meios do trabalho e o prprio trabalho vivo. (352/432) Essas condies objetivas passam a enfrentar o traba-lho como poderes estranhos, independentes, como valor (trabalho objetivado) para o qual o trabalho vivo no passa de um meio de sua prpria preservao e expanso.12(607/708) O dinheiro surge como a mediao necessria entre mercadorias que se trocam no mercado. Pois o dinheiro no pode se tornar capital sem ser troca-do por capacidade de trabalho como uma mercadoria vendida pelo prprio trabalhador . E, ainda, segundo Marx13, o

    capital apenas uma coisa tal como o dinheiro o . No capital, tal como no dinheiro, relaes sociais definidas entre pessoas so expressas como a relao de coisas com pessoas, ou conexes sociais definidas aparecem como caractersticas sociais naturalmente pertencentes a coisas ... (607/708)

    A forma burguesa de mistificao da verdadeira essncia da re-produo social coloca o capital como o efetivo produtor da riqueza e regulador do sociometabolismo. Mszros chama a ateno para o crculo vicioso que se cria na auto-justificao do capital como o nico elemento produtivo, que, no entanto, no tem como prescin-dir do trabalho vivo como a substncia do trabalho acumulado que lhe d origem:

    A questo que, sem entender a perversa circularidade do sistema do capital mediante a qual o trabalho sob a forma de trabalho objetivado, alienado, se torna capital e, como capital personificado, enfrenta e domina o trabalhador no h como escapar do crculo vicioso da auto-reproduo ampliada do capital como o modo mais poderoso de controle sociometablico jamais conhecido na histria. (...) para ser capaz de romper o crculo vicioso do capital como forma de controle sociometablico, necessrio enfrentar o fetichismo do sistema em sua forma plenamente desenvolvida.(606-607/707-708)

    do prprio trabalho vivo que vem a fora histrica do capital. Nesse sentido, para Mszros,

    12 K Marx. Economic Works: 1861-1864, MECW, vol.34, p.413. Itlico de Marx.13 K.Marx, (ibidem:413/708).

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    do ponto de vista do capital visto como modo de controle, a questo im-portante no a sua forma contingente, a necessidade de uma expropriao da mais-valia que-assegure-a-acumulao. De uma forma ou de outra, sua forma contingente deve ser modificada mesmo nos parmetros estritamente capi-talistas no curso da inexorvel auto-expanso do capital, de acordo com as variaes de intensidade e escopo da acumulao de capital possvel na prtica sob as circunstncias histricas dadas. (368/451)

    A relao da dimenso transistrica (transhistorical) de sua nature-za mais profunda com suas formas historicamente particulares pode ser, agora, melhor compreendida.

    1.2 Personificaes do Capital e o Comando sobre o Trabalho

    Para Mszros, o capital, enquanto modo de controle metablico social, adquire sua fora e continuidade no por estar concentrado nas mos de uma ou mais unidades privadas ou estatais, mas por fazer parte do prprio modo como se estrutura a ordem social. Seu domnio sobre o trabalho no se sustenta numa relao de titula-ridade legal ou jurdica, mas sobre a apropriao da mais-valia e, para isso, tem que exercer seu poder determinante do processo sociometablico, materialmente encastoado, incorrigivelmente hie-rrquico e orientado-para-a-expanso sob todas as circunstncias histricas. (493) Nesse sentido,

    a questo da dominao do capital sobre o trabalho, junto com as modalida-des concretas de sua superao, devem ser tornadas inteligveis em termos das determinaes material-estruturais das quais emergem as mutveis possibilidades de interveno pessoal no processo de reproduo social. Pois, por mais pa-radoxal que possa parecer, o poder objetivo de tomada de deciso, e a corres-pondente autoridade no-escrita (ou no formalizada) do capital na qualidade de modo de controle real, precede a autoridade estritamente delegada (isto , os imperativos objetivos do prprio capital estritamente delegados e apenas contingentemente codificados) dos prprios capitalistas.(368/451)

    esta afirmao de Mszros, sobre a permanncia da nature-za mais profunda do capital, enquanto determinante do metabo-lismo scio-histrico pela mediao da gnese, desenvolvimento e desaparecimento de suas formaes histrico-particulares, que lhe abre espao para a concluso segundo a qual no uma deciso individual e parcial, sem alterao das determinaes material-estruturais do sistema do capital, que poder contrapor-se ao modo de meta-bolismo prevalecente. O crculo vicioso da relao capital-trabalho uma condio inexorvel de sua autorreproduo; possui uma l-

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    gica autorreferente que precede a vontade do capitalista, e se impe sobre o trabalhador por meio de formas mutveis de dominao. A dominao hierrquica e totalizante que exerce sobre o trabalho uma condio ineliminvel desse modo de controle metablico. En-quanto permanecerem as condies materiais dessa dominao no desaparecer o capital, e isso se aplica a todos os tipos de sociedade capitalista ou ps-capitalista, como insiste Mszros.

    Essa relao de dependncia recproca o que no quer dizer equilibrada, pois o capital s existe por conta da explorao do trabalho, enquanto este pode manter sua atividade produtiva inde-pendente dele, como j ocorreu na histria e pode novamente se apresentar como forma alternativa de sociabilidade imanente ao modo de controle metablico do capital e encontra-se fundada nas diferentes, mas nunca intercambiveis, funes desempenhadas pelo trabalho (produtor de mais-valia), e pelo capital (apropriador de mais-valia). Mszros cita Marx14, para quem a relao-capital constitui uma relao de compulso, cuja finalidade extrair o traba-lho excedente (...) uma relao de compulso que no se apoia em quaisquer relaes pessoais de dominao e dependncia, mas surge simplesmente da diferena nas funes econmicas. (...). Tal dependncia no se funda na deciso pessoal de um ou outro sujeito envolvido nessa relao (capitalistas e trabalhadores), uma condio que atua acima de suas cabeas, enquanto persistir a base material de explorao do trabalho, e a separao do trabalhador do controle das condies e produtos da produo. (607/708)

    Para que o capital possa cumprir sua funo de controle do so-ciometabolismo, no basta submeter o trabalho: tem que garantir o exerccio do total comando sobre o trabalho. Mszros ressalta que

    naturalmente, as modalidades pelas quais este comando pode e deve ser exercido esto sujeitas s mudanas histricas capazes de assumir as formas mais desconcertantes. Mas a condio absoluta do comando objetivado e aliena-do sobre o trabalho exercido de modo indivisvel pelo capital e por mais ningum, sob quaisquer que sejam suas formas realmente existentes e pos-sveis deve permanecer sempre. Sem ela, o capital deixaria de ser capital e desapareceria da cena histria. (609/710)

    Argumenta nosso autor que mesmo nas experincias revolucio-nrias das sociedades ps-capitalistas, a despeito de todo discurso em contrrio, essa condio absoluta de comando do capital sobre o trabalho prevaleceu sobre as tentativas iniciais de autoadministra-

    14 K. Marx. Economic Works: 1861-1864, MECW, vol.34, p.426. Itlicos de Marx.

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    o dos trabalhadores. O poder do capital afirmou-se por meio de novas modalidades de comando, inviabilizando qualquer alternati-va de poder compartilhado, ou, por fim, integralmente assumido pelo trabalho. nesse sentido que Mszros afirma que o trabalho ps-revolucionrio, no seu modo imediatamente vivel de existncia (...) permanece diretamente atado substncia do capital, isto , existncia material como a determinao estrutural vigente do pro-cesso de trabalho, e no sua forma historicamente contingente de personificao jurdica.(493/600)

    Isto posto, Mszros passa a explorar a relao entre a diviso do trabalho e o capital. Seu ponto de partida so as consideraes de Marx segundo as quais o comando sobre o trabalho traz consigo uma srie de consequncias para o prprio trabalho. Uma delas a gnese e desenvolvimento do trabalho combinado, que para Marx15 implica em

    trabalho reunido dos diferentes trabalhadores juntos [violentamente] combinados, e no [voluntariamente] combinados uns com os outros. A combinao deste trabalho aparece to s como subserviente e conduzida por uma vontade e inteligncia estranhas tendo a sua unidade viva em algum outro lugar quanto a sua unidade material aparece como subordinada unidade objetiva da maquinaria (...).(837/971)

    Desse modo, conforme Marx16, o trabalhador se relaciona com

    seu prprio trabalho como uma expresso da sua vida que, embora lhe per-tena a ele, alheio a ele e dele roubado. ... Capital, portanto, a existncia do trabalho social a combinao do trabalho como sujeito e tambm como objeto mas esta existncia existe independentemente e oposta a seus momentos reais con-sequentemente, ela prpria uma existncia particular isolada deles. Por sua parte, o capital aparece, ento, como o sujeito predominante e dono do trabalho alienado, e sua relao ela prpria uma contradio to completa como o a do trabalho assalariado.(837/972)

    O comando do capital sobre o trabalho opera, assim, uma sub-verso da relao sujeito-objeto. No porque, de fato, o capital possa ser considerado como o efetivo sujeito da produo, uma vez que apenas trabalho acumulado e no possui nenhuma existncia independente do trabalhador alienado de seus meios de produo (os quais, por sua vez, so apenas trabalho anterior objetivado). Mas

    15 K. Marx. Grundrisse, Penguin Books, Harmondsworth, 1973, p.p 470-471. 16 K. Marx,(ibidem:470-471).

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    porque, na relao de dominao que estabelece com o trabalho alienado, usurpa do sujeito real da produo todo poder de deciso e substitui as necessidades humanas conscientemente definidas por seus prprios ditames e imperativos materiais cegos de autova-lorizao. (352/432) Entre tais ditames e imperativos materiais ce-gos est seu critrio de produtividade, sempre orientado, de acordo com Marx17, pela compulso de produzir o trabalho excedente, trabalhar alm das necessidades imediatas do indivduo . (130/203) Nesse contexto, como diz Marx18, o processo de trabalho em si apenas aparece como um meio para o processo de valorizao, assim como o valor de uso do produto aparece como veculo de seu valor de tro-ca. (129-130/203) Desaparece assim a prioridade da necessidade humana e da correlativa produo de valores de uso e, junto com elas, o poder de deciso dos trabalhadores sobre o conjunto de sua atividade scio-produtiva.

    O sujeito que trabalha, indispensvel para a produo de riqueza, aparentemente deve ser um sujeito livre e soberano para que possa participar do acordo contratual concebido pelas relaes burguesas. Mas, na oficina desptica, que funciona sob a absoluta autorida-de do pseudo-sujeito usurpador, o capital, (...) transforma o sujeito real, o trabalhador, em um mero dente da engrenagem da mquina produtiva do sistema do capital. (349/428) Ele se transforma de sujeito real da produo em um objeto manipulvel pelo capital.

    E o capital, enquanto novo sujeito, no mais livre que o prprio trabalhador que submete sua lgica19. Ao capitalista a personifi-cao do capital - resta apenas demonstrar sua competncia enquan-to realizador dos desgnios acumulativos e expansionistas do capital. Para isso de suma importncia que o sujeito real da produo (o trabalhador), por isso mesmo imprescindvel produo, reconhea o comando do pseudo-sujeito o capitalista. Nas palavras de Mszros:

    17 K. Marx. Economic Manuscripts of 1861-63, MECW, vol.34. p.p 122. Itlicos de Marx.

    18 K. Marx, (ibidem: 398-399). Itlicos de Marx.19 Para Marx, a autovalorizao do capital (criao de mais-valia) (...) o objetivo

    determinante, dominante e subjugante do capitalista, fora motriz absoluta e contedo de sua ao (...). Este um contedo totalmente miservel e abstra-to, que faz o capitalista parecer to subjugado relao do capital quanto o trabalhador no extremo oposto, ainda que sob um ngulo diferente. K. Marx, (ibidem: 398-399). Itlicos de Marx. (apud Mszros:129-130/203)

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    o capital precisa de personificaes que faam a mediao (e a imposio) de seus imperativos objetivos como ordens conscientemente exequveis sobre o sujeito real, potencialmente o mais recalcitrante, do processo de produo. (As fantasias sobre a chegada do processo de produo totalmente automa-tizado e sem trabalhadores so geradas como a eliminao imaginria deste problema.)(66/126)

    As decises a serem tomadas pelo capitalista a personificao do capital tm sua fundamentao em uma conscincia atribuda a este sujeito (...) localizada fora da cabea dos tomadores de deciso particulares. (612/714)

    No importa o quanto sejam desconcertantes as formas pelas quais as per-sonificaes do capital controlam o processo objetivo de reproduo; elas o controlam em favor do prprio capital. Por isso, no devem ser concebidas equi-vocadamente como sujeitos do processo sociometablico em cujos vrios momentos o capital em si o sujeito em comando real (por mais perversamente reificado), permanecendo sempre capital, mesmo em suas instncias perso-nificadas. (619/723)

    O fato do capitalista estar no comando, portanto, significa que se submete, rigorosamente, aos imperativos objetivos de um siste-ma que gera valor sem ser valor e que est intrinsecamente deter-minado pela, j referida, perversa circularidade do sistema do capital. (606/707) nesse sentido, e apenas nesse, que Mszros faz refe-rncia, logo no incio da obra (cap.2), ao sistema do capital como um sistema de controle sem sujeito (subjectless system of control ). Pois, segundo ele,

    como um modo de controle sociometablico, o sistema do capital singular na histria tambm no sentido em que , na verdade,, um sistema de controle sem sujeito. As determinaes e os imperativos objetivos do capital sempre devem prevalecer contra os desejos subjetivos - para no mencionar as possveis reser-vas crticas - do pessoal controlador que chamado a traduzir esses imperativos em diretrizes prticas. por isto que as pessoas que ocupam os altos escales da estrutura de comando do capital - sejam eles capitalistas privados ou burocratas do partido - s pode ser consideradas personificaes do capital, independente do maior ou menor entusiasmo, como indivduos particulares, ao pr em exe-cuo os ditames do capital. Neste sentido, graas estrita determinao de sua margem de ao pelo capital, os prprios atores [agents] humanos como contro-ladores do sistema esto sendo de modo geral controlados e, portanto, em ltima anlise, no se pode afirmar a existncia de qualquer representante humano auto-determinante no controle do sistema. (66/125-126)

    O que est em questo no se as decises necessrias ao funcio-namento contnuo do sistema so ou no tomadas pelas personifica-

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    es do capital, mas se essas controlam o sistema ou, pelo contrrio, so controladas pelas exigncias fetichistas do sistema do capital enquanto tal. Mszros no tem dvidas de que esta ltima alterna-tiva a correta, nem que, sob a dominao do capital, Esse modo peculiar de controle sem sujeito (...) inevitvel devido separao radi-cal entre produo e controle no mago deste sistema. (66/126)

    Essa contradio entre sujeito e objeto, que destitui do verdadei-ro sujeito as decises sobre sua atividade, e por fim, sobre a consti-tuio de sua prpria histria, utiliza-se das personificaes do ca-pital, e personificaes do trabalho, para garantir a continuidade da valorizao do capital. No se trata de mera mistificao ideolgica das desiguais relaes econmicas, mas da necessidade objetiva de dominao de um trabalho reduzido a trabalho abstrato. Tal con-tradio imanente compulso do capital expanso sempre crescente extrao do trabalho excedente e, junto a esses requeri-mentos objetivos, temos a ineliminvel submisso da subjetividade, totalmente alienada, reificada, e em confronto com sua humanidade. Uma vez mais, Mszros se apoia em Marx20 :

    O reproduzido e novamente produzido , no apenas o ser dessas condies objetivas do trabalho vivo, mas seu ser como alheio ao trabalhador, tal como confronta sua capacidade de trabalho vivo. As condies objetivas do trabalho ganham uma existncia subjetiva contrria capacidade de trabalho vivo o capital d origem ao capitalista.(619/723)

    A personificao do capital, enquanto valor egosta com sua subjetividade usurpada e pseudopersonalidade que persegue sua prpria autoexpanso, pode assumir a imagem do capitalista ou do burocrata de partido (equivalente ps-capitalista ao antigo sis-tema do capital). Como, tambm, a personificao do trabalhador trabalho destinado a entrar numa relao de dependncia ou contratual/econmica ou politicamente regulada com o tipo his-toricamente prevalecente de capital pode ser alterada na forma do trabalhador capitalista ou do trabalhador socialista. (617/720-721) O que importa, aqui, desvelar a verdadeira relao causal que vai do capital sua personificao e a permanente instabilidade de um sistema fundado no insupervel antagonismo estrutural com o trabalho. Para Mszros, em todo contexto em que Marx se dirige a estes problemas ele deixa claro que a relao causal vai do capital ao capitalista, e no o contrrio. (619/723)

    20 K. Marx.Economic Works: 1861-1864, p.245. Itlicos de Marx.

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    Cabe ainda acentuar que os antagonismos que emergem dessa situao no se restringem apenas ao trabalho, mas se estendem tambm aos capitalistas particulares:

    os capitalistas particulares como os trabalhadores individuais (...) funcionam apenas como personificaes do capital e do trabalho e tm de sofrer as conse-quncias de dominao e subordinao implcitas na relao entre as perso-nificaes particulares e o que est sendo personificado. A lei do valor, por exemplo, que regula a produo do valor excedente, parece infligida pelos capitalistas uns sobre os outros e sobre os trabalhadores e, por isso, aparece de fato apenas como uma lei do capital atuando contra o capital e contra o trabalho. 21(130/203)

    1.3 Exigncias Reprodutivas do Sistema Orgnico do Capital

    esse complexo de determinaes que particulariza na histria universal - tal dependncia e antagonismo estruturais do capital e do trabalho abstrato, no havendo qualquer possibilidade da existncia de cada um em separado. E, mais ainda, com base nessa mesma contraditoriedade que o sistema do capital alimenta suas energias expansionistas, constituindo um sistema orgnico22 que afirma a si prprio como um processo de reproduo ampliada do capital. Tal sistema orgnico integra as caractersticas definidoras essenciais de todas as possveis formas do sistema do capital, e, no seu interior, as formas particulares de personificao do capital podem variar consideravelmente, contanto que as formas assumidas se moldem s exigncias fundamentais desse sistema orgnico: a mais elevada extrao praticvel do trabalho excedente por um poder de con-trole separado; e um processo de trabalho conduzido com base na subordinao estrutural hierrquica do trabalho aos imperativos materiais da produo orientada para a acumulao valor susten-

    21 K. Marx. Economic Manuscripts of 1861-1863, MECW, vol. 34. p.460.22 Mszros cita Marx para definir sistema orgnico: Enquanto no sistema bur-

    gus completo toda relao econmica pressupe cada uma das outras em sua forma econmico-burguesa, e tudo que posto , portanto, tambm um pres-suposto, o mesmo acontece com todo sistema orgnico. Este mesmo sistema orgnico, como totalidade, tem seus pressupostos, e seu desenvolvimento para a sua totalidade consiste precisamente em subordinar todos os elementos da so-ciedade a si mesmo, ou em criar os rgos de que ainda carece. Historicamente assim que ele se torna uma totalidade. K. Marx. Grundrisse, p. 278. Itlicos de Marx. (apud Mszros: 621/725)

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    tando-se a si mesmo (Marx)23. (668/781) Tais exigncias reprodu-tivas, se atendidas, assegurariam a possibilidade da permanncia do capital mesmo em sociedades que se afirmam socialistas. Por isso, para Mszros mais apropriado cham-las de ps-capitalistas, pois se o capital d origem ao capitalista, aquele no desapareceria com este. Pela mesma razo, apenas visar eliminar o antagonismo estru-tural do sistema, enquanto seu processo dinmico de reproduo for objetivamente sustentado, como tentaram as propostas de ca-pitalismo do povo ou a estratgia da acomodao e capitulao socialdemocrata, resultou em completo fracasso no que se refere superao do capital. (610/713)

    Dentro desse quadro de referncia estrutural, o sistema do capital nada tem a temer do conflito. Ao contrrio, de acordo com nosso autor, ele viceja nos conflitos e contradies, mesmo entre a plu-ralidade de capitais, fortalecendo-se pela afirmao de seu poder e comando sobre o trabalho no transcurso da reproduo do profun-do antagonismo estrutural (...) e seu sistema orgnico.(610/713) O que poderia parecer sinal de vulnerabilidade do sistema a ser apro-veitado por projetos alternativos de controle do sociometabolis-mo constitui apenas a base de sua afirmao, enquanto um sistema orgnico. Pois o que expressa a natureza desse sistema orgnico exatamente a integridade de sua totalidade, o que, para Mszros (citando Marx24), significa que como uma totalidade, tem seus pressupostos, e seu desenvolvimento para a sua totalidade consiste precisamente em subordinar todos os elementos da sociedade a si mesmo . (621/725)

    Qualquer tentativa de quebrar seu antagonismo com o trabalho, ou de se instituir um controle sobre apenas parte de seu sistema orgnico, sem que junto a isso se reestruture alternativamente toda a lgica reprodutiva do sistema - o que implica criar um novo sis-tema orgnico genuinamente socialista e sustentvel (621/726) -, s pode resultar em fracasso, ou em mistificao reformista.

    No nos esqueamos que a substncia do capital revela-se exa-tamente no exerccio de um poder e controle determinantes, ma-terialmente encastoado, incorrigivelmente hierrquico e orienta-do-para-a-expanso do processo sociometablico. (493/600) Esses pressupostos devem vigorar simultaneamente, pois, de outra forma, inviabilizariam o prprio sociometabolismo como hoje constitu-

    23 K. Marx. MECW, vol.34, p.413.24 K. Marx. Grundrisse, p.278.

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    do. Sua dinmica expansiva que a real fora motriz do sistema. ela que impe ao capital a busca ilimitada de desenvolvimento e exige o seu controle absoluto sobre a totalidade social. Diante da necessidade econmica objetiva de incessante acumulao e cresci-mento expansivo se fundamenta a impossibilidade do capital abrir mo do (ou mesmo atenuar o) controle totalizante que exerce sobre seu antagonista estrutural, pois s assim lhe pode impor um grau sempre superior de produo de trabalho excedente.

    Este imperativo de acumulao e expanso vai muito alm da variedade capitalista do sistema do capital, e, por conseguinte, da motivao (natural) do lucro do capitalista individual. Na verdade, a motivao do lucro a consequncia e no a causa das deter-minaes internas do sistema. Por essa razo,

    o imperativo da expanso dirigida-para-a-acumulao pode ser satisfeito em circunstncias socioeconmicas diferentes, no apenas sem a subjetiva moti-vao do lucro, mas at mesmo sem a exigncia objetiva de lucro, que vem a ser uma necessidade absoluta apenas na variedade capitalista do sistema do capital. A exigncia de acumulao no deveria ser confundida com a necessidade de lucro. (780/906)

    A acumulao do capital, ao encontrar disponveis as condies necessrias (1.a separao e alienao das condies objetivas do processo de trabalho do prprio trabalho; 2. a imposio de tais condies objetivadas e alienadas sobre os trabalhadores como um poder sepa-rado que exerce comando sobre o trabalho; 3.a personificao do capital como valor egosta ; e, 4. a equivalente personificao do trabalho) da relao-capital, no necessitou do capitalista ou da necessidade do lucro para assumir a forma histrica da acumulao socialista, baseada na extrao politicamente controlada de trabalho exceden-te, como ocorreu nas economias dos pases do bloco sovitico. (617/720) Situao essa possvel no passado, e no futuro, na medida em que, como nos alerta Mszros, no impossvel que haja uma

    reverso profunda dos eventos por meio dos quais o sistema do capital em crise profunda cuja administrao exija uma maior interveno estatal cada vez maior seja forado a adotar um (ou vrios) modo de reproduo, no qual se reduza significativamente o espao para a funo controladora da mo-tivao do lucro pessoal. (780/906)

    Em suma, o capital encontra as maneiras mais variadas de contor-nar as dificuldades histricas impostas ao seu livre desenvolvimento expansionista, no importando por quais metamorfoses tenha que

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    passar, ou quais formas polticas tenha que adotar. As tentativas his-tricas de alterao da relao-capital, seja por meio da interveno poltica socialdemocrata direta, seja pela extrao poltica do trabalho excedente da reproduo ampliada socialista, no tiveram sucesso, entre outras razes, porque, no primeiro caso, focalizaram as trans-formaes na esfera da negociao poltica e no poder compartilha-do com o capital, e, no segundo caso, sem alterar a substncia da base material do sistema de acumulao, fizeram uso do domnio poltico do Estado sobre o trabalhador socialista para submet-lo a novas formas de explorao. O resultado no poderia ser de outra natureza, segundo a anlise de Mszros, uma vez que, para ele,

    a dominao do capital sobre o trabalho de carter fundamentalmente eco-nmico, no poltico. Tudo o que a poltica pode fornecer as garantias pol-ticas para a continuao da dominao j materialmente estabelecida e enrai-zada estruturalmente. Consequentemente, a dominao do capital no pode ser quebrada no nvel da poltica, mas apenas as garantias de sua organizao formal. (472/576)

    Mszros afirma, assim, que para os desafios histricos da transi-o para o socialismo, a necessidade primordial quebrar, nas pala-vras de Marx 25, a dominao econmica do capital sobre o trabalho , e todas as condies que a sustentam. (472/576) Exercer permanen-temente o comando objetivado e alienado sobre o trabalho, de acordo com a anlise desenvolvida por Mszros, uma condio crucial para a existncia e funcionamento do capital. Tal comando s pode ser exercido de modo indivisvel pelo capital e por mais ningum, sob quaisquer que sejam suas formas realmente existentes e possveis (...). Sem ela, o capital deixaria de ser capital e desapareceria da cena histria. (609/710) A necessidade de se quebrar a dominao eco-nmica do capital implica, por outro lado, em eliminar igualmente as condies requeridas dominao sobre o trabalho, pois do con-trrio, o capital reapresenta-se atravs da habilidade de

    mudar prontamente a forma do seu domnio enquanto estas quatro condies bsicas [mencionadas acima] no forem radicalmente superadas pela forma-o de um sistema orgnico alternativo, genuinamente socialista.(617/721)

    Para nosso autor, portanto, no se tem como contornar, na pers-pectiva de uma alternativa radical dominao do capital sobre o trabalho, tal ordem de problemas e tal lgica de acumulao e ex-

    25 K. Marx. The Civil War in France, Foreign Languages Press, Peking, 1966, p.229.

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    panso. No h lugar para propostas de controle progressivo e gra-dual, pois como diz Mszros, seu poder exercido de modo indi-visvel. Mesmo se tratando de assuntos de menor importncia, inexorvel a necessidade de superar o capital em todos os seus aspectos, pois, caso contrrio o seu modo de reproduo socio-metablico que a tudo domina inevitavelmente se autorreconstitui. Essa capacidade de autorreconstituio est vinculada ao

    processo de autoconstituio circular do capital e [ sua] auto-reproduo ampliada em sua forma mais desenvolvida. Qualquer tentativa de ganhar controle sobre o capital tratando-o como uma coisa material ligada a uma relao simples com seu proprietrio privado em vez de instituir uma al-ternativa sustentvel ao seu processo dinmico em cujos vrios momentos ele nunca deixa de ser capital pode apenas resultar em fracasso catastrfico. (609-610/712)

    Como j visto acima, o capital no uma simples relao, mas um processo, em cujos vrios momentos sempre capital. (...) a tro-ca no permaneceu inalterada com a colocao formal de valores de troca, mas avanou necessariamente para a sujeio da prpria produo ao valor de troca. 26 Sem o reconhecimento de seu po-der auto-constituinte, que ultrapassa toda jurisdio legal que se lhe pretenda impor, no h possibilidade de sucesso em sua superao, muito menos no que se refere restituio do poder alienado de comando sobre o trabalho ao prprio trabalho. (609-610/711)

    Mszros cita Marx27 para descrever o processo original de au-to-constituio do capital:

    o processo no qual dinheiro ou valor-para-si-mesmo originalmente se torna capital pressupe a acumulao primitiva pelo proprietrio do dinheiro ou das mercadorias, que ele alcanou ainda como um no-capitalista, quer seja pela economia ou pelo seu prprio trabalho, etc. Portanto, apesar de os pressupos-tos para a transformao do dinheiro em capital aparecerem como pressupostos dados e externos para a emergncia do capital, to logo se transforma em ca-pital, o capital cria seus prprios pressupostos, a saber, a posse das condies reais para a criao de novos valores sem troca pelo seu prprio processo de produo. Estes pressupostos, que originalmente aparecem como pr-requisitos de seu devir, e que, portanto, no poderiam surgir de sua ao como capital, agora aparecem como resultados de sua prpria realizao, como realidade, como originados por ele, no como condies de sua emergncia, mas como resultados de seu prprio ser.(609/711)

    26 K. Marx. Grundrisse, p.258-259. Itlicos de Marx.27 K. Marx. Economics Works: 1861-1864, p.235. Itlicos de Marx.

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    Para Mszros, assim que o capital se torna verdadeiramente causa sui (sua prpria causa), reproduzindo-se como um poder que deve ser transcendido em todos os seus aspectos devido precisamen-te ao seu poder auto-constituinte (...) de causa sui.(609-610/711)

    1.4. Contradies Imanentes e a Natureza de Causa Sui

    O capital s pde atravessar os sculos (cujas origens remon-tam pelos menos Antiguidade grega e romana) e evoluir para sua forma mais desenvolvida e universal por operar eficientemente essa circularidade autorreferente, no poupando recursos para deslocar todas as barreiras colocadas no caminho de seu imperativo de ex-panso, sejam barreiras naturais, culturais ou nacionais. (610/712)

    O capital enquanto causa sui no significa cancelar sua imanen-te contraditoriedade. Pelo contrrio. Ao constituir-se como causa sui, no faz mais que expressar, em um novo patamar, a contradio en-tre o fato de ser uma criao humana e de procurar substituir os prprios homens enquanto sujeitos imediatos da histria. Nesta di-menso, por tratar-se de uma relao entre o capital e seu antagonista estrutural, o trabalho, bem como por necessitar da subjetividade de suas personificaes individuais para a execuo de sua vontade alie-nada e autoimposta, superar as barreiras ou limites devidos a cada circunstncia histrica implica em problemas econmicos e polticos de toda ordem. Em primeiro lugar, tem que se afirmar sobre essas subjetividades, no apenas sobre sua fora de trabalho, mas tambm como uma multiplicidade de capitais, em permanente conflito com o trabalho e entre suas personificaes particulares, motivadas pela concorrncia. Apesar de todo arsenal ideolgico utilizado para per-petuar a submisso, o trabalho historicamente a ela resistiu com os meios a seu alcance (desperdcio de material, danificao de maqui-nrio, lentido na produo, greves brancas, etc.). Por isso, o capital constantemente tem que atualizar seus mecanismos de imposio e vigiar as formas de manifestao do trabalho recalcitrante para poder garantir a continuidade da ordem estabelecida. O que determina a instabilidade desse poder autoritrio e hierrquico do capital sobre o trabalho recalcitrante , em ltima anlise, a ineliminvel presena da contradio entre o sujeito e o objeto do processo de produo.

    Em segundo lugar, o capital tem que exercer seu poder homoge-neizador sobre toda ordem de conflito, seja originado no trabalho, seja em seus prprios componentes plurais, pois, do contrrio, no conseguiria realizar seu potencial totalizador e fazer predomi-nar suas leis. (803/932) Para o capital manter seu poder regulador

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    substantivo sobre o sociometabolismo necessita fazer uso das per-sonificaes do capital adequadas a cada circunstncia histrica. Por instituir uma economia de comando o capital necessita dos sujei-tos particulares controladores enquanto personificaes do capital que devem responder tanto ao desafio geral do antagonismo es-trutural quanto de suas manifestaes necessariamente especficas - e de sua vontade combativa que os capacita a cumprir as fun-es a eles designadas. (614/717) Essa vontade combativa das personificaes do capital expressa-se tambm na necessidade de se manter o trabalho sob o controle de uma vontade alheia. Em qualquer de suas variedades viveis apropriadas s circunstncias, essa vontade alheia, se torna absolutamente insubstituvel na ope-rao de um sistema conflitante (adversarial system), quando o comando do trabalho objetivamente alienado do trabalho.(616/719)

    O cerne da questo, no estudo desenvolvido por Mszros em Para Alm do Capital, encontra-se na necessria e inevitvel quebra dessa relao de comando alienado sobre o trabalho como o re-quisito de qualquer projeto socialista alternativo de sociedade com mnimas possibilidades de sucesso. Por essa razo,

    se, no curso de uma articulao prtica vivel do projeto socialista que prev o controle da reproduo sociometablico por meio das autodetermi-naes autnomas dos produtores associados , este princpio estruturador no for radicalmente superado, o capital h certamente de reafirmar seu poder e encontrar as novas formas de personificao necessrias para manter o tra-balho sob o controle de uma vontade alheia. (616/719)

    Exercer controle sobre o capital algo impensvel no quadro de referncia estrutural do seu sistema orgnico. Esta impossibilidade de controle do capital se manifesta, embora de maneira distinta, nos dois polos das personificaes necessrias ao pleno desenvolvimen-to do sistema. Na personificao do trabalho tem sua fonte de va-lorizao, cuja produo de trabalho excedente deve ser crescente-mente estimulada com o uso de processos e tecnologias que so, em ltima instncia, poupadores de trabalho. Se, na produo, poupa-se trabalho com um, ao menos no primeiro momento, aumento de produo de mercadorias, na esfera da circulao necessita-se de maior consumo e de mais consumidores, que, no entanto, se tornam mais escassos, vtimas do desemprego estrutural. Um paradoxo, en-to, est criado, com graves consequncias para a continuidade do sistema, tendo em vista sua lgica de acumulao e ilimitada neces-sidade de expanso. Esse constitui, para Mszros, o n grdio da atual crise estrutural do capital, como veremos no captulo 2.

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    Alm disso, na relao de suas personificaes particulares com a lgica global do sistema, atua outro conjunto de contradies. Por um lado, a irracionalidade e o carter anrquico do todo se opem s antecipaes racionalmente coerentes e as aes corretivas em termos das quais as personificaes particulares do capital tm que cumprir o seu papel no sistema. (804/933) O fato de se constatar a existncia de uma racionalidade capitalista, como gostam de men-cionar os idelogos burgueses, no aumenta em nada o poder de sua ao sobre a totalidade do sistema, uma vez que possui um efeito ape-nas parcial e de curto prazo, restrito esfera das decises individuais de capitalistas particulares, o que, nas palavras de Mszros, significa que as personificaes particulares do capital no podem possuir a viso racional do todo, apenas a racionalidade parcial exigida para mo-ver seus limitados empreendimentos produtivos. (612/715)

    Essa ao corretiva permanentemente acionada quando, por al-guma razo, o sistema ameaado por foras adversas. Em diversos momentos da histria, as decises dos capitalistas particulares tive-ram que ser reorientadas no sentido de uma opo de explorao mais racional, de custo efetivo mais favorvel. Mszros lembra a instituio do neocapitalismo e do neocolonialismo, na sequn-cia do esgotamento das verses anteriores de dominao colonial/militar direta. Lembra, tambm, o delineamento de uma nova ra-cionalidade pelos capitalistas, em resposta ao desafio apresenta-do pelo desenvolvimento do movimento socialista, (...) como uma forma de autodefesa e um modo de contra-atuar ou neutralizar os ganhos do seu adversrio. Aqui, diferente do aparente paradoxo produtor-consumidor gerado pela relao-capital, as reaes racio-nais das personificaes do capital atendem aos interesses da classe dominante como um todo, que s assim pde compensar a perda de vastas reas do planeta a Unio Sovitica, a China, Europa Oriental, partes do Sudeste Asitico, Cuba, etc. e internamente fortaleceu sua posio atravs da inveno e administrao com su-cesso da economia mista, do Estado de bem-estar e da poltica do consenso. assim que a instituio dessa nova racionalidade, ainda que internamente inserida na totalidade anrquica e irracional do sistema do capital, pde estender significativamente os limites anteriores. (451-453/549)

    A natureza contraditria da racionalidade do capital se expres-sa, tambm, na dinmica de seu desenvolvimento histrico, que nada tem de linear ou homogneo, mas est fundada na atuao de tendncias e contratendncias, as quais, sempre, permanecem sob a orientao do imperativo expansionista do sistema, sendo este um

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    limite intransponvel. por isso que, com base em Marx, Mszros argumenta que s se pode falar em leis tendenciais e no em leis naturais de desenvolvimento, uma vez que as leis so frequentemen-te contrapostas por poderosas contrapartidas- contratendncias que nem por isso tornam o sistema menos universal e totalizador. (382/466) No mesmo sentido da relao entre a irracionalidade do todo e a racionalidade parcial das unidades particulares de capital, a natureza contraditria imanente do capital que explica a inter-relao entre tendncia e contratendncias. Para Mszros,

    cada tendncia principal desse sistema de produo e distribuio s se faz inteligvel se levarmos plenamente em conta a contratendncia especfica qual aquela est objetivamente ligada. Isso acontece mesmo quando, no relacio-namento entre elas, um dos lados das interdeterminaes contraditrias ne-cessariamente predomina, de acordo com as circunstncias scio-histricas prevalecentes.(560/653)

    Se acompanharmos a histria do desenvolvimento do sistema do capital, podemos observar que a prtica do monoplio se jus-tape defesa do esprito concorrencial, da liberdade tpica do in-dividualismo burgus. No perodo da criao dos grandes imprios capitalistas, o monoplio foi o nico meio possvel de assegurar os recursos e a fora necessrios para a conquista dos novos mercados coloniais. Essa tendncia monopolista das grandes naes coloniza-doras, na fase madura do desenvolvimento capitalista, foi substituda pelo predomnio de feroz competio (e s concomitantes medidas antimonopolistas do estado capitalista), muito mais conveniente ao desenvolvimento expansivo do sistema poca. Mas isto apenas ocorre para ser novamente revertido (...) no sculo XX e particu-larmente nas ltimas dcadas, em favor de monoplios gigantescos, enquanto mantm, com completa hipocrisia, a retrica altissonante da competio como legitimao ltima do sistema da iniciativa pri-vada. O que se observa hoje, medida que o sistema do capital como sistema de produo, avana historicamente em direo a seus limites estruturais ltimos, a predominncia do monoplio sobre a concorrncia. (562/654)

    O mesmo vlido para o conjunto das demais caractersticas do desenvolvimento do sistema do capital global. A questo da relao entre nacionalizao e privatizao bastante atual. Os par-metros estruturais do sistema comportam a ambas, a depender da contingncia histrica mais adequada manuteno do curso e do crescimento da acumulao. Houve momentos em que foi preciso nacionalizar grandes empresas como forma de transferncia de pre-

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    juzos ao Estado, para logo, em momento posterior, depois de sa-neadas, serem novamente devolvidas iniciativa privada, agora cada vez mais ansiosa por estender seus espaos, no mercado altamente monopolizado, por meio da privatizao. (562/655)

    Reconhecer a relao dialtica entre tendncias e contratendn-cias, as quais ao menos temporariamente podem deslocar ou mesmo reverter as tendncias correntes, no implica em qualquer relativismo terico. A permutabilidade entre elas est inserida no contexto do desenvolvimento global do sistema que, justamente pela ao de seus elementos conflituais, possibilita a continuidade do sis-tema como um todo. No se trata de conflitos neutralizadores, mas, sim, impulsionadores do desenvolvimento capitalista. (382/465)

    Compreender o desdobramento dessa relao entre tendncias e contratendncias na histria e a maneira como se estrutura exige, para Mszros, adicionarmos anlise duas qualificaes esclarece-doras: a operao da lei de desenvolvimento desigual e as determi-naes internas das tendncias enquanto tais.

    A lei do desenvolvimento desigual expressa, em ltima anlise, o fato de as tendncias caractersticas do sistema do capital atuarem de maneira muito diversa nas diferentes partes do mundo, dependendo do nvel mais ou menos avanado de desenvolvimento dos capitais nacionais dados, bem como da posio mais ou menos dominante destes ltimos no interior da estrutura do capital global. (561/653)

    , assim, que, de acordo com Mszros, pode ocorrer

    que um dos lados da tendncia/contratendncia objetivamente interligados pre-domine em um pas, ao passo que o outro lado prevalea em um pas diferente. Basta pensar nas extremas dificuldades, na frugalidade e no aperto de cinto a que foram submetidas as classes trabalhadores brasileiras e mexicanas, entre outras, desde o esgotamento dos respectivos milagres de desenvolvimento expansionista. Enquanto isso, os Estados Unidos em particular, e os pases do capitalismo avanado do Ocidente em geral, continuam a desperdiar enor-mes quantidades de recursos sob a presso da taxa de utilizao decrescente. No obstante, deve-se sublinhar, ao mesmo tempo, que s se pode falar da predominncia de um dos lados interligados desta lei tendencial, j que - por mais absurdo que isto seja - mesmo no mundo subdesenvolvido, os setores mais avanados do capitalismo no podem, no presente momento histrico, escapar aos imperativos da produo perdulria, dado o carter globalmente interligado do sistema do capital. (561/653-654)

    A segunda qualificao da relao das tendncias e contraten-dncias se refere s determinaes internas de cada tendncia enquanto tal. Nesta esfera, em se tratando das determinaes in-

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    teriores das vrias tendncias enquanto tais, bem como ao seu peso relativo na totalidade dos desenvolvimentos capitalistas, elas (...) possuem uma lgica imanente prpria de acordo com a qual se des-dobram atravs da histria. E, ao se desdobrarem atravs da hist-ria, se constituem nas mediaes atravs das quais a prpria conti-nuidade histrica se efetiva o que significa, ao mesmo tempo, que, enquanto mediaes, circunscrevem objetivamente os limites do desenvolvimento capitalista global. (561/654) Portanto, enquanto determinadas pela totalidade do sistema orgnico, so expresses determinadas dos limites ltimos do prprio sistema e, nesta medi-da e sentido, exercem uma ao de retorno sobre a totalidade que as determina predominantemente.

    Em outras palavras, a especificidade de cada tendncia no tem menor relevncia que a relao entre umas e outras, mas so exata-mente as determinaes internas de cada uma que indicam o campo possvel de sua predominncia numa ou noutra conjuntura histrica.

    Nesse sentido, enquanto a reciprocidade dialtica das mltiplas interaes tendenciais define as caractersticas de qualquer tendncia ou contratendn-cia particulares, em relao configurao global das foras e determinaes sociais dadas, no se pode falar de relativismo histrico (...). Em cada caso, um dos lados (ou um dos aspectos principais) das vrias tendncias mencionadas acima afirma-se como dominante isto , na terminologia de Marx, constitui bergreifendes Moment (o momento predominante) do complexo dialtico em foco atravs da trajetria global do desenvolvimento capitalista. assim, ape-sar de (consideradas nos termos de sua prpria histria particular) essas ten-dncias poderem apresentar grandes variaes, e mesmo inverses completas, entre uma fase e outra da histria capitalista global. (561-562/654)

    No por outra razo que quando, como j vimos, atuam simul-taneamente duas tendncias contrapostas, a longo prazo, pode ser observada a predominncia de uma em relao outra. Assim que o MONOPLIO tende a prevalecer sobre a CONCORRNCIA, medida que o sistema do capital avana historicamente em direo a seus limites estruturais ltimos enquanto sistema de produo. Da mesma forma, quando se trata da relao da centralizao versus fragmentao, o bergreifendes Moment [o momento predominante] a primeira.

    A dialeticidade da definio das caractersticas predominantes do desenvolvimento histrico do sistema do capital nos ajuda a pre-cisar a enorme capacidade que o capital, ou suas personificaes, tem de contornar os problemas resultantes de sua prpria natureza contraditria, evitando que at hoje tenha se defrontado com seus

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    limites estruturais ltimos. Atravs da utilizao da tendncia que no momento mais o favorea o capital possibilita a continuidade do sistema e o consequente desenvolvimento das foras produtivas, de-monstrando, assim, para alm dos seus limites imediatamente iden-tificveis, ter grande capacidade (...) de deslocar suas contradies e em ajustar (...) suas estratgias (...) quando a alterao na correla-o de foras assim o exigir, para modificar em benefcio prprio as tendncias que surgem.(383/466)

    1.5. Esgotamento dos Ajustes Estratgicos

    Com tais transformaes mediadoras, que temporariamente promovem uma reacomodao de suas contradies imanentes e elevam os limites relativos a um novo patamar, o sistema do capi-tal tem conseguido deslocar suas contradies. Hoje, contudo, essa possibilidade de deslocamento, segundo Mszros, est historica-mente esgotada.

    Para nosso autor, essas transformaes mediadoras cumprem, na verdade, a funo de ajustes estratgicos do curso acumulativo e expansionista do sistema do capital e representam em cada mo-mento histrico as mudanas estruturais objetivas requeridas, sem-pre referidas a seus limites ltimos. Tais ajustes estratgicos so-frem o efeito da, e so condicionados pela, relao conflituosa entre o capital e o trabalho. O capital e o trabalho so to intimamente interpenetrantes no processo metablico vigente que os ajustes me-diadores viveis so necessariamente condicionados para melhor ou para pior pelos movimentos estratgicos do adversrio social do capital e, certamente, vice-versa. (383/467)

    assim que, como os antagonismos internos do modo de con-trole do sociometabolismo tm-se intensificado enormemente nos ltimos 30 anos, o deslocamento das contradies se torna, do pon-to de vista do prprio sistema do capital, cada vez mais problem-tico. A separao alienada entre produo e controle, a produo voltada primordialmente para os valores de troca em detrimento das necessidades humanas bsicas, a riqueza como um fim em si mes-mo e a compulso exploradora de trabalho excedente (em constante contraposio/contradio com o descarte de fora de trabalho ex-pulsa do mercado de trabalho e de consumo), sem a qual o sistema do capital no se reproduz, tm dificultado alcanar-se a homoge-neizao necessria ao pleno funcionamento do sistema. E, lembre-mos, esta homogeneizao uma condio absoluta do sistema, pois sem ela o sist