CRIAÇÃO DRAMATÚRGICA A PARTIR DE JOGOS TRADICIONAIS

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1. CRIAO DRAMATRGICAA PARTIR DE JOGOS TRADICIONAIS Adlia Nicolete Em cursos superiores de Educao Artstica que ainda existem no pas, frequentemente nos deparamos com alunos que chegam sem experincia alguma em teatro seja na prtica da cena, seja como espectadores. Quando questionados sobre as expectativas em relao disciplina Teatro, comum manifestarem a recusa em subir ao palco ou em simplesmente atuar na frente dos colegas. E quando o assunto escrever, criar textos, o problema se mostra ainda maior. Tentando superar essa dificuldade, h alguns anos venho trabalhando uma forma de despertar na classe o gosto pelas aulas de teatro e a criao de textos. A partir da vivncia com os jogos tradicionais, discutidos e reelaborados luz dos jogos teatrais e da dramaturgia, cenas so desenvolvidas, culminando no registro escrito de um texto nascido de muitos jogadores em campo. o que relatarei a seguir. Por mais de uma dcada trabalhei com iniciao ao teatro no curso de Educao Artstica das Faculdades Integradas Corao de Jesus, no ABC paulista. A experincia se dava no primeiro semestre da disciplina Fundamentos da Expresso e Comunicao Artsticas (FECA-Teatro). A cada ano ingressava no curso uma mdia de 40 alunos. Salvo raras excees, era grande o nmero de alunos que se diziam avessos auto-exposio e, consequentemente, ao teatro. Diziam-se tmidos, afirmavam no levar jeito para a coisa e, grande parte das vezes, associavam a arte dramtica aos programas de televiso, j que nunca tinham ido ao teatro. Dentre aqueles que se mostravam interessados, muitos j haviam feito teatro na escola, mas poucos haviam assistido a uma montagem fora do mbito escolar. Embora o curso fosse particular, quase a totalidade dos alunos era egressa de escolas pblicas e de cursos supletivos, o que pode explicar, em parte, o fato de nunca terem assistido a um espetculo em teatro.1 Aps a sondagem inicial, expunha-se o contedo e as propostas da disciplina.2 Naquele momento esclareciam-se equvocos como os que resumem a prtica teatral montagem de espetculos, ou de exerccios abertos a um pblico externo, por exemplo. Deixava-se claro que haveria momentos prticos, mas sempre amparados por teoria e reflexo informao importante, pois muitos alunos vinculavam o teatro somente prtica, ao talento e intuio, desconhecendo a existncia de fundamentos tericos. Na aula seguinte propunha-se uma discusso sobre a linguagem teatral, seus aspectos histricos, suas funes gerais e especficas, suas aplicaes e relaes com as demais artes e meios expressivos. 1 Questionados sobre dana; teatro de rua; teatro de bonecos; performances em feiras, bienais, hospitais e outros, alguns alunos demonstravam surpresa num primeiro momento, ao ver essas manifestaes relacionadas todas s Artes Cnicas. 2 O contedo do 1 semestre abordava jogos tradicionais, primeiros contatos com os jogos teatrais de Viola Spolin, noes de dramaturgia e da linguagem teatral em geral. Paralelamente aos estudos em sala, propunha-se a leitura de textos tericos (vide bibliografia) e a freqncia a espetculos em cartaz. 2. Oportunidade de se mapear um sem-nmero de reas e funes ligadas ao teatro, que no apenas a funo do ator. O terceiro encontro, ainda terico, girava em torno de um artigo de Ilo Krugli intitulado Arte-educao: tica e esttica. A discusso do texto visava ao levantamento de questes sobre a atuao do professor de artes, e a importncia de proporcionar um espao anrquico em sala de aula, favorvel criatividade. Como exemplo de espao anrquico, o autor cita o quintal local em que a liberdade permite os vos da imaginao, em que as regras so permanentemente discutveis. O quintal, por ser o depsito de coisas inteis, seria o ambiente ideal para a transformao e a apropriao de novos sentidos para objetos e papis sociais. Em suma, a discusso do artigo tinha em vistas tambm uma auto-reflexo por parte dos alunos que, ao relembrar os quintais de sua infncia, poderiam tentar compreender sua atual relao com a arte/criatividade, e sua atual ou futura atuao como professores. Em grupos, os participantes trocavam impresses sobre os espaos anrquicos da infncia e relacionavam os jogos e brincadeiras de que se lembravam. A partir da discusso do artigo, minha proposta era que cada aluno fizesse um mergulho em sua infncia e registrasse, de forma escrita, sua experincia no que teriam sido seus quintais. No caso de no ter havido um quintal concreto, valeria qualquer espao anrquico experimentado na infncia. Os alunos eram orientados a descrever os espaos, as brincadeiras, as pessoas envolvidas e as sensaes vivenciadas. Dado um prazo para a entrega do trabalho, o memorial poderia conter fotos e ser confeccionado da maneira que bem entendessem. Estava dado o pontap inicial para as aulas prticas de iniciao teatral. O espao designado para as aulas era a quadra coberta mais favorvel s um quintal ou a rua. As aulas comeavam com um crculo, momento utilizado para a concentrao, a recapitulao da aula anterior, os avisos e a explanao sobre as atividades do dia. O primeiro bloco, com quatro encontros, era dedicado vivncia e reflexo sobre os jogos tradicionais. O roteiro obedecia a seguinte ordem: aquecimento fsico e trs a quatro jogos tradicionais, que eram escolhidos pelos alunos. Dividia-se a turma em grupos e cada um deles revezava na prtica dos jogos. O trmino das partidas era decidido pela questo tempo. Na ltima parte da aula voltava-se ao crculo para a avaliao do dia. Eram anotados a descrio de cada jogo, os objetivos pretendidos com eles, as regras a estrutura, em suma. Anotavam-se tambm as sensaes e as atitudes observadas, as quebras de regra, as questes ticas e tudo o mais que, sem os alunos saberem naquele momento, seria utilizado na elaborao das cenas futuras. Ao longo dos trabalhos com jogos tradicionais novos comandos eram incorporados rotina: observao da configurao esttica em campo, do interesse a ser suscitado pelos jogadores num pblico imaginrio, da cooperao, e do pedido de congelamento da ao por parte da professora, a fim de tomarem conscincia de algum ponto notvel ou reencaminharem determinadas aes. Esses comandos se mostrariam importantes quando do trabalho posterior com jogos teatrais. 3. importante detalhar aqui o processo de anlise dos jogos tradicionais, tendo em vista a futura relao com a dramaturgia. Tomemos como exemplo um jogo bastante conhecido: batata-quente. Descritas as regras, variaes e estrutura do jogo, o passo seguinte era analisar questes como a) qual o objetivo? b) o que se ope a esse objetivo? c) quais as dificuldades enfrentadas? d) quais as habilidades necessrias para atingir o objetivo? e) envolve questes ticas? f) quem vence? g) quais as sensaes experimentadas? Numa etapa mais avanada, os grupos retomavam essa anlise e, tendo j vivenciado alguns conceitos de jogos teatrais (improvisaes, onde, o que, quem, fisicalizao, platia ativa, prontido, mostrar e no contar, elaborao de planta baixa, etc), partiam para a elaborao de uma resposta improvisada para a seguinte questo: que situao podemos criar a partir dos elementos levantados no jogo da batata-quente? Uma equipe imaginou uma situao de frias na praia. Cada membro da famlia se divertia a seu modo e, em dado momento, o beb comeava a chorar. Iniciava-se a transferncia do problema de um para o outro, envolvendo questes sobre os papis sociais, a terceira idade, a condio econmica da famlia, o sentimento de culpa, a responsabilidade, o medo, os truques para se livrar da incumbncia. Cada grupo escolhia um jogo tradicional para, a partir dele e dos jogos teatrais, imaginar e improvisar situaes. As prximas aulas seriam dedicadas avaliao e reelaborao das cenas, no sentido de aplicar, cada vez mais, elementos do jogo/dramaturgia (objetivos, conflitos internos e externos, sentimentos envolvidos, linha de ao, etc). As equipes eram estimuladas a ampliar e aprofundar os conflitos e abordagens, a fim de que a cena no fosse mera ilustrao do jogo, mas oportunidade para uma leitura da realidade que pudesse ser divertida, sem deixar de ser crtica. A certa altura, cada grupo exibia seu trabalho para ser avaliado pelos demais e, assim, reelabor-lo mais uma vez. Era aberta a possibilidade, caso o grupo quisesse, para elementos sonoros, cenogrficos e figurinos. E a rotina permanecia inaltervel: um crculo no comeo da aula para exporem seu processo, dvidas, descobertas; e um crculo no final para o arremate da aula e as orientaes para a aula seguinte. Na etapa final, o grupo registrava por escrito as falas e as aes, criando textos que seriam impressos e distribudos para toda a classe. Na penltima aula cada cena era apresentada aos colegas, no prprio ginsio, sendo feita uma avaliao final. A ltima aula era dedicada devoluo dos memoriais escritos e a avaliao geral do processo. Todos os alunos, invariavelmente, haviam se emocionado ao escrever, cada um do seu jeito, as suas memrias. Todos, invariavelmente, haviam se exposto por escrito e nos jogos. Todos entravam em cena, apresentavam suas criaes, avaliavam e eram avaliados com seriedade e, sobretudo, respeito. Creio que a combinao memria da infncia e jogo possa ter levado a uma quebra de resistncias. O estabelecimento de um espao relativamente anrquico livre, mas com regras prprias tambm parece ter contribudo para uma predisposio aos trabalhos. Nada era imposto, ao contrrio, havia liberdade para ficar ou a deixar a aula. E o registro das memrias pode ter levado muitos daqueles alunos a se 4. enxergarem como pessoa, portadora de uma histria digna de documentao e anlise. Isso no pouco em um sistema escolar que trata da massa e no do indivduo, diferenciado e nico. Recuperar o entusiasmo e a disposio infantis e, como adultos, levantar a pele dos jogos tradicionais para observarem a si mesmos e ao mundo, levou criao de cenas inesquecveis. Elas esto registradas, no papel, para quem quiser lembrar, conhecer ou encenar novamente. BIBLIOGRAFIA KRUGLI, Ilo. Arte-educao: tica e esttica. In: Comunicao e educao. So Paulo, (14): p. 53-55, jan/abr 1999 SPOLIN, Viola. Improvisao para o teatro. So Paulo : Perspectiva, 2001.