COSTA, Lucio. Documentacao Necessaria

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DOCUMENTAÇÃO NECESSÁRIA 1938 Lucio Costa, in “Lucio Costa – Registro de uma Vivência” O Professor Ramos, da Universidade do Porto, declarou que o livro “Arquitetura Popular em Portugal” nasceu deste artigo. Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpresa, a gente como que se encontra, fica contente, feliz, e se lembra de coisas esquecidas, de coisas que a gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós. (1929) (Parágrafo de um texto escrito a pedido de Manuel Bandeira para edição comemorativa de um jornal mineiro e citado em "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freyre.) A nossa antiga arquitetura ainda não foi convenientemente estudada. Se já existe alguma coisa sobre as principais igrejas e conventos pouca coisa, aliás, e girando, o mais das vezes, em torno da obra de Antônio Francisco Lisboa, cuja personalidade tem atraído, a justo título, as primeiras atenções -, com relação à arquitetura civil e particularmente à casa, nada ou quase nada, se fez. Compreende-se, pois, que surjam, de vez em quando, a respeito dela apreciações menos rigorosas. Ainda há pouco, em artigo sobre A arquitetura no Brasil, afirmava-se: "... as casas individualmente nada valem como obra de arquitetura...", citando- se a seguir em apoio de tal asserção este período do Sr. Aníbal Matos: "Fundadas todas as casas por portugueses incultos, trouxeram de suas aldeias o tipo desproporcionado e sombrio das velhas construções." Ora, a arquitetura popular apresenta em Portugal, a nosso ver, interesse maior que a "erudita” - servindo-nos da expressão usada, na falta de outra, por Mário de Andrade, para distinguir da arte do povo a "sabida". É nas suas aldeias, no aspecto viril das suas construções rurais a um tempo rudes e acolhedoras, que as qualidades da raça se mostram melhor.

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DOCUMENTAO NECESSRIA

DOCUMENTAO NECESSRIA

1938

Lucio Costa, in Lucio Costa Registro de uma VivnciaO Professor Ramos, da Universidade do Porto, declarou que o livro Arquitetura Popular em Portugal nasceu deste artigo.

Vendo aquelas casas, aquelas igrejas, de surpresa em surpresa, a gente como que se encontra, fica contente, feliz, e se lembra de coisas esquecidas, de coisas que a gente nunca soube, mas que estavam l dentro de ns. (1929)

(Pargrafo de um texto escrito a pedido de Manuel Bandeira para edio comemorativa de um jornal mineiro e citado em "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freyre.)

A nossa antiga arquitetura ainda no foi convenientemente estudada. Se j existe alguma coisa sobre as principais igrejas e conventos pouca coisa, alis, e girando, o mais das vezes, em torno da obra de Antnio Francisco Lisboa, cuja personalidade tem atrado, a justo ttulo, as primeiras atenes -, com relao arquitetura civil e particularmente casa, nada ou quase nada, se fez. Compreende-se, pois, que surjam, de vez em quando, a respeito dela apreciaes menos rigorosas. Ainda h pouco, em artigo sobre A arquitetura no Brasil, afirmava-se: "... as casas individualmente nada valem como obra de arquitetura...", citando-se a seguir em apoio de tal assero este perodo do Sr. Anbal Matos: "Fundadas todas as casas por portugueses incultos, trouxeram de suas aldeias o tipo desproporcionado e sombrio das velhas construes." Ora, a arquitetura popular apresenta em Portugal, a nosso ver, interesse maior que a "erudita - servindo-nos da expresso usada, na falta de outra, por Mrio de Andrade, para distinguir da arte do povo a "sabida". nas suas aldeias, no aspecto viril das suas construes rurais a um tempo rudes e acolhedoras, que as qualidades da raa se mostram melhor. Sem o ar afetado e por vezes pedante de quando se apura, a, vontade, ela se desenvolve naturalmente, adivinhando-se na justeza das propores e na ausncia de "make-up", uma sade plstica perfeita, - se que podemos dizer assim.

Tais caractersticas, transferidas na pessoa dos antigos mestres e pedreiros "incultos" para a nossa terra, longe de significarem um mau comeo, conferiram desde logo, pelo contrrio, arquitetura portuguesa na colnia, esse ar despretensioso e puro que ela soube manter, apesar das vicissitudes por que passou, at meados do sculo XIX.

Sem dvida, neste particular tambm se observa o "amolecimento" notado por Gilberto Freyre, perdendo-se, nos compromissos de adaptao ao meio, um pouco daquela "carrure" tipicamente portuguesa; mas, em compensao, devido aos costumes mais simples e largueza maior da vida colonial, e por influncia tambm, talvez, da prpria grandiosidade do cenrio americano, - certos maneirismos preciosos e um tanto arrebitados que l se encontram, jamais se viram aqui. Para tanto contriburam, e muito, dificuldades materiais de toda ordem, entre as quais a da mo-de-obra, a princpio bisonha, dos nativos e negros: o ndio, habituado a uma economia diferente, que lhe permitia vagares na confeco limpa e cuidada de armas, utenslios e enfeites estranhou, com certeza, a grosseira maneira de fazer dos brancos apressados e impacientes, e o negro, conquanto se tenha revelado com o tempo, nos diferentes ofcios, habilssimo artista, mostrando mesmo uma certa virtuosidade um tanto "acadmica, muito do gosto europeu, nos trabalhos mais antigos, quando ainda interpreta desajeitadamente a novidade das folhas de acanto, lembra o louro brbaro e bonito do norte em seus primeiros contatos com a civilizao latina, ou, mais tarde, pretendendo traduzir, com o sotaque ainda spero e gtico, os motivos greco-romanos renascidos. Em ambos, o mesmo jeito de quem est descobrindo coisa nova e no acabou de compreender direito; sem vislumbre de "maitrise", mas cheio de inteno plstica e ainda com aquele sentido de revelao que num e noutro depois, com o apuro da tcnica, desaparece. Por fim, a distncia e necessidades de natureza vria e mais urgente concorreram tambm para uma diferenciao maior, notando-se nas realizaes daqui um certo atraso sobre as da metrpole e, de um modo geral, acentuado desinteresse por toda a sorte de inovaes.

A nossa casa se apresenta assim, quase sempre, desataviada e pobre, comparada opulncia dos "palazzi" e "ville" italianos, dos castelos de Frana e das "mansions" inglesas da mesma poca, ou aparncia rica e vaidosa de muitos solares hispano-americanos, ou, ainda, ao aspecto apalacetado e faceiro de certas residncias nobres portuguesas. Contudo, afirmar-se que ela nenhum valor tem, como obra de arquitetura, desembarao de expresso que no corresponde, de forma alguma, realidade.

Haveria, portanto, interesse em conhec-la melhor, no propriamente para evitar a repetio de semelhantes leviandades ou equvocos - que seria lhes atribuir demasiada importncia -, mas para dar aos que de alguns tempos a esta parte se vm empenhando em estudar de mais perto tudo que nos diz respeito, encarando com simpatia coisas que sempre se desprezaram ou mesmo procuraram encobrir, a oportunidade de servir-se dela como material de novas pesquisas, e tambm para que ns outros, arquitetos modernos, possamos aproveitar a lio da sua experincia de mais de trezentos anos, de outro modo que no esse de lhe estarmos a reproduzir o aspecto j morto.

Trabalho a ser feito, seno pelo homem do ofcio, ao menos com a assistncia dele, a fim de garantir exatido tcnica e objetividade, sem o que perderia a prpria razo de ser. E no se limitando, apenas, casa de aparncia mais amvel da primeira metade do sculo XIX, como se tem feito - certamente porque ento uns tantos aspectos da nossa vida familiar j se desenhavam melhor -, mas abrangendo tambm a do sculo XVIII e mesmo os possveis vestgios da do XVII, quando, sendo a vida ainda spera, eram mais marcados os contrastes e, como arquitetura propriamente, ela apresentava interesse maior. E no para fixar somente as casas grandes de fazenda ou os sobrades de cidade com sete, nove ou quinze janelas e porta bem no meio, mas as casas menores, de trs, quatro, at cinco sacadas, porta de banda e aspecto menos formalizado, mais pequeno-burgus, como essas que ainda se encontram nas velhas cidades mineiras (fig. 1), mostrando todas o mesmo saguo de entrada, onde a escada primeiro se oferece com uns poucos degraus de convite e logo se esconde, meio fechada, entre paredes (fig. 2); e tambm as pequenas casas trreas, de pouca frente, muito fundo e duas guas apenas, alinhadas ao longo das ruas; sem esquecer, por fim, a casa "mnima, como dizem agora, a dos colonos e - detalhe importante este - de todas elas a nica que ainda continua "viva em todo o pas, apesar do seu aspecto to frgil.

sair da cidade e logo surgem beira da estrada, como se v pouco alm de Petrpolis, mesmo ao lado de vivendas de vero de aspecto cinematogrfico. Feitas de "pau" do mato prximo e da terra do cho, como casas de bicho, servem de abrigo para toda a famlia - crianas de colo, garotos, meninas maiores, os velhos -, tudo se mistura e com aquele ar doente e parado, esperando... (o capitalista vizinho - esportivo, "aerodinmico" e bom catlico - s tem uma preocupao: que diro os turistas?) e ningum liga de to habituado que est, pois "aquilo" faz mesmo parte da terra como formigueiro, figueira-brava e p de milho - o cho que continua... Mas, justamente por isto, por ser coisa legtima da terra, tem para ns, arquitetos, uma significao respeitvel e digna; enquanto que o "pseudo-misses, normando ou colonial", ao lado, no passa de um arremedo sem compostura.

Alis, o engenhoso processo de que so feitas - barro armado com madeira - tem qualquer coisa do nosso concreto-armado e, com as devidas cautelas, afastando-se o piso do terreno e caiando-se convenientemente as paredes, para evitar-se a umidade e o "barbeiro", deveria ser adotado para casas de vero e construes econmicas de um modo geral. Foi o que procuramos fazer para a vila operria de Monlevade, perto de Sabar, a convite da Companhia Siderrgica Belgo-Mineira - no tendo sido o projeto levado a srio, j se v.

O estudo deveria demorar-se examinando ainda: os vrios sistemas e processos de construo, as diferentes solues de planta e como variavam de uma regio outra, procurando-se, em cada caso, determinar os motivos - de programa, de ordem tcnica e outros - por que se fez desta ou daquela maneira; os telhados que, de traado to simples no corpo principal, se esparramavam depois para ir cobrindo - como asa de galinha os alpendres, puxados e mais dependncias, evitando os lanternins e nunca empregando o tipo de Mansard to em voga na metrpole, mas conservando sempre o galbo inconfundvel do telhado portugus e apresentando at, por vezes, nos telheiros enormes dos engenhos e fazendas - como se v nas gravuras da poca - uma linha mais frouxa e estirada que muito contribuiu para a impresso de sonolncia que eles do; os tetos forrados com "camisa e saia" em gamela feio do madeiramento da cobertura; as esquadrias e respectiva ferragem, particularizando os modelos usuais - portas de almofada, janelas de guilhotina com folhas de segurana e gelosias de proteo - s aparecendo no sculo XIX as venezianas; o mobilirio, desde o mais tosco dos primeiros tempos at aos fins do Imprio, quando surgiram - para desespero dos requintados e depois de toda uma srie de esplndidas peas em jacarand, que ainda andam por a nos antiqurios - as cadeiras "Thonet" de palhinha, to bonitas e cmodas, "austracas", como se diz.

Resultariam, de um exame assim menos apressado, observaes curiosas, por isto que em desacordo com certos preconceitos correntes e em apoio das experincias da moderna Arquitetura, mostrando, mesmo, como ela tambm se enquadra dentro da evoluo que se estava normalmente processando.

Diz-se, por exemplo, que os beirais das nossas velhas casas tinham por funo proteger do sol, quando a verdade , no entanto, bem outra. Um simples corte (fig. 3) faz compreender como, na maioria dos casos, teria sido ineficiente tal proteo; e os bons mestres jamais pensaram nisto, mas na chuva, isto , afastar das paredes a cortina de gua derramada do telhado.

Depois, com o aparecimento das calhas (fig.4), surgiram aos poucos, logicamente, as platibandas, continuando as cornijas - j sem funo - presas ainda parede pela fora do hbito e meio sem jeito (fig. 5) at que, agora, com as coberturas em terrao jardim, a transformao se completou (fig. 6). E a prova de que s excepcionalmente se atribua ao beiral outra finalidade, que na Califrnia, no Mxico, em Marrocos, etc., onde o sol tambm muito, mas a chuva escassa, ele quando existe, se reduz, o mais das vezes, prpria telha.Pretende-se, tambm, que os antigos faziam as paredes de espessura desmedida (fig. 7), no apenas por precauo, por causa "das dvidas" empricas como eram as noes de ento sobre resistncia e estabilidade - mas, ainda, com o intuito de tornar os interiores mais frescos. Ora, nas construes de arcabouo de madeira e da mesma poca, as paredes tm, invariavelmente, a espessura dos ps-direitos (fig. 8), e nada mais, exatamente como tem agora a espessura dos montantes de concreto (fig. 9).

Outro ponto digno de ateno o que se refere relao dos vos com a parede. Nas casas mais antigas, presumivelmente nas dos fins do sculo XVI e durante todo o sculo XVII, os cheios teriam predominado (fig. 10), e logo se compreende porque; medida, porm, que a vida se tornava mais fcil e mais policiada, o nmero de janelas ia aumentando; j no sculo XVIII, cheios e vazios se equilibravam (fig. 11) e no comeo do sculo XIX, predominavam francamente os vos (fig. 12); de 1850 em diante as ombreiras quase se tocam (fig. 13), at que a fachada, depois de 1900, se apresenta praticamente toda aberta (fig. 14) tendo os vos, muitas vezes, ombreira comum (fig. 15).

O que se observa, portanto, a tendncia para abrir sempre e cada vez mais. E compreende-se que, com este nosso clima, tenha sido mesmo assim, pois, embora se fale tanto na luminosidade do nosso cu, na claridade excessiva dos nossos dias, etc., o fato que as varandas, quando bem orientadas, so o melhor lugar que as nossas casas tm para se ficar; e que a varanda, afinal, seno uma sala completamente aberta? Entretanto, quando ns, arquitetos modernos, pretendemos deixar todo aberto o lado bem orientado das salas: aqui del rey!Verifica-se, assim, portanto, que os mestresde-obras estavam, ainda em 1910, no bom caminho. Fiis boa tradio portuguesa de no mentir, eles vinham aplicando, naturalmente, s suas construes meio feiosas todas as novas possibilidades da tcnica moderna, como, alm das fachadas quase completamente abertas, as colunas finssimas de ferro, os pisos de varanda armados com duplo T e abobadilhas, as escadas tambm de ferro, soltas e bem lanadas - ora direitas, ora curvas em S, outras vezes em caracol e, ainda, vrias outras caractersticas, alm da procura, no intencional, de um equilbrio plstico diferente (fig. 16).

Conviria, pois, trazer o estudo at os nossos dias, procurando-se determinar os motivos do abandono de to boas normas e a origem dessa "desarrumao", que h vinte e tantos anos se observa.

Excluda a causa maior, que faz parte do quadro geral de transformaes, de fundo social e econmico, iniciadas no sculo XIX - mesmo porque os nossos mestres vinham atendendo sem qualquer constrangimento, conforme vimos, s imposies da nova tcnica -, restam aquelas que poderamos classificar, talvez, como sendo de ordem "domstica: primeiro, o imprevisto desenvolvimento do mau ensino da arquitetura - dando-se aos futuros arquitetos toda uma confusa bagagem "tcnico-decorativa, sem qualquer ligao com a vida, e no se lhes explicando direito o porque de cada elemento, nem as razes profundas que condicionaram, em cada poca, o aparecimento de caractersticas comuns, ou seja, de um estilo; depois, o desenvolvimento, tambm no previsto, do cinematgrafo, que abriu ao grande pblico, at ento despreocupado "dessas coisas" e habituado s casas simplrias, mas honestas, dos mestres-de-obras, novas perspectivas - bangals, casas espanholas americanizadas, castelos, etc.

Do encontro desses dois indivduos - o proprietrio, sado do cinema a sonhar com a casa vista em tal fita, e o arquiteto, sado da escola a sonhar com a ocasio de mostrar as suas habilidades -, o resultado no se fez esperar: em dois tempos transferiram da tela para as ruas da cidade - desfigurados, pois haviam de fazer "barato" - o bangal, a casa espanhola americanizada e o castelinho.

Foi quando surgiu, com a melhor das intenes, o chamado "movimento tradicionalista de que tambm fizemos parte. No percebamos que a verdadeira tradio estava ali mesmo, a dois passos, com os mestres-de-obras nossos contemporneos; fomos procurar, num artificioso processo de adaptao - completamente fora daquela realidade maior que cada vez mais se fazia presente e a que os mestres se vinham adaptando com simplicidade e bom senso - os elementos j sem vida da poca colonial: fingir por fingir, que ao menos se fingisse coisa nossa. E a farsa teria continuado - no fora o que sucedeu.

Cabe-nos agora recuperar todo esse tempo perdido, estendendo a mo ao mestre-de-obras, e sempre to achincalhado, ao velho "portuga de 1910, porque - digam o que quiserem - foi ele quem guardou, sozinho, a boa tradio.

A fachada da rua - como um nariz postio - ainda mantm certa aparncia carrancuda; mas, do lado do jardim, que liberdade de tratamento e como so acolhedoras; e to modernas - puro Le Corbusier.

Levaram at ao exagero o apego a certos princpios de boa arquitetura como esse de se manter uniforme a altura das vergas: em casas com o p-direito de cinco metros ento exigido pelos regulamentos municipais vem-se portas estreitssimas, de acesso a qualquer dependncia sanitria, subir pela parede acima at alcanar a altura das outras vergas.