Cosmopolitismo em walter_benjamin1

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Cosmopolitismo em Walter Benjamin: entre o apelo da rêverie e a experiência do choque. Maria João Cantinho 1 Como o mais esquivo animal, deixando traços à sua passagem, também a linguagem nos escapa e a procura da voz, da nossa voz, assinala a nossa passagem, escrevendo e inscrevendo a nossa experiência. O passado, em todas as suas formas, como Benjamin nos afirma, na tese II , chega-nos pela percepção de que “em torno de nós próprios plana um pouco o ar já respirado pelos defuntos”, pelo mais surpreendente reconhecimento que “a voz dos nossos amigos esconde por vezes um eco das vozes dos que nos precederam sobre a terra” [ist nicht in Stimmen, denen wir unser Ohr schenken, ein Echo von nun verstummten?], lembrando-nos que “há um encontro misterioso ent re as gerações defuntas e aquela de que fazemos parte”. Se a linguagem dá voz ao pensamento, ela dá igualmente figura ao passado e à experiência, no pensamento benjaminiano, entrecruzando-se de forma indissociável. E um dos aspectos que mais atesta essa relação é, sem dúvida, a teoria do traço, que Walter Benjamin desenvolve em Paris, capitale du XXème siècle, abordando a questão da perda da experiência [Erfahrung], que nos interessa aqui abordar. Se habitar [wohnen], para o homem, consistia em deixar rastros, todavia as grandes modificações do século XIX, com a construção das novas avenidas por Haussman e o aparecimento da arquitectura do vidro, com Scheerbart, e a concepção da utilização do aço, pela Bauhaus, criaram “um espaço onde é difícil deixar rastros [Spuren]”. 2 Se a arquitectura moderna não possui aura, aperfeiçoam-se, no entanto, as técnicas de controle, que permitem reencontrar esses rastros perdidos. Esta ideia da desumanização da arquitectura explica, para Walter Benjamin, como a massificação, a partir dos meados do século XIX 1 Professora de Filosofia no Ensino Secundário, no Iade, investigadora no Centre de Philosophie et EsthétiqueContemporaine, na Sorbonne IV e no Centro de Filosofia (FLUL). 2 BENJAMIN. Erfahrung und Armut.In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1972g,II.1, p. 218: " sie habenRaümegeschaffen, in denenesschwer ist, Spurenzuhinterlassen" (Tradução da autora). Cf. também a obra de TIEDEMANN, Rolf. Études sur la Philosophie de Walter Benjamin. Trad. de l’allemand par Rainer Rochlitz. Arles: Actes du Sud, 1987. p. 118.

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Cosmopolitismo em Walter Benjamin: entre o apelo da rêverie e

a experiência do choque.

Maria João Cantinho1

Como o mais esquivo animal, deixando traços à sua passagem, também

a linguagem nos escapa e a procura da voz, da nossa voz, assinala a nossa

passagem, escrevendo e inscrevendo a nossa experiência. O passado, em

todas as suas formas, como Benjamin nos afirma, na tese II, chega-nos pela

percepção de que “em torno de nós próprios plana um pouco o ar já respirado

pelos defuntos”, pelo mais surpreendente reconhecimento que “a voz dos

nossos amigos esconde por vezes um eco das vozes dos que nos precederam

sobre a terra” [ist nicht in Stimmen, denen wir unser Ohr schenken, ein Echo

von nun verstummten?], lembrando-nos que “há um encontro misterioso entre

as gerações defuntas e aquela de que fazemos parte”. Se a linguagem dá voz

ao pensamento, ela dá igualmente figura ao passado e à experiência, no

pensamento benjaminiano, entrecruzando-se de forma indissociável. E um dos

aspectos que mais atesta essa relação é, sem dúvida, a teoria do traço, que

Walter Benjamin desenvolve em Paris, capitale du XXème siècle, abordando a

questão da perda da experiência [Erfahrung], que nos interessa aqui abordar.

Se habitar [wohnen], para o homem, consistia em deixar rastros, todavia

as grandes modificações do século XIX, com a construção das novas avenidas

por Haussman e o aparecimento da arquitectura do vidro, com Scheerbart, e a

concepção da utilização do aço, pela Bauhaus, criaram “um espaço onde é

difícil deixar rastros [Spuren]”.2 Se a arquitectura moderna não possui aura,

aperfeiçoam-se, no entanto, as técnicas de controle, que permitem reencontrar

esses rastros perdidos. Esta ideia da desumanização da arquitectura explica,

para Walter Benjamin, como a massificação, a partir dos meados do século XIX

1 Professora de Filosofia no Ensino Secundário, no Iade, investigadora no Centre de Philosophie et

EsthétiqueContemporaine, na Sorbonne IV e no Centro de Filosofia (FLUL).

2 BENJAMIN. Erfahrung und Armut.In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt:

Suhrkamp, 1972g,II.1, p. 218: "sie habenRaümegeschaffen, in denenesschwer ist, Spurenzuhinterlassen"

(Tradução da autora). Cf. também a obra de TIEDEMANN, Rolf. Études sur la Philosophie de Walter

Benjamin. Trad. de l’allemand par Rainer Rochlitz. Arles: Actes du Sud, 1987. p. 118.

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e o dealbar do novo século, no qual o homem se move anonimamente na

multidão, o conduziram à expropriação de si próprio.1 Sem dúvida que o mais

acabado exemplo é o flâneur, ele próprio desapossado da capacidade de fixar

a sua presença no mundo.2

Dá-se, assim, uma passagem de uma era ou período pré-capitalista, em

que o homem dispõe de experiência [Erfahrung], para uma época em que ele

se abandona à mera vivência [Erlebnis]. O homem provido de experiência

possui a capacidade de, além de deixar os seus vestígios, recorrer à intuição

(como o fruto mais precioso da experiência) para interpretar os rastros dos

outros. Pertence a um mundo antigo onde tudo pode ser reconhecido e se

inscreve numa ordem de familiaridade. O homem sem experiência3 perdeu

essa possibilidade e encontra-se limitado apenas ao poder de assinalar a sua

passagem através de técnicas abstractas científicas (como é o caso da

fotografia, por exemplo) os vestígios que se apagam, através da multidão.

Privado da experiência, ele é também desapossado da história e da sua

capacidade para se integrar na tradição. Experiência e memória, como bem

compreendera Benjamin, a partir da leitura de Klages, de Dilthey e de Jung,

bem como da obra de Bergson, Matière et mémoire, articulam-se de uma forma

indissociável:

Efectivamente a experiência pertence à ordem da

tradição, tanto na vida colectiva, como na vida privada. Ela

constitui-se menos por dados isolados, rigorosamente fixados

na memória, do que dados acumulados, muitas vezes

inconscientes, que se juntam à memória.4

1 BENJAMIN, Walter. Über einige motive bei Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte

Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1972l. v. I.2, p. 652.

2 Assinalo aqui o belíssimo texto de ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1990. p. 67-68.

3 E a que poderíamos chamar, como Agamben, ―o homem sem conteúdo‖, sem individualidade e sem

identidade e que tão paradigmaticamente aparece no poema de Baudelaire ―Les sept Veillards‖. Por

outras palavras, ―o conteúdo‖ dissipa-se, desintegra-se, nessa repetição infernal.

4 BENJAMIN, 1972l, I.2, p. 608. Über einige Motive bei Baudelaire: "In der Tat ist die Erfahrung eine

Sache der Tradition, im Kollektivenwie im privatenLeben. Sie bildet sich wenigerauseinzelnen in der

ErinnerungstrengfixiertenGegebenheitendennausgehäuften, oftnichtbewuβtenDaten, die im

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1 O “ROSTO SURREALISTA” DA HISTÓRIA: RELAÇÃO ENTRE A

IMAGEM DIALÉCTICA E O SONHO

De acordo com Benjamin, também, todos os homens têm o poder de

captar e produzir semelhanças e correspondências. Elas são inscritas

objectivamente na natureza, e a elas corresponde a faculdade subjectiva de

percebê-las. É, sem dúvida, através do dom mimético,1 que possibilitava ao

homem captar essas semelhanças. Todavia, como o diz Baudelaire, no mundo

moderno essa faculdade degradou-se, embora não tivesse desaparecido

totalmente, pois sobrevive na linguagem, que constitui “um arquivo de

correspondências sensíveis”,2 e sobrevive igualmente na arte, capaz de

perceber semelhanças temporais e naturais.

Para a percepção destas correspondências, o que é essencial

compreender é o modo como elas passam diante do observador, com a

rapidez do relâmpago, e se não forem captadas nessa exacta fracção de

segundo dissipam-se, perdendo-se completamente. De facto, é quase da

mesma forma que Benjamin descreve a forma da percepção das imagens

dialécticas:

A imagem dialéctica é uma imagem relampejante.

Assim como a imagem que relampeja deve ser fixada no agora

da sua cognoscibilidade […] mesmo deve acontecer com o

passado. A salvação que se realiza dessa forma, e apenas

Gedächtniszusammenflieβen" (Tradução da autora).

1Cf. um interessantíssimo estudo de PINHO, Amon. Hermenêutica e materialismo histórico na

encruzilhada da história. Revista Philosophica, Lisboa, v. 28, p. 28, 2006. Neste ensaio, nas páginas 263,

264, o autor estabelece uma articulação entre experiência[Erfahrung], mimesis e a teoria da rememoração

em Benjamin, de uma forma muito perspicaz. Amon Pinho vê na experiência da semelhança o

―órganonda experiência [Erfahrung]”, como é também por meio dela que se opera a experiência da

rememoração. Cf. também os estudos de GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Histoire et narration chezWalter

Benjamin. Paris: L’Harmattan, 1994.

2 BENJAMIN, Walter. Über das MimetischeVermögen. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften.

Frankfurt: Suhrkamp, 1972j. v. II.1, p. 213. ―einarchivunsinnlicherÄhnlichkeiten,

unsinnlicherKorrespondenzengeworden”.(Tradução da autora)

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dessa forma, só pode ser obtida pela consciência do que se

perde, além de qualquer perspectiva de salvação.1

Por outro lado, a teoria benjaminiana das imagens dialécticas encontra-

se intimamente articulada com a teoria do sonho, o qual estabelece uma

passagem entre o passado e o futuro. Tal como no sonho individual, o sonho

colectivo utiliza imagens arcaicas, que se integram e afluem nos elementos

contemporâneos e apontam para o futuro. Apesar das críticas de Adorno ao

seu texto, Benjamin manteve a sua concepção da imagem dialéctica de acordo

com o modelo do sonho. Aceita a sugestão adorniana das imagens dialécticas

como “constelações”, mas não abdica da sua teoria, como se pode ler na carta

que dirige a Gretel Adorno, em resposta às críticas de Adorno:

[…] A imagem dialéctica como "constelação", da

mesma forma que certos elementos desta constelação

assinalados por mim me parecem inalienáveis: são as figuras

oníricas. A imagem dialéctica não copia o sonho: nunca o quis

afirmar. Mas ela parece-me conter os traços do despertar, os

pontos de irrupção (Einbruechselle) e, mesmo, não produzir a

sua figura senão a partir destes pontos, tal como uma

constelação celeste o faz a partir dos seus pontos luminosos.

Então aqui um novo arco está tenso, numa dialéctica

necessária entre a imagem e o despertar.2

1BENJAMIN. Gesammelte Schriften 1972h, v.I, p. 591- 592: "Das dialektischeBild ist einaufblitzendes.

So, alsein im Jetzt der ErkennbarkeitaufblitzendesBild, ist das Gewesenefestzuhalten. Die Rettung, die

dergestalt - und nurdergestalt - vollzogenwird, läβt immernur an dem, im

nächstenAugenblickschonunrettbarverlornen (sich) vollziehen." (Tradução da autora)

2 Cf. BENJAMIN. Briefe, II,Frankfurt: Suhrkampf, 1978d, p. 688: "Das dialektisheBild malt den

Traumnichtnach - das zubehaupten lag niemals in meinerAbsicht. Wohlaberscheintesmir, die Instanzen,

die Einsbruchsstelle des Erwachenszuenthalten, jaausdiesenStellen seine FigurwieeinSternbildaus den

leuchtendenPunktenerstherzustellen. Auchhier also willnocheinBogengespannt, eineDialektikbezwungen

werden: die zwischenBild und Erwachen."(Tradução da autora)

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É sobretudo neste desvio relativamente a Adorno que Benjamin se

diferencia da sua posição. Tal como Adorno, também ele acredita que a

imagem dialéctica exprime a presença do sempre igual, nas estruturas do

capitalismo. Mas, ao contrário de Adorno, Benjamin julga que a imagem

dialéctica revela a latência do novo, encontrando-se alojado nela. Por essa

razão, a Benjamin não choca a utilização do conceito do sonho e não lhe

interessa tanto o aspecto psicologizante, mas sim perceber o sonho como

mediador que permite descobrir o latente no novo, pois o seu conceito permite

ilustrar perfeitamente os dois pólos dessa dialéctica: o sono e o despertar

(possibilidade que se encontra latente).

Como o explica Rouanet,

Na medida em que se limita a repetir conteúdos do

passado, cada produção onírica é na verdade uma

reprodução, pela qual o recalcado retorna monotamente; mas,

na medida em que cada sonho, para exprimir esses

conteúdos, mobiliza sob a forma de restos diurnos os

elementos da vida quotidiana, reordenando-os, criando novas

relações, transfigurando objectos familiares, uma nova

realidade é produzida, e é possível distinguir o novo no

sempre igual: as instâncias do despertar.1

Se o sonho, na sua natureza ambivalente, inclui o sono, não menos

importante é o conceito do despertar, verdadeira “força histórica”.2 As imagens

de sonho descritas no Livro das Passagens têm, como todo o sonho, o poder

de desconstruir e de reorganizar o mundo empírico e o mundo histórico,

1 Cf. ROUANET. Édipo e o anjo, p. 94, 95.

2 Não quero entrar aqui em vastas considerações, mas o conceito de ―despertar‖, associado ao de

―rememoração‖, constituem-se como os momentos despoletadores da verdadeira consciência histórica, a

que só o historiador materialista tem acesso. Veja-se BENJAMIN 1972h, v. V.1,p. 490-491, Gesammelte

Schriften, onde Benjamin fala, a este propósito, em ―revolução coperniciana‖. Em [N 3 a, 3], mais

adiante, p. 579, ele afirma: ―O momento do despertar seria idêntico ao Agora da cognoscibilidade, na qual

as coisas tomam o seu verdadeiro rosto, o rosto surrealista. [Dann wäre der Moment des

Erwachensidentisch mit dem «Jetzt der Erkennbarkeit», in dem die Dinge ihre wahre— surrealistische -

Mieneaufsetzen.]‖ (Tradução da autora)

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dissolvendo conexões e criando novas correspondências.1 Elas tiram as coisas

do seu lugar e colocam-nas em lugares novos, de acordo com novas

disposições, produzindo assim novas e inesperadas semelhanças, ignorando

as semelhanças visíveis. Esta lógica, que lhe é conferida pelo mecanismo do

sonho, que descobre novas similitudes porque as antigas se tornaram

inutilizáveis e, nessa procura de novas correspondências, como diz Sérgio

Paulo Rouanet, citando Freud, “o sonho cria uma relação fantasmática com o

tempo – o passado é vivido como se fosse o presente – e com o espaço […]”.2

Neste mundo transfigurado pela consciência fantasmática do tempo e do

espaço, “cada coisa é ao mesmo tempo uma outra – as passagens são casas e

estrelas, a cidade ora é quarto, ora é paisagem”. O que, na opinião de

Rouanet, distingue Freud de Benjamin, é o surrealismo benjaminiano,3 que

permite atribuir ao sonho, não apenas uma função cognitiva como também

divinatória (e também histórica),4 estabelecendo, assim, essa capacidade, a

possibilidade de prefigurar a utopia. Deste modo, “As imagens de sonho,

tornam o real irreconhecível, criando correspondências fícticias, e desvendam-

no, revelando correspondências invisíveis à consciência diurna”.5 Enquanto

“imagens de sonho”, as imagens dialécticas são imagens estáticas. Elas

constituem-se como imagens em suspensão, como o próprio o afirma, isto é,

imagens que manifestam e revelam, no seu estado de repouso, a plenitude de

1Rouanet estabelece uma interessantíssima relação entre a teoria benjaminiana e a teoria freudiana do

sonho, que permite trazer uma nova luz ao pensamento de Benjamin. V. RAULET. Gérard. Le caractère

destructeur. Paris: Aubier, 1997. p. 145-149.

2 ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. p. 86.

3 O que, de acordo com Bloch, explica a técnica da montagem em Benjamin. Cf. BLOCH, ERNST.

Héritage de ce temps, Paris, Payot, 1977, p. 210. É muito interessante a relação estabelecida por Bloch

entre Benjamin e os surrealistas, conferindo ao sonho um papel verdadeiramente criador. Mas, como o

salienta Rouanet, ―Todavia, é no tema do ―despertar‖ que a teoria do sonho de Benjamin se distingue

verdadeiramente dos surrealistas. Para Benjamin, não se trata de atribuir um valor cognitivo ao irracional,

mas de despertar o passado do seu sonho mítico, inversamente ao que acontecia nos surrealistas.

4 Cf. o notável texto: BENJAMIN, Walter. Der Sürrealismus. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte

Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1972e. v. II.1, p. 298, onde Benjamin fala do conceito de iluminação

profana [profanenErleuchtung], para dar conta desta dimensão ―divinatória‖ e particularmente fecunda

do sonho, para os surrealistas, associada à dimensão da rememoração, em Proust. Cf. também o texto de

BISHOF, RITA; LENK, ELIZABETH, L’intrication surréelle du rêve et de l’histoire dans les Passages de

Benjamin, Paris : Éditions du Cerf, 1986, p. 179-99.

5ROUANET, 1994, P.87. As razões do iluminismo.

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uma síntese autêntica [N 9 a, 4] ou suspensão dialéctica1 e esse é o estado de

repouso da utopia.

Por outro lado, procurando uma articulação com os textos de Sobre o

conceito de história2 –redigidas no ano de 1940, onde a alegoria é

protagonizada na imagem derradeira do Angelus Novus – e a sua relação com

o procedimento alegórico, o historiador dialéctico tem o dom da verdadeira

mimesis e sabe estabelecer, entre o agora escondido no passado e o agora da

cognoscibilidade, uma correspondência imediata e infalsificável. Ele despertou

do sonho, não abdicou da consciência de que o sonho lhe transmitiu esse

segredo, mas percebeu-o, no entanto, enquanto teia ilusória de

correspondências.

Arrisco aqui a minha interpretação: o segredo do historiador é, com

efeito, o seu olhar alegórico, capaz de destacar-se do “sonho colectivo”,

fazendo-o dissipar, revelando as fantasmagorias aos que sonham e que, por

isso, ainda “não são conscientes do saber”, vivendo, assim, num saber latente,

um “saber sonhado”.3 O aguilhão do “despertar”, fissurando a ilusão do

progresso e das fantasmagorias de uma época que vive na esperança

optimisma do progresso e da sua continuidade, é justamente aquele que

provoca o acontecimento, isto é, o momento da abertura messiânica.

Assim, a imagem dialéctica, fulgurante e irrompendo das profundezas do

sonho, suspende a continuidade e varre o passado à sua passagem como

1BENJAMIN. 1972h, v. V.1, p. 578. Gesamelte Schriften: ―Bild ist dieDialektik im Stillstand‖. Pierre

Missac, na sua obra Passage de Walter Benjamin, p. 118, vê nestas categorias, dialektischesBilde

Dialektik im Stillstand, não antinomias puras, mas ―métaforas surrealistas cujo poder de iluminação

profana desempenha um papel importante no Benjamin dos últimos anos‖ [ (…) métaphoressurréalistes,

dont le pouvoir d'illumination profane joueun si grandrôlechez le Benjamin des dernièresannées"]

(Tradução da autora).

2 Refiro-me especificamente à obra Über den Begriff der Geschichte (BENJAMIN, 1972h, Gesammelte

Schriften, I.2). Essas teses sobre a filosofia da história serviriam de base ou como uma espécie de

introdução epistemológica ao seu trabalho que foi publicado postumamente, Livro das passagens, tal

como o Prefácio de Benjamin à obra Ursprung des deutschen Trauerspiel, onde expõe a sua versão da

Teoria das Ideias.

3BENJAMIN. Gesammelte Schriften, v. V.1, p. 571, 572, [N 1, 9], a propósito do trabalho do historiador,

relativamente aos surrealistas: ―Enquanto que um elemento impressionista – a ―mitologia‖ – permanece

em Aragon […] trata-se aqui [no caso do historiador] de dissolver a ―mitologia‖ no espaço da história.

Isso não se pode fazer, em boa verdade, senão pelo despertar de um saber ainda não consciente do

passado‖ [“Wahrend bei AragoneinimpressionistischesElementenbleibt - die «Mythologie» - (…) -

gehteshier um Auflösung der «Mythologie» in den Geschichtsraum. Das freilichkannnurgeschehendurch

die ErweckungeinesnochnichtbewuβtenWissensvomGewesnen]” (Tradução da autora).

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“uma bola de fogo”.1 O tempo suspende-se, abrindo-se sob a forma, já não da

sucessão, de acordo com uma concepção linear, mas sob a sua forma

imagética, isto é dialéctica.2 Esta, ao coagular-se, constitui-se como a

apresentação do que não é representável, na voragem da continuidade: o

instante puro, nascente e fulgurante, irradiando a claridade do conhecimento

histórico. Trata-se do tempo na sua dimensão messiânica, “em que cada

segundo era a porta estreita por onde o Messias podia entrar”.3

À luz da concepção benjaminiana, que reconhece o século XIX como um

“espaço de tempo” [Zeitraum] e também, um “sonho de tempo”[Zeit-traum],

trata-se de uma consciência colectiva – aquela que sonha – que se “afunda

cada vez mais num sonho profundo”.4 Por oposição a este estado sonambúlico,

a alegoria comporta consigo a possibilidade do “despertar histórico”, operando

como uma experiência destrutiva e necessária e que prepara a

consciencialização do fenómeno histórico (a sua origem), subtraindo-o às

profundezas do sonho e da fantasmagoria. Todavia, é na teoria do progresso

que encontramos a mais nefasta das fantasmagorias:

Há uma experiência absolutamente única da dialéctica.

A experiência peremptória, radical, que refuta toda a ideia de

“progresso” do devir e faz aparecer toda a “evolução” aparente

como uma inversão dialéctica eminentemente e continuamente

1 Cf. BENJAMIN. Sur le Concept d’Histoire, Écrits Français, p. 348: ―L'image dialectique est une boule

de feu qui franchit tout l'horizon du passé."

2BENJAMIN.1972h, v. V.1, [N 2 a, 3], p. 576, 577. Gesammelte Schriften: ―Não pode dizer-se que o

passado ilumina o presente ou que o presente ilumina o passado; uma imagem, ao contrário, é aquilo no

qual o Outrora encontra o Agora num clarão, para formar uma constelação. Por outras palavras, a imagem

é a dialéctica em suspensão. Porque, enquanto que a relação do presente com o passado é puramente

temporal, contínua, a relação do Outrora com o Agora é dialéctica […] [Nicht so ist es, daβ das

VergangeneseinLicht auf das Gegenwärtigeoder das GegenwärtigeseinLicht auf das Vergangenewirft,

sondernBild ist dasjenige, worin das Gewesene mit dem JetztblitzhaftzueinerKonstellationzusammentritt.

Mit andernWorten: Bild ist die Dialektik im Stillstand. Dennwährend die Beziehung der

GegenwartzurVergangenheiteine reine zeitliche, kontinuierliche ist, ist die GewesnenzumJetztdialektisch

(…)]‖(Tradução da autora).

3BENJAMIN.1972h,V. I.2, p. 704.Gesammelte Schriften: ―Denn in ihr war jedeSekunde die kleinePforte,

durch die der Messiastretenkonnte‖.

4 Cf. BENJAMIN, 1972h, v. V.1, p. 491-492 [K 1, 4].Gesammelte Schrifte: "(…) das Kollektivbewuβtsein

in immertieferemSchlafeversinkt." (Tradução da autora)

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composta, é o despertar que vos arranca ao sonho. […] O

novo método dialéctico da ciência histórica apresenta-se como

a arte de ver o presente como um mundo desperto ao qual o

sonho que nós chamamos o Outrora se relaciona com a

verdade. Refazer o Outrora na rememoração do sonho! Assim,

rememoração e despertar são intimamente ligados. O

despertar, com efeito, é a revolução coperniciana, dialéctica da

rememoração.1

Se o sonho, por um lado, permite a descoberta das forças históricas

latentes, uma vez que são desfeitas as relações tradicionais (e diurnas) do

esquematismo do espaço e do tempo na experiência moderna, é só

arrancando-se à dimensão do sonho que se torna possível aceder à verdade e

à origem do fenómeno histórico, o qual se apresenta na imagem dialéctica. É,

no entanto, à luz do despertar e da rememoração – dois conceitos que dizem

respeito a duas actividades indistrinçáveis - que é trazida à luz do

conhecimento a verdade histórica.

2 MODERNIDADE; EXPERIÊNCIA DO CHOQUE E ALEGORIA

É no contexto da teoria da perda da aura e da dissipação da experiência

autêntica [Erfahrung] que se integra a análise benjaminiana de Baudelaire.2 O

1 BENJAMIN, 1972h, v. V.1 [k 1,3], p.491. Gesammelte Schriften: "Esgibteinevölligeinzigartige

Erfahrung der Dialektik. Die zwingende, die drastische Erfahrung, die alles «algemach» des

Werdenswiderlegt und allescheinbare «Eintwicklung» alseminent

durchkomponiertendialecktischenUmslagerweist, ist das Erwachenaus dem Traume.(…) Die neue

dialecktischeMethode der Historikpräsentiert sich als die Kunst, die GegenwartalsWachweltzuerfahren,

auf die sich jenerTraum, den wir Gewesenesnennen, in Wahreitbezieht. Gewesenes in der

Traumerinnerungdurchzumachen! - Also: Erinnerung und Erwachensindaufsengsteverwandt. Erwachen

ist nämlich die dialecktische, kopernikanischeWendung des Eingedenkens” (tradução da autora).

2 Benjamin fez da alegoria a sua ―forma-sujeito‖, como nos diz Henri Meschonnic, no seu admirável

ensaio ―L’allégoriechez Walter Benjamin, une aventure juive‖, p. 712. Daí a sua afinidade com autores

decisivos e que usaram a alegoria como forma de expressão privilegiada: ―Walter Benjamin faz da

alegoria sua forma-sujeito. A forma de sua afinidade com Beaudelaire Privilegiada pela ligação com

outras afinidades, Proust ou Kafka. Uma forma-rede. O retrato do autor em alegoria. Ela tem um lugar

inaugural e constante‖. [―Walter Benjamin a fait de l'allégorie sa forme-sujet. La forme de son afinité

avec Baudelaire. Privilégiée par rapport à ses autres affinités, Proust, ou Kafka. Une forme-réseau. Le

portrait de l'auteur en allégorie. Elle a une place inaugurale, et constante.‖ (tradução da

autora)Cf.também Das Passagen-Werk, p. 405, onde Benjamin explica claramente os objectivos e as

razões pelas quais se dedica a Baudelaire. Essa intenção também aparece muito clara na carta que

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fim da aura e a dolorosa descoberta do fim da experiência [Erfahrung] assinala

a ruptura do homem com a tradição. Por outro lado, assinala ainda, e a meu

ver é a grande consequência do “afundamento da aura”, a alteração das

condições de percepção do homem moderno, no que se refere à questão do

espaço e do tempo e da sua compreensão, enquanto categorias clássicas. A

violência destrutiva que caracteriza esta nova vivência, no seio de uma

conjuntura que se define pelas novas condições de vida do homem moderno,

emerge brutalmente na poesia de Baudelaire sob a sua forma alegórica1 e

deste modo, a experiência moderna do choque [Schockerlebnis] transforma-se,

ela própria no fermento do lirismo baudelaireano.2

Em Baudelaire, como o afirma Meschonnic, “a alegoria é um trabalho de

ironia, em direção a um sentido sempre outro, que faz a historicidade do

sentido" .3O que aqui se ressalta é o trabalho de Baudelaire contra o mito e a

pré-história. Benjamin, ele próprio tão feroz na sua crítica ao mito, reconhece

em que medida a violência da alegoria destrói o mito e as fantasmagorias: “É

preciso mostrar na alegoria o antídoto contra o mito”4 e numa outra passagem,

Benjamin afirma, ainda, a propósito de Baudelaire: “Majestade da intenção

alegórica: destruição do orgânico e do vivente – dissipação da ilusão”.5

Poderíamos dizê-lo de outro modo: o que urge é o despertar dessas

fantasmagorias míticas que envolvem o citadino parisiense.

Benjamin escreve a Marx Horkheimer, datada de 16 de Abril de 1938. Cf. BENJAMIN. Briefe, II, p. 751,

752.

1 BENJAMIN, Walter. Zentralpark. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt:

Suhrkamp, 1972n. v. I.2, p. 670: ―A ausência de ilusões e o declínio da aura são fenómenos idênticos.

Baudelaire mete o artifício da alegoria ao seu serviço‖ [Die Scheinlosigkeit und der Verfall der Aura

sindidentischePhänomene. Baudelaire stellt das Kunstmittel der Allegorie in ihrenDienst]” (tradução da

autora).

2 BENJAMIN. Zentralpark, v. I.2, p. 659: ―O fermento novo que, penetrando no taediumvitae, o

transforma em spleen é a alienação de si [Das entscheidend neue Ferment, das, in das taedium vitae

eintretend, dieseszum spleen macht, ist die Selbstentfremdung]." (tradução da autora)

3 MESCHONIC, Henri. L’allegorie chez Walter Benjamin, une aventure juive. In: WISMANN, Heinz

(Org.). Walter Benjamin et Paris. Paris: Éditions du Cerf, 1986. p. 669: ―l'allégorie est un travail de

l'ironie , vers un sens toujours autre, qui fait l'historicité du sens"

4BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus. In:

BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1972a. v. 1, p. 677.

5 BENJAMIN, Walter. 1972a. v. I, p. 669-670 Charles Baudelaire ["Majestät der allegorishen Intention:

Zerstörung des Organischen und Lebendigen - Auslöschung des Scheins"]. (tradução da autora)

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Profundamente influenciado pela visão de Blanquis e pela ideia

nietszchiana do eterno retorno, Baudelaire é bem o herdeiro e o poeta que

canta a “humanidade danada” de Blanquis, como inscreve a ideia da repetição

infernal do eterno retorno no poema “Les Sept Veillards”.1A melancolia, no caso

de Baudelaire, crava-se no cerne da tensão entre o spleen e o ideal e

estatensão, como o dizRaulet, de forma notável, "il réunit en soi la destruction

par le choc et la restitution d'une expérience authentique [Erfahrung]; il est

potentiellement capable de transformer la catasthrophe en rédemption. Mais,

par là aussi, ce regard allégorique est également un regard qui éloigne, qui

restitue une aura aux choses, qui découvre dans la beauté moderne, dans «le

fugitif, le contingent», l'impérissable, l'antique.".2

Assim, se por um lado, a modernidade priva o homem da experiência

autêntica [Erfahrung], por outro lado ela liberta-o (e simultaneamente desperta-

o) também das suas fantasmagorias, sendo, desta forma, uma abertura para a

história e para a beleza da modernidade. Ao incorporar todo o acontecimento

numa continuidade espacial e temporal e fazendo de toda a unicidade uma

experiência durável, a tradição tornava próximo todo o longínquo e privava-o da

sua força messiânica. O longínquo, encantatório na sua essência, acorrentava

o presente a si, mantinha-o refém da nostalgia, impedindo-o de explodir.

Nenhum começo verdadeiro, nenhuma novidade inédita poderia

verdadeiramente irromper. A modernidade, sob a violência do choque e do seu

despertar, liberta o “aqui e o agora”, a força messiânica do instante,3 irrepetível

e único, através de um acto simultaneamente destrutivo e redentor, gesto que

se concentra em absoluto na imagem alegórica e que dá a conhecer o

1 Nesse poema, o mesmo velho aparece multiplicado em simulacros, ad infinitum. O citadino ou o flâneur

não consegue romper o círculo infernal do tipo e essa é a experiência do sempre igual, condicionada pela

produção em massa das mercadorias, compensada, ao mesmo tempo, pela mística do novo.

2 RAULET, 1997, p. 177. Le caractère destructeur.

3 Gérard Rauletexplicaessa ―necessidade‖ de forma muitoclara: ―Mas, por essadialéctica que caracteriza

sua interpretação do choque moderno, Benjamin vaiaquiaindatentartirar do choque do instante o modelo

de umaexperiênciamessiânica — a experiênciadaquilo que é, a todoinstate, o mais próximo ‖ [Mais, par

cette dialectique qui caractérise son interprétation du choc moderne, Benjamin va ici encore tenter de

tirer du choc de l'instant le modèle d'une expérience messianique - l'expérience de ce qui est à tout instant

«le plus proche" ] (tradução da autora) (RAULET. Le caractèredestructeur, p. 164). Essa descoberta da

íntima relação do choque com a experiência messiânica apresenta-se na sua forma mais evidente na

análise do jugo e das relações do jogador com o tempo.

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verdadeiro rosto da história, liberta das suas ilusões, em particular da mais

nefasta, que é a ilusão do progresso.

É, assim, do próprio coração do desencanto e da perda da experiência

que emerge o novo canto que visava o próprio Baudelaire: o canto da

modernidade, descobrindo a beleza inaugural (e derradeira) do instante. O

clarão desta única vez irrepetível, de que nos falam Baudelaire e Benjamin, dá-

se num golpe brusco, num choque que se reproduz infinitamente. Deste modo,

dominada pela consciência do tempo, a experiência moderna do choque torna-

se o próprio fermento do lirismo de Baudelaire.

Modelando a sua imagem de artista a partir da imagem do herói,1 ele

submete-se a este tempo reificado, de um mundo mecanicizado, de forma a

que o choque,2 longe de ser neutralizado pela consciência, de ser esterilizado

pela memória, seja antes retomado por uma “consciência” superior e se

transforme na “norma” da experiência, a forma desta mesma poesia que

parece então consagrar-se ao luto [Trauer].3 Enquanto que a escrita de Proust

– ela própria alegórica – tenta utilizar o tempo na subtileza da metáfora,4 o

verso de Baudelaire sofre esse dilaceramento interno do choque e mostra-o na

1 BENJAMIN, 1972h, p. 570.Gesammelte Schriften. É sobretudo a imagem do esgrimista que aqui

aparece, como protagonista do herói.

2 BENJAMIN, 1972h, p. 573.Gesammelte Schriften: ―Baudelaire, poeta, reproduz na sua prosódia os

choques e os golpes que os cuidados lhe davam […] É preciso, se considerarmos sob o signo da esgrima o

trabalho que Baudelaire consagrava aos seus poemas, aprender a vê-los como uma sucessão ininterrupta

de minúsculas improvisações‖ [Die Chocks, mit denenseineSorgenihmzusetzten und die hundertEinfälle,

mit denener sie parierte, bildet der dichtende Baudelaire in den Finten seiner Prosodienach. Die Arbeit,

die Baudelaire seinenGedichtenzuwandte, untermBild des Gefechtserkennen, heiβt, sie

alseineununterbrocheneFolgekleinsterImprovisationenbegreifenlernen]. (tradução da autora)

3 Aludo aqui à experiência do alegorista barroco, que vive a experiência do luto, ainda que de forma

diferente.

4 Este aspecto, como se sabe, prende-se com a questão da possibilidade da narração. A poesia de

Baudelaire opõe-se à narrativa proustiana (que pode ser vista como nostálgica, como um esforço

derradeiro), aplicando à sua escrita a concepção bergsoniana da memória pura. Ver a este propósito a

interpretação de ROCHLITZ. Le désenchantement de l’Art. Paris: Gallimard, 1992. p. 242. Também

RAULET, 1997, p. 167. Le caractèredestructeur, p. 167, assinala esta ―nostalgia‖ que Baudelaire recusa

definitivamente. Há, no esforço proustiano, de restaurar o passado algo que permanece ainda humano. O

próprio Proust tinha notado que ―o mundo de Baudelaire é um estranho seccionamento do tempo, onde

apenas raros notáveis dias apareciam‖[«DieZeit», sagt Proust, «ist bei Baudelaire auf

einebefremdendeArtzerfällt; nurwenigeselteneTagetun sich auf; essindbedeutende] (traduição da autora),

como o observa BENJAMIN. Über einige Motive bei Baudelaire, p. 637. Esses dias, como o compreende

Proust, eram os dias da rememoração.

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imagem poética, que estilhaça a experiência, sem que o poeta tente dominar o

estremecimento que dele se apodera, mas, ao invés, interiorizando-o.

É-nos possível compreender, à luz da análise transversal da

modernidade, que a razão do sofrimento moderno é o tempo, o tempo imóvel,

gelado, petrificado. O rosto da medusa assoma por detrás da experiência

temporal, petrificando a experiência humana com o seu olhar, tudo se

transforma em mercadoria, em coisa alienada e simulacro. A plena consciência

do facto e da inexorável transformação exige ao artista uma “natureza heróica”1

e ela transparece, da forma mais notável e lúcida, no olhar do flâneur, olhar

gélido, mas que sofre, ainda (e paradoxalmente) o apelo do longínquo, para o

descobrir como fantasmagoria. Que heroísmo é possível? Será a atitude

nihilista a que mais convém ao desencanto?

Sabemos que a melancolia é uma ferida nunca sarada, no coração do

homem moderno, essa mesma melancolia, como soube admiravelmente

explicar-nos Baudelaire, que resulta do reconhecimento do tempo vazio, ele

próprio mortificador, terrível. Porém, contrariamente à melancolia passiva (e

originadora da acedia e do taedium vitae2), a melancolia de Baudelaire é activa

e heróica, rememorativa. Como o próprio Benjamin o nota, “o Spleen como

barragem como barragem contra o pessimismo. Baudelaire não é um

pessimista […] É por isso que o seu heroísmo se distingue mais claramente

que o de Nietzsche”.3

Ele não tem por objectivo livrar-se da sua melancolia por um acto da

vontade, inventando figuras fortes e poderosas, mas procura, antes, identificar

as figuras emblemáticas da melancolia heróica: o flâneur, o jogador,4 a

1 BENJAMIN, 1972h, v. I.2, p. 577.Gesammelte Schriften: ―O herói é o verdadeiro sujeito da

modernidade. Isso significa que, para viver a modernidade, é necessária uma natureza heróica‖ [Der

Heros ist das wahreSubjekt der modernité. Das will besagen - und die Modernezuleben,

bedarfeseinerheroischenVerfassung]. (tradução da autora)

2Que encontramos particularmente no homem barroco, o sentimento do Trauer que Benjamin analisou

exaustivamente em Ursprung des deutschen Trauerspiels, retomando a teoria da melancolia de

Aristóteles e as teorias medievais que perduraram através do tempo.

3 BENJAMIN, 1972n, v.V.2, p. 657. Zentralpark.

4 A reflexão benjaminiana sobre o jogador reenvia-nos directamente para a dimensão do heroísmo

baudelaire. O jogador de Baudelaire podemos encontrar o ―esgrimista‖ por excelência. O jogo altera, para

aquele que se encontra sob o seu fascínio, a relação tradicional com o tempo e os acontecimentos ganham,

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prostituta, o trapeiro, os marginais. Desencantados, os heróis modernos de

Baudelaire, longe de serem almas fortes, são os deserdados da vida, figuras ou

tipos alegóricos que apresentam em si o rosto da história da modernidade

enquanto catástrofe.1 São essas figuras ou tipos que revelam o seu verdadeiro

rosto, anjos caídos, cuja natureza simultaneamente demoníaca e melancólica,

exprime a dilaceração moderna.2

O heroísmo do poeta acaba por degenerar numa raiva impotente, pois,

ao deixar inscrever a sua experiência no tempo do choque e da repetição

mortífera, o melancólico contempla a história após a morte, abismando-se no

espectáculo desolado da catástrofe, ou seja, de uma natureza alienada e sem

alma. O seu olhar afunda-se, assim, no espectáculo da história vista enquanto

catástrofe permanente, pois, tal como o aterrorizado anjo da história ou o

Angelus Novus, elevê acumumular-se diante de si e do seu olhar esbugalhado

um monte de escombros e de ruínas e sabe que nada pode fazer para salvar

os destroços da história.3

3 BAUDELAIRE E AS RUAS DE PARIS (as imagens do cosmopolitismo)

A imagem do flâneur, figura alegórica central na obra de Baudelaire,

aparece tematizada por Benjamin sobretudo no Livro das passagens e na obra

Charles Baudelaire. A figura do flâneur reflecte a experiência do homem

moderno no início do capitalismo. A esquematização da nova cidade,

reconstruida por Haussman, cria uma cidade com luz, espaço e que revaloriza

para ele, uma dimensão do choque e da sua experiência que não encontramos nas outras figuras alegóricas

da modernidade. Cf. BENJAMIN. Gesammelte Schriften,p. 633-5.

1 BENJAMIN. Gesammelte Schriften, p. 660, ―O spleen é o sentimento que corresponde à catástrofe em

permanência ‖ [Der spleen ist das Gefühl, das der Katatrophe in Permanenzentspricht] (tradução da

autora).

2 BENJAMIN, 1972n, v. V.2, p. 582-583. Zentralpark.

3 BENJAMIN, Walter. Über den Begriff der Geschichte. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften.

Frankfurt: Suhrkamp, 1972k. v. V.1, p. 697-698.

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os monumentos. Desfigurando a velha Paris,1 esta alteração faz com que os

citadinos se sintam alienados na sua própria cidade, coincidindo a época com o

apogeu do poder do capital financeiro, sob o governo de Napoleão III. Esta

sociedade alimenta a especulação e a bolsa substitui as formas tradicionais de

jogo. Às fantasmagorias do espaço, que constituem a experiência nova do

flâneur, correspondem também as fantasmagorias temporais do jogador.

Impondo à velha e “familiar” Paris uma nova reconfiguração, a qual corta as

suas relações com a tradição, a “haussmanização” “produz um efeito de

dépaysement, alienando os parisienses da sua cidade, expulsando os

operários para a banlieue”,2descontextualizando e produzindo novos efeitos.

Prova viva da ambiguidade alegórica, Haussman destrói, mas permite que se

abram novos caminhos, por entre as ruínas existentes.

O flâneur refugia-se na multidão, o véu através do qual ele vê a cidade,

a qual, através dele, se transforma numa fantasmagoria,3 paisagem

interiorizada. No flâneur, a inteligência familiariza-se com o mercado, com o

mundo da mercadoria. A sua relação com a multidão faz nascer o homem que

tem a ilusão de poder descobrir em cada rosto, fisionomicamente, a verdade

singular de cada indivíduo.4 Refugiado nas Passagens, o flâneur observa a

multidão, examina o transeunte, com o olhar do fisionomista que tenta desvelar

o individual no personagem-tipo do transeunte.5 Se o flâneur é arrastado e

submerso pela massa, como um autómato, conserva, no entanto, a ilusão da

individualidade. A rua transforma-se em interior e é entregando-se às

fantasmagorias do espaço que o flâneur percebe o tempo. Deambulando pela

cidade, recorre às memórias nela depositadas e “reconstrói” o seu passado.

1 O verdadeiro objectivo de Haussmann, que se intitulava a si próprio como o artiste-démolisseur, era o

de permitir e de facilitar a passagem das tropas, por todo o lado, desde as casernas aos bairros populares,

e impedir a construção das barricadas pela cidade. Todavia, durante a Comuna elas reapareceram de

novo, mais sólidas que nunca.

2 ROUANET, 1994, p. 90. As razões do iluminismo.

3 BENJAMIN, 1972h, v.I, p. 70. Gesammelte Schriften.

4 BENJAMIN, 1972h, v. V.I, p. 70.Gesammelte Schriften.

5 BENJAMIN, 1972h, v. V.1, [M, 6, 6], p. 540. Gesammelte Schriften:,: ―A fantasmagoria do flâneur:

decifrar nos rostos a profissão, a origem e o carácter ‖ [Die Phantasmagorie des Flaneurs: das Ablesen

des Berufs, der Herkunft, des Charakters von den Gesichtern] (tradução da autora).

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Enquanto cidadão de um mundo sem história, ele passeia de madrugada pelas

ruas desertas, na ilusão de “reconquistar” o tempo.1 Com o aparecimento dos

grandes armazéns, a sua figuratransforma-se numa metáfora inquietante do

verdadeiro/falso, como todos os demais personagens alegóricos postos em

cena por Benjamin. Prisioneiro do sonho, como a sua própria época, o flâneur

vive na promessa de uma aura, do longínquo, e a paisagem viva e em

movimento, acena-lhe. À maneira de um caçador, ele segue-lhe os traços,

tenta decifrar o que a paisagem labiríntica2 e impenetrável tem para lhe

oferecer.

Por essa razão Benjamin afirma: “Sabe-se que na flânerie, os

longínquos – quer se tratem de países ou de épocas – irrompem na paisagem

e no instante presente”.3 É sob esta forma que a realidade se apresenta ao

olhar do flâneur, na sua forma tensional e dialéctica. Ele tenta aproximar-se

daquilo que se lhe escapa continuamente, perseguindo o alvo e é deste modo

paradoxal que se desdobra a cidade e a sua multidão sob o seu olhar. À

maneira do detective,4 como o personagem principal de Poe, o flâneur de

Baudelaire é um estudioso da natureza humana5 e, sob a aparência de um

olhar desatento e ocioso, esconde-se alguém cuja volúpia reside na decifração

infernal dos sinais e das imagens.

Ociosidade e flânerie encontram-se, assim, aproximados à luz da

poética de Baudelaire, pois o ócio esconde a fecundidade do trabalho poético.6

poético.6 No olhar aparentemente alheio e perdido do flâneur oculta-se a mais

profunda agitação interior. A agitação daquele que é “bombardeado” pelo

1 BENJAMIN, Walter. Die Wiederkehr des Flaneurs. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften.

Frankfurt: Suhrkamp, 1972f. v. 3, p. 194.

2BENJAMIN, 1972h, v. V.1, [M 6a, 4]p. 541. Gesammelte Schriften: ―A cidade é a realização do antigo

sonho da humanidade, o labirinto. O flâneur consagra-se, sem o saber, a esta realidade‖ [Die Stadt ist die

Realiserung des altenMenschheittstraumesvomLabyrinth] (tradução da autora). Ver, ainda, p. 559.

3 BENJAMIN, 1972h, v. V.1, [M 2, 4],p. 528-529. Gesammelte Schriften: "Bekannt ist, wie bei der

flanerieLänder - und Zeitenfernen in die Landschaft und in den Augenblickeindringen. "

4 E a comparação com a multidão de Edgar A. Poe, na sua obra O homem das multidões, ganha aqui uma

imensa pertinência. Essa comparação pode ser alargada a outros autores, tomando como exemplo

Chesterton e Dickens (em Inglaterra) e Dumas, Victor Hugo e Zola (em França). POE, Edgar Allan.

Ficção completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2001.

5 BENJAMIN, v.v.V1, p. 567, 568. Gesammelte Schriften.

6 BENJAMIN. Ibidem, Gesammelte Schriften,

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choque, a cada instante, e neste contexto surge a mais íntima relação entre a

flânerie e a experiência vivida do choque,protagonizada pela figura da

meditação alegórica, uma vez que a melancolia se constitui como o próprio

fermento da alegoria. Não se trata aqui do olhar de um pensador1 ingénuo, mas

sim de um olhar sarcástico e parasita, gélido, o qual inflecte sobre si próprio,

mediante o acto da rememoração e que se apresenta nas imagens poéticas.

Esta inflexão saturnina é da ordem de um ensimesmamento, isto é, de um

saber reflexivo, o saber do “cismativo”, “massa” da qual é feita o carácter

alegórico, e que é aquele que se coloca saturninamente sob o signo da

rememoração:

[...] A situação do cismativo [Grübler] é a de um homem

que possuiu a solução do grande problema, mas que a

esqueceu de seguida. E agora ele medita, menos sobre a

coisa do que sobre a reflexão que ele levou a cabo sobre o

seu sujeito. O pensamento do cismativo é então colocado sob

o signo da rememoração. O cismativo e o alegorista são feitos

do mesmo material.2

A rememoração do cismativo dispõe da massa

desordenada do saber morto. Para ele, o saber humano é

fragmentário num sentido particularmente pregnante: ele reúne

[...] e constrói um puzzle. Uma época que é inimiga da

meditação, conservou o gesto no puzzle. Este gesto é, em

particular, o gesto do alegorista que toma aqui ou ali um

pedaço no monte confuso que o seu saber põe à disposição,

coloca esse pedaço ao lado de um outro e tenta fazê-los

1 Essa distinção é estabelecida de uma forma muito clara, mediante a introdução do conceito de memória

e de rememoração, posição que o faz aproximar Baudelaire de Marcel Proust. Tal como o afirma

BENJAMIN. v. V.1, [J 79 a, 1], p. 465,Gesammelte Schriften: ―O que distingue radicalmente o cismativo

[Grübler] do pensador, é que ele não medita somente sobre uma coisa, mas sobre a sua reflexão nesse

sujeito.‖ [Was den GrüblervomDenkergrundsätzlichunterscheidet ist, daβ ernichteiner Sache

alleinsondernseinemSinnen über sie nachsinnt] (tradução da autora).

2 BENJAMIN. v. V.1, [J 79 a 1], p. 465, Gesammelte Schriften: "Der Fall des Grüblers ist der des

Mannes, der die Lösung des groβenProblemsschongehabt, sie sodannabervergessenhat. Und

nungrübelter, nichtsowohl über die Sache als über seinvergangnesNachsinnen über sie. Das Denken des

Grüblerssteht also im Zeichen der Erinnerung.Grübler und AllegorikersidauseinemHolz." (tradução da

autora)

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conjugar: tal significação com tal imagem e tal imagem com tal

significação.1

Essa afinidade, ainda que por ele reconhecida, conhece as suas

divergências e os seus desencontros. Para Baudelaire, trata-se de efectuar a

transfiguração ou transmutação da experiência vivida do choque em imagem

poética. Benjamin, na sua visão fulminante, apreende esse gesto, extraindo as

consequências mais férteis e estabelecendo essa analogia da seguinte forma:

Os poetas encontram o refugo da sociedade na rua e o

seu sujeito heróico com ele. Desta forma, a imagem distinta do

poeta parece produzir uma imagem mais vulgar que deixa

transparecer os traços do trapeiro, deste trapeiro de que se

ocupou frequentemente Baudelaire.2

Ou, ainda de uma forma mais clara:

O trapeiro é a figura mais provocatória da miséria

humana. Lumpenproletário num sentido duplo: vestido de

velhos trapos, ele ocupa-se de trapos. Eis um homem

encarregue de apanhar os detritos de um dia da capital. Tudo

o que a grande cidade rejeitou, tudo o que ela perdeu, tudo o

que ela desdenhou [...] ele cataloga, elecolecciona (...)

1 BENJAMIN. v.V.1, p. 466, Gesammelte Schriften: "Die Erinnerung des Grüblersverfügt über die

ungeordnete Masse des totenWissens. Ihr ist das menschlicheWissenStückwerk in

einembesondersprägnantenSinn: nämlichwie der HaufenwilkürlichgeschnittenerStücke,

ausdenenmaneinpuzzllezusamensetz. Ein Zeitalter, das der Grübeleiabhold ist, hat im

puzzllederenGeberdefestgehalten. Sie ist im besonderen die des Allegorikers. Der Allegorikergreiftbald

da balddortaus dem wüstenFundus, den seinWissenihmzurVerfügungstellt, einStückheraus,

hältesnebeneinanderes und versucht, ob sie zueinanderpassen:

jeneBedeutungzudiesemBildoderdiesesBildzujenerBebeutung‖. (tradução da autora)

2 BENJAMIN, Walter. Das Paris des Second Empire bei Baudelaire. In: BENJAMIN, Walter.

Gesammelte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1972d. v. 1, p. 582: "Die Dichterfinden den Kehricht der

Gesellschaft auf ihrerStraβe und ihrenheroischenVorwufnaebenihm. Damitscheint in

ihrenerlauchtenTypuseingemeinergleichsamhinein-kopiert.Ihndurchdringen die Züge des

Lumpensammlers, welcher Baudelaire so beständigbeschäftigt hat".

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(…) Esta descrição não é senão uma longa metáfora

do comportamento do poeta segundo o coração de

Baudelaire. trapeiro ou poeta – o refugo interessa aos dois; os

dois entregam-se à sua ocupação solitária, à hora em que os

burgueses se abandonam ao sono; a atitude, a própria tarefa

são idênticas nos dois. Nadar fala do “passo sacudido” de

Baudelaire; é o passo do poeta que erra na cidade, à procura

de despojos rimados; é também necessariamente o passo do

trapeiro que pára a cada instante no seu caminho para

recolher o detrito sobre o qual acaba de cair.1

Estandarte da miséria humana, de proveniência infernal,2recolhendo

tudo aquilo que a sociedade rejeita, o trapeiro é bem a figura melancólica com

que o poeta se identifica. Ambos se deixam conduzir pelo gesto da decifração

do enigma,3recolhendo os destroços e ambos os renovam, numa ordem outra.

Lançando um esgar cínico e sarcástico sobre o mundo, embalado pela

vontade de reunir os destroços e as ruínas, é bem a imagem do trapeiro que

aqui se define, por analogia com a visão do poeta. Impotente perante a

catástrofe da história humana, é como se no interior da visão moderna cada

figura alegórica se constituísse um ângulo diverso de um mesmo olhar e esse

olhar não pudesse senão devolver-nos uma visão cubista do mundo. Uma

imagem fragmentada e arruinada. Trata-se, para ambos, poeta e trapeiro, de

um saber que se constrói mediante o acto de aniquilação das coisas, dando-

lhes morte, arrancando-lhes a falsa, a bela aparência (a sua organicidade

1BENJAMIN. Das Paris des Second Empire bei Baudelaire, p. 583: "Hier haben wir einen Mann - er hat

die Abfälle des vergangenenTages in der Haupstadtaufzusammeln. Alles, was die groβe Stadtfortwarf,

alles, was sie verlor, alles, was sie zertrat - erlegtdavon das Register an und ersammeltes(…)

DieseBeschreibung ist eineeinzigeausgedehnteMetapher für das Verfahren des Dichtersnach dem Herzen

von Baudelaire. Lumpensammleroder Poet - der Abhubgehtbeide an;

beidegeheneinsamihremGewerbenach, zuStunden «pas saccadé»; das ist der Schritt des Dichters, der

nachReimbeute die Stadtdurchirrte; es muβ auch der Schritt des Lumpensammlerssein, der

alleAugenblick auf seinemWegeinnehält, und den Abfall, auf den erstöβt, aufzulesen."(tradução da autora)

2 Carta de Benjamin a Adorno de 9 de Dezembro de 1938 (BENJAMIN. Briefe, II, p. 795): ―A figura do

trapeiro é de proveniência infernal. Ela reaparecerá na terceira parte, em contraste com a figura ctónica do

mendigo hugoano‖ [Die Figur des Lumpensammlers ist höllischerProvenienz. Im drittenTeilwird sie,

gegen die chthonischeFigur des Hugo].(tradução da autora)

3BENJAMIN. v.V.1, p. 461-2. Gesammelte Schriften.

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interna, o Schein) para as obrigar a significar, ressuscitando-as. No caso do

trapeiro, esses destroços já se encontram aptos a significar, chegam-lhe já

“mortos” às suas mãos, visto que já se encontram destituídos das suas

relações internas e dos elos que lhes garantiam a organicidade.

No cerne da “raiva destrutiva” de Baudelaire, que tudo atinge,

mortificando, aniquilando, parece habitar esse desejo secreto, o de

“interromper o curso do mundo”,que tão bem Walter Benjamin entendeu, e que

concentra todo o dinamismo da obra baudelaireana. A intenção baudelaireana

consagra-se, pois, nesse canto secreto que adormece e “aquieta” o mundo,

petrificando-o imageticamente através da sua poesia.

Em A une passante vemos o poeta, o herói moderno1 de Baudelaire, em

toda a sua lucidez, no momento em que reconhece a impossibilidade de

realizar esse desejo, em que a multidão,2como uma massa informe e sem

nome, ruidosa, engole aquela que lhe evoca a imagem longínqua do amor. O

herói de Baudelaire é, sem sombra de dúvida, aquele reconhece a vanidade do

seu sonho. Tal como ele se apresenta no poema, descobre com horror a

dissolução da experiência do longínquo, apresentando aquela que ama

emergindo no abismo da multidão. Esse despertar corresponde, em próprio, à

experiência do choque [Schockerlebnis], a que lhe fustiga o rosto, despertando-

o bruscamente da sua rêveriefantasmagórica, o que é o mesmo que dizer que

corresponde ao reconhecimento da catástrofe, no seu íntimo, do declínio e da

dissolução da aura.

1 O herói moderno não é um herói trágico, no sentido clássico e aristotélico do termo. Benjamin define

este herói moderno como aquele que ―emerge do abismo‖ (BENJAMIN. Gesammelte Schriften., p.

657).Este herói aparece também como o ―nadador‖, com o mesmo sentido do anterior, aquele que emerge

do oceano e que nada, lutando por emergir sempre. V. o poema ―Élévation‖: ―Et, comme un bon nageur

qui se pâme dans l’onde,/Tu sillones gaiement l’immensité profonde/Avec une indicible et mâle volupté.”

2 BENJAMIN. Gesammelte Schriften, p. 547, p. 622-3. Nestas passagens, Walter Benjamin salienta a

importância que a massa/multidão desempenha no olhar poético de Baudelaire. Benjamin salienta, ainda,

a proximidade entre Baudelaire e Victor Hugo, àcerca da importância da massa na sua poesia, a qual é

claramente posta à vista no seu poema ―Les Petites Vieilles‖. Porém, a atentar nas palavras de Benjamin,

a multidão, para Baudelaire, nunca foi um convite à contemplação, desempenhando, ao invés, esse papel

em Victor Hugo. BENJAMIN. Gesammelte Schriften, p. 563-4.

Na p. 169, Benjamin utiliza mesmo a expressão ―véu movente‖. Foi através dessa espessura, que

simultaneamente esconde e revela, que Baudelaire viu Paris, transformando-se a multidão num dos

elementos fundamentais da sua obra. Porém, curiosamente, como nos adverte o próprio Benjamin, a

multidão é pressentida, não explicitada, e é, justamente esse ―véu‖ que conduz e orienta todo o poema.

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A catástrofe, entendida como o conceito, por excelência, que convém à

história humana, faz aqui o seu aparecimento numa imagem poética e que tem

como fundo principal a multidão. Esta diz respeito a um abismo1(massa informe

e ruidosa, que engole e destrói), pressentido no poema de Baudelaire. Abismo,

no sentido em que se descobre a catástrofe no coração da repetição.

Em última análise, poderíamos afirmar, em justiça, que é daqui que

nasce toda a melancolia moderna, o taediumvitae, o fermento alegórico por

excelência. É deste paradoxo, o de se saber que tudo é vão, descobrindo a

experiência do inferno e da repetição no seio da própria experiência quotidiana

e da história humana, e o de não se estar em condições de recusar o apelo

erótico e o consequente prazer que essas experiências “redentoras” nos

trazem, que nos advém a melancolia. Tal como o alegorista barroco se

encontrava imerso nesse dilema, sabendo que apenas o riso e o saber

demoníaco se configuravam como o gesto “adequado” à compreensão do

mundo, também Baudelaire descobre o gesto adequado ao seu “luto” no

sarcasmo gélido e destrutivo da sua poesia, um saber demoníaco que encontra

assim o seu comprazimento melancólico.

A volúpia do flâneur, entendida como um estado de spleen, como se

pode deduzir,deve-se ao reconhecimento e à decifração da repetição infernal e

infinita das imagens e, neste caso particular, a descoberta da catástrofe, como

o destino humano. Tal como na figura do cortesão (figura alegórica por

excelência no Trauerspiel), Benjamin reconhece no herói baudelaireano esses

traços alegóricos, unindo-os o gesto (o de querer salvar as coisas mediante a

rememoração) e a intenção. Como no Trauerspiel, este herói é um actor2,

olhando o espectáculo ou o teatro que o mundo lhe oferece, neste caso, um

mundo fragmentário, feito de ruínas - em que as coisas são arrancadas às suas

correlações habituais e familiares, expostas - sem qualquer possibilidade de

1 O tema do abismo, entendido como o abismo do mal, o das significações ou, ainda, o abismo a que

conduz o saber material, configura-se, também como um tema alegórico do barroco, que tem já a sua

expressão, do ponto de vista de Benjamin, na obra Ursprung des deutschen Trauerspiels, p. 404, no saber

alegórico do barroco.

2 BENJAMIN. Gesammelte Schriften, p. 461. Também no Trauerspiel o cortesão era um actor, visto que

o Trauerspiel designava simultaneamente o mundo (a história-natureza) e a própria história representada,

transformando-se o cortesão numa figura teatral por excelência, em toda a sua ambiguidade.

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“salvação”, minado pelo progresso1 da história. O olhar do alegorista é o que

vê, não uma sucessão organizada de eventos históricos, ligados entre si por

uma continuidade, mas “[...] não há aí senão uma única coisa que se oferece

aos seus olhares: uma catástrofe sem modulação nem tréguas, amontoando os

escombros [...]”.2Este é o mundo de Baudelaire, assombrado pelo espectro do

progresso histórico, em que as coisas se apresentam como ruínas, fruto do

desgaste do tempo, isto é, sem qualquer possibilidade de voltarem a ser o que

foram outrora.

Em lugar de ocultar essa alienação profunda, mascarando-a sob formas

fantasmagóricas, o herói de Baudelaire denuncia-a, exibe-a, sob o rosto dúplice

da alegoria, repudiando a ilusão do ideal de uma "felicidade prometida" que

norteava toda a tradição estética do idealismo. A ele nada lhe está prometido,

nenhuma felicidade, mas a vida mostra-se na sua mais absoluta crueza. A

denúncia da fantasmagoria e do pesadelo, no qual o homem alienado

submerge, esse é o heroísmo que convém ao moderno, que sabe que só a

alegoria lhe permite ver o “rosto da história”. A ele cabe o esforço heróico de

romper as ilusões do passado e abrir o caminho à modernidade e libertá-la da

sua prisão em relação às falsas esperanças, para que um novo canto possa

surgir no coração do desencanto moderno.

1 Convém nunca esquecer a imagem da qual Benjamin se serve para falar desse mundo e da ideia de

progresso histórico. É, sem dúvida, a imagem do angelusnovusque aqui se encontra subjacente, o anjo que

quer reunir e salvar as coisas, que jazem em escombros aos seus pés. No entanto, as suas asas encontram-

se paralisadas pela tempestade do progresso. A noção de progresso deve ser aqui relacionada, com todo o

propósito, com a de catástrofe (BENJAMIN. Über den Begriff der Geschichte, p. 697-8).

2 BENJAMIN. Über den Begriff der Geschichte, I, 2, p. 697: "WoeineKette von Begeheinheitenvor uns

erscheint, da siehtereineeinzigeKatastrophe, die unablässigTrümmer auf Trümmerhäuftind sie ihmvor die

Füβe schleudert." (tradução da autora)

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