Corpos e Cenários Urbanos

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  • CORPOS E CENRIOSCORPOS E CENRIOSCORPOS E CENRIOSCORPOS E CENRIOSCORPOS E CENRIOSURBANOSURBANOSURBANOSURBANOSURBANOS

    Territrios urbanos epolticas culturais

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    Naomar Monteiro de Almeida FilhoReitor

    Francisco MesquitaVice-Reitor

    EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    Flvia Goullart Mota Garcia RosaDiretora

    FACULDADE DE ARQUITETURA

    Antonio Heliodorio Lima SampaioDiretor

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO

    Gilberto Corso PereiraCoordenador

    Paola Berenstein JacquesVice-Coordenadora

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    Territrios urbanos epolticas culturais

    Henri Pierre JeudyPaola Berenstein Jacques

    Organizao

  • 2006 by by autores.

    Direitos para esta edio cedidos EDUFBA. Feito o depsito legal.

    Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais foremos meios empregados, a no ser com a permisso escrita do autor edas editoras, conforme a Lei n 9610, de 19 de fevereiro de 1998.

    CapaRosa RibeiroPaola Berenstein Jacques

    Projeto Grfico e Arte FinalGabriela Nascimento

    TraduoRejane Janowitzer

    Reviso TcnicaLilian Fessler Vaz

    RevisoTnia de Arago BezerraMagel Castilho de CarvalhoVera Paiva

    C822 Corpos e cenrios urbanos : territrios urbanos e polticas culturais / [Organizadores]:Henri Pierre Jeudy e Paola Berenstein Jacques ; [textos : Henri Pierre Jeudy,Patrick Baudry ... [et al.] ; traduo : Rejane Janowitzer ; reviso tcnica : LlianFessler Vaz. - Salvador : EDUFBA ; PPG-AU/FAUFBA, 2006.182 p.

    Inclui ndices.ISBN 85-232-0411-3

    1. Cidades e vilas - Melhoramentos pblicos. 2. Embelezamento urbano.3. Renovao urbana. 4. Administrao cultural. 5. Arquitetura - Esttica.I. Jeudy, Henri Pierre. II. Baudry, Patrick.

    CDU - 711.4CDD - 712.2

    Biblioteca Central Reitor Macdo Costa - UFBA

    Beneficirio de Auxlio Financeiro da CAPES

  • Sumrio

    Introduo 7Henri-Pierre Jeudy e Paola Berenstein Jacques

    I Metamorfoses do urbano

    Reparar: uma nova ideologia cultural e poltica? 13Henri-Pierre JeudyO urbano em movimento 25Patrick BaudryA acumulao primitiva do capital simblico 39Ana Clara Torres RibeiroCidades e Cultura: rompimento e promessa 51Ana Fernandes

    II Territrios culturais: Ruses e intervenes

    Cidade e culturas 67Mait ClavelTerritrios culturais do Rio 75Lilian Fessler Vaz e Paola Berenstein JacquesProjetos urbanos culturais na cidade do Rio de Janeiro 93Carmen Beatriz SilveiraRuses urbanas como saber 105Alessia de Biase

    III Corpos e imagens urbanas

    Elogio aos errantes 117Paola Berenstein JacquesPercepes corporais do mundo urbano 141Aurlie ChneVitrines e espelhos 153Laetitia DevelPanorama de imagens urbanas 165Adriana Mattos de Cala

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    IntroduoHenri-Pierre Jeudy

    Paola Berenstein Jacques

    A cidade um conjunto de cenrios oferecidos aos corpos que nelase movem? Uma questo como esta supe que a cidade continua a sertomada por um cenrio, ela no rompe com a tradio de pensamentoque conduz noo doravante bem estabelecida de uma sociedade doespetculo, do qual o espao urbano seria o receptculo mais apropriado.Mas quem diz corpo, quem diz cenrio, diz tambm desacordo. Corpoou cenrio confrontam-se com a incongruncia que surge sobretudo nomomento em que no esperada. No se trata do desmoronamento docenrio nem especificamente da queda dos corpos, mas, sim, dainadequao dos sentidos que nos agita nas ruas quando nosso olharparece nos dizer que no espera mais nada. Trata-se do corpo que, aoentrar no cenrio, perde a orientao possvel de seu olhar. Sensao deresto bastante freqente, qual no prestamos seno uma atenorelativa, por temer tirar dela concluses conflitantes.

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    Ouve-se falar de metamorfoses das cidades... inegvel que umacidade est destinada a mudar, embora, de uma certa maneira, assimcomo um corpo, ela possa continuar ela mesma. Mas essas metamorfosesoferecer-se-iam ao olhar do cidado como modificaes de cenrio? Noh certeza, algumas cidades que so objeto de uma conservaopatrimonial mais ou menos sistemtica, no sofrem alterao, seuscenrios monumentais esto l para durar. Ento preciso considerar queas transformaes do espao urbano no se oferecem sempre ao olhar,elas se revelam atravs de relaes sociais, polticas, econmicas. E asprprias megalpoles parecem ter embora suas mutaes dependam dedecises, de estratgias uma finalidade que lhes prpria, uma finalidadeintangvel, que apareceria de algum modo em suas autometamorfoses.

    Nossa sociedade tem dificuldade em aceitar o envelhecimento denosso corpo fsico, cada dia surge uma nova tcnica anti-envelhecimento,creme, lifting ou cirurgia plstica... Tambm a restaurao patrimonial dascidades se parece com um lifting. Esse envelhecimento, tanto para oscorpos humanos quanto para o corpo urbano, uma transformao queacompanha a gnese dos movimentos corporais e da cidade como metforade vida urbana. Os cenrios reconstitudos que formam o enquadramentodo espao urbano terminam abolindo essa dinmica do tempo, fixando amemria e a percepo dos cidados, e dando aos turistas a impresso deque se encontram na eternidade de um carto postal. A arte e a arquitetura,da mesma forma que o urbanismo e o paisagismo, so requisitadas paraoperar as alteraes de cenrio, as modificaes da imagem de uma cidade,respondendo a estratgias polticas e culturais que se tornam cada vezmais marketing, com logotipos e marcas.

    A cultura para as cidades um meio de promover suas imagens demarca. As arquiteturas monumentais, as obras de arte nas ruas, os festivais,as festas espordicas, os prprios equipamentos culturais, tudo concorrepara colocar a cidade numa perspectiva de animao cultural que parecelhe conceder o certificado de garantia de ser uma verdadeira cidade. Essaanimao permanente, das mais variadas modalidades possveis, d a todosos habitantes a impresso de serem capazes de se apropriarem de suacidade, e o elo social assim promovido permite reencontrar um sentimento

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    compartilhado de comunidade. A idealizao da cidade como territrio deexibio cultural pretenderia ultrapassar os limites da sociedade doespetculo criando a fico simulada de uma utopia.

    Porm, a utopia dos arquitetos modernos era inspirada na idia deque a arquitetura poderia modificar a sociedade. Le Corbusier dizia:Arquitetura ou revoluo, ns podemos evitar a revoluo! Os crticosmais radicais, como os situacionistas, pensavam o contrrio: a arquiteturae sobretudo o urbanismo devem servir de suporte revoluo dasociedade... Hoje, a arquitetura no tenta nem evitar nem provocar arevoluo, esse tipo de objetivo no est mais na ordem do dia, a arquiteturae o urbanismo devem de agora em diante criar imagens, estar a serviodo marketing poltico. As cidades, no contexto de um mercado globalizado,assim transformadas sobretudo devido ao turismo, tornaram-se imagensespetaculares, outdoors, imagens sem corpos, espaos desencarnados,simples cenrios. Resta saber se os passantes, os turistas, os habitantesou os errantes ao sabor das maneiras diferentes de perceber e apreenderas cidades, descobriro outras sensaes corporais e intelectuais nesteexcesso de reproduo cenogrfica do espao urbano.

    As intervenes contemporneas sobre os territrios culturais, asque so planejadas (ao contrrio das ruses* e apropriaes inesperadasdo espao urbano) parecem cada vez mais desprovidas de corporalidadeou sem consistncia. Obedecem a um ritmo de produo de exibicionismocultural promovido pelas cidades. Como se transformam ento as relaesentre urbanismo e corpo, entre imagem e corpo, e entre o corpo urbanoe o corpo do cidado? A experincia corporal da cidade o exato opostoda imagem urbana fixada por um logotipo publicitrio. Pois umaexperincia corporal singular no se deixaria reduzir a uma simplesimagem de marca. Essa experincia da cidade feita pelo cidado lhe dum corpo, s vezes imaginrio, um outro corpo urbano que se movede maneira enigmtica conforme a superabundncia dos cenrios.

    NotasNotasNotasNotasNotas*Ruse urbana: uma forma peculiar de se apropriar, conhecer e circular pordeterminados espaos urbanos, mistura de astcia e experincia. (N. T.)

  • I Metamorfosesdo urbano

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    Reparar: uma novaideologia cultural e

    poltica?

    Henri-Pierre Jeudy

    A arte, a arquitetura e o paisagismo so chamados para tratar dosterritrios mais ou menos degradados, das construes mais ou menosdegradadas ou em runas, outras, em vias de destruio... Das reasindustriais, porturias ou outras aos espaos abandonados, aos territrioscontaminados (Tchernobyl), o objetivo parece ser sempre o mesmo:inventar projetos e criar realizaes cujo papel dever ser reparador. Jh algum tempo, os ecomuseus destinam-se a exercer uma funoteraputica em plos de emprego afetados por reestruturaeseconmicas. Assim, arte e paisagem mais do que a arquiteturapropriamente dita so levadas a se encarregar, para metamorfose-las, de bom nmero de representaes comuns do risco, da catstrofe,ou, de uma maneira mais geral, dos efeitos mais perturbadores da

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    sociedade. Trata-se de uma pacificao territorial e urbana cujo sentidodominante seria a reparao?

    Em uma cidade, uma obra funciona habitualmente como elo, porse inscrever na histria de um lugar, por ser suscetvel de modific-la, aomesmo tempo, respeitando-a. Contudo, se a obra entra em uma tramanarrativa complexa, ela passa a ser histria, graas sua autonomiaaparente. Para os artistas e os arquitetos, e mais ainda para os paisagistas,o papel da histria desempenhado numa aplicao das escalas detemporalidade, uma vez que, para eles, o objetivo promover a dimensotemporal de um passado presente atravs de uma projeo no futuro.

    Quando se trata de reabilitao, o estatuto da histria (histria dolugar) parece s vezes se reduzir produo de referncias simblicasligadas conservao do passado para criar a representao pblica deuma certa espessura do tempo. o que acontece, por vezes, nasnumerosas reabilitaes de friches industrielles*. Os arquitetos mantmos vestgios para mostrar que o local teve uma histria e que ela nodeve ser ocultada. O aspecto implcito dessa histria pode ser preservadode diversas maneiras, tanto na arquitetura quando no uso de refernciassimblicas mais abstratas. Os vestgios da histria assim conservadafazem parte da cultura do passado, no incidem sobre o uso presentedo local. Constituem o mnimo requerido para consumar um dever detransmisso: a arquitetura do local permanece sendo o invlucropatrimonial que lembra de maneira puramente formal qual foi o papelindustrial do local no sculo passado.

    O papel da histria na realizao de um projeto arquitetnico ou nacriao de uma obra de arte pode ter diferentes finalidades culturais oupolticas. Se um artista hoje chamado para criar um monumento, afuno do monumento ser comemorativa, respondendo aos imperativossociopolticos de um dever de memria. Essa relao com a histria somente factual ou tem um valor de antecipao? Destinados a construira referncia simblica do que dever ser memorvel para o futuro, osprojetos dos arquitetos e dos artistas devem recolher do passado apossibilidade de colocar em perspectiva o futuro. O que provoca umamodificao fundamental da funo contempornea do monumental

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    no espao pblico. O poder atual da comemorao deve-se ao efeito deatualidade por ela induzido. Quanto mais a histria se torna um trabalhode memria, mais a comemorao aparece como uma prtica implcitada construo da histria no tempo presente. , pois, uma concepomemorialista da histria que prevalece? Quando Jochen Gerz reconstrio obelisco de uma pequena cidade da Dordogne, erigido em honra aosmortos pela ptria, a nova estrela se apresenta como um monumentovivo. Essa obra de arte pblica rompe com a arte comemorativa,inscrevendo-se num tempo precrio e evolutivo. Contra a imobilidade daesttua petrificante, ela se torna permevel ao tempo. So os habitantesdesse vilarejo de Biron, de acordo com Jochen Gerz, que fazem omonumento, preparando os textos que sero gravados sobre as placasespalhadas diretamente no cho da praa e compondo o conjunto doprocesso. A histria continua, por assim dizer, a se inscrever em umtempo que nada vir suspender.

    Quer se trate do Monumento contra o fascismo, ou doMonumento invisvel de Sarrebruck, Jochen Gerz, com esse jogo dasinscries veladas, com essa idia de aparecimento e desaparecimentodo monumento, tenta fazer advir a polifonia spera de mil memriasindividuais, criar uma relao ativa e interativa com o presente... comose o gesto de enterrar a memria produzisse o efeito de ativar amemria1. O prprio artista diz em uma declarao ao jornal Libration: necessrio que a obra faa o sacrifcio de sua presena a fim de quepossamos nos aproximar do ncleo central de nosso passado2. A funocomemorativa do monumento anulada para que a memria permaneaativa sob um modo prximo do que os psicanalistas chamam de oretorno do reprimido. Essa concepo contempornea do memorialparece de fato se tornar um modelo de tratamento das memriascoletivas, impondo o princpio de um luto jamais terminado. Assim,obcecada pelas reaparies dos fragmentos da histria, a memriaespectral no deveria deixar nenhum lugar para o esquecimento. Aopropor que os nomes dos carrascos figurem sobre os monumentos, acompanheira de Jochen Gerz, Esther Shalev-Gerz, acha que o confortoda compaixo no seria mais possvel. Dispositivos memoriais como

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    esses, que estabelecem o modelo, no tempo presente, do ritmo dasmemrias coletivas, provocam o movimento de atualizao viva dopassado que faz da memria em repouso a prpria imagem da culpa.

    Os artistas parecem sempre se sentir mais livres para tratar da histriaatravs da memria. verdade que eles tm a vantagem de umamultiplicidade de suportes. Assim, com o vdeo, Tacita Dean parece brincarcom as memrias simblicas. Encontra-se nas obras de Tacita Deanuma ambigidade fundamental que concernente ao tempo: ele parecesuspenso, enquanto que, na realidade, escoa-se continuamente, tornando-se assim mais presente. Uma srie de rupturas temporais visuais esonoras, mais ou menos perceptveis perturbam a iluso deintemporalidade, pois seus filmes se situam ao mesmo tempo no passadoe no presente imediato, mas tambm no futuro prximo. Esse trabalhoda memria, esse condicionamento das figuras da temporalidade soconsumados pela multiplicao atual dos memoriais. Os historiadores cremter-se livrado das diretrizes ideolgicas que davam histria um sentidodeterminado, mas a histria nunca esteve to submetida norma moralque lhe conferida pelo dever de memria. E cabe aos arquitetos simbolizara resposta a esse dever de memria. A construo do patrimnioarquitetnico do futuro consuma-se nesse estado de esprito memorialistaque teria se tornado uma garantia tica da transmisso? O estatuto dahistria nas disciplinas arquitetnicas e artsticas no pode ser reduzido funo patrimonial que lhe o mais das vezes concedida. A histria, emsua forma contnua, parece perder seu aspecto tranqilizador, uma vezque no une mais de maneira to evidente a produo do sentido aotempo. A marcao das pocas uma maneira tradicional de fazer apareceresse elo entre o tempo e o advento do sentido. Contudo, a criao artsticae arquitetnica estimulada por uma certa desordem dos regimes dehistoricidade, por efeitos de condensao semntica das pocas. Com ahistria a desempenhar um papel social e poltico na anamnesecomunitria, a posio dos arquitetos pode ento ser rigorosamentecontraditria: uns faro tabula rasa (a cidade genrica) mas estesmesmos no escapam criao implcita de novas memrias dos lugaresparadoxalmente impulsionados pelo vazio , outros tentaro promover

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    uma concepo arquitetnica desobrigada da conservao patrimonial.Como esse dever de memria pode se articular a uma projeo simblicapara o futuro? A maneira como Jochen Gerz considera oautodesaparecimento do memorial para tornar as memrias ainda maisativas mostra tambm que o efeito de vazio pode ser tratado como ummeio de estimulao da anamnese. Curiosamente, o vazio se tornasuscetvel de engendrar um excesso, um transbordamento que provoca oretorno do reprimido. Assim, as falhas da memria o esquecimento, oburaco, o vazio, a confuso... so utilizadas para reativar a atividademnsica, para imped-la de se comprazer com o ritmo de uma rememoraoque teria perdido toda finalidade.

    Uma vez que a lgica patrimonial unifica o sentido contemporneodado histria para alm de seu fim anunciado, artistas e arquitetostentam abrir uma brecha simblica nos silncios cmplices doesquecimento, respondendo ao imperativo poltico de representar o que memorvel, ao mesmo tempo criando os meios de faz-lo com umagrande liberdade. Eles criam a possibilidade de modificar o aspectoexcessivamente conservador da lgica patrimonial concebendo umasinergia de figuras de temporalidade. Tentam pr em prtica o que ofilsofo historiador Koselleck chama de uma distoro sempre presenteentre a experincia adquirida e o horizonte de espera . Essa distoroest no prprio cerne da nova concepo memorialista da histriadesenvolvida por muitos projetos arquitetnicos e artsticos. Ainda maispelo fato dos acontecimentos catastrficos, as destruies provocadaspelo terrorismo e pelas guerras sustentarem essa lgica memorialista namesma cadncia de fatos que no podem ser esquecidos e que, almdisso, reativam a memria de fatos passados mais antigos.

    Todos os dramas da humanidade esto destinados a ser objeto deum memorial. O dever de memria se apresenta to logo o real foiatingido. Aps o desabamento das torres do World Trade Center, osprojetos arquitetnicos para a reconstruo do local tm em comum oque se segue: a memria do drama deve ser representada com umgrande poder simblico. Daniel Libeskind quer construir um museu nocentro de Ground Zero e uma torre de 533 metros, encimada por uma

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    flecha negra e cercada de edifcios de vidro com facetas geomtricas.Este arquiteto, criador do clebre Museu Judaico de Berlim, evoca umsmbolo que fala de nossa vitalidade diante do perigo e de nosso otimismodepois da tragdia. E, para perfazer a simblica memorialista, alocalizao exata onde se encontravam as torres gmeas destrudas seriapreservada e protegida por uma muralha. Um outro projeto, o dosarquitetos reunidos sob o nome de Think, recebeu o apelido de torresEiffel do sculo XXI. A equipe composta pelo japons Shigeru Ban, oargentino Rafael Vinoly e os americanos Frederic Schwartz e Ken Smithprope edificar um World cultural center (um centro cultural mundial):duas imensas trelias de ao elevando-se para o cu a 500 metros emcima da marca exata das torres gmeas, contendo salas de concerto,teatro e cinema, livrarias e um museu do 11 de setembro. Dois grandesparques arborizados seriam instalados no alto de dois edifcios menores.Ao todo onze construes, inclusive um hotel, seriam construdos emvolta dos arranha-cus cercados. A idia reencontrar a linha dohorizonte anterior ao desaparecimento das Twin Towers, sem contudoreconstruir de forma idntica e chocar as famlias das vtimas.

    A torre concebida por Daniel Libeskind mede 533 metros de altura,ou seja, 1776 ps na medida anglo-sax, o que compe a data daindependncia dos Estados Unidos. O arquiteto qualificou sua torre deparque que se mantm verticalmente , Jardim do mundo que ficano cume da torre. Por que jardins? Porque os jardins constituem aafirmao constante da vida , explica o arquiteto na apresentao geralde seu projeto. Afirmar a vida, tal a palavra-chave desses dois projetos.Em Nova Iorque, o contorno, o entorno do local onde ficavam as TwinTowers permanece atualmente comparvel a um circuito a partir do qualos visitantes tm a viso da amplitude do desastre. Como o prprioburaco se torna constitutivo de uma apreenso pblica cotidiana doque aconteceu, a representao comum do terror do acontecimentoparece de fato diminuir ao longo do tempo. O espao de tempo para arealizao do futuro projeto (dez anos) deveria idealmente corresponderao perodo necessrio para que se cumprisse o trabalho de luto de umacidade mortificada. Claro, o uso pblico de uma simblica da reconstruo

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    no novo, mas a primazia concedida concepo memorialista dahistria une um processo de atualizao perptua gesto poltica dasemoes coletivas focalizada sobre uma heurstica do medo3. A prticamemorialista uma terapia comunitria que trata, sem jamais exorciz-los, dos efeitos dos traumatismos provocados por acontecimentoscatastrficos. A insistncia em tornar vivas as memrias coletivasdecorrentes de dramas e de desastres a maneira contempornea deconjurar o futuro e favorecer uma culpa compartilhada. A prticamemorialista se faz ecologia da memria. Como a carga de culpa e deameaa escurece o horizonte do futuro, aniquila muitos ideais, e trazo risco de impor uma imagem negativa intensa demais do tempopresente, o papel reservado arte ou arquitetura o de criar umaprojeo livre do futuro, de produzir no mago de um esforo memorialistao futuro de nossas iluses.

    Assim, em nossa poca e para os tempos futuros, a arte, ao invsde exercer uma funo subversiva, teria um papel de ligao, dereparao, e a arquitetura, o de conceber monumentos memriaviva das vtimas de catstrofes. Digamos que se trata de uma tendnciaforte, mas que no podemos generalizar. Como pode a arte ainda serepresentar como algo arriscado? A segurana, por causa das normasque impe, tambm, no caso das friches industrielles , uma refernciadeterminante que provoca a impossibilidade de abertura ao pblico decertos locais, ou o seu fechamento. Para as artes na rua, as realizaespropostas no param de suscitar problemas complexos de gesto deriscos. Um bom nmero de artistas continua a considerar a seguranacomo um limite arbitrrio imposto liberdade de criao. Contudo, hoje,essa oposio entre a normatividade das regras de segurana quemascararia o controle do poder poltico sobre a liberdade de criao e omundo da expresso artstica livre no mais se apresenta de umamaneira que legitime, de uma maneira muito geral, o esprito desubverso dos artistas. Qual representao do risco se tornou umcomponente das criaes e dos projetos de arte, de arquitetura ou depaisagismo? Quando consideramos por exemplo que os locaisindeterminados (friches industrielles ou outros espaos do mesmo

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    gnero) so espaos de risco, no unicamente do ponto de vista daregulamentao de segurana, mas tambm da audcia dos projetosque l esto sendo executados. Essa ambigidade no pode seresquecida, ela que origina o prprio estmulo da criao no espaourbano. Parece ento necessrio analisar como, cada vez mais, a prpriacriao, na realizao dos projetos, enfrenta tal ambigidade. Os novosespaos de exposio de arte contempornea, mesmo que no seconformem s normas de segurana, tm necessidade de mostrarpublicamente e por sinais tangveis, como no Palais de Toquio, em Paris,uma atmosfera de risco.

    A situao ainda mais complexa quando se trata deexperimentaes prprias do que normalmente se chama de as artesda rua. As municipalidades promovem festivais e tentam adotar osdispositivos de segurana necessrios. Se as maneiras diferentes deutilizar o espao urbano engendram os efeitos de uma periculosidade,esta ltima deve, por assim dizer, manter seu aspecto esttico, aspectoque supe que a pacificao patrimonial, representada pelosmonumentos, seja momentaneamente perturbada por manifestaesfestivas que subvertem os hbitos de percepo dos cidados. Certasmunicipalidades tm, doravante, a tendncia a recuperar o princpio destaou daquela interveno de um ou de diversos artistas, de transferir aresponsabilidade de execuo a sociedades especializadas, capazes degerir os riscos incorridos com muito mais preciso. O projeto artstico de alguma maneira comprado como um modelo, e sua realizao efetivase torna uma questo tcnica ou poltica, bem controlada. Esseprocedimento de delegao, que tem todas as possibilidades de sedesenvolver no futuro, parece de fato incidir sobre o processo de criaopropriamente dito.

    Ainda prematuro saber o que provocam as intervenes artsticasou paisagsticas, tanto sobre as memrias coletivas quanto sobre asmodalidades de percepo atual dos espaos acidentados. Vamos at ofinal de nossa interrogao: como est o desenvolvimentocontemporneo de uma esttica das paisagens acidentadas? Ns jmencionamos como os arquitetos vm sendo chamados para construir

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    memoriais, depois de exploses, acidentes, sinistros... O memorial,mesmo que possa ser uma obra magnfica, uma soluo simblicaoferecida salvaguarda das memrias. O tratamento esttico de umterritrio acidentado, como o de Tchernobyl, por exemplo, um outrocaso; ele coloca a questo tica do papel desempenhado hoje pelofenmeno da estetizao do que foi uma terrvel catstrofe. Mas o princpioda reparao o mesmo: trata-se de preservar as memrias coletivasintegrando-as em uma metamorfose esttica do local.

    A questo recorrente esta: como, em um territrio acidentado, possvel para o artista ou para o paisagista preservar e metamorfosear oque foi o desastre propriamente dito? E esta pergunta no pode serreduzida ao trabalho de luto, nem de um dever de memria, ela supeuma experincia particular de sublimao. Sabe-se muito bem, pararetomar mais uma vez o exemplo de Tchernobyl (onde j se comeouum trabalho de exposio com uma equipe de socilogos e fotgrafos),que toda prtica esttica poder ser julgada, de um ponto de vista poltico,como uma traio, uma vez que ela pode justificar a idia de que possvel continuar a viver ali onde aconteceu o desastre que produziu ahecatombe. Assim, exige-se da criao artstica ou paisagstica que vbem alm da simples consumao de um papel teraputico, que enfrenteas questes ticas e polticas colocadas arte e arquitetura noprocesso de estetizao dos locais e do espao.

    Com o tratamento esttico dos territrios destrudos, impem-semodos de resistncia degradao e modos de preparao para adestruio. Com efeito, artistas e arquitetos so instados, num prazomais longo ( uma exigncia do desenvolvimento durvel), a prever adegradao do que eles concebem. Mas o fenmeno de degradao, deum ponto de vista muito geral, nos informa tambm sobre oestabelecimento atual de modelos de esttica urbana. Em si, adegradao, se no acarretasse riscos humanos, poderia muito bem serconsiderada como processo esttico contemporneo. No que diz respeito categoria do efmero, os artistas preferem tratar o autodesaparecimentoou a decomposio como se estivessem falando de produtosautodegradveis. Uma das contradies dos discursos que so feitos

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    sobre a criao, sobre o projeto e sua concepo, poderia ser enunciadaassim: de que maneira, hoje, o imperativo do desenvolvimento durvelincide sobre os padres de reflexo dos artistas e dos arquitetos queinvocam o vazio, o fractal, o efmero...? Existe uma clivagem entrea esttica bio-securitria e a aventura de uma criao artstica earquitetnica que buscada ao se tentar conciliar essa esttica comidias, referncias, conceitos que poderiam perfeitamente amea-la?Quanto destruio, existem inmeras situaes nas quais, por umtempo determinado, construes, um territrio, so propostos aos artistasantes de se fazer tabula rasa. Esse gnero de experincia esttica podeser revelador, no contexto sociopoltico atual, de um certo funcionalismodo efmero.

    Em um plano mais terico, esse processo de reparao exacerba,nos parece, nos espritos dos artistas e dos arquitetos, a relao (que setornou poltica) entre a tica e a esttica. Os efeitos dessa exacerbaoaparecem nos modos de legitimao intelectual dos artistas e dosarquitetos, em seus discursos como em seus escritos. Esses modos delegitimao (como cham-los de outra maneira, hoje?) so reveladoresde certos posicionamentos adotados pelos artistas e pelos arquitetossobre o sentido dado por eles ao futuro da arte e da arquitetura. Para aarte, a modificao ideolgica parece ser mais determinante: comopode o artista ser ao mesmo tempo provocador e reparador? E onde,para tentar ser as duas coisas, buscar ele os argumentos de sua aocriadora?

    Os discursos sobre a produo do elo e do lugar consumada noespao urbano pela arte e pela arquitetura esto mais ou menos saturados,eles desenvolveram apenas uma constatao a da prpria efetivaodessa ligao com suas causas e seus efeitos. Ao escolher situaesmais complexas, mais incertas, ns queremos mostrar como a arte e aarquitetura so chamadas a tratar socialmente e politicamente asconseqncias territoriais das metamor foses das sociedades(decomposio de um territrio, destruio de um lugar...), ao mesmotempo promovendo a prpria metamorfose como imagem da criaopara os tempos futuros. Se colocamos em ressonncia com essa

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    hipottica finalidade os modos efmeros de interveno artstica (artesda rua, por exemplo), para mostrar como as metamorfoses estticasso oferecidas cidade como signos de sua sobrevida cultural. Em outraspalavras, se pudemos mostrar, nos anos passados, em que medida opapel da patrimonializao urbana teve um poder de pacificao quasemortfero (cf. nossa obra, Espelho das Cidades), podemos concluir que,provavelmente, as polticas pblicas se vem agora confrontadas com anecessidade de tratar, de um modo ativo, vivo, esttico, o que estdestinado a desaparecer, o que est aniquilado... ao mesmo temporeinjetando na cidade um estmulo ao risco, simbolicamente representadapela arte efmera.

    Se os usos sociais e polticos da catstrofe j foram objeto de algunsestudos, no acontece o mesmo com o papel concedido esttica doespao acidentado. As experincias artsticas que esto sendo realizadas(a fotografia particularmente) provocam, como seria de se esperar,reticncias de ordem moral e poltica. Intervenes como essas socapazes de revelar as metamorfoses do territrio e as maneiras comoelas so vividas pelos prprios habitantes? A estetizao de um territriodestrudo, de uma catstrofe, mal aceita como se ela desfigurasse apatrimonializao comemorativa. Contudo, ela parece tentar conciliar oque hoje se tornou uma virtude tica, o dever de memria e a reparao.Trata-se de uma vasta reconstruo mental, um trompe lil*?

    NotasNotasNotasNotasNotas*Friches industrielles: zona industrial onde as atividades industriais foramencerradas, e o terreno foi inteiramente abandonado ou eventualmente conservavestgios das instalaes. (N. T.)1 Rgine Robin, Berlin Chantiers, Stock, Paris 2001, pp. 363-364.2 Jochen Gerz, Gerz, sous le pav de la mmoire, entrevista a MiriamRosen, em Libration, 17 de maro de 1992.3 - cf. Hans Jonas* Trompe lil: estilo de criar a iluso de objetos reais emrelevo, mediante artifcios de perspectiva. (N.T.)

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    O urbano emmovimento

    Patrick Baudry

    O centro a preocupao de uma interveno que se querlimpadora. A palavra me tinha sido dita por uma responsvel polticada cidade de Paris que usava, para explicar o andamento das obras, aimagem da concha do escargot. Etapa por etapa, bairro por bairro earrondissement por arrondissement (do primeiro at o vigsimo) elaapontava para mim seu indicador para me explicar melhor e fazia crculoscom ele cada vez maiores, como se eu mesmo devesse ser modificadopor sua magia , a cidade seria progressivamente melhorada. Menosinsegurana e mais conforto. Menos gente pronta a agresses (a noser olfativas ou sonoras) e mais esttica. O rolo compressor do bem, dobom e do belo agia, a se acreditar em tudo isso, obstinadamente evitoriosamente. A cidade ameaada seria, assim, salva.

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    A medicina da cidade centralO centro pretende ser hoje um local de encontro. A limpeza no

    basta para a unificao da cidade. necessrio ainda que agregue, atraiae, portanto, que rena, dos quatro cantos do mundo, todos os membrose uma mesma sociedade. A re-centrao a palavra-chave dascenografias urbanas1. Tratar-se-ia de reencontrar o equilbrio, de regeneraro socius, pois, descobriu-se, a cidade no somente um local onde aspessoas vivem, mas a prpria sociedade, enraizada dentro de sua histria,assim como sempre, em construo. Assim, preciso saber antecipar.Prever, e no somente planejar, se torna to mais urgente pelo fato dofuturo ser incerto e do presente no escapar apenas por sua fugacidade,mas devido incerteza de um futuro que o contamina. Compreende-se, pois, que preciso se voltar na direo de um passado seguro,imemorial, para encontrar diretrizes. Mesmo assim, isto no bastaria.O poltico poderia ter o cuidado de deixar a marca de sua grandezamandando construir uma obra ou um monumento. Eventualmente, seriapreciso que um artista se encarregasse de marcar na pedra a passagemdo grande homem e sustentar por meio de um gesto decisivo (que fosseousado e inovador) o dever de memria. O papel do poltico , comfreqncia, o de colocar sua marca sobre o territrio, e isto supe queele realize materialmente sua marcao. preciso, para definir suaidentidade, marcar limites, situar fronteiras. Sobre a almofada violeta, atesoura dourada entregue ao homem importante que, cingido de bleublanc rouge, corta a corda ou a faixa e abre o espao novo que aumentao capital do construdo. O poltico, na sua misso construtora, ter podidotambm encenar sua imagem operria: a primeira pedra o obriga amanejar a colher de pedreiro e talvez a vestir o uniforme de canteiro deobras. com um capacete de segurana que o Senhor Prefeito mostrao cuidado que tem com seus concidados. Hoje em dia, esta situaose generaliza. O poltico quer tratar a cidade como o mdico trata umpaciente. O tratamento curativo mas tambm preventivo. Trata-se deantecipar o futuro das grandes cidades que tm vocao de ploseuropeus e internacionais. No basta mais mostra-se em um lugar oufigurar em uma ocasio. Permanentemente, o poltico d remdios ao

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    elo social e cuida do corpo urbano. Mas sobretudo pelo centro que preciso atacar o problema e encontrar sua soluo. Sem agregao, nadade unidade nem coerncia, portanto nem de sentido, segurana ou atde sociedade. Tudo se sustenta. A idia mestra a de uma totalidadeque no pode se aproximar logicamente a no ser por processos detotalizaes.

    Uma poltica de eventos permite notadamente a reunio concidad.O esporte desempenha assim um papel de relevo. Seria preciso ser ummau francs para no amar o estdio sempre o crculo e os jogosque restauram (ainda a regenerao) uma fraternidade aliada porintermdio de valores de excelncia e de ajuda mtua veiculadafisicamente pelos esportes. Em posio de sentido, como os militares aservio da nao, para escutar o hino nacional, eles evoluem emuniformes realados por marcas de grandes empresas. A Frana vitoriosa encarnada pelos campees. Mais depressa, mais alto, mais forte, comorecomendava o Baro Pierre de Coubertin, retomando a divisa romanacitius, altius, fortius tal o programa corporal dos heris. E compreende-se o propsito do Presidente da Repblica ao se mostrar nos vestiriosda equipe da Frana vestido com uniforme de jogador de futebol quandoa urgncia de reforo da unidade republicana. No se falou damaravilhosa reconciliao do povo da Frana em um momento de vibraogeneralizada? As ruas estavam cheias de mulheres e homens cujoscoraes batiam em unssono. O pas mostrava seus talentos unificandoas competncias de cada um: pretos, brancos e descendentes de rabespodiam juntos expressar uma alegria comum. Que a sociedade se tornenovamente coesa atravs da comunidade cidad esta a maravilhado resultado. As idias de sociedade e de comunidade teriam sidoexcessivamente opostas, como se devessem se excluir por princpio. Acomunidade generalizada a sociedade de novo coesa. Espritos malhumorados falaro de dopagem, de corrupo, de trapaas diversas. Aindaassim, um chute pode ser magistral e a velocidade esportiva umamaneira de dopar os valores franceses.

    Os eventos podem necessitar menos cmeras e entusiasmo. Umgrande piquenique, uma festa no rio, como a da msica, so tidos como

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    aglutinadores e capazes, pelo movimento de contatos coletivos, derestaurar o sentimento de estar junto. O estar junto suporia sempre ocomunitrio, um sentimento selvagem de tribo, a expresso mais oumenos apoiada de uma efervescncia. O romantismo que marca, emparte, a sociologia de Durkheim, pode, assim, ser retomado numa lgicaque exalta a felicidade do corpo coletivo. Ele seria esse suplemento dealma, esse retorno religioso em suas dimenses deliciosamente brbarase civilizadas ao mesmo tempo.

    Desamos ainda um pouco mais: a mais simples feira de domingo,ao longo do Garonne, pode ser a ocasio de juntar a cidade. As pessoase esbarram, se falam, comem os mesmos pratos diante do mesmo cu.Um horizonte comum se redesenha diante de indivduos que no tmoutra sede seno a de se encontrar no movimento que os rena. Diramosque a diviso da sociedade diminui uma vez que a mistura se opera. Sogrupos que passam diante das barracas instaladas pelos queijeiros. Aproduo caseira est ali naqueles cavaletes. A sociedade plenamenterealizada se encontra nesse local onde se diz que Bordeaux agita. Ofuturo, mesmo que incerto, porm controlado por um management quese preocupa com ele, percebido nos movimentos do rio para o qual fluio oceano que rene o local agradvel internacionalizao das culturas.A prpria natureza do lugar incita s re-fundaes. No se obrigando adeveres patriotas, mas, sim, a partir do prazer que experimenta, que oindivduo participa e se solidariza. A cidade central teria tambm comoefeito benfazejo ajudar o indivduo a se centrar de novo, a reencontrarsuas referncias. Assim, o corpo da cidade deve compreender o corpo dohabitante. Sua unidade prpria participa da mesma unificao social.

    Poderamos prosseguir indefinidamente (para sust-lo ou paraprolong-lo) com esse discurso, que seria evidentemente consensual.Cincias humanas, mdias, polticas, parecem maciamente entrar emacordo para reconhecer seu poder de convico. Quer sua razo sejamostrada, quer se critiquem seus argumentos, seria preciso se reportar sua lgica. Mas, provavelmente mais necessrio mostrar que, adespeito da reunio de especialistas que estimula, o mundo que surgeno corresponde de ponta ponta ao que estava sendo planejado.

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    Duas imagensNa capa de uma obra coletiva2, duas fotografias so apresentadas.

    A primeira teria resultado de um olhar sobre a desolao de lugares semalma gerados por uma expanso urbana. A segunda seria a evocao dasociedade harmoniosa, bela de se olhar, que estaramos em vias deperder se nos re-centrarmos. De um lado o mal, do outro o bem. Aquia doena, ali a sade. assim, ao menos, o que estas ilustraes deuma capa de livro podem ser interpretadas: tudo se passa como se afotografia do alto, que mostra os confins de um mundo urbano, estragassecom sua presena o prazer de olhar o quadro artstico da Bordeaux deantigamente.

    A fotografia mostra cascalhos, ervas daninhas, arcadas de ferrosem utilidade (no servem de entrada de um estacionamento nem detrave para futebol), postes de iluminao que no servem sequer parademarcar a via expressa dos automveis, e um resto de construo emchapa de ferro, que abriga no se sabe o qu. Um terreno baldio poderiater mais unidade ou sentido. Algum tipo de bordel execrvel poderia termais encanto. Aqui, parece que estamos diante de um estacionamentoabandonado e tornado inutilizvel. Compreende-se facilmente: afotografia foi tirada em uma zona peri-urbana, enquadrando suasvizinhanas sem ornamentos. Ela mostra o que o habitante das grandesaglomeraes conhece dos cenrios antiestticos das proximidades daszonas comerciais.

    O quadro mostra a Bordeaux do comeo do sculo XIX. Vem-se orio Garonne, barcos de pescadores, homens trabalhando nas margens,mas tambm uma sociedade burguesa passeando de vestido branco ouchapu-coco, sem que essa justaposio da elegncia e do trabalho, daociosidade e dos esforos fsicos d a impresso de uma sociedadefraturada ou conflituosa. Muito ao contrrio, predomina um sentimentode harmonia. Uma impresso de convvio o que est sendo exibido.Reina uma felicidade compartilhada: a de estar junto em um mundoque rene todos seus elementos. Compreende-se tambm que essaatmosfera pacfica seja a garantia de uma sociedade de progresso e deprosperidade.

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    Esse quadro o de Pierre Lacour. Est exposto no Museu de BelasArtes de Bordeaux. Data de 1804. Intitula-se Vista de uma parte doporto e dos cais de Bordeaux, dito dos Chartons e de Bacalan. PierreLacour no pintou sua poca, como se poderia crer. Ele executou umaencomenda poltica. Era preciso inscrever nas memrias futuras alembrana de um mundo exemplar, no qual a paz social estivesse deacordo com o dinamismo econmico. Mas a cena que o quadro mostrasimplesmente jamais existiu. A fotografia foi realizada por Jean-LouisGarnell. Ela faz parte de uma srie intitulada aglomerao de Bordeaux.A associao Arc-en-Rve a havia encomendado. Foi exposta no mbitoda exposio Mutaes organizada no Entrept Lain em 2000. Jean-Louis Garnell j tinha feito um trabalho para a Datar sobre paisagensurbanas parecidas com o que mostra a fotografia.

    Talvez se possa dizer que, mesmo sendo essa imagem a obra deum artista e no de um ilustre desconhecido, ela , ainda assim, deuma feira incontestvel. No estamos, alis, habituados a conheceressa inclinao prpria dos artistas contemporneos que os leva a mostraro sujo, ou at mesmo o repugnante? , pois, no mbito de uma estticado pavoroso que preciso classificar essa foto, e preciso compreendera mensagem como sendo a de um contestador? Garnell estaria querendobotar diante de nossos olhos o horror da sociedade mercantil que suja oplaneta e provoca a desolao do ser? Pode-se bem imaginar que essainteno governe o enquadramento da fotografia. E que o sentimentode vazio e de incompreenso temos dificuldade de ver o que vemos,porque sequer sabemos o que preciso ver seja o objetivo buscado.Ou, ento, seria o caso de compreender que se trata de desvio ou ironia.Quando se pede ao artista para mostrar paisagens, este se dedicaria afotografar lugares-lixo de resto, como qualquer pessoa poderia faz-locom uma mquina fotogrfica descartvel.

    O periurbano no seria a gangrena das cidades? Uma ameaaexterior parece fotografada por Garnell, como se o inabitvel, por enquantorelegado aos limites das cidades, pudesse penetr-las. Uma podridoestaria cercando o espao civilizado e seria capaz de carcom-lo. Ento,seria preciso compreender que a obra de restaurao, que o

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    restabelecimento das fachadas ou o esforo paisagstico no interior dascidades, lutam continuamente contra uma ao deletria, que noconseguimos acreditar que seja apenas externa ao corpo social. Garnellestaria nos mostrando, pois, muito concretamente, contra o qu seorganiza a preservao dos centros das cidades. Uma continuidadeprecisaria ser mantida contra o desmantelamento ou a desagregao, ea fotografia de um pedao da cidade mostra que o perigo se situa emseu prprio seio.

    Mas, necessrio de fato crer que a fotografia feia? precisoconcluir porque o olho no constri imediatamente diante dele umabela imagem a partir do que lhe mostrado que a desordem maisforte. Outra questo: no se poderia achar que a bonita pintura de PierreLacour , sua maneira, de uma particular feira? No seria possvelcriticar a imagem da sociedade harmoniosa, simplesmente pelo fato deela jamais ter existido. No a mentira que se deve depreciar. a prpriaesttica da pintura caprichada que pode parecer de mau gosto.

    A questo do urbanoAs palavras nos armam ciladas. Se falamos de descontinuidade

    em oposio continuidade de uma cidade monobloco, damos a entenderque a desorganizao leva a melhor. E se queremos dizer que essadesorganizao no desorganizada, ento a organizao e acontinuidade reaparecem. Se falamos de urbano e no de cidade,utilizamos uma palavra que soa mal, que no pertence a nenhum usonas maneiras de falar, e podemos dar a impresso de reconduzirsimplificaes binrias (o urbano versus a cidade) ou um certohistoricismo (o urbano depois da cidade). Entretanto, compreende-seque Mat Clavel tenha razo ao intitular sua obra Sociologie de lurbain3

    [Sociologia do urbano] e no da cidade. As polticas ditas urbanas sode fato, no essencial, polticas da cidade. , como foi dito mais acima, apartir do centro (e portanto do centro da cidade) que o vnculo social,que a unidade cidad, que a esttica de estar junto, deveriam serreparadas, reafirmadas, revitalizadas. Mas , contudo, um outro mundoque no o da cidade stricto senso que preciso levar em conta.

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    De resto, tudo parece ser como se a cidade, nesse retorno ao quelhe d fundamento, nesse reflexo de revitalizao de seus prprios valores,pudesse se limitar apenas a seu centro ou a suas centralidades.Curiosamente, essa reexibio de foras vivas articulando o passadofabuloso e o futuro promissor reduz o territrio a alguns lugares principais.Ora, a Bordeaux que agita, bem como a que no agitaria mais (porno ter recebido um cuidado particular), so urbanas. No a cidadeque d conta do urbano, mas o urbano que atravessa a cidade, apesarde que ela no o contenha.

    A experincia da habitao urbana se traduz na linguagem quando,hoje, nos perguntamos se em Bordeaux moramos em Bordeaux. Em relaoa Paris uma pergunta quase idntica pode ser feita: Voc mora em Parismesmo? E a resposta evoca perfeitamente o fechamento, de que faleimais acima, quando for a seguinte: Sim, na Paris intra-muros*. Tem-sedireito a Paris no morando nela, no se situando entre seus muros,como por exemplo se o endereo onde se recebe a correspondncia fosse,por exemplo, Neuilly*. Os bairros residenciais luxuosos no se distinguemcomo duvidosas periferias mas, sim, como exterioridades de distino. Noh necessidade de se estar dentro da cidade, pois quem est no alto dahierarquia social no escapa de seu interior. Em Bordeaux, o bairro Cauderantem tambm esse status. No se poderia aplicar-lhe o qualificativo ofensivode periferia. Mas, ao longo das trs ltimas dcadas4, foi o conjunto daperiferia bordelesa que se tornou Bordeaux. Bordeaux mesmo (como sediz Paris mesmo ) se reduz ao centro de Bordeaux, como se a verdadeiraParis no fosse mais do que Paris centro. Em Bordeaux, portanto, onde semora? Pode-se morar Bordeaux centro ou em Bordeaux aglomerao.Pode-se morar na comunidade urbana de Bordeaux, mas tambm foradela, e se dizer ainda bordels. Em suma, a identidade no se altera mas sediversifica, ao se desterritorializar. O fato mais notvel que o bordels dosegundo ou do terceiro crculo pode se definir como tal sem jamais ps osps em Bordeaux mesmo. Em suma, o centro no funciona mais comoatratividade, salvo em momentos episdicos, acontecimentos que pontuamo mundo urbano mais do que propriamente pertencem uma lgica decidade.

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    Henri Lefebvre em muitas de suas obras empregou a palavraurbano para mostrar suas mltiplas facetas. Citemos aqui Espace etpolitique, onde ele escreve: Assim se forma este novo conceito: o urbano. preciso distingui-lo bem da cidade. O urbano se distingue da cidadeprecisamente porque aparece e se manifesta durante a exploso dacidade [...].5 Mais adiante ele escreve:

    O urbano, essa virtualidade em marcha, essa potencialidade que j serealiza, constitui um campo cego para os que se atm a umaracionalidade j ultrapassada, e assim se arriscam a consolidar o quese ope sociedade urbana, o que a nega e destri durante o prprioprocesso que a cria, a saber, a segregao generalizada, a separao,no territrio, de todos os elementos e aspectos da prtica social,dissociados uns dos outros e reagrupados por decises polticas noseio de um espao homogneo6.

    O urbano no se instala nas periferias das cidades. Ele no se situaem locais que poderiam ser designados como no-cidades. Trata-seessencialmente de uma nova relao com a cidade e, maisgeneralizadamente, com o espao no qual a prpria cidade no tem mais omonoplio legtimo da territorialidade. Para dizer de uma outra maneira, adesterritorializao mencionada mais acima nada tem de catastrfica. Semprese poder dizer que a urgncia da cidade de reunir e que preciso estar naposio social do abastado para desprezar segregaes e excluses. Mas acidade que hierarquiza e que exclui. a cidade, apesar das intenesdeclaradas ou da conversa fiada dos especialistas, que bane, que fixa edesigna a no-residncia. No se pode, portanto, fechar os olhos sobre osconjuntos habitacionais que so relegados. No se pode ignorardesigualdades substituindo uma pretensa potica do urbano por uma polticado centro para re-encantar a cidade. O urbano no um lugar. No acidade aumentada (a dita aglomerao), a cidade ultrapassada, informeou indigesta. porque nos impacientamos com a coerncia, porquequeremos nos ater ao lugar e totalidade, porque pensamos a estticacomo reunio de sentimentos e comunidade de emoes, que o urbanoparece incoerente, desgarrado e, bem entendido, de uma assustadorafeira, a qual provaria sua doena (possivelmente contagiosa).

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    Mas uma pergunta que tem de ser feita aos que querem tomar adefesa dos deserdados: eles no comeam decidindo que certas pessoasno so nada, para depois se interessar pelo que elas deveriam se tornar?Esse olhar zoologista e essa preocupao colonial esse apetite que tambm de reterritorializao se reencontram no uso que convmfazer dos ditos no-lugares... O no-lugar parece conceitualmenteprovar que a localizao est em situao de risco. Esta expresso,permanentemente retomada num catastrofismo de bom tom, imbui-sesecretamente do projeto da reconstruo e da reunificao. O no-lugarserve, com efeito, lgica do lugar: ele o acidente que justifica ainterveno urbana. Henri-Pierre Jeudy o diz bem:

    Os lugares indeterminados como as friches industrielles, as docas[...] tornam-se lugares referenciais. O no-lugar a garantia simblicauniversal do lugar. Ele devia designar o territrio sem nome, semidentidade, ele se torna por excelncia o ornamento do desenvolvimentocultural7.

    Segundo uma viso simplificada da questo identitria, o que notem identidade no existiria. De fato, para ter acesso identidade, seriapreciso estar definido e identificado (o que , para dizer aqui muitorapidamente, exatamente o contrrio da problemtica da identidade empsicanlise, por exemplo). Portanto, em vez de ir se preocupar com osno-lugares (o que se dizia das estaes de trem do comeo do ltimosculo?, agora que elas se tornaram por vezes monumentos e fazemparte de um imaginrio), seria melhor alarmar-se com a pretenso desobrecarregar o territrio, de cobrir todas as suas brechas.

    Aqui pode se situar a ambigidade da fotografia de Jean-LouisGarnell. Ela serve para mostrar que o feio tem tambm seus encantos eque preciso re-estetiz-lo? Trata-se de dizer que o mau terreno baldiotem tanto valor artstico quanto um bonito jardim ou uma catedral? Que preciso concluir que h uma espcie de equivalncia de signos, umaequalizao de no-lugares com os lugares? Pode-se pensar em vezdisso que a fora daquela fotografia est no fato dela situar um momentourbano sem recorrer a uma qualificao positiva ou negativa, e o fato

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    dela dispensar quem a olha da obrigao de classificar a imagem emuma etiqueta esperada. Para dizer de uma outra maneira, uminesperado que lhe d seu poder. Pode-se olh-la compreendendo queela evoca a ociosidade, o abandono. Pode-se ver nela, de forma bemdiferente, que o mundo no se limita habitabilidade8. E compreender,a propsito do olhar, que a dificuldade de ver o que preciso ver no um problema para o qual seria necessrio mais clareza na definio,encontrar a soluo.

    A fotografia de Garnell tem ao mesmo tempo algo de clich(exatamente como eram vistos os locais deser tos, os lugaresabandonados, ou as zonas, como se dizia antigamente9) e deexperincia de um mundo urbano que no est localizado apenas nessesesteretipos. Em suma, preciso no reservar o que mostra Garnellapenas aos lugares (ou no-lugares) onde a fotografia foi tirada. HenriLefebvre dizia-o bem:

    O carter desrtico, abandonado, das periferias urbanas revelador; oque ele revela, para descobr-lo e diz-lo, preciso ler. A leitura dosespaos urbanos, perifricos ou centrais, no se faz somente sobre osmapas, construindo um cdigo abstrato; uma leitura sintomtica porexcelncia, e no literal10.

    Essencialmente, Lefebvre chamava ateno, no para a desolao,mas para tempos e espaos que se tornam, dizia ele, diferenciais.Redes e fluxos extremamente diferentes se superpem e se acavalam,escrevia ele11.

    A poltica tradicional da cidade desejaria um corpo so em um espaotornado seguro. Mas as pessoas flanam, ficam deriva, inventam seuspercursos, em lugares que lhes so arrumados como em suas casas.Elas no caminham exatamente em linha reta, mas vo aleatoriamente.O urbano tem a ver com esse aleatrio que a ordenao pretenderiaesconder ou at estetizar, para fazer dela uma feliz exceo regra. oque, no Brasil, a ginga, um jogo de cintura, caracteriza os modos deandar. O corpo do favelado no monobloco, ele no vai em linha retapara o seu objetivo. Paola Berenstein Jacques12 mostra que o corpo

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    danante do favelado pe em movimento sua histria e encontra nocaminho a aventura de um mundo labirntico e fragmentado. Essaaventura comum no caracteriza tambm, em outros lugares que no oRio ou Salvador, os itinerrios cotidianos? Os que so consumados aoandar. Tambm os que so realizados ao se permanecer imvel.Sobretudo, Paola Berenstein Jacques nos faz compreender que o quenos ensinam a temer o labirinto que abafa, o fragmento que isola no existe como tal a no ser para o pensamento totalitrio imposto porsua realidade arquitetnica.

    NotasNotasNotasNotasNotas1 Lilian Fessler-Vaz em A culturalizao do planejamento e da cidade inCadernos PPG-AU Territrios urbanos e polticas culturais, nmero especial,ano II, 2004, p. 34, sublinha bem a inflao de palavras comeando porre:renovao, revitalizao, reabilitao, requalificao, regenerao, entreoutras. Ela mostra que a utilizao da cultura como instrumento derevitalizao urbana faz parte de um processo bem mais amplo de utilizaoda cultura como instrumento de desenvolvimento econmico (p. 32). Namesma pgina, ela esclarece que certas zonas so privilegiadas nessesprocessos de renovao urbana, como os centros histricos, as reas centraise os vazios urbanos que resultam do processo de desindustrializao antigaszonas porturias, ferrovirias e industriais.2 Ver Patrick Baudry e Thierry Paquot (textos reunidos por), LUrbain et sesimaginaires, Pessac, Maison des Sciences de lHomme dAqquitaine, 2003.3 Ver Mat Clavel, Sociologie de lurbain, Paris, Economica, 2002, p. 35.Em seu artigo Pour une recherche sur les pratiques des priurbains, publicadoem Communications, Manires dhabiter, no. 73, 2002, p. 205, ela escreve:O urbano, de qualificativo expandiu-se at substantivo e d conta da cidadetal como ela se tornou. *Paris intra-muros: a cidade limitada pelo Boulevardpriphrique, construdo sobre as runas das antigas muralhas. (N. T.)*Neuilly:cidade vizinha, antiga parte da aglomerao parisiense. (N.T.)4 Ver Jean Dumas, Bordeaux ville paradoxalle, Pessac, Maison des Sciencesde lHomme dAquitaine, 2000, p. 134 e 251.5 Henri Lefebvre, Espace et politique (1972), Paris , Economica, 2000, p.76.6 Idem, p. 80.7 Henri-Pierre Jeudy, Espelho das Cidades, Rio de Janeiro, Editora Casa daPalavra, 2005: Querer definir o que h de potencial na configurao territorialimplica em negar que um espao urbano seja tambm a expresso de uma

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    aliana de contrrios, pois a coerncia no o nico fruto de uma resoluodas contradies prprias s metamorfoses da cidade.8 Ver Patrick Baudry, Violences invisibles, Bgles, Editions du Passant, 2004,p. 133.9 Entre St-Ouen et Clignancourt, Jai vcu mes premires amours, Sur lazone, cantava Edith Piaf.. A zona era ento um terreno vazio entre bairros,um espao de jogos para crianas mas tambm para os que se tornam grandes.Hoje a zona remete mais ao movimento, travessia sem direo precisa esobretudo predefinida: por isso a expresso cortar a zona , como empregaAlain Souchon, por exemplo.10 Henri Lefebvre, Ibidem, p. 78 e 79.11 Ibid, p. 79. de parte desses acavalamentos e superposies que doconta as contribuies de Aurlie Chne e Laetitia Devel.12 Ver Paola Berenstein Jacques, Esttica da Ginga, Rio de Janeiro, Casa daPalavra, 2001.

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    Acumulao primitivade capital simblico:sob a inspirao do

    Rio de Janeiro

    Ana Clara Torres Ribeiro

    A nica teoria do conhecimento que pode ser vlida hoje a que se funda sobre essa verdade da microfsica: o

    experimentador faz parte do sistema experimentalJean-Paul Sartre

    A singularidade do lugarComo afirma Alain Badiou (1994), no se pensa da mesma forma

    em todos os lugares. Os lugares inspiram conceitos, demandaminterpretao e oferecem temas reflexo. desta forma que a cidadedo Rio de Janeiro comparece neste texto, isto , assumida comoexperincia vivida, laboratrio informal e principal fonte de inspirao nareflexo de tendncias recentes do capitalismo. Para quem experimentadiariamente uma cidade, existem sintomas, indcios, mudanascomportamentais e notcias dispersas que sinalizam os sentidos datransformao social, ainda que estes sentidos s possam ser apreendidosatravs da formulao de hipteses incompletas. O tratamento destashipteses, que renem desiguais facetas da vida urbana, exige que odiscurso analtico assuma um carater tentativo, fortemente apoiado naintuio.

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    Hoje, esse tipo de discurso mais urgente, pelas formas assumidaspelo capitalismo nos pases perifricos. Nestes pases, que nocomandam a economia na escala mundial, a mudana acontece demaneira mais rpida e descontrolada (SANTOS, 1993), destruindoelementos da ordem urbana e criando uma espcie de efervescncianas cidades dotadas de caractersticas excepcionais. A cidade do Rio deJaneiro, por ter abrigado a corte portuguesa e ter sido a capital polticado pas durante um largo perodo histrico, possui estas caractersticas,reunidas numa localizao geogrfica extraordinria. A cidade apresenta,portanto, elevada densidade simblica, amplificada pelo abrigo de funesculturais relevantes e pela difuso de imagens-snteses que permitiramo reconhecimento de sua raridade (RIBEIRO, 1996). So algumas destasimagens-snteses: Rio capital cultural, Rio cidade aberta, cosmopolita.Estas representaes somadas a outras relacionadas falta de regrasna vida diria e exposio do corpo e da sensualidade fazem dacidade um n propcio ao funcionamento das redes de atividadeseconmicas e formas de cooperao da modernidade tardia.

    A cidade cosmopolita, a cidade aberta, a cidade cenrio tem sidoadaptada a arranjos econmicos que se apropriam de acmulossimblicos desigualmente distribudos na paisagem. Estes acmulosresultam de investimentos culturais pretritos, da consolidao de hbitos,da inventividade popular e da produo artstica com reconhecimentointernacional. reas da cidade, monumentos naturais e artificiais, corpose gestos transformam-se em focos (ou nichos) da acumulao primitivade capital simblico. A apropriao do passado acontece de forma maisou menos sutil, envolvendo desde a adoo de espaos pblicos porempresas privadas at processos, mais diretos e violentos, de controledo patrimnio coletivo, como exemplificam: a segurana privada, naspraias da cidade, a servio de redes hoteleiras; os negcios particularescriados em equipamentos culturais mantidos com recursos pblicos ou,ainda, as prticas esportivas que determinam os usos de bens naturaiscom elevada veiculao na mdia internacional.

    Sem dvida, a operao mercantil em torno do carnaval do Rio deJaneiro oferece o melhor exemplo de acumulao primitiva de capital

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    simblico. O carnaval do Rio j era um grande espetculo antes que aespetacularizao se transformasse em diretriz da nova gesto urbana(JACQUES, 2004). Da mesma forma, a exposio do corpo e aproximidade com a natureza j pautavam a imprensa e os hbitos antesque o imprio da imagem fosse nutrido pela nudez ou pela ecologia. Ahistria da cidade guarda, assim, pouqussima relao com Barcelonaou Curitiba, estas cidades paradigmticas do planejamento urbano damodernidade tardia. Muito mais do que estas cidades, o Rio de Janeirooferece uma instigante oportunidade de reflexo crtica da manipulaomercantil de capital simblico. O carnaval oficial do Rio transformou-se,nas ltimas dcadas, numa promoo corporativa que verticalizaatividades econmicas. O carnaval corporativo, que no esgota a festa,associa a histria popular do samba mdia, a empresas do mercadoglobalizado e a celebridades (ricos e famosos). Num mundo capitaneadopela aliana entre capital financeiro e capital simblico, o Rio de Janeirooferece-se como estudo de caso para a observao de tendncias quese reproduzem, com menor intensidade, noutras metrpoles perifricas.

    Acumulao primitiva de capital simblicoSo muitos os processos associados acumulao primitiva de capital

    simblico. Estes processos demonstram a existncia de uma slidaarticulao entre: internacionalizao de reas da cidade; criao de barreirasao interclassismo e aumento da desigualdade social. A ao estratgicadirigida a este tipo de acumulao envolve a apropriao da vida espontneado lugar, atravs de sua reificao e espetacularizao, e do patrimniohistrico (SILVEIRA, 2004). Depende, assim, de prticas promocionais(RIBEIRO, 1995) que, ao serem altamente seletivas, permitem amercadorizao da cultura e o domnio, ainda que circunstancial, de prticassociais e memrias coletivas. As aes que visam a acumulao primitivade capital simblico interferem na leitura do espao herdado e noimaginrio urbano, impedindo a presena popular em reas escolhidaspara abrigo da frente transescalar de atividades que alimentam o mercadoglobalizado.

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    Nessas reas, o protesto admitido; porm, desde que mobilizeas classes mdia e alta como as bandeiras globais ou as inovaescomportamentais. Assim, implicitamente recusado, nestas reas, oprotesto contra a violncia sofrida pelos mais pobres ou as mobilizaespor melhores condies de vida. Em verdade, mudanas no imaginriourbano constrem um mapa da cidade confeccionado sob a influnciado cdigo da nova gesto urbana. Este cdigo, com o apoio da mdia,constroi o consenso que filtra as aes admissveis em cada rea dacidade. Em realidade, este consenso poderia ser melhor denominado depacto de convenincia, pois permite, para alguns, a mobilidade socialascendente e a projeo internacional. Este um pacto ps-polticoque inclui ambies eleitorais mas, renega a concreta disputa de projetosalternativos para a cidade.

    As inovaes tecnolgicas, que permitiram aos pases centrais asuperao da crise econmica iniciada nos anos 70, valorizaram o capitalsimblico. Basta observar, nesta direo, o poder conquistado pela mdiae o dinamismo do denominado mundo fashion. O capital simblicoganhou grande autonomia nos circuitos da acumulao, dada aimportncia da informao, transformada em imagem, na realizao dolucro. A fora do capital simblico manifesta-se na incluso da culturana valorizao de investimentos econmicos; no crescimento do nmerode firmas dedicadas ao marketing; na expanso dos servios relacionados embalagem imagtica de produtos; na venda de estilos de vida noscircuitos mais avanados do consumo; na nfase na aparncia frente aoutros elementos, menos evidentes, das identidades sociais; na produomonitorada do corpo pelos novos servios; na espetacularizao de reasurbanas, em conexo com metas da indstria cultural (espaos cuturais,centros de exposio, promoo de eventos com grande capacidade deatrao de consumidores). As novas tecnologias e o excesso de informaoparecem ter gerado, ao mesmo tempo, a adeso ao produtivismo e aacelerada disputa de acervos simblicos.

    O domnio do meio geogrfico criado pelas tecnologias de informaoe comunicao permite s empresas que atuam na esfera simblicacrescente poder na diviso intracapitalista do lucro. Afinal, aqueles que

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    detm o controle da esfera simblica responsabilizam-se pelacondensao, num determinado tempo e lugar, de uma complexa emutante constelao de iniciativas empresariais, fatores de produo eformas de trabalho. Na atualidade, a influncia do capital simblico nodecorre apenas da sua capacidade de dirigir o consumo mas, tambm,de sua capacidade de organizar uma produo instvel, realizada emfronteiras indefinidas. Mudanas nas formas de produzir e consumir,estimuladas pelo capital financeiro, alargaram a arena da produo egeraram incerteza. O controle da incerteza, que indispensvel a todasas fraes capitalistas, exige a criao de imagens compartilhadas dofuturo prximo, orientadoras da cooperao entre firmas e, porconseguinte, canalizadoras dos investimentos que asseguram a realizaodo lucro global.

    Convm enfatizar que de parcela desse lucro que alguns difusoresda nova gesto urbana afirmam que podem ser obtidos os recursosnecessrios sobrevivncia das grandes cidades perifricas (BORJA;CASTELLS, 1998). Porm, acreditar na generalizao desta possibilidadesignificaria ignorar que a competitividade entre lugares constitui um dosprincipais motores da acumulao. A dialtica construo destruio,que caracteriza o capitalismo, assume outras caractersticas com oempresariamento da esfera simblica: imagens so construdas,consumidas e destrudas, numa permanente (des)territorializao daciranda especulativa que produz lucro, prestgio e poder. A nova posioocupada pelo consumo, como sabemos, no subordinou a produo snecessidades do consumidor mas, sim, ampliou a interveno dasempresas privadas na administrao da cidade e na psicoesfera doslugares (SANTOS, 1996). Diferentemente do esprito do lugar ou dognio do lugar, a psicoesfera, para Milton Santos, relaciona-se tecnoesfera, aos sistemas de engenharia que modificam as bases tcnicasdas atividades econmicas e da ao social. A psicoesfera, elaborada poragentes que controlam a informao, facilita a culturalizao doplanejamento urbano (VAZ, 2004) e a apropriao privada de acmulossimblicos criados ao longo da histria dos lugares.

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    Eventos, espetculos e lucroSo exigncias atuais da acumulao urbana: inovar ininterruptamente;

    desvelar acervos de espiritualidade, como indicam a literatura de auto-ajudae os eventos esotricos; gerar hbridos culturais surpreendentes; buscaroriginalidade e oferec-la a consumidores vidos por experincias excitantes;descobrir talentos em lugares inesperados, ampliando o valor da novarevelao. Atravs do aumento da competitividade (SANTOS, 2000) entrelugares, firmas, grupos sociais e indivduos cria-se o produtivismo urbano,que viabiliza a simbiose entre lucro e prestgio. Nesta conjuntura, osadministradores locais so estimulados a oferecer a cultura urbana e opatrimnio histrico para o mercado, ainda que esta oferta seja ocultada pordiscursos eruditos que afirmam a sua inspirao em promissoras experinciasestrangeiras. Legitimada atravs de noes neutras, do tipo parcerias pblico-privadas, a ao considerada eficaz permite a fragmentao do espao urbano,atravs da criao de barreiras sociais visveis e invisveis, e a implementaode polticas pblicas que geram intolerncia e interrompem o dilogointerclassista espontneo. Cabe salientar, neste momento, que este dilogo,agora enfraquecido, constitui um dos elementos mais relevantes dasingularidade do Rio de Janeiro, como demonstra a riqueza da msicacriada na cidade.

    Os mega espetculos organizam a absoro lucrativa daefervescncia urbana. A natureza simblica desta efervescnciatransparece, por exemplo, na transformao da roupa e do corpo emprodutos raros ou obras de arte. Atravs dos mega espetculos, sodefinidas frentes transescalares de trabalho que unificam, por um curtointervalo de tempo, o trabalho do arteso, a f do lder religioso ou otalento do cantor popular s agncias de viagens, s lentes dos fotgrafosmais famosos, s passarelas da moda e, por ltimo, aos centrosfinanceiros da economia globalizada. Recorde-se, nesta direo, os trajesde inspirao afeg exibidos, h pouco tempo, nas passarelas das cidadesglobais ou a mandala de areia jogada ao mar ao trmino de sua exibionas ramblas de Barcelona, durante o Frum Cultural Mundial de 2004.A transitoriedade e o bric-a-brac cultural caracterizam as feiras mundiaisda atualidade, abrigadas nas transparentes superfcies da arquitetura de

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    griffe. Estas feiras substituiram as feiras do perodo de hegemonia docapital industrial, assim como, os imperadores, os reis e os cientistasforam substitudos por celebridades do mundo globalizado.

    Para a realizao bem sucedida dessas feiras, a cidade transformada em vitrine e em fbrica de bens e servios de consumoimediato. Vende-se cultura, traduzida na presena de artistas eintelectuais famosos; em smbolos de campanhas politicamente corretas;na beno de sacerdotes de religies desconhecidas e em experimentosdas ltimas inovaes tcnicas. Estas condies da acumulao urbanacontempornea explicam a mercadorizao da cultura e de identidadessociais e, portanto, a transformao, reconhecida por Nestor GarciaCanclini (1983), do tnico no tpico. Estas condies explicam, tambm,a aceitao alcanada pelo empreendedorismo urbano (HARVEY, 1996;COMPANS, 2005). O discurso que difunde novos iderios para a gestourbana, realando o mercado e a iniciativa empresarial, no deve sercompreendido, apenas, como sinal de alienao. Concretamente, estediscurso defende interesses que conectam a vida urbana ao metabolismodo capital. Hoje, menos equivocado, do que em perodos histricosanteriores, considerar a cidade como uma empresa ou uma mercadoria.Afinal, qualquer um dos seus segmentos pode ser incorporado mesmoque somente como fotograma a produtos (materiais e imateriais) damodernidade tardia.

    Cenrios, celebridades e celebraesMudanas na ao social surgem na sucesso de conceitos,

    propostos pelas cincias sociais, para a interpretao das relaes entreindivduo e cidade. Do ngulo da cidade, a arena do pensamento polticomoderno, o espao pblico, tem sido refeita atravs da festa, do show,de gestos e smbolos de rpida decodificao. Esta mudana encontra-se registrada em noes que substituram a arena poltica, tais comocenrio e palco. Do ngulo da ao, noes distantes da problemticamais ampla do sujeito social indicam o teor do ativismo urbano, taiscomo ator e, por fim, protagonista. Estas mudanas conceituais refletem,ainda que indiretamente, a atual relevncia do capital simblico. Disputa-

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    se parcelas desta forma especfica de capital nos jogos sociais queatualizam o cotidiano urbano, como demonstra a luta por oportunidadesde estar na mdia, ou melhor, de aparecer. Assim, estas mudanasconceituais no so equivocadas. Julgamos, apenas, que no abrangemos movimentos da totalidade concreta (KOSIK, 1967). A seletividadeque particulariza a modernidade tardia, nas cidades perifricas, surgeem vetores que criam, como props Milton Santos (1994), reasluminosas, marcadas pela rigidez do seu controle, e reas opacas, quepossibilitam a precria sobrevivncia dos mais pobres e dos annimos.

    Atualmente, a conquista da hegemonia afasta-se de promessas deintegrao social e igualdade. Substituem estas promessas, sedutoraspseudo totalidades sociais, ou melhor, estilos de vida alimentados por sabertcnico, espiritualidade e cio. Nas prticas de classificao social oriundasda aliana entre capital financeiro e capital simblico, a ideologia do corpoapresenta afinidade eletiva com produtos da modernidade tardia: arquiteturaps-moderna e objetos de alta densidade tcnica. A adeso ao artifciocria a iluso de que o consumidor domina a tecnocincia e, logo, o futuro.H, assim, um encantamento pelo produto que exibe preciso digital ecapacidade de materializar, para o indivduo, a potncia da economiaglobalizada.

    Alis, a exibio da tcnica colabora na associao, nos megaespetculos, entre indstria, capital financeiro, incorporao imobiliriae promoo de personas e lugares. Trata-se, realmente, de um ativismoprodutivista, que envolve segmentos influentes das classes mdias ealtas. Estas classes, ao desvendarem para si oportunidades de prestgioe lucro, colaboram na organizao do intercmbio entre mercadoglobalizado, eventos e histria da cidade. Formam-se, atravs desteintercmbio, os atratores de impulsos globais (RIBEIRO; SILVA, 2004).Ao mesmo tempo, transfere-se, economia dos pases centrais, partedo lucro gerado pela apropriao da singularidade dos lugares. Com osvetores da ltima modernidade, emerge, no Rio de Janeiro, um novotipo de interclassismo, diferente daquele de dcadas anteriores orientadopara a conquista de direitos sociais no espao pblico. O novointerclassismo marcadamente econmico e empreendedorista, mesmo

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    quando envolve a arte, o artesanato tradicional e a caridade. De fato, oempreendedorismo urbano construiu um novo tipo de empresrio nomago das prprias classes dominantes, que conseguem, por seremherdeiras de uma sociabilidade transnacional, estimular a roda daeconomia globalizada.

    Celebridades e celebraes atraem impulsos globais e atualizamacervos culturais. Nos mega espetculos, atinge o auge a aplicao detcnicas financeiras, informacionais, arquitetnicas e administrativas que possibilitam o lucro no presente e no futuro, sendo o lucro futurogarantido por bens e servios que estendem a durao dos eventos. Aextenso do presente ao futuro prximo cria, juntamente com o calendriode eventos de cada cidade, a previso necessria acumulao em suaatual fisionomia. A previso de investimentos tambm orientada pormudanas no espao fsico e no mercado de trabalho, cada vez maiscolado cooperao estimulada na modernidade tardia. Nos atuaisconfrontos simblicos, so atualizadas ou superadas formas histricasde exerccio do poder. A incluso instrumental da cultura resulta emuma espcie de hiper-racionalidade que, ao dessacralizar a poltica, responsvel pela formao de uma espiral ascendente de investimentossimblicos que mesclam economia e poltica. Instaura-se uma vidabusca por referentes culturais raros, que favoream a apropriao doespao herdado. Os espaos luminosos do presente so aqueles queforam historicamente construdos para as classes dominantes mas,tambm, alguns lugares populares com elevada densidade simblicapor constituirem beros reconhecidos da cultura popular. So estesespaos que sustentam a retrica que legitima a acumulao urbana.Esta retrica, apoiada na esttica, surge na espetacularizao do que j espetacular; na atualizao do que, at ontem, j era atual; naracionalizao da prpria ao racional dirigida a fins.

    Estas tendncias correspondem disputa, entre lugares, poroportunidades de verticalizao das frentes de atividades que sustentama acumulao. O sucesso nesta disputa depende de diferentespropriedades do lugar. So algumas destas propriedades: (a) acapacidade de atrair, pelo maior tempo possvel, a ateno da mdia

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    mundial; (b) a capacidade de operar mecanismos sociais que atribuamprestgio a personas, firmas, produtos e marcas; (c) a capacidade dereunir os muito ricos e famosos, que encontram, no lugar, condiesfavorveis sua prpria promoo e dos interesses que representam;(d) a capacidade de agilizar a organizao transescalar de atividadeseconmicas. A articulao entre estas propriedades facilita a acumulaoprimitiva de capital simblico e o crescimento deste capital, agilizando asua incorporao noutras formas-aparncia do poder.

    Os impulsos globais que atingem a cidade de um pas perifricosubmetida a longo processo de involuo urbana (SANTOS, 1990), como o caso do Rio de Janeiro, criam excepcionais oportunidades deacumulao primitiva de capital simblico. Esta tendncia aparece nosseguintes processos: (a) uso instrumental da administrao pblicapara realizao de investimentos que organizem a vida espontnea dacidade em direo realizao do lucro global; (b) subordinao davida espontnea a imposies da economia globalizada, alterando hbitos,costumes e formas tradicionais de uso do espao urbano; (c) estigmatizao dos mais pobres e proibio de sua presena nos espaospreparados para a recepo de impulsos globais, garantindo a acumulaode capital simblico apenas aos agentes da nova ordem urbana; (d) subremunerao do trabalho das classes populares, quando envolvidasna frente de atividades que realiza a acumulao urbana; (e) entregade bens naturais e culturais aos comandos do mercado globalizado.

    Por fim, cabe enfatizar que os processos elencados neste textoresultam de hipteses incompletas, como antes afirmado. Portanto,este apenas um discurso experimental e intuitivo sobre tendnciasrecentes, construdo a partir do laboratrio oferecido pelo Rio de Janeiro.Este discurso tambm reflete preocupao com o exerccio do poder nacena urbana. Afinal, como disse Bertrand Russel (1979): Enquanto osanimais se contentam com a existncia e a reproduo, os homensdesejam tambm expandir-se, e os seus desejos quanto a isso solimitados apenas pelo que a imaginao sugere (p. 8). Num perodoem que a tecnocincia promete a ubiqidade e no qual a busca destatus coaduna-se com a acumulao primitiva de capital simblico,

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    corre-se o risco de que o exerccio do poder absorva a violncia nasrelaes sociais cotidianas, estimulando a competitividade e os usosapenas instrumentais do espao herdado. A apropriao estratgica decapital simblico tem limites, por mais inventivos que sejam os gestoresurbanos. face a estes limites que convm recordar o ditado popularque diz que: fcil comer o queijo rapidamente, o difcil e o demorado faz-lo.

    Referncias bibliogrficasReferncias bibliogrficasReferncias bibliogrficasReferncias bibliogrficasReferncias bibliogrficas

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    VAZ, Lilian Fessler. A culturalizao do planejamento e da cidade. CadernosPPG-AU/FAUFBA, Ano 2, nmero especial, 2004.

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    Cidades e Cultura:rompimento e

    promessa

    Ana Fernandes

    A mercantilizao da vida urbana e da cidade um fenmeno delonga durao e tem constitudo, de diferentes formas, a sua histriadesde a chamada cidade antiga. O capitalismo aprofunda, intensifica egeneraliza esse processo, sendo caracterstica da cidade moderna a suaproduo enquanto valor de troca (LEFBVRE, 1991). Produzir localizaes de forma mercantil, crescentemente combinada no perodocontemporneo forma corporativa sintetiza essa maneira de gerar eexpandir cidades, concentra um conjunto de valores de troca superpostosno espao e insere pessoas e atividades numa determinada divisoeconmica e social do espao (LIPIETZ, 1974).

    A mercantilizao da cidade enquanto objeto cultural, no entanto, bem mais recente, com desenvolvimento acentuado nos ltimos 20anos e vinculada emergncia de novos e complexos processos de

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    acumulao1. A generalizao da urbanizao entendida enquantoampliao dos diversos circuitos de cooperao sobre o territrio (SANTOS,1985) , da mobilidade e da culturalizao dos processos e dos objetos constituinte desse novo momento, recorrentemente identificado comode globalizao da economia e da sociedade. Desse modo, ganha forae se amplia uma nova fronteira de explorao, de produo e deapropriao de riqueza: a esfera material e imaterial da cultura. A partirsobretudo dos anos 90, culturaliza-se o mundo, ou seja, de forma genricae indiferenciada, tudo vira objeto ou expresso de cultura2.

    Em termos urbanos e urbansticos, a questo no diferente. Acidade, seu espao e seus processos so intensamente culturalizados ea referncia cultura passa a reger, justificar e legitimar um conjunto deintervenes que podem ser completamente antagnicas em termos deproduo de sentidos ou em termos de perspectivas sociais. Essaculturalizao generalizada carrega consigo um paradoxo. Por um lado,ela permite o afloramento de novas e instigantes realidades, pois aexistncia assim como o interesse por particulares formas de inserono mundo vem-se legitimados. Por outro lado, se desenvolve umempobrecimento acelerado de perspectivas, na medida em que amercantilizao avassaladora da cultura a hegemonizou, instrumentalizoue banalizou.

    Nosso objetivo nesse texto o de discutir essa relao que maisrecentemente vem sendo construda entre cidade e cultura. Para tanto, econsiderando o carter ainda preliminar dessa reflexo, dividimos nossasconsideraes em duas esferas: aquela que pode ser considerada comode rompimento, ancorada nos processos hegemnicos de produo dacidade enquanto objeto cultural mercantilizvel e/ou corporativo; e aquelaconsiderada como promissora, voltada para a identificao dos processoscontra-hegemnicos em operao na cidade. Embora compondoformalmente um esquema dual (o que se v reforado pelos descritorescontemporneos da realidade urbana emprica renda, acesso aos bens eequipamentos pblicos, direitos de cidadania), as esferas apontadas soconceitualmente hbridas, pois constitudas por reas de nitidez, opacidade,sombreamento, superposio e indefinio, nelas e entre elas.

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    A cidade e a Cultura como rompimento

    1. o presente como rupturaA acelerao do tempo e a compresso do espao (SANTOS, 1996;

    HARVEY, 1992) so fenmenos constituintes das transformaes scio-espaciais das ltimas dcadas. Ao caracterizar o presente, eles compemtambm uma alterao significativa na relao da sociedade com o seupassado. Segundo Nora (1993), o presente passa a ser vivido comoruptura em relao ao passado. Simetricamente em relao ao novofuturo invisvel, imprevisvel, o passado tambm passa a ser invisvel,radicalmente outro, mundo do qual estamos desligados para sempre.Ou seja, na mesma medida em que a crise da modernidade colocou emxeque a idia de evoluo para um destino conhecido, para um futuroantecipadamente formulado, o presente, ou o futuro do pretrito, comsuas caractersticas e valores particulares e mutantes, no se apresentamais como desdobramento do passado, mas como algo que dele sediferencia de forma radical. Portanto, os vnculos de inteligibilidade como passado e os vnculos de sociabilidade que o mantinham tornam-sefrgeis e escasseiam, moldando um processo de aguda presentificaodo tempo e de descolamento seqenciado de referncias e de tradies,ou de memria coisificada, transformada em exterioridade da vida social.

    Nesse sentido, pode-se falar de uma colonizao do tempo, emdois sentidos. Por um lado, atravs de sua fragmentao e multiplicao,estende-se a utilidade do tempo dirio, com suas conseqncias diretassobre os regimes de trabalho de prontido, instveis e desigualmentedistribudos , os regimes de propriedade passa-se a ser dono de fraesde tempo no espao , os regimes de consumo consumo em todos osmbitos (privado ou coletivo), e em todo o tempo (no h mais limitetemporal para o consumo) , bem como sobre os regimes de mobilidade circula-se por (quase) todo o espao. Por outro lado, a colonizao dotempo histrico enquanto objeto de consumo cultural se alia existnciaampliada dos suportes (ou prteses) de memria, condio para que opassado possa tambm adentrar a linha de produo.

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    Decorre da uma extenso ocenica do tempo e da cultura, os quais,com seus contedos reduzidos a repertrios e objetos, revelam-se passveisde apropriao pelos circuitos mercantis. Dito de outra forma, faz-sepossvel transformar esses valores de uso em valores de troca, numaoperao de abstrao e esvaziamento de contedos e de reproposiode significados, tornando-os equivalentes entre si e possibilitando suaampla circulao e consumo. Disponibilizam-se assim, nos equipamentosculturais que se multiplicam aceleradamente museus, galerias, centrosde memria mas tambm nos circuitos menos culturalizados deconsumo shopping centers, supermercados, mercados extensesde histria cada vez mais impressionantes, da vida social e poltica aosobjetos de arte, das tradies populares culturalizao/historicizaodos objetos corriqueiros do cotidiano. A didatizao da apreenso desejadae de seus significados uma reedio empobrecida do desencantamentodo mundo weberiano constitui o corolrio de todo esse processo, comexplicaes cada vez mais detalhadas de como as coisas devem serentendidas. Realismo e pragmatismo se combinam para exorcizarqualquer tentativa de pensamento disruptivo ou de inquietao comrelao ao presente.

    As cidades, em seu novo lugar estratgico de celebrao desenfreadada competitividade e do consumo material e imaterial a elasconvenientemente atribudo pela poltica e pela gesto neoliberais ,tornam-se a expresso privilegiada desse rompimento.

    2. fratura da cidade e da cultura urbanaA forma de produo das cidades3 alterou-se significativamente no

    perodo recente. Duas caractersticas importantes devem ser ressaltadas:em primeiro lugar, nas metrpoles consolidadas, a expanso deixa deser majoritariamente por extenso e passa a ser por reocupao. Opreenchimento quase por inteiro dos permetros das cidades em quepese a permanncia acentuada, em casos como o brasileiro, de grandesvazios urbanos especulativos aliado perda de funcionalidade de grandesreas industriais, ferrovirias, porturias, militares conduz a um novociclo de ocupao, realizado por superposio ou por arrasamento. Em

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    segundo lugar, em termos dos agentes sociais de sua produo, os nveisde acumulao, de concentrao e de centralizao de riquezas no setorprivado possibilitaram a emergncia de projetos corporativos de produode cidades. Essas formas hegemnicas de organizao atuam paralelae simultaneamente ao setor pblico, em estreita sintonia com osprocessos de definio das polticas e prioridades de interveno nascidades. Essa constatao levou Santos (1990) a definir a metrpolecorporativa como sendo aquela voltada essencialmente soluo dosproblemas das grandes firmas e considerando os demais como questesresiduais. A essa definio, construda a partir da captura do poder pblicopelo interesse corporativo privado, poder-se-ia agregar o prprio processode p