Corporalidades dos discursos de memórias e identidades em “joana mil estórias”

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Corporalidades dos discursos de memórias e identidades em “Joana mil estórias” Marcos Antônio Alexandre (Faculdade de Letras – CNPq) IA HAVER A FESTA. Naquele lugar – nem fazenda, só um repôsto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais, onde o cheiro dos bois apenas começava a corrigir o ar áspero das ervas e árvores do campo-cerrado, e, nos matos, manhã e noite, os grandes macacos roncavam como engenho-de-pau moendo. Mas, para os poucos moradores, e assim para a gente de mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas, seria bem uma festa. Na Samarra. (ROSA, 1960, p. 84) Uma paisagem que se autoprojeta no imaginário do leitor-espectador 1 , convidando-o a ser copartícipe das estórias/histórias que são trazidas pelas palavras/imagens de Guimarães Rosa. Assim, adentrar o universo rosiano é despir-se de qualquer possibilidade de autocrítica e se permitir imergir num espaço onírico 1 Leitor-espectador, pois, em minha leitura, a narrativa de Guimarães Rosa extrapola o campo textual, o espaço da letra, e inaugura um campo imagético, um espaço da [para a] cena. O texto nos apresenta um ambiente de imagens, uma cartografia imagética que reúne uma rede múltipla de linguagens, sonoridades, emoções.

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Corporalidades dos discursos de

memórias e identidades em “Joana

mil estórias” Marcos Antônio Alexandre (Faculdade de Letras – CNPq)

IA HAVER A FESTA. Naquele lugar – nem fazenda, só um repôsto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais, onde o cheiro dos bois apenas começava a corrigir o ar áspero das ervas e árvores do campo-cerrado, e, nos matos, manhã e noite, os grandes macacos roncavam como engenho-de-pau moendo. Mas, para os poucos moradores, e assim para a gente de mais longe ao redor, vivente nas veredas e chapadas, seria bem uma festa. Na Samarra. (ROSA, 1960, p. 84)

Uma paisagem que se autoprojeta no imaginário

do leitor-espectador1, convidando-o a ser copartícipe das

estórias/histórias que são trazidas pelas

palavras/imagens de Guimarães Rosa. Assim, adentrar o

universo rosiano é despir-se de qualquer possibilidade

de autocrítica e se permitir imergir num espaço onírico

1 Leitor-espectador, pois, em minha leitura, a narrativa de Guimarães Rosa extrapola o campo textual, o espaço da letra, e inaugura um campo imagético, um espaço da [para a] cena. O texto nos apresenta um ambiente de imagens, uma cartografia imagética que reúne uma rede múltipla de linguagens, sonoridades, emoções.

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que nos leva ao encontro de nossas memórias mais

remotas, ao recôndito dos lugares perdidos no tempo e

no espaço.

Qual o lugar da memória na nossa

contemporaneidade? Onde são [estão] corporalizadas as

estórias/histórias que nos levam à restauração dos

espaços de linguagem, ao encontro de nossas

identidades. Identidades essas que são recompostas, que

recebem novas camadas, que vão sendo delineadas ao

longo da existência dos sujeitos. O tempo, neste contexto,

ainda que sempre efêmero, se transforma na

possibilidade efetiva de autoconhecimento, de rever e

observar como vamos adquirindo novas instâncias de

preenchimento de lacunas que são inerentes a cada um

de nós enquanto indivíduos incompletos que necessitam,

de alguma forma, acessar as memórias pessoais e

coletivas para que se mantenham vivos.

Reminiscências de memórias, rastros de discursos,

sonoridades plurais e ecos de vozes perdidas e

reencontradas em cada traço de tessituras verbais e orais,

encontros com a oralidade, histórias que se entrecruzam

e nos conduzem a um espaço do encantamento, um

lugar onde as palavras têm gosto, têm sabor de terra,

cheiro de mato, de ervas, onde o vento canta e sua

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cantiga traz histórias do Outro que faz parte de nós, que

nos completa e faz ressignificar as nossas próprias

histórias. Esses e outros pontos de confluências

aparecem nas narrativas de Guimarães Rosa. Há um

lugar do discurso e das palavras individuais que são

coletivizadas por meio dos relatos rosianos, que se

tornam múltiplos ao irem ao encontro dos quereres, que

ecoam na letra e música de Sérgio Nicácio, “Joana mil

estórias (Joana e o velho)”:

Joana mil estórias (Joana e o Velho)

Joana tem os pés nos ares Joana veio para a Festa quando desata a cantar A festa santa Capela Perpetuo Socorro Canta conta mil estórias de todos Conta canta mil estórias, Joana O fôgo, Gente! A roda. Vamos, gente, quem tá faltando? Agora era a vez do Velho Joana quando a lua cheia Seu Camilo é contador! Já nem é tão velha(o) assim Pruxe, Maçarico, venham Zito, Zazo! Dona Leonísia

chama seo Vevelho e os filhos,com a Sanfona!

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Senta seo Chico! toca a estória Seu Camilo será que o senhor não teria por acaso uma estória por contar... “Quando tudo era falante Seo Camilo estava em pé no meio de tudo No meio da roda no meio de todo e o que ele tinha Sertão A voz o senhor que fala a lei do mundo... a lei do sempre “Quando tudo era falante no meio do todo o centro de tudo: o Sertão a lei do mundo... ... Veio gente de todo mundo, todo canto o rio correndo eterno será possível no meio da noite o rio secar o riachinho? O boi cantando, o boi bonito com voz de fada moda redobrada ...

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“Quando os instrumentos vão se encostando depois da dança e da festa depois da Santa da Capela Joana e o velho numa cafúa seria possível? - Seu Camilo, a estória! - Seu Manuelzão, a Festa! Ser dono de algo ser dono de quê? ser dono implica ilusão Joana perto do fôgo Nossa Senhora do Perpétuo Socorro O velho Camilo já sabe já está pronto ao retorno a gente só volta ao Pai sem nada ... “Ia haver a Festa. Naquele lugar!” (Aboio) dentro de três dias a boiada vai sair! - (Cantadores: “Ia com a boiada. Ao Deus dará”)

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A melodia de Sérgio Nicácio revisita o universo rosiano

em sua/minha/nossa “Uma estória de Amor” e, por sua

vez, nos convida a revisitar cada recanto de sua

escritura. A temática da festa amplia a questão do tempo

e do espaço, inaugurando uma dilatação no

entendimento e nos significados destes termos. Há a

proposição de um jogo entre a poesia e a ressignificação

de cada personagem, das paisagens bucólicas, das

falas/sentimentos que buscam romper qualquer

possibilidade de silêncio e de melancolia. A música

possibilita que repensemos a “função griot”, trazendo

para a “cena” distintas tessituras de relatos que vão

dando colorido a cada verso, à melodia. A figura do

grande Contador de Histórias aparece em pequenos

fragmentos que são recortados e transfigurados a partir

da narrativa da “Festa de Manuelzão”. O contador –

mediado pela[o] letra/músico/melodia – traz à vista e

aos sentidos cenas que possibilitam que cada sujeito

volte para si mesmo e busque em si lugares em que as

estórias possam reverberar.

Nas palavras de Guimarães Rosa, a personagem

Joana Xaviel, apesar de renegada e até mesmo evitada

pelos seus conterrâneos, encanta com suas estórias que

transmitem repulsa, sedução e encantamento:

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Joana Xaviel fogueava um entusiasmo. Uma valia, que ninguém governava, tomava conta dela, às tantas. O rei velho rei segurava a barba, as mãos cheias de brilhantes em ouro de anéis; o príncipe amava a môça, recitava carinhos, bramava e suspirava; a rainha fiava na roca ou rezava o rosário; o trape-zape das espadas dos guerreiros se danava no ar, diante: a gente via o florear das quartadas, que tiniam, esfaiscavam; ouvia todos cantarem suas passagens, som de voz de um e um. Joana Xaviel virava outra. No clarão da lamparina, tinha hora em que ela estava vestida de ricos trajes, a cara demudava, desatava os traços, antecipava as belezas, ficava semblante. Homem se distraía, airado, do abarcável do vulto – dela aquela: que era uma capiôa barranqueira, grossa rôxa, demão um ressalto de papo no pescoço, mulher praceada nos quarenta, às todas unhas, sem trato. Mas que ardia ardor, se fazia. Os olhos tiravam mais, sortiam sujos brilhos, enviavam. (ROSA, 1960, p. 102)

Joana é mulher de estórias, é mulher que seduz não só

por meio de seu corpo, mas através das palavras –

“Joana Xaviel sabia mil estórias. Seduzia.” (ROSA, 1960,

p. 105). Dessa forma, suas estórias trazem ligação com “o

antigo”, com os ancestrais, com os imaginários que

povoam a vida de cada sujeito que habita a região: o

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poder da festa, o encontro com o divino, que é reificado

a partir da festa de Nossa Senhora da Capela.

Se o mote da narrativa é a festa; posso reiterar que

também na melodia, proposta por Serginho, esta mesma

festa é sinônimo de rememoração, de resgate e

manutenção de uma tradição que está incorporada nas

identidades dos sujeitos que têm alguma ligação com o

“sertão”, com os interiores das Minas Gerais, tão descrito

por Rosa (1960, p. 98): “Sertão. O lugar era bonito. O céu

subia mais ostentoso, mais avistado do que na Mata do

Oeste, azuloso com uns azinhavres, ali o céu parecia

mesmo o Céu, de Deus, dos Anjos.”

Festa, festejos, reinados e reisados, à religião são

integrados e sincretizados outros elementos que

integram a tradição cultural dos mineiros e que são

presentificados e personificados por meio da música,

tomando uma dimensão maior, ampliando os limites dos

traços da escritura. A festa é corporificada em cada

sujeito como um lugar de memória2: é festa de Nossa

2 Aqui entendido a partir das contribuições teóricas sobre História e Memória de Pierre Nora (1981, p.13): “Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não na memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversário, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebre, notariar atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de mémoria. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivessem ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que ele envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderrase

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Senhora da Capela, que nos remete a outros festejos

relacionados com o divino – as festas de Nossa Senhora

Aparecida, de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de

Santo Antônio, de São João, de Nossa Senhora do

Rosário, de São Benedito, de Nossa Senhora das Mercês.

É o festejo de Todos os Santos intermediados por uma

“estória de amor”, que, aqui, pode ser lida como um

mote perlocutório a partir do qual personagens como

Manuelzão, Joana e o velho Camilo, Leonísia, Adelço,

Chico Carreiro, João Urügem, entre outros, extrapolam o

relato narrativo e nos permitem aludir à questão dos

afetos que nos mantêm conectados com o nosso lugar de

enunciação – a cartografia territorial de Minas Gerais – e

com a vida.

Esses sentimentos, muitas vezes antagônicos,

esquecidos, evitados, cerceados, são revisitados pela

música de Serginho, cuja melodia nos convida a revisitá-

los, possibilitando, assim, que repensemos nossos

lugares de memórias, as identidades dos sujeitos que

habitam o universo rosiano e que, direta ou

indiretamente, se conectam com todos aqueles

indivíduos que nos tocam e que têm alguma ligação com

deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória.”

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o universo do campo, com os interiores de Minas Gerais.

Os espaços geográficos e ficcionais são amplificados

textualmente na narrativa de Rosa, como uma grande

rede de discursos. De igual maneira, a letra e a melodia

da música de Sérgio Nicácio exaltam ambiências plurais:

a festa, o jogo, o divino, o profano e o sagrado, a terra, o

árido, o sertão – espaço de estórias que são propagadas

pelo autor: “Sertão é dentro da gente”, “O sertão é do

tamanho do mundo”, “O sertão é sem lugar”, “O sertão

está em toda parte”. “O sertão é uma espera enorme”.

Tudo isso é lugar de memória. Se para Guimarães Rosa

“Minas são muitas”, para Sérgio Nicácio essas Minas são

lugares de encontro com o(s) Outro(s), com os afetos,

com as nossas identidades que buscam ser

corporificadas, reinterpretadas, revividas,

ressignificadas... É Minas em mim...

Referências:

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática

dos lugares. Trad. Yara Aub Khoury. In: Projeto História –

Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em

História do Departamento de História da PUC-SP. São

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Paulo: Pontifícia Universidade de São Paulo, 1981. p. 7-

28.

ROSA, João Guimarães. Uma estória de Amor (Festa de

Manuelzão). Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Livraria José

Olympio Editora, 1960. p. 84-152.