Cores do Atlântico

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Um trabalho de divulgação musical sobre as cantigas de amigo que oferece uma nova perspectiva do género mais autóctone da nossa lírica medieval, numa dupla dimensão: a interpretação teórica da catedrática holandesa Ria Lemaire Martens e a interpretação musical da canta-autora brasileira Socorro Lira. Ilustrado por Quique Bordell. O projeto nasceu no ano 2006 com o início da sua pesquisa sobre as cantigas de amigo aralelísticas, para edição de um CD com versões cantadas de parte desses textos conservados. Publica-se agora em formato livro-disco, em galego e em português, por Ponte...nas ondas! e Pai Música, na Espanha e em Portugal.

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textos de Ria Lemairemúsica de Socorro Lira

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Coordenação geral

Associação Ponte...nas ondas!Rua Rosalía de Castro, 6736450 Salvaterra de Miño

Texto de apresentação Camiño NoiaTexto livro Ria LemaireVersão galega Manuel Fernández / Santi VelosoCorreção Português Lourdes CaritaIlustrações cantigas Quique BordellMaquetação e desenho Pedro TelmoMaquetação edição portuguesa Pablo Casal

Edita PAI Edicións S.L. www.pai-musica.com

Contactos

Galiza www.pontenasondas.org / [email protected] www.socorrolira.com.br / [email protected]

ISBN 978-84-614-0085-0Depósito legal VG 394-2010

Impresso em Tilgrafica, Soc. Gráfica S.A.

© 2010 Ponte... nas ondas!. Todos os direitos reservadosEditado em Galiza em 2010

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Livro

Disco

I Era uma vez

II 16 cantigas musicadas no século XXI

III Desejo-anseio-primavera

IV Uma natureza mágica: a procriação

V Desejo e iniciativa

VI Sonhos acordados

VII O Doce alalá

VIII Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

IX Contrafacta

X Mudam-se os amores

XI A procura das raízes

I Amado e meu amigo

II Vamos, irmã

III Bailemos

IV São Simão

V Digas, Filha

VI E nas verdes ervas

VII Dance, Filha

VIII Foste, filha, no bailado

IX Levanta, amigo

X Pela ribeira do rio

XI Quantas souberem amar*

XII Ondas do mar de Vigo

XIII De bom parecer

XIV A mais bela

XV Lelia doura

Colaboracións

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indice

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Os meninos que participavam nas primeiras edições de Ponte…nas ondas!

admiravam-se de que, de qualquer das margens do Minho, pudesse surgir a

mesma solução para uma adivinha ou a mesma conclusão para uma lenda.

Essa descoberta tem funcionado, de forma recorrente, ao longo destes 15

anos de existência em que, gradualmente, se têm descoberto semelhanças

no território, nos cantares, nas danças, nas mezinhas, nas festas, enfim, no

Património Imaterial comum à Galiza, a Portugal e que, felizmente, partilhamos

com povos doutros pontos do mundo, por onde, ao longo dos séculos, fomos

passando e deixando pegadas.

Agora, que Ponte…nas ondas! já comemora 15 anos de actividades, parece

oportuno tentar leva-los – aos estudantes e a todas as pessoas interessadas

– a descobrir, de forma agradável, informal, despretenciosa e pela mão de

grandes artistas, um dos pontos de origem deste património comum e que é,

simultaneamente, um dos momentos mais altos da criatividade deste povo que,

neste canto noroeste da Península Ibérica, soube criar uma lírica tão própria

e de tal riqueza que passados 8 ou 9 séculos ainda é susceptível de nos en-

cantar.

É por isso que Ponte…nas ondas! tem o prazer de oferecer, nesta data tão

especial, um trabalho com o património cultural comum galego-português que

assenta em duas vertentes: a literária e a musical.

O Atlântico a banhar os sons da nossa fala...Cantos na maré ( Uxía )

O património comum

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CORES DO ATLÂNTICO é uma obra que une, na mesma proposta artística,

três continentes que partilham um mesmo património: a lírica medieval das

cantigas de amigo. Um tesouro que se procura transmitir, no século XXI, atra-

vés do sistema educativo e da novas tecnologias e do qual milhares de pes-

soas, por todo o mundo, continuam a aproximar-se com interesse.

Trata-se de unir com uns e de partilhar, com outros, o orgulho de termos her-

dado uma tradição oral única e que continua a ser referência obrigatória para

todos aqueles que por uma ou outra razão se interessam pela nossa língua e

pela nossa cultura.

Ponte…nas ondas! tem reivindicado o reconhecimento do património cultural

galego-português como uma marca de identidade que galegos e portugueses

partilhamos desde a origem e que, devido a fenómenos de colonização ou

migratórios, também faz parte da identidade de todos os países de língua por-

tuguesa.

A valorização do património imaterial galego-português implica um contexto

cultural no qual se desenvolveu uma identidade que tem a sua manifestação

basilar na língua comum. Um património comum que vindo da bruma dos tem-

pos se manteve inalterável para além das divisões políticas e que ainda hoje

conserva manifestações de uma unidade formal e de uma riqueza de expres-

sões que estendem por todo o território da antiga Gallaecia e que, como disse-

mos, daqui irradiaram para os mais distantes pontos do globo.

O Norte de Portugal e a Galiza caracterizam-se por compartir um território

com determinadas condicionantes ecológicas no qual convivem expressões

socioculturais semelhantes que conformam um território culturalmente muito

próximo e muito característico. A geografia e a ecologia do território têm condi-

cionado os seus habitantes não só nas formas de interpretação do seu univer-

so simbólico mas obrigaram-nos, também, a adoptar particulares estratégias

produtivas.

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A relação especial com o território impregnou as vivências das comunidades

e a apropriação do mesmo, por parte destas, constitui uma das características

mais identificadoras deste património cultural.

A lírica medieval galego-portuguesa, baseada na tradição oral – o meio em

que, na Idade Média, a cultura se transmitia – constitui uma manifestação que,

com novas formas, ainda se mantém viva no território de origem e aí apresenta

expressões de excelência. Esse património tem sido o motor dinamizador da

actividade de Ponte…nas ondas! junto das camadas mais jovens da população

desta Euro-região. Em todas as actividades desta Associação é patente a pre-

ocupação em divulgar, proteger, transmitir e valorizar um património único, de

que todos devemos envaidecer-nos e que, continuamos a acreditar, é merece-

dor do mais alto reconhecimento internacional.

É porque entendemos que a lírica galego-portuguesa é o primeiro “monumen-

to” universal deste património comum, que sentimos primeiro o desejo e depois

o orgulho de poder contribuir para a difusão e divulgação de algumas das com-

posições que constituem o corpus que chegou até nós desta manifestação tão

original, tão rica e tão autentica daquilo que fomos e que, em muitos aspectos,

ainda continuamos a ser.

É neste contexto que surge CORES DO ATLÁNTICO, que é bem a demons-

tração pratica dos ideais que perseguimos porque: aborda uma matéria que

é, ao mesmo tempo, origem e alto expoente dum património oral comum que,

vindo desde o século XII chega aos nossos dias; une os detentores originários

deste património e vários dos povos que com eles o partilham e resulta duma

conjugação de vontades de pessoas que, dispersas pelo mundo, sentem o

mesmo prazer e o mesmo gosto em partilhar este aspecto do seu património.

Essas vontades foram, essencialmente, as de Socorro Lira, a partir do Brasil,

a de Ria Lemaire, a partir de Poitiers e a de Ponte…nas ondas! a partir da

Gallaecia.

Nas redes deste património, que se estende pelo Atlântico estão, também, as

vontades e as vozes de Margareth Menezes, de Cida Moreira, de Caianas de

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Crioulos do Brasil, de Eneida Marta da Guiné-Bissau, de Teresa Paiva e de

João Afonso de Portugal e de Uxía e Leilía da Galiza.

São os olhos do Brasil que fazem a leitura e a interpretação musical destas

cantigas de amigo. É a música brasileira que recria uma expressão do nosso

/seu património cultural comum e fá-lo recorrendo a toda riqueza e variedade

rítmica e expressiva da voz de Socorro Lira que as interpreta e as partilha com

outras pronúncias e outras sonoridades.

O estudo sobre a interpretação do contexto sociocultural em que surgiram as

velhas cantigas, que no território eram interpretadas pelas mulheres, pertence

a uma erudita e prestigiada professora, Ria Lemaire, especialista em literatu-

ras de transmissão oral que, com o seu rigor e a sua sensibilidade, procura as

raízes mais profundas das composições que conhecemos sob a designação

de cantigas de amigo galego-portuguesas.

CORES DO ATLÁNTICO é também uma proposta plástica da autoria de dois

novos criadores: Anderson Augusto, de S. Paulo, que representa a mulher que

canta e cria as cantigas na margem do Atlântico. Quique Bordell, de Lugo,

dá-nos a sua leitura de cada uma das composições, através de magníficas

ilustrações que transmitem toda a modernidade do século XXI, às cantigas de

amigo.

A aproximação ao, e entre, o mundo da lusofonia que partilha elementos iden-

titários desta cultura originaria é, não só possível mas até mesmo necessário.

As ondas do Atlântico levam as vozes e os desejos daqueles que partilhamos

uma mesma raiz.

A todas as pessoas que constroem pontes sobre as ondas...

Ponte…nas ondas! 2010

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A aparição no mercado de Cores do Atlântico é um grande acontecimen-

to para todas as pessoas que gostam de boa música, e de forma especial para

Nós, gente deste canto peninsular; um território que hoje se conhece como

Euro-região Galiza-Norte de Portugal e a que eu prefiro chamar Gallaecia,

como lhe chamaram os colonizadores romanos.

A saída dum produto cultural de qualidade é sempre um acontecimento im-

portante para aqueles que o recebem, mas, neste caso, acrescem ainda duas

razões. A primeira advém do facto de se tratar de cantos alicerçados no nosso

património popular, aqueles que cantavam as mulheres de aquém e de além

Minho, nas suas longas horas de trabalho e nos seus escassos momentos de

lazer. E esse importantíssimo legado galego-português, de que hoje usufrui

a Humanidade, está, neste CD, enriquecido com as melodias adoçadas no

novo mundo pela fusão de culturas de distintos povos, graças ao trabalho de

composição e interpretação de Socorro Lira, que fez um magnífico trabalho

de mestiçagem entre os velhos temas de amor e saudade e os alegres ritmos

tropicais. Uma obra que, nascida da tradição oral do Noroeste da Península

Ibérica, está enxertada na cultura dos novos países de língua portuguesa com

os quais partilhamos o nosso património linguístico e cultural.

A segunda razão pela qual Cores do Atlântico é importante reside na numerosa

presença de mulheres. Porque, como dizemos, foram as mulheres, e não os

homens, quem compôs as cantigas de amigo; eles transcreveram-nas, assi-

naram-nas e, alguns, as terão cantado acompanhados de cítaras, sanfonas e

de outros instrumentos. Mas a criatividade e, portanto, a autoria, essa é das

mulheres galegas e portuguesas que viveram nos séculos XII e XIII da Idade

Média. E tanto nos faz que seja Mendiño, Martín Codax, Joan de Cangas ou

Pero Meogo quem as rubricasse, porque estamos certas de que essa rubrica

oculta a autoria duma mulher. E, muito provavelmente, seria o próprio copista

quem usaria o pseudónimo para assinar as cantigas que transcrevia, respei-

tando o anonimato da autora.

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O CD contém 16 cantigas de amigo, selecionadas pela autora e intérprete So-

corro Lira, com a colaboração de Ria Lemaire, entre as cem cantigas paralelís-

ticas guardadas nos cancioneiros medievais. Com elas, Socorro quer homena-

gear, neste CD, as cantadeiras da sua terra do Nordeste do Brasil que ela tem

ouvido cantar nas horas da apanha do algodão e da fruta, «puxando o verso»

ao cantar. Do mesmo modo, as nossas antepassadas galegas e portuguesas

cantavam e desafiavam-se enquanto segavam, iam à fonte ou desfolhavam o

milho ou debulhavam as favas, na eira. Em palavras de Ria, «a canção era ao

mesmo tempo trabalho, divertimento, exercício mental e poético». Em todo o

mundo, as mulheres, sem deixarem de trabalhar duro, foram criando e transmi-

tindo a cultura popular, que depois outros transformaram em alta cultura.

Acompanham a música do CD dois textos introdutórios que enriquecem a obra,

um que explica o projeto Cores do Atlântico e o outro, da professora holandesa

Ria Lemaire, no qual ela analisa a origem, a estrutura e os ritmos das cantigas

de amigo, dando-lhes uma nova interpretação, diferente da que aprendemos

de anteriores especialistas no tema. Explica Ria, com grande maestria, exem-

plificando com dados aquilo que afirma, como a interpretação dos académicos,

hoje canonizada, se baseava na «visão do mundo, da natureza, do amor e

da mulher» que mantinha a burguesia europeia, desde o século XIX. Uma

conceção patriarcal que foi dominante em todos os âmbitos culturais, e que se

propagou nas universidades e nos centros de ensino secundário como verda-

de intocável.

Conheci a Socorro Lira em Setembro de 2006, em S. Salvador da Baía cantan-

do acompanhada pela sua guitarra e fiquei comovida pela formosura da sua

voz. Ao saber que residia em Vigo, falou-me do projeto de musicar cantigas de

amigo e do seu desejo de visitar a ilha de San Simón. Na sua primeira viajem à

Galiza, Socorro foi cantar à Faculdade de Filologia e Tradução de Vigo e, num

entardecer mágico visitámos, com Gonzalo Navaza, a ilha de San Simón; a ilha

de amor e de morte que percorremos os três sozinhos, contemplando os lu-

gares sagrados do mar de Vigo, enquanto íamos recitando «Quantas sabedes

amar amigo/ treydes comig’a lo mar de Vigo./E banhar-nos-emos nas ondas!»,

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«Sedia-m’eu na ermida de San Simión/ e cercaron-mi as ondas que grandes

son./ Eu atendendo meu amigo», «Ay ondas, que eu vin veer,/se me saberedes

dizer/ porque tarda meu amigo/ Sen min?»

Na segunda viajem à Gallaecia, Socorro trazia musicadas as suas cantigas de

amigo para editar num CD. A minha surpresa foi enorme quando soube que,

no projeto, participava a medievalista Ria Lemaire. A obra desta mulher servira-

me de apoio na minha arriscada tese sobre a autoria feminina das cantigas

de amigo, e, por fim ia ter oportunidade de a conhecer. Foi um dia em Baiona,

numa viagem a Portugal, que nos encontramos. A partir daí, mantivemos re-

lações e voltamos a encontrar-nos noutras ocasiões, com e sem a Socorro.

Numa das viagens a Vigo, as criadoras do projeto encontraram-se com Santi

Veloso e a sua equipe de «Ponte... nas ondas!», e esse encontro seria de-

terminante na gestação do CD Cores do Atlântico. Um presente com o qual

«Ponte...nas ondas!» quer comemorar os quinze anos de trabalho na defesa

do património imaterial da Euro-região Galiza-Norte de Portugal envolvendo

nela os estudantes deste território. Um trabalho que aplaudimos até porque

se ocupa dum património que, sem qualquer sombra de dúvida, merece que a

Unesco lhe outorgue o galardão de ser declarado Património da Humanidade.

Cores do Atlântico é, em síntese, uma obra diferente, inovadora, da qual des-

frutarão os espíritos abertos; mas é também uma criação transgressora que,

talvez chegue a escandalizar os espíritos dos académicos tradicionais que não

gostam de inovações. Pois, além da ousadia de devolver às mulheres a autoria

das composições paralelísticas, a obra subverte a cultura canónica ao fundir a

lírica medieval com os ritmos afro-brasileiros.

Porém, a mestiçagem cultural das composições do velho mundo galego-por-

tuguês vem enriquecer a cultura peninsular com evocadoras sonoridades de

mundos distantes que projetam o nosso património galego-português em di-

reção a um futuro de universalidade.

Camiño NoiaMarço 2010

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Sin madre y niña, no hay copla Lope de Vega

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I - Era uma vez

Era uma vez um mundo em que as mulheres asseguravam a vida econô-

mica, social e espiritual das suas comunidades. Eram elas que recolhiam as

frutas silvestres, praticavam a agricultura e a horticultura, produziam a cerâmi-

ca, a roupa, o pão de cada dia, as bebidas que o acompanhavam; eram elas...

lavadeiras, costureiras, padeiras, ceramistas, rezadeiras, curandeiras, educa-

doras, videntes, sacerdotisas …

Os homens, por sua vez, traziam para as comunidades os bens excepcionais,

tanto espólios das guerras e dos fossados ou incursões em terras alheias,

quanto presas da caça e da pesca. Eram eles também que protegiam a sua

comunidade contra invasores inimigos, proporcionando-lhe a proteção e a se-

gurança indispensáveis à sobrevivência. Todavia, eram as mulheres que man-

tinham a coesão social através de suas atividades cotidianas exercidas no seio

da comunidade.

Para acompanhar os seus trabalhos, muitos deles longos e monótonos, as

mulheres cantavam, sem parar. O ritmo da canção imitava o ritmo do traba-

lho, transformava o que era tarefa pesada em fonte de prazer, de alegria, de

criação poética, de coesão social. A tal ponto que muitas dessas canções, cha-

madas canções de trabalho, se tornaram também, ao estilizarem e diversifica-

rem os movimentos e gestos dos corpos das trabalhadoras, canções de dança.

Tal foi o caso, por exemplo, da dança chamada de molinera/muinhera, que se

baseia nos movimentos rítmicos executados pela moleira, dona de moinho, ao

moer o trigo.

Era uma vez...I

- Ria Lemaire -

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Eram muitas as canções, sendo que a cada tipo de atividade correspondia

um ritmo específico, trazido por uma melodia tradicional. Adaptados ao ritmo

do trabalho, num processo contínuo de memorização e improvisação poética,

os versos jorravam, fluíam, espalhavam-se no tempo e no espaço da vida das

mulheres. Era assim que essa ars poética e os conhecimentos e sabedoria

que ela transmitia construíam e reconstruíam incansavelmente a memória da

comunidade, passavam de uma geração para a outra, tornavam-se tradição.

Até hoje, continuam a existir essas cantigas de trabalho. O primeiro volume do

Cancioneiro popular galego, publicado pela Fundación Pedro Barrié de la

Maza, Conde de Fenosa, intitula-se ‘Ofícios e Labores’. O volume contém tex-

tos e músicas recolhidos, a partir de 1978, em várias partes da Galiza. São de-

zenas e dezenas de gêneros diferentes, tanto para os trabalhos dos homens,

quanto para os das mulheres. Esses textos, registrados na Galiza, já no final

do século XX, permitem constatar que existe uma continuidade ininterrupto da

canção de trabalho desde tempos longínquos até hoje em dia.

Padeiras amassam o pão ritmicamente, acompanhadas da música da flauta. Antiguidade grega

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I - Era uma vez

Também havia, desde sempre, a música e as cantigas das padeiras, que elas

entoavam enquanto preparavam o pão. E havia, também, as das lavadeiras e

das costureiras. Podemos evocar aquela mãe-costureira, Dona Hecer, perso-

nagem do Auto da Lusitânia (1532), de Gil Vicente. Ela explica ao marido-

alfaiate – um homem meio incompetente – por que ele não pode cantar ro-

mances épicos enquanto trabalha. Quem costura tem que cantar cantigas que

¨tiram o pé do lodo¨, quer dizer: que agilizam o pé, tornando-o mais leve. Escu-

temos a mulher costureira explicar ao marido Dom Juda como se faz a costura:

Dom Juda, quereis que vos diga?Cuidais que o sabeis todo;

Para cantar e coserHaveis de dizer cantigaQue vos tire o pé do lodoA cantiga que eu queria,Era, olhai como a digo:

Portadas de dous volumes do Cancioneiro Popular Galego publicado pola Fundación Pedro Barrié de la Maza.

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Logo a seguir, para mostrar ao marido de que tipo de canção ele precisará para

trabalhar com eficácia, a esposa canta uma cantiga paralelística em que uma

jovem conta à mãe que ela está grávida: a rosa florida tornou-se granada, a

sua flor transformou-se em grão, em fruta, começo de nova vida:

Donde vindes, filha, branca e colorida?

De lá venho, madre, de ribas dum rioAchei meus amores em um rosal florido.Florido, enha filha, branca e colorida.

De lá venho, madre, de ribas de um alto,Achei meus amores num rosal granado.

Granado, enha filha, branca e colorida.

À procura das cantigas de trabalho, encontramos também as tecedeiras, cuja

voz se ouve na cantiga de tear medieval que transcrevemos abaixo. A canção

mostra uma jovem bonita (fremosa), ¨lavrando¨ e “torcendo”, quer dizer: tra-

balhando o fio de seda (sirgo) e cantando. O gênero poético musical que ela

canta é revelador, não só da sua idade, como também das suas emoções e

situação. Não é um romance, por exemplo, que é cantado por mulheres de to-

das as idades; é uma cantiga de amigo, a canção típica das moças namoradas

e namoradeiras:

Sedia la fremosa seu sirgo torcendosa voz manselinha fremoso dizendo

cantigas de amigo

Sedia la fremosa seu sirgo lavrandosa voz manselinha fremoso cantando

cantigas de amigo(…)

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I - Era uma vez

Assim, há as cantigas das segadeiras, como esta que foi recolhida em 1980,

na Ribeira de Piquin pelos investigadores do Cancioneiro popular galego:

Este éch’o son da segaEste éch’o son de segar

Este écho’o son que cantanAs nenas do meu lugar.

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Ou ainda esta, recolhida em 1979 em Pedrafita do Cebreiro,

Aunque viva nel Bierzo, no soy bercianaSoy una galleguita de la montana

Espiga por espiga yo voy cogiendoPara comprar un dengue que no lo tengo.

No texto que acompanha o CD Cores do Atlântico, Socorro Lira evoca as

catadeiras de algodão e as apanhadeiras de fruta de oiticica no Nordeste

do Brasil da sua juventude.

A canção era ao mesmo tempo trabalho, divertimento, exercício mental

e poético. Era um jogo lúdico, um duelo, sendo que as mulheres se de-

safiavam – chamavam as outras para uma luta, um duelo verbal – sob

forma de canções dialogadas improvisadas.Uma delas chama-se “desa-

fio”, ou como diria Socorro Lira: ¨puxa o verso¨, ao cantar, por exemplo,

na voz de uma canção tradicional, cujo refrão era “E ay deus, se verra

cedo”, os seguintes versos:

Ondas do mar de Vigo se vistes meu amigo?

Outra mulher respondia de improviso e com versos que repetiam com

ligeiras variantes os da desafiadora só que, obrigatoriamente, com rima

diferente. A rima em -i- da primeira cantadora chama tradicionalmente e

de preferência uma rima em -a-:

Ondas do mar levadoSe vistes meu amado?

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I - Era uma vez

As duas estrofes são mais ou menos ̈ paralelas¨; daí o nome que têm es-

sas cantigas nos estudos de literatura medieval: cantigas paralelísticas.

Nos manuscritos medievais galego-portugueses, ficaram conservadas

umas cem cantigas que podem ser classificadas como paralelísticas.

Após cada estrofe, o grupo todo das mulheres trabalhadoras ou dançari-

nas cantava o refrão tradicional da melodia escolhida pela primeira mul-

her desafiadora: “E ay deus, se verra cedo“. Aí, a primeira mulher, por

sua vez, lançava novo desafio.

Ao retomar o segundo verso do seu dístico inicial, ela fazia, por exemplo:

Se vistes meu amigoO que falou comigo?

dentro do sistema obrigatório do leixa-pren. Ela leixava (deixava) um

verso para retomá-lo no seu dístico seguinte, o que a obrigava a manter

a rima em - i -. A segunda cantadora devia também obedecer ao sistema

do leixa-pren; ela podia cantar, por exemplo, mantendo a sua rima em

-a- :

Se vistes meu amadoque comigo tem falado

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e assim em seguida, o que deu a seguinte cantiga paralelística com

leixa-pren, registrada nos cancioneiros medievais galego-portugue-

ses:

Ondas do mar de Vigo,Se vistes meu amigo?

E ay Deus, se verrá cedo!

Ondas do mar levado,Se vistes meu amado?

E ay Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amigo,O por que eu sospiro?

E ay Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amadopor que ey gran coydado?E ay Deus, se verrá cedo!

LPGP, 91,6. Cantiga atribuída a Martin Codax, jogral galego

Esse jogo de poesia dialogada podia continuar horas e horas, sendo

que a qualquer momento outras mulheres podiam intervir, com novos

versos, novas rimas, novas imagens. Neste sentido, podemos dizer

que, naqueles tempos, todas as mulheres eram poetisas e composi-

toras.

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Assim foi na Galiza, terra de origem da cantiga das ondas do mar de Vigo,

como notou um grande erudito galego, Martín Sarmiento, na segunda parte

do século XVIII, nas suas Memórias para la historia de la poesía y poetas españoles (1775):

Además de esto he observado que en Galicia las mugeres no solo son

Poetisas sino tambien Músicas. (...). En la mayor parte de las

coplas gallegas hablan las mugeres con los hombres,y es porque ellas

son las que componen las coplas, sin artificio alguno; y ellas mismas

inventan los tonos ó ayres a que las han de cantar....

(p.237, par. 538 )

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I - Era uma vez

Nas mesmas Memórias, Sarmiento mostra que a área cultural da cantiga de

mulher se estendia muito além da actual Galiza; neste sentido Galiza e Portu-

gal, as terras de aquém e de além Minho, constituíam, uma só área cultural:

... en Portugal es tan connatural la Poesía de que se habla que cada Pastor es cada moza de cántaro Poetisa. Esto, que es comun en toda España, es más particular en Portugal y Galicia.

(p. 237, par. 537)

A canção galega do mar de Vigo, conservada nos cancioneiros medievais ga-

lego-portugueses, é uma variante da canção de mulher dialogada que antiga-

mente existia em muitas terras e países da Europa. Contrariamente à poesia

escrita moderna, que é uma poesia destinada a ser lida em silêncio, a poesia

das cantigas de amigo caracteriza-se pelo fato de a sua base ser o ritmo, a

melodia; ela é cantada. A escolha e a disposição das palavras têm que se

adaptar a esse ritmo; trata-se de uma ars poética baseada na reprodução do

¨ritmo certo¨, sendo que ela é funcional e acompanha e reforça os movimentos

do trabalho e da dança. Neste sentido, ela é radicalmente diferente da poesia

escrita moderna que se baseia na procura da ¨palavra certa¨.

Infelizmente, os três cancioneiros medievais conservados não registraram as

músicas das cantigas; só algumas delas foram descobertas mais tarde.

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