Cordel Do Amor Sem Fim1

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    Cordel do Amor sem Fim

    de Cludia Barral (No canto do palco, o Contador inicia a pea com a cano O Luar, letra e melodia de Carlos Barral) Contador Eu que fui p no cho nesse rumo / Assumo que vim sem dizer que no / Sou pedra, sou peixe, sou rio / Sou tarde de junho e o frio / Sou noite, me lembro, dezembro / P de vento, de chuva e trovo // Sou um raio de luar / Onde est meu corao // E l fora o luar bate claro no algodo / Branco, branco a me lembrar / Onde est meu corao / Costas brancas desse mar / Bate, bate sem perdo / A lembrana de um luar voa / Onde est meu corao (O homem termina a sua can e inicia a narrativa de sua histria) Contador Deus separou o claro do escuro, separou o mar da terra, separou o macho da fmea, separou o bem do mal e se Deus j comeou separando, quem sou eu pra falar de unio? Mas eu digo que o homem bicho que nasceu pra ficar tudo junto. Da vida eu digo que longa demais para dizer que curta e curta demais para dizer que longa. Do mar eu digo que grande demais para minha canoa. Da grande cidade eu digo que j me debrucei nas suas varandas e que os mosaicos dessas caladas j viram o carimbo de meu p. Sei de seus tumultos e barulhos e digo que nenhum deles deve ser o som da esperana. Os sinos da esperana no tocam nessas catedrais de pedra, nas ruas de pedra, no peito de pedra desses homens que andam por tantas caladas que no vo dar em lugar nenhum. Do violo digo que meu melhor amigo por ser o nico que no me d conselhos, e do serto digo que minha casa. Do desejo digo bicho que no morre, do tempo digo que inimigo dos homens, e do amor digo que inimigo do tempo. Era dezembro na beira do Rio So Francisco. Pois sim, era dezembro. Era dezembro na beira do rio, dezembro afogando o serto, dezembro na cabea dos caboclos. Era dezembro tambm, porque no podia deixar de ser, dezembro em Carinhanha. Era dezembro de chuva e calor em Carinhanha. E eram trs as irms: Teresa, Carminha e Madalena. (O cenrio a sala de uma casa simples, com mveis rsticos, de parede caiada. Nessa casa vivem as trs irms: Teresa, Carmem e Madalena. Na sala da casa, Madalena se entretm com sua costura. Entra Carminha.) Carminha T fazendo... Agora sem farinha que no vai poder ser. Madalena Manda Teresa buscar farinha. Carminha Teresa acabou de chegar da rua. T cansada.

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    Madalena E aquilo l cansa? Carminha V voc, minha irm. Madalena Agora essa mania de me tirar de casa! Carminha Distrai um pouco... Madalena E comprar farinha l distrao, Carminha? Carminha Um passeio at o cais... Madalena Pra voltar carregada de saco? Manda Teresa. Carminha Eu vou contigo. Madalena Se pode largar a panela pra ir comigo, ento por que que no vai s? Carminha Esqueci da panela. Ento, vai Teresa. Madalena (gritando) Teresa! , Teresa, essa menina, chegue aqui. (Entra Teresa) Teresa Que foi? Carminha Vai l no cais, minha irm, e traz dois sacos de farinha pra fazer o piro. Teresa A do cais mais cara. Madalena mais cara porque melhor. Carminha Teresa, traz a farinha boa. Madalena pela ocasio. Teresa Que ocasio, meu povo? Jos come aqui dia sim, dia no. Carminha Mas hoje ele vai te propor no , minha irm? Madalena A panela, Carminha... (Carminha Sai) Madalena E tu vai aceitar n, Teresa? Carminha (de dentro) A farinha, Teresa!

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    Teresa (grita para Carminha) O dinheiro t onde? Madalena Tu gosta dele? Carminha (de dentro) T em cima da mesa! Madalena Eu me lembro que de ns trs no era voc a que gostava dele no. (Aponta Carminha que est na cozinha) Teresa Vou buscar a farinha. (Teresa sai.) Madalena Carminha? Carminha (de dentro) T escutando. Madalena C repara como Jos gosta de Teresa? Carminha Reparo. Madalena E agora vo casar, n? Carminha Se for da vontade de Deus. Contador Teresa saiu Teresa, mas voltou j outra pessoa. Era onze da manh de um dezembro de cu pesado quando Tereza fez o caminho que ia de sua casa ao cais da cidade. (Teresa entra.) Madalena Demorou. Carminha Teresa? Madalena . (Carminha entra, pega os sacos na mo da irm e volta para cozinha. Teresa permanece parada, area.) Madalena Que foi, moa? (Batidas na porta) Madalena Abre a porta a, Teresa. (Pausa)

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    Madalena Teresa? Abre a porta. Jos. (Jos entra). Madalena , Jos! Jos Como to passando? (Carminha entra.) Carminha T com fome? Jos Sempre! Madalena Fique a conversando com Teresa, Jos, que eu vou aqui dentro guardar esse vestido de Carminha que eu tava fazendo um conserto... (Madalena e Carminha saem) Jos Posso te dar um beijo no rosto, Teresa? Teresa Pode no. Teresa Jos... Jos Que foi? (Pausa) Jos Fala, Teresa! Teresa Olhe, Jos... (Pausa) Jos Mas que aperreio! Me diga! Teresa Olhe, Jos, no se aborrea comigo, no. Jos Primeiro tu me fala, depois eu resolvo se o caso de me aborrecer. Teresa Se lembra, Jos, que eu te disse que tu era meu amigo? Jos Lembro.

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    Teresa E que se fosse pra negar o seu pedido de casamento eu ia negar logo era na hora? Que eu no ia deixar voc vir at aqui com conversa de almoo e tudo pra sair carregando um no nas costas? Jos Eu j sei de tudo isso, Teresa! Mas qual foi o caso? Teresa O caso que agora voc j t aqui, no , Jos? Jos T, no t? Teresa Mas no me pea em casamento, no. Jos Por que no, Teresa? Teresa Porque eu no vou aceitar. (Carminha entra.) Carminha T pronto! Jos O que que t pronto? Carminha O almoo, homem! Ensopado e piro. (Pausa) Carminha Que foi, gente? (Pausa) Carminha Eu vou l dentro... Teresa Fique, Carminha. Jos Deixe Carminha ir l dentro terminar o almoo. Teresa O almoo t pronto. Jos Deixe Carminha ir l pra dentro, Teresa. C tem que fazer l dentro, no tem, Carminha? (Entra Madalena.) Madalena Que foi, gente? Jos Agora conta pras suas irms, vai!

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    Teresa Jos desistiu de me pedir em noivado. Madalena Mais essa agora, Jos? Jos Conta direito, Teresa! (Pausa.) Jos Vai, mulher, conta o que foi que tu me disse! Teresa Eu disse a Jos que no me pedisse em casamento. Madalena Por qu? Teresa Porque eu no vou aceitar. Madalena No vai aceitar por qu? Contador Se com uma frase Deus criou o cu natural que com uma frase o cu desabe. A frase que derrubou o cu de Jos foi aquela. Teresa Porque eu sou de outro. Madalena De outro o qu, menina? Teresa De outro homem. Contador Era dezembro em Carinhanha. Era dezembro quando Teresa viu Antnio pela primeira vez. Dezembro quando seu peito foi flechado, quando seu destino mudou de rumo, quando o amor desceu sua machadada certeira na cabea da menina. Teresa Eu fui no cais buscar a farinha e o vapor tava chegando... Contador E dentro do vapor vinha a razo pela qual Teresa tinha nascido e sobrevivido at aquele dia. Vinha a razo pela qual ela viveria daquele dia at o fim. Teresa E desceu do vapor esse moo... Contador O nome que ela haveria de chamar noite adentro... Teresa Antnio. O nome dele. Contador O nome dele atravessando o corao dela. Teresa E ele me viu e conversou comigo... Madalena Mas se foi agora ento foi conversa de vinte minutos!

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    Teresa Ele disse que gostou de mim. Muito. Contador E o corao galopando como um cavalo doido... Teresa Que era esquisito... Contador Se reconheceram. Voc, dona de minha alma, rainha do meu descanso, senhora de meu juzo. Teresa Que no podia ficar... Contador E a Teresa comeou a caminhar nesse terreno perigoso, esse, cheio de despenhadeiros: O das promessas de amor. Teresa Ele disse que voltava. Voltava pra me buscar. Madalena E voc acreditou? Teresa Acredito. Eu vi verdade nos olhos dele. Madalena E olho de homem l lugar pra se encontrar verdade, Teresa? Contador Toda a verdade do mundo est nos olhos de Antnio. Era o que Teresa via. Teresa E por isso que eu no me caso mais com Jos. Contador O amor inundou o terreno de seu peito numa tempestade to violenta que derrubou todas as cercas. Teresa Eu tava era com medo de ficar sozinha, Jos. Por isso que eu ia casar. Madalena Olha, Teresa, que o medo tem sua valia. Contador Mas agora Teresa era s coragem e esperana. Carminha E voc vai desistir do noivado e vai fazer o qu, minha irm? Contador Ao que Teresa respondeu sem titubear: Teresa Vou esperar. Contador E o diagnstico: Madalena T doida! Contador E tudo que podia ser dito, foi dito.

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    Madalena Mas voc vai passar a vida esperando um homem que voc nem conhece, Teresa? Vai trocar o certo pelo duvidoso, minha irm? Contador E o qu que certo nesse mundo errado? Madalena Vai deixar um rapaz bom que nem Jos pra ficar esperando um salafrrio que nunca volta? Teresa Ele volta. Madalena Quem que volta pra essa cidade, Teresa? Isso aqui cidade de partida. Teresa Antnio diferente. Madalena E difere no qu? No que que um homem difere do outro? Homem tudo igual. Contador Mas Antnio era o homem dela. E, em sendo o dela... Teresa Eu espero. Madalena Ento se a questo de esperar, ento todo mundo espera junto! Eu espero, Carminha espera, Jos espera! No espera, Jos? Jos Espero. Madalena Pois ento esperamos juntos! Eu no dou uma semana pra esse encantamento dos infernos terminar. No resiste ao tempo no, Teresa. Voc vai ver, Jos. No dou uma semana! (Pausa) Contador E passou uma semana. Madalena No dou mais uma semana. (Pausa) Contador E se passou mais uma semana. Madalena No dou um ms! (Pausa) Contador E se passaram dois meses.

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    Madalena No ms que vem a doideira acaba! (Pausa) Jos Vou esperar em casa. Contador E se passaram oito meses. (Pausa.) Contador Tem o amor de me pra filho. Tem o amor de dois irmos. Tem o amor que um homem sente por uma mulher e tem o amor que uma mulher sente por um homem. Nessa ltima categoria, tem o amor do se eu no tiver voc o tempo passa, tem o do se eu no tiver voc, eu at prefiro e tem o pior, o maldito, o amor inventado por Deus ouvindo opinio do demnio, o que Teresa sentia, o amor do se eu no tiver voc, eu morro. Dezembro acabou e outros dezembros vieram e quanto mais dezembros viessem, a cabea de Teresa s martelava a idia fixa: Antnio h de voltar. Eu no sei por que mistrio com Teresa foi assim. Eu s sei que tudo acaba, tudo muda, tudo morre, mas o sentimento de Teresa no acabava, no mudava e no morria. (O homem canta So Francisco, de Carlos Barral.) Contador - Lado esquerdo e um rio atravessado / Verde margem e um dezembro que se foi / Se me lembro do meu lado esquerdo di / So Francisco, tu no paras de passar / (Na casa, Madalena costura, Carminha varre a sala. Teresa vai passando.) Madalena Vai onde? Teresa No cais. Madalena Vai esperar o vapor. Teresa Se j sabe perguntou pra qu? Madalena Pra ter certeza que minha irm ta doida mesmo. Teresa Pois agora j tem. Madalena Todo dia voc vai e ele nunca vem. Teresa Quando vier eu quero t l esperando. Carminha Vai com ela, Madalena, deixa isso a que eu termino. Vai d um passeio, vai. Madalena Que passeio, Carminha? Tu tambm t ficando doida, ? Passeio debaixo de um sol desses!

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    Carminha Se de dia por causa do sol, se de noite por causa do frio. Teresa Eu j vou indo... Madalena Olhe, Teresa, que cada passo que a gente d um passo em direo morte. E esse corpo que voc t guardando pra Antnio quem vai acabar comendo a terra. Teresa - Eu j estou em paz no meu caminho. Madalena Caminho de esperar? Teresa - O caminho de Antnio. Madalena - Um Antnio que no volta? Teresa - Vai voltar. Madalena - J passou tempo demais, menina. Teresa - Tempo coisa que no tem medida. Madalena Teresa, amanh faz quatro anos. Teresa - Parece que foi ontem. Madalena - Parece no. (Fragmento da cano So Francisco, letra e msica de Carlos Barral) Contador - Passa tudo dentro sempre do meu peito / O que est feito, est feito, est bem feito / O no feito nunca mais que se far / So Francisco, tu no paras de passar / (As trs irms conversam) Carminha Vai que volta? Madalena Volta nada! Carminha Se voltar? Madalena Se fosse assim j tinha voltado. Carminha Eu rezo a Deus que ele volte.

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    Madalena Deus l tem nada que ver com isso que Deus no ficar dando corda pra doido. Teresa Deus deixou que eu visse Antnio, me deu fora pra gostar dele, meu deu f pra acreditar no que ele disse. Carminha Fala com Deus que Antnio volta. Teresa Ele volta. Madalena Volta nada. Teresa Volta. Madalena Volta no. Teresa Deus no ia botar tanto desejo no peito de uma filha sua se no tivesse o plano de um dia satisfazer esse desejo. (Fragmento da cano So Francisco, letra e msica de Carlos Barral) Contador Vai lambendo seus barrancos, seus beirais / Vai levando pedras, peixes e pontais / Mais que tudo vai levando o meu olhar / So Francisco, tu no paras de passar. (A sala das trs irms est vazia. Batidas na porta.) Jos Abre a porta, Teresa! (Tereza entra. Abre a porta. Entra Jos.) Teresa O que que foi, homem? Jos (Bbado) Toda rameira da cidade tem seu rosto! Teresa - T dando pra beber agora, Jos? Jos T no. Devia era de t mais! Devia era ficar doido logo de uma vez. Teresa No fala besteira, homem. Jos Tudo que eu falo pra voc besteira, Teresa. Teresa Mas , no ? Jos besteira um homem desejar uma mulher?

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    Teresa Uma mulher que no dele e nem vai ser? Jos Tu minha! Teresa Sou no, Jos. Eu sou de Antnio. Eu sou Teresa de Antnio. Jos Minha verdade no essa, no. Teresa Eu vou no cais. Jos - Vai no! (Jos agarra Teresa) Teresa Eu no quero voc no, Z. Jos Agora voc no tem mais querer no. Agora meu querer s j basta. (Jos puxa Teresa para si com fora. Ela resiste.) Teresa Me larga, Jos! Me deixa, homem, pelo amor de Deus! Me deixa ir embora, Jos! (Carminha entra) Carminha T ficando doido, moo? (Jos, finalmente, larga Teresa) Carminha - No t ouvindo a moa dizer que no quer, no? T jogando cachaa nos ouvidos? (Teresa sai.) Jos Teresa... Carminha Tu no encosta nela! Jos - Teresa era pra casar comigo. Carminha Isso ela que sabe. Jos Teresa no sabe mais de nada. Tua irm desandou, Carminha. Carminha Ela gosta de Antnio. Jos - E vai ficar esperando? Carminha - O amor tem pacincia.

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    Jos - Besteira! Vai ver que esse homem nem existe. Carminha - O amor acredita. Jos - Ele nunca vai voltar. Carminha - O amor perdoa. Jos E eu Carminha? Eu fico como? Me diga! Carminha O amor perdoa, Jos. Perdoa sempre. Perdoa tudo. Jos Eu amo Teresa. Carminha Ama, no. Jos Como que no amo? Carminha Esse que voc sente no amor, no. vaidade. O amor quando a gaiola t aberta, quando a coleira t frouxa. O amor o de soltar, esse de prender vaidade. Jos Eu vou pra casa. Carminha Vai, Jos. Tu no t preso, no Jos - Eu vou tirar sua irm do meu peito. Eu vou botar voc no lugar dela. Carminha Tem coisas que no a pessoa que escolhe. Deixe o tempo passar. Jos Vou dar meu jeito... Carminha No me prometa nada no, Jos, que depois pra mim fica pior. (pausa) Jos Cad Madalena? Carminha Quando eu sa tava cochilando no quarto. Madalena (entrando na sala) J acordei. E Teresa? Carminha No cais. Madalena Voc j tava de sada no , Jos? Jos Tava sim.

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    Madalena Pois melhor voc ir indo mesmo. (Jos sai). Madalena T fazendo inferno, Carminha? Carminha Quando eu cheguei o inferno j tava feito. Madalena No se meta no caminho deles dois no, minha irm. Carminha O caminho desses dois no se encontra mais, no. Madalena E voc gostou disso, no foi? Carminha Eu num ia querer que minha irm ficasse com um rapaz que ela no gosta... Madalena Porque quem gosta dele mesmo voc... (Carminha no responde). Madalena E s por isso que voc no concorda quando eu digo que essa conversa de Teresa esperando Antnio doideira. Carminha No por isso, no. Madalena Mas s por isso. (Carminha no responde) Madalena No fim das contas seria bom mesmo pra voc se Teresa espera esse Antnio que nunca volta e Jos desiste dela. Por isso que voc fica nessa conversa de deixa a menina! Carminha No por isso, no. Madalena Ento por que, Carminha? Carminha Porque eu acredito que tem mesmo que deixar. Madalena Tem que deixar? Carminha Quem ouviu o moo dizer que voltava foi ela. Se ele disse de um jeito firme, ela acreditou, quem sou eu pra duvidar? Madalena irm dela! Porque ela vem com essa conversa de Teresa de Antnio, mas minha irm tambm.

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    Carminha Mais uma razo. Madalena Razo pra qu? Carminha Pra deixar ela paz. (Madalena sai.) Contador E Jos foi embora da casa naquele dia. Foi pra passar muito tempo sem voltar. Foi pra passar muito tempo bebendo nos bares, arrumando confuso com quem dizia que Teresa tava doida. E a vida ia se arrastando pelos trilhos do tempo e o tempo de Jos virava vida com outras mulheres, jogando bilhar, acalmando a fera que tinha nascido no peito dele num dezembro antigo que virou sua vida de cabea pra baixo. E com tanta cano de ninar nas vozes das moas de vida fcil, a fera dormiu. Jos at teve em casa de Teresa outras vezes. Almoou l com as moas, contou umas piadas, Carminha ria mais que toda a graa. A fera dormiu, mas no morreu. Enquanto isso Teresa ia seguindo o seu caminho... Sem sair do lugar. (Cano Volta do amor, letra e melodia de Carlos Barral.) Contador Eu vou de novo recontar a estria / A partir do meio, a partir de agora / Que voc me veio tendo ido embora / Na parte mais triste de no mais voltar // Eu que cortei voltas para que a tristeza / No me surpreendesse no seu labirinto / Contra a correnteza a mgoa que sinto / querer ir longe e ter de ficar // Eu sinto que esse amor que volta nunca esteve longe / Reinvento a porta e a luz do comeo / J que no tem preo ver voc voltar // como se o primeiro instante desse amor menino / Acendesse as cores / Repicasse os sinos / Remoasse inteiro / Reaprendesse a amar. (Na sala da casa, Carminha l a bblia. Madalena entra com um vestido na mo). Madalena Minha irm, compra um boto desse pra mim. (mostra o boto que est em um vestido) Carminha Agora? Madalena Tem que ser agora porque eu tenho que terminar de pregar. Carminha Vai voc. Madalena Eu estou pregando o boto, Carminha. Carminha Est pregando como, se no tem boto? Madalena Vai comprando que eu vou adiantando a janta.

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    Carminha Quem faz a sopa hoje Teresa. Madalena Voc no vai comprar, no? Carminha Vou no. Madalena Ento deixe. Eu peo a Teresa quando ela chegar. Carminha Vai voc. Madalena Tem necessidade, no. Carminha No t querendo? Madalena Sim, mas depois eu fao. Esse vestido, Teresa nem usa muito... (Pequena pausa.) Carminha Me d c esse negcio. Madalena Pra qu? Carminha Vou comprar o boto. Madalena Agora j vai? Carminha Vou. Me d. (Madalena lhe entrega o vestido e o dinheiro). Carminha Se no achar desse? Madalena Compre cinco azul, liso. Carminha T bom. (Carminha sai da casa. Ouve-se s a voz dela depois de um tempo). Carminha (gritando, de fora) Madalena, me acode! Madalena Que foi, menina? Carminha (de fora) Socorro, Madalena! Madalena Cad voc, mulher?

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    Carminha (de fora) T aqui no quintal! Corre aqui que caiu um negcio na minha perna. Parece que quebrou! Madalena Como que c t, minha irm? Carminha T com dor! Corre aqui, minha irm! Pelo amor de Deus, Madalena! Me ajuda! (Madalena chega at a porta da casa.) Carminha Me ajuda, Madalena! Madalena Grita algum da rua, irm! Algum ajude, pelo amor de Deus! Carminha Vem voc, Madalena, ajudar sua irm! Vem, Madalena! Madalena Mas ser que num passa ningum nesse caminho? Ningum que ajude? Vem pra dentro, Carminha! Vem do jeito que for. (Silncio.) Madalena Carminha? (Carminha aparece na porta. Sua perna no est ferida.) Madalena Tu no teve foi nada na perna. Carminha Por que que tu no foi l ver? Madalena Tenho como no. Carminha Como que no tem como? Madalena Eu caio. Carminha Cai como? Madalena Caindo. Carminha Uai. Madalena S sei que assim. Carminha Isso doena, mulher! Madalena No , no. preferncia. Carminha Nunca sai de casa.

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    Madalena Me deixe, Carminha. Carminha Mas isso coisa de buscar um tratamento. Madalena No tem tratamento nenhum! Carminha H de ter. Madalena Me deixe, Carminha! Eu no consigo sair, no saio e pronto! Carminha Nunca buscou ajuda nenhuma! Madalena Carece de ajuda, no. Carminha Carece. Madalena Carece nada! Carminha Vai ficar sem sair? Madalena No sinto falta. Carminha Mas pra v o mundo. Madalena Vejo da janela! No vejo da janela? Carminha E o mundo s o redor dessa casa , Madalena? Madalena No perdi nada mais longe. Carminha Tem tanta terra que tu num vai andar... Madalena E voc, Carminha? Vai? Andar essa terra toda que tem no mundo? Carminha - Venha comigo agora. S chegar no quintal. Madalena Vou no. Carminha Eu fico do teu lado, minha irm, eu te amparo. Eu guento contigo, eu guentei com pai quando ele ficou doente, no guentei? Como que no guento contigo? A gente vai devagarzinho, s at o quintal e depois depois... Madalena Eu no vou, Carminha. Carminha Mas venha, minha irm. Venha comigo.

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    Madalena Carminha, essa uma cerca que eu no quero pular! Deixa como t. (Pausa) Carminha Se eu fosse voc... Madalena Se eu fosse voc sentena do co! (Pausa) Carminha Esse negcio de num sair, vou te contar... Madalena o qu, Carminha? Carminha Se tu no fosse minha irm e ia dizer que era esquisitice de gente doida. Madalena Tu bem sabe que eu no sou doida. Carminha Se me dissessem assim: Espia, Carminha, naquela casa tem uma moa que as pernas s funcionam dentro de casa. Na rua ela cai. Eu ia dizer na mesma da hora: Doideira. Madalena Eu no sou doida! Carminha Oh, esqueci! A doida da casa Teresa! Madalena E Teresa ta parecendo uma maluca mesmo, esperando esse homem. Carminha E tu? Trancada nessa casa, fica parecendo o qu? Madalena Olhe, Carminha, eu no vou ter essa conversa mais, no. (Pausa) Carminha Vamos combinar o seguinte: Cada um tem sua cerca eu no tenho irm doida. Porque se for pra ter uma, eu prefiro achar que eu tenho logo duas. Ento melhor a gente acertar que aqui dentro ningum doido. acordo? Madalena acordo. Carminha Ento combinamos. Madalena Agora me deixe. Carminha Agora eu deixo. Deixo sim. (Entra Teresa.)

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    Carminha E a, moa? Como que foi? Teresa Nada ainda. Carminha Amanh? Teresa Com f em Deus. Carminha Quem sabe, no ? Teresa Vou l dentro. Sopa de qu hoje? Carminha Faz do que quiser, Teresa. Teresa Como que t, Madalena? Madalena Pouquinho cansada. Teresa Descansa. Madalena Vou. (Teresa sai.) Carminha Deixa ela. (O Contador e Teresa esto ss) Contador A moa julgava pertencer a um homem e selou seu destino nesse juramento: Teresa - Amor, bicho sem medida, inimigo do tempo, me ensine a ter pacincia. Amor, trem sem rumo, siga esse caminha comigo, me leve na tua mo, me cobre com teu manto, anda do meu lado, acende meu olhar. Contador - Amor, velho cego, me ensine a enxergar meus irmos. Vai, rio que no tem fundo, remdio antigo, vira tudo do avesso, faz do mundo teu arado, espalha a tua semente. Vai, amor, vulco, explode no meio do mundo e queima tudo que no for teu. (Cano Rezas e Rendas", letra e melodia de Carlos Barral.) Contador - Naquele pedao azul / Que lembrava o fim do mar / Tinha o seu nome escrito, morena / Era um sol a me queimar / Tinha o seu nome escrito, morena / Era um sol a me queimar // Contador E a saudade de Teresa ia pesando sobre os ombros de Antnio...

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    Contador - Era de rezas e rendas / O tempo de lhe esperar / De amor e de esperana, moreno / A vida nesse lugar / De amor e de esperana, moreno / A vida nesse lugar // Contador E o mundo d tantas voltas que a gente fica tonto... Contador - E o fogo do vulco / Do destino andou por l / Queimou seu nome no azul, moreno / Fez das cinzas meu olhar / Queimou seu nome no azul, moreno / Fez das cinzas meu olhar. Contador Quem vivo sempre aparece... (A sala da casa das irms est deserta. Batidas na porta. Entra Madalena.) Jos Abre a, gente! (Madalena abre a porta. Entra Jos.) Madalena Entra, moo. Viu assombrao? Jos O que eu vi foi pior. Cad Teresa? Madalena No mundo. Jos- Diabo! Madalena Qual o aperreio, moo? Jos O impossvel se deu. Madalena T me deixando nervosa, Jos. Me diga o acontecido. Jos Tem uma pinga a? Madalena Me conte logo! Vumbora! (Pausa.) Madalena Fala, Jos, que eu no t esperando coisa boa, no! Jos - Todo domingo eu vou jogar futebol com os meninos no campo mais l, afastado. Pois nesse domingo os meninos foram indo na frente porque ontem eu fiquei bebendo, l em Z do Padre, e tava com a cabea pesada, o calor tava demais... Tem uma pinga, a? Madalena Primeiro fala, depois bebe.

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    Jos Eu tava indo jogar bola... Contador Domingo o dia que Deus descansa. Jos Pois eu tava indo sozinho encontrar os meninos, l pras duas horas da tarde. E vinha vindo esse moo pela estrada, andando, no sentido contrrio do meu. A, quando a gente se encontrou no meio da estrada... Contador O destino traou a seu riscado e a estrada de barro ardia debaixo dos ps dos homens. Jos Ele me disse: Contador Amigo, me d uma informao. Jos Diga, moo. Contador Tu sabe me dizer onde que eu encontro Teresa? Jos Que Teresa essa, moo, que tu t procurando? Contador Uma Teresa que ficou de esperar um Antnio. Jos Eu conheo uma Teresa, mas ela no de Antnio nenhum, no. Contador Teresa... Uma morena. Jos Aqui as moa tudo morena. Contador Ela disse que me esperava. Eu disse que voltava. Jos Qual o seu nome, moo? Contador Meu nome Antnio. Jos O nome do moo era Antnio. Contador E nessa hora que um cabra acredita que, s vezes, o demnio que toma as rdeas do acaso. Madalena E a, Jos? (Pausa.) Contador Agora conta, sujeito, o que que tu fez!

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    Madalena Fala, Jos! Jos A eu disse que sim. Que sabia de Teresa. Contador Disse que ia levar Antnio at a casa de Teresa. Os braos de Teresa, o lugar de Antnio. Jos Eu disse que ela morava longe, mas que tinha um atalho, pelo meio do mato. Perguntei se ele tinha medo de cobra... Contador Eu no tenho medo de nada, no. Jos Pois devia era de ter. E a gente se embrenhou no mato. (Pausa) Madalena Termina, Jos. (Pausa) Jos No tem mais Antnio nenhum, Madalena. Madalena O qu foi que tu fez, homem? Jos Eu libertei Teresa dele. Agora s tem eu. Madalena Me diga o que foi que tu fez. Contador Mas Jos no conseguiu contar que quando chegou em mata fechada ele enfiou uma peixeira na barriga de Antnio. E nem disse tambm que enquanto o outro sangrava, ele ficou repetindo o prprio nome, Jos, pra que o outro soubesse a quem Teresa pertencia. E nem contou que o sangue de Antnio despertou nele uma sede estranha e que depois ele bebeu tanta gua que pensou que fosse se afogar de dentro pra fora. Jos No tem mais Antnio, Madalena. Madalena Ele voltou pra buscar ela, Jos? Pra ela ir com ele, foi? Jos Agora no tem mais pra onde. Madalena C ta de brincadeira comigo. Jos Deus quis que fosse assim, botou o outro no meu caminho. Madalena Deus l quis nada disso! Deus l ia fazer isso... Jos Deus fez.

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    Madalena Tu t bbado, doido, t inventando conversa. Jos Tu no acredita, no? Madalena Acredito l nada! Jos Ento vumbora mais eu, v o cabra! Vumbora l v a cara do homem que deixou tua irm doida. Vumbora, Madalena. Madalena Espera um instante, Jos. (Madalena entra e retorna com uma grande faca. Aponta a arma para Jos.) Madalena Tu aparece aqui de novo e a morte vai estar te esperando. Jos Se eu fiz o que eu fiz foi por... Madalena Vai embora, vai. Anda. No fica parado me olhando, no. T duvidando? Jos T duvidando de nada, no. Madalena Ento vai e no volta. (Jos sai) Madalena Corre, co! (Entram Teresa e Carminha) Carminha Vai sair pra caar, irm? Madalena Sair o qu? Pergunta mais besta. Teresa Uai, t com o faco. Madalena Tava limpando. E o vapor? Carminha Ele no veio nesse, no. Talvez no prximo... Madalena Talvez um dia. Teresa Ele vem. Contador E Madalena nunca contou pra Teresa que esse dia nunca haveria de chegar. No contou porque sabia que a esperana e a vida so duas coisas que se acabam juntas e que a vida de Teresa, naquele momento, estava no estgio de ser s esperana. No contou

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    porque no queria ser ela a responsvel por notcia to terrvel, no queria que houvesse no mundo essa notcia to terrvel e talvez, se no fosse dada, a notcia deixasse de haver. E no contou porque no fundo, num canto de sua alma, havia a possibilidade de que Jos tivesse mentido, de que Jos tivesse inventado aquela estria de Antnio morto no meio do mato e o verdadeiro Antnio ainda estivesse, a cada dia, dando mais um passo de volta a Carinhanha. De volta pra Teresa. De volta pro cu desse azul impossvel de Carinhanha, que pesa sobre todas as coisas, que torna tudo uma possibilidade. Depois de um tempo chegou notcia de que Jos tinha casado em Minas Gerais e Teresa ficou feliz. Depois de um tempo Carminha entrou pra Igreja e foi ser freira na Bahia. Depois de um tempo Madalena pegou duas meninas pra criar e elas davam tanto trabalho que ela no tinha mais hora no dia pra ficar infeliz e Teresa... Teresa espera na beira do cais h sculos, o tempo no consolo e cada apito do vapor, cada vela que surge no horizonte trazendo atrs de si o possvel barco, reacende no olhar da mulher a misso de esperar. Teresa a beira do cais h anos, seu corpo testemunha de que o tempo no amigo e Teresa vai virando uma pedra fincada ao cho do cais. (Cano So Francisco, letra e melodia de Carlos Barral). Contador - Alegria em que curva te perdestes / Que lajedo, que peral fundo e sombrio / Tu descansas para sempre nesse rio / So Francisco, tu no paras de passar // Lado esquerdo e um rio atravessado / Verde margem e um dezembro que se foi / Se me lembro do meu lado esquerdo di / So Francisco, tu no paras de passar // Passa tudo dentro sempre do meu peito / O que est feito, est feito, est bem feito / O no feito nunca mais que se far / So Francisco, tu no paras de passar // Vai lambendo seus barrancos, seus beirais / Vai levando pedras, peixes e pontais / Mais que tudo vai levando meu olhar / So Francisco, tu no paras de passar //

    FIM.