Corão e Hermenêutica Os Tribunais Muçulmanos
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISPrograma de Graduação em Direito
Corão e HermenêuticaOs Tribunais Muçulmanos
Alan Campos C. Araújo
Carlos Henrique de Oliveira Morais
Elias José Luciano
Gabriela de Azevedo Leão
Henrique Norberto G. Abreu
Jonas Magalhães Saldanha R. C.
Laiana Lanna Mendes Alves
Márcio Placedino Martins
Neuseli Teodoro de Souza
Pedro Henrique Nunes e Silva
Rafael Abade Andrade
Télvio Pereira da Silva
Tiago Falchetto Silva
Belo Horizonte2012
Alan Campos C. Araújo
Carlos Henrique de Oliveira Morais
Elias José Luciano
Gabriela de Azevedo Leão
Henrique Norberto G. Abreu
Jonas Magalhães Saldanha R. C.
Laiana Lanna Mendes Alves
Márcio Placedino Martins
Neuseli Teodoro de Souza
Pedro Henrique Nunes e Silva
Rafael Abade Andrade
Télvio Pereira da Silva
Tiago Falchetto Silva
Corão e HermenêuticaOs Tribunais Muçulmanos
Trabalho escrito submetido ao Seminário de Direito
Processual Penal - “O DIREITO DE PUNIR versus O
DIREITO DE LIBERDADE PARA OS POVOS DO LIVRO E
DE ALLAH” para obtenção parcial de nota na
disciplina de Direito Processual Penal I.
Professor Dr. Sérgio Luiz Souza Araújo
Belo Horizonte2012
Sumário
1. A Natureza do Direito Islâmico...............................................................................................4
2. Fontes do Direito Islâmico......................................................................................................5
3. Evolução Histórica..................................................................................................................7
4. Taqlid e Ijtihad........................................................................................................................9
5. Tribunais da Sharia...............................................................................................................11
6. Ocidentalização do direito....................................................................................................15
7. Perspectivas Futuras.............................................................................................................17
8. Referências Bibliográficas.....................................................................................................19
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A Natureza do Direito Islâmico
A lei sagrada do Islã representa um abrangente corpo de condutas religiosas que
regulam a vida de todos os muçulmanos em todos os seus aspectos. Além das regras legais, em
sentido estrito, na qual possuímos especial interesse, a lei do Islã irá abordar também aspectos
ritualísticos, políticos, econômicos e sociais.
Neste sentido é importante destacar que o direito islâmico, ao contrário da maioria dos
sistemas jurídicos ocidentais, é parte inseparável de um sistema complexo de regras religiosas e
éticas. O direito islâmico representa assim o núcleo e a base do próprio Islã, e sobre ele se estrutura o
pensamento e as mais diversas manifestações do estilo de vida islâmico. Não é surpresa que o direito
seja justamente o epicentro dos atuais conflitos nas nações islâmicas entre o tradicionalismo e o
modernismo, com o crescente impacto dos institutos jurídicos ocidentais.
O direito islâmico é um exemplo por excelência de um "direito sagrado". Apesar de
inevitáveis coincidências com outros modelos jurídicos, principalmente no âmbito do direito material,
o direito islâmico é um fenômeno eminentemente distinto de todas os outros sistemas jurídicos
percebidos, de forma que o seu estudo constitui importante etapa na compreensão do fenômeno
jurídico. (LOSANO, 2007, p. 399)
Apesar da lei islâmica se estruturar como um direito sagrado, ela não é essencialmente
irracional. Como talvez fosse de se esperar, o direito islâmico não foi criado por um processo
irracional de contínua revelação, mas sim por um método racional de interpretação aplicado a
padrões religiosos e regras morais, constituindo assim um arcabouço estrutural para seu
desenvolvimento. Porém, o seu aspecto jurídico formal é pouco desenvolvido, visando fornecer
regras materiais concretas a despeito de regras formais visando a resolução de conflitos. A este
respeito elucida David (1993):
A verdadeira sanção das obrigações que se impõem ao crente é o estado de pecado do que as contraria; o direito muçulmano quase sempre se preocupa pouco, por esta razão, com a sanção das regras que prescreve. (DAVID, 1993, p. 511)
Esta passagem também elucida o caráter personalista do Direito Islâmico juntamente
com a sua natureza confessional, não havendo distinção entre direito e religião. O significado de
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confissão está no reconhecimento de que se fez algo errado, e de última análise no reconhecer como
verdadeiro, declarar, revelar. E tal reconhecimento deve se dar de um ponto de vista pessoal,
subjetivo. Hanini (2007) observa entretanto que a submissão voluntária às Leis de Deus não implicam
em perda da liberdade individual ou rendição perante o fatalismo mas sim de um desfrutar de uma
liberdade responsável e criadora. A esse respeito:
O homem, diferentemente das demais criaturas, foi dotado das qualidades de inteligência, raciocínio e a capacidade de escolha, e por este motivo é chamado à submeter-se voluntariamente à obediência da Lei de Deus, o que o fará coerente com a verdade e trará a perfeita harmonia entre ele e todos os demais elementos do universo que necessariamente obedecem a Deus. (HANINI, 2007, p. 20)
Assim, justificada portanto a necessidade do estudo do direito islâmico, possibilitando
uma melhor compreensão do fenômeno do direito como um todo, e cientes das peculiaridades de
tal sistema jurídico, passaremos a um estudo mais detalhado a respeito da natureza do direito
islâmico e, em especial, de como se dá o processo hermenêutico dos dispositivos do Corão, o livro
sagrado do Islã, na solução de conflitos pelos tribunais muçulmanos.
Fontes do Direito Islâmico
O termo "Islã" possui o significado de "total submissão a Deus". E tal submissão não se
dá restritivamente, pois o próprio direito islâmico também está submetido à divindade. O texto
fundamental do direito islâmico clássico é o Corão, que reflete diretamente a vontade divina.
O conjunto de normas de cunho religioso, jurídico e social baseadas no Corão recebe o
nome de châr'ia ou simplesmente sharia. O termo designa literalmente "o caminho a seguir". É
composto por normas teológicas, morais, normas de direito privado e não obstante normas fiscais,
penais, processuais e de direito bélico (LOSANO, 2007, p. 402). A respeito da sharia citamos o texto
de Hanini (2007):
A Shariah trata-se da lei estipulada por Deus aos homens que regula a relação do homem com Seu Criador, a relação dos seres humanos entre si e a relação dos indivíduos com a criação, trazendo o roteiro da busca da felicidade e da justiça plena nas relações do homem com tudo a sua volta. Toda a normatização desse direito, parte do livro sagrado islâmico que é o Alcorão e dos ensinamentos do Profeta e Mensageiro de Deus Muhamad Ibn Abdullah, sendo estas fontes imutáveis e eternas, preservadas há quinze séculos. (HANINI, 2007, p. 10)
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As fontes teológico jurídicas do direito islâmico são quatro, e estão listadas na Tabela 1.
Em primeiro lugar estão o livro sagrado do Islã - Corão; em seguida a Suna, tradição ligada aos atos do
Profeta; em terceiro lugar temos o acordo unânime da comunidade muçulmana - Idjmâ - e
finalmente o raciocínio por dedução analógica, o Qiyâs.
Fonte Descrição
Corão (Qorân) Livro sagrado do Islã. Conjunto de revelações de Alá ao profeta Muhhamad.
Suna Conjunto de h'adith - tradições relativas aos atos e propósitos de Muhhama
Idjmâ Consenso da comunidade islâmica, que expressa a vontade de Alá;
Qiyâs Processo de dedução analógica onde os ensinamentos dos h'adith são
aplicados a um novo caso análogo.
Tabela 1 - Fontes teológico-jurídicas canônicas do Direito Islâmico.
O Corão e a Suna são fontes históricas fundamentais, e constituem as bases da sharia. Os
juízes atuais, porém, não consultam estes livros diretamente. Uma interpretação definitiva foi
estabelecida pelo Idjmâ, sendo este a única base dogmática do direito muçulmano atual (DAVID,
1993, p. 518). Trata-se de uma garantia que extrai da lei as aplicações práticas que possibilitam a
solução de conflitos. Suprindo as lacunas das três fontes apontadas surge o Qiyâs, uma dedução ou
raciocínio por analogia.
O raciocínio por analogia é considerado de forma supletiva e não criativa de
interpretação e de aplicação do direito (WOLKMER, 2010, p. 299). A partir do século VIII as
possibilidades de interpretação do Corão e da Suna sofreram gradativa limitação, até a total
proibição. Nada mais poderia ser acrescentado. Formou-se assim um sistema jurídico fundamentado
no princípio de autoridade, onde os processos de raciocínio individuais passaram a ser condenados
pelo islã. A este respeito esclarece René David:
Também os processo de raciocínio, que permitiriam uma evolução do direito, são considerados com grande suspeição e geralmente condenados no islã. Não se admite que a opinião pessoal de um crente (rai) possa servir de base a uma solução do direito muçulmano; o apoio que ele pretendesse buscar na razão ou na eqüidade seria insuficiente para lhe dar autoridade, pelo fato de o direito muçulmano não ter uma essência racional, mas sim religiosa e divina. (DAVID, 1993, p. 521).
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Caracteriza-se assim a imutabilidade da doutrina islâmica. Não existe autonomia na
criação das normas jurídicas e a introdução de novas regras só é possível quando não contrariar a
sharia. Para uma melhor compreensão de como se deu a limitação das possibilidades de
interpretação no direito islâmico será feita uma breve análise histórica de sua evolução.
Evolução Histórica
Para entendermos a evolução do Direito Islâmico realizaremos um breve trajeto pela sua
origem, passando pela incorporação de novas fontes de direito, atingindo o ápice da normatização,
até chegarmos à influência da ocidentalização no islamismo. Com a atenção voltada à intrínseca
ligação entre o direito e a religião no mundo muçulmano, é mister iniciarmos nossa evolução pelo
surgimento dessa religião.
Por volta do século VII, quando o mundo era liderado por dois grandes impérios, o
Romano e o Persa, respectivamente no Ocidente e no Oriente, a Arábia, composta de tribos
dispersas, estava em constante conflito interno, predominando a insegurança generalizada. Neste
contexto nasce em 570 d.C. Muhammad, o Profeta – ou Maomé, na tradução direta ao português -
que teve aos 40 anos de idade sua primeira revelação, conforme Leme (1962, p. 104): “o anjo Gabriel
lhe apareceu numa gruta a qual ele costumava retirar-se, e, anunciando-lhe sua missão, revelou-lhe
os seis primeiros versículos do 96º capítulo (surata) do Corão...” desde então, até o fim de sua vida,
no período compreendido entre 610 a 632 d.C., Maomé recebeu várias outras mensagens que deram
origem ao Corão, o livro sagrado dos muçulmanos, de onde provém a religião e toda a base do Direito
Islâmico.
O livro sagrado tornou-se o código máximo da organização política, moral e jurídica do
Islã. Sendo revelado a Muhammad, a palavra nele contida é a de Alá e não a do Profeta. Porém,
conforme nota LOSANO (2007, p. 405), “enquanto fonte jurídica, o Corão oferece pouco material. Dos
6.237 versículos que o compõem, cerca de 10% se referem a temas jurídicos em sentido lato.”, logo,
nele não havia todas as respostas para a vida jurídica daquele povo, fazendo surgir a necessidade de
novas fontes de direito.
A vida de Muhammad, suas condutas, opiniões, palavras e atos, foi observada e
transmitida por uma corrente ininterrupta de narradores, pois para eles o comportamento do Profeta
era inspirado por Deus. Essa transmissão foi em forma de tradição (hadith). Cada uma das ações do
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Profeta constituiu um hadith, da coleção desses hadith fez surgir, no Século IX, a segunda fonte do
Direito Muçulmano, conforme aponta LOSANO (2007).
No século IX foram preparadas coleções de hadith que relatavam os comportamentos, as palavras e até os silêncios do Profeta, das quais se podia extrair regras de comportamento não expressas pelo Corão. O conjunto dessas coleções constitui a tradição sagrada, a suna, e é seguida pela maioria dos muçulmanos, que assumem o nome de "sunitas". (LOSANO, 2007, p. 406)
Corão e Suna, interpretados segundo técnicas minuciosas, ainda deixavam problemas
sem solução. Dentre as tradições da Suna havia uma que afirmava que a comunidade muçulmana
nunca chegaria a um acordo sobre um erro, e o que os muçulmanos considerarem justo é justo para
Deus. Nesta concepção surge o dogma da infalibilidade da comunidade muçulmana que é a terceira
fonte do Direito Muçulmano, o Idjmâ, que é a expressão do sentimento unânime da comunidade
muçulmana ao interpretar o Corão e a Suna. Porém essa unanimidade não é de toda a multidão de
muçulmanos, bastando apenas o acordo dos jurisconsultos do islã conforme afirma David (1993):
A unanimidade exigida é a das pessoas competentes, daquelas cuja função própria é destacar e revelar o direito: os jurisconsultos do islã (fuqahã). "Os sábios são os herdeiros dos profetas"; o acordo dos doutores e jurisconsultos do islã, amalgamando a tradição, o costume e a prática para reconhecer uma regra de direito, um princípio ou uma instituição, confere à solução jurídica que eles admitem unanimemente uma incontestável força de verdade jurídica. (DAVID, 1993, p. 516)
O Idjmâ foi escrito do séc. VIII ao X, sendo o ano de 922 (ano 300 da Hégira) o ano em
que terminou a possibilidade de interpretação das fontes da lei revelada. Sua importância para o
direito Islâmico é fundamental, pois para o Juiz não é necessário a consulta ao Corão e à Suna para
motivar suas decisões, bastando apenas consultar o Idjmâ, pois ele é composto pela interpretação
infalível daquelas duas fontes originarias do Direito Muçulmano, sendo elas apenas históricas, “ao
juiz não é permitido se aventurar a interpretá-las com sua própria autoridade”. (DAVID, 1993, p. 518)
Mesmo com toda essa fonte legal, os doutores da lei não puderam prever todas as
hipóteses da vida concreta. Assim, visando à completude do direito muçulmano, temos a quarta e
última grande fonte, que é o raciocínio por analogia, que veio para suprir as lacunas das outras três
fontes apontadas. Sendo, porém, apenas uma forma supletiva e não criativa de interpretação e
aplicação do direito, pois “após a fixação das leis dogmáticas as interpretações foram totalmente
proibidas”. (WOLKEMER, 2010, p. 299)
Corão e Suna são as fontes sagradas, originárias pela autoridade de Deus, logo só podem
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ser alteradas ou suprimidas pela mesma autoridade ou autoridade superior, nem mesmo ao Estado é
permitido realizar alterações. Contudo, o Idjmâ também possui esse caráter dogmático, conforme
nota-se nos dizeres de WOLKEMER (2010, p. 298) ao afirmar que “uma vez estabelecida a
interpretação, a solução não pode ser contestada.”. Assim, o fiqh (ciência do direito muçulmano) é
um direito imutável, segundo aponta David:
O fiqh é um sistema doutrinal, fundado sobre a autoridade de fontes reveladas ou cuja infalibilidade foi admitida. O direito muçulmano, fixado à maneira de um dogma no século X da nossa era, é imutável; o islã não reconhece a nenhuma autoridade o poder de o modificar. Os governos, nos Estados muçulmanos, não têm o poder de criar o direito e de legislar; só podem elaborar regulamentos administrativos dentro dos limites consentidos pelo direito muçulmano, sem entrar em conflito com ele. (DAVID, 1993, p. 519)
Assim, temos como se deu a limitação das possibilidades de interpretação do direito
islâmico, nota-se que ao longo de três séculos tivemos sua formação e desde então a doutrina é
imutável, os “autores quando escrevem sobre esse direito nada acrescentam ao sistema, fazendo
apenas exegese das obras consideradas como clássicas”, conforme aponta RENE (1993, p. 519). Por
vários séculos não tivemos mudanças. Só a partir do séc. XIX é que os povos Islâmicos passaram a
enfrentar uma forte influência ocidental, como veremos abaixo quando tratarmos do tema
“ocidentalização”.
Taqlid e Ijtihad
Como vimos anteriormente, o direito muçulmano possui uma base de interpretação
fundamentalmente religiosa e imutável. Nos dizeres de Mario Losano, “Vinculado a um texto sagrado,
o direito islâmico está subordinado ao ritual religioso: por isso a ciência jurídica é vinculada pela
teologia [...]” (LOSANO, 2007, p. 471). Corão, Suna e Idjmâ são suas três grandes fontes, por
excelência. O fiqh (ciência do direito muçulmano) possui base interpretativa acabada, cujo sistema
doutrinal, alicerçado às fontes sagradas do islã, é dotado de uma infalibilidade há muito admitida e
reconhecida pelos doutores e fiéis. Como expõe René David,
[…] o islã não reconhece a nenhuma autoridade o poder de o modificar. Os governos , nos Estados muçulmanos, não têm o poder de criar o direito e legislar; só podem elaborar regulamentos dentro dos limites consentidos pelo direito muçulmano, sem entrar em conflito com ele. (DAVID, 1993, p. 519)
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Esse modo de lidar com o direito, para nós, ocidentais, é difícil até de compreender, pois
foge à nossa própria experiência. Aqui, o caminho intelectual para a tomada de uma decisão segue o
percurso do homem de intelecto razoável: primeiro conhece, depois delibera livremente (nos limites
da lei e da probidade), e, por fim, decide, de acordo com o que conheceu e com sua deliberação
inteligente. O dever que se impõe ao muçulmano é observar o taqlid. Ele deve reconhecer a
autoridade das gerações anteriores (DAVID, 1993, p. 519). Por isso mesmo é que os autores do direito
não deduzem suas opiniões pela razão. A interpretação já está consolidada e se alicerça na própria
revelação divina. Aos jurisconsultos modernos somente é permitido comparar, coligir documentos,
esclarecê-los, porém, sem nada acrescentar à doutrina já consolidada. Caso contrário, cometeria
equívoco tão grande quanto ao que um católico incorreria se, pautado em seu próprio discernimento
e percepção, viesse a interpretar, subjetiva e solitariamente, os mandamentos de sua Igreja.
Mas as portas para a livre interpretação nem sempre estiveram fechadas. Até o século IV
da Hégira foi feito um grande esforço, o Ijtihad, pra interpretar as fontes da Lei Divina. Segundo
definição do centro islâmico do Brasil, o Ijtihad
[..] é a etapa mais alta de um líder religioso. Nela ele retira e conclui as jurisprudências islâmicas se baseando no alcorão sagrado e na tradição do profeta Mohammad e seus sucessores. (AL-KHAZRAJI, 2012)
No mesmo sentido são os ensinamentos de Sheik Taleb Hussein Al-Khazraji:
Deus incumbiu a nação islâmica a seguir o exemplo destes (dos profetas e doutores) e a se saciar de seu conhecimento, como também a aproveitar o saber e a especialização dos eruditos e juristas que se empenharam na elaboração de repostas a todas as questões e inovações no processo do desenvolvimento da civilização, o que é denominado de Ijtihad”. (AL-KHAZRAJI, 2004, p. 11)
Contudo, essas possibilidades para uma flexível interpretação das fontes foram sendo
paulatinamente reduzidas, até que, no século IV da Hégira, a própria legitimidade dessa interpretação
acaba por ser negada, e foi fechada a porta do esforço – bâb-el-idjitihâd – (DAVID, 2004, p. 519). Essa
teoria é conhecida como o “encerramento dos portões do Ijtihad”, ou teoria da abdicação do uso da
razão humana para fins de extrapolação da lei a partir das fontes islâmicas (BONATE, 2008, Revista
Crítica de Ciências Sociais).
De fato, é consenso entre os doutores islâmicos o fim do Ijtihad, que foi substituído pelo
dever do Taqlid. Contudo, essa rigidez não dá ao direito muçulmano o caráter de um direito arcaico e
extinto. Longe disso. São essas características extremamente peculiares que o tornam tão original
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quanto qualquer obra grandiosa da Idade Antiga e fazem dele um dos grandes sistemas jurídicos do
mundo moderno, regulando a vida de nada menos que quinhentos milhões de muçulmanos.
Igualmente, sua inflexibilidade não o torna incompatível com a possibilidade de sua modernização.
Nesse sentido, tal é o campo de aplicação dado ao costume e à convenção das partes,por exemplo,
que a imutabilidade, interessantemente, anda de mãos dadas com as transformações socioculturais
que a sociedade hodierna exige para a tomada das decisões.
Tribunais da Sharia
Os tribunais islâmicos ou tribunais da Sharia são todos aqueles que seguem a lei da
Sharia, ou seja, a lei estipulada pelo seu criador (Deus), que regula a relação entre os próprios
homens e deles com Deus, na busca da felicidade e pela justiça, tendo como bases principais o
Alcorão, a Suna, o Ijtihad. Julgando causas de crimes, questões de sucessão, herança e outros
assuntos da sociedade islâmica. Suas leis imutáveis, por isso não se pode considerar que sejam
ultrapassadas.
Eles são compostos de juízes, grandes conhecedores da sharia e fiqh, além de grandes
conhecimentos da religião Islâmica, é necessário bom senso para se atuar em condições não
especificas dessa lei. Esta é uma das funções atribuídas aos profetas, sendo, portanto abençoada e
virtuosa, por isso o juiz que se esforçar para proferir uma sentença justa, mesmo que não encontre a
verdade será recompensado, como disse o Profeta Muhammad:
Se o juiz se para ditar uma sentença justa e acerta a verdade, Deus o premiará com duas recompensas e se esforçar e não acertar, será premiado com uma só. (HANINI, 2007, p. 157)
Podemos citar ainda outro ensinamento do profeta:
Os justos se encontram, perante, Deus, sobre estratos de luz. São os imparciais em suas sentenças, mesmo que se trate de suas famílias, bem como os fieis. (Hanini. (HANINI, 2007, p. 157)
Já no Alcorão é dito pelo próprio Deus:
Julga, pois entre os humanos com equidade e não te entregues à concupiscência, para que não te desvies da senda de Deus. Capítulo 38, versículo 26. (HANINI, 2007, p. 157)
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Deus ordena a justiça, a caridade, o auxílio aos parentes, e vida a obscenidade, o ilícito e a iniqüidade. Ele vos exorta a que mediteis. Capítulo 16, versículo 90. (HANINI, 2007, p. 157)
Sedes equânimes, porque Deus aprecia os equânimes. Capítulo 49, versículo 9. (HANINI, 2007, p. 157)
Além dos quesitos citados acima ele deve zelar pela equidade, ouvir depoimentos para
julgar como Deus revelou, sempre baseado na Sharia, pois é a ela que o juiz recorre para solucionar o
conflito. Nesses tribunais as partes recebem nomes de demandante (quem pretende um direito),
demandado (quem o demandado pretende o direito), e o objeto( causa do direito). Sendo sempre
ajuizado a demanda no domicílio do réu. As provas aceitas que confirmam uma demanda são:
Confissão que é a prova mais importante para a Sharia, apenas observando como
requisitos a capacidade perante a lei não sendo feita sobre pressão. Sendo recomendado que mesmo
não fazendo em público a confissão se arrependa do pecado perante Deus como explicitado no
Alcorão:
Os fieis, voltai-vos todos, arrependidos, a Deus, a fim de que vos salveis! Capítulo 24, versículo 31. (HANINI, 2007, p. 160)
A prova testemunhal é outro meio do juiz tenta descobrir a verdade, nada, mas é do que
uma pessoa declarar com seus conhecimentos do fato acontecido, o que ocorreu no lugar. A pessoa
não precisa temer pela sua confissão, pois está apenas fazendo uma ordem de Deus como diz o
Alcorão Sagrado:
Não vos negueis a prestar testemunho: saiba, pois quem o nega, que seu coração é nocivo. Deus sabe o que fazeis. Capítulo 2, versículo 283. (HANINI, 2007, p. 160)
Entretanto, quando o delito é aberto ao público deve-se dar testemunho, agora caso seja
um delito de instância privada penalizado por Deus o ideal é que não preste testemunho, como por
exemplo, o crime adultério, onde o indivíduo tem que ter moral para não divulgar pecados alheios.
Ainda podemos dizer que para os Tribunais de Sharia para se prestar um testemunho tem-se que
preencher requisitos como se lembre plenamente do fato, seja muçulmano, tenha capacidade mental
e discernimento perante a lei. E por último o juramento por Deus, que na grande maioria das vezes é
feito pelo demandado, caso não seja apresentado provas suficientes, pelo simples julgamento por
Deus é suficiente para presumir sua inocência,posto que assim como no ocidente os Tribunais de
Sharia adotam o princípio de que em caso de dúvida o réu seja inocentado.
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O processo judicial nos tribunais de Sharia se dá da seguinte maneira:
Quando se apresentarem perante o juiz duas pessoas com diferentes pretensões, este deverá perguntar-lhes quem deles é o autor da ação e deverá permanecer em silêncio esperando que algum destes comece a falar. Então o que primeiro se expressar será considera autor da ação. Se a parte contrária concordar com o exposto pelo autor, o juiz julgará a favor deste. Mas se negar as afirmações do autor, o juiz pedirá ao autor que apresente as provas o juiz deverá analisá-las. Se o autor não apresentar nenhuma prova, o juiz lhe informará que tem o direito de requerer o juramento do demandando. Se ele requerer o juiz, o juiz deverá tomar o juramento por Deus do demandado, que se jurar não ter cometido os atos, será eximido da culpa . Se o demandado se nega a jurar por Deus, a negativa fará presumira veracidade da alegação da parte autora. Neste caso, o juiz poderá, por questão de segurança, pedir que a parte autora jure por Deus estar dizendo a verdade, para confirmar a sentença. Vale ressaltar que se após o juramento do demandado e de ser eximido da culpa, a parte autora apresentar prova convincente, o juiz terá a obrigação de reformar sua sentença, isso porque a extinção do processo com o juramento do demandado, não exclui a possibilidade de provar a posteriori a verdade evidente.
Em regra, a sentença de um juiz não poderá ser revogada, salvo quando contradisser o Alcorão Sagrado, a Sunnah eu consenso dos sábios. (HANINI, 2007, p. 163)
Os tribunais de natureza penal vêm sendo muito discutidos atualmente pela mídia,
podemos falar que para o Islã o crime mais grave é o homicídio, depois o de idolatria, a menos que
seja no cumprimento de uma sentença judicial, para o Islã no dia do juízo final Deus os questionar
sobre duas coisas, as orações e crimes contra vida de outros. Sendo assim os tribunais de Sharia
punem com rigor. Se o homicídio for doloso, ocorre a penalidade através da lei de talião, o homicida é
executado. No Furto a pena é expressamente dita no Alcorão:
Quanto ao ladrão e a ladra, decepai-lhes a mão, como castigo de tudo quanto tenham cometido: é um exemplo, que emana de Deus, porque Deus é poderoso, prudentíssimo.” Capítulo 5, versículos 38-39. (HANINI, 2007, p. 149)
Entretanto a amputação só ocorre se observado certos requisitos serem observados
como, por exemplo, aquele tenha sido cometido ocultamente, denúncia da vítima, ladrão capaz e
outros. No adultério que é a conjunção carnal entre um homem e uma mulher que sejam casados,
mas não entre si, nesse caso a pena é muito grave, pois atenta contra a moral e os bons costumes da
sociedade. Já na formicação é quando ocorre relação sexual entre homem e uma mulher, que não
sejam casados, tendo como pena nesse caso 100 chibatadas.
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Os tribunais utilizam como pena o apedrejamento ou lapidação com uns pretendem
chamar, para isso é necessário quatro testemunhas (tendo pena de 80 chibatadas para quem mentir
em seu depoimento) ou a confissão do delito. No entanto, não há consenso da comunidade islâmica
sobre o apedrejamento. Em 2002, por exemplo, o Aiatolá Mahmoud Hashemi-Sharoudi, suspendeu
as execuções por apedrejamento, mesmo assim como não houve ainda uma integralização das leis,
juízes locais continuam aplicando a lapidação.
O homossexualismo é considerado crime grave para o Islã, sendo punido com pena de
morte. Também podemos calúnia e a difamação, pois o Islã presa muito pela honra do muçulmano,
sendo punido segundo o livro sagrado da seguinte maneira:
E aqueles que difamarem as mulheres castas, sem apresentarem quatro testemunhas, infligi-lhes oitenta vergadas e nunca mais aceites os seus testemunhos, porque são depravados. Exceto aqueles que, depois disso, se arrependerem e se emendarem, sabei que Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo. Capítulo 24, versículos 4-5.(HANINI, 2007, p. 149)
Eles serão punidos em quatro casos acusação de adultério, de formicação,
homossexualismo, e filiação ilegítima. No caso de embriagues ou jogos de azar o alcorão proíbe
expressamente, a pena nestas situações varia podem ir de multa e prisão, até uma serie de
chibatadas, sendo assim os juízes da Sharia deverão ter a razoabilidade necessária para aplicar a pena
mais justa ao caso concreto.
Na atualidade têm-se notícias de Tribunais de Sharia atuando no Reino Unido, estima-se
que sejam por volta de 85 no total. Há existência desses tribunais dentro de um país ocidental, com
legislação diversa, tem gerado muitas polêmicas, pois vários afirmam que se tornariam um sistema
jurisdicional paralelo a lei britânica. O que gera muitas controvérsias posto que a lei islâmica não
reconheça a igualdade entre homens e mulheres, os direitos dos homossexuais e liberdade religiosa.
No Brasil ainda não observamos nenhum fato que se ganha tanta notoriedade, mas provavelmente
aqui não seria aceito, tendo em vista uma decisão do STF sobre uma comunidade judaica onde o
órgão explicita que normas religiosas não são capazes de alterar a rotina administrativa e legal do
país, segundo o Agravo Regimental 389, publicado em 2010, além te termos um direito separado da
religião.
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Ocidentalização do direito
As instituições jurídicas da comunidade muçulmana sofreram poucas modificações
desde a sua constituição na Idade Média pelos juristas religiosos, uma vez fechadas as portas a novas
interpretações e ao fluxo constante de mudanças sócio culturais. Tal imutabilidade se deu
principalmente devido a uma preocupação em preservar o objetivo fundante de consolidação de uma
unidade religiosa, nos moldes de uma concepção ortodoxa do mundo. (WOLKMER, 2010, p. 303)
No entanto, a partir do século XIX, observa-se com a expansão colonial europeia a
influência ocidental sobre o Próximo Oriente muçulmano. Podemos observar, conforme David (1993,
p.235), que grandes modificações podem ser notadas durante esse período no sistema jurídico dos
Estados Islâmicos, propiciando o desenvolvimento de jurisdições distintas: uma imutável e
conservadora baseada na autoridade e fé e outra justiça receptiva a novas interpretações fundada na
razão e no direito comparado. O fiqh, ciência do direito muçulmano, não sendo adaptado às
necessidades modernas, se torna eventualmente antiquado para a solução de um conjunto de casos,
o que acaba por forçar um certo abandono ao imobilismo, sob a pena de se distanciar da realidade
social. Tal influência ocidental deve-se também à sedução do bem estar material do oeste e pelos
seus ideais políticos e concepções morais.
Dentre as possibilidades de se libertar de soluções arcaicas temos a recorrência às
convenções; aos costumes - para eles o costume não é parte do direito e não está ligado a fiqh, mas
isso não proíbe o seu uso desde que não vá de encontro às prescrições do direito; e estratagemas e
ficções jurídicas que são, por sua vez, de grande utilidade para o direito muçulmano atual, pois
permite que sejam evitados os efeitos desejados de regras formais do direito sem violá-las
diretamente. (DAVID, 1993, p. 528)
Dentre as modificações, podemos destacar a incorporação de regras de advindas das
tradições romano germânica e do common law, ampliando os assuntos tratados no direito, e a
codificação de matérias que escaparam a ocidentalização que nem sempre implicou em inovações
compatíveis com a ortodoxia oficial, como por exemplo no que se refere ao direito das pessoas, da
família das sucessões e da tutela. É possível observar, em contrapartida, que com a descolonização
europeia e a conscientização política e econômica do islã a influência ocidental no sistema jurídico
islâmico sofreu uma redução considerável. (WOLKMER, 2010, p. 305). Também segundo René David:
O resultado, em qualquer caso, é o mesmo: nas matérias não respeitantes ao
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estatuto pessoal (pessoas, famílias e sucessões) e que não se referem às “fundações pias”, o direito muçulmano deixou de ser aplicado em proveito das regras importadas do direito de família romano-germânica ou da common law. O direito constitucional e o administrativo, o direito civil e o comercial, o direito do processo, o direito criminal e o direito do trabalho foram deste modo, ocidentalizados em numerosos países muçulmanos, apenas conservaram algumas disposições que ainda mantém o cunho do direito muçulmano. (DAVID, 1993, p. 536)
O direito muçulmano apresenta-se flexível, apesar de imutável, devido as sua riqueza de
expediente, o que explica a sua concreta existência nos dias atuais. Na definição de René David:
[…] É um direito imutável, mas deixa um tal campo de aplicações ao costume, à convenção das partes, à regulamentação administrativa que é possível, sem lhe causar prejuízo, chegar a soluções que permitam constituir uma sociedade moderna. Só excepcionalmente, para quem sabe se organizar, o caráter arcaico de certas instituições ou regras do direito muçulmano poderá tornar-se um embaraço. (DAVID, 1993, p. 526)
É importante também, mencionar que ao contrário da unidade religiosa e da tradição
jurídica comum, não há uma unidade sistemática do direito muçulmano, ao contrário, temos um
pluralismo jurídico na comunidade islâmica mundial, conforme a distinta evolução política e social
dos estados. Dessa maneira, o direito muçulmano tem se apresentado na comunidade mundial entre
diferentes grupos: os fundamentalistas, que mantém os ritos antigos, os costumes locais e rejeitam
radicalmente a influência ocidental aplicando rigorosamente a lei corânica; os reformista que são
países que mantém, concomitantemente, o direito muçulmano com o direito europeu e são
influenciados pela matriz jurídica do common law, pelo modelo romano ou ainda pelo modelo
holandês; e os secularistas que possuem a tradição religiosa muçulmana, mas adotaram ao longo do
século XX, princípios socialistas marxista-leninistas, em geral são países laicos, de forma, a minimizar
o direito clássico muçulmano observado secundariamente nas jurisdições estatais. (WOLKMER, 2010,
p. 306)
Vale ressaltar, ainda, a importância do islã para a cultura ocidental, pois foram muitos os
lugares que sofreram sua influência, sobretudo, durante a idade média. Basicamente, os lugares mais
influenciados na Europa podem ser agrupados em três regiões principais: (1) se concentravam no
ocidente, na Espanha muçulmana, que, por sua vez, foi grande colaboradora no processo de
transmissão de tal cultura, visto que os estudantes europeus dessa região haviam traduzido a
literatura muçulmana da jurisprudência e da implantação da sharia; (2) na Sicília e no sul e sudeste da
Itália; e (3) no Oriente, em Constantinopla. (HANINI, 2007, p. 18)
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A ciência jurídica muçulmana, devido a sua natureza abrangente, foi a primeira a
conceber-se como ciência abstrata, separada dos códigos de legislação geral do país. No âmbito do
direito Internacional foram os primeiros a se definir, criando direitos e deveres, tendo um capítulo a
parte nos códigos e tratados internacionais. Podemos também citar como contribuição muçulmana
no sistema jurídico ocidental a lei casuística comparada, o surgimento de diversas escolas de direito
muçulmano tornou importante, para relevar as razões das diferenças de interpretação e suas
divergências. A constituição positivada também foi inovação muçulmana, mencionando precisamente
direitos e obrigações do chefe de estado, as unidades constituintes e também os respectivos setores
em matéria de administração, justiça, legislação, entre outros. (HANINI, 2007, p. 19)
Além disso, durante a idade média, a plebe não tinha reconhecido o seu direito de exigir
contas dos governantes, devido ao relacionamento despótico existente entre governo e governados.
O poder era totalmente vertical e hierarquizado e transmitido como herança. Esse quadro perdurou
até a dominação islâmica, que difundiu o princípio de que o governante eram somente guardiões
cujo dever era defender e garantir os interesses do povo. O islamismo foi fundamental para a difusão
do amor, respeito, cooperação e a igualdade, unificando a fé e a razão. Baseando-se nas leis e
princípios islâmicos não há superioridade de uns sobre os outros, seja em se tratando de raça,
nacionalidade ou classes, sendo este provavelmente, um dos mais nobres legados que o islamismo
nos deixou. (HANINI, 2007, p. 20)
Perspectivas Futuras
Apesar da existência de países conservadores e intolerantes à ocidentalização, não se
presume qualquer indício de decadência do direito muçulmano o que evidencia em algum nível o
sucesso e eficácia desse sistema jurídico. Assim, segundo Gilissen (1986): “mais do que europeizar as
suas instituições, os muçulmanos islamizam as instituições que lhe são úteis”.
Aqui vale lembrar que, além dos citados desenvolvimentos das ciências jurídicas
muçulmanas, não se pode olvidar da inegável contribuição dos povos islâmicos em diversas outras
áreas do conhecimento. Com destaque para as áreas basilares da Matemática, em especial a
trigonometria – o que veio a permitir desenvolvimentos nos domínio da astronomia, da geografia e
da cartografia – além de estudos pioneiros sobre criptografia, a ciência das comunicações seguras.
Fica evidente que a influência da cultura islâmica na história do Ocidente não deve ser
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desprezada em uma análise satisfatória da evolução dos institutos jurídicos e também em outros
eventuais estudos. Ao invés de se falar em uma “ocidentalização do direito islâmico”, que sugere uma
bilateralidade evolutiva dos institutos, seria mais interessante uma abordagem mais ampla, que
buscasse a compreensão multilateral desses institutos face aos grandes sistemas jurídicos modernos.
Como visto o direito islâmico é exemplo por excelência de um "direito sagrado",
possuindo aspecto jurídico formal pouco desenvolvido. Porém, ao se estudar o islamismo e as
culturas locais islâmicas, não se deve cometer o erro de generalizar e concluir que tudo se reduz à
religião. A compreensão do elemento religioso não exclui uma análise dos diferentes interesses e das
forças políticas que estão em jogo em cada questão.
O estudo do processo hermenêutico nos tribunais islâmicos se mostra um ponto
importante para evidenciar a receptividade das sociedades islâmicas aos conceitos jurídicos
ocidentais como a laicização e racionalização do direito. David (1993, p. 543) acredita estar ainda
muito longe o alinhamento do direito islâmico com a família dos direitos românicos, pois implicaria
invariavelmente em uma rejeição da tradição jurídica muçulmana por toda uma civilização islâmica.
Losano (2007, p. 447) identifica três posicionamentos frente ao processo de reforma do atual mundo
islâmico: os modernistas, que pendem para uma ocidentalização do mundo islâmico nos aspectos
sociais jurídicos e econômicos, os tradicionalistas, abertos ao Ocidente mas não a ponto de renegar a
própria tradição cultural e os fundamentalistas que pregam a rejeição violenta ao ocidental e um
retorno à fé integral do passado.
Não obstante as dificuldades e resistências nesse processo de “choque de culturas”,
Wolkmer (2010, p. 309) muito bem observa que há de se procurar uma melhor aproximação da
tradição espiritualista do islamismo oriental com a universalidade do humanismo da cultura
ocidental. Assim o desafio está em compatibilizar os aspectos humanísticos do Corão com a moderna
cultura dos direitos humanos. Será importante para o Islã a absorção de princípios como a liberdade,
dignidade humana e direitos fundamentais e, por outro lado, poderá contribuir para a superação de
uma visão intrinsecamente individualista que permeia os direitos humanos ocidentais.
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Referências Bibliográficas
AL-KHAZRAJI, Sheik Taleb Hussein. Dicionário Islâmico. 2012. Disponível em : http://www.arresala.org.br/dic.php?op=53&cod=158. Acesso em: 25 maio 2012.
AL-KHAZRAJI, Sheik Taleb Hussein. Islam em seus princípios. São Paulo: Marse, 2004, P. 11.
BONATE, J. K. Liazzat. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, Março 2008. p. 195-211.
CHEREM, Youssef. As ambiguidades do direito islâmico em contextos contemporâneos. Horizonte: revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, ISSN 2175-5841, Vol. 9, Nº. 20, 2011, pags. 114-131.
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 556p.
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986.
HANINI, Zuhra Mohd El. Noções de direito islâmico (Shariah). Monografia (Graduação em Direito). Universidade da Região da Campanha. 2007. 173 p. Disponível em: http://www.uniaoislamica.com.br/livros/nocoes_de_direito_islamico_sharia_para_internet.pdf Acesso em: 16 maio 2012.
LEME, Lino de Morais. Direito civil comparado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1962. 407p.
LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 676 p (Justiça e direito.
SCHACHT, Joseph. An Introduction to Islamic Law. Oxford University Press, 1964. 304 p.
WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de história do direito. 5. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. xiii, 498 p.