CONTRIBUIÇÃO DE SENNA-MARTINEZ PARA O ESTUDO DA...
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FACULDADE DE LETRAS E CIENCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE ARQUEOLOGIA E ANTROPOLOGIA
LICENCIATURA EM ARQUEOLOGIA E GESTÃO DO PATRIMÓNIO CULTURAL
CONTRIBUIÇÃO DE SENNA-MARTINEZ PARA O ESTUDO DA
OLARIA ASSOCIADA AOS CONCHEIROS DE MOÇAMBIQUE
TENTATIVA DE INTERPRETAÇÃO DO CONTEXTO ARQUEOLÓGICO
Dissertação apresentada em cumprimento parcial dos requisitos exigidos para a obtenção do grau
de Licenciatura em Arqueologia e Gestão do Património Cultural da Universidade Eduardo
Mondlane
Liçana Joaquim Jeiamba
Maputo, 2017
CONTRIBUIÇÃO DE SENNA-MARTINEZ PARA O ESTUDO DA OLARIA
ASSOCIADA AOS CONCHEIROS DE MOÇAMBIQUE
TENTATIVA DE INTERPRETAÇÃO DO CONTEXTO ARQUEOLÓGICO
Dissertação apresentada em cumprimento parcial dos requisitos exigidos para a obtenção do grau
de Licenciatura em Arqueologia e Gestão do Património Cultural da Universidade Eduardo
Mondlane
Supervisora: Profª. Doutora Solange Laura Macamo
Maputo, 2017
O Júri
Data:
__/___/____
O Presidente:
________________
A Supervisora:
____________________
O Oponente:
____________________
I
Índice
DECLARAÇÃO .............................................................................................................................. I
ÍNDICE DE TABELAS E FIGURAS ............................................................................................ II
AGRADECIMENTOS ................................................................................................................... II
DEDICATÓRIA ........................................................................................................................... VI
RESUMO ..................................................................................................................................... VII
CAPÍTULO I ................................................................................................................................ 11
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11
1.1. Formulação do problema ................................................................................................ 13
1.2. Relevância do tema ........................................................................................................ 14
1.3. Objectivos....................................................................................................................... 15
13.1. Geral ................................................................................................................................. 15
1.3.2. Específicos ...................................................................................................................... 15
1.4. Metodologia ................................................................................................................... 16
1.5. Definições....................................................................................................................... 16
CAPÍTULO 2 ................................................................................................................................ 18
REVISÃO DA LITERATURA .................................................................................................... 18
CAPÍTULO 3 ................................................................................................................................ 25
DESENVOLVIMENTO DO CONTEXTO ARQUEOLÓGICO ................................................. 25
3.1. Sumário ............................................................................................................................. 25
3.2. Sociedade de Caçadores e Recolectores ........................................................................... 25
3.3. Comunidades de Agricultores e Pastores .......................................................................... 26
3.4. O concheiro de Chongoene ................................................................................................ 29
3.4.1. Localização ..................................................................................................................... 29
3.4.2. História da investigação .................................................................................................. 29
3.4.3. Características ................................................................................................................. 30
3.4.4. Tradição cerâmica ........................................................................................................... 30
3.4.5. Discussão ........................................................................................................................ 31
3.5. Estação arqueológica da Matola ........................................................................................ 32
3.5.1. Localização ..................................................................................................................... 32
3.5.2. História da Investigação .................................................................................................. 33
3.5.3. Características 33
3.5.4. Tradição cerâmica ........................................................................................................... 33
II
3.5.5. Discussão ........................................................................................................................ 34
3.6. Olaria do concheiro de Chongoene .................................................................................... 35
3.7. Olaria da estação arqueológica da Matola ......................................................................... 37
3.8. Considerações finais .......................................................................................................... 41
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................... 42
I
DECLARAÇÃO
“Declaro por minha hora que esta Dissertação, nunca foi apresentada para obtencao de qualquer
grau e que ela resulta da minha investigação pessoal, estando indicadas as fontes que consultei
para a sua materialização”.
Maputo, 2017
____________________________________________
Liçana Joaquim Jeiamba
II
ÍNDICE DE TABELAS E FIGURAS
Tabela 1- Periodização da Idade da Pedra .................................................................................... 26
Tabela 2- Periodização da Idade de Ferro ..................................................................................... 27
Tabela 3- Inventário da olaria do concheiro de Chongoene (2533Ab1)/Espólio do Laboratório
Nr. 8 do DAA/UEM ...................................................................................................................... 36
Tabela 4- Inventário da olaria da estação arqueológica da Matola (2532Cd01) /Espólio do
Laboratório do DAA/UEM ........................................................................................................... 38
Figura 1- Correntes da migração Bantu (Huffman1989a, 1989b). ............................................... 21
Figura 2- Localização das estações arqueológicas mencionadas no texto (Cruz & Silva1976). .. 28
Figura 3- Olaria do Concheiro de Chongoene (Senna-Martinez 1974). ....................................... 31
Figura 4- Concheiro de Chongoene (Foto: Leonardo Adamowicz) ............................................. 32
Figura 5- Olaria da estação arqueologica da Matola (Cruz & Silva 1976). .................................. 34
Figura 6- Olaria do concheiro de Chongoene (Foto: Mussa Raja , 2017). ................................... 37
Figura 7- Olaria da estação arqueológica da Matola (Foto: Mussa Raja, 2017). ......................... 39
Figura 8- Análise da Olaria contida do concheiro de Chongoene e da Estação Arqueológica da
Matola contida no espólio do Laboratório do DAA/UEM, efectuada pela autora. ...................... 40
III
LISTA DE ABREVIATURAS
APUD- Citado por
C.F- Comparar com
DAA- Departamento de Arqueologia e Antropologia
IBIDEM- No mesmo lugar
IFI- Idade do Ferro Inferior
IFS- Idade do Ferro Superior
IPI- Idade da Pedra Inferior
IPM- Idade da Pedra Média
IPS- Idade da Pedra Superior
S/D- Sem data
TLCCSM- Tradição de lixeiras de cozinha da costa sul de Moçambique
UEM- Universidade Eduardo Mondlane
IV
AGRADECIMENTOS
Foram vários os contributos de pessoas e entidades que importa reconhecer e agradecer, de
forma especial, na apresentação deste trabalho.
Desde já, quero agradecer à Prof.ª Doutora Solange Macamo, pela forma exigente e crítica com
que orientou esta dissertação. Terei sempre presente o seu interesse pelo tema, as discussões
tidas e os importantes conselhos reveladores de imensa sabedoria.
A todos os professores do DAA, pela importante contribuição para a minha formação académica,
pela disponibilidade e preciosa ajuda, sem as quais dificilmente teria sido possível a
concretização deste trabalho. O meu especial reconhecimento ao Prof. Doutor Hilário
Madiquida, a quem admiro, devido à sua sabedoria e dedicação à arqueologia e, em particular
pelo interesse que teve pelo tema desta dissertação. Quero agradecer ao Dr. Ricardo T. Duarte e
esposa, Yolanda T. Duarte, pela ajuda, na resolução de algumas dúvidas pontuais surgidas ao
longo da realização do trabalho.
Os meus agradecimentos são extensivos à Directora do Curso de Arqueologia e Gestão do
Património Cultural, Dra. Kátia Filipe, pelas explicações várias sobre procedimentos, assim
como ao Dr. Décio Muianga e ao Prof. Doutor Leonard Adamowicz, pela disponibilização de
bibliografia referente ao período dos Caçadores e Recolectores.
Agradeço igualmente pela ajuda prestada na etapa final da tese: ao Dr. Mussa Raja e ao colega
Énio Tembe, nas ilustrações. Quero aqui também agradecer ao dr. Roberto Mussibora, pela
ajuda prestada tanto nas ilustrações como na redacção gráfica da tese.
Agradeço ainda ao dr. Chafim Braga, pela ajuda prestada na realização desde trabalho, ao colega
Varsil Marcos na sua organização e à turma do ano 2012, no geral, pelos momentos de partilha
de experiência, em especial Nilza Carlos, Lisete Raul, Sunária Chuquela, Catilda Sitoe, Hessa
Abudo, Albino Zunguza Ezequias Magul e Isidro Covane.
Sem a ajuda indispensável da Secretária do DAA/UEM, Sra. Maria Inês Sevene não teria
conseguido concretizar este trabalho.
V
A todos que, de forma directa, ou indirecta fizeram parte desta minha importante etapa
académica.
O MEU MUITO OBRIGADA!
VI
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho com muito carinho e Amor:
Aos meus filhos, Karen Zavale e Kaleth Zavale, pela paciência e compreensão.
Aos meus pais, Joaquim António Jeiamba e Verónica Armando Uamusse (em sua memória) pelo
acompanhamento na minha vida educacional desde criança, que incansavelmente me
proporcionaram, de forma exemplar.
Em especial, ao meu marido, Essau Michael Zavale, pelo contributo incomparável para a minha
formação académica, pela paciência e estímulo que espero saber retribuir em igual dose, quando
for oportuno.
À toda a família, pelo contributo na conclusão de mais uma etapa significante da minha vida.
Obrigada DEUS por me dar esta Família!
VII
RESUMO
Senna- Martinnez deu uma valiosa contribuição para o estudo dos concheiros da costa sul de
Moçambique. Nesta tese é interpretado o contexto arqueológico deste estudo, a partir do exame
da olaria antiga encontrada nos concheiros, apresentado em duas vertentes: A Tradição de
Lixeiras de Cozinha da Costa Sul de Moçambique (TLCCSM) e a Tradição Matola. O primeiro
grupo de olaria baseia-se numa interpretação tecnológica demonstrada no concheiro de
Chongoene, na província de Gaza. O segundo grupo de olaria da Tradição Matola elucida acerca
das teorias de migração Bantu, como é o caso da estação arqueológica da Matola. Ambos os
casos tratam das Comunidades de Agricultores e Pastores.
PALAVRAS CHAVE: Concheiro, Tradição Matola, Migração Bantu, Olaria, Costa Sul de
Moçambique
11
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
João Carlos de Freitas de Senna- Martinez, conhecido por Senna-Martinez, de nacionalidade
portuguesa, teve uma longa experiência de pesquisa arqueológica em Moçambique, virada
essencialmente para o estudo dos concheiros encontrados nas dunas costeiras do Sul de
Moçambique. Os concheiros “são colinas formadas por restos de cozinha e de desperdícios
diversos que se encontram sobretudo junto à costa” (Meneses 1989). Esta tese é uma tentativa
de interpretação do contexto arqueológico dos concheiros, através da olaria antiga associada.
Invariavelmente serão usados os termos olaria e cerâmica no mesmo sentido, entendido como
vaso doméstico feito de barro.
Importa referir que Senna -Martinez é Doutorado em pré-história e arqueologia, pela Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa em 1990, tendo obtido o grau de bacharelato em História,
pela Faculdade de Letras da UEM, em Maputo, em 1975.
Presentemente, Senna- Martinez desenvolve e coordena uma investigação sobre as sociedades
antigas ligadas à metalurgia (cobre e suas ligas), do centro e norte de Portugal. Possui diversos
trabalhos sobre pré-história, história e arqueologia, relativos aos concheiros da zona costeira do
sul de Moçambique (Senna-Martinez 1968, 1969a, 1969b, 1969c 1974, 1975a 1975b apud
Senna-Martinez 1976) entre outras. Contudo, este trabalho incidiu principalmente na sua obra
“A Preliminary Report on two Early Iron Age Pottery Traditions from Southern Moçambique
Coastal Plain”(Senna-Martinez 1976) usada para a minha interpretação.
Os estudos sobre os concheiros efectuados por Senna Martinnez, em Moçambique ligam-se à
Tradição que ele designou “Southern Moçambique Coastal Kitchen Midden Tradition”,
traduzida em português como Tradição de Lixeiras de Cozinha da Costa do Sul de Moçambique,
doravante TLCCSM (Martinez 1976). Esta Tradição incorpora duas fases: A fase 1 que é
representativa da população Pré-Bantu dos Caçadores e Recolectores, e a fase 2 que é Bantu
relacionada com as Primeiras Comunidades de Agricultores e Pastores (p 15-17). A última fase
está provavelmente ligada à Tradição Matola (Morais 1988: 85).
12
Esta Tradição está relacionada com o movimento migratório das Primeiras Comunidades de
Agricultores e Pastores referentes aos povos falantes de línguas Bantu, entre os séculos I a VIII
AD.
A descoberta da estação da Matola, na estrada que liga Maputo à Cidade da Matola, efectuada
por Senna Martinez, em 1968, marca o início dos estudos arqueológicos sobre a Tradição Matola
em Moçambique. Com base na descoberta da estação do Campus Universitário efectuada
posteriomente por Ricardo T. Duarte, em 1975 foi feita uma associação desta com a estação da
Matola e com uma série de outras estações ao longo da costa de Moçambique (Duarte 1988). A
peculiaridade dos estudos arqueológicos efectuados pelo arqueólogo Senna Martinez prende-se
com o facto de se ter centrado na problemática dos concheiros, como vestígio arqueológico
capaz de ajudar a perceber a anterioridade cultural da Tradição Matola, através do exame
minucioso da textura dos vestígios cerâmicos. Ele sugeriu aquilo que seria “a fusão etno cultural
pré Bantu com elementos já Bantu” (Senna Martinez 1974; Morais 1988; Macamo 2004). Esta
constatação leva a suposições sobre a existência de uma Sociedade de Caçadores e Recolectores
anterior às Comunidades de Agricultores e Pastores.
Apesar deste conhecimento, ainda persistem dúvidas sobre o período de transição referido,
discussão essa que pretendo aprofundar nesta minha dissertação, providenciando o devido
contexto arqueológico.
Este trabalho está dividido em três capítulos:
O primeiro capítulo constitui a presente introdução, centrada na apresentação do tema, no
âmbito dos estudos de Senna Martinez sobre a olaria antiga associada aos concheiros do
Sul de Moçambique. No mesmo capítulo é também abordada a Tradição Matola, no
contexto da transição da fase dos Caçadores e Recolectores para as Comunidades de
Agricultores e Pastores.
O segundo capítulo faz a revisão da literatura, a qual é centrada na migração Bantu e a
sua problematização, como base para interpretação da Tradição Matola, em Moçambique.
O terceiro capítulo apresenta o desenvolvimento do contexto arqueológico da TLCCSM
e da Tradição Matola em Moçambique, com exemplos de algumas estações estudadas:
Matola e Chongoene. No mesmo capítulo são feitas as considerações finais sobre a olaria
13
antiga associada aos concheiros do Sul de Moçambique, à luz dos estudos efectuados por
Senna- Martinez.
1.1. Formulação do problema
A expressão “Tradição” tem vindo a ser referida em diversos estudos de arqueologia em
Moçambique, como sendo no sentido lato aquilo a que nos referimos como ponto de partida
para a análise dos objectos cerâmicos, bem como a artefactos deixados pelos povos imigrantes
falantes de línguas Bantu. Nesta óptica, existe uma tendência entre os arqueólogos de
considerarem que as diferentes tradições se identificam com os respectivos grupos populacionais,
com uma identidade e uma homogeneidade específicas (Duarte 1988 apud Macamo 2004).
Apesar dos problemas encontrados na sua discussão, como a inevitável comparação de pessoas
com potes, as tradições de cerâmica são a chave para as interpretações arqueológicas, visando o
estabelecimento das sequências culturais na África Austral (Huffman 1989 apud Macamo 2004).
Por exemplo, Senna Martinnez optou pela designação TLCCSM, onde ele dá ênfase à actividade
económica desenvolvida pelas comunidades costeiras do Sul de Moçambique, onde incorpora as
fases Pré-Bantu e Bantu. Com isto ele providencia-nos as sequências culturais das comunidades
que ocuparam esta região desde os caçadores recolectores até aos vindouros povos falantes de
línguas Bantu. A questão que se levanta é de saber se teria existido ou não o período Pré-Bantu.
Se a resposta é afirmativa resta-nos discutir as suas implicações e ligações com o período já
Bantu supostamente ligado à Tradição Matola.
Em Moçambique já foram desenvolvidas algumas teorias sobre a Tradição Matola, tais como:
Continnum Cultural, proposto por Morais, para designar a evolução da olaria desta Tradição
mais a sul, na província de Maputo (Tembe, Zitundo) (Morais 1988). A outra teoria é do
conservadorismo das Estações do Campus Universitário e da Matola, em oposição às anteriores,
por exibirem um padrão estilístico considerado menos desenvolvido (Morais 1988 apud Macamo
2004).
Relativamente ao estatuto da arqueologia em Moçambique, a Tradição Matola tem sido
relacionada com outras estações da região: Kwale-Matola, a partir dos exemplos do Quénia e
Tanzânia, assim como também com Sylver Leaves da África do Sul. Esta situação mostra a
14
dependência desta Tradição em Moçambique em relação às suas congéneres na região (para
melhor discussão ver Macamo 2004; Macamo & Ekblom 2005).
É certo que muitos estudos se tem feito sobre a Tradição Matola a nível nacional e internacional
mas a contribuição dada por Senna Martinez é peculiar no sentido de que além de estudar a
Tradição internamente, faz uma comparação com um eventual período anterior à esta referente
aos Caçadores e Recolectores. É demonstração deste facto A contribuição de Senna Martinez,
com destaque para o estudo dos concheiros e as sua suposição acerca da existência de uma olaria
pré-Bantu, considerada como uma progressiva fusão etno-cultural de um substracto pré-Bantu
com elementos já Bantu (Morais 1988 apud Macamo 2004).
Desta forma pretendo apresentar hipóteses de trabalho a partir dos estudos efectuados por Senna
Martinez sobre a olaria antiga do Sul de Moçambique de que é parte integrante a sua afirmação
sobre a existência da olaria Pré-Bantu. Contudo, este posicionamento foi questionado por autores
como João Morais (1988). Num outro contexto, Sinclair et al (1993), interrogam se a cerâmica
da Matola reflecte a sua adopção pelos residentes locais de caçadores e recolectores ou então,
como parece ser mais provável, ela foi introduzida pelos imigrantes utilizadores da tecnologia de
ferro a partir do norte do Zambeze.
Ao longo da tese será providenciado o contexto arqueológico, sobre os estudos da olaria antiga
no Sul de Moçambique, efectuados por Senna Martinez, através da discussão da TLCCSM e da
Tradição Matola.
1.2. Relevância do tema
O tema acima exposto, Contribuição de Senna - Martinez para o estudo da olaria associada aos
concheiros de Moçambique: Tentativa de interpretação do contexto arqueológico, é de maior
relevância porque deve-se a este autor o aprofundamento do conhecimento que temos sobre os
concheiros como evidência material de uma provável fase de transição dos Caçadores e
Recolectores para as Comunidades de Agricultores e Pastores no Sul de Moçambique. Estes
estudos providenciam cenários muito úteis que nos permitem reconstituir os desenvolvimentos
sócio-culturais e económicos destas comunidades, como evidenciam os objectos encontrados nas
estações arqueológicas investigadas: cerâmica, ferro, sementes de agricultura, vestígios de fauna
15
e de soalhos de habitação, etc. Importa aqui referir que: “A cerâmica é um dos vestígios mais
antigos que permite caracterizar o desenvolvimento das comunidades de agricultores e pastores,
do primeiro ao segundo milénio AD. O papel desempenhado pela cerâmica foi importante na
vida das comunidades de agricultores e pastores, para uma variedade de funções, como o
armazenamento dos cereais, confecção dos alimentos e seu transporte, como também para a
prática de rituais ” (Macamo 2004).
A descoberta da estação arqueológica da Matola em 1968, facto ocorrido no decurso da
realização de operações da Arqueologia de Salvaguarda (Lei nr. 10/88, de 22 de Dezembro;
Decreto nr. 27/94, de 20 de Julho) durante a construção da estrada que liga a cidade de Maputo
com a da Matola, conforme foi já referido, é o ponto de partida para o estudo da Tradição
Matola. Esta Tradição é relevante por estar associada ao fenómeno da migração Bantu,
relativamente aos Primeiros Agricultores e Pastores de Moçambique.
Nesta óptica, julgo ser pertinente formular os seguintes objectivos que poderão conduzir a um
raciocínio coerente de forma a contribuir para a compreensão dos estudos de Senna Martinez
sobre a olaria antiga associada aos concheiros do Sul de Moçambique.
1.3. Objectivos:
13.1. Geral
Interpretar a olaria antiga do Sul de Moçambique associada às Comunidades de
Agricultores e Pastores
1.3.2. Específicos:
Providenciar o contexto arqueológico da olaria antiga associada aos concheiros da costa
sul de Moçambique
Interpretar a TLCCSM e a sua ligação com a Tradição Matola
Definir os concheiros do Sul de Moçambique
Perceber o período dos Caçadores e Recolectores
Caracterizar o período das Comunidades de Agricultores e Pastores.
16
1.4. Metodologia
Para a feitura deste trabalho, a metodologia utilizada foi a análise documental abaixo
referenciada, sem ignorar a observação no laboratório do DAA/UEM dos objectos cerâmicos e
outros vestígios associados, bem como a informação adquirida durante os quatro anos de
licenciatura do curso sobre arqueologia e gestão do património cultural.
De referir que as observações efectuadas no laboratório do DAA/UEM resultaram na
apresentação do inventário do espólio lá encontrado, com destaque para os fragmentos de olaria,
carvão para datação, escória de fundição de ferro e material lítico. Em relação à olaria a sua
descrição concentrou-se apenas na sua decoração por ser mais acessível em comparação com a
forma.
Foram igualmente efectuadas entrevistas aos docentes da Faculdade de Letras e Ciências da
UEM.
A revisão bibliográfica possibilitou-me enquadrar o trabalho em duas principais abordagens: A
primeira advoga o trajecto da dispersão dos povos falantes de línguas Bantu, em conexão com as
Sociedades de Caçadores e Recolectores. A segunda abordagem debruça-se sobre a análise dos
concheiros da costa, partindo do exemplo mais conhecido em Moçambique da estação de
Chibuene (Sinclair 1987, Ekblom 2004, Macamo 2006). As estações arqueológicas de
Chongoene e da Matola constituem o estudo de caso.
1.5. Definições
Para melhor compreensão do tema acima proposto” Contribuição de Senna - Martinez para o
estudo da olaria associada aos concheiros de Moçambique: Tentativa de interpretação do
contexto arqueológico, importa a definição de alguns conceitos que se seguem:
Bantu
(Banto) - Termo linguístico referente a uma das maiores famílias linguísticas de África. (…) “Há
muito que se crê que a distribuição das línguas Bantu sugere uma expansão recente das
populações a partir de uma área inicial, cujas evidências linguísticas se localizam na zona da
17
actual Nigéria/Camarões. Apesar dos perigos ligados ao facto de se assumir uma correlação entre
as reconstruções arqueológicas e linguísticas no passado, vários pré-historiadores tentaram traçar
paralelismos entre a dispersão linguística Bantu e as evidências arqueológicas de um rápido
aparecimento do trabalho de metais associado a comunidades de agricultores na zona subsaariana
durante os primeiros séculos da nossa era. Nesta imensa região as primeiras Comunidades de
Agricultores demonstram possuir um estilo próprio de fabrico de cerâmica, fazendo com que
sejam englobadas dentro do complexo da "Idade do Ferro Inferior" (Meneses 2002).
Cerâmica
“É o barro depois do aquecimento a uma temperatura superior a 400ºC suficientemente elevada
para poder provocar uma alteração química, ou seja a expulsão da água das moléculas da argila.
O barro é misturado com uma quantidade de matéria arenosa chamada têmpera. A têmpera pode
ser de palha, pó de área, pedras, conchas, ou mesmo cacos reduzidos a pó” (Adamowicz
2003:15).
Concheiros
“Restos de cozinha e de desperdícios diversos, fundamentalmente constituídos por conchas.
Encontram–se sobretudo junto à costa, como por exemplo, Chongoene e Xai-Xai, na província
de Gaza e Chibuene, na província de Inhambane.
Na generalidade, localizados no topo de dunas costeiras, os concheiros reconhecem-se pelas
enormes quantidades de conchas que contêm e dão ao local uma fisionomia absolutamente típica.
O estudo dos concheiros reveste-se de grande importância para o esclarecimento dos primeiros
povoamentos costeiros, em Moçambique ” (Meneses 2002; Adamowicz 2003:18).
Tradição arqueológica
“Um continuum de mudanças culturais graduais através do tempo, representando o
desenvolvimento sequencial de uma dada cultura numa determinada região. Segundo opinião de
certos investigadores, tratar-se-á de um grupo de indústrias cujas similaridades a nível dos
artefactos produzidos são suficientes para sugerir que eles pertenceram a um bloco histórico-
cultural mais lato, com práticas e ideias tecnológicas próprias” (Meneses 2002).
18
CAPÍTULO 2
REVISÃO DA LITERATURA
O presente capítulo apresenta uma análise da bibliografia sobre as Comunidades de Agricultores
e Pastores na África Austral, em conexão com o chamado fenómeno da migração Bantu. No
mesmo capítulo há uma tentativa de estabelecer o padrão de relacionamento com os Caçadores e
Recolectores, que antecederam ou conviveram com os Agricultores e Pastores falantes de língua
Bantu.
“O termo “Bantu” tem um significado meramente linguístico (Cruz & Silva 1978: 1). Para
Cruz & Silva (ibidem), as migrações dos povos falantes de línguas Bantu tiveram um papel
preponderante na história de África dentro de um contexto mundial e foram objecto de diversos
estudos com base nos dados fornecidos pela arqueologia, linguística e antropologia. Com base no
estudo da Tradição Matola foram levantadas várias teorias, desde o conservadorismo, o
continuum cultural (Morais 1988).
De acordo com Phillipson (1976: 65), “Os Bantu foram povos de agricultores que
domesticavam cereais e de pastores que guardavam animais domésticos principalmente
cabritos, ovelhas e bovinos quando as condições climáticas o permitissem. Em algumas
áreas trabalhavam o ferro e o bronze, com assentamentos tradicionalmente marcados por
pequenas vilas com casas feitas de estacas e cimentadas com matope. Porém, em algumas
partes da África Austral também desenvolveram construções de pedra”.
“Todos os arqueólogos são unânimes em considerar que na África Austral não há antecedentes
da olaria da Idade de Ferro Inferior” (Macamo 2013), daí que as populações terão vindo do norte
do Zambeze, por meio de correntes de migração. No entanto, há divergência em traçar essas
correntes de migração entre os arqueólogos, facto que origina diferentes correntes e teorias sobre
a migração Bantu.
Por exemplo, Huffman vê três correntes, a corrente A, B, C e a teoria do Sul, enquanto Phillipson
vê duas correntes, a corrente Oriental e a corrente Ocidental (Hall 1987 apud Macamo 2005).
Nas correntes Oriental e Ocidental de Phillipson, as suas interpretações baseiam-se em dados
linguísticos, sugerindo que os povos falantes de línguas Bantu se moveram em duas direcções:
19
Corrente Oriental
Nesta corrente, Phillipson afirma que o primeiro grupo moveu-se ao longo do norte do Zambeze,
depois das florestas Orientais, onde adquiriu gado e cereais do Sudão Central, entrando nas
regiões onde fizeram a olaria Urewe (Phillipson 1976). As línguas Bantu faladas por este grupo
foram esquecidas (ibidem).
Corrente Ocidental
Este é o segundo grupo, que através das florestas Equatoriais desceu para Angola e Norte da
Namíbia e, no fim do primeiro milénio expandiu-se para o leste e levou consigo a olaria da Idade
de Ferro Superior e línguas do Oriente, incluindo o Shona, Sotho-tswana e o Nguni, línguas
faladas até os dias de hoje (ibidem).
Philipson (1976: 65) afirma “haver uma correlação entre a expansão dos povos falantes de
línguas Bantu e a dispersão da cultura da Idade do Ferro”. Os dados linguísticos mostram haver
similaridades nas várias línguas Bantu faladas no subcontinente, contudo, estas derivam de um
ancestral comum responsável pela olaria Urewe a quem é atribuída a indústria da Idade do Ferro,
ideia também sustentada por evidências arqueológicas datadas pelo radiocarbono (ibidem).
Nesta abordagem, para o estudo deste período são usadas fontes arqueológicas como é o
caso da olaria Urewe que marca as primeiras manifestações da cultura da Idade do Ferro em
África que se notabilizou durante a segunda metade do primeiro milénio provavelmente nos
anos 300 D.C. nos arredores do Lago Victória (Philipson 1976: 66).
Philipson também menciona a olaria Kwale que “surgiu na parte sudoeste do Quénia
estendendo-se ao longo da costa norte do Oceano Índico, e para o interior da Somália, nas
proximidades de Dar-es-Salam” . Esta olaria surge no segundo século A.D e mostra
claramente a penetração dos povos falantes de línguas Bantu, de norte para o sul de África”
(Philipson 1976: 67 e meu sublinhado).
Diferente de Phillipson, Huffman baseou-se em análises de cerâmica para definir três correntes
migratórias:
20
Corrente A
Para Huffman, esta corrente está ligada ao grupo responsável pela olaria da África Oriental e
Austral, conhecida como Urewe e Nkope (da Africa Oriental e Central) e Matola e Silver Leaves
(a do Sul do Limpopo), sendo datada entre os anos 200 e 400 AD (Huffman 1982).
Corrente B
Esta corrente está ligada ao grupo que passou mais cedo no I milénio através do Zimbabwe,
sendo representado pela olaria Bambata, atravessando para o sul do Limpopo, onde formou um
grupo cuja olaria é denominada Tradição Lydenburg, datada entre 400 e 900 AD (Ibidem ).
Corrente C
Esta corrente caracteriza o grupo responsável pela olaria da “Tradição Gokomere”, que vem ao
Zimbabwe para substituir a olaria Bambata, no final do I milénio AD (Huffman Ibidem).
Teoria do Sul
No lugar de um simples movimento do norte para o sul, Huffman defende que devido ao
crescimento da população e criação do gado a sul-Oriental, os sucessores da “Tradição
Lydenburg” moveram-se de volta para o norte onde recolonizaram o Zimbabwe deixando uma
olaria designada Tradição Kutama dos Shona, por volta de 900 AD, e que mais tarde outro grupo
falante de Sotho-Twsana moveu-se para o Ocidente levando a olaria Moloko e as construções em
pedra (Huffman 1982) do tipo zimbabwe (c.f. Macamo 2006).
21
Figura 1: Correntes da migração Bantu (Huffman1989a, 1989b).
Diferente dos dois arqueólogos acima mencionados, Peter Garlake, com base na análise
sociológica, considera não ter havido qualquer migração Bantu. Para ele o que aconteceu foi uma
mudança no carácter das relações sociais, facto que é testemunhado através do fabrico da olaria,
onde deixou de ser fabricada por homens, passando esta função a ser desempenhada por
mulheres (Garlake apud Macamo 2005)
De acordo com Macamo (2005 apud Beach 1984): “a visão migracionista estava
originalmente baseada na ideia de que toda a mudança da economia social e linguística
acontece devido a chegada de um novo grupo de pessoas geralmente conquistadoras e
consideradas superiores em relação ao grupo encontrado.” Afirma ainda que: “a teoria
migracionista não exclui totalmente a “difusão” de ideias e de técnicas aos grupos de
22
Caçadores e Recolectores” (ibidem). Esta visão de “difusão” deve ser questionada (Macamo
2005 citando Ekblom)., dado que os grupos receptores são geralmente considerados
inferiores em relação aos vindouros (Macamo comunicação pessoal).
Entretanto, na proposta avançada por Senna Martinez sobre a fusão etno-cultural pré-Bantu
com elementos já Bantu, não se sabe ainda ao certo se a dita olaria pré-Bantu é pertença dos
residentes locais Caçadores-Recolectores ou se foi trazida de fora pelos emigrantes falantes
de Bantu (Sinclair et al 1993).
Marjaana Kohtamäki (2014) na sua tese de doutoramento intitulada “Transitions: A landscape
approach to social and cultural changes in southern Mozambique 5000 BC-1000 AD” faz uma
abordagem aproximada desta discussão. Ela sugere uma nova metodologia de interpretação que
ajuda a elucidar a natureza da transicão da cultura material em diferentes paisagens, que é
comprovada através da interacção dos residentes locais de Caçadores e Recolectores com os
vindouros Agricultores e Pastores. Este teste foi efectuado a partir dos estudos na gruta de
Caimane, que testemunha o período de transição dos Caçadores e Recolectores para as
Comunidades de Agricultores e Pastores.
Claramente, a investigação tem procurado sobretudo encontrar evidências para apoiar a ideia
da migração mas tem faltado hipóteses de alternativa (Beach 1984 apud Macamo 2005).
Os actuais detentores da visão migracionista têm conhecimento do facto de que tais
mudanças podem ter tido lugar pela difusão de ideias e línguas. Argumentam ainda que no
caso especial dos povos falantes de línguas Bantu e utilizadores do ferro, a migração é a
explicação mais realista (ibidem).
A ideia de uma “migração Bantu” tem sido aceite muitas vezes em arqueologia e ciências
associadas de tal maneira que se tornou um dogma. Tal dogma tem dividido a comunidade
dos arqueólogos. Contudo, podemos concordar com Paul Sinclair (s/d) que a ideia de
“expansão Bantu” tem tido o mais profundo efeito negativo quando se procura interpretar a
evidência arqueológica.
Contudo, conforme Philipson (1976), no decurso do povoamento Bantu em África houve
numerosas subdivisões regionais que podem ser reconhecidas principalmente com base na
23
variação estilística da cerâmica. É neste contexto que surgem as tradições cerâmicas, conforme
definido no capítulo 1, cuja expressão notória é a forma e a decoração dos recipientes.
Na mesma linha, Morais (1988) mostra estações arqueológicas pertencentes à Tradição Matola
que estão localizadas na região sul de Moçambique, evidenciando a estação da Matola como
sendo a mais antiga desta tradição dentro do País.
Neste contexto, todos os arqueólogos são unânimes em considerar que na África Austral não há
antecedentes da olaria da Idade do Ferro Inferior, daí que as populações terão vindo do norte por
meio de correntes de migração (Macamo 2005). No entanto, há divergência em traçar essas
correntes de migração entre os arqueólogos, conforme atrás justificado.
Em 1984 Tim Maggs sugeriu o nome de Tradição Matola, para se referir aos artefactos
cerâmicos encontrados na estação arqueológica da Matola, por considerar que a estação em
Moçambique possui tipos comuns tanto no Ex-Transval, como no Natal (Maggs 1984 apud
Morais 1988). Esta tradição é datada dos séculos I a III AD (Morais 1988). As estações
pertencentes à esta tradição são por essência caracterizadas ou identificadas pelo estilo
decorativo da cerâmica, sendo também outro vestígio comum os pedaços de escória de fundição
de ferro, evidenciando a antiguidade da mineração de ferro praticada em Moçambique (Macamo
2011).
A olaria típica desta tradição caracteriza-se por linhas de incisão, caneluras, e por vezes com
chanfraduras no bojo, sendo a sua verificação útil para a identificação das estações que lhe são
correspondentes. Aparentemente, esta tradição resultou de uma fusão etno-cultural pré Bantu
com elementos já Bantu (Martinez apud Morais 1988), interpretação que no entendimento de
Morais (1988) precisa de confirmação. O primeiro elemento “pré Bantu” pode estar relacionado
com os residentes locais Caçadores e Recolectores, enquanto que o segundo “Bantu” com os
povos emigrantes falantes de línguas Bantu, que também tinham hábitos de fabrico e uso de
utensílios de ferro (Sinclair et al 1993).
Em Moçambique, as estações da tradição Matola foram principalmente encontradas ao longo da
costa sul, na província de Maputo e na foz do rio Limpopo, na província de Gaza. Ocorrem
também nas províncias da Zambézia, e de Nampula (Morais 1988).
24
Recentemente, esta Tradição foi identificada nos espólios de Chibuene (Ekblom 2004), assim
como em Marromeu (Macamo e Madiquida 2004), nas províncias de Inhambane e Sofala,
respectivamente.
Segundo Morais (1988), as datas mais antigas desta tradição ocorrem no sul de Moçambique nas
estações arqueológicas da Matola, Campus Universitário onde se estabeleceu entre os I a III AD.
De acordo com estas datas, foi sugerida a presença inicial das Primeiras Comunidades de
Agricultores e Pastores no sul de Moçambique, por Tim Maggs (1984 apud Morais 1988: 44).
No Campus Universitário e, a ocupação está presente até ao século VII, e em Zitundo a tradição
desenvolveu o seu estilo de cerâmica a partir do século IV a V/VI, estando correlacionado com a
tradição Lydenburg sugerida por Maggs (Macamo 2000). Esta interpretação serve apenas para
compreender o contexto arqueológico da olaria antiga associada com os concheiros do Sul de
Moçambique, no contexto da visão inicial de Senna Martinez sobre o assunto.
25
CAPÍTULO 3
DESENVOLVIMENTO DO CONTEXTO ARQUEOLÓGICO
3.1. Sumário
Neste capítulo pretendo descrever o contexto arqueológico, dentro do qual se insere o estudo
comparativo das estações arqueológicas da Matola e de Chongoene. Será especificamente
abordada a questão das Sociedades de Caçadores e Recolectores e das Comunidades de
Agricultores e Pastores. A análise da cerâmica, englobando as estações em estudo constitui a
base empírica deste trabalho, a ser detalhada no presente capítulo. Embora tanto Chongoene
como Matola sejam tipologicamente consideradas concheiros, a diferença entre as duas reside no
seguinte: O concheiro de Chongoene é visível enquanto que o concheiro da Matola não é visível,
por se encontrar numa profundidade de 75 cm (Cruz & Silva 1976).
3.2. Sociedade de Caçadores e Recolectores
O período dos Caçadores e Recolectores designa a Idade de Pedra Superior, e o período dos
Agricultores e Pastores está relacionado com as comunidades falantes das línguas Bantu e a sua
expansão em todo o território de Moçambique, a exemplo da região Sul, através de algumas
estações notáveis relacionadas com a Tradição Matola. A designação da Tradição Matola é muito
conhecida pelo seu estilo cerâmico (Capítulo 2).
As Sociedades de Caçadores e Recolectores marcam o período anterior à produção de alimentos,
em que os homens viviam daquilo que a natureza proporcionava (produtos da caça de animais e
de recolecção de frutos e vegetais), período este que corresponde à Idade da Pedra Superior que
vai de 40.000 a a 2. 000 anos (Lombard et al 2012). Na África Austral, este período está
relacionado com os Khoisan, que designa dois grupos étnicos originários desta região (os San e
os Khoi). Estas sociedades eram os grandes habitantes do sul da África antes da expansão Bantu
(Deacon & Deacon 1999:6; Burke 2013).
Nesta óptica, Meneses (2002:31), define os Caçadores e Recolectores, como membros de
sociedades de tamanho reduzido e semi-sedentários, cuja subsistência estava baseada no
consumo dos produtos obtidos da caça e na colheita de plantas e frutos silvestres.
26
Em Moçambique, os Caçadores e Recolectores foram substituídos pelo grupo dominante de
comunidades falantes de línguas Bantu, sendo um deles o grupo da Tradição Matola, que, como
se sabe, se expandiu ao longo da costa do Oceano Indico durante o primeiro século AD (Macamo
2005).
Tabela 1-Periodização da Idade da Pedra
Periodização da Idade da Pedra
Idade da Pedra Inferior
(IPI)
3.3 milhões de anos-
200.000 anos
Idade da Pedra Média
(IPM)
200-300-40. 000 anos
Idade da Pedra Superior
(IPS)
40-2.000 anos
(Lombard et al 2012)
3.3. Comunidades de Agricultores e Pastores
Para Cruz & Silva (1978), os povos falantes de línguas Bantu emigraram de um centro comum
cuja localização é hoje em dia objecto de grande controvérsias, mas que parece corresponder ao
núcleo Proto-Bantu, a sul do Congo. Vieram de uma região a Norte das florestas equatoriais
(possivelmente o Centro dos Camarões (...) ” (Ibidem). Assim, sabemos genericamnte que
Camarões é a “terra natal” dos Bantu. O processo da migração Bantu deveu-se a uma série de
flutuações climáticas que começou a surgir, a partir de 12.000 BP (Hall 1987 apud Macamo
2005), o que terá tornado a vida mais difícil para os Caçadores e Recolectores, tendo a posterior
adoptado o modo de vida de produção alimentar. Esta mudança ocorre a partir de 2.500 BP
(Ibidem).
A investigação mais recente nas áreas de línguas de África, antropologia física e arqueologia
tem demostrado que explicar as origens da agricultura na África Austral é um problema
complexo.
De acordo com David Phillipson 1985 (apud Macamo 1996), “existe uma forte evidência
circunstancial que o início da agricultura na África Austral e Oriental estava ligado com a
27
dispersão de pessoas que falavam as línguas Bantu, existindo algumas similaridades entre as
divisões regionais das primeiras culturas agrícolas com as etapas definidas linguisticamente de
expansão Bantu”.
Na mesma vertente, Phillipson (1985) sugeriu que os povos falantes de línguas Bantu moveram-
se em duas direcções (Capítulo 2). Sugere ainda que as línguas Bantu faladas por estes
fabricantes da cerâmica de Tradição da Idade do Ferro inicial na África Oriental e Austral, foram
hoje esquecidas, todavia os contactos e influências do Sudão ainda se preservam como relíquia.
O período dos agricultores e pastores está relacionado com as comunidades falantes das línguas
Bantu e a sua expansão em todo o território de Moçambique, a exemplo da região Sul, através de
algumas estações notáveis relacionadas com a Tradição Matola.
Na África Austral, o período das Comunidades de Agricultores e Pastores corresponde à Idade
do Ferro, estando dividido em inicial e tardio, que corresponde ao primeiro e segundo milénios
AD, respectivamente. No entanto tem sido mais frequente o uso do termo Comunidades de
Agricultores e Pastores, adoptado nesta tese, por ser mais abrangente do que o de Idade do Ferro
mais tecnológico (c.f. Morais 1988), sendo apenas usado para a periodização (Ver Tabela 2).
Tabela 2- Periodização da Idade de Ferro
Periodização da Idade do Ferro
Idade do Ferro Inferior (IFI) 0-900 AD
Idade do Ferro Superior
(IFS)
1000 – 1900 AD
( Macamo 2003:27, adaptado por Liçana Jeiamba).
No que se refere à pastorícia, embora as origens da domesticação de animais em África possam
não estar ainda claras, o impacto da expansão do modo de vida pastorício é muito evidente
espalhando-se do Sahara para as terras de Savana da África Ocidental e Oriental. Em África, o
aumento da desertificação do Sahara conduziu a que as comunidades que viviam da Caça,
recolecção e pesca adoptassem animais domésticos (Macamo 1995).
“Tomando as vantagens desta combinação de circunstâncias, os Pastores moveram-se para o sul
nas áreas como o Níger e para o Sudeste para o Norte do Quénia, onde o gado era apascentado
28
desde cerca de 1.300 BP. Assim como os Pastores primitivos terão sido selectivos na procura de
locais adequados para a pastagem e alimentos para o gado, as comunidades agrícolas iniciais
também escolheram locais favoráveis para assentar as suas aldeias” (Macamo 1996).
Da economia desta população, apenas foi possível colher alguns dados referentes à apanha de
moluscos, caça, fabrico de olaria e trabalho dos metais, facto justificado pela ausência de gado e
a persistente presença de mariscos nas estações arqueológicas deste período, razão pela qual os
primeiros povoamentos dos Agricultores e Pastores terão abraçado a costa Austral (Cruz & Silva
1978).
.
Figura 2- Localização das estações arqueológicas mencionadas no texto (Cruz & Silva1976).
29
3.4. O concheiro de Chongoene
“Os concheiros são por natureza reconhecidos pelas enormes quantidades de conchas que
contem, que dão ao local uma fisionomia absolutamente típica” (Martinez et al 1969).
3.4.1. Localização
Chongone é uma estação localizada na duna costeira, no actual distrito de Chongoene (perto da
cidade de Xai-Xai), na província de Gaza, com as seguintes coordenadas geográficas 25 05’
30”S de latitude e 33 40’ 30”E de longitude e esta codificada 2533Bb1 (Morais 1988).
3.4.2. História da investigação
Esta estação foi descoberta em 1968, durante uma missão Alemã de pesquisas chefiada pelo Dr.
Gunther Smolla. Posteriormente, Martinez aprofundou estudos sobre esta estação. Devido a sua
extensa ocupação, esta estação foi dividida em quadro grupos nomeadamente: Chongoene I;
Chongoene II; Chongoene III e Chongoene IV (Martinez, 1974).
Com base nas escavações e estudos estratigráficos efectuados na estação acima mencionada
foram identificadas camadas estratigráficas diferentes, com presença de linhas de carvão, matéria
orgânica, olaria, cinza, conchas e ossos fragmentados.
De acordo com Smolla citado por Morais (1988: 80) “foram encontradas conchas e olaria da
Idade de Ferro Inferior e Idade de Ferro Superior na região de Chongoene” entretanto comparou-
se com a olaria proveniente do Zimbabwe e constatou-se que ambas têm a mesma base
tipológica.
Das escavações efectuadas, foram encontrados restos de conchas e potes de cozinha. Os
materiais encontrados encontram-se divididos em dois grupos, representando duas fases da
tradição:
Fase I
“Esta fase comtempla potes altos de pescoço curto, potes de pescoço elipsoidico e largo, tigelas
sub-elipsoidicas largas, e um número elevado de conchas quebradas. Estes fragmentos atingem
15mm de diâmetro, sendo a média de 3mm” (Martinez 1974).
30
Fase II
“Nesta fase há frequência de olaria com fragmentos de conchas, sendo a espessura máxima de
18mm e a média de 9mm com tendência a ser uniforme da boca para a base sem um aumento
definido como na fase I. Os potes são sub-esféricos, com pescoço a tendência para um cilindro
com abas um pouco desfeitas. Nota-se nesta mesma fase, potes grandes elipsóidicos com abas
brilhantes, sendo que a maior parte apresenta corte liso e estreito” (Martinez, 1974).
3.4.3. Características
É uma estação do tipo concheiro, a céu aberto localizada numa duna costeira em frente ao Mar.
3.4.4. Tradição cerâmica
Este concheiro pertence à Tradição de Lixeiras de Cozinha da Costa Sul de Moçambique
(TLCCSM) proposta por Martinez. Nesta tradição os potes são decorados com linhas de incisão
que formam uma banda de triângulos preenchidos com motivos de linhas cruzadas,
imediatamente abaixo do gargalo (Figura 3).
31
Figura 3- Olaria do concheiro de Chongoene (Senna-Martinez 1974).
3.4.5. Discussão
Em Moçambique, o maior concheiro conhecido é Chibuene (Sinclair 1982, 1987), um
entreposto comercial datado do primeiro ao segundo milénio AD, localizado no Distrito de
Vilanculos, na Província de Inhambane. Mas, ao longo da costa no sul de Moçambique foram
encontrados muito mais vestígios arqueológicos desta natureza designadamente em Chongoene,
perto da Cidade de Xai-Xai, na Província de Gaza.
32
Existem provas fundamentadas sobre a ligação destes concheiros com as Comunidades de
Agricultores e Pastores, embora a sua contextualização se refira a épocas iniciais. Estas épocas
podem muito bem se referir a um período de transição das Sociedades de Caçadores e
Recolectores para as Comunidades de Agricultores e Pastores.
Embora em Moçambique sejam conhecidos muito mais concheiros, em parte os que foram
estudados por Senna Martinez, neste trabalho dou o exemplo de Chongoene, para o
aprofundamento da problemática de investigação.
Figura 4- Concheiro de Chongoene (Foto: Leonardo Adamowicz)
3.5. Estação arqueológica da Matola
3.5.1. Localização
Esta estação localiza-se na estrada Nacional nr. 4 que liga a cidade de Maputo à Cidade da
Matola, na província de Maputo (Capítulo 1). Está numa zona com uma vegetação de floresta de
savana, situada no terraço de solos avermelhados do rio Matola. Estes solos são propícios para a
ocorrência do ferro (c.f. Macamo 2011). A sua localização próximo ao rio é favorável para a
prática da agricultura.
33
3.5.2. História da Investigação
Foi localizada por Senna Martinez em 1968, durante a construção da principal estrada Maputo-
Matola e é datada do século II a III, havendo uma ocupação contínua até aos séculos V e VI. As
primeiras escavações efectuadas por Tereza Cruz & Silva, em 1975, indicam uma ocupação
inconsistente dos séculos IX a X no topo da estação (Cruz & Silva 1976, Duarte 1988, Morais
1988).
Posteriormente, a estação foi investigada por João Morais, de forma a aprofundar os resultados
anteriores. “A escavação feita na estação da Matola em 1982 providenciou uma variedade de
evidências associadas onde se encontrou cerca de 10.000 fragmentos de olaria, alguns pedaços
de ferro fundido, conchas, vários ossos pequenos sem identificação, cujos dentes foram
identificados como pertencentes a artiodactyla selvagem, e uma quantidade reduzida de sementes
carbonizadas sem identificação (Morais 1988).
A partir de estudos efectuados por Duarte em 1975, entre fragmentos de olaria juntamente com
concheiros na estação arqueológica do Campus Universitário, em discussão com Martinez,
concluíram que a estação do Campus Universitário, apresenta similaridades com os achados da
estação arqueológica da Matola (Duarte, comunicação pessoal em 2016).
3.5.3. Características
É uma estação a céu aberto, Primeiras Comunidades de Agricultores e Pastores, derivada de
depósitos eólicos e fluviais do quaternário (Morais 1988).
3.5.4. Tradição cerâmica
Esta estação é pertencente à Tradição Matola, conclusões tiradas com base no estilo decorativo e
forma dos achados cerâmicos encontrados nas escavações lá efectuadas (Morais 1988).
34
Figura 5- Olaria da estação arqueologica da Matola (Cruz & Silva 1976).
3.5.5. Discussão
”Não há ainda evidências arqueológicas que permitam identificar a estação arqueológica da
Matola como possível representante dos falantes do Sudeste proto-Bantu, conforme proposto
pelos linguistas.” (Morais 1988). As únicas evidências encontradas referem-se à actividade
económica praticada: a lixeira contendo fragmentos de cerâmica, conchas, alguns ossos e
escórias de ferro, o que pressupõe a seguinte questão: terá a estação da Matola sido uma aldeia
temporária de agricultura móvel? Há uma necessidade de efectuar uma cobertura regional mais
vasta de modo a avaliar os padrões cerâmicos e a correlação de dados linguísticos (Morais 1988).
35
Todavia, não há dúvida de que os habitantes da Matola faziam parte de um grupo de falantes de
línguas Bantu que abraçaram a costa em primeiro lugar (Hall 1987 apud Macamo 2000 ;Sinclair
et al 1993).
3.6. Olaria do concheiro de Chongoene
A tabela 3 apresenta o inventário da olaria do espólio do Departamento de Arqueologia e
Antropologia, com base nas pesquisas arqueológicas efectuadas entre 1969 e 1975 na duna
costeira onde se encontra a estação arqueológica de Chongoene. Esta pesquisa resultou na
recolha de fragmentos de olaria pertencente às Comunidades de Agricultores e Pastores tardias,
com presença de decoração do tipo incisão e caneluras e alguns fragmentos de conchas presentes
na olaria.
36
Tabela 3- Inventário da olaria do concheiro de Chongoene (2533Ab1)/Espólio do Laboratório
Nr. 8 do DAA/UEM
N/O Localizaç
ão do
achado
Tipo de
achados
Número de fragmentos de olaria
e sua decoração
Localização
da
decoração
Contexto
cultural
01 Caixa 126 Olaria 34:
Combinação de linhas de incisão
que formam uma banda de
triângulos, com motivos de linhas
cruzadas, caneluras e pontuações
(3);
Estampas de concha (6)
Linhas paralelas de incisão (6);
Estampa de pente (1);
Linhas perpendiculares de incisão
(1);
Linhas perpendeculares de Incisões
limitadas por uma linha paralela de
incisão (1);
Sem decoração (16)
Gargalo
Desconhecido
Bordo e
Gargalo
Gargalo
Gargalo
Gargalo
Desconhecido
02 Caixa 126 Escória de
ferro
Desconhecido
37
Figura 6- Olaria do concheiro de Chongoene (Foto: Mussa Raja , 2017).
3.7. Olaria da estação arqueológica da Matola
A tabela 4 ilustra o inventário da estação arqueológica da Matola. Os fragmentos aqui estudados
foram identificados por Teresa Cruz e Silva nas escavações por ela efectuadas em 1975 os quais
evidenciam pertença às Primeiras Comunidades de Agricultores e Pastores. Esta olaria apresenta
decoração típica de Incisão e Caneluras e por vezes com chanfraduras no bojo (Figura 7).
38
Tabela 4 - Inventário da olaria da estação arqueológica da Matola (2532Cd01) /Espólio do
Laboratório do DAA/UEM
N/O Localização Tipo de
achados
Número de
fragmentos de
olaria e sua
decoração
Localização
da decoração
Contexto
Cultural
Caixa sem número 30-75cm
01 Caixa sem número Carvão para
datação
70-80cm
02 Caixa sem número Materia lítico Desconhecid
o
03 Caixa sem número Olaria 94 fragmentos:
sem
decoração (45);
Linhas de
incisão (29);
Caneluras (12);
Linhas de
incisão
perpendeculare
s limitadas por
linhas paralelas
de incisão(4);
Impressões de
dente (3);
Linhas
triangulares de
incisão (1)
Bordo
Gargalo
40
Figura 8- Análise da olaria do concheiro de Chongoene e da estação arqueológica da Matola
contida no espólio do laboratório do DAA/UEM, efectuada pela autora.
41
3.8. Considerações finais
Para Liesegang (comunicação pessoal) as investigações e estudos de Senna Martinez contribuir
de forma significativa para os estudos arqueológicos em Moçambique, pois foi graças a ele a
descoberta da estação arqueológica da Matola e os estudos aprofundados dos concheiros do sul
de Moçambique, como é exemplo Chongoene, na província de Gaza . No que tange à fusão
etno-cultural pré-Bantu, hipótese levantada por Senna Martinez, referindo-se à associação do
período pré-Bantu com elementos já Bantu é uma questão que continua a merecer um estudo
mais aprofundado. No entanto, concordo com Adamowicz quando refere que esta hipótese foi
colocada com base no exame de alguns vestígios cerâmicos dos concheiros do Sul de
Moçambique ” (Adamowicz 2003:24).
Esta tese procurou interpretar o contexto arqueológico da olaria antiga associada aos concheiros
do Sul de Moçambique. Desde já parece-me que a sugestão com base no parámetro tecnológico
da TLCCSM apresentada por Senna-Martinez é a que melhor explica o contexto arqueológico
referido, por ser menos polémica.
Há perspectivas para abordagens multefacetadas que podem ser efectuadas com base na
tipologia da olaria encontrada nos concheiros do Sul de Moçambique, como também nas
discussões teóricas apresentadas por Senna Martinez.
42
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