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CONTRATOS DE DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL
E
DIREITO DA CONCORRÊNCIA
Cláudia Trabuco
Isabel Fortuna de Oliveira
1. A tensão entre os direitos de propriedade intelectual e as regras da livre
circulação e da livre concorrência na União Europeia
O relacionamento entre os direitos de propriedade intelectual e o direito da concorrência
pode ser classificado como conflituoso1. No contexto da União Europeia, face aos
objectivos de integração regional, este conflito foi particularmente agudizado: as
características inerentes aos direitos de propriedade intelectual - nomeadamente a
exclusividade e a territorialidade - revelaram serem de difícil compatibilização com o
objectivo específico da criação de um mercado interno. Com efeito, a consagração da
exclusividade de aproveitamento económico sobre o objecto do direito de propriedade
intelectual, aliada ao carácter territorial típico destes direitos, revelou uma particular
capacidade para a compartimentação dos territórios nacionais, provocando obstáculos à
concretização deste grande objectivo comunitário2.
A harmonização da legislação nacional em matéria de direitos de propriedade intelectual
no âmbito da União não conseguiu anular o conflito3, apenas o tendo atenuado; de resto,
1 A relação problemática entre os direitos de propriedade intelectual em geral e o direito da concorrência
pode ser exprimida através da seguinte interrogação: «concurrence et protection des propriétés
intellectuelles: antagonisme ou convergence des objectifs?»(Berthold Goldman, Antoine Lyon-Caen, Louis
Vogel, “Droit Commercial européen”, 5 édition, Dalloz, p. 503), ou, ainda através de uma fórmula
particularmente elucidativa por “extraña pareja” (Carlos Prat, “Marcas y derecho de la competencia; una
perspectiva quizás práctica”, Anuario de la Competencia, 2001, Direcção de Lluis Cases, Fundación ICO,
Marcial Pons, 2002, p. 387). 2 Neste sentido,Inge Govaere, «The use and abuse of intellectual property rights in EC law”, Londres,
Sweet and Maxwell, 1996, p. 13. No mesmo sentido, centrando a análise na natureza dos direitos, nas
conclusões apresentadas a 14 de Março de 1978 relativas ao acórdão Hofflann-La Roche, o Advogado-
Geral Capatorti constatou que: «Il entre dans la nature même des droits de propriété industrielle et
commerciale reconnus par les ordres juridiques des divers États membres de faire obstacle, par leur
caractère d’exclusivité et de territorialité , à la libre circulation des marchandises dans le cadre
communautaire ainsi qu’au jeu correct des règles de concurrence». 3 Se atendermos, por exemplo, ao direito de marca, se bem que actualmente as legislações nacionais dos
Estados-Membros neste domínio se encontram harmonizadas através da Directiva 89/104/CEE, de 21 de
2
poderá afirmar-se que, se a intensidade do conflito diminui, tal constitui o resultado da
alteração não dos direitos de propriedade intelectual, ou das suas características
essenciais, mas antes da consagração de linhas de intersecção entre estes direitos, por um
lado, e as regras de liberdade de circulação de mercadorias e as regras da política de
concorrência comunitária, por outro.
Foi necessário encontrar uma solução para a tensão existente nas áreas de intersecção
entre os princípios essenciais do mercado comum e o carácter exclusivo dos direitos
intelectuais. Após um período em que várias alternativas foram discutidas, a chamada
“tese da conciliação” entre os interesses subjacentes a estes direitos e as exigências
comunitárias foi adoptada pela maioria da doutrina e mereceu o assentimento das
instâncias judiciais comunitárias4.
Coube ao Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia (TJCE) operar aquela conciliação
através de dois tipos de análises complementares: a distinção entre a existência e o
exercício dos direitos de propriedade intelectual, por um lado, e a teoria do objecto
específico, por outro.
O estabelecimento da distinção entre a existência e o exercício dos direitos de
propriedade intelectual remonta ao acórdão Consten and Grundig proferido em 1966, no
qual, a respeito da aplicação do artigo 295.º do TCE (hoje artigo 345.º do TFUE),
declarou que a proibição do uso dos direitos conferidos pela legislação nacional (no caso,
direitos de marca) de forma a criar obstáculo a importações paralelas não afectava a
concessão de tais direitos mas apenas limitava o seu exercício na extensão necessária a
garantir o efeito da proibição contida no artigo 81.º (hoje 101.º) do Tratado5. A dicotomia
existência/exercício nasceu, assim, num caso em que estavam em causa as regras de
Dezembro de 1988, as questões suscitadas pelos tribunais nacionais ao Tribunal de Justiça da UE relativas
à interpretação das suas disposições, nomeadamente do seu art. 7.º, são reveladoras da actualidade do
permanente conflito entre os direitos de marca e o princípio de livre circulação de mercadorias. A marca
comunitária, adoptada pelo Regulamento n.º 40/94, torna menos visível este conflito a menos que as
diversas licenças territoriais da marca comunitária permitam fazer renascer o carácter territorial/nacional
da sua exploração. Em todo o caso, a implantação da marca comunitária permite a subsistência das marcas
nacionais, mantendo assim o potencial de conflito, já mencionado. 4 Das várias teorias em presença, referindo-se muito embora apenas aos direitos de Propriedade Industrial,
dá conta Pedro Sousa e Silva, Direito Comunitário e Propriedade Industrial - O princípio do esgotamento
dos direitos, STVDIA IVRIDICA 17, Coimbra Editora, 1996, maxime p. 122 e ss. 5 Ac. TJCE 13/7/1966, Processos conjuntos n.
os 56 e 58/64 (Établissements Consten S.à.R.L. e outros
contra Comissão da Comunidade Económica Europeia), Col. Jur. ed. especial portuguesa, p. 423.
3
concorrência comunitárias, embora se lhe tenham seguido várias decisões em que a
distinção foi empregue no contexto da aplicação das regras relativas à livre circulação de
mercadorias6.
O carácter vago da distinção, que muito contribuiu para as críticas que lhe foram
dirigidas e que se sintetizam na ideia de que a mesma não tem um sentido claro quando
aplicado a um direito sobre um direito intangível, como é o caso dos direitos de
propriedade intelectual, tornou necessário o desenvolvimento de critérios suplementares
no que respeita ao apuramento das situações em que o exercício destes direitos é
considerado contrário aos princípios propulsores do mercado interno.
Um desses critérios é o chamado conceito de “objecto específico” dos direitos, que inclui
tanto a natureza do direito, que se traduz na possibilidade de restringir a sua utilização
por terceiros e de controlar a sua exploração, como a razão pela qual a lei o concede, a
qual se refere à função de incentivo dos direitos de propriedade intelectual.
Esta última teoria foi enunciada mas não devidamente esclarecida no acórdão Deutsche
Grammophon, tendo sido posterior a identificação dos objectos específicos dos vários
direitos de propriedade intelectual. Assim, num mesmo ano, o objecto específico dos
direitos de patente e de marca foram identificados como, respectivamente, garantia de
que o titular da patente, como forma de recompensar o esforço criativo do inventor, tem o
direito exclusivo de usar a invenção, quer directamente quer através da celebração de
contratos de licença, bem como de se opor às infracções de terceiros7, e, relativamente às
marcas, o direito exclusivo de uso pelo seu titular do sinal distintivo na colocação dos
produtos protegidos pela primeira vez no mercado, com a intenção de o proteger contra
concorrentes que pudessem querer retirar vantagens da reputação da marca vendendo
ilicitamente produtos identificados por esse sinal8. No âmbito do direito de autor, salienta
o TJCE, na decisão Magill que esse objecto específico se traduz na “protecção moral da
obra e na remuneração do esforço criador”, tomando como base a dupla dimensão, moral
6 Desde logo, após uns escassos anos, no Ac. TJCE 8/6/1971, Proc. 78/70 (Deutsche Grammophon contra
Métro), Col. Jur. 1971, p. 437. 7 Ac. TJCE 31/10/1974, Proc. 15/74 (Centrafarm BV et Adriaan de Peijper v Sterling Drug Inc.), ECR
1974, p. 1147, par. 8. 8 Ac. TJCE 31/10/1974, Proc. 16/74 (Centrafarm BV et Adriaan de Peijper v Winthrop BV. ), ECR 1974, p.
1183, par. 8.
4
e patrimonial, característica deste direito9. Este último acórdão do Tribunal é, aliás,
relevante como marco do desenvolvimento de uma identificação menos descritiva e mais
propositiva do conceito de objecto específico na medida em que recorre à necessidade de
ter em conta a função essencial do direito de propriedade intelectual, a sua raison
d’être10
.
2. O princípio do esgotamento dos direitos de propriedade intelectual
A teoria do esgotamento dos direitos de propriedade intelectual significa que, logo que o
titular do direito, directamente ou indirectamente através de terceiros a quem dá o seu
consentimento, exerce a faculdade de obter a remuneração que o jogo do mercado lhe
concede, comercializando um ou vários exemplares da sua obra, esgota-se o direito de
controlar a revenda desses mesmos exemplares.
Naturalmente, não se extingue o exclusivo atribuído ao titular do direito, continuando o
titular a dispor deste direito relativamente aos exemplares e produtos que, de futuro,
venha a produzir e comercializar. Assim, o esgotamento aplica-se apenas aos produtos
específicos que foram colocados no mercado pelo titular do direito ou por alguém com o
consentimento deste11
.
Para além da compatibilização entre o exercício dos direitos de propriedade intelectual e
o direito de propriedade sobre os produtos em que é incorporada a criação intelectual, o
princípio do esgotamento tem como propósito evitar conferir aos titulares de direitos de
propriedade intelectual a possibilidade de usarem os seus direitos exclusivos para
procederem a uma repartição dos mercados.
Ora, assim sendo, torna-se especialmente importante definir quais os limites do mercado
geográfico a proteger, sendo certo que, quando nos referimos ao mercado interno
9Ac. TJCE 6/4/1995, Processos conjuntos n.
os C-241/91 e 242/91 (Rafio Telefis Eireann c. Commission –
“Magill”), Col. Jur. 1995, p. I-743. 10
Para uma análise mais pormenorizada das questões relativas à identificação do «objecto específico», e
identificação das principais críticas às dificuldades criadas pela utilização deste critério, cfr., entre outros,
David T. Keeling, Free Movement and Competition Law, Vol. I, Oxford EC Law Library, 2003, pp. 61-74;
Stefan Enchelmaier, Intellectual property, the internal market and competition law, in Josef Drexl (ed.),
“Research Handbook on Intellectual Property and Competition Law”, Edward Elgar, 2008, pp. 410-413. 11
Cfr., entre outros, o Ac. TJCE 1/7/99, Proc. C-173/98 (Sebago Inc. e Ancienne Maison Dubois & Fils SA
contra G-B Unic SA.), Col. Jur. 1999, p. 4103, par. 19.
5
europeu, podemos legitimamente afirmar que o princípio maioritariamente aceite é o da
exaustão ou esgotamento comunitário12
. Deste modo, esgotado o direito de propriedade
intelectual, o seu titular fica impedido de o invocar para procurar criar entraves a
importações paralelas de outros Estados-membros da UE. O princípio do esgotamento
tem, porém, limites de carácter geral que importa referir. Com efeito, não apenas, no
entender da jurisprudência europeia, o esgotamento apenas se aplica ao comércio dentro
do espaço geográfico do Espaço Económico Europeu (EEE), deixando de fora as
importações realizadas a partir de países situados no exterior deste território, como, de
acordo com o estabelecido em regulamentos e directivas da UE, não se permite que os
Estados-membros prevejam nas suas respectivas legislações o esgotamento dos direitos
no caso de a colocação do produto no mercado ocorrer fora do território do EEE13
.
No que diz respeito ao requisito do consentimento quanto à colocação dos produtos no
mercado, o mesmo engloba indiscutivelmente, entre outros casos, a concessão de licenças
de exploração dos direitos de propriedade intelectual. Com efeito, ao autorizar o
licenciado a colocar bens no mercado, o licenciante explora, ainda que indirectamente, o
seu direito, que assim se esgota e o impede de obstaculizar a revenda de tais bens no
mercado interno. Do mesmo modo, ainda que tendo a possibilidade de apresentar defesa
contra terceiros que ameacem, perturbem ou violem a sua posição jurídica, o licenciado
não pode alegar uma infracção ao direito de propriedade intelectual nos casos em que os
bens colocados no mercado por um titular de uma outra licença exclusiva para território
distinto (isto é, também ela autorizada pelo titular do direito) são exportados para o
território onde o primeiro exerce a sua actividade14
.
Pelo contrário, nas situações de licenças compulsórias, o TJCE considerou não existir
esgotamento do direito por entender que a aplicação do princípio do esgotamento
12
Para um resumo do modo como esta matéria tem sido tratada pela jurisprudência e na legislação da
União Europeia, David T. Keeling, Free Movement…, pp. 78-82. 13
No que respeita às marcas, leiam-se as seguintes decisões do TJCE: Ac. de 16/7/98, Proc. C-355/96
(Silhouette International Schmied GmbH & Co. KG contra Hartlauer Handelsgesellschaft mbH.), Col. Jur.
1998, p. 4799, par. 26, Ac. de 1/7/99, Proc. C-173/98 (Sebago Inc. e Ancienne Maison Dubois & Fils SA
contra G-B Unic SA.), Col. Jur. 1999, p. 4103, par. 22, ou Ac. de 20/11/2001, Processos apensos C-414/99
a C-416/99 (Zino Davidoff SA contra A & G Imports Ltd e Levi Strauss & Co. e outros contra Tesco Stores
Ltd e outros), Col. Jur. 2001, p. 8691, par. 32. No domínio do direito de autor, pode ler-se o Ac. de
12/9/2006, C-479/04 (Laserdisken ApS contra Kulturministeriet), Col. Jur. 2006, p. 8089, par. 22. 14
Assim, David T. Keeling, Free Movement…, p. 84.
6
pressupõe que o produto em causa tenha sido colocado no mercado de modo livre e
voluntário pelo titular do direito de propriedade intelectual, directamente ou por
intermédio de um terceiro a quem este tenha consentido tal utilização15
.
Contrariamente ao que sucede com as licenças compulsórias, que têm principalmente por
finalidade garantir interesses públicos, a licença voluntariamente concedida consiste num
meio de exploração que vai de encontro ao núcleo do objecto específico dos direitos de
propriedade intelectual16
. De acordo com o Tribunal, no caso Pharmon contra Hoechst, o
objecto específico do direito de patente (identificado como «a substância» do direito de
patente) seria posto em causa se o titular do direito de propriedade intelectual não
pudesse opor-se à importação de produtos manufacturados ao abrigo de uma licença de
carácter obrigatório17
.
Uma questão que tem sido tratada mais recentemente é a de saber de que modo deve ser
compreendida a relação entre, por um lado, o princípio do esgotamento aplicado no
domínio da livre circulação de bens no mercado interno, e, por outro, a intersecção dos
direitos de propriedade intelectual e a política de concorrência, dividindo-se a doutrina
quanto a esta questão.
Em concreto, existe uma primeira posição que, no que respeita à compreensão dos
institutos em causa dentro de uma lógica de construção e protecção do mercado interno,
considera que as relações que se estabelecem no quadro da UE entre os direitos de
propriedade intelectual e a livre circulação de bens têm uma natureza distinta da relação
bilateral dos primeiros com o direito da concorrência.
Existem vários elementos que assinalam a diferença entre o princípio do esgotamento e
as regras da concorrência: entre outros factores, os seus objectivos imediatos são distintos
(ainda que se possa afirmar que os mesmos confluem para o mesmo fim de construção do
15
Ac. TJCE 9/7/1985, Proc. 19/84 (Pharmon BV v Hoechst AG.), ECR 1985, p. 2281. O caso em questão
respeita à pretensão de oposição pelo titular de um direito de patente (Hoechst), quer no Reino Unido quer
na Holanda, a importações paralelas para o mercado holandês a partir do mercado do Reino Unido,
realizadas pelo beneficiário de uma licença compulsória (Pharmon) para fabrico de medicamentos
protegidos pelo referido direito de patente, licença essa atribuída pelo organismo estatal competente no
Reino Unido. 16
Catherine Barnard, The substantive law of the EU – The four freedoms, Oxford, Oxford University Press,
2.ª ed., 2007, p. 182. 17
Cfr. par. 26 da decisão.
7
mercado interno), são diferentes os seus respectivos modus operandi (conquanto do
mesmo se retire uma proibição dirigida aos titulares de direitos, o princípio do
esgotamento comunitário limita a determinação pelas legislações dos Estados-membros
do âmbito das faculdades de exploração dos direitos de propriedade intelectual; o direito
da concorrência tem por função regular directamente o comportamento das empresas no
mercado) e são também diferentes os seus efeitos (a existência de esgotamento significa
que o direito de propriedade intelectual não pode ser exercido pelo seu titular e isso tem
efeitos directamente sobre terceiros, designadamente sobre os importadores paralelos,
enquanto que uma decisão, por uma autoridade da concorrência ou por um tribunal, de
que houve violação das regras da concorrência tem efeitos directos apenas sobre as
empresas infractoras)18
.
Os seus distintos âmbitos de aplicação explicam, por exemplo, que uma conduta
justificada nos termos do artigo 30.º do TFUE possa, ainda assim, ser considerada ilegal
nos termos dos artigos 101.º e 102.º do TFUE19
. Por exemplo, o titular de um direito de
propriedade intelectual pode sempre alegar a titularidade do mesmo para evitar a
importação para o mercado interno de produtos colocados no mercado pela primeira vez
em países terceiros; contudo, as regras da concorrência podem ser usadas para forçar
aquele titular a autorizar a dita importação em situações em que, nomeadamente, este
tenha imposto aos seus licenciados ou distribuidores restrições de venda nos mercados
dos países que compõem a UE. Com efeito, de acordo com esta linha de raciocínio, a
decisão relativamente à imposição de limites à exploração de direitos de propriedade
intelectual por razões de preservação da concorrência no mercado pertence sempre ao
direito da concorrência, tenha ou não ocorrido o esgotamento dos direitos20
.Em contraste,
uma segunda posição, de sinal contrário, sustenta que se poderia conseguir resultados
mais consistentes caso se relacionasse devidamente o princípio do esgotamento dos
direitos de propriedade intelectual com o artigo 101.º do TFUE.
18
Para compreensão de outros elementos distintivos e desenvolvimento dos que destacámos, leia-se Ole-
Andreas Rognstad, The exhaustion/competition interface in EC law – is there room for a holistic
approach?, in Josef Drexl (ed.), “Research Handbook on Intellectual Property and Competition Law”,
Edward Elgar, 2008, pp. 430-431. 19
Cfr. Stefan Enchelmaier, Intellectual property…, p. 419. 20
Idem, p. 421.
8
Parte-se aqui da premissa de que, no contexto da União Europeia, a propriedade
intelectual, para além da função de incentivo já referida, deve ser compreendida também
como um instrumento ao serviço das políticas de combate às restrições territoriais, isto é,
prosseguindo objectivos de promoção de eficiência económica no mercado21
. Daqui
decorre a possibilidade de os titulares dos direitos de propriedade intelectual invocarem o
seu exclusivo para obstarem a importações desde que as restrições territoriais contratadas
com os seus licenciados ou distribuidores possam ser consideradas conformes às regras
da concorrência (designadamente, por serem consideradas cobertas por uma das fontes
das chamadas «isenções por categoria», como as que asseguram a aplicação do nº 3 do
artigo 101º do Tratado a categorias de acordos de transferência de tecnologia).
Ora, esses direitos podem, nos termos de uma aplicação isolada da teoria do esgotamento,
ser considerados esgotados, o que impediria o titular de assim proceder. No entanto, caso
se opte por uma aplicação conjugada do princípio do esgotamento e das regras de
concorrência, poderia entender-se que, reunidos os seus pressupostos, o esgotamento só
tem efectivamente lugar nas situações em que as restrições contratualmente impostas
devam ser consideradas contrárias aos artigos 101.º ou 102.º do TFUE. Para chegar a esta
conclusão, ficciona-se que apenas pode ter sido produzido o consentimento para a
colocação no mercado imprescindível ao esgotamento do direito nos casos em que o seu
titular o concedeu legalmente, isto é, de um modo que seja considerado conforme às
regras que disciplinam a concorrência.22
Apenas desde modo, se poderia considerar
existir uma aplicação coerente tanto do princípio do esgotamento dos direitos de
propriedade intelectual, em obediência à sua razão última de ser, como das normas de
concorrência, que passariam, assim, apesar das suas diferentes fontes e naturezas, a ser
lidos de modo dialogante e consistente, por isso, com as políticas de construção europeia.
21
Ole-Andreas Rognstad, The exhaustion/competition interface…, p. 439. 22
Idem, pp. 440-441. Este autor procede ainda (a pp. 443-447) a uma adaptação do raciocínio explanado
para os casos em que a primeira comercialização dos produtos ocorre num país fora do território do espaço
económico europeu e, por isso, de acordo com a jurisprudência do TJUE, estivesse fora do campo de
aplicação do princípio do esgotamento. Para tanto, critica a premissa do próprio princípio do esgotamento
comunitário, que considera não ser favorável aos objectivos de protecção do mercado interno na medida em
que favorece as restrições verticais, com base na utilização de direitos da propriedade intelectual por
empresas, nomeadamente multinacionais, que tenham colocado os seus produtos pela primeira vez em
mercados terceiros, em detrimento daquelas que os comercializem num Estado-membro da UE. Nestes
casos, ainda que possa naturalmente estar em causa uma violação das regras de concorrência, o princípio do
esgotamento não serviria um propósito consistente com o combate às repartições territoriais do mercado.
9
a. Especialidades do esgotamento dos direitos de autor
Não existindo, como é sabido, qualquer disposição no Tratado de Roma que directamente
se referisse ao direito de autor, foi entendido que a redacção do artigo 30.º (actual artigo
36.º do TFUE), ao mencionar a “protecção da propriedade industrial e comercial”, o
incluía igualmente entre as justificações que poderiam ser invocadas para obstar ao
normal funcionamento dos artigos onde se proíbem as restrições quantitativas à
importação e exportação, bem como todas as medidas de efeito equivalente23
.
Em todo o caso, e mesmo sendo estas questões há muito exploradas pela doutrina que se
debruça sobre as matérias da determinação da natureza jurídica dos direitos sobre obras
literárias e artísticas, da jurisprudência do Tribunal de Justiça não se retira senão uma
análise perfunctória quer do «objecto específico» quer da «função essencial» do direito
de autor, sem deixar claro que diferença considera existir entre os dois conceitos que
utiliza, aparentemente sem critério, nas suas diferentes decisões.
Assim, aquando da primeira aplicação do art. 36.º do TFUE a este tipo de direitos
intelectuais, no caso Deutsche Grammophon, conquanto tenha feito referência à
necessidade de se ter em conta o «objecto específico» do direito de autor, o Tribunal não
fez qualquer tentativa de determinação deste objecto específico24
, tendo esta tendência
sido mantida nos casos que se lhe seguiram25
.
23
Apesar de o artigo 30.º (que, antes do Tratado de Amsterdão de 1997, correspondia ao artigo 36.º e hoje
corresponde ao artigo 36.º do TFUE) ser uma excepção a um princípio fundamental consagrado no artigo
36.º (actual artigo 30.º), foi afirmado em diversas ocasiões pelo Tribunal de Justiça que aquela disposição
englobaria também o direito de autor. Cfr. Ac. Deutsche Grammophon, já citado, e os Acórdãos TJCE de
8/3/1980, Proc. 62/79 (Coditel c. Ciné Vog Films – Coditel I), ECR 1980, p. 8811, de 20/1/1982, Proc.
conjuntos 55/80 e 57/80 (Musik-Vertrieb Membran c. Gema), e de 6/10/1982, Proc. 262/81 (Coditel c. Ciné
Vog Filmes – Coditel II). Note-se que, nos termos expostos no artigo 30.º, nem todas as restrições fundadas
nos direitos intelectuais são consideradas lícitas. Com efeito, não basta que estas medidas de efeito
equivalente – isto é, segundo o Ac. TJCE de 1/7/1974, Proc. 8/74 (Procureur du Roi c. Benoît et Gustave
Dassonville), regulamentações comerciais dos Estados-membros susceptíveis de “entravar, directa ou
indirectamente, actual ou potencialmente o comércio intracomunitário” – prossigam objectivos incluídos na
redacção daquela disposição. Necessário se torna também que preencham a condição dupla de não
constituírem nem um meio de discriminação arbitrária nem qualquer restrição dissimulada ao comércio
entre os Estados-membros. 24
Ac. Deutsche Grammophon contra Métro,, par. 11. 25
Vejam-se, por exemplo, os casos referidos na nota 23.
10
Entretanto, o Tribunal foi fazendo recurso à ideia de «função essencial» do direito de
autor, quer na decisão que ficou conhecida como Coditel I, considerando que «o direito
do titular de direitos de autor e dos seus licenciados de cobrar uma quantia em
contrapartida da exibição de um filme é parte da função essencial do direito de autor
sobre este tipo de obras literárias e artísticas»26
, quer, mais tarde, na decisão Magill, na
qual, mais claramente, o Tribunal considerou como função social do direito de autor a de
«assegurar a protecção moral da obra e a remuneração do esforço criativo [do autor]»27
.
O Tribunal foi um pouco mais além na decisão do caso Phil Collins (1993), no qual,
citando e desenvolvendo jurisprudência anterior, afirmou que «[o] objecto específico
desses direitos, tais como são regulados pelas legislações nacionais, consiste em garantir
a protecção dos direitos jurídicos e económicos dos seus titulares. A protecção dos
direitos jurídicos permite aos autores e aos artistas, designadamente, oporem-se a
qualquer deformação, amputação ou outra alteração da obra prejudicial à sua honra ou
reputação. Os direitos de autor e direitos conexos apresentam também natureza
económica, uma vez que prevêem a faculdade de explorar comercialmente a colocação
no mercado da obra protegida, em especial, na forma de licenças concedidas com
pagamento de direitos»28
.
Um dos traços particulares a destacar a respeito do esgotamento no domínio do direito de
autor diz respeito ao facto de a maioria dos «direitos» ou faculdades patrimoniais que
compõem a esfera patrimonial do direito de autor não se esgotarem. Pelo contrário,
apenas o direito de distribuição está sujeito a esgotamento, o mesmo não sucedendo, por
exemplo, com o direito de reprodução ou com o direito de comunicação ao público.
26
Ac. Coditel I, par. 14 . 27
Ac. TJCE 6/4/1995, Processos conjuntos n.os
C-241/91 e 242/91 (Rafio Telefis Eireann c. Commission –
“Magill”), Col. Jur. 1995, p. I-743, par. 28. Em relação a esta última referência, considera alguma doutrina
ser de realçar o facto de a única referência à necessidade de compensar o esforço criativo do autor ser feita
pelo Tribunal num caso em que justamente era questionável a existência de um verdadeiro esforço criativo
no objecto (as listagens de programas televisivos) que se considerou protegido por direito de autor. Assim,
David T. Keeling, Free Movement…, p. 269. 28
Ac. TJCE de 20/10/1993, Processos apensos C-92/92 e C-326/92 (Phil Collins contra Imtrat
Handelsgesellschaft mbH e Patricia Im- und Export Verwaltungsgesellschaft mbH e Leif Emanuel Kraul
contra EMI Electrola GmbH), Col. Jur. 1993, p. I-05145, par. 20 (sublinhado nosso), sendo citado o Ac.
TJCE 20/1/1981, Processos conjuntos 55/80 et 57/80 (Musik-Vertrieb membran GmbH et K-tel
International contre GEMA - Gesellschaft für musikalische Aufführungs- und mechanische
Vervielfältigungsrechte), Rec. Jur. 1981, p. 147, par. 12.
11
Por outro lado, tem sido entendido que o esgotamento apenas se aplica à distribuição de
bens e não de serviços, pelo que o direito exclusivo não se esgota na transmissão em
linha de obras intelectuais.
A Directiva sobre o direito de autor na sociedade da informação29
desenvolve neste ponto
jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça, aplicando-a ao novo ambiente em linha e
defendendo que “a questão do esgotamento não é pertinente no caso dos serviços, em
especial dos serviços em linha. Tal vale igualmente para as cópias físicas de uma obra ou
de outro material efectuadas por um utilizador de tal serviço com o consentimento do
titular do direito”30
. Por esse motivo, a Directiva em causa estabelece que os actos de
disposição lícitos, mediante a primeira venda ou por outro meio de transferência de
propriedade, esgotam o direito de distribuição do original ou de cópias, enquanto
exemplares tangíveis, de uma obra na UE31
. Em suma, torna explícita a regra segundo a
qual o princípio do esgotamento não é aplicável às transmissões interactivas a pedido de
obras intelectuais32
.
b. O esgotamento do direito de marca
O princípio do esgotamento do direito de marca, definido no §1 do art. 7.º da Directiva
2008/95/CE33
constitui uma importante limitação ao exercício do direito de marca, sendo
29
Directiva n.º 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, relativa à
harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação,
JOCE L167, de 22/6/2001, pp. 10-19. 30
Considerando 29. Na jurisprudência comunitária, cfr., especialmente, os seguintes acórdãos do TJCE:
Coditel I, Coditel II, já citados, e o Ac. TJCE de 17/5/1988, Proc. 158/86 (Warner Brothers Inc. e
Metronome Video ApS v. Erik Viuff Christiansen), ECR 1988, p. 2605. No mesmo sentido, Ac. TJCE de
28/4/1998, Proc. 200/96 (Metronome Musik GmbH c. Music Point Hokamp GmbH), Col. Jur. 1998, p. I-
01953 Ac. TJCE 28/4/1998, Proc. 200/96 (Metronome Musik GmbH c. Music Point Hokamp GmbH), par.
18. 31
Cfr. o n.º 3 do artigo 3.º da Directiva e a respectiva transposição para o Direito português, pela Lei n.º
50/2004, de 24 de Agosto, que deu origem ao n.º 5 do artigo 68.º do Código do Direito de Autor e dos
Direitos Conexos. 32
Para uma análise crítica relativa a esta regra, remetemos para Cláudia Trabuco, O direito de reprodução
de obras literárias e artísticas no ambiente digital, Coimbra Editora, 2006, pp. 575-584 e bibliografia aí
citada. 33
Directiva 2008/95/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de Outubro de 2008 que aproxima as
legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas, procedendo a uma codificação da Directiva
89/109/CEE de 21 de Dezembro de 1988. O princípio do esgotamento do direito de marca encontra-se
igualmente previsto no §1 do art. 13 do Regulamento (CE) nº 40/94 do Conselho, de 20 de Dezembro de
12
alvo de forte contestação por parte dos titulares de marcas e licenciados, sobretudo
exclusivos.
Conforme já foi referido, o esgotamento do direito pressupõe a verificação cumulativa de
três pressupostos: os produtos devem ser comercializados pela primeira vez, pelo próprio
titular ou com o seu consentimento, no território do EEE34
.
Em matéria de direito de marca, os conceitos de comercialização e de consentimento
deram origem a diversas decisões do TJUE, cujos factos poderão revelar-se
esclarecedores.
No acórdão Zino Davidoff (2001)35
a vontade do titular não era expressa de forma muito
clara. O titular das marcas “Cool Water” e “Davidoff Cool Water” celebrou um contrato
de distribuição exclusivo com um operador em Singapura contendo interdições de
revenda para fora daquele território as quais seriam aplicáveis a todos os sub-
distribuidores, sub-agentes ou retalhistas. Porém, esta interdição não se encontrava
visível nem nos produtos nem nas respectivas embalagens. Uma outra empresa (A&G
Imports Lda) adquiriu em Singapura os produtos e importou-os para o território
Britânico, tendo sido alvo de uma acção judicial por parte da titular da marca. Ora, se
bem que no caso em apreço os produtos tenham sido colocados pela primeira vez no
mercado fora do território da UE, as perguntas formuladas pelo tribunal nacional
incidiam sobre a noção de consentimento prevista no art. 7.º, n.º 1 da mencionada
Directiva.
O TJUE reforçou a importância atribuída à noção de «consentimento», reiterando que tal
equivaleria a uma «renúncia do titular ao seu direito exclusivo» devendo ser expressa de
forma inequívoca. Para o Tribunal, a expressão da vontade do titular pode ser implícita36
37.
1993, sobre a marca comunitária, e na legislação nacional no §1 do art. 259.º do Código da Propriedade
Industrial. 34
Coincidindo com os requisitos objectivo, subjectivo e territorial, Alberto Casado Cervino, « La nueva
doctrina del TJCE sobre el agotamiento del derecho de marca ; alcance, requisitos y limites »,
Comunicaciones en Propiedad Industrial y Derecho de Competencia. Nº 46, Abril-Junio, 2007,p. 28. 35
Ac. TJUE de 20 de Novembro de 2001, Zino Davidoff Sa, Processos juntos C- 414/99 a 416/99, Col. Jur.
2001 p. I-08691. 36
O TJUE reiterou a noção de consentimento implícito (o qual pode ser concedido pelo titular, por um seu
licenciado, ou por um sujeito sem nenhuma ligação económica ao titular da marca) no acórdão Makro (de
13
No acórdão Coty Prestige (2010)38
, a empresa fabricante e distribuidora de marcas de
variados perfumes (nomeadamente, Davidoff Cool Water Man), praticava um sistema de
distribuição selectivo e, no quadro contratual que mantinha com os seus distribuidores,
forneceu frascos portadores da marca contendo a menção «demonstração» bem como a
indicação de «venda proibida» para serem testados pelos potenciais consumidores da
marca. Constatando a comercialização dos produtos na Alemanha, Coty Prestige intentou
uma acção judicial nos tribunais alemães contra a empresa em causa;.Em resposta à
questão prejudicial suscitada39
, o TJUE sublinhou a diferença entre o acto de colocação
do produto no mercado EEE e o acto de comercialização40
: o fornecimento da Coty
Prestige aos seus distribuidores de frascos de perfumes com as características referidas
não constituía uma comercialização. De resto, a posterior venda do produto não teria sido
realizada pelo titular com o seu consentimento: a menção pública de interdição da
comercialização, aposta visivelmente nos produtos, traduziria de forma inequívoca e clara
a vontade do titular.
O esgotamento do direito pode ser provocado quando o produto é colocado no mercado
por um sujeito economicamente ligado ao titular da marca, como é o caso do licenciado
ou distribuidor. Se este comercializar o produto em circunstâncias contratualmente
interditas, poderá ser questionada a existência do consentimento do titular da marca para
esta comercialização. Ora, o §2 do art. 8.º da Directiva prevê que o titular de uma marca
15 de Outubro de 2009, Proc. 324/08, Col. Jur. 2009 p. I-10019). As circunstâncias que rodeavam a
comercialização do produto da marca Diesel não eram particularmente claras. Seguindo o “rasto” da
comercialização dos produtos, a empresa Makro pôs à venda sapatos que ostentavam a marca Diesel,
adquiridos por duas empresas espanholas que os tinham comprado à empresa Cosmos; esta empresa, por
sua vez, tinha celebrado um contrato com a Flexi Casual, autorizando-a a fabricar e vender produtos
(sapatos) da marca Diesel. Porém, este contrato não contou com a autorização da Diesel. 37
Quanto à repartição do ónus da prova, o TJUE determinou que caberia ao importador provar o
consentimento e não ao titular provar a sua ausência. Porém, poderão existir circunstâncias que invertam
este princípio(ver, nomeadamente Ac. TJUE de 8 de Abril de 2003,Van Doren + Q. GmbH, , Proc. C-
244/00, Col. Jur. 2003 p. I-03051)
38 Ac. TJUE de 3 de Junho de 2010, Proc. C-127/09, ainda não publicado
39 Sublinhe-se que o tribunal de recurso alemão considerava que não existiria esgotamento do direito pois,
em seu entendimento, o fornecimento do produto aos distribuidores era enquadrado por um direito de
utilização limitado, o qual permitia o seu consumo mas não a venda. Assim, a comercialização do produto
teria sido realizada manifestamente contra a vontade do titular e este não teria obtido retorno económico,
conceito que se encontra ligado à noção de comercialização. 40
O TJUE tinha já determinado no acórdão Peak Holding (de 30 de Novembro de 2004, Proc. C-16/03,
Col. Jur. 2004, p. I-11313) que a comercialização do produto verifica-se no momento da venda do produto
e não num momento anterior (ou seja, quando o produto é disponibilizado ao consumidor) constituindo este
o momento determinante para se aferir do esgotamento do direito de marca.
14
pode invocar os direitos conferidos contra um licenciado que infrinja cláusulas do
contrato de licença respeitantes ao seu prazo de validade, à forma abrangida pelo registo
sob que a marca pode ser usada, à natureza dos produtos ou serviços para os quais foi
concedida a licença, ao território no qual a marca pode ser aposta ou à qualidade dos
produtos fabricados ou dos serviços fornecidos pelo licenciado41
42
.
A questão prende-se, assim, com a repercussão que a infracção a qualquer uma das
cláusulas previstas no §2 do art. 8.º pode provocar na noção de consentimento, para
efeitos de esgotamento do direito de marca.
Relembrando o texto do §1 do art. 8.º da Directiva, o esgotamento verifica-se quando o
produto é colocado no mercado pelo titular ou com o seu consentimento. No caso Peak
Holding AB (2004) o TJUE interpretou a norma de forma literal, considerando que o
consentimento não seria necessário quando a colocação do produto é feita pelo próprio
titular, pelo que as restrições opostas por este à comercialização posterior do produto não
teriam qualquer relevância para efeitos do esgotamento do direito43
. Este entendimento
do TJUE deve ser completado com uma decisão posterior, no caso Copad v. Dior (2009).
Neste caso, o TJUE considerou que a comercialização realizada pelo licenciado, em
desrespeito de uma cláusula do contrato de licença que proibia a venda dos produtos a
negociantes de saldos de produtos deveria ser considerada feita sem o consentimento do
titular da marca, obstando ao esgotamento do direito44
.
41
Verifica-se uma discrepância linguística na versão em língua portuguesa relativamente a outras versões,
nomeadamente inglesa, espanhola e francesa. Assim, na versão portuguesa é incluído no texto legal a
menção “em especial”, sugerindo que o titular pode invocar os direitos de marca contra um licenciado que
infrinja uma clausula do contrato nomeadamente as constantes no § 2. Porém, as outras versões linguísticas
mencionadas não contêm semelhante menção, pelo que somente a infracção das cláusulas mencionadas
poderá justificar a invocação dos direitos de marca pelo seu titular. Importa sublinhar que constitui
jurisprudência constante do TJUE que a lista referida no §2 do art. 8 da Directiva tem carácter exaustivo -
cfr,, entre muitos, Ac. TJUE Copad v. Dior (23 de Abril de 2009, Proc. C-59/08,Col. Jur. 2009 p. I-03421),
parágrafo 20. Refira-se que esta estranha versão portuguesa do art. 8.º já constava na Directiva anterior. 42
No caso de infracção a outras cláusulas previstas no contrato de licença mas não incluídas na listagem
prevista no §2 do art. 8, o titular da marca poderá – apenas - invocar violação contratual e não do direito de
marca. 43
O TJUE determinou que: «o artigo 7/ 1, da directiva não faz depender, além disso, o esgotamento do
direito conferido pela marca do consentimento do titular na comercialização ulterior dos produtos no EEE”,
concluindo que: “a estipulação, num contrato de venda concluído entre o titular da marca e um operador
estabelecido no EEE, de uma proibição de revenda no mesmo (…) não constitui, assim, um obstáculo ao
esgotamento do direito exclusivo do titular em caso de revenda no EEE em violação da proibição». 44
O TJUE determinou que a celebração do contrato de licença “não é equivalente a um consentimento
absoluto e incondicional do titular da marca para a comercialização pelo licenciado dos produtos que
15
O esgotamento do direito de marca poderá repercutir-se na possibilidade de o terceiro
realizar publicidade utilizando a marca (bem como os direitos de autor), visando a
comercialização do respectivo produto. Neste sentido se pronunciou o TJUE no acórdão
Parfums Christian Dior45
, bem como mais recentemente no acórdão Portakabin (2010)46
,
no qual declarou que quando produtos de marca são comercializados no mercado no EEE
pelo titular dessa marca ou com o seu consentimento, o revendedor terá o direito de
revender esses produtos, bem como usar a marca para anunciar ao público a sua
comercialização»
O esgotamento do direito de marca manifestou-se, ainda, num outro tipo de situações que
implicaram não só a comercialização do produto mas alterações realizadas na respectiva
embalagem. A questão do reacondicionamento do produto que ostenta a marca tem sido
sobretudo visível no mercado paralelo dos medicamentos. Os problemas levantados pela
reembalagem dos produtos portadores de marca têm vindo a ser analisados e discutidos
pelo TJUE desde 197847
. As questões suscitadas exigiam uma identificação mais clara do
limite ao princípio do esgotamento – previsto no §2 do art. 7.º da Directiva –, o qual
permite que o titular da marca, invocando o seu direito, se oponha à comercialização dos
produtos quando exista um motivo legitimo que o justifique, nomeadamente sempre que
o estado desses produtos seja modificado ou alterado após a sua colocação no mercado.
O limite ao princípio do esgotamento tem vindo a ser circunscrito na identificação da
«função essencial da marca» (ou no seu «objecto específico»). A jurisprudência
ostentam a marca”. E assim, a comercialização realizada pelo licenciado em desrespeito a uma das
cláusulas previstas no § 2 do art. 8 da Directiva, «é considerada sem o consentimento do titular da marca»,
obstando ao esgotamento do direito de marca. 45
Ac. TJUE de 4 de Novembro de 1997, Proc. C-337/95, Col. Jur 1997, p. I-6013 46
Ac. TJUE de 8 de Julho de 2010, Proc. C-558/08, ainda não publicado. O TJUE declarou ainda que o
titular do direito de marca poderá opor-se à utilização da marca quando, nomeadamente, crie a impressão
no consumidor da existência de uma relação económica entre o revendedor e o titular da marca, por
exemplo que a empresa do revendedor pertence à rede de distribuição do titular dessa marca ou que existe
uma relação especial entre as duas empresas. A utilização da marca terá de circunscrever-se ao objectivo de
comercialização do produto. 47
Ac. do TJUE de 23 de Maio de 1978- Hoffmann-La Roche & Co. AG contre Centrafarm
Vertriebsgesellschaft Pharmazeutischer Erzeugnisse mbH- Proc. 102/77, Col. Jur. 1978 edição especial
portuguesa p. 00391; Ac. TJUE de 10.10.1978- Centrafarm BV contra American Home Products, Proc.
3/78, Col. Jur. 1978 edição especial portuguesa, p. 00621.
16
comunitária48
, influenciada pela necessidade de conciliação do princípio da livre
circulação de mercadorias e de serviços com o direito das marcas, elegeu como função
primordial da marca a de garantir que os produtos portadores deste sinal distintivo são
provenientes da mesma fonte primária de controlo49
50
. A orientação adoptada pela
jurisprudência encontra suporte no considerando 11 da Directiva 2008/95/CE,
sublinhando que a «protecção conferida pela marca registada, cujo objectivo consiste
nomeadamente em garantir a função de origem da marca», o que assegura ao consumidor
ou ao utilizador final a identidade de origem do produto marcado, permitindo-lhe
distinguir, sem confusão possível, este produto de outros que têm uma distinta
proveniência. Esta garantia de proveniência implica que o consumidor ou o utilizador
final pode ter a certeza de que o produto marcado que lhe é oferecido não foi objecto,
num estado anterior de comercialização, de uma intervenção operada por um terceiro sem
a autorização do titular da marca, o que assegura o produto no seu estado originário.
Poder-se-ia considerar que qualquer alteração à embalagem do produto marcado realizada
por um terceiro sem autorização do titular da marca seria considerada como um atentado
à função de garantia da proveniência. Porém, e como é sabido, constitui jurisprudência
constante do TJUE considerar que poderão ser abrangidas pelo princípio do esgotamento
do direito alterações à embalagem do produto marcado desde que estas não afectem o
estado original do produto, que o processo de reembalagem seja necessário51
à
comercialização do produto no mercado e que sejam respeitadas algumas formalidades52
.
Sublinhe-se que a necessidade da operação de reembalagem não equivale à obtenção de
48 Confirmando jurisprudência reiterada neste domínio iniciada no acórdão Hoffmann-La Roche-
Centrafarm (« …esta Sentencia inaugura una reiterada línea jurisprudencial que se extiende hasta
nuestros días »), cfr. Carlos Fernández-Novoa, Tratado sobre derecho de marcas, Marcial Pons, p.608. 49
Para uma análise mais detalhada, Luís M. Couto Gonçalves, Função distintiva da marca , Almedina,
1999. 50
No Ac. Portakabin (Ac. de 8 de Julho de 2010, Proc. C-558/08), o TJUE relembrou que a função
essencial da marca consiste na garantia de proveniência do produto ou do serviço. Nos Ac. de 18 de Junho
de 2009, L’Oréal, Proc.C-487/07, Col. Jur. 2009 p. I-05185 e no Ac. de 23 de Março de 2010, Google
France e Google (C-236/08 a C-238/08), este último ainda não publicado, são expressamente atribuídas
outro tipo de funções à marca, nomeadamente a de garantir a qualidade do produto ou do serviço, ou as
funções de comunicação, de investimento ou de publicidade. 51
Neste sentido ver, nomeadamente, os acórdãos do TJUE de 11 de Julho de 1996, Bristol-Myers Squibb,
Proc. C-427/93, Col. Jur. 1996 p. I-03457 , de 12 de Outubro de 1999, Upjohn, Proc. C-379/97, Col. Jur.
1999, p-6927 e de 23 de Abril de 2002, Boehringer, Proc. C-143/00, Col. Jur. 2002, p. 03759. 52
Nomeadamente, os Acórdãos do TJUE de 26 de Abril de 2007, Boehringer, Proc. C-348/04, Col. Jur.
2007, p. I-03391 e de 22 de Dezembro de 2008, Wellcome Foundation, Proc. C-276/05, Col. Jur. 2008, p. I-
10479.
17
uma mera vantagem comercial por parte do importador paralelo: se este pode
comercializar o produto com a embalagem original, não será legítima a operação de
reembalagem53
. De igual forma, e segundo o princípio de que a intervenção na marca
deve ser a mínima possível, se o medicamento puder ser comercializado somente com a
adição de novos rótulos na embalagem original (nova rotulagem), não será considerado
necessário um reacondicionamento suplementar.
A nova embalagem (ou rotulagem) não poderá ser susceptível de prejudicar a reputação
da marca e a do seu titular, não devendo ser defeituosa, de má qualidade ou pouco
cuidada. No acórdão Boehringer (2007) o TJUE estendeu esta exigência a outras
situações tais como às alterações à embalagem que possam prejudicar «a imagem de
seriedade e de qualidade inerente a tal produto e a confiança que ele é susceptível de
inspirar no público em causa».
c. O esgotamento do direito de patente
No domínio do direito das patentes o princípio do esgotamento foi determinado em
torno da identificação do objecto específico deste direito, tendo igualmente por
objectivo impedir a fragmentação territorial do mercado interno mediante a utilização
da patente. No caso Centrafarm (1974)54
foi determinado que o objecto do direito de
patente consiste em garantir ao titular, em contrapartida pelo seu esforço criativo, o
direito exclusivo de utilizar a invenção na fabricação dos produtos bem como de
colocá-los em circulação pela primeira vez no mercado.
O princípio do esgotamento será igualmente aplicável se no país de exportação a
invenção não for patenteável e, não obstante, o titular da patente tenha aí colocado o
produto em circulação, voluntariamente. No caso Merck v. Stephar (1981)55
o titular
vendeu ou consentiu na venda do produto em Itália, onde não era ainda possível obter
uma patente para medicamento. Um importador paralelo importou o medicamento de
Itália para a Holanda, onde o produto se encontrava protegido através do sistema de
53
Neste sentido, o Ac. do TJUE de 23 de Abril de 2002, Paranova, Proc. 443/99, Col. Jur.2002, p. I-03703,
parágrafos 27 e 28 e o Ac. Boehringer, já mencionado, parágrafo 37. 54
Ac. do TJUE de 13 de Outubro 1974, Proc. 15/74, Col. Jur. Edição especial portuguesa, p. 00475. 55
Ac. TJUE de 5 de Dezembro de 1996, Merck v. Stephar, Proc. 267/95, Col, Jur. 1996, p. I-06285
18
patente, procurando assim, obter vantagem na diferença interessante de preços
verificada nos diferentes mercados. Mesmo que no caso presente o direito de patente
ainda não tivesse proporcionado o retorno económico ao investimento realizado - uma
vez que em Itália não era possível obter uma patente para o medicamento - o Tribunal
determinou que a Merck não poderia apoiar-se na sua patente holandesa para impedir a
importação do produto, comercializado em Itália com o seu consentimento. Reforçando
a relevância do consentimento do titular do direito na comercialização do produto, o
TJUE determinou que o titular do direito de patente tem o direito de optar por escoar o
produto num Estado-Membro onde não existe possibilidade de protecção jurídica
através do sistema de patentes - mas, uma vez feita a sua opção, e concedendo o seu
consentimento na colocação do produto nesse Estado, deverá aceitar as consequências
no que respeita à livre circulação do produto na UE.
Os princípios definidos no Ac. Merck v. Stephar provocaram alguns danos na
compatibilização das políticas da inovação na UE com o objectivo de realização do
mercado interno. Assim, as diferentes perspectivas de protecção do consumidor e
políticas públicas de saúde existentes nos diferentes Estados da UE, conduzem a uma
diferença de preços dos medicamentos não negligenciável. Neste contexto, quando os
Estados impõem controlo de preços dos medicamentos (ou nas respectivas margens de
comercialização), tendo por objectivo baixar o preço no respectivo mercado, acabam
por promover e fomentar o interesse nas importações paralelas para outros Estados da
UE, onde os preços praticados são mais elevados. No sentido contrário, os Estados que
adoptam medidas visando conferir uma eficaz protecção jurídica das patentes,
promovendo e premiando o investimento na inovação, podem ver-se confrontados, na
prática, com uma importação em massa de medicamentos realizados através das
importações paralelas, favorecendo a comercialização, mas não o investimento, na
inovação56
.
56
Ver, neste sentido, Valentine Korah, “Intellectual property rights and the EC competition rules,” Hart
Publishing, 2006, pp. 9 e 19, que conclui: «Problems remains where protection is greater in the country of
import that in that of export, and right holders will have to consider carefully before themselves marketing
the goods in Member Sates where protection is weak, for instance because of maximum price controls».
19
3. Os contratos de licença e os direitos de propriedade intelectual
a. Casos iniciais: a problemática em torno da cláusula de exclusividade, da
protecção territorial absoluta e da cláusula de não concorrência
Conforme foi referido, o relacionamento entre os direitos de propriedade intelectual e o
direito da concorrência da UE não é pacífico. Tal constitui o resultado não só da
divergência natural entre os objectivos próprios do direito da concorrência e os dos
mencionados direitos mas, sobretudo da especificidade própria do direito da concorrência
europeu. Com efeito, as características de territorialidade e de exclusividade torna-os
particularmente aptos a compartimentar os territórios nacionais, provocando obstáculos
ao objectivo da criação do grande mercado interno.
É ponto assente que este grande objectivo comunitário determinou de forma decisiva a
política de antitrust europeia, a qual foi objecto de fortes críticas, interrogando
essencialmente se o direito da concorrência constituía um objectivo autónomo de
apreciação ou se, pelo contrário, seria um elemento instrumental relativamente ao
(grande) objectivo da integração económica. E assim, foi comprovada a enorme diferença
entre os direitos de antitrust europeu e o estadunidense, no qual o critério de defesa da
concorrência constitui o objectivo a defender.
A intransigência do direito da concorrência europeu relativamente às importações
paralelas poderia servir de exemplo ilustrativo desta diferença. Com efeito, a acérrima
protecção prosseguida pelas instâncias europeias legitimava (e ainda legitima) a
interrogação acerca do papel atribuído às importações paralelas, indagando se estas
constituem um objectivo autónomo de protecção relativamente ao direito da
concorrência57
.
Para além do objectivo de realização do mercado interno, a política de concorrência
europeia é ainda temperada pela contemplação de outros valores sociais e económicos.
Tal traduz, também, uma outra diferença relativamente às regras antitrust em vigor nos
57
Considerando que o objectivo de integração económica conduziu a diferenças assinaláveis e
complexidade crescente, Barry E. HAWK, “La révolution antitrust américaine, une leçon pour la
communauté économique européenne » Revue Trimestrielle de Droit Européen, 1989, p. 11.
20
Estados Unidos, «qui met l’accent sur l’économie... et sur la protection de la
concurrence et non pas des concurrents»58
.
Relembrando a noção de cláusula de exclusividade, esta confere a um único agente o
direito de vender, utilizar ou de fabricar produtos/serviços, utilizando o seu direito de
propriedade intelectual em causa para interditar o titular de conceder mais licenças ou
direitos idênticos aos concedidos, dentro dos parâmetros contratualmente estabelecidos59
.
A cláusula de exclusividade atribui, assim, um direito para o licenciado ou para o
distribuidor, constituindo uma obrigação de conteúdo negativo60
para o titular da marca.
A dita cláusula pode comportar um reforço adicional da posição jurídica concorrencial do
licenciado ou do distribuidor quando tal exclusividade abrange o próprio
titular/licenciante da marca, impedindo-o de explorar os actos abrangidos pela
exclusividade conferida.
Os primeiros casos apresentados obtiveram uma resposta severa, sobretudo por parte da
Comissão Europeia61
, que considerou, de forma quase constante, que a cláusula de
exclusividade era restritiva da concorrência, Com efeito, a cláusula de exclusividade, não
fazendo parte da essência ou do conteúdo do direito exclusivo, tinha por objecto ou por
efeito impedir a exploração do mesmo objecto contratual por outros operadores,
restringindo, de forma automática, a concorrência potencial que poderia no caso contrário
existir.
Esta apreciação – severa – por parte da Comissão foi temperada pelo TJUE na decisão
Nungesser (1982)62
: aplicando uma interpretação própria do direito antitrust americano, a
chamada rule of reason, o TJUE determinou que: «Tendo em conta a especificidade dos
58
Idem, p. 10. 59
No considerando 51 das Orientações relativas às restrições verticais (2010/C 130/01, de 19.5.2010, JO C
130/01), é expressamente admitido que a exclusividade possa ser conferida para um determinado território
ou grupo de clientes, podendo ser de aplicação cumulativa. 60
Neste sentido, Pilar Martín Aresti, em Comentarios a la Ley de marcas, Alberto Bercovitz Rodríguez-
Cano (Director), Aranzadi, 2003, p. 771. 61
. Ver, em matéria de patentes e de know-how, nomeadamente, a decisão da Comissão (75/494/CEE) de
18.7.1975, Kabelmetal-Luchaire, J.O. L 222 de 22.8.1975, p. 34, a decisão da Comissão 75/570/CEE de
25.7.1975, Bronbemaling contra Heidemaatschappij J.O. L 249 de 25.9.1975, p.27, bem como a decisão da
Comissão (76/29/CEE) de 2.12.1975, AOIP/Beyrard J.O. L 006 de 13.01.1976., p.8. Em matéria de direito
das marcas, leia-se a decisão da Comissão (78/253/CEE) de 23.12.1977, Campari, J.O. L 70 de 13.3.1978,
p.79. 62
Ac. TJUE de 8 de Junho de 1982, L.C.Nungesser KG e Kurt Eisele c. Comissão das Comunidades
Europeias, Proc. 258/78, Col. Jur. 1982, p. 2015.
21
produtos em causa (…) num caso como este a concessão de uma licença exclusiva aberta,
ou seja uma licença que não visa a situação de terceiros tais como os importadores
paralelos e os licenciados de outros territórios não é, em si mesma incompatível com o
art. 85§1 do Tratado». Assim, a cláusula de exclusividade foi submetida a uma
apreciação baseada nos efeitos restritivos provocados no mercado, rejeitando a
interpretação restritiva per se (ou pelo próprio objecto), defendida pela Comissão.
Seguindo a esteira determinada por este importante acórdão, quatro meses depois, o
TJUE determinou no Ac. Coditel II (1982)63
em matéria de direitos de autor, que uma
licença de representação exclusiva não seria, por si só, uma restrição à concorrência
interdita pelo Tratado; os traços que caracterizam a indústria e o mercado
cinematográfico na Europa – nomeadamente o sistema de financiamento da sua produção
– demonstrariam que uma licença de representação exclusiva não tem, por si só, uma
natureza capaz de impedir ou restringir a concorrência64
.
A protecção concorrencial a nível territorial pode ser analisada por três círculos
crescentes de protecção:
a) O primeiro círculo diz respeito ao grau de concorrência que poderia ser
estabelecido entre o licenciado/distribuidor e o titular da marca, que pode ser atenuada
pela imposição da cláusula de exclusividade, já mencionada.
b) O segundo círculo diz respeito à concorrência no interior da rede, ou seja,
relativamente aos licenciados ou aos distribuidores normalmente da mesma marca ou
do mesmo direito, que pode ser atenuada através da imposição de restrições à venda
nos territórios atribuídos. Assim, neste patamar de restrição concorrencial, o
licenciado/distribuidor estará não somente protegido da concorrência relativamente ao
titular da marca como também perante os outros licenciados ou distribuidores.
63
Ac. do TJUE de 6 de Outubro de 1982, Coditel II, já citado. Numa breve exposição dos factos, a
sociedade Ciné Vog Fims tinha celebrado um contrato com o produtor de um filme (Le Boucher), no qual
tinha sido concedido o direito de representar publicamente na Bélgica relativamente a qualquer forma de
comunicação ao público, incluindo nas salas de cinema e através da televisão. O contrato foi celebrado em
1969 e tinha a duração de 7 anos. Paralelamente, o produtor celebrou um outro contrato no qual cedeu o
direito de emitir o filme por televisão a uma sociedade alemã. As sociedades Coditel captaram directamente
por antena, na Bélgica, o filme e distribuíram-no por cabo aos seus clientes. 64
Neste acórdão, o TJUE referiu que uma duração excessiva da exclusividade ou um sistema de
remunerações desproporcional ao investimento realizado pelo titular do direito poderiam constituir
violações ao art. 101.º.
22
c) O terceiro círculo diz respeito à protecção concorrencial relativamente a
terceiros que adquiram o produto e o pretendam vender no território atribuído em
exclusivo a um determinado licenciado ou distribuidor. Neste último patamar, as
restrições visam impedir a concretização desta venda, normalmente protagonizada por
importadores paralelos.
Este último patamar de restrição, denominado habitualmente como “protecção territorial
absoluta”, expressa, assim, a atribuição de um monopólio de venda ao respectivo
licenciado ou distribuidor relativo a um determinado território e aos produtos portadores
da marca em questão.
A política antitrust comunitária relativamente à protecção territorial (absoluta) foi (e
acrescentamos ainda é), profundamente marcada por dois acórdãos: Grundig c. Consten e
Nungesser. Em ambos os casos, o TJUE declarou que um contrato que vise conferir uma
protecção territorial é, pelo seu próprio objecto, restritivo da concorrência, não lhe
podendo ser aplicada a norma prevista no n.º 3 do art. 101.º 65
.
Relativamente ao segundo grau de protecção, a política de concorrência desde cedo se
caracterizou por uma distinção entre concorrência passiva e activa. O conceito de política
activa de vendas diz respeito a uma série de actos que partem da vontade, da iniciativa e
da responsabilidade do licenciado/distribuidor, visando captar os clientes que se situam
no território afecto a outro membro da rede. Os actos visados podem constituir,
nomeadamente, na abertura de uma sucursal no território de outro licenciado, na criação
de um depósito para a distribuição dos produtos fora do território atribuído, ou na
captação de clientes através da realização de publicidade fora do território atribuído. O
conceito de política passiva de vendas implica que a venda efectuada não foi precedida e
65
As decisões da Comissão a respeito deste tema são numerosas. Ver, nomeadamente, Kabelmetal-
Luchaire, Bronbemaling contra Heidemaatschappij, AOIP/Beyrard, Campari, já mencionadas e ainda a
decisão da Comissão de 9 de Junho de 1972, Davidson Ruber Co, JO L de 23.07.1972; Decisão da
Comissão (75/76/CEE) de 20.12.1974, Rank-Sopelen, JOCE série L 29 de 3.02.1975, p.20; Decisão da
Comissão (88/635/CEE) de 2 de Dezembro de 1988, Transocean Marine Paint Association JO L 351/40 de
21.12.1988; em matéria de dualidade na fixação de preços como forma de dificultar as importações Decisão
da Comissão (78/163/CEE) de 20.12.1977, The Distillers Company Limited, JO L 50 de 22.2.1978,
p.0016, Decisão da Comissão 82/203/CEE- Moet et Chandon- JO L 94 de 8.4.1982, p.11; Decisão da
Comissão (91/335/CEE) de 15 de Maio de 1991, Gosme/Martell-DMP JO L 185/23 de 11.7.91; Decisão da
Comissão (92/261/CEE) de 18 de Março de 1992, Newitt c/ Dunlop, JO L 131 de 16.5.1992 p.32 e o
Acórdão do Tribunal de Primeira Instância de 17 de Julho de 1994, Proc. T-43/92, Dunlop Slanzenger
International contra Comissão, Col. Jur. 1994 p. II-441.
23
provocada por actos promocionais, especificamente dirigidos aos clientes (utilizadores
finais ou revendedores) estabelecidos nos outros territórios66
67
.
O Regulamento n.º 310/201068
da Comissão aplicável aos acordos verticais admite,
dentro do condicionalismo geral de aplicação69
, que o fornecedor possa impor ao
distribuidor exclusivo restrições às vendas activas para um outro território exclusivo ou
um grupo exclusivo de clientes atribuído ao fornecedor ou a outro distribuidor,
interditando, porém que possam ser impostas restrições às vendas passivas, as quais terão
sempre de ser permitidas70
.
No domínio dos acordos de transferência de tecnologia, o Regulamento n.º 772/200471
prevê a possibilidade de isentar da aplicação do artigo 101.º do TFUE as proibições de
vendas quer activas quer passivas72
, desde que estejam presentes as condições gerais de
aplicação pelo Regulamento.73
66
Ver as noções expostas no considerando 52 das Orientações referentes às restrições verticais (2010/C
130/01) de 19.5.2010, JO C 130/01. 67
A utilização da Internet para publicidade ou vendas é considerada pela Comissão como uma forma de
concorrência passiva (ver considerando 52 das mencionadas Orientações). Sobre a questão da utilização da
internet relativamente aos acordos de distribuição selectiva e os problemas provocados pela utilização da
Internet sobretudo em França, ver Isabel Fortuna de Oliveira, “Distribuição selectiva e a Internet: alguns
comentários”, in Actas de Derecho Industrial y derecho de autor (ADI), Vol. 28 (2007/2008), p. 191, e
bibliografia citada.
68 Regulamento (UE) nº 330/2010 da Comissão, JO L 102/1 de 23.04.2010 e respectivas Orientações
relativas às restrições verticais. 69
A condição geral de aplicação automática do Regulamento prende-se com o limiar da quota de mercado
do fornecedor e do comprador não ultrapassar, cada uma, 30% do mercado relevante. (art. 3.º do
Regulamento) 70
A não aplicação automática do Regulamento não impede que o acordo possa ser considerado admitido
pelo art. 101.º, mesmo na presença de restrições graves. Assim, no considerando 61 das Orientações
encontra-se previsto que “quando são necessários investimentos substanciais por parte do distribuidor para
lançar e/ou desenvolver o novo mercado, as restrições impostas às vendas passivas de outros distribuidores
nesse território ou a esse grupo de clientes, necessárias para que o distribuidor recupere tais investimentos,
não são na generalidade abarcadas pelo âmbito de aplicação do artigo 101 n.º 1, durante os primeiros dois
anos em que esse distribuidor vende os produtos ou serviços contratuais nesse território ou a esse grupo de
clientes, embora se presuma que este tipo de restrições graves é em geral abrangido por esta disposição”. 71
Regulamento nº 772/2004 da Comissão, de 27 de Abril de 2004 relativo à aplicação do n.º 3 do artigo 81
do Tratado a categorias de acordos de transferência de tecnologia (JO L 123 de 27.04.2004) e respectivas
Orientações (JO C 101 de 27.04.2004). 72
As regras referentes às restrições passivas para os acordos de transferência de tecnologia distinguem os
acordos celebrados entre concorrentes e não concorrentes. Relativamente aos primeiros, as restrições são
permitidas para os acordos não recíprocos; para os acordos celebrados entre não concorrentes são
permitidas restrições das vendas passivas para o território reservado ao licenciante bem para os territórios
de licenciados exclusivos por um período inicial de dois anos. Ver art. 4.º do Regulamento n.º 772/2004. 73
A condição geral de aplicação automática do Regulamento prende-se com a quota de mercado detida
pelas partes no acordo. Em relação aos acordos entre concorrentes, a quota de mercado agregada das partes
24
A cláusula de não concorrência inserida nos contratos de licença constitui uma obrigação
a cargo do licenciado, interditando-o de vender ou de fabricar outros produtos/serviços
que sejam concorrentes com os produtos/serviços que constituem objecto do respectivo
contrato. A cláusula de não concorrência constitui, na sua essência, uma obrigação de não
fazer a cargo do licenciado ou do distribuidor, caracterizando-se pelo seu conteúdo
marcadamente defensivo, destinado a proteger os interesses do titular do direito. Numa
versão mais abrangente, a cláusula de não concorrência pode conter a obrigação de o
distribuidor/licenciado adquirir ao titular da marca determinado nível de produtos.
Na perspectiva do direito da concorrência, a cláusula de não concorrência provoca,
naturalmente, uma exclusão relativamente a produtos concorrentes74
, proporcionando no
domínio dos acordos verticais, uma restrição inter-marcas. A Comissão desde sempre
considerou que a cláusula de não concorrência era restritiva da concorrência. A
possibilidade de concessão de uma isenção iria depender do objecto do contrato em
causa. Assim, nos casos iniciais decididos pelo direito da concorrência europeu, a mesma
cláusula obteve um tratamento jurídico diferenciado consoante os factos:
a) Quando inserida num contrato de exploração do direito de marca ou de franquia de
distribuição, mereceu um tratamento benevolente por parte das instâncias comunitárias75
;
b) Quando inserida num contrato de Know-how, a cláusula de não concorrência foi
considerada uma aliada da preservação do carácter confidencial, tendo obtido igualmente
um tratamento favorável76
;
no mercado relevante é de 20%, e para os acordos celebrados entre não concorrentes a quota de mercado
individual de cada uma das partes é de 30%. 74
Ac. do TJUE de 11 de Julho de 1985, Proc. 42/84, Remia BV contra Comissão das Comunidades
Europeias, Col. Jur. 1985, p.2545 e Ac.do TPI de 2 de Julho de 1992, Proc. 61/89, Dansk
Pelsdyravlerforening contra Comissão, Col. Jur. 1992, p. II- 0193. 75
Ver, em matéria de contratos de licença de marca, a decisão Campari, já citada, na qual foi considerado
que “[a]interdição de concorrência permitiu melhorar a distribuição evitando a dispersão dos pontos de
venda”, reforçando a visualização da marca no respectivo mercado; e a decisão da Comissão, de 23 de
Março de 1990 (90/186/CEE), Moosehead /Whitbread, JO n.º L 100 de 20/04/1990, pp. 32 - 37. 77
Ver, nomeadamente a decisão da Comissão de 13.10.1988, Delta-Chimie (JO L 309/34 de 15.11.885),
onde foi considerado que tal clausula não é sequer contrária ao nº1 do art. 85 nº1, dado que “permite ao
licenciante verificar se o licenciado não utiliza o saber-fazer concedido para o fabrico de outros produtos
diferentes dos referidos no contrato”. 76
Ver, nomeadamente a decisão da Comissão de 13.10.1988, Delta-Chimie (JO L 309/34 de 15.11.885),
onde foi considerado que tal clausula não é sequer contrária ao nº1 do art. 85 nº1, dado que “permite ao
licenciante verificar se o licenciado não utiliza o saber-fazer concedido para o fabrico de outros produtos
diferentes dos referidos no contrato”.
25
c) Quando inserida num contrato de exploração de patente, a cláusula de não
concorrência deparou com uma notória hostilidade77
;
d) Não tendo sido igualmente admitida nos contratos de distribuição selectiva78
.
A apreciação da cláusula de não concorrência pelas instâncias comunitárias sofreu,
porém, desde então uma alteração significativa. Nas actuais regras aplicáveis aos acordos
verticais previstas no Regulamento n.º 330/2010, é concedida isenção automática aos
acordos que contenham uma cláusula de não concorrência, desde que não ultrapasse 5
anos,79
. A possibilidade de aplicação da cláusula de não concorrência após o termo do
contrato para a protecção do know-how encontra-se prevista na alínea c) do §3 do art. 5.º.
A violação destas regras implica a nulidade da cláusula80
. Pelo contrário, a cláusula de
exclusividade não encontra nenhuma objecção específica, encontrando-se assim inserida
na lógica geral de aplicação da isenção automática prevista no Regulamento. Assim, a
cláusula de não concorrência é encarada de uma forma mais severa do que a de
exclusividade, constituindo uma aplicação actual do princípio geral segundo o qual a
restrição à concorrência inter-marcas é geralmente mais prejudicial do que a restrição à
concorrência intra-marcas
No actual Regulamento n.º 772/2004 aplicável aos acordos de transferência de tecnologia
a cláusula de não concorrência não constitui uma restrição grave81
. É, porém, considerada
uma restrição grave, e como tal prevista no §1 do art. 4.º, a “restrição da capacidade do
licenciado para explorar a sua própria tecnologia ou a restrição da capacidade de qualquer
77
Assim, na decisão da Comissão 76/29/CEE de 2.12.1975, AOIP/Beyrard (JO L 249 de 25.9.1975)
relativa a um contrato de licença de patente, na qual foi determinado que esta cláusula constituía um
entrave ao progresso técnico e económico. No mesmo sentido, na decisão Nungesser (1978), a Comissão
considerou que a cláusula é contrária ao progresso técnico, dado que impedia o licenciado de desenvolver
outros produtos eventualmente melhores ou de aceitar licenças neste sentido. 78
Referindo apenas alguns casos, ver, nomeadamente, Ac. do TJUE de 25 de Outubro de 1977, Metro SB-
c. Comissão, Proc. 26/76, CJ 1977 p. 01875; Decisão da Comissão (85/404/CEE) de 10.7.1985, Grundig
JO L 233/1, de 30.8.1985; Decisão da Comissão (85/616/CEE) de 16.12.1985, Villeroy & Boch, JO L
nº376 de 31.12.1985, p. 15; Decisão (92/428/CEE) de 24 de Julho de 1992, Gyvenchy, JO L 236/11 de
19.07.1992. 79
O limite temporal da aplicação da cláusula de não concorrência poderá não ser aplicado nos acordos de
franquia. No considerando 45 das Orientações, a Comissão considera-se que a cláusula que interdite o
franqueado de desenvolver, directa ou indirectamente quaisquer actividades semelhantes às previstas no
acordo, é necessária para proteger os respectivos direitos de propriedade intelectual. 80
Segundo a aplicação da regra da divisibilidade, prevista no considerando 71 das Orientações. 81
Desde que o acordo esteja inserido nas condições gerais de aplicação do Regulamento, ou seja, nos
limiares das quotas de mercado já mencionadas. Ver considerando 197 das respectivas Orientações.
26
das partes no acordo para realizar actividades de investigação e desenvolvimento, excepto
se esta última restrição for indispensável para impedir a divulgação de terceiros do saber-
-fazer licenciado”.
b. Os acordos de licença de marca.
Os acordos de licença de marca não foram objecto da mesma atenção que outros acordos
de licença, nomeadamente de licença de patente, por parte do direito da concorrência
europeu. Com efeito, somente as decisões Campairi e Moosehead, já referidas,
mereceram algum destaque.
Este tipo de acordos não tem um enquadramento legal específico, não lhes sendo
directamente aplicável qualquer dos Regulamentos de isenção mencionados.
Com efeito, o Regulamento n.º 310/2010 é aplicável aos acordos que versem sobre
direitos de propriedade industrial, quando estes não constituam o respectivo objecto
principal, e desde que tais direitos estejam relacionados com a utilização, venda ou
revenda dos produtos ou serviços visados no acordo. Sendo tais critérios de aplicação
cumulativa, terão forçosamente de ser excluídos do respectivo âmbito de aplicação os
acordos de licença de marca que visem exclusivamente a fabricação82
. Por outro lado, no
caso de a licença de marca constituir um elemento acessório do acordo vertical, o acordo
será abrangido pelo mencionado Regulamento, como acontece no caso típico dos acordos
de franquia. Refira-se que um acordo de licença de marca visando a fabricação e a
distribuição de produtos que contenha disposições complementares referentes a outros
direitos de propriedade intelectual, tais como direitos de patente, ou de know-how, pode
ainda suscitar a questão de saber se o Regulamento n.º 772/2004, lhe será directamente
aplicável, ou não.
82
Segundo Michel Waelbroeck, a distinção entre um contrato de distribuição que verse sobre produtos
portadores de marca e contrato de licença de marca consiste na obrigação do licenciado de apor a marca
nos produtos que posteriormente irá comercializar, enquanto o distribuidor vende o produto para revenda
no estado em que lhe foi entregue pelo titular ou com o seu consentimento (Michel Waelbroeck e Aldo
Frignani, “Derecho europeo de la competencia”, Vol. 4 do Comentario Megret, versão espanhola por
Ignacio Sáenz-Cortabarria Fdez e Marta Morales Isasi, Tomo I, 1998, p. 1027).
27
Cremos, assim, que no caso de um contrato cujo objecto principal vise a atribuição de um
direito de exploração sobre a marca ou, no caso de um acordo misto, que inclua a
concessão de outros direitos de propriedade intelectual, assumindo a marca uma
importância decisiva, tal acordo não encontrará, pelo menos no contexto actual, um
regulamento de isenção que lhe seja directamente aplicado.
A dúvida que poderá persistir reside na identificação de quais serão os princípios que,
estando presentes num dos Regulamentos de isenção por categoria, poderão influenciar a
decisão final sobre o acordo de licença em causa. Esta tarefa não será, porém, fácil.
Assim, no caso de determinado acordo de licença de marca conter disposições relativas à
distribuição, bem como disposições complementares relativas à comunicação e utilização
do know-how, qual será o Regulamento de isenção que as empresas deverão contemplar
preferencialmente? Poderia ser o Regulamento n.º 310/2010, uma vez que o acordo prevê
a distribuição dos produtos, mas poderia ser igualmente o Regulamento relativo aos
acordos de transferência de tecnologia, dado que o acordo contém a comunicação de
know-how visando a correcta fabricação dos produtos em causa. A determinação do
Regulamento de referência terá de ser encontrada tendo em conta a identificação do
objectivo central do acordo, tarefa complexa dado que por vezes não será fácil identificar
se o acordo tem por objectivo central a venda intensiva dos produtos ou o licenciamento
da tecnologia.
c. Os acordos de transferência de tecnologia: remissão
Os chamados acordos de transferência de tecnologia aparecem hoje regulados no
contexto da UE pelo Regulamento n.º 772/2004 da Comissão de 27 de Abril de 2004, que
integra uma das “isenções” por categoria relativas à aplicação do n.º 3 do artigo 101.º do
TFUE.
Estes contratos, na sua maioria contratos de licença de direitos de propriedade intelectual,
embora não exclusivamente, são considerados prima facie pró-competitivos, declarando a
Comissão Europeia que dos mesmos será possível retirar, em princípio, eficiência
económica. Ainda assim, tudo ficará dependente de uma análise de cada “acordo”, o que
28
significa que pode o mesmo dever ser em concreto considerado proibido ou suscitar
preocupações jus-concorrenciais que devam ser contrariadas.
A regulação desta matéria assinala um dos casos importantes de intersecção entre os
contratos de propriedade intelectual e o direito da concorrência, cujo tratamento, por
merecer um capítulo autónomo na presente obra, se deixa aqui apenas brevemente
enunciado.
d. As recusas em licenciar direitos de propriedade intelectual e o direito da
concorrência (art. 102.º)
Aos titulares de direitos de propriedade intelectual é garantido um exclusivo
relativamente ao aproveitamento económico do potencial destes direitos, o que autoriza
os seus titulares a excluírem a concorrência baseada na imitação e os compele a
desenvolverem e produzirem produtos inovadores, que possam substituir aqueles no
mercado83
. De acordo com os princípios que regem os direitos de propriedade intelectual,
faz parte da essência de tal exclusivo a regra segundo a qual o titular destes direitos não é
obrigado, salvo algumas excepções, a licenciá-los a terceiros. As excepções dizem
respeito a intervenções do Estado, como sucede com as chamadas licenças compulsórias
no âmbito dos direitos de patente, destinadas, em regra, a salvaguardar interesses
públicos84
.
Seria expectável que a matéria das licenças compulsórias ou obrigatórias fosse resolvida
dentro dos muros da Propriedade Intelectual85
. Pode perguntar-se, por isso, que razões
justificam que o titular de um direito de propriedade intelectual possa ser obrigado a, no
quadro da aplicação do artigo 102.º do TFUE (ou do seu correspectivo artigo 6.º da Lei
83
De acordo com Beatriz Conde Gallego, Unilateral refusal…, p. 235, o sistema de propriedade intelectual
favorece, assim, a concorrência efectiva no mercado. 84
Para um estudo relativo a estes mecanismos, no âmbito do Direito português, leia-se João Paulo Remédio
Marques, Licenças (voluntárias e obrigatórias) de direitos de propriedade industrial, Almedina, 2008, pp.
191-260. No campo do Direito de Autor, alguns autores assinalam a inutilidade da utilização destes
instrumentos, considerando que o processo administrativo de concessão destas licenças tem custos que não
são compensados pelo valor a retirar das licenças compulsórias, sendo certo que a concessão destas
licenças retira sempre da esfera do titular do direito uma das suas faculdades mais relevantes, isto é, a de
negociar livremente, de acordo com as condições do mercado, a compensação justa pela comercialização
do objecto do direito. Assim, Lionel Bently, Brad Sherman, Intellectual Property Law, Oxford University
Press, 2001, p. 262. 85
Richard Whish, Competition Law, 6.ª ed., Oxford University Press, 209, p. 786.
29
da Concorrência), conceder uma licença de exploração desse direito a um terceiro. A
resposta parece, mais uma vez, estar na distinção, já traçada, entre a existência e o
exercício do direito: o que se pretende restringir não é a titularidade do direito de
propriedade intelectual, mas o exercício impróprio, porque abusivo, do mesmo86
.
Nos termos clarificados pela decisão Volvo v Erik Veng, na medida em que a recusa de
concessão de uma licença a um terceiro não deve, em si mesma, ser considerada um
abuso de posição dominante87
, o que é o mesmo que dizer que o artigo 102.º do Tratado
não é em si mesmo um instrumento para impor licenças compulsórias a empresas com
posição dominante no mercado88
. Assim, apenas existirá abuso quando o direito seja
exercido em certas – e excepcionais – condições que, naturalmente, tornem tal exercício
“susceptível de afectar o comércio entre os Estados-Membros”. A questão a que a
jurisprudência europeia tem tentado responder é, pois, que condições excepcionais são
essas.
Do caso Volvo, assim como de uma outra decisão relativa a peças sobresselentes (a
decisão Renault89
), não é possível retirar senão alguns exemplos de situações
consideradas abusivas, não tendo o TJCE numa primeira fase curado de identificar as
ditas circunstâncias excepcionais90
. O acórdão Magill é, pois, o primeiro em que o
Tribunal claramente se debruça sobre esta questão e procura uma resposta para a mesma.
Estando em causa a recusa por diferentes canais de televisão de concessão de licenças
relativas à publicação de informações relativas às suas grelhas de programação à empresa
Magill TV Guide Ltd, o Tribunal recusou-se a aceitar que a mera titularidade de direitos
de autor sobre aquelas grelhas fosse suficiente para a verificação de uma situação de
posição dominante no mercado. Essa posição dominante derivaria, isso sim, da existência
86
Como explica Dina Kallay, The Law and Economics of Antitrust and Intellectual Property, Edward
Elgar, 2004, p. 124, se fosse de outro modo, a recusa de licença nem tão pouco poderia ser uma conduta
imposta no âmbito do Direito da Concorrência, na medida em que colidiria com a própria existência do
direito de propriedade intelectual. 87
Ac. TJCE 5/10/1988, Proc. 238/87, AB Volvo v Erik Veng (UK) Ltd., ECR 1988, p. 6211, par. 8. 88
David T. Keeling, Free Movement…, p. 381. 89
Ac. TJCE 5/10/1988, Proc. 53/87 (Consorzio italiano della componentistica di ricambio per autoveicoli
and Maxicar v Régie nationale des usines Renault), ECR 1988, p. 6039. 90
Para uma análise compreensiva da jurisprudência do TJCE, incluindo estas decisões iniciais, ver, por
todos, Estelle Derclaye, "Abuses of dominant position and intellectual property rights: a suggestion to
reconcile the Community courts case law", in World Competition 26.4, 2003, pp. 685-705, também
disponível em http://works.bepress.com/estelle_derclaye/17.
30
de um monopólio de facto sobre as informações contidas naquelas grelhas de
programação. Consequentemente, o abuso, a existir, não derivaria da recusa de concessão
da licença de utilização em si mesma considerada, mas poderia ser originado pelos
contornos e características do exercício em concreto do direito de autor pelos seus
titulares. No caso em apreço, foram precisamente estas circunstâncias – designadamente
o facto de aquela recusa, despida de qualquer razão justificativa, impossibilitar o
aparecimento de um novo produto no mercado, para o qual existiria um público potencial
– que estiveram na base do reconhecimento de um comportamento abusivo.
O Tribunal fixou, neste caso, as circunstâncias das quais depende a existência de abuso, a
saber: a recusa de fornecimento da informação necessária com fundamento na protecção
do direito de autor sobre a mesma pelos organismos de radiodifusão criava um obstáculo
ao aparecimento de um novo produto no mercado (a concentração da informação num
único guia de programação); existia procura potencial para esse novo produto; não existia
justificação objectiva para uma tal recusa; e, finalmente, o resultado da recusa era
reservar para os organismos de radiodifusão a exploração do mercado secundário dos
guias de programação televisiva91
. Algumas destas condições foram depois clarificadas, e
91
O caso Magill tem sido amplamente discutido no contexto da aplicação no campo da Propriedade
Intelectual da doutrina das infra-estruturas essenciais (tradução algo insuficiente da “essential facilities
doctrine”, cuja origem na UE é muitas vezes feita coincidir com o Acórdão TJCE 6/3/1974, Processos 6/73
e 7/73, Istituto Chemioterapico Italiano e Commercial Solvents contra Comissão, Col. Jur., ed. especial
portuguesa, p. 119). Contudo, a verdade é que, como bem opina, entre nós, Luís Pinto Monteiro, A recusa
em licenciar direitos de propriedade intelectual no direito da concorrência, Almedina, 2010, p. 112, ficou
em aberto se o Tribunal procedeu realmente a essa aplicação neste caso específico. Pelo contrário, no caso
Bronner (Acórdão TJCE 26/11/1998, Proc. C-7/97, Oscar Bronner GmbH & Co. KG contra Mediaprint
Zeitungs, Col. Jur. 1998, p. 7791), a questão é intensamente analisada pelo Advogado-Geral Jacobs, na
opinião proferida em 28/5/1998, ainda que o Tribunal só muito de relance e na exposição dos argumentos
proferidos pelas partes, faça referência a esta matéria.
Esclarecendo a concepção económica por detrás da aplicação da doutrina das infra-estruturas essenciais aos
direitos de propriedade intelectual, cfr. John Temple Lang (Compulsory licensing of intellectual property in
european community antitrust law, 2002, in URL: http://www.ftc.gov/opp/intellect/020522langdoc.pdf:, p.
19. O texto referido tem também o interesse de sumariar os riscos que a utilização da doutrina das
“essential facilities” comporta neste contexto. De acordo com Lang (pp. 20-21), “If the essential facilities
doctrine prohibited the refusal to licence valuable intellectual property rights in the market to which they
directly relate, an abuse of a dominant position would be found in a large number of cases of refusals to
licence intellectual property. If a competitor could claim that an intellectual property right is an essential
facility merely because it involves a clear competitive advantage, no owner of intellectual property rights
could be sure of enforcing valuable rights, since any intellectual property might have that effect. Moreover,
the essential facilities doctrine, if applied in a single market situation, would weaken intellectual property
rights precisely when this result is least defensible: the more an invention was unique, valuable, and
difficult to duplicate, the greater would be the obligation to share it”.
31
de algum modo restringidas, jurisprudencialmente nos casos Ladbroke92
e Oscar
Bronner93
, que são, por isso, também relevantes neste contexto.
Em 2004, o caso IMS Health94
volta, porém, a colocar a questão de saber quais são as
circunstâncias excepcionais atendíveis no que respeita à aplicação do artigo 102.º nas
situações em que esteja presente um direito de propriedade intelectual e demonstra à
saciedade a divergência de interpretações que é possível retirar da leitura da prática
decisória anterior na UE. O Tribunal contraria aqui a posição defendida pela Comissão e
traça um elenco cumulativo de circunstâncias excepcionais, que são as seguintes: (1) na
linha do acórdão Bronner, a recusa deve estar relacionada com produto/serviço
indispensável ao exercício de actividade num mercado derivado95
; (2) a recusa é
susceptível de excluir toda a concorrência no mercado derivado; (3) obsta ao
aparecimento de novo produto para que existe uma procura potencial por parte dos
consumidores; (4) a recusa não é justificada por razões objectivas96
.
Esta fórmula é repetida, mais recentemente, no caso Microsoft97
, em que se dá particular
ênfase à necessidade de demonstrar que a excepcionalidade requerida para a
obrigatoriedade da licença se verifica nos casos em que o potencial licenciado pretenderia
produzir um novo produto para o qual existia procura potencial por parte dos
consumidores. Contudo, a doutrina tem considerado que o TPI fez uma interpretação
muito tolerante do requisito relativo à novidade do produto, considerando que tal
circunstância, tal como é interpretada nas decisões Magill e IMS Health, não pode ser o
92
Acórdão TPI de 12/6/1997, Proc. T-504/93, Tiercé Ladbroke SA contra Comissão das Comunidades
Europeias, Col. Jur. 1997, p. II-923. Um dos aspectos relevantes desta decisão consistiu na caracterização
da procura potencial por parte dos consumidores para que possa ser aferida a essencialidade do produto,
isto é, uma “procura potencial específica constante e regular” (par. 131). 93
Acórdão TJCE 26/11/1998, Proc. C-7/97, Oscar Bronner GmbH & Co. KG contra Mediaprint Zeitungs,
Col. Jur. 1998, p. 7791, no qual o Tribunal combinou as condições já anteriormente estabelecidas nas
decisões Magill e Ladbroke, igualmente esclarecendo que a justificação da recusa de licença tem
necessariamente que ser objectiva (par. 41). 94
Acordão TJCE 29/4/2004, Proc. C-418/01, IMS Health GmbH & Co. OHG contra NDC Health GmbH &
Co. KG., Col. Jur. 2004, p. 5039. 95
Referindo-se às críticas a este requisito, que pode ser considerado duvidoso por colocar um limite à
imposição de uma licença nos casos em que uma empresa dominante utilize o seu poder num mercado para
controlar mercados derivados, Beatriz Conde Gallego, Unilateral refusal to license indispensable
intellectual property rights – US and EU approaches, in Josef Drexl (ed.), “Research Handbook on
Intellectual Property and Competition Law”, Edward Elgar, 2008, p. 223. 96
Par. 52. 97
Ac. TPI 17/9/2007, Proc. T-201/04, Microsoft Corp. contra Comissão das Comunidades Europeias, Col.
Jur. 2007, p. II-3601.
32
único parâmetro a tomar em conta para determinar se uma recusa de licença pode causar
prejuízo aos consumidores, pois que “esse prejuízo pode decorrer de uma limitação não
só da produção ou da distribuição, como também do desenvolvimento técnico”98
. Basta,
por isso, que exista uma restrição do desenvolvimento tecnológico para se considerar
verificada esta condição.
Outro contributo relevante do caso Microsoft foi ter deixado claro que em caso algum
pode a titularidade de um direito de propriedade intelectual (neste caso sobre informações
relativas a especificações de protocolos que permitiam à assegurar interoperabilidade
com as características das redes de grupos de trabalho comercializados pelos
concorrentes da Microsoft) ser invocada, por si só, como justificação objectiva da recusa
de licença. De acordo como o Tribunal, “essa tese da Microsoft é incompatível com a
razão de ser da excepção que essa jurisprudência reconhece na matéria a favor da livre
concorrência, no sentido de que, se a mera detenção de direitos de propriedade intelectual
pudesse constituir, por si só, uma justificação objectiva para a recusa de conceder uma
licença, a excepção estabelecida pela jurisprudência nunca seria aplicável”99
.
Uma última nota prende-se com o facto de a Comissão Europeia, embora tendo também
seguido nas suas orientações, a fórmula da decisão IMS, parecer apresentar para tanto
justificações de cariz mais económico que as que são utilizadas pelos tribunais nos casos
de recusas de licença, relacionando a ratio decidendi destes casos com a necessidade de
ter em conta quer os efeitos imediatos de uma situação concorrencial no mercado quer os
efeitos a longo prazo dos investimentos na inovação, tendo tais factores que ser
adequadamente balanceados muito embora a Comissão se incline para a possibilidade de
se excluir a concorrência efectiva durante o tempo necessário a assegurar que os titulares
dos direitos de propriedade intelectual obtêm um retorno adequados pelos seus
investimentos100
.
4. Referências conclusivas
98
Par. 647. Referindo-se a uma interpretação algo “benigna” desta condição, Richard Whish, Competition
Law, p. 71. 99
Par. 690. 100
Cfr. Beatriz Conde Gallego, Unilateral refusal…, p. 233.
33
Apesar de prosseguirem distintos objectivos imediatos, o direito da concorrência e os
direitos da propriedade intelectual tendem para um fim último comum: promovem e
premeiam a inovação e a eficiência de recursos em benefício do consumidor e do bem-
estar social101
. Este entendimento sublinha a complementaridade que actualmente é
reconhecida aos dois institutos, atenuando o grau de conflitualidade com que eram
inicialmente analisados.
O direito da concorrência actual já não é encarado como um limite ao exercício dos
direitos de propriedade intelectual, reconhecendo-se explicitamente que os efeitos
derivados da natureza privatística deste tipo de direitos constituem uma contribuição
importante para a existência e a intensidade da concorrência.
É dentro deste contexto que a nova política de concorrência europeia em matéria de
licenças de direitos de propriedade intelectual adoptou o princípio de base segundo a qual
a exploração destes direitos é, em princípio, pró-competitiva, e não restritiva. Tal não
significa conferir uma total imunidade ao exercício dos direitos de propriedade
intelectual, mas esclarece que o centro da análise do actual direito da concorrência se
situa no mercado e nas condições específicas destes e não tanto nos modelos contratuais
de exploração dos direitos de propriedade intelectual correspondentes, afinal, ao exercício
regular e habitual destes últimos.
101
No mesmo sentido, segundo a interpretação que delas fazemos, as palavras de Valérie Laure Benabou,
European competition law and copyright: where do we stand? Where do we go?, in Estelle Derclaye (ed.),
“Research handbook on the future of EU Copyright”, Edward Elgar, 2009, p. 551.