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Coleccin Grupos de Trabajo de CLACSO Grupo de Trabajo Hegemonas y Emancipaciones Coordinadora: Ana Esther CeceaDirector de la Coleccin Atilio A. Boron Secretario Ejecutivo de CLACSO rea Acadmica Coordinador Emilio H. Taddei Asistentes del Programa Grupos de Trabajo Miguel A. Djanikian / Rodolfo Gmez rea de Difusin y Produccin Editorial Coordinador Traduccin al portugus Edicin Diseo editorial Revisin de pruebas Logstica y Distribucin Arte de tapa Impresin Jorge A. Fraga Encarnacin Moya Florencia Enghel Miguel A. Santngelo Lorena Taibo / Marcelo Giardino Ivana Brighenti / Mariana Enghel Mara Mrcia Trigueiro Mendes Marcelo F. Rodriguez Sebastin Amenta / Daniel Aranda Diseo de Marcelo Giardino. Caricatura poltica de 1874, La Madeja, Espaa, La grca poltica del 98, CEXECI, 1998. Cromosete Grca e Editora Ltda.

Primera edicin Hegemonias e emancipaes no sculo XXI Buenos Aires: CLACSO, julio de 2005ISBN 987-1183-20-8 Conselho Latino-americano de Cincias Sociais Programa de Publicaciones en Portugus Asistente del programa: Javier Amadeo Rua Artur de Azevedo 736, Pinheiros, So Paulo, Brasil Telefone: (55-11) 3082-7677 / Endero eletrnico: [email protected] CLACSO Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales Conselho Latino-americano de Cincias Sociais Av. Callao 875, piso 3 C1023AAB Ciudad de Buenos Aires, Argentina Tel.: (54-11) 4811-6588 / 4814-2301 - Fax: (54-11) 4812-8459 e-mail: [email protected] - http://www.clacso.org

HEGEMONIAS E EMANCIPAES NO SCULO XXIAna Esther CeceaORGANIZADORA

EMIR SADER ANA ESTHER CECEA JAIME CAYCEDO JAIME ESTAY R. BERENICE P. RAMREZ LPEZ ARMANDO BARTRA RAL ORNELAS JOS MARA GMEZ EDGARDO LANDER

Hegemonias e emancipaes no sculo XXI / compilado por Ana Esther Cecea - 1a ed. - Buenos Aires : Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales - CLACSO, 2005. 220 p. ; 24x16 cm. (Grupos de trabajo dirigida por Atilio Boron) Traducido por: Encarnacin Moya ISBN 987-1183-20-8 1. Sociologa I. Cecea, Ana Esther, comp. II. Moya, Encarnacin, trad. III. Ttulo CDD 301

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NDICE

INTRODUO Ana Esther Cecea Hegemonias e emancipaes no sculo XXI 7 HEGEMONIA ESTADUNIDENSE E DOMINAO CAPITALISTA Emir Sader Hegemonia e contra-hegemonia 15 Ana Esther Cecea Estratgias de construo de uma hegemonia sem limites 35 Jaime Caycedo Impacto regional do conito colombiano na Amrica Latina 57 Jaime Estay R. A ALCA depois de Miami: a conquista continua 71 Berenice P. Ramrez Lpez A Amrica Central na atual expresso da hegemonia estadunidense 85

EMANCIPAO: CONTRA-HEGEMNICA OU SEM HEGEMONIAS? Armando Bartra Mesoamericanos: reanimando uma identidade coletiva 113 Ral Ornelas A autonomia como eixo da resistncia zapatista Do levante armado ao nascimento dos Caracoles 129 Jos Mara Gmez De Porto Alegre a Mumbai O Frum Mundial e os desaos do movimento altermundialista 169 Edgardo Lander Venezuela: a busca de um projeto contra-hegemnico 193

INTRODUOANA ESTHER CECEA

Hegemonias e emancipaes no sculo XXI

A Terra voltou a ser povoada com seus mortos mais antigos. Ressuscitaram de seus ossos, utenslios e pinturas rupestres e vivem em nossa imaginao como os egpcios e cartagineses viviam na dos homens do sculo passado. Elas Canetti, 1981

OS HISTORIADORES apontam as mudanas de sculo como importantes momentos de reajuste no funcionamento das sociedades. Se fosse assim, isso contribuiria para entendermos as profundas transformaes que acompanharam a mudana de milnio. Em todo caso, a histria dos ltimos trinta anos efetivamente est marcada por uma simultaneidade de processos que, em conjunto, parecem abrir caminhos para uma srie de bifurcaes civilizatrias, como as chama Immanuel Wallerstein1. Na perspectiva histrica dos modos de organizao social ou dos modos de produo, o capitalismo, apesar de suas incessantes realizaes, parece estar entrando no ocaso; as culturas supostamente mortas ou sistematicamente arrasadas emergem com uma fora moral equiparvel deslegitimao da sociedade do progresso (Berger). Tendo em mente as experincias do passado, particularmente o doloroso nascimento da sociedade burguesa, provvel que o ocaso capitalista no somente continue sendo cenrio de episdios violentos da maior crueldade,1 Huntington, idelogo do Pentgono, j havia percebido a mudana quando falou do choque de civilizaes em meados da ltima dcada do sculo XX. Em resposta viso reducionista com a qual pretende resolver os conitos do mundo contemporneo, Tariq Al corrige sua ambgua frmula para coloc-la em termos mais adequados: no se trata de um choque de civilizaes, que em todo caso teria uma conotao muito diferente daquela pretendida por Huntington, e sim de um choque de fundamentalismos (Huntington, 1997).

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HEGEMONIAS E EMANCIPAES

como tambm de momentos de renovado esplendor e de reconstruo relativa de uma legitimidade que, no obstante, cada vez tem menos substncia. De qualquer maneira, a temporalidade deste ocaso incerta e est relacionada com a ao dos sujeitos ou, como diz Foucault, com o acaso da luta. Se a luta de classes o motor da histria, como indicava Marx, no h determinismos. As condies objetivas so apenas o marco de possibilidade imediata dos sujeitos que, voluntariamente ou no, contriburam para cri-las2. Assim, as condies para a manuteno de um sistema de dominao como o atual derivam no somente da concentrao de meios que permitem organizar a modo a reproduo coletiva, mas, sobretudo, da convico de que esses meios so alheios e sustentam um poder inapelvel, alm da conseqente naturalizao do modo de organizao social. O poder e a dominao so expresses particulares de um certo tipo de relao intersubjetiva, evidentemente dspar, que tem de ser resolvida no terreno da interlocuo. Enquanto existirem dominados continuaro existindo dominadores ou, nas palavras de Ret Marut e Bruno Traven:O capitalista ri das tuas greves. Mas no dia em que envolveres teus ps com velhos trapos, em vez de comprar sapatos e meias, seus orgulhosos membros tremero de medo (Marut e Traven, 2000: 126).

O tema nodal no terreno das hegemonias e emancipaes no somente a dominao, no somente, nem sempre, a fora fsica que, anal, pode ser enfrentada em seu prprio terreno e sim, como indicava Gramsci, a capacidade de gerar uma concepo universal do mundo a partir dela mesma, de dominar atravs do consenso e de reproduzir as formas de dominao nos espaos dos dominados. Isto o que faz Foucault dizer:[O] poder, se o olhamos de perto, no algo que se divide entre os que o retm como propriedade exclusiva e os que no o tm e o sofrem. O poder , e deve ser analisado, como algo que circula e funciona por assim dizer em cadeia (Foucault, 1996: 31). O poder funciona e se exerce atravs de uma organizao reticular. E nas suas malhas os indivduos no apenas circulam, como esto postos na condio de sofr-lo e exerc-lo; nunca so o alvo inerte ou cmplice do poder, so sempre seus elementos de recomposio (Foucault, 1996: 32).

Dominao, hegemonia, legitimidade, sistema de poder, imprio, imperialismo, contra-hegemonia, emancipao, so referentes tericos que necessrio2 O conhecimento totalizador o conhecimento da ordem sobre o caos. A este respeito, o que distingue a sociologia funcionalista da sociologia marxista que a primeira orienta-se para a ordem da regulao social, enquanto que a segunda dirige sua ateno para a ordem da emancipao social. No comeo do sculo XXI temos que afrontar uma realidade de desordem, tanto na regulao social como na emancipao social. Fazemos parte de sociedades que so autoritrias e libertrias ao mesmo tempo (Sousa Santos, 2003: 29).

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INTRODUO

ressignicar, precisar, enriquecer ou delimitar para que enfrentemos a realidade do conito social no milnio que comea tanto com a irrupo do movimento zapatista em Chiapas um dos lugares mais sulistas do Sul metafrico que Boaventura de Sousa situa como o sofrimento que o ser humano padeceu sob o sistema capitalista globalizado (Sousa Santos, 2003: 36), como com o ataque s torres gmeas de Nova York ou as invases do Afeganisto, Iraque, Timor Leste ou Haiti. Uma das preocupaes centrais do Grupo de Trabalho Hegemonias e emancipaes do Conselho Latino-americano de Cincias Sociais, CLACSO e deste livro justamente contribuir para a reapropriao conceitual, que, ao mesmo tempo em que ressignica velhas categorias, cria outras novas, ou novos modos de entender e interpelar a realidade. Segundo John Berger, O ato de escrever [ou de investigar, como podemos dizer] no nada mais do que o ato de se aproximar da experincia sobre a qual se escreve (Berger, 2001: 23). Se partimos do reconhecimento deste m de milnio como o universal concreto no qual se unem, se cruzam e se dissociam processos, isto , na qualidade de ponto crtico de sntese de uma realidade catica e complexa, na qual se originam os novos caminhos de uma histria de histrias na qual os sujeitos em ao introduzem suas prprias pautas e epistemologias, qual a pertinncia de trabalhar com conceitos como hegemonia e estratgia? Que contedo especco concedemos hegemonia? Qual a relao entre hegemonia e estratgia? Como lidar com as temporalidades histricas na anlise da hegemonia? Quais so os critrios de avaliao do estado da hegemonia? Quais so seus suportes? Qual a territorialidade da hegemonia e como se constri? Quais so seus mecanismos privilegiados? possvel falar de projeto hegemnico? Que lugar ocupa o econmico na construo de hegemonia? E o militar? So criadores de uma concepo de mundo? Numa sociedade instvel desde a origem, como a capitalista, possvel falar de hegemonia, ou temos que introduzir a competio e o conito, recuperando os processos de disputa pelo poder e de construo de hegemonias alternativas? Seriam estas disputas internas, ou rupturas civilizatrias? Qual o estatuto terico de cada uma delas? Que sentido e pertinncia analtica e poltica tm os estudos sobre hegemonia? Quais as virtudes do enfoque geoestratgico para a apreenso do capitalismo contemporneo? Em que medida a transformao do real apela para uma subverso do pensamento, dos esquemas conceituais e das perspectivas situacionais? Isto signica que transferir o centro da anlise das relaes de explorao para as relaes de dominao implica incorporar todas as dimenses da vida social e transcender a esfera do trabalho. Isto evidentemente tem fortes repercusses no terreno da anlise, pois exige a construo de conceitos transdisci9

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plinares (Morin, 1990) com uma capacidade explicativa de amplo espectro. O Grupo de Trabalho Hegemonias e emancipaes concebe as relaes sociais como relaes entre sujeitos, e busca delimitar em seu prprio mbito suas expresses capitalistas objetivadas: capital, fora de trabalho, etc. Isto obriga a colocar em primeiro plano a construo de subjetividades e a reproduo e/ou subverso das relaes sociais: os limites da dominao capitalista esto marcados pela potncia criativa e libertadora dos sujeitos num determinado contexto que, por outro lado, modica-se com sua ao. Por conseguinte, estudar a hegemonia tem um propsito mais do que acadmico, que nos permite compartilhar de uma perspectiva emancipadora como a de Foucault:A histria, genealogicamente dirigida, no tem como m reencontrar as razes de nossa identidade, mas, ao contrrio, se obstinar em dissip-la; ela no pretende demarcar o territrio nico de onde ns viemos, essa primeira ptria qual os metafsicos prometem que ns retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam (Foucault, 1979: 34-5).

Isto nos coloca em um novo terreno problemtico. Se o eixo de reexo o espao de interao dos sujeitos, o espao de construo e desconstruo de intersubjetividades, necessrio desenvolver conceitos que permitam apreender as snteses dominao-resistncia, hegemonia-emancipao, poder-democracia ou indivduo-comunidade. Isto , conceitos que tornem possvel pensar esta unidade contraditria pela sua essncia unicadora, e no pela dissociao de seus componentes. Um primeiro esforo nesse sentido consiste em trabalhar simultaneamente os conceitos de hegemonia e de emancipao como abstraes interpretativas e como experincias histricas. indispensvel, para este propsito, rever e reformular o contedo terico concreto da emancipao: como entend-la no mundo do sculo XXI? Seu contedo tem variado com o transcurso das lutas? Como lidar com suas temporalidades? Ela requer uma institucionalidade prpria? possvel falar de emancipao num nico campo? Por exemplo, falar de emancipao poltica, mas no necessariamente econmica ou cultural, etc.? H diferena entre o que se chama comumente de movimentos sociais e movimentos polticos? H algum movimento que no seja poltico? Hegemonia e emancipao so duas linhas diferentes? Quais so os lugares da hegemonia e da emancipao? Qual o terreno de construo das concepes de mundo? Toda concepo de mundo traz em si um processo de dominao? Isto , no pode existir uma concepo de mundo de dimenses universais que no implique dominao-submisso? No pode haver uma concepo de mundo a partir da emancipao geral, que responda ao que alude Ret Marut quando10

INTRODUO

arma minha liberdade somente est assegurada se todas as pessoas em meu entorno so livres? (Marut e Traven, 2000: 50). Trabalhar a emancipao ou as emancipaes nos conduz a recolocar a concepo da poltica e da suposta clivagem entre sociedade civil e sociedade poltica (ou entre Estado e sociedade), assim como a delimitao de seus mbitos, formas e modalidades. Exige, do mesmo modo, trabalhar na ressignicao dos conceitos de poder, revoluo e democracia. Resolver teoricamente se realmente estamos hoje na presena de novas formas e contedos da luta, como propem os estudiosos dos novos movimentos, e se estes implicam algum tipo de desmarcao epistemolgica relativamente ao passado das lutas e legalidade capitalista. Reformular tambm o carter do pblico como espao de exerccio poltico cotidiano, e muitas outras questes que necessariamente decorrem do questionamento epistemolgico geral que isto supe. Mas, sobretudo, implica repensar a sociedade como mbito da intersubjetividade, e as relaes intersubjetivas como espao da comunidade democrtica.A anlise crtica do que existe repousa sobre o pressuposto de que os fatos da realidade no esgotam as possibilidades da existncia (Sousa Santos, 2003: 26).

A anlise do mundo contemporneo a partir desta perspectiva nos conduz ao reconhecimento de que a nica possibilidade de prever o futuro consiste no delineamento de cenrios e na identicao de estratgicas, sejam estas relativas dominao hegemnica ou aos processos de emancipao. nesta viso que se inscrevem os trabalhos includos neste volume, alguns relacionados com a anlise crtica do discurso hegemnico e da construo de sentidos a partir da objetividade e subjetividade do sistema de dominao (Cecea), ou de planos de redesenho territorial e de controle espacial das condies de reproduo estratgica deste sistema (Estay, Caycedo, Ramrez Lpez), e outros relacionados com diferentes discursos e experincias de emancipao ou de rejeio aos projetos hegemnicos (Bartra, Ornelas, Sader, Gmez, Lander). A complexidade do mundo atual fez Berger armar que de tanto vermos tudo, no distinguimos nada (Berger, 2002: 26-27). Ns, modestamente, estamos tentando ver somente alguns fenmenos, mas a partir de nossa prpria perspectiva.La mthode nest pas sparable du contenu, et leur unit, cest--dire la thorie, nest pas son tour sparable des xigences dune action rvolutionnaire. Castoriadis, 1975: 21

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BIBLIOGRAFIABerger, John 2001 Puerca tierra (Espaa: Punto de lectura). Berger, John 2002 La forma de un bolsillo (Mxico: ERA). Canetti, Elas 1981 La conciencia de las palabras (Mxico: FCE). Castoriadis, Cornelius 1975 Linstitution imaginaire de la socit (Paris: Seuil). Sousa Santos, Boaventura de 2003 La cada del ngelus novus: ensayos para una nueva teora social y una nueva prctica poltica (Colombia: ILSA-Universidad Nacional de Colombia). Foucault, Michel 1996 (1979) Microfsica do poder (Rio de Janeiro: Graal). Foucault, Michel 1996 Genealoga del racismo (Argentina: Altamira). Huntington, Samuel P. 1997 El choque de civilizaciones y la reconguracin del orden mundial (Buenos Aires: Paids). Marut, Ret e Traven Bruno 2000 En el estado ms libre del mundo (Barcelona: AliKornio). Morin, Edgar 1990 Introduccin al pensamiento complejo (Espaa: Gedisa).

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HEGEMONIA ESTADUNIDENSEE DOMINAO CAPITALISTA

EMIR SADER*

HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA

HEGEMONIA, DOMINAO E CONSENSO A QUESTO POLTICA e terica mais importante atualmente, na luta por um outro mundo possvel, aquela referente construo de uma hegemonia alternativa ao modelo neoliberal. Este revela sinais claros de esgotamento, a hegemonia norte-americana demonstra seus limites, o Frum Social Mundial (FSM) se arma como espao de intercmbio e de debate dos temas ligados a uma hegemonia alternativa, porm no surge ainda um modelo alternativo, nem como projeto terico e poltico, nem como governos que materializem a sada do modelo atual. Nada de essencial do mundo contemporneo pode ser explicado sem uma compreenso minimamente adequada da hegemonia norte-americana, tal foi a forma com que essa hegemonia ganhou centralidade depois da desapario do campo socialista no mundo. Qualquer viso que subestime a importncia dessa anlise, ou que a desenvolva de forma excessivamente ligeira, subestimando a fora da hegemonia dos Estados Unidos, pode contentar-nos com a lista de debilidades norte-americanas, mas contribui negativamente para a sua superao e para a construo do outro mundo possvel, se no d conta da capacidade norte-americana de ser a nica superpotncia atual no mundo.* Doutor em Cincia Poltica, coordenador do Laboratrio de Polticas Pblicas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor da Universidade de So Paulo. Fundador e coordenador do Grupo de Trabalho Economia Internacional, do Conselho Latino-americano de Cincias Sociais.

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Uma estratgia para um mundo ps-neoliberal requer, antes de tudo, uma anlise precisa do carter da hegemonia atual, em particular da hegemonia norte-americana, com seus pontos de fora e de debilidade, para desenhar o campo de atuao das foras contra-hegemnicas. O carter profundamente contraditrio da hegemonia atual no mundo termina provocando enfoques unilineais, que, ao invs de favorecer a construo de um mundo articulado de forma democrtica, com uma hegemonia construda na base do consenso mltiplo e pluralista, impe solues unilaterais e baseadas na fora. O tom onipotente do governo norte-americano suscita a resposta de seu desmascaramento, que se soma enorme quantidade de contradies e de debilidades da sua hegemonia no mundo contemporneo; desde o ressuscitar do termo tigre de papel at a caracterizao de uma decadncia irreversvel em prazos relativamente previsveis. Esses elementos so inquestionveis: fraquezas da economia norte-americana, diculdades de gesto da ocupao do Iraque, isolamento diplomtico relativo de Washington, entre outros. No entanto, como dizia Brecht, temos que tomar o inimigo com sua fora real, incluindo seus lados fortes, explicar por que ele dominante, dar a verdadeira proporo da sua fora, principalmente em relao s nossas debilidades. Este elemento particularmente importante na atualidade, porque grande parte da fora norte-americana decorre no da sua fora prpria, mas das debilidades dos que se lhe antepem em se constituir como fora alternativa, que canalize e catalise as suas fraquezas. O tema da crise da hegemonia norte-americana tem que ser inserido no marco global das correlaes de fora, porque a fora relativa de cada ator decorre da co-relao de foras, isto , da relao entre as foras em presena. Neste caso, evidente que o argumento de que a economia norteamericana signicativamente mais frgil do que era no passado peca pela unilateralidade a partir de dois pontos de vista. Em primeiro lugar, considera a fora norte-americana praticamente apenas no plano econmico com todo o peso que a economia justicadamente possui, sem levar em conta o peso dos outros fatores que compem essa hegemonia: militar, tecnolgico, ideolgico, de meios de comunicao. Em segundo, compara os Estados Unidos de hoje com os Estados Unidos de h quatro dcadas, quando a comparao tem que ser feita com as outras foras atualmente presentes. Neste caso, temos um Estados Unidos mais frgil economicamente que h algumas dcadas, porm mais forte no quadro geral, porque o segundo lugar de ento, a URSS, desapareceu, o Japo est h mais de umas dcadas em recesso e a Europa pelo menos estagnou. Assim, a fora relativa dos Estados Unidos maior do que antes. A concluso a que se costuma chegar Samir16

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Amin, Wallerstein, Andr Gunder Frank, entre outros a oposta, por no ser uma avaliao poltica, isto , global, sinttica, que analisa o quadro geral das correlaes de fora existentes. neste sentido que o conceito de hegemonia ganha todo o seu signicado. No se reduz dominao militar ou superioridade econmica, mas articula o conjunto de fatores que levam uma potncia a ser dominante e dirigente. Wallerstein, em particular, arma que no se pode dizer que exista hegemonia reduzindo-a simples dominao, isto , coero. Arrighi fala de dominao sem hegemonia. Este nos parece um raciocnio igualmente unilateral, que subestima os fatores ideolgicos, com toda a fora que a penetrao do American way of life segue tendo, da China Amrica Latina, da Europa do leste ao sudeste asitico, da ndia Rssia, da Europa ocidental ao Japo. E subestima o papel de dirigente do bloco poltico e econmico das grandes potncias capitalistas, diante da incapacidade de outras potncias, ou grupo delas, tomarem iniciativas prprias, apenas reagindo diante das iniciativas norte-americanas, mesmo quando as rejeitam. Reduzir a predominncia norte-americana coero uma viso economicista, que desconhece os outros fatores que compem a hegemonia, com a capacidade de persuaso que os valores ideolgicos e os mecanismos de sua difuso pelas distintas formas de expresso que os norte-americanos conseguiram produzir e multiplicar. O tema merece uma reexo mais detida, aqui somente faremos algumas observaes que pretendem apenas encaminhar a discusso poltica e estratgica necessria.

O CARTER DA HEGEMONIA ATUAL Um tigre de papel a caracterizao de Mao-Tse-Tung parece aplicar-se, mais do que aos Estados Unidos de quatro dcadas atrs quando dividia a hegemonia mundial com a URSS, potncia unipolar de hoje. A lista de suas debilidades parece interminvel e os crticos, de esquerda, como Wallerstein, Samir Amin, Arrighi, Gunder Frank, James Petras, entre outros, mas tambm os conservadores, como Todd, no se cansam de apontar, praticamente com razo em todos os casos. O tema da crise da hegemonia norte-americana coloca, antes de tudo, a necessidade de pensar as diferenas entre a hegemonia e a contra-hegemonia no perodo histrico caracterizado pela bipolaridade mundial e a forma como ela funciona num perodo de unipolaridade. Naquele perodo, podia-se falar quase de um jogo de soma zero, em que quando um perde, o outro ganha,17

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em que o desgaste de uma das grandes superpotncias levava, quase de forma automtica, ao fortalecimento da outra. Quando se passa a um mundo unipolar, em que apenas uma superpotncia apresenta capacidade hegemnica, os termos da relao de foras, sua dinmica, se alteram. A fora da hegemonia norte-americana tem, na debilidade das outras foras, um de seus elementos favorveis. Embora questionado em vrias de suas dimenses, o poder imperial norte-americano faz descansar sua superioridade, em parte, exatamente no fato de ser a nica potncia com poder global, com interesses em todas as partes do mundo, em revelar poder em todos os nveis que contam para a hegemonia economia, tecnologia, poltica, cultura, mdia, etcetera. Um dos paradoxos da hegemonia norte-americana o contraponto entre seus elementos de fora e de debilidade, tanto contemporaneamente quanto em comparao com seu passado. A economia dos Estados Unidos foi capaz de exibir invejveis para o atual ciclo longo recessivo nveis de crescimento durante cerca de sete anos ao longo da dcada de 1990, porm desembocou numa recesso profunda ao nal desse ciclo curto, e retoma ndices de recuperao sem conseguir reabsorver o desemprego gerado. Porm, esse desempenho extremamente desigual ainda superior ao das economias europia e japonesa os outros trs elementos da trade do centro do capitalismo. Ao ter assumido sozinho o papel de locomotiva da economia mundial na dcada passada, os Estados Unidos ganharam importncia ainda maior, fazendo com que grande parte dos outros pases passassem a depender do mercado norte-americano para suas exportaes de mercadorias, de servios ou de capitais. Da mesma forma, o desempenho da economia dos Estados Unidos, mesmo em seu ciclo curto expansivo, muito inferior ao que foi nas dcadas transcorridas entre os anos 1940 e 1970. Porm, a relao de foras uma correlao de foras, e assim o critrio comparativo com as outras potncias, todas elas com desempenho muito inferior ao que tiveram naquele perodo. A superioridade norte-americana tem que ser medida, alm disso, pelo fato de que aquela que havia sido a segunda potncia econmica do mundo a URSS desapareceu. Assim, a hegemonia norte-americana maior, porque medida em relao s outras foras. Justamente pelo paradoxo da fora e da debilidade do poderio norte-americano e pela exibio miditica de sua superioridade, grande parte das anlises crticas tendem a ressaltar at como forma de denncia os elementos de fragilidade embutidos nessa fora. Esse momento, por necessrio que seja, no pode perder a anlise do conjunto do desempenho norte-americano em certa medida, reveses econmicos tm contrapartida na fora miditica, as18

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sim como na relao com o conjunto do campo de foras mundial, de onde sobressai a hegemonia global norte-americana com maior clareza. A economia ponto mais forte da ascenso norte-americana primeira potncia mundial se revela claramente mais frgil do que foi essa economia no ciclo longo expansivo anterior, comeado ainda nos anos 1940 e concludo na dcada de 1970. De grande exportador de capitais passou a maior importador de capitais para recompor seus dcits comercial e pblico. Seu equilbrio econmico e sua capacidade de reproduo de capital depende dos capitais investidos em suas bolsas em particular daqueles provenientes da sia e das importaes provenientes do Japo e da China. Sua moeda se mostra vulnervel, passvel de ser afetada por uma extenso crescente das reas do euro no mundo inclusive entre os pases da Organizao de Pases Exportadores de Petrleo (OPEP), apesar da derrubada do regime de Sadam Hussein. De economia industrial passou a economia primordialmente de servios. Sua economia entrou numa recesso profunda e prolongada, depois do ciclo expansivo dos anos 1990, pela bolha especulativa que nalmente explodiu, depois da exuberncia irracional em que tinha se assentado. O consumo familiar, motor dessa expanso, est bloqueado por um bom tempo, inviabilizando uma recuperao minimamente slida. Alm disso, a desregulao econmica comandada pelos Estados Unidos nas duas ltimas dcadas e meia levou hegemonia do capital nanceiro na economia mundial na sua modalidade especulativa, o que gera instabilidade at mesmo dentro dos Estados Unidos, com fuga de capitais e ameaa de sada generalizada; conforme as taxas de juros seguem baixas, o dlar se desvaloriza e a economia no apresenta sinais de uma retomada rme. Socialmente, de longe o pas mais desigual dentre todos os pases do centro do capitalismo, tendo estendido a jornada de trabalho at ocupar o lugar de pas com mais longa jornada em todo o mundo. Os Estados Unidos podem ser considerados um grande caldeiro social, que pode gerar extensas formas de exploso social e de perda de legitimidade do Estado norte-americano. Politicamente, o rumo adotado pelo governo Bush levou os Estados Unidos a armadilhas que, primeiro, o isolaram no plano internacional, apesar de ter unicado o pas internamente. E agora o fazem pagar o preo do tipo de problema gerado internamente, tanto no Afeganisto quanto no Iraque, levando de volta os problemas para dentro dos Estados Unidos, com a quantidade de mortos e a incapacidade do pas de reconstruir o Iraque sozinho, tendo que pedir ajuda a pases que ofendeu e menosprezou no momento da guerra. Tudo isso leva ao acmulo de uma grande quantidade de elementos de fragilidade na capacidade hegemnica dos Estados Unidos. Anuncia-se, com base nisso, o m da hegemonia norte-americana no mundo. Quem faz isso19

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se esquece que a hegemonia uma relao, ela se exerce sobre os outros e, portanto, sua fora ou sua fraqueza depende sempre da fora e da fraqueza dos outros sobre os quais se exerce a hegemonia. Nesse sentido, os Estados Unidos so, isoladamente, mais dbeis do que foram h algumas dcadas. No entanto, a comparao, do ponto de vista da capacidade hegemnica, no entre os Estados Unidos em dois momentos diferentes, mas entre os Estados Unidos e as outras foras mundiais. A primeira diferena , como disemos, a desapario do lder do campo oposto: a URSS. Alm disso, no seu prprio campo, os Estados Unidos viram o Japo completar mais de uma dcada de recesso e a Europa manter um nvel muito baixo de crescimento. Assim, sua posio muito mais favorvel do que a que tinha no perodo anterior queda do Muro de Berlim. O seu principal adversrio, aquele que funcionava como lder do bloco que se opunha ao bloco capitalista, desapareceu, junto com tudo o que era o campo socialista na Europa ocidental. S isso j representa uma mudana estrutural altamente favorvel aos Estados Unidos. Em segundo lugar, quando a estrutura de poder mundial era bipolar, o enfraquecimento de um dos blocos representava automaticamente o fortalecimento do outro (jogo de soma zero). Tropeos dos Estados Unidos representavam o fortalecimento da URSS, ou pelo menos dos no-alinhados, um campo em geral dominado pelo antiimperialismo norte-americano. Agora a estrutura de poder mundial unipolar, com disputa para ver quem polariza com os Estados Unidos o fundamentalismo islmico ou o Frum Social Mundial de Porto Alegre? Os outros pases sejam europeus ou asiticos, seja a aliana Frana-Alemanha ou a China no capitalizam o debilitamento norteamericano, salvo conjunturalmente, como no caso da guerra do Iraque para aquela aliana. Mas no se pode dizer que sejam plos de uma alternativa hegemnica ao predomnio dos Estados Unidos. Ao enfraquecimento da capacidade hegemnica norte-americana corresponde no o fortalecimento de outro plo, mas um aumento da desordem mundial. Com isso, os Estados Unidos tratam de propor ao mundo sua forma de vida como praticamente a nica contraposta ao tipo de vida do fundamentalismo islmico. Da o interesse de Washington em consolidar a polarizao entre Bush/Bin Laden ou Bush/Sadam Hussein. Alm disso, a economia norte-americana continua a ter um peso crescente na economia mundial. Continuar a exercer uma forte atrao de mo-de-obra que, ainda que mal remunerada para os padres locais, bastante melhor retribuda que nos seus pases de origem sejam eles o Mxico, a Amrica Central, o Caribe ou a Amrica do Sul, com toda a inuncia que termina exercendo sobre esses milhes de latino-americanos radicados nos Estados Unidos, que20

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vem ali no apenas uma melhor remunerao que nos seus pases de origem, como, alm disso, oportunidades maiores de mobilidade social. Politicamente, mesmo quando isolado como depois da segunda guerra contra o Iraque, os Estados Unidos continuam a ser a nica liderana mundial, a nica com capacidade constante de iniciativa, de organizar alianas, de ser cabea do bloco de potncias centrais do capitalismo. Assim, a maior fora da hegemonia norte-americana vem da debilidade das foras contra-hegemnicas. O New York Times escreveu, no momento das imensas mobilizaes em vrios pases contra a guerra, que o outro superpoder mundial seria a opinio pblica. O exagero verbal no impede que, polarizado pelo Frum Social Mundial de Porto Alegre, efetivamente exista uma acumulao de foras para a construo de uma hegemonia alternativa. Desde o grito dos zapatistas, em 1994, passando pelas manifestaes contra a Organizao Mundial de Comrcio (OMC), em Seattle, em 1999, at chegar aos Fruns Sociais Mundiais, foi se constituindo um corpo de propostas, aglutinando foras, as mais diversas e pluralistas, que comea a aparecer como o ncleo de idias e de foras contra-hegemnicas. Ser o desenvolvimento destas que servir para medir a fora e o tempo de sobrevivncia da hegemonia norte-americana. Os Fruns Sociais Mundiais conseguiram surgir como o espao de reunio e intercmbio dos movimentos que lutam contra o neoliberalismo. O lema Um outro mundo possvel indicava, desde o primeiro evento, que no se trataria apenas de resistncia, mas da armao da possibilidade e da necessidade de um outro mundo. Trs Fruns depois, o movimento conseguiu armar-se contra os Fruns Econmicos Mundiais de Davos, como o espao que discute os temas mais importantes da humanidade os temas sociais, que tm a representatividade e a participao de massas que Davos no dispem, que rene massa crtica e valor moral como um capital prprio. Diante desses elementos de fora diversidade e multiplicidade, fora intelectual e moral, representatividade, os Fruns ao mesmo tempo tm demonstrado especialmente a partir do III Frum, em janeiro de 2003 diculdades para avanar. Se o primeiro Frum se justicava pela sua simples existncia, o segundo teve que demonstrar que os atentados de setembro de 2001 no haviam polarizado o mundo entre Bush/Bin Laden, e que seguia existindo espao para o outro mundo possvel, para uma outra globalizao, solidria e alternativa ao neoliberalismo. Avanava-se em propostas que caracterizaram desde o incio o movimento: taxao do capital especulativo, abolio da dvida pblica dos pases perifricos, rejeio da patente dos seres vivos, entre outros. Rearmam-se temas centrais, como a democratizao dos meios de comunicao, a ar21

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mao da diversidade de gnero, de etnias, de sexo. Este perl cruzou os trs primeiros Fruns, estendendo-se, aprofundando-se em certos aspectos, porm avanou-se signicativamente pouco ou nada na formulao do que seria o outro mundo possvel. Tratar-se-ia de um mundo socioeconmico distinto do modelo hegemnico atual, onde tudo mercadoria. Se esses pontos comuns serviam para constatar que a diversidade e a multiplicidade dos movimentos participantes no impediam a existncia de elementos sucientemente importantes para construir um movimento amplo e forte, com dimenso mundial, apontado para um modelo alternativo, eram insucientes para desenhar este modelo. Esta primeira fase chamada por Bernard Cassen de acumulao primitiva (Cassen, 2003) demonstrou as potencialidades e, ao mesmo tempo, os obstculos que, se no forem enfrentados e superados, podem impedir que os Fruns sigam girando em torno de si mesmos, sem avanar, esvaziando-se ao longo do tempo ou mantendo um forte componente miditico, porm dessintonizados da relao de foras real, da luta concreta e das necessidades globais de alternativas internacionais ao modelo atual de poder no mundo. HEGEMONIA SEM DOMINAO? Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi, Andr Gunder Frank e Samir Amin estavam entre os pensadores que, nas ltimas dcadas, elaboraram formas de anlise do sistema capitalista mundial. James Petras tem acompanhado, ao longo desse mesmo perodo, o desenvolvimento das lutas populares, particularmente na Amrica Latina, com a correspondente anlise da correlao de foras para esse movimento. Toni Negri elaborou junto com Michael Hardt o que pretende ser uma atualizao das formas de hegemonia imperial e a atualidade do movimento popular, sob a forma de multido. Todos eles analisaram recentemente o que seria a forma atual de hegemonia imperial, com seus elementos de fora e de debilidade, como quadro de luta do movimento por uma globalizao alternativa. Vejamos resumidamente o pensamento de cada um deles. Immanuel Wallerstein constri sua anlise em torno de trs perodos, cada um com uma relao de foras especca: o perodo de 1945-1967, do apogeu ps-guerra da hegemonia dos Estados Unidos; o perodo de 19671973/2001, que ele considera como do ltimo brilho do vero; e o perodo de 2001-2025/2050, da anarquia que os Estados Unidos no podem controlar (Wallerstein, 2003a). Em cada perodo Wallerstein distingue trs eixos: as lutas de concorrncia interna dos maiores centros de acumulao da econo22

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mia-mundo capitalista; a conhecida luta entre o Norte e o Sul; e a luta para determinar o futuro do sistema-mundo entre dois grupos, a quem chamarei metaforicamente o grupo de Davos e o grupo de Porto Alegre. No primeiro perodo de 1945-1967/1973 os Estados Unidos eram inquestionavelmente a potncia hegemnica no sistema-mundo, combinando a superioridade econmica, militar, poltica e cultural sobre cada uma e todas as outras potncias no sistema-mundo. A superioridade econmica esmagadora se combinava com uma superioridade militar. Nova York tornou-se a central da cultura mundial e em todo lugar a cultura popular foi americanizada. Os Estados Unidos estavam nesse perodo em condies de impor seus desejos ao resto do Norte do mundo quase o tempo todo e quase de todas as maneiras: era hegemnico. Uma certa resistncia vinha do Sul. Os Estados Unidos tiveram sucessos signicativos na represso a esses movimentos, mas sofreram tambm derrotas importantes. Para Wallerstein, no conjunto haveria uma espcie de empate, com um impulso do sentimento anti-sistmico em todo o mundo e especialmente no Sul. No entanto, as demandas do Sul eram conciliadas pela fora do Norte, com a revolta anti-sistmica sendo aos poucos neutralizada. O perodo 1967-1973 seria o momento em que se esgotaram as trs dcadas de expanso e a economia-mundo entrou numa longa fase B do ciclo de Kondratie, com o declnio da Europa ocidental e do Japo. Um trplice acontecimento declnio da economia-mundo, revoluo mundial de 1968 (como ele chama os movimentos anti-sistmicos do perodo 1966-1970) e a derrota dos Estados Unidos no Vietn transformou a cena geopoltica mundial e marcou o comeo do lento declnio da hegemonia norte-americana. Os Estados Unidos j no poderiam, a partir desse momento, fazer o que quisessem, quase quando quisessem, comeando a perder a hegemonia. Quanto trade dominante, a Europa saiu-se muito melhor nos anos 1970, o Japo nos anos 1980 e os Estados Unidos nos 1990, mas todos se saram muito mal a partir do ano 2000. No resto do mundo, o prometido desenvolvimentismo revelou-se uma miragem. A ordem norte-americana teria comeado a desintegrar-se do ponto de vista poltico com a Europa ocidental e o Japo querendo deixar de ser satlites diante da desapario do perigo sovitico. Enquanto a velha esquerda se enfraquecia diante do impacto dos movimentos dos anos 1960, os novos movimentos sociais no conseguiram assumir o papel protagnico alternativo, deixando um vazio que facilitaria a ascenso de uma nova hegemonia. Os regimes neoliberais se colocaram trs objetivos principais, segundo Wallerstein: rebaixar o nvel dos salrios em todo o mun23

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do; restaurar a exteriorizao dos custos de produo; e reduzir os nveis tributrios mundiais s custas das polticas de bem-estar. Essa contra-ofensiva teria chegado a seus limites polticos no nal dos anos 1990. A partir de Seattle, desembocando nos Fruns Sociais Mundiais, foi se constituindo uma coalizo mundial de muitos movimentos, como plo alternativo a Davos. Foi nesse marco que Bush ascendeu ao governo dos Estados Unidos, na abertura de um perodo que Wallerstein caracteriza como de anarquia que os Estados Unidos no podem controlar e que se estenderia, segundo sua previso, at 2025/2050. Este perodo estaria caracterizado pela poltica externa unilateral e agressiva dos Estados Unidos; por um distanciamento que ele considera inevitvel da Europa em relao aos Estados Unidos; pela unio cada vez mais estreita entre o Japo, a China e a Coria do Sul; pela extenso da proliferao de armas nucleares no Sul; pela previso de perda moral denitiva dos Estados Unidos sobre o mundo; pela expanso e fortalecimento da alternativa de Porto Alegre; por Davos car cada vez mais dividido. Os Estados Unidos lamentaro o furaco que desataram com o Iraque. Em um artigo mais recente, Wallerstein (2003b) caracteriza que a agressividade da poltica externa norte-americana, ao invs de reetir a fortaleza dos Estados Unidos, revelaria, ao contrrio, sua debilidade. Ele faz uma anlise da evoluo da hegemonia dos Estados Unidos no mundo, considerando, ao contrrio do perodo atual, que, no perodo que vai do segundo ps-guerra at os anos 70 do sculo passado, os Estados Unidos eram realmente hegemnicos no mundo. Os Estados Unidos estavam realmente sentados na cpula do mundo. Ele acredita que os acordos de Yalta teriam sido de tal maneira um arranjo favorvel aos Estados Unidos, que nada aconteceu realmente durante quarenta anos(!). Sua viso dos movimentos anti-sistmicos que englobam na mesma categoria a URSS e os Estados Unidos como superpotncias naquele perodo faz com que ele subestime a forma como o equilbrio entre elas fator que condiciona a possibilidade que se dessem muitos acontecimentos fundamentais, entre eles alguns citados por ele: a revoluo chinesa, a revoluo cubana, a revoluo argelina, a revoluo vietnamita, o surgimento dos movimentos de pases da periferia do capitalismo. Seria uma fase de transio anrquica para um novo sistema mundial; transio na qual ningum controla a situao em qualquer nvel signicativo, menos ainda um poder hegemnico declinante como o dos Estados Unidos. O perodo posterior est aberto, na dependncia especialmente da ao das foras anti-sistmicas. A anlise de Gunder Frank revela seu foco central j no ttulo do seu texto Tigre de papel, drago de fogo (Gunder Frank, 2003). Para ele, com o m24

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da URSS, duas regies do mundo entraram em disputa pela hegemonia mundial: os Estados Unidos e a sia Oriental, especialmente a China. Alm disso, teria havido um processo contnuo de deslocamento da hegemonia mundial na direo do Ocidente, at chegar aos Estados Unidos, retornando agora na direo da sia Oriental. Os dois pilares da hegemonia norte-americana seriam o dlar e o Pentgono, isto , a moeda e a superioridade militar. Esses dois elementos, por sua vez, seriam dependentes entre si, com a fora e a mobilidade do Pentgono dependendo da fora do dlar, que por sua vez sustenta aquele poderio. Os Estados Unidos gozam do privilgio de poder cunhar a moeda mundial com a qual os norte-americanos podem comprar toda a produo do resto do mundo e depois obter todos os dlares de volta para serem investidos nos papis de Wall Street e do Tesouro norte-americano. Os Estados Unidos cobrem sua balana comercial e seus dcits oramentrios com o dinheiro e os produtos que chegam de fora. Do dcit comercial dos Estados Unidos, um quarto coberto pelos japoneses, outro quarto pelos europeus, outro tanto pelos chineses e o restante coberto por outros uxos de capitais, entre eles o servio da dvida dos pases latino-americanos e africanos. Caso europeus e japoneses levem seus capitais de volta para calar suas economias, a economia dos Estados Unidos caria a descoberto. O dlar e o Pentgono seriam simultaneamente elementos de fora e de debilidade dos Estados Unidos, seus calcanhares de Aquiles. Assim, ele compara a solidez desses fatores das Torres Gmeas, que pode ruir em pedaos numa manh. O dlar literalmente um tigre de papel, na medida em que cunhado no papel, cujo valor est baseado somente na sua aceitao e na conana que se tem nele em todo o mundo. Essa conana, segundo Gunder Frank, pode ser retirada quase de um dia para o outro, fazendo com que perca a metade do seu valor ou mais da metade do seu valor. E qualquer declnio no dlar implicaria em corte no consumo e no investimento norte-americano, alm de comprometer tambm a capacidade dos Estados Unidos de manter e aumentar seu aparelho militar. Ao mesmo tempo, qualquer desastre militar enfraqueceria a conana no dlar. Gunder Frank reconhece que os Estados Unidos ainda possuem a maior economia do mundo e possuem tambm um poder militar sem rival. A poltica de combinao desses dois elementos frgeis por parte do governo Bush chega a ser chamada por ele de Terceira Guerra Mundial, que teria assim limites estruturais para se manter, afora as diculdades polticas e militares que enfrenta. Diante das debilidades da hegemonia norte-americana, Gunder Frank encara o tema da contra-hegemonia e analisa as perspectivas da China de25

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sempenhar esse papel. Seus argumentos podem ser resumidos da seguinte forma: a) J que a sia e a China eram economicamente poderosas no mundo at uma poca relativamente recente [...] bem possvel que ela possa voltar a s-lo. A dominao asitica teria sido somente interrompida at ento por um perodo relativamente curto, de no mximo um sculo e meio, segundo Gunder Frank. O sempre suposto declnio da China, de meio sculo ou mais, puramente mitolgico. b) O sucesso econmico da China e de outros pases asiticos no passado no estava baseado nos modelos ocidentais; e o sucesso econmico bastante recente da sia no estava baseado no modelo ocidental. No seria necessrio, assim, aos pases orientais, copiar o modelo ocidental, podendo seguir adiante com modelos prprios. c) A atual crise de superproduo e de excessiva capacidade instalada seria a comprovao da fora do setor produtivo, que, apesar da crise ter se espalhado do setor nanceiro para o produtivo, demonstraria que este pode se recuperar. d) Esta seria a primeira vez em um sculo que uma recesso mundial comearia no no Ocidente para depois se mover na direo do Oriente, mas, ao contrrio, comearia no Oriente e depois se moveria para o resto do mundo a partir da, o que evidenciaria a fora econmica crescente da sia Oriental, para a qual o centro de gravidade da economia mundial est agora retornando; para onde estava antes da ascenso do Ocidente. e) A fora econmico-poltica subjacente tambm coloca a sia Oriental, e especialmente a China, o Japo e a Coria, numa posio muito mais favorvel do que o resto do Terceiro Mundo, e mesmo da Rssia e da Europa Oriental, para resistir chantagem ocidental, tal como ela agora exercida pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos atravs do FMI, do Banco Mundial, da OMC, de Wall Street e de outros instrumentos. f ) Uma luta econmico-poltica relacionada com isso a concorrncia entre os Estados Unidos e a China para substituir o Japo, a Coria e o Sudeste no mercado, tirando vantagem de sua bancarrota [...] a China e talvez tambm alguns pases do Sudeste Asitico aparecem como a melhor aposta no longo prazo (Gunder Frank, 2003: 40). Para Samir Amin, os Estados Unidos no dispem de vantagens econmicas decisivas no sistema hegemnico atual, fundado num imperialismo coletivo (da trade: Estados Unidos, Europa ocidental, Japo). O sistema26

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produtivo norte-americano est longe de ser o mais eciente do mundo. Num sistema de concorrncia aberta, ele no conseguiria superar seus concorrentes em praticamente nenhum setor, gerando o seu enorme dcit comercial. A utilizao de meios extra-econmicos que permitiria aos Estados Unidos levar vantagens econmicas no plano mundial. Os Estados Unidos s gozariam de vantagem comparativa na indstria de armamentos, porque ele escapa s regras de mercado, funcionando pelas demandas estatais. Mas ao aparecer para os outros setores da trade como defensor de seus interesses comuns (Amin, 2003). Giovanni Arrighi desenvolveu a mais articulada interpretao da natureza da crise da hegemonia norte-americana, no marco do ciclo de hegemonias sucessivas no mundo moderno e contemporneo, acompanhada de anlises sobre o estado de acumulao de foras dos movimentos contra-hegemnicos ou anti-sistmicos. Para dar uma idia de quanto o mundo mudou, em O longo sculo XX ele constata: Na dcada de 1970, muitos falaram em crise. Na de 1980, a maioria falou em reestruturao e reorganizao. Na de 1990, j no temos certeza de que a crise dos anos 70 foi realmente solucionada, e comeou a se difundir a viso de que a histria do capitalismo talvez esteja num momento decisivo (Arrighi, 1994: 1). Ao nal do ciclo sistmico de acumulao norte-americano, os Estados Unidos conservam um quase-monoplio do uso legtimo da violncia em escala mundial, mas seu endividamento nanceiro de tal ordem que o pas s poder continuar a faz-lo com o consentimento das organizaes que controlam a liquidez mundial numa viso muito similar de Gunder Frank. O Japo e outros pases asiticos conquistaram um quase-monoplio da liquidez mundial. Pela primeira vez desde as origens mais remotas da economia mundial capitalista, o poder do dinheiro parece estar escapando ou haver escapado das mos do Ocidente (Gunder Frank, 2003: 368). Essa situao poderia evoluir para a manuteno da hegemonia norte-americana, com a formao de um imprio mundial realmente global, mediante a violncia. Ou ento pases do leste asitico viriam a ocupar uma posio de mando nos processos de acumulao. Faltaria a esse grupo de pases a capacidade de gesto do Estado e da guerra que, historicamente, tem-se associado reproduo ampliada de uma camada capitalista sobre a camada de mercado da economia mundial (Gunder Frank, 2003: 370-371). A terceira possibilidade seria que se generalize uma situao de violncia, reinstaurando-se uma situao de caos sistmico, do qual partiu o capitalismo h seis sculos. Num livro publicado quase uma dcada depois, Arrighi volta ao tema para rearmar o vigor do crescimento das economias dessa regio: Tomando a27

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regio e o perodo como um todo, a expanso do sudeste asitico desde 1960 aparece como uma virada global de poderio econmico com poucos precedentes na histria mundial. Nenhuma virada dessas propores pode ocorrer sem pausas e retrocessos temporrios, como aquela vivida pela recesso com centro nos Estados Unidos na Grande Depresso de 1930 (Arrighi, 2003). Na sua concluso, Arrighi sublinha que o desenvolvimento da regio se distribuiu de maneira profundamente desigual favorecendo ao quinto mais rico, incrementando desigualdade e desemprego em larga escala. O destino futuro do conjunto da regio dependeria da sua capacidade de encontrar, no marco do ciclo expansivo, formas e meios de superao dessa extrema desigualdade. Se essas formas e meios so encontrados, o sudeste asitico se tornar uma vez mais o centro da economia global. Assim, Arrighi rearma sua tese de uma transio para uma hegemonia com sede no sudeste asitico, repousando a anlise na evoluo econmica, tanto dos Estados Unidos quanto dessa regio. Como praticamente todas as anlises, ela se centra no plano econmico, com a diculdade de reduzir a hegemonia hegemonia econmica. E mesmo nesse plano, no costuma dar conta dos elementos de fora da economia norte-americana. Ao fazer um balano do que ele e outros autores passaram a denominar de movimentos anti-sistmicos, duas dcadas depois, com as grandes transformaes operadas no mundo, Arrighi resume as teses levantadas originalmente para confrontar com o estado atual desses movimentos ou daquilo em que eles se transformaram, os quais se constituam em apostas de alternativa hegemnica aos dois blocos considerados em crise naquele momento. Em primeiro lugar, se considerava que a oposio opresso tem sido uma constante do sistema-mundo moderno, com particular desenvolvimento a partir do sculo XX. Em segundo lugar, eles apresentavam uma dupla congurao: movimentos anticapitalistas e de libertao nacional, ambos divididos em termos das vias de obteno dos seus objetivos vias legais ou insurrecionais. Em terceiro, apesar do sucesso relativo de partidos socialdemocratas no centro do capitalismo, de partidos comunistas e movimentos nacionalistas em pases perifricos ou semiperifricos, eles conseguiram menos resultados na obteno de seus resultados nais, obtendo concesses mas fracassando em diminuir as desigualdades, transformando-se freqentemente em novos instrumentos de opresso de classe. Em quarto lugar, os movimentos que protagonizaram o ciclo de 1968 introduziram modicaes nas relaes de poder que no teriam sido revertidas: capacidade reduzida do primeiro e do segundo mundos para policiar o terceiro; dos grupos de status dominantes nos pases centrais para excluir ou dominar os grupos subordinados (mulheres, jovens, minorias); dos estratos28

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administrativos para forar a disciplina dos trabalhadores nos locais de trabalho; dos Estados para controlar suas sociedades civis. Como quinta caracterstica, no resultaram numa melhoria no bem-estar material da maioria de cada um deles. Nessa lgica, 1989 considerado uma continuao e no uma contratendncia do que havia sucedido em 1968. O desao que passaria a se colocar para os movimentos anti-sistmicos seria o de buscar uma nova e renovada ideologia. Sua ausncia se notaria pelo silncio desses movimentos a respeito das trs reivindicaes espontneas das pessoas e dos grupos oprimidos: o direito total diversidade; o direito de confronto de poder diferente como fazendo parte de um projeto social; e o direito urgente de igualitarismo. Dez anos depois, Arrighi se volta para essas consideraes e anota principalmente as seguintes observaes: a subestimao do que foi a contra-revoluo neoliberal, nos seus aspectos nanceiro, militar e poltico. Como uma de suas conseqncias, deu-se um processo de corrupo dos movimentos antisistmicos, com a aceitao acrtica dos credos neoliberais. Houve resistncia de uma parte desses movimentos, de que so expresso Seattle e os FSMs. Outra conseqncia da contra-revoluo neoliberal, no tomada devidamente em conta, sobre o sistema capitalista mundial. Decorreria disso uma fronteira pouco clara entre movimentos sistmicos e anti-sistmicos, com algumas daquelas jogando inconscientemente um papel de liderana em criar as condies de ruptura. Outra falha seria a subestimao da importncia histrico-mundial da ascenso da sia Oriental como o novo epicentro da economia global. Arrighi coloca sua grande questo: se e como a transferncia do epicentro da economia global da Amrica do Norte para a sia Oriental ser afetada econmica, poltica e culturalmente pelo caos sistmico que est comeando. Mais especicamente, ser o renascimento econmico da sia Oriental subjugado pelo caos sistmico, ou ser ele transformado em um renascimento poltico e cultural capaz de conduzir a permanente revolta contra o Ocidente, no sentido da formao de uma ordem mundial mais igualitria e democrtica?. Mas a maior novidade da anlise de Arrighi vem de sua abordagem sobre as hegemonias mundiais como revolues passivas, no sentido gramsciano do termo. Modalidades de represso-acomodao, atravs das quais os poderes hegemnicos aumentaram a incluso social, seria um processo similar ao que Gramsci caracterizou como de restaurao-revoluo nas revolues passivas. Cada hegemonia sucessiva do capitalismo mundial tem sido caracterizada por uma particular revoluo passiva, no curso da qual o Estado hegemnico exercia uma funo piemontesa vis--vis do sistema capitalista mundial como um todo, diz ele. Do seu ponto de vista, a questo central do sculo XXI a de saber se29

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a renovao/transformao do sistema social mundial no sentido de uma maior igualdade e democracia ainda exige o exerccio de uma funo piemontesa e, se isto for verdade, qual o Estado ou a coalizo de Estados que ter efetivamente as condies e as disposies necessrias para exerc-la (Arrighi, 2003: 119). Alguns seguem reivindicando a formao de um partido mundial para fazer esse trnsito. Outros como Negri e Hardt vem uma rebelio e a mobilizao da multido j promovendo essa transio. HEGEMONIA E EMANCIPAO Mesmo com um balano excessivamente resumido desses autores e a falta ainda de outros, como Negri, Petras, possvel anotar observaes a respeito do tema da hegemonia e da contra-hegemonia. a) As anlises tendem a se concentrar no plano econmico, como se a hegemonia se limitasse a isso ou se tivesse nesse plano seu fator determinante. certo que nas anlises originais do imperialismo, por Lenin, o imperialismo tem bases determinantes no plano econmico, mas a hegemonia mais do que isso, embora tenha suas bases materiais no plano econmico. b) Ainda assim, as anlises tendem a ser unilaterais no sentido de destacar os reais elementos de debilidade da economia norte-americana, sem incluir os seus elementos de fora. O dcit comercial da economia dos Estados Unidos, por exemplo, sempre destacado, mas a capacidade de consumo do mercado mais rico do mundo, ambicionado por todas as outras economias, no costuma ter o mesmo destaque, em condies que isso estabelece um extenso processo de dependncia, seja da Europa ocidental, do Japo, da China, de todos os pases do sudeste asitico, da ndia, da Amrica Latina com o mercado norte-americano, a ponto que quando esse mercado entra em recesso, todas as outras economias sofrem e torcem para sua recuperao. A transferncia de empresas norte-americanas para produzir em outras regies do mundo faz da economia dos Estados Unidos uma economia cada vez mais voltada para o setor de servios, ampliando a capacidade de inuncia econmica dos Estados Unidos pelo mundo afora no Mxico, na ndia, na China, ao mesmo tempo em que eleva sua capacidade de extrao de mais-valia, pela explorao de mo-de-obra barata na periferia do sistema. c) Mas a hegemonia, se tem bases materiais econmicas, um fenmeno muito mais extenso do que o predomnio econmico. Uma das caractersticas fundamentais do sculo XX e que diferencia a hegemonia britnica30

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da norte-americana a ampliao dos nveis da hegemonia, fortalecendo seus elementos de consenso em relao aos de dominao. O American way of life foi a grande mercadoria vendida por Hollywood, projetando para o mundo os valores norte-americanos morais, estticos, entre outros. Vendeu um imenso mundo de mercadorias mediante seu enorme aparato de propaganda miditica, atrs do qual se inserem as grandes corporaes e suas marcas. Desde o m da URSS, e conforme a norte-americanizao foi penetrando na Europa ocidental, no Japo e mais recentemente na China, esse plano passou a ser o de mais eccia na hegemonia dos Estados Unidos no mundo, sem encontrar outras formas de vida salvo as do fundamentalismo islmico, adversrio frgil neste plano para concorrer com as suas. d) O poderio militar norte-americano reitera sua eccia, mas demonstra suas debilidades quando falta o apoio poltico. Porm, nenhum outro plo poltico capitaliza essas debilidades, que se traduzem em desgaste da hegemonia norte-americana, porm sem fortalecer nenhum outro plo, tanto assim que, passado o momento mais quente do enfrentamento militar, os governos europeus eles mesmos enfraquecidos internamente, como os casos da Frana e da Alemanha se reaproximam dos Estados Unidos e vem seus interesses coordenados na resistncia ao grupo dos vinte, com na reunio de Cancn. e) Assim, o surgimento de um plo contra-hegemnico alternativo ao norte-americano no est por enquanto no horizonte histrico. A Europa ocidental revela governos aderidos liderana dos Estados Unidos e outros, cujos graus de diferena e de fora prpria esto longe de congurar uma direo prpria. A China v cada vez mais dependente dos Estados Unidos de seus mercados, de seus investimentos e da sua tecnologia a possibilidade de seguir expandindo sua economia, como elemento de fora de sua projeo como grande potncia no novo sculo. O Japo e os outros pases do sudeste asitico tambm dependem do mercado norte-americano para seguir alimentando suas exportaes, assim como das bolsas norte-americanas como lugar de investimento nanceiro. f ) A caracterizao da opinio pblica mundial como a outra superpotncia, por parte do New York Times, durante as extraordinrias manifestaes pacistas prvias segunda guerra do Iraque, embora possam deixar-nos lisonjeados, esto longe de corresponder a uma realidade efetiva de superpotncia, por tudo o que isto signica, o que cou claro pelo fato31

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do movimento no conseguir impedir a guerra, embora tenha contribudo decisivamente para o isolamento poltico dos Estados Unidos, com todas as conseqncias que vemos atualmente. O Frum Social Mundial tem se constitudo no espao mais importante de convergncia e de intercmbio na perspectiva de elaborao de uma estratgia e de um modelo de superao do neoliberalismo e da hegemonia norte-americana no mundo. No entanto, esse espao tem revelado suas debilidades, que, se forem superadas, podem transform-lo efetivamente no lugar de convergncia de foras para a construo dessa alternativa. Para desempenhar esse papel, ele ter que superar limitaes j apontadas e que se tornam mais evidentes pelo desempenho do grupo dos vinte em Cancn, que revelam que a falta de aliana entre o movimento de mobilizao popular e governos que atuam contra a hegemonia unipolar dos Estados Unidos e os organismos multilaterais aliados dessa poltica, enfraquece o movimento e debilita o enorme potencial que uma aliana desse tipo possui. g) Duas situaes recentes so muito signicativas a esse respeito: as mobilizaes pacistas de 2004 na Europa e a sublevao popular na Bolvia, em outubro deste mesmo ano. As primeiras foram, com razo, qualicadas como as maiores mobilizaes de massa jamais realizadas na Europa. Elas reuniram basicamente uma nova gerao de jovens, que chegaram poltica na luta contra o neoliberalismo e contra a hegemonia imperial norte-americana, posteriormente quela marcada pela hegemonia liberal, pela queda do Muro de Berlim e pelo m da URSS. Impressionou a massividade das manifestaes, assim como sua continuidade, especialmente na Espanha, na Itlia e na Inglaterra, justamente os pases cujos governos mais diretamente apoiaram o governo dos Estados Unidos na guerra. Mas elas se reproduziram praticamente em todos os pases, gerando um consenso segundo o qual a opinio pblica europia havia se pronunciado contra a guerra e contra os mtodos belicistas do governo Bush de tentar resolver os conitos. Esse extraordinrio movimento no conseguiu deter a guerra, seria pedirlhe muito. Porm, o problema que essa fora no se traduz em fora poltica, organizativa. Temos ento uma opinio pblica progressista e governos conservadores. Os que se opuseram durante a guerra ao governo norte-americano foram o direitista Jacques Chirac e o centrista Schreder, que rapidamente se reaproximaram de Washington. Como os partidos tradicionais no tm dilogo com essas novas geraes, esses jovens no se interessam pela poltica tradicional, mas sua fora social no se traduz em fora poltica, no muda o poder poltico tal qual ele existe, e tampouco32

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cria outras formas de poder. Enquanto no se resolver, de uma forma nova, as relaes entre essa fora social e a poltica, essa acumulao de foras se perder, girar em falso. O balano dos movimentos que protagonizaram a sublevao boliviana foi a de que lhes faltou, uma vez mais, direo poltica, um partido, uma liderana que permitisse que o movimento projetasse sua prpria soluo de governo e passasse a construir o seu poder. Um balano parecido com os que haviam sido feitos pelo movimento indgena e campons equatoriano, que haviam protagonizado mobilizaes similares e haviam derrubado a dois presidentes em poucos anos, sem conseguir substitu-los por governos que os representassem. Quando buscaram se representar num militar que havia estado na liderana de uma dessas mobilizaes, sentiram-se rapidamente trados e abandonaram o governo, passando oposio, e revelando como lhes segue faltando resolver a questo da hegemonia poltica, que, uma vez alienada, produz frustrao e revs. O tom do balano boliviano o mesmo, apesar da maior tradio e diversicao do movimento popular com a Central Obrera Boliviana (COB), a Federao Camponesa, o Movimento Indgena, alm da presena diferenciadora de um partido poltico o Movimiento al Socialismo (MAS). O que no impediu que o movimento sentisse a mesma ausncia de direo poltica, seja por no se representar no MAS, seja por considerar sua forma de representao poltica ainda insuciente. h) O certo que se pode dizer que, no seu conjunto, o movimento de luta contra o neoliberalismo esgotou sua primeira etapa de existncia, aquela que Bernard Cassen chama de acumulao primitiva. A repetio pelo III Frum Social Mundial, no essencial, do anterior. As diculdades de governos que pretendem sair do modelo neoliberal dentre os quais o brasileiro , que tropeam na inexistncia de uma estratgia de sada desse modelo e do que seria uma sociedade e um Estado ps-neoliberais. As diculdades das mobilizaes europias em se transformar em fora poltica so outros tantos elementos que requerem a passagem do movimento sua fase de reproduo ampliada, ou seja, de traduo de sua fora social, ideolgica, crtica em fora poltica e econmica, que efetivamente permita comear a construir o outro mundo possvel. i) Um programa de resgate do Frum Social Mundial como espao de intercmbio, mas que ao mesmo tempo impulsione transformaes na direo do outro mundo possvel, requer, antes de tudo, uma denio mais ampla dos participantes do movimento, abandonando a viso restritiva e liberal de sociedade civil, para denir o campo do movimento como33

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aquele que abarca a todo o espectro dos que lutam contra o neoliberalismo e a hegemonia militar unilateral no mundo. Em segundo lugar, formalizar minimamente o Conselho Internacional e democratizar assim as formas de deciso sobre os temas ligados ao FSM. Em terceiro lugar, incorporar a luta por um mundo de paz, de negociao multilateral dos conitos, de democratizao das instncias de poder a comear pelas Naes Unidas, em aliana com governos e outras foras que avancem nessa direo. Em quarto, trabalhar de forma concentrada e prioritria na gestao de rgos cada vez mais amplos e abrangentes de mdia alternativa, para a difuso, mas tambm para o debate mais amplo possvel dos caminhos da construo de um outro mundo. Em quinto, a realizao de campanhas concretas, como as propostas de boicote a corporaes norte-americanas e s bases militares norteamericanas. Por ltimo, a discusso nos prprios Fruns, com consulta ampla e democrtica a todos os participantes, sobre os grandes temas e os destinos futuros do Frum e do conjunto do movimento. BIBLIOGRAFIAArrighi, Giovanni 1994 O longo sculo XX (Rio de Janeiro: Contraponto). Arrighi, Giovanni 2003 The Ressurgence of East Asia em Arrighi, Giovanni; Kamashita, Takeshi e Selden, Kark The Ressurgence of East Asia (Nova York: Routledge). Cassen, Bernard 2003 Tout a commenc Porto Alegre (Paris: Mille et Une Nuits). Gunder Frank, Andr 2003 Tigre de papel, drago de fogo em Dos Santos, Theotonio Os impasses da globalizao (So Paulo: Loyola PUC/REGGEN). Wallerstein, Immanuel 2003a Geopoltica, poltica de classe e a atual desordem mundial em Dos Santos, Theotonio Os impasses da globalizao (So Paulo: Loyola/PUC/REGGEN). Wallerstein, Immanuel 2003b La debilidad de los Estados Unidos y la lucha por la hegemona, mimeo.

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ANA ESTHER CECEA*

ESTRATGIAS DE CONSTRUODE UMA HEGEMONIA SEM LIMITES

HEGEMONIA E CONCEPO DO MUNDO A PARTIR do 11 de setembro de 2001, torna-se evidente uma mudana na poltica internacional que dicilmente poderia ser concebida como uma resposta ao ataque s torres gmeas de Nova York. A mudana na orientao, nos mecanismos, tnica e estilo no jogo do poder que se desdobra a partir de ento muito mais profunda do que o previsvel para uma simples reao imediata diante de um atentado, mesmo se este alcana as dimenses daquele ocorrido no World Trade Center mais importante do mundo. As incurses militares na regio da sia Central no puderam se legitimar mediante as explicaes triviais que aparentemente as justicam perseguir Bin Laden ou buscar as armas de destruio massiva que Sadam Hussein devia ter em seu poder, seja por se revelarem absurdas e indemonstrveis, seja porque deixam transparecer facilmente razes de posicionamento estratgico relacionadas com o projeto de dominao encabeado pelos Estados Unidos. A maioria das interpretaes e anlises sobre a guinada adotada pela poltica estadunidense e sobre suas repercusses no conjunto mundial coloca no centro o debate sobre a hegemonia. Em alguns casos, argumenta-se que*Pesquisadora do Instituto de Pesquisas Econmicas da Universidade Nacional Autnoma do Mxico, diretora da revista Chiapas e coordenadora do Grupo de Trabalho Hegemonias e emancipaes do Conselho Latino-americano de Cincias Sociais.

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as invases do Afeganisto e do Iraque, assim como o carter beligerante da administrao Bush, constituem uma ao desesperada dos Estados Unidos frente perda de sua posio hegemnica. Em outros casos, a invaso, a maneira como esta se efetuou, e sua visvel articulao com movimentos de redesenho do controle territorial em todo o planeta, so indicativas da renovada concentrao de poder alcanada pelos Estados Unidos depois de um perodo de ajuste, no qual a cada do Muro de Berlim e a ampliao da economia de mercado, tal como ocorreu, potenciaram sua capacidade hegemnica. Em ambas as interpretaes h um ampla gama de matizes, que inclusive permite aproxim-las signicativamente, apesar de sua aparncia antagnica. No entanto, para alm da manuteno das divergncias, o aproveitamento do debate com o objetivo de construir uma explicao de conjunto, que responda complexidade do fenmeno que o que nalmente importa, depende de algumas indispensveis precises iniciais. Por um lado, imprescindvel adentrar o campo da signicao conceitual de hegemonia; por outro, necessrio explicitar a diferena entre hegemonia estadunidense e hegemonia capitalista. SIGNIFICADO CONCEITUAL DE HEGEMONIA Hegemonia uma categoria que foi se formando a partir de sentidos e contedos diversos1. De seu uso militar ou guerreiro at sua ressignicao gramsciana, vai ganhando substncia, ao mesmo tempo que muda de campo relacional. A estratgia de dominao que subjaz na primeira concepo apresenta-se, na segunda, como estratgia de emancipao e, por conseguinte, ocorre nessa transio uma mudana de contedos que conduz a construo da hegemonia criao de imaginrios e sentidos coletivos, muito mais do que aplicao da fora sob qualquer de suas formas, ainda que fora e persuaso constituam, em sua perspectiva, uma unidade indissolvel, ainda que contraditria. A partir de Gramsci, e no debate deste com Lenin, a estratgia de emancipao aparece pelo menos em duas vertentes que colocam a tomada do poder em perspectivas francamente opostas. Se para Lenin o primeiro passo consistia em tomar o poder, para Gramsci indispensvel gerar amplos consensos em torno de uma concepo do mundo alternativa viso dominante, emanada1 No pretendo que minha leitura de Gramsci coincida com as de outros estudiosos. Por isso no retomo as diversas interpretaes de seu pensamento, mas remeto minha prpria apreciao, tanto dos seus escritos como do contexto e das preocupaes que o motivaram.

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do processo de trabalho capitalista (Gramsci, 2000)2. A construo imaginria de um mundo diferente, produto da conscincia do antagonismo social em que se sustenta o capitalismo, para Gramsci o lugar onde se torna possvel a revoluo. Gerar uma nova viso coletiva do mundo um passo prvio indispensvel para que o acesso ao poder nem seja efmero, nem seja uma nova imposio sobre a sociedade. A proposta gramsciana, nesse sentido, leva a se conceber a hegemonia como a capacidade para generalizar uma viso do mundo, capacidade que se nutre tanto da pertinncia argumentativa do discurso e de sua similitude com as expresses visveis da realidade (ou sua capacidade para visualizar as expresses ocultas), como das manifestaes de fora que provm das condies objetivas nas quais tem lugar as relaes sociais, apaream estas sob formas explcitas ou somente sob formas disciplinares ou indicativas. Isto , no h nenhum romantismo na construo das vises do mundo, nem tampouco nas estratgias de emancipao; como evidentemente no o h nas de dominao. O que Gramsci est realmente pondo em questo no o uso da fora, e sim o lugar difuso e o contedo multidimensional do poder. A hegemonia, nestes termos, no pode ser circunscrita ao poder econmico ou militar, ainda que estes sejam parte dos argumentos de construo dos discursos de verdade. O poderio militar e a organizao econmica, para serem ecazes, devem convencer de sua infalibilidade e de sua imanncia, mas tambm devem estar integrados a uma viso capaz de oferecer uma explicao coerente em todos os campos, inclusive no da vida cotidiana. Na capacidade para universalizar a prpria concepo do mundo, que obscurea a perspectiva de um mundo pensado sobre outras bases (apresentando-o, no melhor dos casos, como desejvel, mas impossvel), encontra-se o suporte da dominao. A dominao no se impe apenas atravs dos sistemas produtivos, dos movimentos da moeda ou das invases militares. A dominao se reproduz no cotidiano e na criao de sentidos comuns que percebem e reproduzem as relaes sociais como relaes de poder. E as relaes de poder s podem ser reproduzidas se, inclusive apesar das resistncias, no surge um discurso da verdade capaz de incorporar a diversidade de verdades e de apresentar de maneira integrada e coerente uma explicao e um sentido de mundo construdo sobre2 A concepo de mundo que a sociedade capitalista sustenta na transio para o americanismo se constri, segundo Gramsci, atravs da racionalizao da produo e do trabalho, combinando habilmente a fora (destruio do sindicalismo trabalhista de base territorial) com a persuaso (altos salrios, benefcios sociais diversos, propaganda ideolgica e poltica habilssima) e conseguindo basear toda a vida do pas sobre a produo. A hegemonia nasce da fbrica e no tem necessidade de ser exercida mais do que por uma quantidade mnima de intermedirios prossionais da poltica e da ideologia (Gramsci, 2000: 66).

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razes diferentes que, para Gramsci, emanam da desfetichizao do processo de trabalho e da emergncia de uma conscincia operria capaz de subvert-lo, mas que, em minha perspectiva, emanam simultaneamente da comunidade, a partir da desconstruo dos espaos e dos mecanismos de dominao que atingem todos os seus integrantes. Neste sentido, a construo da hegemonia aparece como um complexo articulado no qual as possibilidades de dominao e a concepo do mundo se expressam e se transformam ao ritmo das relaes e das resistncias sociais. prpria de uma sociedade antagnica que vive em e do conito. Sem dvida, como arma Gramsci, o processo de trabalho constitui um eixo fundamental da sociabilidade na sociedade capitalista, e , por isso, lugar de gerao de tal concepo. No somente o lugar de produo de mercadorias, mas tambm de sentidos e de relaes de poder, e , conseqentemente, um espao iniludvel de desconstruo simblica, de desfetichizao. No entanto, esta desconstruo no pode ser circunscrita ao prprio mbito do trabalho. Em parte porque, embora seja um dos mbitos privilegiados do exerccio do poder, no o nico, nem, segundo certas perspectivas relacionadas justamente com a internalizao de vises fetichizadas das relaes sociais, o mais importante. E em parte porque as relaes de dominao se estabelecem sobre a totalidade social, cuja complexidade no se resolve nas relaes de trabalho. Igualmente criadora de sentidos a comunidade, espao de reproduo fsica e simblica da sociedade. Ao longo da histria do capitalismo, a comunidade manteve-se como o espao de refgio dos costumes e tradies, de resistncia disciplina social capitalista e de preservao de uma cultura da sobrevivncia, na qual, embora em muitos casos se reproduzam cruamente as relaes de poder que caracterizam o sistema de dominao em seu conjunto, em muitos outros se constroem alternativas dominao capitalista, seja ao se defender o costume (Thompson, 1995), seja ao se construir uma viso que transcende seus horizontes3. Na atual concepo dominante, o mundo gira em torno da concorrncia econmica, completamente marcada pelos grandes monoplios transnacionais e pelas capacidades militares. As imagens fetichizadas, emanadas dos dois espaos de sociabilidade onde o trabalhador ao mesmo tempo fora de trabalho e portador da mesma (des-sujeitizado), aparecem como discursos de verdade, irrefutveis na medida em que so reconvertidos em condio de explicao cientca da realidade, concedendo pertinncia ao funcionamento geral do sistema em torno do processo de trabalho e do eixo tecnolgico, como se ver mais adiante.3 Encontram-se neste caso as formulaes zapatistas cuja proposta se dedicar construo de um mundo diferente e prprio, ao invs de se desgastar na tentativa destrutiva do atual.

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A subverso desta concepo (e desta organizao social) passa por uma desmisticao do processo de trabalho e da tecnologia; por uma identicao dos elementos essenciais das relaes de dominao e por um reconhecimento dos mecanismos essenciais do poder: mas tambm por uma ressignicao da comunidade como espao autodeterminado de criao de sentidos e de realidade. DIFERENA ENTRE HEGEMONIA ESTADUNIDENSE E HEGEMONIA CAPITALISTA A perspectiva de aproximao da anlise da hegemonia implica sua localizao em distintos nveis de abstrao, que podem levar a sinais contraditrios, caso no se encontrem as mediaes correspondentes. Uma das divergncias mais freqentes na literatura sobre hegemonia deriva da ausncia de explicitao do horizonte terico, que move a anlise do nvel de abstrao mais geral correspondente ao modo de produo e organizao social at aquele que diz respeito ao que Marx denomina como o nvel da concorrncia, onde o que est em questo no so as leis gerais de funcionamento, e sim as modalidades internas de domnio. Quando a perspectiva de anlise contempla a transio do domnio do capitalismo ingls para o dos Estados Unidos, ou deste para outro centro capitalista, ela sem dvida est localizada nesse segundo nvel. Isto , aqui no se est falando de uma mudana sistmica ou civilizatria, mas de uma mudana de modalidade, que evidentemente se inscreve dentro do trao mais amplo que se refere s dimenses sistmicas. Quando se coloca o ngulo de enfoque nas rupturas revolucionrias, no choque de civilizaes ou nas concepes no-capitalistas do mundo, a disjuntiva diz respeito ao nvel geral ou sistmico. possvel, portanto de fato, o que ocorre atualmente, que se tenham duas curvas de comportamento em sentido inverso para ambos os nveis. Em outras palavras, no h incompatibilidade entre o fortalecimento da hegemonia estadunidense ocorrido na fase neoliberal e a decada simultnea da legitimidade capitalista. Trata-se, de meu ponto de vista, de um movimento ambivalente que, se em um horizonte civilizatrio ou sistmico permite identicar uma tendncia deteriorao da relao entre o discurso de verdade do progresso capitalista e sua capacidade real de soluo dos problemas gerais da humanidade (Cecea, 1999), em um horizonte mais prximo anuncia um reforo da capacidade de domnio, da concentrao de riqueza e poder, e da reconstruo do imaginrio coletivo sobre a base do pensamento nico e da iluso global.39

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At onde possvel prever, levando em conta a multidimensionalidade da hegemonia, no seria impossvel que estes dois processos acabassem por coincidir no tempo. Isto , se bem que a hegemonia capitalista esteja perdendo terreno medida que cresce a excluso no capitalismo e comeam a ganhar fora outras vises de mundo, no se pode vislumbrar, em compensao, uma possvel rendio da hegemonia estadunidense. O processo histrico, contudo, se deve ao acaso da luta (Foucault, 1977: 20); um processo em permanente construo, que, embora delimitado pela moldura de um conjunto de condies objetivas, constantemente modicado pelos sujeitos em ao. O MUNDO COMO CAMPO DE BATALHA Se a hegemonia se constri mediante os discursos de verdade e as concepes do mundo, certo que utiliza tambm uma srie de mecanismos de apoio (as condies objetivas) que constituem o fundamento material de semelhante viso. Gramsci situa no processo de trabalho o lugar fundamental de construo de imaginrios. Efetivamente, o processo de trabalho, em suas diversas modalidades, o lugar de relacionamento que se converte no eixo da sobrevivncia. Nessa medida, aparece como espao articulador do conjunto social4. no modo de produo que se delineiam os traos essenciais da concepo do mundo, porque a que se estabelecem os padres gerais de relacionamento social: a existncia de classes, a concepo das foras produtivas, a concepo da natureza, o sentido da produo (como valorizao), a delimitao de opes, a disciplina, os tempos, etcetera. Sendo este o manancial do imaginrio coletivo capitalista, a tecnologia, que seu elemento ordenador, pe-se no centro da explicao do mundo. E como o mundo capitalista um mundo de competio e individualizao, de apropriao e excluso, a tecnologia tambm um espao de poder, de des-sujeitizao e de anulao do outro, que aparece no s como contrrio, mas como inimigo. A concepo do mundo a partir deste ponto crtico de condensao de relaes sociais a de um campo de batalha. No obstante, esta no uma imagem do mbito militar, mas que aparece nos negcios, no mercado e na vida cotidiana. Isto , as relaes sociais esto imbudas desta concepo que se reproduz at as capilaridades ltimas da sociedade parafraseando Foucault, e por4 Este fato no deve, contudo, fazer com que se subestime a importncia das relaes comunitrias em todos os espaos de reproduo da vida, questo que o prprio Gramsci acolhe em algumas passagens (Gramsci, 2000: Cuadernos 23 y 27).

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isso que o militar converte-se em signo de coerncia que carrega o sentido geral e marca as delimitaes. A partir da se constroem as explicaes do mundo e se desenham as estratgias para entrar no terreno de batalha nas melhores condies possveis. O CAMPO DE BATALHA A PARTIR DA PERSPECTIVA DO HEGEMON Como se constri um campo de batalha favorvel uma das perguntas-guia dos estrategistas estadunidenses, que evidentemente no surgiu com o 11 de setembro. Um dos tpicos permanentes nas esferas empresariais, polticas, militares e culturais o da obteno de entornos amigveis, favorveis aos interesses dos Estados Unidos. Seja porque correspondam a uma internalizao, voluntria ou no, do American way of life and thinking; seja porque consistam em normatividades permissivas para a entrada de capitais estadunidenses em terrenos estratgicos ou de rentabilidade atrativa, ou em normatividades restritivas para lhes garantir condies de monoplio relativo ou absoluto, ou na criao de mercados protegidos, dirigidos ou desprotegidos conforme o caso, que garantam a supremacia estadunidense e a adoo generalizada de seus modos de funcionamento. E a maneira como se generalizaram estes modos de funcionamento e organizao da vida e do pensamento supe, e ao mesmo tempo produz, a viso de que a tecnologia o elemento de denio entre progresso e atraso, entre poder e no-poder, concedendo-lhe assim um estatuto natural. O terreno mais essencial de construo da hegemonia , sem dvida, o epistemolgico. Uma vez que a tecnologia se converte no eixo de ordenamento e de explicao do mundo, as contradies sociais, societais e culturais cam nas margens de um imaginrio que as admite apenas como anormalidades. Esta viso se refora sistematicamente mediante o uso, diversicao e desenvolvimento dos instrumentos de objetivao tanto da cincia e do pensamento humano como dos saberes, comportamentos e disjuntivas evolutivas do resto dos seres vivos. Os empresrios, os militares, e o Estado estadunidense em geral, que modela o sujeito hegemnico (Cecea, 2003), so ao mesmo tempo promotores e convencidos desta viso. Para os militares, que so o canal de expresso mais completo da estratgia do sujeito hegemnico neste momento, a inteligncia representa a primeira linha de defesa (Deutch, 1994). E o trabalho de inteligncia, ou inclusive o de criao de consensos, de acordo com seus cnones, se processa atravs de andaimes tecnolgicos (dos avies invisveis at a indstria de produo de imagens).41

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OS OBJETIVOS No nenhuma novidade que os objetivos primordiais do desdobramento hegemnico nesta guerra econmica, poltica, cultural e militar sejam essencialmente de dois tipos: ou se trata de recursos, riquezas e mercados, ou de obstculos, resistncias e insurgncias. 1. Embora o poder seja imaterial, tem suportes materiais iniludveis. Controlar os processos de reproduo da vida e da prpria riqueza , simultaneamente, um m e um mecanismo na construo de poder. A capacidade para se apropriar dos recursos, processos ou mecanismos necessrios no s para a reproduo presente, mas sobretudo para a futura, faz parte das condies de possibilidade da hegemonia. A destruio do contrrio-competidor transita tanto pelo enfrentamento direto como pela eliminao ou controle de suas condies de existncia e de reproduo, com a virtude de que este segundo mecanismo tende a naturalizar a hegemonia. Faz pouco tempo que a disputa pelos recursos comeou a se converter num assunto de sobrevivncia humana. At ento, seu mbito era fundamentalmente o da concorrncia entre hegemons. Isto , tratava-se de uma batalha interna que no questionava a pertinncia capitalista a no ser, no melhor dos casos, algumas de suas modalidades. Hoje, a linha de disputa interna que compete hegemonia estadunidense comea a se deslocar para a fronteira que marca os limites histricos do sistema capitalista. Isto implica tambm um deslocamento do contrrio, no qual cariam compreendidos, simultaneamente, o hegemon alternativo e a humanidade como corporicao da espcie humana sujeitizada. Aproximao perigosa entre modalidade e modo, que indcio de limites histricos que j esto assinalando, entre outras coisas, que o outro comea a perder sua expresso estatal-nacional, para reencarnar diretamente como humanidade ou multido, que a expresso talvez mais ampla e profunda dessa classe que no se modela a partir da produo material, e sim da vida; no no processo de explorao, mas no de explorao-dominao, sobretudo a partir do transbordamento do processo de trabalho dos limites da fbrica at os espaos de reproduo cotidiana. 2. A longa histria de des-sujeitizao empreendida pelo capitalismo, na qual a tecnologia constitui um elemento privilegiado de objetivao de saberes e capacidades, tem como correlato uma histria igualmente longa de resistncias que, no obstante, nem sempre se manifestaram como portadoras de outra viso do mundo e construtoras de outra hegemonia ou de outro discurso de verdade, e que podem ser, em vez disso, portadoras da concepo de um mundo de diversidades sem hegemonias.42

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As fronteiras da dominao tocam as da vida e multiplicam as resistncias num contexto em que a concentrao de riqueza e de poder foi cancelando as alternativas de reajuste interno. A profundidade e amplitude alcanadas pela objetivao-expropriao diminui a capacidade de incorporao ao sistema de um conjunto crescente de pessoas que, excludas neste universo, se voltam para a construo de outro, partindo das margens. A insubordinao dos excludos, da multido, dos povos em resistncia, hoje uma ameaa real, no hegemonia estadunidense, mas, atravs dela, hegemonia capitalista no sentido mais amplo. Quando a disputa pelos elementos essenciais para a conservao da vida, a insurreio converte-se em mecanismo de sobrevivncia. No h correspondncia entre a capacidade tecnolgica e a escala de incorporao ao sistema. As condies monoplicas em que opera o processo de acumulao no do margem de manobra a ampliaes legitimadoras do universo integrado dinmica do sistema. Nestas condies, as fronteiras do desenvolvimento capitalista esto fortemente vinculadas capacidade de extermnio ou racionalizao do coletivo humano e, portanto, esto cada vez mais impugnadas por insubordinaes que, por provirem de setores excludos, so de procedncia difusa e variada, de temporalidades alheias s do sistema e de contedos referenciados a partir de uma territorialidade e de uma historicidade que o transcendem. Estas insubordinaes so um dos sinais mais eloqentes dos limites de possibilidade de um sistema que se autoproclama como eterno e infalvel (como o m da histria). AS ESTRATGIAS Dentro da concepo do mundo como campo de batalha, as estratgias esto orientadas para a criao de vantagens de posicionamento que permitam modicar a territorialidade e as polticas de acordo com as necessidades concretas num ambiente em incessante mudana. Segundo a linguagem ocial, strategy [can be described as] the evolving pursuit of a central mission through changing circunstances (DARPA, 2003). A complexidade do mundo contemporneo apela para uma versatilidade de iniciativas e respostas capazes de assegurar o acesso garantido s fontes de recursos estratgicos, mobilidade irrestrita do capital, ao uso e abuso da fora de trabalho e ao estabelecimento de uma globalidade ordenada. A manuteno da hegemonia num contexto no qual as inovaes tecnolgicas nas comunicaes permitiram um entrelaamento muito estreito entre povos e processos sociais, econmicos e polticos de regies antes dissociadas,43

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supe estratgias capazes de englobar essa diversidade e de se situar num nvel de articulao superior. Isto o que leva Thomas Barnett, membro da Mari