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Consolidação da leitura e da escrita: uma experiência com a elaboração
de diários e ensino de História no Ensino Fundamental
Manoel José Ávila da Silva*
RESUMO
O artigo apresenta uma discussão teórica dos limites e exigências para que
conceitos como multiletramentos e o alfabetismo orientem as práticas pedagógicas e
contribuam para a consolidação da leitura e da escrita nas aulas de História no Ensino
Fundamental, através de uma experiência com a elaboração de diários.
Palavras-chave: multiletramentos, alfabetismo, diários, consolidação da leitura e
da escrita, ensino de história.
ABSTRACT
The article presents a theoretical discussion of the limits and requirements for
concepts such as multiliteracy and alfabetismo to guide pedagogical practices and contribute
to the consolidation of reading and writing in History classes in Elementary School through
an experience with the elaboration of diaries.
Keywords: multiliteracy, alfabetismo, diaries, consolidation of reading and
writing, history teaching.
1. INTRODUÇÃO
No presente artigo, a partir do relato da experiência de associar as aulas de
História numa turma de 6º ano do Ensino Fundamental com as ações de ler e escrever através
da elaboração de diários, observamos elementos referentes ao alfabetismo e problematizamos
a questão dos letramentos no Ensino Fundamental. Além disso, também ressaltamos as
dificuldades que, como professor especialista em uma área de conhecimento, a História,
encontramos no tratamento das questões referentes à consolidação da leitura e da escrita ao
longo dos Anos Finais do Ensino Fundamental.
* Historiador, Especialista em Alfabetização e Letramento, professor da Rede Municipal de Ensino de Porto
Alegre/RS. Atua nas Escolas Municipais de Ensino Fundamental Vereador Antônio Giúdice e Presidente João
Belchior Maques Goulart.
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Considerando que se produziu um contexto marcado pela interdidática que,
conforme Lerner, Aisenberg e Espinoza (2012), possibilitaria a criação de estratégias
combinadas e específicas para a promoção da leitura e da escrita entre diferentes áreas de
conhecimento, em conjunto com a perspectiva de que o processo de letramento, ou
multiletramentos, como refere Rojo (2010), que não se dá apenas nos anos iniciais do Ensino
Fundamental, e que tanto crianças, jovens e adultos estão envolvidos por ele ao longo da
existência, estabelecemos nosso caminho para uma breve análise. No artigo essa análise
abordará a questão dos níveis de alfabetismo como referência para os problemas a serem
superados no campo da leitura e da escrita na formação dos alunos e alunas no Ensino
Fundamental a partir de três momentos.
O primeiro momento diz respeito ao relato da elaboração dos diários por parte dos
alunos em uma atividade específica. Alunas e alunos de uma turma de sexto ano do Ensino
Fundamental prepararam-se para o estudo das civilizações da Antiguidade indo além da
leitura e interpretação de textos contidos nos livros didáticos. A partir de uma escolha
conjunta entre professor/alunas e alunos, foi proposto que trabalhássemos com a elaboração
de um mapa das civilizações da Antiguidade no espaço geográfico do Mar Mediterrâneo, ao
mesmo tempo em que desenvolvíamos um diário para o acompanhamento da atividade. Para
a dimensão didática estritamente histórica vale referir que uma das bases para a proposição do
trabalho com as civilizações da Antiguidade é a concepção do historiador francês Fernand
Braudel, notadamente aquela que aparece em seu já clássico texto A Gramática das
Civilizações. Aqui também aparecem as questões vinculadas com a perspectiva da
interdidática. Pannuti (2012), Larrosa (2011) e Lerner, Larramendy e Cohen (2012) nos
servem de referência tanto para entender as relações entre a experiência, a leitura e a escrita,
como para compreender a formação laços entre as diferentes disciplinas no desenvolvimento
da leitura e da escrita entre alunas e alunos do Ensino Fundamental.
No segundo momento apresentamos os conceitos de multiletramentos e de
alfabetismo (e níveis de alfabetismo). Estabelecemos brevemente uma referência teórica para
o reconhecimento da conexão entre o ensino de História, o processo que envolve os
letramentos, as características do alfabetismo. Buscamos construir vínculos que apontem
alternativas para o aprimoramento da leitura e da escrita durante o segmento dos Anos Finais
do Ensino Fundamental. O suporte para tal entendimento advém das abordagens e
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perspectivas de Rojo (2004 e 2010), Ribeiro (1997) e dos estudos e relatórios que estabelecem
o Índice Nacional de Alfabetismo Funcional - INAF (2016).
Na conclusão, trabalhando com a generalização, e sem a pretensão de estabelecer
uma resposta definitiva, apontamos para exigências das práticas para a consolidação de leitura
e da escrita no Ensino Fundamental e apresentamos alguns pontos que nos permitiriam pensar
sobre a criação de estratégias recorrentes nos diferentes anos do Ensino Fundamental, na
disciplina de História. Pontos esses que, pensamos, contribuiriam para a elevação dos níveis
de alfabetismo, em combinação com desenvolvimento dos multiletramentos pelas alunas e
alunos.
2. A EXPERIÊNCIA COM OS DIÁRIOS
A perspectiva da atividade de História projetada com o trabalho acerca das
civilizações da Antiguidade no espaço do Mar Mediterrâneo está fundamentada em uma
apreciação do historiador francês Fernand Braudel. A saber:
Sempre preconizei, para as crianças, uma narração simples, imagens,
séries de televisão, cinema (…). Falo com conhecimento de causa. Fui durante
muito tempo, como todos os universitários de minha geração, professor do
secundário e sempre exigi, junto com as classes de terceiro colegial ou de concurso
que me eram confiadas, uma classe de quinta série, ou seja, crianças de dez a doze
anos. É um público delicioso, espontaneamente maravilhado, perante o qual se pode
fazer desfilar a história como com uma lanterna mágica. O grande problema é, de
passagem, fazê-lo descobrir a perspectiva, a realidade do tempo vivido, as direções e
significações que ele implica, as sucessões que, marcando-o, o balizam e lhe dão
uma primeira fisionomia reconhecível. (…) Que o tempo, pouco a pouco
reconhecido, se preste pois o menos possível à confusão! Mas que a narrativa fácil
se abra como que por si mesma para espetáculos, paisagens, vistas de conjunto! (…)
Ao lado da aprendizagem do tempo, impõe-se igualmente a aprendizagem do
vocabulário: aprender a jogar com as palavras de maneira precisa, as abstratas e as
concretas... Com as noções chave: uma sociedade, um Estado, uma economia, uma
civilização. (BRAUDEL, 2004, p. 14)
Ao propormos, com alunos e alunas de uma turma do sexto ano de uma escola de
Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre essa atividade de estudo
buscamos associar o ensino de História com o exercício de aprimoramento e consolidação da
leitura e da escrita.
Do mesmo autor recuperamos a compreensão dos grandes espaços geográficos
como molduras para a compreensão da História, numa conexão secundária, mas não menos
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importante, com a Geografia (BRAUDEL, 1983). Essa relação não vai ser explorada aqui,
ainda que ela complemente e amplie um dos aspectos que paralelamente intentamos abordar,
que é a noção de interdidática.
Desse modo, tempo e espaço são estudados juntamente com o desenvolvimento da
leitura e da escrita em uma mesma atividade de História.
Para levarmos a efeito o objetivo conjunto de estudar História e aprimorar a
leitura e a escrita durante o percurso do Ensino Fundamental, para além do estudo dos
conceitos de tempo e espaço ou dos episódios históricos, estabelecemos como um elemento
para a vinculação desses dois aspectos a elaboração dos diários por parte dos alunos e alunas.
A atividade de História se desenvolveu em uma turma de sexto ano, com meninas
e meninos com idades entre 11 e 14 anos, de uma escola da Rede Municipal de Ensino de
Porto Alegre, localizada em um bairro da periferia da cidade. A composição social da turma
reflete a mesma que há na escola. Há crianças oriundas de uma região muito vulnerabilizada
do entorno da escola, onde os serviços urbanos praticamente não existem (água, luz, esgoto,
coleta de resíduos orgânicos e secos). Temos crianças que residem em condomínios mais
antigos, localizados em um espaço do bairro que foi urbanizado entre os anos 80 e 90.
Existem crianças que provêm de uma região de ocupação muito antiga no bairro, com
urbanização consolidada, mas com pouca atenção, do ponto de vista dos equipamentos e
serviços urbanos. Por fim, e em número menor que os outros grupos, temos crianças que
pertencem a famílias que chegaram recentemente no bairro e que habitam em condomínios de
casas ou apartamentos construídos com a urbanização muito recente desse espaço da cidade
(especialmente depois dos investimentos feitos a partir de 2012/2014). À época da atividade a
turma era composta por 28 crianças, 17 meninos e 11 meninas.
Como professor de História, dispunha de três períodos semanais, de cinquenta
minutos cada um, com a turma. Dois eram geminados e o terceiro isolado. No mês de junho,
depois de estudarmos as características do conhecimento histórico, a hominização, os avanços
civilizatórios na Pré-história e a Revolução Urbana, e ao iniciarmos o estudo das civilizações
do Crescente Fértil, pareceu-nos oportuno (e aqui não se trata apenas de um recurso
linguístico para tratar da situação, e o que houve foi, de fato, uma decisão coletiva, do
professor e dos alunos e alunas) promover uma nova estratégia de aprendizagem na e com a
turma do sexto ano. À ideia do trabalho em grupo somou-se a opção por escolher, para cada
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grupo, uma civilização da Antiguidade na região do Mar Mediterrâneo. Os conteúdos a serem
estudados foram uma indicação do professor, pois que todos reconheciam que a ele
correspondia tal prerrogativa. O como estudar gerou um discussão que só foi concluída
quando a turma chegou ao consenso de que um modo de fazê-lo era, além da divisão por
grupos, produzir maquetes de cada civilização e, após, compor um mapa do Mar
Mediterrâneo indicando os locais de cada civilização no período histórico conhecido como
Antiguidade.
Um breve comentário sobre o quanto essa escolha reproduz um dos aspectos mais
tradicionais da História, que é sua divisão racionalista e eurocêntrica. Mas dadas as
características da atividade, esse elemento tradicional seria compensado com a concepção
temporal que o estudo produzia, baseada na percepção da sincronia do tempo histórico e na
simultaneidade dos desenvolvimentos das diferentes formações históricas, com suas
semelhanças e diferenças.
Foram treze encontros, entre os meses de junho e julho de 2017, em que a turma,
dividida em grupos, estudou civilizações como a Mesopotâmia, o Egito, Pérsia, Grécia,
Roma, a Judeia e a Fenícia.
Como fonte para os trabalhos os alunos e alunas foram instados a fazer as leituras
do livro didático destinado à turma pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD),
Projeto Teláris: história, ensino fundamental 2, de Gislaine Azevedo e Reinaldo Seriacopi
(AZEVEDO e SERIACOPI, 2015), além de pesquisas em material bibliográfico e em meios
eletrônicos.
Decidimos trabalhar em grupos. Sobre a possibilidade de estudar História
valendo-se do recurso da montagem de objetos acerca dos temas estudados ocorreu uma
grande surpresa, pois já estavam associando apenas a leitura e a escrita a essa área de
conhecimento. No momento de formar os grupos as afinidades que as alunas e alunos têm
entre si determinou as escolhas, e a curiosidade que foi despertada serviu de estímulo para o
trabalho, mesmo entre aqueles que não têm muito vínculo com a área de conhecimento
representada pela História.
A proposta de trabalho trouxe para a sala de aula certa distensão, no que se refere
ao ato de estudar e colocou em pauta a ludicidade, expressada no manuseio dos materiais e na
criatividade, que por vezes já não fazia mais parte das expectativas que as meninas e os
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meninos da turma tinham em relação à escola e, especialmente, em relação às aulas e ao
estudo da História.
Das duas direções tomadas na atividade, nos interessa aquela que resultou na
escrita do diário.
Junto com o material distribuído aos alunos e alunas da turma do sexto ano do
Ensino Fundamental foi anexado um caderno, igual para todos e todas. Esse caderno,
inicialmente, serviria para que fizessem o registro das atividades realizadas no estudo das
civilizações da Antiguidade. Tratava-se de um registro que, ao mesmo tempo no qual se
desenrolaria o trabalho coletivo do grupo, acarretaria em uma ação individual de cada aluna e
aluno. Nesse primeiro momento a possibilidade de ter um diário mobilizou bastante a turma
toda. Mais que a relação direta com a atividade de História, o diário despertou o vínculo com
a escrita.
Dessa forma, o diário tornou-se comum a todos os alunos e alunas, mas também
se transformou num elemento que distinguia cada um e cada uma na sua individualidade e
diversidade. Os diários eram iguais e diferentes ao mesmo tempo.
A finalidade declarada do diário era proporcionar um espaço individual para o
registro das ações que cada aluna e aluno naquilo que se referia ao trabalho de construção das
maquetes das civilizações da Antiguidade na disciplina de História. O diário serviria,
portanto, para que se produzisse um passo a passo da elaboração da atividade de História. Ela
ocorreria coletivamente, mas seu registro se daria de forma individual, permitindo que cada
aluno e aluna expressassem a sua perspectiva.
Essa foi a proposição original do uso do diário. Outra finalidade do diário,
complementar à primeira, foi possibilitar a experiência da compreensão da descrição ao longo
do tempo, ou seja, vincular as anotações com o estabelecimento de um passar do tempo. Os
registros colocariam os alunos e as alunas em contato com a necessidade de pensar não
somente no registro, mas também em ordená-lo no tempo, vivenciando a complexidade que
liga as condições objetivas e convencionais do calendário às descrições que emergem
subjetivadas pela carga emocional, específica e que podemos considerar própria de crianças
nessa etapa de desenvolvimento cognitivo. Um diário que juntava razão e emoção,
contribuindo para a elaboração deliberada de uma memória. Esses elementos todos
contribuem, de modo permanente, para a efetivação de uma das competências desejadas e
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projetadas para o sexto ano na disciplina de História, que é a compreensão do tempo em geral,
e do tempo histórico em particular.
Mas essas finalidades evidentes vinham acompanhadas de outra, menos aparente e
mais constante: a do exercício da leitura e da escrita. Nos diários uma das primeiras sensações
enunciadas, antes mesmo de qualquer descrição, é o prazer de ter um, de fazer registros, de
anotar questões sobre o seu dia na escola.
O diário cumpria o papel estratégico de estimulador da leitura e da escrita. A
fruição da escrita, em companhia da subjetividade que podia ser liberada nela, fazia do diário
um espaço que todas e todos queriam, inicialmente e com muito entusiasmo, ocupar. A
declarada resistência que surge quando a escrita tem um caráter compulsório, era substituída
pela ansiedade de escrever suas impressões pessoais. E o diário, que parecia ser um frio
registro das atividades na escola, foi sendo transformado numa anotação do cotidiano nos
mais diversos lugares.
Há, ainda, a questão do exercício da escrita de acordo com a norma culta, em
todos os seus aspectos. Mas, agora, passamos ao conteúdo dos diários.
A leitura dos diários permitiu o reconhecimento de cinco características nos seus
textos, que serviram para tipificar o conteúdo dos registros. Encontramos registros que
trataram do próprio diário, registro que se referiam à organização do trabalho que ia sendo
desenvolvido, registros que enfatizavam o cotidiano, registros que faziam referências ao
cotidiano, e ainda mais, que transbordavam do espaço da sala de aula e da própria escola e,
por fim, diários em que o registro serviu para reportar o conteúdo histórico estudado.
Este trecho faz referência ao próprio diário, destacando o estímulo que ele
representou no estudo da História e na vinculação com a própria escola:
13/06/17
Hoje na aula do sor Manoel nois fizemos esse diario que eu estou
escrevendo ganhamos materiais hoje a aula foi incrível adorei a aula de Historia e eu
também gosto das aulas do professor manoel eu adoro as aulas dele e adoro Historia.
(J. L., 12 anos)
Já nesse excerto encontramos a organização da atividade referida:
06/07/17
Hoje agente fez nossa maquete mas já faz tempinho só que eu não
escrevi no diario então hoje eu tou escrevendo no trabalho cada grupo ia contar
sobre o que ia ser a maquete o profº manoel fez um sorteio eu e as gurias que são R.
J. J. O. e J. nos caimos com roma e nois vamos fazer a maquete de roma mas
inssima da maquete vai ter o coliseu vai ficar muito legal. (A. T., 12 anos)
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O registro do cotidiano foi feito no diário na mesma medida em que ele se
confundia com a escola, permitindo que a vida das alunas e dos alunos contaminasse o ritmo
das atividades escolares...
Dia: 19/06/2017 Segunda-feira
No dia 19/06/2017 e meu aniversario e na sala meus colegas cantaram
parabéns para mim com a professora D..
Eu ganhei uma festinha surpresa da minha mãe que morra em E. veio
ela e minha cunhada e meu irmão mais novo e minhas primas. (J. E., 12 anos)
E muitas vezes essa relação com o cotidiano passava a ser mais relevante que o
registro das ocorrências na escola. O diário assumia a função de local para o registro da vida
na sua compreensão mais ampla, com a construção de uma memória das coisas (boas)
acontecidas:
Dia: 16/06/17
Sexta feira
Hoje é sexta-feira hoje fui na aula depois fui para casa e a minha
colega R. me mandou um Whas falando:
J. não vou consiguir ir aula mas eu vou te buscar as 18:15 e já toma banho. Então
tomei banho fui na minha vó e esperei passou uma meia hora e deci depois fui na
casa dela, me arrumei lá para a festa da sobrinha dela m. então me arrumei fui na
festa tava muito legal a gente comeu brincou saimos uma hora da manha do aniver
depois fomos dormir (J. M., 12 anos)
E há nos diários da turma B33 também o registro do conteúdo histórico estudado,
sem deixar de lado o registro igualmente importante do estado de espírito de que registra e de
seus colegas:
22/06/17
Hoje a gente soltou cedo e todo mundo ancioso e com medo de tirar
nota ruim no boletim.
E na aula do professor Manuel, e os grupos escolheram uma parte do
estado terrestre, e eu e o meu grupo ficamos com a Mesopotamia, e no meu grupo
está o P., E. e o d., e a gente descobriu que na Mesopotamia o povo que mora lá é os
Sumerios. (G. F., 12 anos)
Os diários, para além da caracterização dos registros e suas distinções, e também
graças a elas, apresentam questões especificamente ligadas à escrita, mas também à leitura. A
informalidade e as regras fluídas do gênero textual do diário permitiu aos alunos e às alunas
certa tranquilidade na escrita, o que serviu para que o ato de escrever não se tornasse uma
obrigação penosa. Como apareceu em muitos registros, o diário constituiu-se numa ação
prazerosa, uma escrita que se fazia com naturalidade e como consequência não só da leitura,
mas também do que fora experimentado e vivido pelos alunos e alunas.
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Pela outra mão, essa tranquilidade na escrita deixou que se evidenciassem os
problemas da escrita, no que se refere ao uso da norma culta e da correção gramatical e
ortográfica, nos níveis desejáveis para alunas e alunos do sexto ano do Ensino Fundamental.
Os diários apontaram para questões da consolidação da leitura e da escrita. Neste
ponto as proposições da interdidática ganham sentido e permitem estabelecer os limites de
nossa prática como professor especialista que se depara com a necessidade de estabelecer
estratégias para o aprimoramento dos letramentos (ou multiletramentos, conceito que
discutiremos em seguida) e para uma análise dos níveis de alfabetismo que a turma, e cada
aluno e aluna em particular, apresentam.
A título de recurso para a conexão entre os limites de nossa formação específica
com as demandas de consolidação da leitura e da escrita do Ensino Fundamental, brevemente
trataremos das indicações que a interdidática aponta e tenta resolver.
A produção dos diários pelos alunos e alunas da turma B33 pode ser entendida
como uma estratégia para o desenvolvimento e consolidação da aquisição da leitura e,
principalmente, da escrita por diferentes motivos. Além da evidente possibilidade de criar um
objeto de aprendizagem para a manutenção de um diagnóstico permanente do
desenvolvimento da escrita para cada aluno e aluna, inicialmente podemos destacar também a
relação com a leitura de mundo que o diário carrega – o que já é denotado na própria natureza
do registro pessoal que o diário contém.
Daniela Pannuti destaca que uma das finalidades da escola – e aqui estendemos
essa compreensão para a nossa experiência com os diários – é possibilitar, através da leitura e
da escrita, a construção de uma competência em ler, mais que os signos específicos da
linguagem escrita, o próprio mundo que nos cerca e do qual fazemos parte:
Ao entendermos a escola como espaço coletivo, que apresenta e ao
mesmo tempo prepara a criança para o mundo, a concepção que temos de sujeito
alfabetizado vai além de conhecer e utilizar as letras. Ser alfabetizado, nesse
contexto, pressupõe apropriar-se de um lugar de autonomia, ser capaz de ler e falar o
mundo, compreender seus signos e códigos, interpretar a realidade e interagir com
ela. (PANNUTI, 2012, p. 17)
A conexão entre os diários e a concepção mais ampla da autora acerca da escola e
da alfabetização é possível por uma compreensão de que os diários portam consigo uma
narrativa da vida, que se baseia nos princípios elementares da escrita, quais sejam “narrar a
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vida e comunicar ao outro o que vivemos, sentimos e pensamos” (PANNUTI, 2012, p. 25). E
isso ocorre no diário de cada aluna e aluno (seja através dos registros daquilo que se passou
exclusivamente na escola, seja através dos registros com uma perspectiva mais larga,
envolvente do cotidiano extraescolar).
Trata-se, ainda tendo como referência as ideias de PANNUTI, da constituição de
uma metacognição, que é...
a condição de debruçar-se sobre o próprio pensamento, enquanto sujeito
epistemológico, isto é, construtor de saberes. O foco central da metacognição é o
conhecimento dos processos de conhecimento do sujeito pelo próprio sujeito. O
exercício de pensar sobre o próprio processo de pensar permite identificar lugares de
aprendizagem, movimentos do pensamento para ressignificá-los e integrar o pensar
e o aprender. (PANNUTI, 2012, p. 19)
Essas perspectivas teóricas preenchem o significado dos diários, tanto na sua
proposição – a ação do professor – como na sua realização – a ação dos alunos e alunas. A
escrita sobre o que ocorria na realização da atividade proposta e no cotidiano cumpriu duas
funções. A primeira ligada ao próprio exercício de escrever. A segunda, decorrente desta e
mais ampla, provocava, com a elaboração de o quê escrever, o ato metacognitivo de pensar
sobre a escola, sobre o trabalho realizado, sobre os conteúdos envolvidos e sobre as
circunstâncias nas quais estão inseridas estas dimensões e outras, como as relações com as e
os colegas e o cotidiano. E ainda mais, a provocação de pensar sobre os esforços para a
elaboração de uma escrita que exponha tudo isso.
Nesse ponto os diários comportam o que podemos de chamar de enunciação da
experiência. Eles possibilitaram que as alunas e alunos, através da escrita, explicitassem o
estágio de desenvolvimento e domínio da mesma, e também se envolvessem com o pensar
sobre suas próprias experiências. Por vezes de modo explícito, quando seus textos, ainda que
breves, relatam o que ocorreu de uma forma muito direta (a entrega de materiais, o inusitado
do trabalho manual, a organização em grupos). Outras vezes de modo um pouco mais difuso,
quando relacionam a escrita do diário com o que ocorre fora da escola e o tomam como que
um local de registro de sua história particular e privada. Em ambas as situações os diários
evidenciam para os autores e autoras, mas também para o leitor dos diários (o professor, que
os solicita com muitos objetivos), a experiência que estão fruindo com a atividade.
Os diários, através de sua escrita, mesmo de um modo muito simplificado,
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promoveram a reflexão sobre a existência (mesmo no espaço-tempo restrito da atividade
desenvolvida na escola, nas aulas de História) e exigiram a sua tradução para a escrita.
Ajudaram a fazer emergir a experiência exclusiva que determina o processo de aprendizagem
de cada aluna e cada aluno que se envolveu com a escrita. Os diários, ao serem colocados
como espaço para que se escrevesse sobre o que acontece na escola, provocaram, na
expressão de Jorge Larrosa, a emergência do pensar a relação conhecimento histórico-escrita-
aprendizagem-existência:
A primeira nota sobre o saber da experiência sublinha, então, sua
qualidade existencial, isto é, sua relação com a existência, com a vida singular e
concreta de um existente singular e concreto. A experiência e o saber que dela deriva
são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida. (LARROSA, 2002, p. 27)
Se os diários contribuíram para a percepção e reafirmação das experiências
individuais de aprendizagem vivenciadas pelos alunos e alunas, de outra parte eles também
evidenciaram o quanto há de comum e relacional nas práticas pedagógicas desenvolvidas na
escola. Os relatos tomam o coletivo da turma como referência, ou ao menos, aquelas e aqueles
colegas mais próximos. Mesmo quando a perspectiva do relato é individual, e a narrativa
segue sempre em primeira pessoa (afinal é um diário), o texto remete a um espaço coletivo –
a turma, a escola, a aula – que se vê reforçado pela atividade em grupo. Essa dupla mirada dos
alunos e alunas escritoras/autoras vem acompanhada da exigência de uma igualmente dupla
visão pedagógica do professor.
E é a partir dessa exigência que se afirma mais uma característica presente na
atividade com os diários, que é o trabalho com um posicionamento ou uma postura
interdidática.
Nos anos iniciais do Ensino Fundamental as exigências para a aquisição da leitura
e da escrita parecem se assentar em procedimentos, práticas, exercícios, metodologias e
esforços baseados em concepções didáticas exclusivas e fundadas na centralidade da
alfabetização/letramento. Para os fins da discussão proposta neste artigo, não vamos
aprofundar esta questão, mas vale dizer que essa é uma visão simplista, ainda que carregue
muito de verdade quando olhamos para as práticas recorrentes em muitas de nossas escolas.
À medida que as crianças avançam no Ensino Fundamental, e aqui também nos
permitimos ter esta outra visão simplificadora da questão, a emergência de conteúdos
específicos, de áreas de conhecimentos específicas, vai competindo e mesmo tomando o lugar
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da consolidação da aquisição da leitura e da escrita. Fruto de uma visão equivocada, que isola
as etapas do desenvolvimento cognitivo da criança, essa situação cria áreas de conhecimento
estanques nos Anos Finais do Ensino Fundamental.
Uma das explicações para que isso ocorra é a formação inicial que nós,
professores, recebemos. Os conhecimentos pedagógicos são subsumidos em face dos
conhecimentos específicos de nossas diversas áreas de conhecimento. Os conteúdos da
História, da Geografia, das Ciências da Natureza, das Artes, da Matemática, das Línguas
Adicionais e mesmo do Português, em casos extremos, descolam-se da questão da aquisição e
consolidação da leitura e da escrita. Não é raro encontrarmos programas que listam conteúdos
e que não os vinculam, separando-os por áreas de conhecimento e pressupondo uma caminha
específica e exclusiva dos alunos e alunas em cada área de conhecimento, todas
desconectadas umas das outras. A aquisição da leitura e da escrita fica circunscrita aos anos
iniciais, e deveria estar resolvida, de acordo com uma concepção conservadora, até o terceiro
ano do Ensino Fundamental (ou na pior das hipóteses até o quinto ano).
Nossa experiência (e nossos estudos) têm nos mostrado duas coisas. Primeiro: que
a consolidação da leitura e da escrita se dá ao longo de todo o ensino fundamental, e mesmo
ao longo de toda vida, embora haja a necessidade da adoção de práticas e didáticas específicas
nos anos iniciais para que as questões linguísticas e fonológicas da aquisição da leitura e da
escrita sejam tratadas (cf. SOARES, 2004). Segundo: que são necessários procedimentos
específicos e combinados para se tratar da questão da consolidação da leitura e da escrita ao
longo do Ensino Fundamental. Não é possível continuar reafirmando as especificidades das
diversas áreas de conhecimento e ignorando as necessidades de trabalhos específicos, com
intencionalidade manifesta, para a consolidação da leitura e da escrita.
Aqui chegamos ao ponto de virada de nosso trabalho. Como trabalhar com o que
Lerner define como interdidática? Como estabelecer estratégias combinadas e específicas
para a promoção da leitura e da escrita entre diferentes áreas de conhecimento, quando nossa
formação de especialista não nos faculta tal competência? Como historiadores deixamos a
desejar, no que tange a estabelecer vínculos que apontem alternativas para a discussão entre
dominar conhecimentos específicos e consolidar a leitura e a escrita no Ensino Fundamental.
Ainda através da referência de Lerner et alli sobre interdidática, percebemos os
nossos limites:
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… la lectura y la escritura en las áreas disciplinares son concebidas como objetos
complejos, no recortables desde las didácticas específicas en forma aislada ni desde
la integración de sus saberes preexistentes. Hemos construido así una línea de
investigación interdidáctica que entabla un diálogo con los problemas teóricos y
metodológicos que es preciso abordar. (LERNER; LARRAMENDY; COHEN, 2012,
p. 107)
Os problemas a serem abordados pela relação dialógica de didáticas, a
interdidática, que no caso específico de nosso estudo, estão ligados à História e à
consolidação da escrita, são identificados, pela mesma autora, como aqueles vinculados às
operações e recursos envolvidos no processo de escrever, como o planejamento, a produção
mesmo do texto e a revisão, e aqueles em que o reconhecimento da distinção entre escritores
novatos, que “dizem o conhecimento”, e escritores que já possuem certa expertise, e que na
sua escrita se permitem “transformar o conhecimento”, possibilita “pensar a escrita como
ferramenta de construção do conhecimento” (LERNER; AISENBERG; ESPINOZA, 2011, p.
530-1).
De acordo com a perspectiva proposta pela interdidática, os diários são apenas o
suporte para o exercício da escrita, em associação com as respectivas práticas leitoras
associadas. Por si só não se tornam objetos de ensino, ferramentas de aprendizagem de
conteúdos de uma outra área (no nosso caso, da História). Para que pudessem se constituir
como tal precisariam ser acompanhados de um conjunto de ações e procedimentos didáticos
específicos do ensino dos conhecimentos linguísticos. E, em decorrência disso, seriam
ferramentas para o desenvolvimento permanente dos multiletramentos e do reconhecimento
dos níveis de alfabetismo, e se constituiriam como referências para a nossa interferência.
Eis o limite de nossos conhecimentos!
3. MULTILETRAMENTOS E ALFABETISMO
Os diários são uma referência prática para as questões teóricas que definem os
nossos limites. Pelo modo como foram exercitados e pelo seu aproveiamento pedagógico, não
são mais que isso. Sua aplicação se complementaria, para uma ação sistemática e conjunta na
direção de práticas pedagógicas que contribuam, de modo equivalente e concomitante, para o
fortalecimento dos conhecimentos históricos na mesma proporção que consolidam a leitura e
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a escrita, ao longo do Ensino Fundamental, com a implementação de dois conceitos
particularmente importantes: multiletramentos (ou letramentos múltiplos) e alfabetismo. Isso
antes mesmo da elaboração das práticas, estratégias e programas de ensino, pois que são eles
que fundamentam teoricamente uma perspectiva capaz de criar expectativas de solução para
as questões da leitura e da escrita. E tudo isso ainda considerando a estrutura de pluridocência
que preside a organização do nosso Ensino Fundamental.
O multiletramento, ou letramentos múltiplos, é referido em Rojo quando ela
sugere que devemos diversificar as práticas de letramento em todas as disciplinas da educação
básica, ou seja, que através de procedimentos e a implementação de capacidades, todos nós,
professores da educação básica, preparássemos os nossos alunos e alunas para uma “leitura
cidadã, inclusive na escola” (ROJO, 2004, p. 2). Para operarmos com esses procedimentos e
capacidades, professores especializados que somos, é importante que conheçamos e saibamos
aplicar um conjunto de “capacidades de leitura envolvidas nas práticas letradas”: de
decodificação, de compreensão/estratégias e de apreciação e réplica do leitor em relação ao
texto/interpretação e interação (ROJO, 2004, p. 4-7). A dimensão de nosso trabalho não nos
permite expandir a sua descrição, mas podemos dizer que elas representam fases de
complexificação que desempenham a função de desenvolver capacidades discursivas e
linguísticas nas diferentes etapas e dimensões do letramento. Da compreensão de que há
diferentes dimensões em que ocorre o letramento decorre a afirmação de que não há apenas
um letramento, mas múltiplos letramentos, inclusive um que se dá no âmbito mais estrito da
escola. E com os quais a própria escola deve operar para o desenvolvimento da capacidade
leitora/escritora dos alunos e alunas.
Esse processo desemboca na questão da consolidação da competência em Língua
Portuguesa. Para que se desenvolva a competência são necessários “eventos” em associação
com os múltiplos espaços em que se desenvolve a cultura letrada. É ainda Rojo que nos
referencia a este respeito:
Como são muito variados os contextos, as comunidades, as culturas,
são também muito variadas as práticas e os eventos letrados que neles circulam.
Assim é que o conceito de letramento passa ao plural: deixamos de falar em
“letramento” e passamos a falar em “letramentos”.
Assim, trabalhar com os letramentos na escola, letrar, consiste em
criar eventos (atividades de leitura e escrita – leitura e produção de textos, de mapas,
por exemplo – ou que envolvam o trato prévio com textos escritos, como é o caso de
telejornais, seminários e apresentações teatrais) que possam integrar os alunos a
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práticas de leitura e escrita socialmente relevantes que estes ainda não dominam.
(ROJO, 2010, p. 27)
Os diários de nossa prática evidenciaram minimamente o grau de competência no
trato com a Língua Portuguesa no contexto das aulas de História. Como professor especialista
poderíamos nos abster de considerar este aspecto e ater-nos exclusivamente às questões
históricas. Mas dois elementos interferem e exigem uma outra mirada sobre o assunto. Um é
que a competência linguística interfere na decodificação, interpretação e expressão dos
conhecimentos históricos. O segundo são as exigências elementares dos Ensino Fundamental
no que se refere ao nível geral de domínio da leitura e da escrita, e esta responsabilidadde não
é somente dos professores de Língua Portuguesa. Mesmo nas aulas de História no Ensino
Fundamental é importante o compromisso com os múltiplos letramentos.
Depois da etapa escolar destinada à alfabetização, entendida como o período dos
Anos Iniciais ou Primeiro Ciclo do Ensino Fundamental, no qual o centro das atividades está
na decodificação do código e a associação grafema/fonema, segue-se a etapa em que os
múltiplos letramentos ganham evidência. Nos Anos Finais do Ensino Fundamental espera-se
que as questões referentes à alfabetização já estejam equacionadas (espera-se que o código já
seja dominado pelos alunos e alunas). Com o código adquirido, no Anos Finais
complexificam-se as exigências em relação às capacidades linguísticas. É nesse momento que
os múltiplos letramentos ganham o primeiro plano. A sua importância está diretamente ligada
à crescente expansão do acesso à educação no Brasil. Com quase a universalização do acesso
à escola (ao menos no Ensino Fundamental) nas últimas décadas, cresceram a diversidade e as
exigências de atendimento de alunas e alunos oriundos de situações sociais de maior
vulnerabilidade. Daí advém um conjunto de fatores que fazem com que a implementação das
capacidades linguísticas ocorra de modo menos eficiente, com os resultados observados em
avaliações nacionais, como a Prova Brasil, mostrando a necessidade de implementarmos os
multiletramentos :
Portanto, o que temos no Brasil é um problema com os letramentos do
alunado e não com sua alfabetização. E nenhum método de alfabetização – fônico ou
global – pode dar jeito nisso, mas, sim, eventos escolares de letramento que
provoquem a inserção do alunado em práticas letradas contemporâneas e, com isso,
desenvolvam as competências/capacidades de leitura e escrita requeridas na
atualidade. Temos, isso sim, indicadores da insuficiência dos letramentos escolares,
em especial na escola pública, para a inserção da população em práticas letradas
exigidas na contemporaneidade. (ROJO, 2010, p. 22-3)
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Tal situação confirma a pertinência de nossa preocupação em associarmos aos
conhecimentos históricos as estratégias de promoção dos letramentos nos Anos Finais do
Ensino Fundamental, com a intenção de interferir positivamente na consolidação da leitura e
da escrita.
Para encaminhar alternativas de interferência, de construção de estratégias, e para
a criação de “eventos” que acionem os exercícios de letramentos múltiplos, o conceito de
alfabetismo (e a discussão dos níveis de alfabetismo) ganha relevância. Como afirma Rojo,
trata-se de reconhecer que...
a questão está em outro lugar que não na alfabetização: nas práticas de letramento
em que os brasileiros se envolvem (letramentos múltiplos) e nas capacidades de
leitura e escrita que o envolvimento nessas práticas acarreta (níveis de alfabetismo),
com as quais, parece, a escola não está conseguindo se confrontar. Mas, para
entender melhor como confrontá-los, seria interessante refletir um pouco mais sobre
os conceitos de alfabetização, alfabetismo (competência/capacidades de leitura e
escrita) e sobre os múltiplos letramentos. (ROJO, 2010, p. 23)
Ampliando o conceito de alfabetismo, dizemos que o termo pode ser aplicado
quando queremos...
designar a capacidade de utilizar a leitura e a escrita para fins pragmáticos, em
contextos cotidianos, domésticos ou de trabalho, muitas vezes colocado em
contraposição a uma concepção mais tradicional e acadêmica, fortemente referida a
práticas de leitura com fins estéticos e à erudição. (RIBEIRO, 1997, p. 145)
Mais que um critério funcional, ligado ao campo econômico, o conceito de
alfabetismo ganhou contornos mais abrangentes, e refere-se, hoje, ao conjunto de
compotências linguísticas e de resolução de problemas e sua aplicação pelos indivíduos em
diferentes situações, sejam elas cotidianas, escolares, no trabalho, nas relações comuitárias e
no mundo em geral. Apesar de problemática, a aferição do alfabetismo em uma determinada
população vem ganhando linhas mais claras, na mesma medida que as pesquisas tem sido
recorrentes, sistemáticas e com refinamentos metoodológicos. Isso possibilita que os
resultados estabelecidos orientem políticas públicas e escolares de elevação dos níveis de
alfabetismo. No Brasil a criação do INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional), pesquisado
em conjunto pelo Instituto Paulo Montenegro e pela Ação Educativa desde 2001, fornece
dados consistentes sobre a situação da população entre 15 e 64 anos. No último relatório a
interface com o mundo do trabalho aprimora a compreensão de como este se “constitui como
um espaço de múltiplas práticas de letramento e de numeramento, afetando diretamente as
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condições de alfabetismo de determinados segmentos populacionais inseridos nos mais
diferentes campos profissionais e de trabalho” (LIMA, RIBEIRO e CATELLI JÚNIOR,
2016, p. 2).
Para além das análises proporciondas pelos resultados do INAF, nos importa reter
a classificação dos níveis de alfabetismo estabelecidos (e as competências a eles atribuídas)
pelas pesquisas como indicadores para a formulação de estratégias de multiletramentos entre
nossos alunos e alunas. A metodologia de estabelecimento do INAF, a partir do relatório de
2016, estipula os seguintes níveis de alfabetismo:
I.analfabeto
II.nível rudimentar de alfabetismo
III.nível elementar de alfabetismo
IV.nível intermediário de alfabetismo
V.nível proficiente de alfabetismo
A cada nível desses corresponde um conjunto de “habilidades” relacionadas às
competências linguísticas e de resolução de problemas (letramento e numeramento) que vão
se acumulando de um grupo para o outro (LIMA, RIBEIRO e CATELLI JÚNIOR, 2016, p. 7-
8). Os níveis de alfabetismo têm uma relação direta com os multiletramentos.
Com a combinação destes conceitos, multiletramentos e alfabetismo (e os níveis
de alfabetismo), procuramos apontar um possível referencial teórico para a elaboração de
estratégias e “eventos” de letramentos, visando a consolidação da leitura e da escrita, nos
Anos Finais do Ensino Fundamental, em combinação com a produção do conhecimento
histórico, nas aulas de História.
4. CONCLUSÃO
Em uma discussão sobre o trabalho com gêneros textuais, Beth Marcuschi faz um
conjunto de sugestões e coloca questões teóricas em pauta para serem consideradas no Ensino
Fundamental, dentre elas a vinculação do estudo dos gêneros textuais com as relações sociais:
a aprendizagem de um gênero textual nos possibilita entendermos melhor as
situações em que nos encontramos. Nesse sentido, o ensino da produção textual com
base em gêneros disponibiliza as condições pedagógicas que podem levar o aluno a
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compreender como participar de modo ativo e crítico das ações de uma comunidade.
(MARCUSCHI, 2010, p. 77-8)
Já Delaine Cafeiro, tratando de letramento e leitura e a formação de leitores
críticos, apresenta uma planilha na qual o trabalho com diários como gêneros textuais é
indicado para ser executado no quarto e no sexto anos do Ensino Fundamental (CAFEIRO,
2010, p. 91). Ela defende que o ensino da leitura (e por extensão, da escrita e da oralidade
também) deve ser feito em todos os anos do Ensino Fundamental, e nos demais níveis
(CAFEIRO, 2010, p. 85).
Com essas duas referências, e mais a discussão teórica dos conceitos de
multiletramentos e alfabetismo, é possível pensar na construção de caminhos para a conexão
entre a consolidação da leitura e o desenvolvimento do conhecimento histórico.
A título de indicação, apontamos duas possibilidades: introduzir a elaboração de
estratégias de leitura para o tratamento dos textos históricos, por parte dos alunos e alunas,
conferindo aos mesmos a condição de construtores de sentidos para os textos lidos (e não
mais mais meros decifradores de um sentido que já vem pronto).
Uma outra possibilidade é o trabalho com a elaboração de textos de cunho
histórico em associação com os gêneros literários.
Nessas alternativas, e em todas as demais que podem surgir da continuação de
nossos estudos, fica manifesta a necessidade de um programa de ensino para a História, nos
Anos Finais do Ensino Fundamental, que inclua como questões de fundo os letramentos
múltiplos e a construção de estratégias para a elevação dos níveis de alfabetismo.
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