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CONSIDERAÇÕES SOBRE TÉCNICA EM DANÇA EM MEIO A DANÇA CONTEMPORÂNEA
JUSSARA BRAGA BASTOS (UFBA)
RESUMO Pretende-se neste artigo problematizar questões emergentes ao se pensar a técnica na dança contemporânea levando-se em consideração os processos individuais de aprendizagem, entendendo que cada corpo é distinto em suas experiências e em seu modo de existir. Alguns autores dão luz ao trabalho elaborado por Klauss Vianna, que buscava valorizar a importância do processo individual de construção e exploração do movimento. QUEIROZ (2012) apresenta esse trabalho como uma “anti-técnica” gerando ainda mais campo de discussão acerca da técnica em dança. DOMENICI (2007) apresenta a ideia que a técnica em dança se faz quando o bailarino busca estratégias de organicidade em seu corpo para tentar alcançar o que lhe foi solicitado pelo coreógrafo. PALAVRAS-CHAVE: Técnica em Dança, Dança Contemporânea, Processos Cognitivos, Corporalização.
TECHNICAL CONSIDERATIONS IN DANCE FOR CONTEMPORARY DANCE
ABSTRACT It is intended in this article to discuss emerging issues to think the technique in
contemporary dance taking into account the individual processes of learning,
understanding that each body is different in their experiences and in their mode
of existence. Some authors give light to the work prepared by Klauss Vianna,
who sought to value the importance of the individual process of construction
and operation of the movement. Queiroz (2012) presents this work as an "anti-
technical" field generating further discussion of technique in dance. DOMENICI
(2007) presents the idea that the technique in dance is when the dancer makes
search strategies organicity in your body to try to achieve what was asked by
choreographer.
KEYWORDS: Technique in Dance, Contemporary Dance, Cognitive Processes, Corporalization
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Baseando na classificação que a autora FAURE (2000, apud AGUIAR
2008) nos apresenta, a dança está divida da seguinte forma de acordo com seu
fazer: as que se baseiam na lógica da disciplina e as que se baseiam na lógica
da singularidade.
Seguindo a lógica da disciplina estão as técnicas de dança que
apresentam uma padronização dos movimentos como o balé clássico e
técnicas de dança moderna como Martha Graham, José Limón, entre outras, e
seguindo a lógica da singularidade estão as danças que entendem o bailarino
enquanto indivíduo formado por suas experiências e que possui subjetividades,
como a dança contemporânea e a educação somática.
Ao se pensar na técnica em dança, quase de modo automático,
podemos visualizar bailarinos realizando movimentos precisos, se valendo dos
mesmos mecanismos para realizá-los, sempre ensinados de um contexto
externo ao corpo, não o considerando como complexo e dinâmico. Esse
entendimento está atrelado a diversas relações e conceitos tradicionais que
ainda hoje permeiam e embasam muitas áreas de conhecimento e também o
modo que a sociedade se relaciona com ela mesma e com o mundo. São
relações como causa e efeito, onde se acredita que fornecendo as condições
ideais como causa, como ponto de partida, certamente se alcançará
determinado objetivo ideal mais adiante, se apresentando como uma relação
pautada no determinismo, se relacionando também ao entendimento e
aceitação de que os acontecimentos ocorrem de modo linear. Todos esses
conceitos estão atrelados ao mecanicismo, que afirma que tudo pode ser
programado e moldado para se alcançar determinado fim.
O corpo foi tradicionalmente associado a esses entendimentos,
caracterizando-o durante muito tempo como corpo-máquina, programável,
moldável e instrumentalizado e essas visões de corpo ainda encontram eco
atualmente na sociedade.
A estipulação de um ideal estético para o corpo, a imposição social do
corpo tido como belo pela mídia televisiva, de estar sempre em plena forma
física, são meios opressores e de alienação de todo um sistema social pautado
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em um pensamento mecanicista. Dessa forma a dança, como quaisquer
pensamentos e manifestações artísticas e sociais, sofreu essas influências por
muito tempo em seus fazeres. Durante muito tempo se pensou e se praticou
técnica em dança sob uma visão mecanicista e determinista sobre o corpo. A
utilização da técnica em dança como padronizadora e comum a todos os
corpos.
Porém recentemente, para entender melhor os fenômenos que
envolviam o corpo, este passou a ser entendido e estudado como processual e
contínuo, rompendo com quaisquer entendimentos cartesiano e mecanicista
que o cercassem. As ciências cognitivas apresentaram descobertas no modo
como o corpo aprende, percebe e se relaciona, abandonando também a ideia
de que todo conhecimento e novos aprendizados acontecem no somente
cérebro. Os estudos a cerca do cérebro consideravam o órgão de modo
isolado, extracorpóreo, não permitindo, portanto que seus processos fossem
entendidos como integrantes de um sistema onde todo o corpo está,
necessariamente, presente.
Ao final do século XX estas descobertas passaram a valorizar e afirmar
o corpo como resultante de suas experiências e vivências, nos explicando
melhor que este conhece e aprende novas informações através da experiência,
da ação. É, portanto, no e pelo corpo que se dá o conhecimento.
Cognitivo, então, vai muito além do velho parâmetro lógico-dedutivo de conhecimento e raciocínio como categorias estritamente mentais. Os processos de conhecimento estão espalhados pelo corpo, inclusive os não conscientes (QUEIROZ, 2009: 55).
Assim, cabe, portanto esclarecer questões em torno da técnica em
dança, pois com novos discursos e entendimentos sobre o corpo sendo
praticados na dança atualmente, a técnica perde o lugar de destaque que
ocupou por tanto tempo na história da dança.
Pensar a técnica em dança sob novos modos de se fazer dança, tão
amplamente investigados e explorados na dança atualmente, faz emergir
questões muito latentes em ambientes profissionais de dança e principalmente
nos corpos que a realizam. Muitos profissionais da área se questionam como
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ter um corpo que esteja preparado para a diversidade de propostas e
linguagens apresentadas hoje no ambiente da dança. Essa é uma realidade
nos ambientes de companhias profissionais que não possuem coreógrafos
residentes. Os bailarinos têm contato com diversos coreógrafos, o que acaba
por exigir uma demanda corporal que seja eclética, variada e consiga se
relacionar satisfatoriamente com diferentes propostas. Então como trabalhar
esses corpos? De qual(is) técnica(s) servi-los para que atendam essas
demandas? Há uma técnica que possa preparar esses corpos ou a
multiformação seria a melhor escolha? Técnica(s) em dança seria um caminho
satisfatório a ser seguido?
Sabemos que inúmeras técnicas em danças foram elaboradas com o
intuito de trabalharem e organizarem corporalmente certas linguagens de
movimento. Ou seja, a técnica surge concomitantemente ao ideal estético, para
solucionar problemas e organizar os corpos para esse fim.
Em espetáculos tradicionais de balé clássico, dança flamenca, dança do
ventre, entre outras danças já codificadas, não se tem dúvidas sobre a
natureza da técnica trabalhada com os corpos em cena, pois cada dança
possui em sua elaboração passos codificados e tecnicamente bem
estruturados para cada proposta estética. Logo, a técnica específica para a
dança que está sendo apresentada muito provavelmente terá sido trabalhada e
explorada pelo grupo para que este alcance a proposta estética que a dança
indica. Os códigos estéticos apresentados pelos corpos em cena permitem ao
espectador entender que possivelmente os dançarinos tenham acessado
determinadas técnicas específicas de dança para alcançarem aquele fazer
estético específico. Porém, na dança atual e principalmente na dança
contemporânea, ao se analisar as movimentações dos corpos em cena não se
pode ter certeza de quais técnicas eles se valeram para determinada
configuração. Tenta-se por vezes arriscar que algumas características do
movimento, em meio a tantas outras, vieram dessa ou daquela técnica já
conhecida. Fica a dúvida de como os corpos trabalharam e de quais linguagens
se valeram para alcançarem a proposta artística apresentada. A ideia de
identificar no corpo determinada técnica de dança, portanto, se dilui para o
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espectador. Pode também se tratar de uma mescla de códigos, de onde
emergirá algo próprio desse processo, ou de uma criação de novas propostas
de movimentos, o que é bastante investigado na dança contemporânea (por
não se tratar de uma dança baseada em passos estruturados).
Dança contemporânea é um conceito do tipo “guarda-chuva” que abarca construções coreográficas muito diversas de variados lugares e culturas ao redor do mundo. Faz-se dança contemporânea no Japão, em Taiwan, na França, na Alemanha, na Holanda, na Bélgica, nos Estados Unidos e no Brasil. Em cada um desses países há coreógrafos de características distintas que realizam trabalhos corporais conhecidos como dança contemporânea, mas poderiam ser classificados de forma diferente. Em comum, pode-se dizer que cada um produz obras que são fruto de redes de influências e contágios múltiplos. A diversidade é, pois, uma das marcas da dança contemporânea (SIQUEIRA, 2006: 107).
Segundo Dominici (2008), ao buscarem estratégias de organicidade em
seus corpos, os dançarinos estão no momento elaborando técnicas para
tentarem alcançar o que lhes foi solicitado pelo coreógrafo. O processo de
como o corpo se organizará para tal execução e proposta estética é, para a
autora, a criação da técnica para essa configuração trabalhada.
Podemos, portanto afirmar aqui que a técnica, apesar de estar atrelada a
uma estética, tem um caráter processual que leva em conta a individualidade e
os processos que acontecem no corpo do dançarino enquanto esse se
organiza para o que lhe foi solicitado. Está em jogo uma negociação entre a
corporalizações/embodiment do bailarino e a técnica trabalhada.
Aguiar (2008) levanta uma hipótese de que seja possível o próprio
processo coreográfico ser capaz de preparar o corpo para o projeto estético
desejado, entendendo que em um ambiente onde a movimentação é
construída de modo processual, o corpo irá valer-se de sua coleção de
informações (grifo da autora) para solucionar questões que ali emergirem. A
autora confirma, portanto, que o corpo negociará e buscará solucionar
questões dentro da proposta coreográfica de modo processual se valendo de
suas corporalizações/embodiment, suas subjetividades. A autora também nos
alerta que a utilização dos artefatos cognitivos pelos bailarinos irá se alterar de
acordo com o indivíduo, com o ambiente artístico e com a técnica utilizada, o
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que também implicará em diferentes negociações corporais e resultados, de
acordo com essas relações. A esse respeito ela afirma que
[...] As tarefas serão diferentes e as negociações que o dançarino precisa fazer dependem dessas relações. Há contextos nos quais o processo de criação artística não apresenta a priori a morfologia dos movimentos ou o comportamento cênico dos dançarinos. O “vocabulário” ou padrão de movimentos não é necessariamente o ponto de partida da criação. Ele pode emergir durante o processo criativo mesmo que não esteja formulado no começo da pesquisa (GREINER, 2005, p. 88). Nestes casos o treinamento técnico que os dançarinos tiveram são também artefatos. É importante destacar que esses artefatos não podem simplesmente ser abandonados pelos dançarinos em novos processos de criação, pois, como mencionado anteriormente, após um longo treinamento eles estão acoplados, e serão os instrumentos que o dançarino terá ao seu dispor para “negociar” com as novidades do “contexto de criação” (Idem: 55).
Enquanto dançarina integrante de um grupo de dança contemporânea,
pude vivenciar essa realidade. Em alguns trabalhos que participei os
coreógrafos se utilizavam de suas aulas como forma de encaminhamento para
aproximação dos corpos à proposta estética coreográfica. A aula tinha
determinado direcionamento e ordenamento, de modo a aproximar os
dançarinos das qualidades e movimentações que seriam trabalhadas mais
adiante na composição coreográfica. Esse modo de trabalhar caracteriza uma
das inúmeras formas de se compor dança atualmente, uma vez que a dança
contemporânea não se vale de uma técnica específica para se embasar e
preparar os corpos para diferentes trabalhos.
Pensando nisso, podemos acreditar em uma similaridade em modos de
composição tanto na dança contemporânea quanto no balé clássico,
entendendo que o trabalho realizado em sala, como preparação corporal, irá
desembocar na configuração final levada á cena. No entanto, para a dança
contemporânea não se apresenta uma linearidade nesse processo como no
balé, onde os passos ensaiados em sala vão igualmente codificados para o
palco. Em algumas composições contemporâneas são trabalhados estados de
corpo, diferentes qualidades de movimentos, entre outras questões que estarão
presentes em cena e estas, entendendo que o indivíduo é processual e
mutável, são impossíveis de serem mecanizadas e codificadas. As técnicas
podem estar presentes nesse processo, mas elas não se apresentam como
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único recurso corporal para o bailarino, pois a dança contemporânea se
assume mutável a cada fazer, uma vez que as condições para que ela se dê –
corpo, indivíduo, ambiente, ideia coreográfica, proposta estética, entre outros –
também são mutáveis, assumindo também o acaso em seu fazer.
No entanto, a técnica se caracteriza por direcionar os movimentos para
um determinado trabalho, não permitindo ao bailarino explorar seu corpo e
suas movimentações, delineando sua capacidade criativa dentro do universo
da técnica trabalhada. Assim, percebemos então como é perigoso para o
bailarino contemporâneo se formar diariamente por uma determinada técnica
ou até mesmo por variadas técnicas em dança. Se é interesse que o corpo
esteja aberto e disposto a se relacionar a diferentes fazeres em dança, muitos
ainda nem experimentados ou conhecidos que podem emergir do próprio
processo coreográfico, qual seria a vantagem de trabalhar o corpo diariamente
em técnicas que têm em si um determinado ideal estético?
É importante se repensar como é feita a formação e o trabalho corporal
diário de bailarinos profissionais em companhias que não possuem coreógrafos
residentes, pois ainda podemos perceber muitas discordâncias entre o modo
como são realizados os trabalhos coreográficos, buscando uma diversidade de
linguagens e propostas, e como estas organizam suas formações diárias em
sala de aula. Queremos alertar que essa discordância pode, em certa medida,
dificultar o processo de negociação corporal que o bailarino inserido nessa
realidade profissional enfrenta pelo caráter delimitador da técnica dentro de seu
universo de artefatos cognitivos.
Existem muitas práticas corporais, não necessariamente de dança, que
permitem que o corpo seja trabalhado de diversas maneiras, como a yoga, a
educação somática, as artes marciais, entre outras, que podem ser aliadas na
busca de uma formação que fuja às imposições e delimitações características
da técnica. Não vamos aqui olhar para a técnica como uma vilã que não deve
mais ser explorada, ao contrário, se bem entendidas e intencionalmente
trabalhadas, as diversas técnicas em dança podem contribuir amplamente para
o trabalho do bailarino profissional, mas sim olhar para além das técnicas se
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faz necessário pela emergência de inúmeros fazeres híbridos em dança que
presenciamos na contemporaneidade.
Domenici (2008) nos afirma que evolutivamente o cérebro se
complexificou para solucionar questões referentes ao aumento da
complexidade dos movimentos, atrelando de modo significativo pensamento a
movimento e vice-versa. Assim, a autora afirma que pensamento é movimento
e, desse modo, “[...] Ao imaginar uma ideia em forma de dança, o cérebro já
está imaginando maneiras de implementar essa ideia no corpo mesmo sem o
conhecimento de seu autor” (Idem: 2). Sabemos também que a dança carrega
em si um discurso, um fazer-dizer do corpo, termo utilizado por Setenta (2008,
p. 17) que nos explica que o discurso da dança “[...] se distingue exatamente
por não ser uma fala sobre algo fora da fala, mas por inventar o modo de dizer,
ou seja, inventar a própria fala de acordo com a aquilo que está sendo falado.
[...]” .Assim ressaltamos a importância de bailarinos também se formarem
teoricamente, através de leituras e trabalhos de crítica em dança e em outras
áreas das artes, rompendo com uma ideia errada e amplamente difundida que
o bailarino não necessita ter acesso e realizar estudos e pesquisas teóricas.
Quando passamos a compreender a complexidade do corpo e a
hipercomplexidade do corpo na dança, essa noção de que o bailarino precisa
somente de uma ampla e aprimorada formação corporal, cai por terra.
A Antitécnica de Klauss Vianna como meio para a Busca de Aberturas
Corporais
Klauss Vianna, coreógrafo e bailarino, pesquisou durante todo seu
trabalho em dança como os corpos dos dançarinos poderiam se desfazer de
condicionamentos que estivessem muito corporalizados a ponto de impedir que
o corpo se desprendesse de codificações e criasse novos modos de se
movimentar. Para Klauss as técnicas em dança enrijeciam os corpos de modo
a impedi-los de realizar outros caminhos para alcançar novas propostas de
movimentos que não as já vivenciadas corporalmente.
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[...] Na concepção de Klauss, somente a desestruturação dos condicionamentos possibilitaria uma abertura. Abrir os espaços articulares para criar com mais liberdade. A forma de movimentos que já estavam no corpo treinado pela técnica, impediria em certo grau o lado criativo de movimentos, preponderando sua redundância (QUEIROZ, 2011: 120).
Podemos perceber que Klauss se referia às técnicas de dança baseadas
na lógica da disciplina, que padronizavam os movimentos e, para ele,
enrijeciam qualquer possibilidade de criatividade dos dançarinos.
Vianna estimulava em seus bailarinos uma pesquisa/investigação
corporal, assumindo que cada indivíduo tem para si um modo particular de
realizar esse processo, a partir de suas vivências, condicionamentos e
condições corporais e tinha como principal objetivo desfazer condicionamentos
e amarras corporais que as técnicas proporcionavam aos dançarinos. Para isso
ele propunha inicialmente trabalhar a consciência corporal através do
entendimento das leis gerais que operam no corpo, fazendo dessa consciência
uma autoconsciência (QUEIROZ, 2011). O ato aparentemente básico de
prestar atenção ao movimento que está sendo realizado já nos concede uma
maior consciência e autodomínio da ação realizada, o que não acontece em
movimentos automatizados pela repetição diária da técnica. Em suas aulas,
Vianna dava instruções enquanto os alunos estavam realizando os exercícios,
assim eles trabalhavam em um estado de consciência ativa no movimento
realizado.
Antes do ensino de uma técnica corporal específica é necessário que se faça um trabalho de conscientização corporal, sem o qual o aprendizado poderá ser deficiente, pois o corpo vai adquirindo uma forma, criando uma armadura e consolidando ainda mais as tensões musculares profundas (VIANNA, 2005: 112).
Em um entendimento total de corpo, indivíduo e ambiente, é procedente
entendermos que, ao se mexer nas estruturas musculares já consolidadas de
um indivíduo, modifica-se também seu emocional e sua maneira de lidar com o
mundo. Klauss tinha essa consciência e essa também era sua proposta. Ele
entendia que um corpo alienado na dança também se apresentava alienado
para o mundo e, com o trabalho de conscientização e desfazimento das
tensões musculares habituais criadas e consolidadas no dia a dia, essa
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mudança também se faria valer para outras questões sociais diárias. Não
negligenciava, contudo, que esse processo geraria incômodo, negação e
estranhamento aos alunos, pois assim como o desfazimento de qualquer
hábito, por menor e/ou mais simples que ele seja, estes estariam abandonando
hábitos corporais já condicionados por uma maneira de pensar e entender o
mundo, construídos ao longo da vida. Estariam iniciando um processo que
modificaria sua autorreferência e inclusive sua autoimagem.
Nesse sentido, um corpo livre de condicionamentos e dono de suas expressões em alguma medida se revala um incômodo a ordem social existente, uma vez que busca recuperar a percepção da totalidade dentro de uma sociedade fundada exatamente na fragmentação (VIANNA, 2005: 114).
Percebemos assim que em seu trabalho, além de possuir obviamente o
caráter artístico e profissional em dança, ele também assumia um caráter
político social assumindo o indivíduo como ser complexo em todas as suas
instâncias, apresentando para seus alunos o poder e autonomia que é/tem o
corpo. Um legado de grande importância para se pensar, fazer e estudar dança
até os dias atuais entendendo que “[...] se perdemos essa capacidade de
renovação, se fugimos às dificuldades que surgem, encerramos a própria vida”
(Idem: 83).
Queiroz (2011) discute o trabalho a as ideias de Klauss apresentando-as
como uma antitécnica. Em seu livro Corpo, dança, consciência: circuitações e
trânsitos em Klauss Vianna a autora apresenta de quais fundamentos o
professor se valia em suas aulas para trabalhar os corpos de maneira
inovadora para aquela época: a autoconsciência, as oposições, espirais, os
espaços articulares, o desfazimento de tensões musculoesqueléticas, uma
aproximação e conhecimento mais anatômico do corpo para melhor
compreendê-lo. Em sua obra a autora tece relações entre o trabalho de Klauss
e as ciências cognitivas trazendo importantes contribuições para o trabalho do
bailarino e para a dança.
Nesse trabalho tão significativo para a dança, elaborado por Klauss
durante toda sua vida (e atualmente por seus alunos e companheiros de
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trabalho), podemos perceber, como já dito anteriormente, a importância da
busca do desfazimento de condicionamentos e tensões musculares
acumuladas cotidianamente. Pensando na realidade de bailarinos em
companhias profissionais que trabalham com diferentes coreógrafos, essa
busca pode se tornar uma aliada em seu fazer profissional, pois, mergulhado
nesse processo, que é contínuo e interminável, o bailarino poderá ter maior
contato com seu próprio corpo em/na ação na intenção de conhecê-lo melhor,
alargando, portanto sua consciência do seu próprio corpo em movimento.
Buscar também desfazer possíveis condicionamentos tensões que estivessem
despendendo ao bailarino maior energia ao se relacionar com movimentações
novas ou não tão familiarizadas a seu corpo. Quando condicionado, seja pela
técnica em dança ou por outros fatores cotidianos, o corpo cria rotas de atalho
(grifo nosso) para realizar suas tarefas, ações, movimentos e/ou gestos. Sem
que o indivíduo se dê conta a tarefa já foi realizada e ele está disponível para
aplicar sua energia em outras situações que não as já condicionadas. Na
dança o mesmo acontece, pois o modo como o corpo se relaciona no mundo
também se relaciona na dança, logo, não é interessante para esse profissional
que seu corpo se habitue a resolver questões corporais de uma mesma
maneira ou se valendo dos mesmos recursos, uma vez que essas questões
são mutáveis e, muitas vezes, ainda desconhecidas. Não podemos esquecer
que mutáveis também são o ambiente, as relações com o restante do grupo, as
relações com o coreógrafo e outros muitos fatores que devem ser assumidos
quando analisamos um processo tão complexo como as negociações e
adaptações de um corpo na dança.
Essa realidade profissional aqui colocada exige do dançarino um corpo
pré-disposto a se adequar satisfatoriamente a diferentes linguagens, padrões e
características de movimento e podemos pressupor que um corpo que tente se
desprender de tensões e condicionamentos diariamente talvez esteja bastante
aproximado dessa realidade. Não queremos sugerir um corpo livre de hábitos e
condicionamentos porque não acreditamos que isso seja possível. Queremos
propor aqui que um corpo mais alerta e atento possa, talvez, ter maior
facilidade de negociação nos processos coreográficos, que têm sido realizados
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em tempo curtos, com necessidade de cumprimento de prazos cada vez
menores atualmente, dificultando esse processo aos bailarinos. Apontamos
como um dos possíveis caminhos para a busca desse processo o trabalho de
Klauss Vianna que consideramos antitécnica exatamente por seu caráter
exploratório e não definidor de nenhuma estética ou proposta pré-concebida.
Acreditamos também que essa realidade profissional apresenta aos
bailarinos uma necessidade de entendimento que novas propostas podem
surgir na composição seguinte, expondo-os a esse entendimento prévio. Para o
bailarino, não negar esse fato e assumi-lo de modo mais claro, possa talvez
ajuda-lo a se preparar melhor para a demanda corporal solicitada, permitindo
que ele entenda melhor sua dinâmica de trabalho, sendo necessários maiores
estudos junto à psicologia e outras áreas competentes a esse campo para que
se possa afirmar essa hipótese aqui levantada.
Referências
AGUIAR, Daniela. Sobre Treinamentos de Dança como Coleções Artefatos Cognitivos. Dissertação de mestrado. Dança. Universidade Federal da Bahia. 2008.
DOMENICI, Eloisa. Diálogo com o texto “Dança contemporânea – o dançarino pode ser apto a tudo?”, de Daniela Aguiar. IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas. 2007.
QUEIROZ, Clélia. Húmus. Organização de Sigrid Nora. Caxias do Sul – RS. 3ª edição, 2011.
QUEIROZ, Clélia. Corpo, Mente e Percepção: Movimento em BMC e Dança. São Paulo – SP. Annablume, Fapesp, 2009.
QUEIROZ, Clélia. Corpo, Dança e Consciência: Circuitações e Trânsitos em Klauss Vianna. Salvador – EDUFBA. 2011.
VIANNA, Klauss. A Dança. São Paulo – Summus. 2005.
SETENTA, Jussara. O fazer-dizer do corpo. Salvador - EDUFBA. 2008.
SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. Corpo, comunicação e cultura: a dança contemporânea em cena. Campinas – SP. Ed: Autores Associados, 2006.
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Jussara Braga Bastos Mestranda em Dança pela UFBA - Universidade Federal da Bahia, Bacharel e Licenciada em Dança pala UFV - Viçosa MG, Bailarina ex-integrante do Grupo Êxtase de Dança - Viçosa MG,
Instrutora de pilates. E-mail: [email protected]