Conjecturas Sobre Literatura Mundial

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    C O N J E T U R A S S O B R E A L I T E R A T U R AM U N D I A L 1

    Franco Moretti

    Traduo do ingls: Jos Marcos Macedo

    RESUMOCom apoio na tese da histria econmico-social de que o capitalismo internacional umsistema simultaneamente uno e desigual, com um centro e uma periferia vinculados numrelacionamento de crescente desigualdade, o autor explora a hiptese similar de um sistemamundial de literaturas inter-relacionadas, sob o qual o romance moderno desponta nas culturasperifricas no como um desenvolvimento autnomo, mas como uma conciliao problemti-ca e instvel entre as influncias formais das matrizes ocidentais e as matrias locais.Palavras-chave: teoria literria; literatura mundial; literatura comparada.

    SUMMARY

    In this article, the author discusses the possibility of a world system of interrelated literatures,similar to the proposition of socio-economic historians who consider that international

    capitalism forms a system that is simultaneously unified and unequal, with a center andperiphery linked in an increasingly unequal relation. In a literary world system, the modernnovel emerges within peripheral cultures not as an autonomous development, but rather as aproblematical and unstable reconciliation between formal Western influences and localmaterials.Keywords: literary theory; world literature; comparative literature.

    Minha misso: diz-lo de forma mais simples que o compreendo.

    Schnberg, Moiss e Aaro.

    "Hoje em dia, a literatura nacional no significa muita coisa: a era daliteratura mundial est comeando, e todos devem contribuir para abreviaro seu advento." Isso foi Goethe, claro, conversando com Eckermann em1827; e estes so Marx e Engels, vinte anos mais tarde, em 1848: "Aunilateralidade e a obtusidade ficam cada vez mais improvveis, e dasmuitas literaturas nacionais e locais emerge uma literatura mundial".Weltliteratur: isso o que Goethe e Marx tm em mente. No literatura

    "comparada", mas mundial: o romance chins que Goethe estava lendo napoca dessa conversa, ou a burguesia do Manifesto, que "conferiu umcarter cosmopolita produo e ao consumo em todos os pases". Bem,permitam-me formular de maneira bem simples: a literatura comparada no

    (1) Publicado originalmente

    em New Left Review, jan.-fev./2000.

    (2) Abordo o problema dosgrandes no-lidos no ensaio"The slaughterhouse of litera-ture", a ser publicado em n-mero especial daModern Lan-guage Quarterly sobre "For-malismo e histria literria".

    (3) Weber, Max. "Objectivityin social science and socialpolicy" (1904). In: The metho-dology of the social Sciences.Nova York, 1949: 68.

    (4) Schwarz, Roberto.Ao ven-cedor as batatas. 5a ed. SoPaulo: Duas Cidades/Ed. 34,2000: 47.

    (5) Even-Zohar, Itamar. "Lawsof literary interference". Poe-tics Today, 1990: 54 e 62.

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    sobreviveu a esses esboos. Ela tem sido uma empreitada intelectual bemmais modesta, limitada fundamentalmente Europa ocidental e na maioriadas vezes girando em torno do rio Reno (fillogos alemes trabalhando

    sobre literatura francesa). No muito mais que isso.Essa minha prpria formao intelectual, e o trabalho cientficosempre tem limites. Mas os limites mudam, e acho que hora deretornarmos quela antiga ambio da Weltliteratur: afinal, a literatura anossa volta inequivocamente um sistema planetrio. A questo no bemo quedevemos fazer a questo como.O que significa estudar literaturamundial? Como fazer? Eu trabalho com narrativa europia ocidental entre1790 e 1930, e j me sinto um charlato fora da Gr-Bretanha ou da Frana.Literatura mundial?

    Muitas pessoas leram mais e melhor do que eu, claro, mas ainda assimestamos falando aqui de centenas de lnguas e literaturas. Ler "mais"dificilmente parece ser a soluo. Sobretudo porque acabamos de iniciar aredescoberta do que Margaret Cohen chama os "grandes no-lidos". "Eutrabalho com narrativa europia ocidental etc." ou nem isso: trabalhocom sua frao cannica, o que no nem sequer um por cento daliteratura publicada. E volto a insistir: algumas pessoas leram mais, mas aquesto que h trinta mil romances britnicos oitocentistas por a afora,quarenta, cinqenta, sessenta mil ningum sabe ao certo, ningum osleu, ningum jamais o far. E isso sem contar os romances franceses,

    chineses, argentinos, americanos... Ler "mais" sempre bom, mas no asoluo2.

    Talvez seja pedir demais dar conta do mundo e do no-lido ao mesmotempo. Mas acho sinceramente que esta a nossa maior oportunidade,porque a pura enormidade da tarefa deixa claro que a literatura mundialno pode ser literatura, s que maior; e isso j estamos fazendo, s quemais. Ela tem de ser diferente. As categorias tm de ser diferentes. "No a 'efetiva' interconexo de 'coisas'", escreveu Max Weber, "mas a interco-nexo conceitual de problemas que define o escopo das vrias cincias.

    Uma 'cincia' nova emerge onde um novo problema abordado com umnovo mtodo"3. Esta a questo: a literatura mundial no um objeto, um

    problema, e um problema que reclama um novo mtodo crtico: e ningumter achado um mtodo simplesmente por ler mais textos. No assim queas teorias vm luz; elas precisam de um salto, de uma aposta de umahiptese, para se porem em movimento.

    Literatura mundial: una e desigual

    Tomarei emprestada essa hiptese inicial da escola do sistema-mundo da histria econmica, para a qual o capitalismo internacional umsistema simultaneamente unoe desigual: com um centro e uma periferia (euma semiperiferia) vinculados num relacionamento de crescente desigual-

    (6) " impor tante enfatizar queas interferncias ocorrem qua-se sempre na periferia do sis-tema" (Santos, Montserrat, I."El sistema literario: teora em-prica y teora de los polisiste-

    mas". In: Villanueva, Dario(ed.). Avances en teora de laliteratura. Santiago de Com-postela, 1994: 339).

    (7) Bloch, Marc. "Pour unehistoire compar e des socitseuropennes". Revue de Syn-thse Historique, 1928.

    (8) Ou para citar outra vezWeber (op. cit.: 106): "concei-tos so primeiramente instru-mentos para controle de da-dos empricos". Como inevi-tvel, quanto maior o campoque se deseja estudar, maior a

    necessi dade de "instrumentos"abstratos capazes de dominara realidade emprica.

    (9) Jameson, Frederic. "In themirror of alternate moderniti-es". In: Kojin, Karatani. Ori-gins of modern Japanese lite-rature.Londres, 1993: xiii.

    (10) Comecei a esbo-las noltimo captulo doAtlas of theEuropean novel 1800-1900(Londres: Verso, 1998), e mais ou menos assim que di-zem: segunda idia, a concilia-o formal geralmente pre-

    parada por uma macia ondade tradues da Europa oci-dental; terceira, a prpria con-ciliao por via de regra ins-tvel (Miyoshi tem uma gran-de imagem para isso: o "pro-grama impossvel" dos roman-ces japoneses); mas, quarta,naqueles raros exemplos emque o programa impossvel bem-sucedido temos genunasrevolues formais.

    (11) "Dada a histria de seuestgio de formao, no sur-preende que os primeiros ro-mances russos cont enham uma

    quantidade de convenes po-pularizadas nas literaturas fran-cesa e inglesa", afirma DavidGasperetti em The rise of theRussian novel (De Kalb, 1998:5). E Helena Goscilo, em sua"Introduo" a The adventuresof Mr. Nicholas Wisdom, deIgnacy Krasicki (Evanston,1992: xv): "As Aventuras solidas de modo mais fecundono contexto da literatura euro-pia ocidental, da qual bebeumuito de sua inspirao".

    (12) No mercado narrativo ita-liano por volta de 1800 "havia

    uma demanda por produtosestrangeiros, e a produo ti-nha de condescender" (Tos-chi, Luca. "Alle origini dellanarrativa di romanzo in Italia".In: Saltafuso, Massimo (ed.).I lviaggio del narrare. Florena,1989: 19). Uma gerao maistarde, na Espanha, "os leitoresno esto interessados na ori-

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    dade. Una e desigual: uma literatura mundial (Weltliteratur, singular, comoem Goethe e Marx), ou talvez, melhor, um sistema-mundo literrio (deliteraturas inter-relacionadas); mas um sistema diferente daquele queGoethe e Marx esperavam, porque profundamente desigual. "Em suma,tambm nas Letras a dvida externa inevitvel escreve Roberto Schwarz

    num esplndido ensaio sobre "A importao do romance" , semprecomplicada, no parte apenas da obra em que aparece. Faz figura nocorpo geral da cultura [...]"4; e Itamar Even-Zohar, refletindo sobre aliteratura hebraica: "Interferncia uma relao entre literaturas por meioda qual uma [...] literatura-fonte pode tornar-se uma fonte de emprstimosdiretos ou indiretos [importao do romance, emprstimos diretos eindiretos, dvida externa: repare como metforas econmicas tm estadosubterraneamente em ao na histria da literatura] uma fonte deemprstimos para [...] uma literatura-alvo [...]. No h simetria na interfe-rncia literria. Uma literatura-alvo, em geral, recebe a interferncia de

    uma literatura-fonte que a ignora completamente"5.

    Isso o que significa una e desigual: o destino de uma cultura(geralmente uma cultura da periferia, como precisou Montserrat IglesiasSantos6) cortado e alterado por outra cultura (do centro) que "a ignoracompletamente". Um cenrio familiar, essa assimetria no poder internacio-nal e adiante diremos mais sobre a "dvida externa" de Schwarz como umaspecto literrio complexo. Por ora, permitam-me esmiuar as conseqn-cias de tomar uma matriz explicativa da histria social e aplic-la histrialiterria.

    Distant reading

    Escrevendo sobre histria social comparada, Marc Bloch cunhou certavez um adorvel slogan, como ele prprio chamava: "anos de anlise paraum dia de sntese"7; e se lermos Braudel ou Wallerstein, de pronto veremoso que Bloch tinha em mente. O texto que estritamente de Wallerstein, seu

    "dia de sntese", ocupa um tero de pgina, um quarto, talvez metade; oresto so citaes (1.400 no primeiro volume de The modern world-system).Anos de anlise; anlise de outras pessoas, que a pgina de Wallersteinsintetiza num sistema.

    Ora, se tomarmos a srio esse modelo, o estudo da literatura mundialter de algum modo de reproduzir essa "pgina" quer dizer: essa relaoentre anlise e sntese no campo literrio. Mas nesse caso a histrialiterria rapidamente se tornar bem diversa do que agora: se tornar de"segunda mo", uma colcha de retalhos da pesquisa de outras pessoas, sem

    uma nica leitura textual direta. Ainda ambiciosa, e na verdade tanto maisdo que antes (literatura mundial!); mas a ambio agora diretamenteproporcional distncia do texto: quanto mais ambicioso o projeto, maiorter de ser a distncia.

    ginalidade do romance espa-nhol; seu nico desejo queeste adira aos modelos estran-geiros com os quais se tinhamfamiliarizado", e assim, con-clui Elisa Mart-Lpez ("La or-fandad de la novela espaola:poltica editorial y creacin li-teraria a mediados del sigloXIX". Bulletin Hispanique,1997), pode-se muito bem di-zer que entre 1800 e 1850 "oromance espanhol foi escritona Frana".

    (13) "Obviamente, ambiessublimes no foram suficien-tes. Muitas vezes o romancehispano-americano oitocentis-ta canhestro e inepto, comum enredo de segunda moderivado do contemporneoromance europeu romntico"(Franco, Jean. Spanish-Ameri-can literature. Cambridge,1969: 56). "Se os heris e asheronas dos romances latino-americanos de meados do s-culo XIX desejavam-se passio-nalmente pelos meios tradici-onais [...], essas paixes talvezno prosperassem na geraoseguinte. De fato, amantesmodernizantes aprendiam asonhar suas fantasias erticaslendo as aventuras romnticaseuropias que esperavam prem prtica" (Sommer, Doris.Foundational fictions: the na-tional romances of Latin Ame-rica. Los Angeles, 1991: 31-32).

    (14) "Escritores idiches paro-diavam apropriavam-se, in-corporavam e modificavam diversos elementos de histri-as e romances europeus" (Fri-eden, Ken. Classic Yiddish fic-tion.Albany, 1995: x).

    (15) Matti Moosa (The originsof modern Arabic fiction,1997:93) cita o romancista YahyaHaqqi: "No h mal nenhumem admitir que a narrativamoderna nos chegou do Oci-dente. Os que lhe assentaramas fundaes eram pessoas in-fluenciadas pela literatura eu-ropia, particularmente pelaliteratura francesa. Emboraobras-primas da literatura in-glesa fossem traduzidas para orabe, a literatura francesa eraa fonte de nossa narrativa".Para Edward Said (Beginnin-gs, 1975. Nova York, 1985:81), "a certa altura os escrito-res de lngua rabe se deramconta dos romances europeuse comearam a escrever obrascom o eles". E Roger Allen (TheArabic novel. Syracuse, 1995:12): "Em termos mais literri-os, o aumento dos contatoscom as literaturas ocidentaislevou a tradues de obras da

    fico europia para o rabe,seguidas de sua adaptao eimitao, e culminando noaparecimento de uma tradioautctone de fico modernaem rabe".

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    Os Estados Unidos so o pas da close reading, a leitura cerrada,portanto no espero que esta idia seja particularmente benquista por l.Mas o problema da close reading (em todas as suas encarnaes, do new

    criticism desconstruo) que ela necessariamente depende de umcnone extremamente reduzido. A essa altura isso j deve ter se tornado umapremissa inconsciente, invisvel, e no obstante uma premissa frrea:investe-se tanto em textos individuais somente sese achar que muito poucosdeles realmente contam. Do contrrio, no faz sentido. E se quisermos olharpara alm do cnone (e claro que a literatura mundial o far: seria absurdo seno fizesse!), a dose reading no dar conta do recado. No destinada atanto, mas ao oposto. No fundo, trata-se de um exerccio teolgico tratamento muito solene de muito poucos textos tomados muito a srio ,enquanto o que necessitamos realmente de um pequeno pacto com odiabo: sabemos como ler textos, agora vamos aprender como no os ler.Distant reading, leitura distante: em que a distncia, permitam-me repetir, uma condio do conhecimento. Ela nos permite focalizar unidades muitomenores ou muito maiores que o texto: expedientes, temas, tropos ougneros e sistemas. E se entre o muito pequeno e o muito grande o prpriotexto desaparece, bem, ser um daqueles casos em que se pode justificada-mente dizer: "Menos mais". Se quisermos compreender o sistema em seuconjunto, teremos de aceitar perder alguma coisa. Sempre pagamos umpreo pelo conhecimento terico: a realidade infinitamente rica; conceitos

    so abstratos, so pobres. Mas precisamente essa "pobreza" que tornapossvel manej-los, e portanto saber. Eis por que menos na verdade mais8.

    O romance europeu ocidental: regra ou exceo?

    Permitam-me dar um exemplo da conjuno entre distant reading eliteratura mundial. Um exemplo, no um modelo; e, claro, um exemplo

    meu, baseado na rea que conheo (noutra parte as coisas podem serdiversas). Alguns anos atrs, na Introduo aOrigens da literatura japonesamoderna, de Kojin Karatani, Frederic Jameson notou que nos albores domoderno romance japons "o material cru da experincia social japonesae os modelos formais abstratos da construo do romance ocidental nemsempre podem ser soldados sem remendos"; e a esse respeito faz refernciaa Cmplices do silncio, de Masao Miyoshi, e a Realismo e realidade, deMeenakshi Mukherjee (um estudo do antigo romance indiano)9. E verdade: esses livros retornam com freqncia aos complicados "proble-

    mas" (termo de Mukherjee) que nascem do encontro entre forma ocidentale realidade japonesa ou indiana.

    Ora, que a mesma configurao ocorresse em culturas to diversascomo ndia e Japo isso era curioso; e tornou-se ainda mais curiosoquando percebi que Roberto Schwarz descobrira independentemente boaparte do mesmo modelo no Brasil. Assim, passei em seguida a usar esses

    (16) "Os primeiros romancesna Turquia foram escritos pormembros da nova intelligen-tsia, treinados no servio go-vernamental e versados em li-teratura francesa" (Evin, Ah-

    met. Origins and developmentof the Turkish novel. Minnea-polis, 1983: 10). "Os primeirosromancistas turcos combina-vam as formas tradicionais denarrativa com os exemplos doromance ocidental" (Parla, Jale.Desiring tellers, fugitive tales:Don Quixote rides again, thistime in Istanbul, mimeo).

    (17) "O deslocamento narrati-vo da ordem seqencial deeventos talvez a impressomais saliente que os escritoresQing tardios receberam ao lerou traduzir a fico ocidental.

    A princpio tentavam rearran-jar a seqncia de eventos emsua ordem pr-narrativa. Quan-do tal rearranjo no era factveldurante a traduo, uma notajustificativa era inserida [...].Paradoxalmente, quando alte-ra em vez de seguir o original,o tradutor no sente a necessi-dade de acrescentar uma notajustificativa" (Zhao, Henry.Theuneasy narrator: Chinese ficti-on from the traditional to themodern. Oxford, 1995: 150)."Os escritores Qing tardios re-novaram entusiasticamente seulegado com a ajuda de mode-

    los estrangeiros. [...] Tomo oQing tardio como o comeo da'modernidade' literria chinesaporque a busca de novidadespelos escritores no estava maiscontida dentro das barreirasautctones, mas inextricavel-mente definida pelo trficomultilnge, culturalmente h-brido, de idias, tecnologias epoderes, na esteira do expansi-onismo ocidental do sculoXIX" (Wang, David.Fin-de-si-cle splendor: repressed moder-nities of late Qing fiction, 1849-1911.Stanford, 1997: 5 e 19).

    (18) "Um fator essencial a mol-dar os romances de escritoresnativos da frica ocidental foi ofato de aparecerem depois deromances sobre a frica escri-tos por no-africanos. [...] osromances estrangeiros encar-nam elementos contra os quaisos escritores nativos tiveram dereagir quando se dispuseram aescrever" (Obiechina, Emma-nuel.Culture, tradition and so-ciety in the West African novelCambridge, 1975: 17). "O pri-meiro romance daomeano,Do-guicimi [...], interessantecomo um experimento que re-

    funde a literatura oral da fricadentro dos moldes do romancefrancs" (Irele, Abiola.The Afri-can experience in literatureand ideology. Bloomington,1990:147). "Foi a racionalidadedo realismo que pareceu ade-quada tarefa de forjar umaidentidade nacional no contex-to das realidades globais [. ..], o

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    indcios para refletir sobre a relao entre mercados e formas; e ento, semsaber direito o que estava fazendo, comecei a tratar o insightde Jamesoncomo se fosse sempre se deve ter cuidado com tais asseres, masrealmente no h outro modo de diz-lo como se fosse uma lei deevoluo literria: em culturas que integram a periferia do sistema literrio

    (ou seja, quase todas as culturas, dentro e fora da Europa) o romancemoderno desponta no como um desenvolvimento autnomo, mas comouma conciliao entre uma influncia formal ocidental (em geral francesaou inglesa) e matrias locais.

    A primeira idia expandiu-se num pequeno feixe de normas10 , e tudoera muito interessante, mas no passava ainda de uma idia, uma conjeturaque tinha de ser testada, possivelmente em grande escala, e decidi assimseguir a onda de difuso do romance moderno (grosso modo, de 1750 a1950) nas pginas da histria literria. Gasperetti e Goscilo sobre a Europaoriental do final do sculo XVIII11; Toschi e Mart-Lpez sobre a Europameridional do incio do sculo XIX12; Franco e Sommer sobre a AmricaLatina de meados do sculo XIX13; Frieden sobre os romances idiches dosanos 186014; Moosa, Said e Allen sobre os romances rabes dos anos 187015;Evin e Parla sobre os romances turcos dos mesmos anos16; Anderson sobreo filipino Noli me tangere, de 1887; Zhao e Wang sobre a fico Qing davirada do sculo17; Obiechina, Irele e Quayson sobre os romances da fricaocidental entre as dcadas de 1920 e 195018 (alm, claro, de Karatani,Miyoshi, Mukherjee, Even-Zohar e Schwarz).

    Quatro continentes, duzentos anos, mais de vinte estudos crticosindependentes, e todos concordavam: quando uma cultura ensaia movi-mentos na direo do romance moderno, sempre como uma conciliaoentre forma estrangeira e matrias locais. A "lei" de Jameson passara noteste19 no primeiro teste, pelo menos20 . E, na verdade, mais que isso:invertera completamente a tradicional explicao histrica desses assuntos;porque se a conciliao entre o estrangeiro e o local to ubqua, entoaquelas trilhas independentes que em geral so tidas como a regra daascenso do romance (os casos espanhol, francs e especialmente obritnico) bem, elas no so de modo algum a regra, so a exceo.

    Surgem primeiro, verdade, mas no so de modo algum tpicas. A "tpica"ascenso do romance Krasicki, Kemal, Rizal, Maran no Defoe.

    Experimentos com a histria

    Veja a beleza da distant reading somada literatura mundial: elasremam contra a mar da historiografia nacional. E o fazem na forma de um

    experimento. Define-se uma unidade de anlise (tal como aqui, a concili-ao formal)21, segue-se ento as suas metamorfoses numa variedade deambientes22 at, idealmente, toda a histria literria virar uma extensacadeia de experimentos afins; um "dilogo entre fato e fantasia", como o

    racionalismo do realismo dis-perso em textos to variadosquanto jornais, literaturaOnitsha de mercado e nos pri-meiros ttulos da Srie de Escri-tores Africanos que domina-vam os discursos do perodo"(Quayson, Ato.Strategic trans-

    formations in Nigerian writing.

    Bloomington, 1997: 162).(19) No seminrio em que pri-meiro apresentei essa crtica"de segunda mo", Sarah Gols-tein fez uma pergunta muitoboa, maneira de Cndido:"Voc decidiu confiar em ou-tro crtico. timo. Mas e se eleestiver errado?". Minha respos-ta: se ele estiver errado eutambm estarei, e logo ficareisabendo, porque no encon-trarei nenhuma corroborao em Goscilo, Mart-Lpez,Sommer, Ervin, Zhao, Irele...E no s isso: cedo ou tardetoparei com toda espcie defatos que serei incapaz de ex-plicar, e minha hiptese serfalseada e terei de descart-la.Felizmente, at agora esse nofoi o caso, e oinsightde Jame-son ainda perdura.

    (20) V l, eu confesso que, afim de testar a conjetura, aca-bei lendo alguns desses "pri-meiros romances" (Adventu-res..., de Krasicki, Little man,de Abramowitsch,Noli me tan-gere, de Rizal, Ukigumo, deFutabatei, Batouala, de RenMaran,Doguicimi,de Paul Ha-zoum). Esse tipo de "leitura",porm, no produz mais inter-pretaes, antes meramente astesta: no o comeo da em-preitada crtica, mas seu apn-dice. E, assim, j no se lpropriamente otexto,mas atra-vs do texto, cata da respecti-va unidade de anlise. A tarefa refreada desde o incio; uma leitura sem liberdade.

    (21) Para fins prticos, quantomaior o espao geogrfico quese quer estudar, menor deveser a unidade de anlise: umconceito (em nosso caso), umexpediente, um tropo , uma uni-

    dade narrativa limitada.

    (22) Como estabelecer umaamostra confivel quer di-zer, quais sries de literaturasnacionais e romances indivi-duais fornecem um teste satis-fatrio das previses de umateoria uma quest o, claro,bastante complexa. Neste es-boo preliminar, minha amos-tra (e sua justificao) deixammuito a desejar.

    (23) A pesquisa cientfica "co-mea como uma histria sobreum Mundo Possvel", prosse-

    gue Medawar, "e termina porser (o mximo que consegui-mos) uma histria sobre a vidareal" apud Bird, James. Thechanging world of geography(Oxford, 1993: 5). O prprio

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    chama Peter Medawar: "entre o que poderia ser verdadeiro e o que defato o caso"23. Palavras adequadas a esta pesquisa, no curso da qual, medida que eu lia meus colegas historiadores, se tornou claro que o

    encontro de formas ocidentais e realidade local produziu em toda parte, certo, uma conciliao estrutural como predizia a lei , mas tambmque a prpria conciliao assumia formas bastante diversas. Por vezes,especialmente na segunda metade do sculo XIX e na sia, ela costumouser bastante instvel24: um "programa impossvel", como Miyoshi diz doJapo25 . Outras vezes no foi assim: no incio e no fim da onda, porexemplo (Polnia, Itlia e Espanha num extremo, a frica ocidental nooutro), os historiadores descrevem romances que tiveram, certamente,seus prprios problemas mas no problemas emergentes do embate deelementos irreconciliveis26.

    Eu no esperava tamanho espectro de resultados; a princpio fiqueisurpreso, e s mais tarde percebi que essa era provavelmente a descobertamais valiosa de todas, por mostrar que a literatura mundial era mesmo umsistema mas um sistemade variaes. O sistema era uno, no uniforme.A presso do centro anglo-francs tentava deix-lo uniforme, mas jamaispoderia apagar de vez a realidade da diferena. (Notem, a propsito, comoo estudo da literatura mundial inevitavelmente um estudo da lutapela hegemonia simblica ao redor do mundo.) O sistema era uno, nouniforme. E, em retrospectiva, claro que assim havia de ser: se depois de

    1750 o romance aflora praticamente em toda parte como uma conciliaoentre modelos europeus ocidentais e a realidade local bem, a realidadelocal era diversa nas vrias paragens, assim como a influncia ocidental eratambm muito irregular: muito mais forte na Europa meridional por voltade 1800, para retomar meu exemplo, do que na frica ocidental por voltade 1940. As foras em jogo mudam constantemente, e assim tambm aconciliao resultante de sua interao. E isso, por sinal, abre um fantsticocampo de pesquisa morfologia comparada (o estudo sistemtico decomo as formas variam no espao e no tempo, que tambm a nica razo

    para manter o adjetivo "comparada" na literatura comparada) mas amorfologia comparada uma questo complexa, que merece um ensaioprprio.

    As formas como o abstrato de relaes sociais

    Permitam-me agora acrescentar algumas palavras sobre o termo

    "conciliao" com o qual me refiro a algo ligeiramente diverso do queJameson tinha em vista na sua Introduo a Karatani. Para ele, a relao fundamentalmente binria: "os modelos formais abstratos da construo doromance ocidental" e "o material cru da experincia social japonesa" forma e contedo, basicamente27 . Para mim, antes um tringulo: formaestrangeira, material local e forma local. Simplificando um pouco: enredo

    Bird oferece uma verso domodelo experimental.

    (24) Alm de Miyoshi e Karata-ni (para o Japo), Mukherjee(ndia) e Schwarz (Brasil), os

    paradoxos composicionais e ainstabilidade da conciliao for-mal so mencionados muitasvezes na literatura sobre osromances turco, chins e ra-be. Discutindo Intibah,de Na-mik Kemal, Evin (op. cit.: 68)adverte que "a fuso dos doistemas, um baseado na tradicio-nal vida familiar e o outro nosanseios de uma prostituta,constitui a primeira tentativana fico turca de alcanar umtipo de dimenso psicolgicaobservada nos romances euro-peus dentro de uma molduratemtica baseada na vida turca.

    Contudo, seja pela incompati-bilidade dos temas, seja peladiferena no grau de nfasedepositada em cada um, a uni-dade do romance prejudica-da. Os defeitos estruturais deIntibah so sintomticos dasdiferenas entre a metodologiae as preocupaes da tradioliterria turca, de um lado, e,de outro, as do romance euro-peu". Parla (op. cit.), ao avaliaro perodo Tanzimat, bate namesma tecla: "Atrs do pendorpela renovao havia a domi-nante e dominadora ideologiaotomana, que refundia as no-vas idias num molde adequa-do sociedade otomana. Omolde, contudo, devia conterduas epistemologias diversas,fundadas em axiomas irrecon-ciliveis. Era inevitvel que essemolde se rompesse, e a litera-tura, de um modo ou de outro,reflete as rupturas". Em suadiscusso do romance Zaynab(1913), de Husayn Haykal,Allen (op. cit.: 34) faz eco aSchwarz e Mukherjee: " bemfcil apontar aqui os proble-mas de falcia psicolgicaqua ndo Hamid, o estudante doCairo familiarizado com obrasocidentais sobre liberdade e

    justia, tais como as de JohnStuart Mill e Herbert Spencer,passa a discutir em to elevadoplano a questo do casamentona sociedade egpcia com osseus pais, que sempre viveramimersos na zona rural". Zhao(op. cit.: 69-70) enfatiza no pr-prio ttulo, Theuneasy narra-tor [onarradorincmodo] eatente na esplndida discussosobre incomodidade que abreo livro , as complicaes ge-radas pelo encontro de enre-dos ocidentais e narrativa chi-nesa: "Um trao saliente dafico Qing tardia a maior

    freqncia de intruses narra-tivas que em qualquer perodoanterior da fico vernculachinesa [...]. A enorme quanti-dade de instrues tentandoexplicar as tcnicas recm-ado-tadas trai o incmodo do nar-rador em relao instabilida-de de seu status. [...] o narra-

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    estrangeiro,personagens locais e ainda voz narrativa local: e precisamen-te nessa terceira dimenso que esses romances parecem ser mais instveis mais incmodos, como diz Zhao acerca do narrador Qing tardio. O quefaz sentido: o narrador o plo de comentrio, de explicao, de avaliao,e quando os "modelos formais" estrangeiros (ou a efetiva presena

    estrangeira, nesse particular) fazem os personagens agir de maneiraestranha (como Bunzo ou Ibarra ou Brs Cubas), ento claro que ocomentrio fica incmodo prolixo, caprichoso, desgovernado.

    "Interferncias", designa-as Even-Zohar literaturas poderosas tornan-do a vida difcil para os outros tornando a estrutura difcil. E Schwarz:

    passando a pressuposto sociolgico uma parte das condies histricas

    originais reaparece, com sua mesma lgica, mas agora no plano da

    fico e como resultado formal. Neste sentido, formas so o abstrato de

    relaes sociais determinadas

    28

    .

    Sim, e em nosso caso as condies histricas reaparecem como umaespcie de "fissura" na forma, como uma falha geolgica que divide histriae discurso, mundo e viso de mundo: o mundo corre na estranha direoditada por um poder externo; a viso de mundo tenta assimilar esse fato ea todo instante perde o equilbrio. Como a voz de Rizal (oscilando entre omelodrama catlico e o sarcasmo iluminista29), ou a de Futabatei (pegaentre o comportamento "russo" de Bunzo e a audincia japonesa inscrita notexto), ou o narrador hipertrfico de Zhao, que perdeu completamente o

    controle do enredo, mas ainda assim tenta domin-lo a todo custo. a issoque se referia Schwarz com "dvida externa" que se torna "complicadafigura" do texto: a presena estrangeira "interfere" no prprio ato deexpressodo romance30 . O sistema literrio uno e desigual no aqui umasimples rede externa, no permaneceforado texto: est bem aninhado emsua forma.

    Arvores, ondas e histria cultural

    Formas so o abstrato de relaes sociais. Assim, a anlise formal ,a seu modesto modo, uma anlise do poder. (Eis por que a morfologiacomparada um campo to fascinante: ao estudar como as formas variam,descobre-se como o podersimblico varia de lugar para lugar.) Alis, oformalismo sociolgico sempre foi meu mtodo interpretativo, e o julgoparticularmente apropriado literatura mundial... Mas, infelizmente, nesseponto sou obrigado a cessar, pois a cessa a minha competncia. Uma vez

    tenha ficado claro que a varivel-chave do experimento era a voz narrativa,bem, uma genuna anlise formal estava fora de meus limites, por exigiruma competncia lingstica com a qual sequer sonharia (francs, ingls,espanhol, russo, japons, chins e portugus, s para o ncleo do

    dor sente a ameaa da diversi-ficao interpretativa [...], co-mentrios morais tornam-semais tendenciosos para fazeros julgamentos inequvocos", es vezes a tendncia ao exage-ro narrativo to esmagadoraque um escritor pode sacrificaro suspense narrativo "para

    mostrar que moralmente im-pecvel".

    (25) Mesmo as tradues deromances europeus passarampor toda sorte de cambalhotas.No Jap o, em 1880, a traduode A noiva de Lammermoorapareceu com o ttulo Shumpu

    jowa (Histria de amor brisaprimaveril), e o tradutor "nodeixava de amputar o textooriginal quando o material serevelava imprprio a seu p-blico, ou de converter as ima-gens de Scott em expressesque correspondiam mais deperto linguagem da literatura

    japonesa tradicional" (Ryan,Marleigh. "Commentary" aUki-gumo, de Futabatei Shimei.Nova York, 1967: 41-42). Nomundo rabe, "os tradutoresde fico ocidental tomavamamplas e por vezes injustifica-das liberdades com o texto ori-ginal de uma obra. Yaqub Sar-ruf no somente alterou o ttu-lo do Talisman de Scott paraQalb al-Asad wa Salah al-Din(O Corao de Leo e Saladi-no), mas tambm admitiu tertomado a liberdade de omitir,acrescentar e mudar partes des-sa aventura romanesca para

    convir ao que julgava ser ogosto de seu pblico. Outrostradutores mudaram ttulos,nomes de personagens e en-trechos a fim de, alegavam,tornar a obra traduzida maisaceitvel a seus leitores e maisconforme tradio literrianativa" (Moosa, op. cit.: 106).O mesmo modelo geral valepara a literatura Qing tardia, naqual "as tradues eram quasesem exceo adulteradas. [...]o modo mais srio de adulterarera parafrasear o conjunto doromance para torn-lo uma his-tria com personagens chine-

    ses e pano de fundo chins[...]. Quase todas as traduessofriam cortes [...], os roman-ces ocidentais ficavam esque-mticos e ligeiros, mais pareci-dos com a fico tradicionalchinesa" (Zhao, op. cit.: 229).

    (26) Por que essa diferena?Provavelmente porque na Eu-ropa meridional a onda de tra-dues francesas deparou-secom uma realidade local e tra-dies narrativas locais no todiferentes assim, de modo quea combinao de forma estran-geira e matria local se revelousimples. Na frica ocidental,situao oposta: embora osprprios romancistas tivessemsido influenciados pela litera-tura ocidental, a onda de tra-dues fora muito mais fraca e

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    CONJETURAS SOBRE A LITERATURA MUNDIAL

    argumento). E provavelmente, seja qual for o objeto de anlise, semprehaver um ponto em que o estudo da literatura mundial ter de ceder opasso a especialistas da literatura nacional, numa espcie de diviso dotrabalho csmica e inevitvel. Inevitvel no s por razes prticas, mastericas. Este um longo assunto, mas me permitam ao menos esboar oseu contorno.

    Ao analisarem a cultura em escala mundial (ou numa larga escala, queseja), os historiadores tendem a usar duas metforas cognitivas: a rvore ea onda. A rvore, a rvore filogentica derivada de Darwin, era a ferramentada filologia comparada: famlias lingsticas ramificando-se umas das outras a eslavo-germnica da indo-ariano-greco-talo-cltica, depois a bltico-eslava da germnica, depois a lituana da eslava. E esse tipo de rvorepermitiu filologia comparada solucionar aquele grande quebra-cabea

    que foi talvez o primeiro sistema-mundo da cultura: o indo-europeu, umafamlia de lnguas espraiando-se da ndia Irlanda (e talvez no s lnguas:tambm um repertrio cultural comum; mas aqui os indcios so sabida-mente mais tnues). A outra metfora, a onda, foi usada tambm nalingstica histrica (como na "hiptese-onda" de Schmidt, que explicavacertas imbricaes entre as lnguas), mas desempenhou seu papel igual-mente em vrios outros campos: no estudo da difuso tecnolgica, porexemplo, ou na fantstica teoria interdisciplinar da "onda de avano" deCavalli-Sforza e Ammerman (um geneticista e um arquelogo), que explica

    como a agricultura irradiou-se do Crescente Frtil no Oriente Mdio rumoa noroeste e depois pela Europa afora.

    Ora, rvores e ondas so, ambas, metforas mas afora isso no tmabsolutamente nada em comum. A rvore descreve a passagem da unidade diversidade: uma rvore com muitos ramos, do indo-europeu a dzias delnguas diversas. A onda o oposto: observa uniformidade abarcando umadiversidade inicial; filmes de Hollywood conquistando um mercado apsoutro (ou o ingls tragando uma lngua aps outra). As rvores precisam dedescontinuidade geogrfica (para se ramificarem umas das outras, as

    lnguas tm primeiro de estar separadas no espao, a exemplo das espciesanimais); as ondas no gostam de barreiras e prosperam na continuidadegeogrfica (do ponto de vista de uma onda, o mundo ideal um lago).rvores e ramos so aquilo a que se apegam os Estados-nao; ondas soo que os mercados fazem. E assim por diante. Nada em comum entre asduas metforas. Masambas funcionam.A histria cultural feita de rvorese ondas a onda do avano agrcola sustentando a rvore das lnguasindo-europias, que varrida ento por novas ondas de contato lingsticoe cultural... E medida que o mundo oscila entre os dois mecanismos, seusprodutos so inevitavelmente heterogneos. Conciliaes, como na lei de

    Jameson. por isso que a lei funciona: porque capta intuitivamente ainterseo dos dois mecanismos. Pensem no romance moderno: certamen-te uma onda (e, de fato, chamei-o de onda algumas vezes) mas uma ondaque se choca com os ramos das tradies locais31e sempre consideravel-mente transformada por eles.

    as convenes narrativas lo-cais eram extremamente diver-sas das europias (pensem ape-nas na oralidade); como o de-sejo pela "tecnologia estran-geira" fosse relativamente bran-

    do alm de desencorajado, claro, pelas polticas antico-loniais dos anos 1950 , asconvenes locais podiam de-sempenhar seu papel relativa-mente imperturbadas. Obiechi-na e Quayson enfatizam a rela-o polmica d os primeiros ro-mances da frica ocidentalvis--vis a narrativa europia: "Adiferena mais notvel entre osromances de africanos ociden-tais nativos e os de no-nativosque usavam o cenrio da fri-ca ocidental a importanteposio que a representaoda tradio oral recebe daque-les e sua quase total ausncianestes" (Obiechina, op. cit.: 25);"A continuidade na formaoliterria estratgica que identi-ficamos mais bem definidaem termos da contnua afirma-o da mitopia, e no do rea-lismo, para a definio da iden-tidade [...]. Que isso derive deuma oposio conceitual aoque se percebe como uma for-ma ocidental de realismo dif-cil de pr em dvida. (...) naobra de grandes escritores afri-cano s (...) o movimento de seustrabalhos foi de registros derepresentao realista para osde experimentao mitopica"

    (Quayson, op. cit.: 164).

    (27) O mesmo argumento sus-tentado por Antonio Candido("Literatura e subdesenvolvi-mento". In: A educao pelanoite & outros ensaios.So Pau-lo: tica, 1989: 151-152): "Ja-mais criamos [as literaturas lati-no-americanas] quadros origi-nais de expresso, nem tcni-cas expressivas bsicas, no sen-tido em que o so o Romantis-mo, no plano das tendncias; oromance psicolgico, no planodos gneros; o estilo indiretolivre, no da escrita. (...) nunca

    se viu os diversos nativismoscontestarem o uso dasformasimportadas (...) o que requeri-am era a escolha de temasno-vos, de sentimentosdiferentes".

    (28) Schwarz, op. cit.: 51.

    (29) A soluo de Rizal, ou afalta dela, tambm pode estarrelacionada a seu espectro so-cial extraordinariamente amplo(Noli me tangere, entre outrascoisas, o texto que inspirouBenedict Anderson a vincularo romance e o Estado-nao):numa nao sem independn-

    cia, com uma classe dominantemal-definida, sem lngua co-mum e centenas de persona-gens dspares, difcil falar"pelo todo", e a voz narrativaverga sob o esforo.

    (30) Em alguns poucos casosfelizes a fraqueza estrutural

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    Esta, pois, a base para a diviso de trabalho entre literatura nacionale mundial: literatura nacional para pessoas que vem rvores; literaturamundial para pessoas que vem ondas. Diviso de trabalho... e desafio;porque ambas as metforas funcionam, verdade, mas isso no significaque funcionem igualmente bem. Os produtos da histria cultural so

    sempre heterogneos: mas qual o mecanismo dominante em sua compo-sio? O interno ou o externo? A nao ou o mundo? A rvore ou a onda?No h modo de solucionar essa controvrsia de uma vez por todas felizmente. Porque os comparatistas precisam de controvrsia. Sempreforam tmidos demais na presena de literaturas nacionais, diplomticosdemais: como se houvesse uma literatura inglesa, americana, alem e naporta ao lado, uma espcie de pequeno universo paralelo onde compara-tistas estudassem um segundo grupo de literaturas, tentando no perturbaro primeiro grupo. No: o universo o mesmo, as literaturas so as mesmas,apenas as olhamos de um ponto de vista diverso; e a pessoa vira umcomparatista por uma razo bem simples: porque est convencida de queesse ponto de vista melhor.Tem um poder explicativo maior, conceitu-almente mais elegante, evita aquela feia "unilateralidade e obtusidade", oque for. A questo que no h outra justificativa para o estudo da literaturamundial (e para a existncia dos departamentos de literatura comparada)seno esta: ser uma pedra no sapato, um permanente desafio intelectual sliteraturas nacionais especialmente literatura local. Se a literaturacomparada no for isso, no nada. Nada. "No se iluda", escreve Stendhala respeito de seu personagem favorito: "para voc no h um caminho

    intermedirio." O mesmo vale para ns.

    pode virar uma fora, tal comona interpretao que Schwarzfaz de Machado, em que a"volubilidade" do narrador tor-na-se "a estilizao de uma con-duta de classe dominante bra-sileira"; no mais uma falha,mas a prpria inteno do ro-mance (Schwarz, Roberto. Um

    mestre na periferia do capita-lismo. So Paulo: Duas Cida-des, 1990).

    (31) "Processos de enxerto",chama-os Miyoshi; Schwarzfala da "imigrao" ["implan-tation", na traduo inglesa]do romance, particularmentede seu veiorealista", e Wang de"transplantaras tipologias nar-rativas ocidentais". E Belinsky,alis, j descrevera em 1843 aliteratura russa como de "cres-cimento transplantado em vezde autctone".

    Recebido para publicao em22 de setembro de 2000.

    Franco Moretti professor deLiteratura Inglesa na Universi-dade de Stanford.

    Novos EstudosC E B R A P

    N. 58 , novembro 2000

    pp. 173-181

    NOVEMBRO DE 2000 181

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    estudos em

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