CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL DÁMASO RUIZ … · 2012-04-03 · versão do Acto de Paris de 24 de...
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RICORDI
CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL DÁMASO RUIZ-JARABO COLOMER
apresentadas em 28 de Fevereiro de 2002 1
Introdução
1. A presente questão prejudicial pretende resolver a questão de saber se as disposições dos Tratados e, em especial, a proibição de discriminação baseada na nacionalidade podem ser invocadas por — ou melhor, a favor de — uma pessoa falecida mais de trinta antes de ser instituída a Comunidade Europeia. Esta síntese, bastante simplista, tem a vantagem de chamar a atenção para as especificidades do regime jurídico dos direitos artísticos ou de criação intelectual. Quis-se reduzir a volatilidade típica destas construções do direito, na falta de harmonização legislativa internacional, atribuindo-se — de certo modo — a essas obras uma nacionalidade que coincide, em geral, com a do seu autor.
Enquadramento jurídico
Direito nacional
2. No momento em que surgiu o litígio principal, a criação artística e intelectual estava protegida na Alemanha pela Gesetz über Urheberrecht und verwandte Schutzrechte [lei relativa aos direitos de autor e direitos conexos, (Urheberrechtsgesetz) a seguir «UrhG»], na versão de 1965 2. Este diploma distinguia entre a protecção dada às obras de cidadãos alemães e a concedida a autores estrangeiros.
3. Enquanto os primeiros beneficiavam de protecção, nos termos do regime alemão, relativamente a todas as suas obras, divulgadas ou não, independentemente do lugar da sua primeira publicação (§ 120, primeiro parágrafo, da UrhG) os segundos só acediam a este privilégio quanto às obras que tivessem aparecido, pela primeira vez 3, no mercado alemão (§ 121, primeiro parágrafo, da UrhG).
1 — Língua original: espanhol.
2 — Bundesgesetzblatt 1965 I, p. 1273. 3 — Ou no prazo de trinta dias a partir do seu primeiro
aparecimento.
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Quanto às restantes obras, os autores estrangeiros tinham os seus direitos protegidos pelas disposições dos tratados internacionais.
4. A protecção concedida aos cidadãos alemães expira decorridos 70 anos sobre a morte do autor, contados a partir de 1 de Janeiro seguinte (§§ 64 e 69 da UrhG).
5. No direito italiano, nos termos do artigo 25.° da Lei de 22 de Abril de 1944 4
e do artigo 1.° do Decreto legislativo de 20 de Julho de 1945 5, os direitos de autor prolongavam-se até 56 anos depois do falecimento.
Direito internacional
6. O principal acordo internacional em matéria de protecção dos direitos de autor é a Convenção de Berna para a protecção das obras literárias e artísticas, de 9 de Setembro de 1886, aplicável aos autos na versão do Acto de Paris de 24 de Julho de 1971, com a revisão de 28 de Setembro de 1979 (a seguir «Convenção de Berna»).
7. Nos termos do artigo 7.°, a protecção é concedida durante a vida do autor e cinquenta anos depois da sua morte (n.° 1), calculados a partir do dia 1 de Janeiro seguinte (n.° 5). As partes contratantes podem, no entanto, conceder prazos de protecção mais extensos (n.° 6).
Em todo o caso, o prazo de protecção será fixado pela lei do país em que esta for reclamada; no entanto, salvo se a legislação deste país dispuser de outro modo, a duração não excederá o prazo fixado pelo país de origem da obra (n.° 8). Este regime pode designar-se abreviadamente por «comparação de prazos de protecção».
A legislação alemã não «dispôs de outro modo» na acepção deste último número do artigo 7.° da Convenção de Berna.
8. As limitações permitidas por este número foram confirmadas pelo artigo 3.°, n.° 1, do Acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio (ADPIC) 6. Este acordo prevê igualmente que os Estados
4 — Gazzetta ufficiale della Republica italiana (GURI) n.° 166, de 16 de Julho de 1941.
5 — GURI n.° 98, de 16 de Agosto de 1945.
6 — Anexo do acordo que estabelece a Organização Mundial do Comércio, assinado em Marráquexe em 15 de Abril de 1994 e aprovado pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986/1994) (JO L 336, p. 1).
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signatários observem o disposto nos artigos 1.° a 21.° da Convenção de Berna (artigo 9.°).
Direito comunitário
Proibição de discriminação em razão da nacionalidade
9. O artigo 12.° CE (ex-artigo 6.° do Tratado CE) determina, no primeiro parágrafo, que:
«No âmbito de aplicação do presente Tratado, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade».
Harmonização da protecção dos direitos de autor
10. Em 29 de Outubro de 1993, o Conselho adoptou a Directiva 93/98/CEE, relativa à harmonização do prazo de protecção dos direitos de autor e de certos direitos
conexos (a seguir «Directiva 93/98») 7. Os Estados-Membros deviam, até 1 de Julho de 1995, adaptar o seu direito interno à directiva.
11. Nos termos do artigo 10.°, n.° 2, da directiva, os prazos de protecção previstos aplicam-se a todas as obras e produções protegidas por, pelo menos, um Estado--Membro, na data-limite de transposição.
12. As obras de Puccini não beneficiavam de protecção em nenhum dos Estados--Membros em 1 de Julho de 1995.
Matéria de facto de processo principal
13. A demandante no processo principal, G. Ricordi & Co. Bühnen- und Musikverlag GmbH (a seguir «Ricordi») faz parte de uma conhecida editora especializada na publicação de partituras musicais e livretos. É titular dos direitos de representação da ópera La Bohème do compositor italiano Giacomo Puccini, falecido em 1924.
7 — JO L 290, p. 9.
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14. La Bohème estreou no teatro Regio de Turim em 1 de Fevereiro de 1986, sob direcção musical de Arturo Toscanini. O livreto, escrito por Luigi Illica e Giuseppe Giacos, é baseado na novela de Henri Murger «Scènes de la vie de bohème», publicada em 1847 com grande aceitação. Esta obra inspirou também uma ópera de Leoncavallo com o mesmo título, encenada pela primeira vez em La Fenice de Veneza em 5 de Maio de 1897 8.
15. Apesar de ter sido um êxito desde as suas primeiras representações, La Bohème semeou a desconfiança numa parte da crítica, que duvidou do seu caracter perdurável 9, mas passou de triunfo em triunfo por todos os teatros do mundo. Thomas A. Edison não se enganou quando escreveu que «os homens morrem e os governos mudam, mas os cantos de La Bohème viverão para sempre» 10. Ernst Krause considera La Bohème, mistura intuitiva de espírito, paixão e cor, a obra-prima de Puccini 11 e sublinha a orquestração e a
grandiosa arte instrumental do compositor, que Verdi foi o primeiro a apreciar 12.
16. La Bohème foi representada depois da sua estreia em todo o mundo. Primeiro em Palermo, seguidamente em Manchester, na Hofoper de Berlim, em 1898 na Ópera Comique de Paris, no Liceo de Barcelona e no Teatro Príncipe Alfonso de Madrid, em 1900 no Metropolitan de Nova Yorque. Em 5 de Abril de 1925 converteu-se na última obra encenada no Teatro Real de Madrid, antes do seu encerramento, que perduraria até aos anos sessenta; naquele tempo cantaram Miguel Fleta e Matilde Ravenga, sob a direcção de Saco de Valle 13.
17. A difusão desta ópera 14 dá ideia da importância dos direitos de autor e das consequências económicas que pode ter a interpretação solicitada pelo órgãos jurisdicional nacional.
8 — Fraccaroli, A., em «Giacomo Puccini se confía e cuenta», ed. Ricordi, Buenos Aires, 1957, trad, de Nicolás Olivare, pp. 102 e 103, relata o encontro entre Puccini e Leoncavallo numa fria noite de Outono de 1983 na galeria De Cristofolis de Milão, onde ambos descobrem que estão a compor óperas sobre o mesmo tema. Leoncavallo precipitou-se à redacção do periódico Il Secolo para dar a primeira notícia sobre a sua Bohème. Puccini, aconselhado pelo seu editor Ricordi, fez a mesma coisa no Corriere della Sera.
9 — O crítico Carlos Bersezio escreveu em La Stampa, no dia seguinte à sua estreia que «La Bohème não é, do ponto de vista artistico, urna ópera conseguida. A mùsica e superficial, demasiado superficial não só nas partes briosas mas também nas partes dramáticas e passionais. Como não provoca impressões no ânimo do público, não deixará grandes vestígios na história do teatro lírico».
10 — Martínez, O.: «El sentido humano en la obra de Puccini», ed. Ricordi Americana, Buenos Aires, 1958, p. 127.
11 — Krause, E.: «Puccini», Ed. Alianza, Madrid, 1985, trad, de Jacob Mir Mercader, p. 72.
12 — Ibidem, pp. 89 e 90: La Bohème exige uma mão delicada, elástica e enérgica na hora de dirigir. De Sabato, Beecham, Serafin, Karajan, Solti, Maazel, Kleiber, Levine e Suitner marcaram algumas pautas a este respeito.
13 — Apesar de o Teatro Real não se ter voltado a dedicar à ópera até finais dos anos noventa, La Bohème foi encenada no Teatro de la Zarzuela em 1964, em 1967 com Pilar Lorengar e Gianni Raimondi, em 1970 com Mirella Freni, Luciano Pavarotti, María Orán e Giuseppe Tadei, sob a direcção de Nino Sanzogano, em 1974 também com Pavarotti, em 1980 com Ileana Cotrubas e José Carreras, e em 1986 com Plácido Domingo.
14 — Thomas Mann parece subjugado pela beleza do duo de amor do primeiro acto (O soave fanciulla), a que faz alusão o capítulo Ondas de Harmonia de «A montanha mágica», rererindo-se à melodia da frase «Dami il braccio, mia piccina».
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18. O Land de Hessen, demandado no processo principal, administra o Staatstheater (teatro do Estado) de Wiesbaden.
19. Nas temporadas 1993/1994 e 1994/1995, o Staatstheater de Wiesbaden ofereceu diversas representações da ópera La Bohème, de Giacomo Puccini, sem o consentimento da casa Ricordi.
20. Enquanto a Ricordi confiava em que as obras de Puccini continuavam a beneficiar de protecção na Alemanha até 31 de Dezembro de 1994, data em que expirava o período de setenta anos post mortem auctoris, resultante da aplicação não discriminatória da legislação interna (§ 120 e 121 da UrG) 15, o Land Hessen sustentava que, nos termos do artigo 7.° da Convenção de Berna, 16 La Bohème beneficiava apenas dos cinquenta e seis anos concedidos pelo direito italiano, pelo que a protecção tinha expirado em 31 de Dezembro de 1980.
21. Foi nestes termos que se desenvolveu o pedido apresentado pela Ricordi, julgado procedente pelo Landgericht, tribunal competente em primeira instância nos processos cíveis de valor elevado e quando está em causa a responsabilidade civil da administração.
22. Foi negado provimento ao recurso interposto pela demandada no órgão jurisdicional de recurso, o Oberlandesgericht de Frankfurt am Main.
23. O Land Hessen recorreu (Revision) então para o Bundesgerichtshof, recurso através do qual reiterava a sua pretensão de improcedência do pedido inicial.
Questão prejudicial
24. Nos trâmites deste último processo, a Primeira Secção Cível do Bundesgerichtshof decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça, em aplicação do artigo 234.° CE, primeiro e terceiro parágrafos, a seguinte questão prejudicial:
«A proibição de discriminação prevista no artigo 12.°, primeiro parágrafo, do Tratado CE, é aplicável no caso de o autor estrangeiro já ter falecido no momento em que o Tratado entrou em vigor no Estado do qual esse autor era nacional, quando, caso contrário, a aplicação do direito nacional teria como consequência uma discriminação em termos de prazo de protecção da obra do autor estrangeiro relativamente às obras de um autor nacional, igualmente falecido antes da entrada em vigor do Tratado?»
15 — V. n.° 3 supra. 16 — V. n.° 7 supra.
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Processo no Tribunal de Justiça e observações das partes
25. Intervieram no processo, além das partes no processo principal, o Governo da República Federal da Alemanha e a Comissão. O Land Hessen é o único que propõe que à questão seja dada resposta negativa.
26. Segundo o refendo Land, a desigualdade de tratamento que se verifica nos autos não resulta da nacionalidade do autor, mas da disparidade de regimes de protecção nacionais. A extensão da referida protecção só indirectamente está relacionada com a nacionalidade do autor.
27. Quanto ao resto, o Land entende que a proibição contida no ex-artigo 12.° do Tratado CE não é aplicável, pois tanto o primeiro aparecimento da obra como a morte do autor ocorreram antes da entrada em vigor do Tratado.
28. A Ricordi partilha da opinião do Governo alemão e da Comissão ao afirmar que a proibição de discriminação em razão da nacionalidade é igualmente extensiva aos efeitos de situações criadas antes da entrada em vigor do Tratado de Roma. Esta tese encontra apoio na jurisprudência do Tribunal de Justiça e na actividade legislativa do Conselho, com referência à
Directiva 93/98. Este texto consagrou o princípio da aplicação plena do artigo 12.° a situações cuja origem é anterior a 1958.
29. Além disso, segundo a Comissão, a legislação alemã é incompatível com o direito comunitário porquanto pressupõe uma discriminação indirecta em relação às pessoas a cargo do autor, que possuem, em geral, a mesma nacionalidade, como acontece com os sucessores.
Análise da questão prejudicial
30. Tanto o órgão jurisdicional de reenvio como os diferentes intervenientes partem da hipótese de que a aplicação do direito alemão a este caso pode implicar uma discriminação daquelas que são proibidas pelo artigo 12.°. Não obstante, vale a pena perguntar se não teria cabimento enquadrar o problema jurídico de maneira diferente.
31. Na medida em que, para definir o conteúdo dos direitos de autor se toma em consideração a pessoa do autor, pode alegar-se que um tratamento diferenciado não justificado objectivamente constitui uma forma de discriminação directa baseada na nacionalidade.
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32. Não é menos verdade que, neste processo, os direitos de autor são invocados por uma sociedade de nacionalidade alemã, uma vez que está constituída nos termos do direito daquele país. Não obstante a possibilidade de transmissão dos direitos de autor, poderia considerar-se que o tratamento diferente que lhes reserva o direito alemão constitui uma discriminação indirecta ligada à nacionalidade, pois, estatisticamente, afecta muitos mais estrangeiros comunitários do que nacionais.
33. Por fim, cabe aprofundar a reflexão e colocar a questão de saber se é pertinente apreciar a distinção como um obstáculo à livre circulação de mercadorias ou serviços. Estas dúvidas surgem ao observar a natureza mista, pessoal e econômica ou patrimonial, fama e sorte dos direitos de autor 17. Neste caso, é necessário separar a possível sobreposição das restrições permitidas pelo artigo 30.° CE e a proibição de discriminação baseada na nacionalidade.
34. Não obstante, entendo que, no seu estado actual, a jurisprudência do Tribunal de Justiça torna supérfluo este tipo de interrogações, podendo abordar-se a questão de mérito directamente.
35. O ponto de partida da análise da aplicação da proibição contida no artigo 12.° CE às peculiaridades dos direitos de autor é constituído, conforme reconhece o conjunto dos intervenientes, o acórdão de 20 de Outubro de 1993, Phil Collins e outros 18.
36. Nos litígios que estiveram na base dessa decisão prejudicial discutia-se a aplicação de outras disposições da mesma lei alemã que está no centro dos presentes autos. Tratava-se aí de averiguar se o direito comunitário podia tolerar que, num Estado-Membro, fosse reconhecida a um autor nacional a possibilidade de proibir a comercialização da gravação, feita sem o seu consentimento, de um espectáculo que se tinha realizado no estrangeiro, recu-sando-a, nas mesmas condições, a um autor de outro Estado-Membro.
37. Antes de responder com precisão a esta questão, o Tribunal de Justiça examinou, em geral, se os direitos de autor e os direitos conexos estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do Tratado para efeitos do então artigo 7.°, primeiro parágrafo, que equivale ao mesmo parágrafo do actual artigo 12.° CE.
38. O raciocínio seguido pelo juiz europeu é convincente pela sua simplicidade. Sem
17 — De Gaulle, L. e o.: Droit d'auteur et limits voisins, edições Francis Lefebvre, Levallois, 1996, pp. 35 e sgs.
18 — Processos apensos C-92/92 e C-326/92, Colect., p. I-5145 (a seguir «acórdão Phil Collins»).
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deixar de reconhecer a falta de harmonização na matéria e a competência legislativa nacional que dela resulta, o Tribunal de Justiça sublinhou a natureza essencialmente econômica dos direitos de autor, na medida em que a sua exploração comercial constitui uma fonte de receitas para o seu titular. Por este motivo, tais direitos, ainda que regulados pelas legislações nacionais, continuam sujeitos às exigências do tratado e, portanto, estão incluídos no seu âmbito de aplicação.
39. Os direitos de autor, sempre segundo o mesmo acórdão, tal como as demais formas de direitos exclusivos atribuídos pela propriedade literária e artística, podem afectar as trocas comerciais de bens e serviços, bem como as relações de concorrência no interior da Comunidade. Estão, portanto, sujeitos ao disposto nos artigos 28.° CE e 30.° CE, relativos à livre circulação de mercadorias 19, ou ao preceituado nos artigos 49.° CE e 55.° CE, quanto às prestações de serviços por parte de sociedades de gestão desses direitos 20 e, finalmente, às normas comunitárias sobre a concorrência 21.
40. Do conjunto das considerações precedentes pôde o Tribunal de Justiça deduzir que os direitos de autor que, pelos seus
efeitos sobre as trocas comerciais intracomunitárias de bens e serviços, estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do Tratado «estão forçosamente abrangidos, mesmo sem ser necessário conjugá-los com as disposições específicas dos artigos [28.° CE, 30.° CE, 49.° CE e 55° CE] pelo princípio geral de não discriminação previsto no primeiro parágrafo do artigo [12.° CE]» 22.
41. Esta importante declaração, em termos altamente categóricos e incondicionais, deve servir para resolver as dúvidas que assaltam actualmente o Bundesgerichtshof.
42. O elemento que distingue o presente processo da anterior jurisprudência citada é que, diversamente dos cidadãos britânicos Phil Collins e Cliff Richard, Giacomo Puccini tinha falecido há décadas quando entrou em vigor, em 1 de Janeiro de 1958, o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia e a proibição de discriminação baseada na nacionalidade. Há que analisar se esta circunstância é suficiente para conduzir a uma solução diferente da exposta.
43. Desde já afirmo que não o creio. Para que isso acontecesse deveria ler-se na proibição contida no artigo 12.° CE uma 19 — Acórdão de 20 de Janeiro de 1981, Musik-Vertrieb
membran (55/80 e 57/80, Recueil, p. 147, n.° 8). 20 — Acórdão de 2 de Março de 1983, GVL/Comissão (7/82,
Recueil, p. 483, n.° 39). 21 — Acórdão de 8 de Junho de 1971, Deutsche Grammophon
(78/70, Recueil, p. 487, n.° 10). 22 — Acórdão Phil Collins, já referido, n.° 27.
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exigência prévia de um sujeito com capacidade para a invocar. Esta necessidade não se pode deduzir da própria disposição nem da jurisprudência do Tribunal de Justiça nem, ainda menos, do espírito que anima os Tratados.
44. No artigo 12.° CE, no primeiro parágrafo, afirma-se em termos especialmente absolutos: é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade.
45. Quer isto dizer que, a menos que seja objectivamente justificada e proporcional ao fim prosseguido, qualquer desigualdade de tratamento que assente fundamentalmente no critério da nacionalidade é contrária ao Tratado, independentemente de a mesma ser invocada pela pessoa que sofre o prejuízo ou por qualquer outra que demonstre um interesse legítimo.
46. O estabelecimento de um mercado único pressupõe, não só que se reconheçam aos nacionais de um Estado-Membro o direito de exercer qualquer forma legítima de actividade económica noutro Estado--Membro nas mesmas condições que os nacionais deste último Estado, mas também o abandono puro e simples, nos domínios abrangidos pelo Tratado, da nacionalidade enquanto critério legítimo para dotar de
conteúdo jurídico as relações económicas e regular o seu desenvolvimento. Esta é, a meu ver, a mais-valia primordial que representa o artigo 12.° CE em relação a tantas outras disposições do Tratado que têm um objecto similar.
47. É importante ressaltar que o afastamento do critério da nacionalidade se produz por força directa da proibição contida no artigo 12.° CE. Por outras palavras, não é necessário recorrer à comprovação estatística ou à apreciação probabilística que exige a discriminação indirecta. Mais: não cabe afirmar que a legislação alemã em questão possa incluir a definição que o Tribunal de Justiça deu desse conceito. Com efeito, a discriminação directa refere-se às desigualdades de tratamento encobertas que, aplicando critérios de diferenciação distintos da nacionalidade, conduzem, de facto, ao mesmo resultado 23. Não é este o caso, uma vez que a desvantagem se liga à nacionalidade 24.
Assim, uma disposição de um Estado--Membro que limite o gozo de um determinado direito económico aos nacionais será directamente contrária ao artigo 12.° CE.
23 — V., nomeadamente, os acórdãos de 12 de Fevereiro de 1974, Sotgiu (152/73, Colect., p. 91, n.° 11), de 26 de Outubro de 1995, Comissão/Luxemburgo (C-151/94, Colect., p. 3685, n.° 14), e de 3 de Outubro de 2000, Ferlini (C-411/98, Colect., p. I-8081, n.° 57).
24 — Assim aconteceria se o regime de protecção fosse fixado cm função do país do aparecimento da obra pela primeira vez (lex primae publicationis), como acontecia no direito grego anterior à harmonização comunitária.
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Mas, de maneira idêntica o seria uma norma que, por exemplo, concedesse determinadas vantagens aos bisnetos de súbditos italianos ou aos pais de crianças dinamarquesas. Não é necessário averiguar se, estatisticamente, a maior parte dos bisnetos de italianos são italianos ou se os pais das crianças dinamarquesas são, em geral, dinamarqueses. A discriminação proibida tem a origem na própria escolha do ponto de conexão ilegítimo, sem que o elemento lesivo seja preponderante.
48. Esta tese encontra apoio, ainda que por omissão, na doutrina do Tribunal de Justiça.
49. Dos factos no processo C-326/92, um dos que viriam a dar lugar ao acórdão Phil Collins, já referido, infere-se que o artista cujos direitos se discutiam não era seu titular quando se produziu o litígio, pois tinha-os transmitido a uma sociedade britânica que, por sua vez, os tinha cedido a uma sociedade alemã.
Se tivesse prevalecido o conceito subjecti-vista da discriminação em razão da nacionalidade, o Tribunal de Justiça deveria ter explicado, ou que a discriminação directa consistia na redução das expectativas económicas da cessão dos direitos por parte do autor, resultante do pior tratamento que
lhe reservava o direito nacional, ou que existia uma discriminação indirecta, na medida em que, em termos percentuais, os cessionários de autores estrangeiros costumam ser também estrangeiros.
50. O Tribunal de Justiça não fez nem um nem outro, tendo-se limitado a ignorar esta circunstância, resolvendo do mesmo modo aquele processo e o processo C-92/92, no qual o directamente lesado era o próprio autor. 25 O juiz comunitário limitou-se a afirmar que a proibição de discriminação em razão da nacionalidade se opõe a que a legislação de um Estado-Membro exclua os autores dos restantes Estados-Membros e os seus sucessores do direito, reconhecido aos seus nacionais, de proibir a comercialização no território nacional de um fonograma fabricado sem o seu consentimento.
51. Das considerações anteriores deduz-se que o artigo 12.° CE, primeiro parágrafo, deve ser interpretado no sentido de que proíbe, por ser discriminatória, a tomada em consideração do critério da nacionalidade para definir — com desvantagem —
25 — Nas suas conclusões de 30 de Julho de 1993, o advogado-geral F. G. Jacobs debruçou-se especialmente sobre esta diferença nos factos. Deduziu que, quer a cessionária pagasse uma licença ao artista intérprete, quer não tivesse convencionado essa obrigação, o autor seria uma vítima indirecta de discriminação, uma vez que, de outra forma, a desigualdade de tratamento suporia uma diminuição do valor potencial dos seus direitos em relação com o cie um artista alemão.
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o conteúdo da uma relação jurídica com caracter econômico sujeita ao Tratado.
52. O Land Hessen mantém que a desigualdade de tratamento tem origem na disparidade legislativa existente entre os Estados-Membros e está relacionada com a nacionalidade do autor apenas de forma incidental.
A esta afirmação deve opor-se que a execução, na Alemanha, do mecanismo da comparação de prazos de protecção, previsto no artigo 7.°, n.° 8, da Convenção de Berna, não se limita a reproduzir, por remissão, as desigualdades decorrentes das diferenças legislativas estatais, antes prejudicando claramente os autores estrangeiros, cuja protecção não pode superar a concedida aos alemães e, no caso provável de a protecção reconhecida pelo seu Estado de origem ser inferior, será este prazo mais curto tornado em consideração. Supondo que o conjunto dos Estados-Membros aplicassem um regime semelhante, os autores alemães beneficiariam em cada Estado da protecção mais duradoura permitida na prática, ao passo que, na Alemanha, nenhum autor poderia aspirar a maior protecção. O efeito proteccionista da medida é manifesto.
53. Parece, pois, que, do ponto de vista da concepção objectivista da discriminação em razão da nacionalidade, que acabo de expor, o facto de a pessoa de referência,
diferente da vítima de discriminação, ter falecido ou não antes ou depois da entrada em vigor do Tratado, carece de relevância, uma vez que o único parâmetro em função do qual o tratamento desigual ser compatível com o direito comunitário é o de considerações objectivas, independentes da nacionalidade, proporcionadas para o fim legitimamente prosseguido.
54. Um ou outro interveniente debruçou-se sobre uma eventual justificação da medida discriminatória. A única explicação apresentada é que o regime do artigo 7.°, n.° 8, da Convenção de Berna, ao conceder uma protecção menos favorável com base na lei nacional do autor, fomenta o reforço dessa protecção por parte do legislador de cada Estado-Membro, o que é favorável aos interesses de todos os autores.
55. Esta razão, embora legítima no quadro de relações internacionais convencionais, não é admissível no seio de um projecto de integração como é o da União Europeia, caracterizado por uma obrigação de lealdade recíproca entre os Estados-Membros, o que se opõe a uma lógica de imposição regulamentar unilateral das opções legislativas nacionais. Com efeito, na falta de harmonização suficiente não se pode afirmar, sem mais, que o prazo de protecção de setenta anos, concedido na Alemanha, é naturalmente preferível ao prazo mais reduzido em vigor em Itália. Além do mais,
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os interesses dos autores não são os únicos em jogo.
56. Por razões similares, não se pode extrair argumentação válida do Acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio (ADPIC), que ratifica o método comparativo do artigo 7.°, n.° 8, da Convenção de Berna26. Esta Acordo também não se inscreve na lógica de integração e lealdade recíproca que caracterizam a Comunidade, podendo servir apenas face a Estados terceiros.
57. Finalmente, o Land Hessen faz referência à solução adoptada na Directiva 93/98, que harmoniza os prazos de protecção unicamente em relação a obras que estivessem protegidas pelo menos num Estado--Membro em 1 de Julho de 1995.
58. Além de que a directiva não adopta como critério a sobrevivência do autor no momento da entrada em vigor do Tratado de Roma — e que, atendendo à data escolhida, não serão raros os casos de obras que entram no âmbito temporal de aplicação da directiva, cujos autores não chegaram a ser cidadãos comunitários —, o que não permite configurar qualquer
modelo de interpretação quanto ao alcance da proibição contida no artigo 12.° CE, um texto de direito derivado não pode limitar a eficácia de uma disposição de direito originário e muito menos de um dos princípios que enformam o regime jurídico comunitário.
59. Na falta de qualquer outra possível justificação da medida discriminatória, a legislação nacional deve ser considerada contrária à ordem jurídica comunitária.
60. O facto de não ter havido audiência neste processo impediu-me de abordar o impacto de uma declaração do Tribunal de Justiça no sentido que proponho. O Tribunal de Justiça poderá, não obstante, ponderando os elementos de que disponha e, em especial, a aceitação geral, na época dos autos, do princípio de comparação de prazos nos Estados-Membros, 27 apreciar se concorrem suficientes considerações imperiosas de segurança jurídica para limitar os efeitos retroactivos da sua doutrina.
16 — V. n.° 8 supra.
27 — Todos os Estados-Membros já eram, na época, partes da Convenção de Berna e, pelo menos, os direitos alemão, austríaco, belga, dinamarquês, espanhol, finlandês, francês, italiano, irlandês e sueco conheciam o mecanismo da comparação de prazos.
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Conclusão
61. Todo em conta as considerações expostas, proponho ao Tribunal de Justiça que à questão prejudicial colocada pelo Bundesgerichtshof seja dada a seguinte resposta:
«Uma legislação nacional que leva a conceder menor protecção a uma obra literária ou artística em razão da nacionalidade do seu autor é contrária à proibição de discriminação em razão da nacionalidade contida no artigo 12.° CE, primeiro parágrafo.»
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