Comunicar a Justiça. Retórica e Argumentação (2013)

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EBOOK NOVEMBRO 2013 COMUNICAR A JUSTIÇA RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO PLANO DE FORMAÇÃO CONTÍNUA DE 2012-2013 Coleção de Formação Contínua

Transcript of Comunicar a Justiça. Retórica e Argumentação (2013)

  • EBOOK

    NOVEMBRO 2013

    COMUNICAR A JUSTIA RETRICA E ARGUMENTAO

    PLANO DE FORMAO CONTNUA DE 2012-2013

    Coleo de Formao Contnua

  • A presente publicao rene textos e comunicaes de

    duas aes de formao (Comunicar a Justia e

    Retrica e Argumentao), ambas realizadas no

    mbito do Plano de Formao Contnua 2012-2013. A

    sua complementaridade evidente, a qualidade das

    intervenes que nelas ocorreram, o interesse pblico

    da matria e a sua potencial utilidade no apenas para

    os iniciais destinatrios, mas para toda a comunidade

    jurdica, justificam que o Centro de Estudos Judicirios

    cumprindo os objetivos inscritos no Plano de

    Atividades 2013-2014 d corpo a mais um eBook da

    Coleo Formao Contnua.

  • Ficha Tcnica

    Nome:

    Comunicar a Justia (1 de fevereiro de 2013) Parceria com a Entidade Reguladora para

    a Comunicao Social

    Retrica e Argumentao (5 de julho de 2013) Colaborao do Teatro Nacional de So

    Carlos

    Categoria:

    Formao Contnua

    Conceo e organizao:

    Antnio Pedro Barbas Homem

    Colaborao:

    Gabinete dos Juzes Assessores do Supremo Tribunal de Justia Assessoria Cvel

    Intervenientes:

    Joana Marques Vidal (Procuradora Geral da Repblica)

    Antnio Pedro Barbas Homem (Diretor do Centro de Estudos Judicirios)

    Carlos Magno (Presidente da Entidade Reguladora para a Comunicao Social)

    Jos Antnio Henriques Santos Cabral (Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justia)

    Raquel Alexandra Brzida Castro (Vogal da Entidade Reguladora para a Comunicao

    Social)

    Manuel Tom Soares Gomes (Juiz Desembargador no Tribunal da Relao de Lisboa)

    Rui do Carmo (Procurador da Repblica)

    Paulo Ferreira da Cunha (Professor Catedrtico, Faculdade de Direito da Universidade

    do Porto)

    Hermenegildo Borges (Professor da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da

    Universidade Nova de Lisboa)

    Reviso final:

    Edgar Taborda Lopes

    Joana Caldeira

  • NDICE

    PARTE I COMUNICAR A JUSTIA ........................................................................................ 7

    Sesso de abertura ........................................................................................................................ 9

    Videogravao das intervenes do Diretor do CEJ e do Presidente da ERC ........................ 11

    Tribunais e Comunicao Social - Jos Antnio Henriques Santos Cabral .................................. 13

    Videogravao da comunicao ............................................................................................ 37

    Justia versus Comunicao Social - Raquel Alexandra Brzida Castro ....................................... 39

    Videogravao da comunicao ............................................................................................ 67

    Decises Judiciais: simplificar a escrita, comunicar melhor, ganhar eficcia - Manuel Tom

    Soares Gomes .............................................................................................................................. 69

    Videogravao da comunicao ............................................................................................ 98

    Comunicar com clareza e rigor. Informar respeitando os direitos pessoais - sublinhando alguns

    aspetos da atividade do Ministrio Pblico - Rui do Carmo ....................................................... 99

    Videogravao da comunicao .......................................................................................... 108

    Sesso de encerramento ........................................................................................................... 109

    Videogravao da interveno da PGR - Joana Marques Vidal ........................................... 110

    PARTE II - RETRICA E ARGUMENTAO .......................................................................... 112

    Natureza e Funo da Retrica Jurdica - Hermenegildo Ferreira Borges ................................. 114

    Videogravao da comunicao .......................................................................................... 129

    Tpicos jurdicos e no jurdicos na retrica do Direito - Paulo Ferreira da Cunha .................. 131

    Videogravao da comunicao .......................................................................................... 133

    DOSSIER DE FORMAO ................................................................................................... 135

    Estatutos e documentao relevante......................................................................... .138

    Dever de Reserva .........................................................................................................306

    Circulares .....................................................................................................................307

    - Conselho Superior da Magistratura ......................................................................... 308

    - Conselho Superior do Ministrio Pblico ................................................................ 319

    Deliberaes dos Conselhos Superiores ..................................................................... 320

    - Conselho Superior da Magistratura ......................................................................... 320

  • Acrdos .......................................................................................................... 321

    Atas do Plenrio .............................................................................................. 374

    - Conselho Superior do Ministrio Pblico ................................................................ 393

    Jurisprudncia do Supremo Tribunal de Justia (at 31 de janeiro de 2013) ........... 453

    Nota:

    Foi respeitada a opo dos autores na utilizao ou no do novo Acordo Ortogrfico

  • Registo das revises efetuadas ao e-book

    Identificao da verso Data de atualizao

    Verso inicial 11/11/2013

  • Parte I Comunicar a Justia

  • Sesso de abertura

    Interveno do Diretor do Centro de Estudos Judicirios (Antnio Pedro Barbas Homem)

    Interveno do Presidente da Entidade Reguladora para a Comunicao Social (Carlos Magno)

  • 11

    Videogravaes da sesso de abertura

    http://justicatv.pt/index.php?p=2175http://justicatv.pt/index.php?p=2176

  • Tribunais e Comunicao Social

    [Jos Antnio Henriques Santos Cabral]

  • 15

    Tribunais e Comunicao Social

    I.

    A1 compreenso da relao entre os rgos de comunicao social e a Justia ou, mais

    concretamente, os Tribunais implica a percepo dos momentos que marcaram tal dilogo no

    decurso das ltimas dcadas.

    Na verdade, foi longo o caminho percorrido desde Abril de 1974, assistindo-se ao

    nascimento de uma democracia de opinio, fundada na transparncia e visibilidade das

    instituies, a que acresceu o desenvolvimento, e a fora, de uma comunicao social na qual

    as televises privadas assumiram um papel preponderante, descobrindo a mais-valia que

    constitua no quotidiano o drama da Justia.

    Paralelamente, coexistem um novo tipo de jornalismo, o denominado jornalismo de

    investigao, e um interesse pblico focado nas coisas do direito. Media e Justia entreolham-

    se numa descoberta mtua de virtualidades, e de pressentimentos, sobre a utilidade que cada

    um pode assumir para o outro.

    O circo meditico comea, ento, a ensaiar os seus primeiros passos e das barras dos

    tribunais at s primeiras pginas dos jornais, passando pelos horrios nobres, apenas um

    passo e, pela primeira vez, as imagens em directo de um julgamento so transmitidas para

    todo o pas. Aparecem os primeiros grandes casos mediticos, prendendo a ateno dos

    espectadores que so agora confrontados com a notcia em directo duma realidade que lhes

    surge como um pedao da vida de todos os dias, e no como algo de abstracto situado num

    universo longnquo.

    O Direito torna-se um dos principais temas dos media e, numa sociedade que se afirma

    de Informao, o espao pblico constitui o lugar-comum para a partilha de ideias, crenas,

    opinies e emoes em linha directa com os acontecimentos sociais relevantes, formando uma

    importante opinio pblica.

    A mediao da comunicao social concede ao espectador a noo de que tambm ele

    est no domnio dos dados que lhe permitem fundamentar o seu prprio juzo sobre a justia

    do caso concreto e, por tal forma, avaliar como o Tribunal cumpriu o seu nus de legitimao.

    Os casos de judiciais so vividos pelo pblico no domnio das emoes, convices e

    preconceitos e, por vezes, muito para l do apelo da racionalidade.

    Os tribunais so agora confrontados com a necessidade de uma compreenso da

    comunidade perante o seu exerccio da jurisdio a qual, ultrapassando o mero obiter

    dictum, avalize os seus procedimentos.

    1 Conferncia apresentada no CEJ em 2 de Fevereiro de 2013.

  • 16

    Tribunais e Comunicao Social

    neste espao novo, e desconhecido, que se assiste ao aumento do interesse do

    cidado comum sobre as coisas do direito e, particularmente, do direito penal ou, como afirma

    Fernanda Palma, o Direito torna-se objecto privilegiado dos media e entra no quotidiano dos

    cidados, gerando uma relao nova, e emotiva, com os problemas da Justia.

    Entretanto, pela Europa, a ateno dos cidados chamada para investigaes com foco

    numa nova patologia do exerccio do poder, que invade o corao do Estado, tocando os

    detentores do poder poltico, e econmico, quantas vezes numa situao de duplicidade com a

    criminalidade organizada. Se a operao Mos Limpas o exemplo da investigao de

    criminalidade ligada ao prprio corao do Estado j Paolo Borselino e Giovanni Falcone

    tornam-se o modelo de uma nova gerao de juzes europeus.

    A imprensa teve, tambm, um papel fulcral nessa nova realidade e a proximidade

    existente ente media e Magistrados foi o pretexto para uma primeira reaco daqueles que j

    vislumbravam o perigo que para si constitua a conjugao de uma Magistratura dotada dos

    instrumentos adequados para a eficincia da investigao criminal e uma Imprensa

    independente e de qualidade. A imprecao de Alain Minc contra aquilo que denomina de

    Santa Trindade numa aluso a Magistrados, Jornalistas e Cidados informados no mais do

    que o assumir de dores daqueles para quem a sua responsabilizao criminal uma forma

    inadmissvel de constrico do poder poltico pelo poder judicial2.

    Na dcada de 1990 lenta, mas gradualmente, os sinais comeam a mudar, indicando um

    distanciamento e, muitas vezes, uma incompreenso entre os tempos da Justia, e os tempos

    da notcia; entre a transparncia, ou visibilidade, e o sensacionalismo, entre o exerccio de

    direitos fundamentais como o da presuno de inocncia e a defenestrao meditica na

    concretizao do que Heinrich Boll j anunciava na Honra Perdida de Katharina Blum.

    Paralelamente, a nossa sociedade inicia um processo de transformao que a marca

    indelevelmente. o tempo dos novos valores, da sua relatividade e dos valores ausentes e ,

    tambm, o tempo em que algumas conscincias so moldadas pelo clima de facilidade criado

    por correntes de dinheiro que, vindas da Europa, parecem no ter fim.

    2 Diz Alain Minc (Em Nome da Lei pag. 49) que na nova hierarquia dos poderes estabelecida pela democracia

    de opinio, ladeada pelo seu assessor, a imprensa, a justia j no ocupa a posio de um contra-poder

    poderoso; transformou-se no primeiro dos poderes. Perante a justia, que peso tem o seu nico rival, o poder

    executivo, uma vez que o legislativo se tornou uma simples cmara de registo da jurisprudncia? A

    legitimidade mudou de campo: doravante, pertence mais aos juzes do que aos polticos.

  • 17

    Tribunais e Comunicao Social

    O tecido social, e econmico, do pas altera os seus padres, e o bem-estar e o consumo

    so erigidos em regras de comportamento, remetendo para os arcanos a conscincia de que as

    sociedades se constroem com valores. este o tempo dos fundos europeus aplicados em

    objectivos dos quais apenas restam algumas infraestruturas ou em cursos de qualificao

    profissional que apenas tiveram o mrito de propiciar substanciais proventos aos seus

    proponentes mediante os to tpicos esquemas este o tempo em que, como hoje, por

    autnticos passes de magia, aparecem fortunas colossais de um dia para o outro sem que

    seja possvel descortinar uma origem legtima3.

    Na iluso da promessa de um progresso econmico, cujos fundamentos assentavam na

    areia, publicitavam-se apoios a fundo perdido e investimentos. Concedia-se crdito bancrio

    ao desbarato, incentivando-se o consumo e apresentando os smbolos de riqueza como

    critrio de sucesso.

    Refere, a propsito, Laborinho Lcio que o crdito bancrio, que a queda acentuada

    das taxas de juro colocava cada vez mais perto, constitua o pulmo por onde se inspirava

    facilidade. O consumo e as oportunidades confundiam-se, dando um novo sentido ao sonho da

    igualdade. Um hedonismo do curto prazo dispensava as arcaicas preocupaes com o futuro.

    Mandava-se comprar agora e pagar depois. Falava-se, mais do que se reflectia, sobre a

    globalizao4.

    No admira, assim, o aparecimento de uma nova criminalidade que, ao lado do catlogo

    clssico dos crimes contra pessoas e bens, veio adicionar uma criminalidade econmica de

    grande porte, interagindo com as prprias estruturas do Estado.

    Perante os novos desafios, lanados pela necessidade de enfrentamento de uma

    criminalidade complexa, o sistema judicirio permaneceu fechado, ligado a um imobilismo em

    que o positivismo interpretativo, ausente do espirito da norma, era compagnon de route de

    um, quantas vezes irrazovel, garantismo processual. Nessa impreparao para as novas

    realidades evidenciou-se o desfasamento entre a capacidade das estruturas judicirias, e de

    investigao, pr-existentes e os novos crimes de colarinho branco, situao que, a pouco e

    pouco, se tornou mais evidente para o cidado comum. Este comeou a ver, e com uma

    frequncia inquietante, o incio espectacular do processo conduzir ao seu progressivo

    3 Certamente ter nascido aqui a intensa antipatia de uma parte da classe politica pela figura do

    enriquecimento ilcito. 4 O julgamento pg. 305 e seg.

  • 18

    Tribunais e Comunicao Social

    definhamento e, muitas vezes, ao esquecimento5.

    Recorrendo novamente s palavras do mesmo Autor foi neste espao disfuncional.,

    que se fixou toda a discusso em volta da criminalidade econmica, com particular relevo para

    a corrupo, e onde, at hoje, no foi possvel encontrar o ponto exacto de concordncia

    prtica entre os contrrios em presena.

    Perante a opinio pblica moldada pelas notcias da comunicao social a incapacidade

    do sistema no era uma consequncia da necessidade da reforma estrutural mas uma

    incapacidade do sistema e dentro deste dos Magistrados 6.

    No deixa de ser elucidativa esta concluso de algum que, ento, esteve no palco do

    poder poltico, afirmando que, em dcadas de democracia, a questo da criminalidade

    econmica, e da exigncia de meios adequados para a enfrentar, nunca fez, verdadeiramente,

    parte da agenda poltica, remetendo-se a alteraes legislativas muitas vezes impostas pelas

    convenes internacionais7. Acrescentaremos que nunca fez e continua a no fazer.

    Apelando, tambm s palavras sentidas de Cunha Rodrigues A aco poltica

    propriamente dita fez-se, demasiadas vezes, por inaco. Este esprito permitiu, por exemplo,

    que a gesto de recursos humanos e materiais constitusse uma excelente forma de vigiar a

    reactividade e dosear a pr-actividade das instituies judicirias; que a tutela das polcias

    permitisse regular a malha da investigao; e que o positivismo legalista contivesse os

    magistrados nos trilhos tcnico-burocrticos que, alis, sempre tinham constitudo o seu

    habitat natural. O funcionamento da justia reflectiram uma opo poltica que no podia ser

    sem consequncias. Em particular, no domnio da criminalidade econmica, a capacidade das

    instituies judicirias no se consolidou. S mais tarde, com a crise global, se compreenderia

    que a desregulao no tinha sido apenas consequncia do postulado neoliberal. Constitura

    meio e oportunidade para destruir os circuitos virtuosos da banca, para potenciar a

    economia virtual e para familiarizar a vida poltica com condutas marginais que s

    tardiamente tinham sido criminalizadas e sobre as quais, em qualquer caso, eram parcos os

    conhecimentos sobre o modus operandi. Neste domnio, a primeira distribuio de fundos

    5 Tivemos agora noticia do arquivamento do inqurito pendente no DCIAP iniciado h 11 anos relativo

    responsabilidade penal do Presidente da Cmara da Amadora. 6 Ibidem 7 Momentos fundamentais do denominado combate corrupo foram a criao do DCIAP do Ministrio

    Publico; a transformao cosmtica da DCICCIEF da Policia Judiciria ou a extino da Alta Autoridade Para a

    Corrupo. Pela sua relevncia anotam-se ainda as centenas de conferncias, seminrios e colquios sobre

    o tema.

  • 19

    Tribunais e Comunicao Social

    comunitrios, a expanso da contratao pblica e o financiamento de partidos polticos

    representam historicamente momentos determinantes8.

    Falando deste tempo vem memria que, em 1990, comeou o chamado caso UGT,

    logo avocado pelo MP. O caso Partex comeou em 19919. O da Caixa Econmica Aoreana,

    iniciou-se em 1988 e s em 1996 se deduziu acusao. A par desses havia cerca de mais duas

    dezenas da mesma ndole, espalhados pelos DIAPs de Lisboa e Porto como o caso do Vale do

    Navio, comeado em 1987, do aeroporto de Macau, comeado em 1990 e o do Ministrio da

    Sade, comeado em 1989.

    A exposio meditica, para a qual os magistrados no estavam preparados, os

    incidentes do processo, e a morosidade do seu andamento, acabaram por vincar na opinio

    pblica uma dupla ideia negativa sobre os tribunais: que so ineficientes e que so refns dos

    desequilbrios entre a capacidade tcnica da defesa e da acusao10.

    A conjugao deste factores criou o clima favorvel para que a denominada crise da

    Justia entrasse no lxico comum e comeasse a ser um tema que, de tanto repetido, se

    comeou a aceitar como verdade irrefutvel sem carecer de demonstrao, arrastando tudo e

    todos. Criaram-se, ento, as condies necessrias para uma crise de legitimao que surge

    associada com o fenmeno to, ou mais grave, que a crise da autoridade dos Tribunais.

    Secundando esta perspectiva tambm Artur Costa refere que11 a segunda fase, depois

    de meados da dcada de 90, corresponde chamada crise da justia, a da descoberta, um

    pouco por toda a Europa, de que esta estava em crise. A estes casos veio juntar-se a

    8 Recados a Penlope pg. 105 e seg. 9 Notcia do Pblico de 15/01/2001: Tribunal de Instruo Criminal (TIC) de Lisboa deixou prescrever o caso

    Partex/Fundo Social Europeu (FSE), tendo o Conselho Superior da Magistratura (CSM) instaurado um

    processo ao juiz instrutor do caso, revelou fonte judicial Lusa. Segundo a mesma fonte, o caso Partex/FSE

    encontrava-se em fase de instruo no TIC de Lisboa desde 1997, tendo no decorrer da instruo sido

    destacados dois magistrados judiciais para despachar os outros processos que estavam afectos ao juiz do

    caso Partex. 10 Como refere Boaventura Sousa Santos (Viso de 17/12/2009 Justia: a dcada da visibilidade)

    Considerando que a criminalidade complexa, em especial, a criminalidade econmico-financeira, a

    corrupo, o trfico de influncias e o abuso do poder tm sido factores importantes na degradao da

    nossa vida colectiva, foroso concluir que o sistema judicial tem contribudo, por omisso, para este estado

    de coisas. extenso o rosrio de casos em que os tribunais se deixaram enredar de maneira inglria e com

    um desprezo total pela exigncia cidad de transparncia e justia: fundos sociais europeus, Partex, facturas

    falsas, Caixa Econmica Aoreana, JAE, Universidade Moderna, Caso da Mala, Freeport, Portucale, Operao

    Furaco, Apito Dourado, Somague. O que se conhece de casos mais recentes (Caso BCP, Caso BPN e Face

    Oculta) no nos sossega quanto ao seu destino. 11 Revista do Ministrio Pblico n. 107 Julho Setembro de 2006-Justia e Comunicao Social.

  • 20

    Tribunais e Comunicao Social

    exasperao dos conflitos entre magistraturas e outras corporaes da justia, como se j no

    bastassem os outros problemas que afectavam as instituies judicirias, todas elas

    procurando tirar proveito da situao pantanosa.

    A comunicao social foi um dos principais veculos da divulgao dessa crise, que

    passou a ser a crise por excelncia, remetendo para o limbo as outras crises12.

    Assim, pode-se afirmar que a caracterstica deste momento das relaes entre Tribunais

    e Comunicao foi, em primeiro lugar, o clima de intimidade (bem expressa nas noticias de

    primeira pagina do Jornal Independente) a que logo se seguiu o tempo da desconfiana mtua,

    alimentada por uma mediatizao da crise.

    Estamos agora num outro ciclo, surgido na ltima dcada, marcado por momentos em

    que a tenso institucional, usando a comunicao social como palco, atingiu as fronteiras do

    admissvel numa democracia consolidada.

    O processo Casa Pia foi o detonador de uma crise no s da Justia como, tambm,

    poltica, pois que para alguns membros desta classe os sinos tocaram a rebate perante o

    atrevimento judicirio, nomeadamente aquando da deteno, e posterior priso, de um

    destacado membro do Partido Socialista13.

    A partir da, e no domnio das relaes institucionais, ficou claro o nvel do apreo e a

    perspectiva que, para parte do poder politico, deveria animar as relaes com os tribunais: a

    alterao aos regimes de frias judiciais; subsistema de cuidados de sade; questes

    remuneratrias; conflitos entre as cpulas da magistratura judicial e do Ministrio Pblico

    sobre os poderes na conduo do processo judicial, em especial, na conduo da investigao

    criminal; conflitos dentro dos corpos profissionais, entre o Bastonrio da Ordem dos

    Advogados e respectivos Conselhos Distritais, entre a Associao Sindical de Juzes e o

    Conselho Superior da Magistratura, entre o Sindicato do Ministrio Pblico e a Procuradoria-

    Geral da Repblica, foram meros episdios de um mal-estar mais profundo.

    12 Segundo o mesmo autor este perodo coincide com o processo das FP 25 e o arrastamento do caso

    Otelo, o processo do sangue contaminado, as fraudes relacionadas com os subsdios do Fundo Social

    Europeu, os famosos arquivamentos desses e outros processos por prescrio, que tiveram na sua base um

    desajustamento entre a entrada em vigor do novo Cdigo de Processo Penal de 1987 e as alteraes

    introduzidas no Cdigo Penal pelo DL 48/95, de 15 de Maro. O caso foi to saliente que ultrapassou as

    fronteiras do nosso pas. O prestigiado dirio madrileno El Pas de 14 de Novembro de 1998, dedicou-lhe

    uma larga notcia, que intitulou: El Supremo portugus archiva los casos de corrupcion durante el Gobierno

    de Cavaco. 13 O acrdo do Supremo Tribunal de Justia de 22/03/2011 exemplar na apreciao dos factos e no

    enquadramento jurdico relativo situao em apreo.

  • 21

    Tribunais e Comunicao Social

    Tais conflitos institucionais aprofundaram as percepes negativas dos portugueses

    sobre o sistema judicial e minaram a sua legitimidade social.

    No universo do judicirio surgem, agora, com uma inusitada proficincia, os opinion

    makers, debitando anlises sobre o sistema de justia e, muitas vezes, julgando o julgamento.

    Ficam para Histria os artigos que, a propsito do processo Casa Pia, escreveram alguns

    dos mais conceituados comentadores. Para muitos aquele processo surgiu como a

    possibilidade de um caso Dreyfus escala domstica no qual, ao fim e ao cabo, o que

    interessava no era saber o que realmente aconteceu, mas o que se pretendia que se pensasse

    ter acontecido, muitas vezes ao saber dos preconceitos, e pr-juzos, quando no de acordo

    com His Masters Voice14.

    Tomar posio sobre a crise da justia tornou-se num imperativo categrico para

    polticos, e comentadores, no qual, muitas vezes, o desconhecimento concreto s tem paralelo

    na assertividade com que todos se pronunciam15.

    Em directo, e sem reserva, em programa televisivo16 colocam-se advogados e arguidos a

    reelaborar o julgamento do Processo Casa Pia, opinando e depondo segundo os seus

    interesses e as suas percepes e intuies17 18. Temas como as escutas telefnicas, ou a

    priso preventiva, suscitam debates acalorados que primam, muitas vezes, pela ausncia de

    opinies fundamentadas e objectivas, construtoras de cidadania num Estado de Direito, antes

    14 Exemplar o programa televisivo Prs e Contras de 02/09/2009 que teve por objeto o denominado

    processo Freeport. 15 Noticia o i de 08 de Maro de 2012 que vrias personalidades nacionais, entre as quais o cineasta

    Antnio-Pedro Vasconcelos, o maestro Antnio Victorino de Almeida ou o fadista Carlos do Carmo, criaram

    uma petio pedindo Assembleia da Repblica que investigue a investigao do processo Casa Pia.

    Em declaraes Agncia Lusa, Antnio-Pedro Vasconcelos explicou que, por detrs desta petio, est um

    conjunto de pessoas que acompanharam o processo da Casa Pia e, em particular, o processo que envolveu o

    apresentador Carlos Cruz, e aperceberam-se de que se tratava de um caso bastante assustador, com

    contornos preocupantes para a democracia e para um Estado de Direito.

    Houve atropelos constantes na investigao, foi frequentemente, para no dizer sempre, adulterado e

    invertido o nus da prova e aquilo que fundamental num Estado de Direito que a presuno de inocncia,

    em que a investigao e a inquirio dos assistentes est cheia de erros, justificou. 16 Prs e Contras em 7 de Setembro de 2010. 17 Para Henrique Monteiro, director do Expresso, a nossa investigao m, no presta, ponto! Referindo-

    se investigao criminal do Casa Pia pergunta o mesmo se a convico dos julgadores do caso no se ter

    ficado antes a dever a uma crena, coisa diversa da convico que anda atrelada verdade, sendo aquela

    um fenmeno ideolgico. Henrique Monteiro acha a investigao do caso uma enorme vacuidade. 18 Pesou a experincia anteriormente adquirida noutras produes televisivas como o denominado caso

    Esmeralda que se transformou perante a opinio pblica num autntico prlio clubstico.

  • 22

    Tribunais e Comunicao Social

    se tomando posio consoante os preconceitos que nos animam (como o caso das escutas

    no processo Face Oculta).

    Como refere o jornalista Joaquim Vieira considerou-se, a partir de certa altura...que

    relatar os factos, s por si, no chegava. Isto , j no era suficientemente digno, nobre para a

    profisso de jornalista. Era preciso acrescentar mais alguma coisa. E, ento, aparece aquilo a

    que eu chamaria o jornalista pavo, que o jornalista que quer meter mais algumas penas

    coloridas nos trabalhos que faz e, ento, acha que fica muito mais interessante e bonito o seu

    trabalho se acrescentar com opinies prprias, com anlises de carcter subjectivo, com muitos

    adjectivos pelo meio, qualificaes sobre os factos e sobre as pessoas, com certas imagens

    mais ou menos coloridas e, portanto, que o trabalho s est completo assim. Daqui resulta que

    os jornalistas tendem a substituir-se aos comentadores, aos opinion makers em Portugal, para

    fazer passar a sua suposta verdade sobre aquilo que o politicamente correcto. Portanto, os

    prprios jornalistas defendem o que o politicamente correcto daquilo que no

    politicamente correcto e assumem-no em reportagens, em entrevistas, em textos noticiosos

    nos quais, de facto, est ausente o tal rigor noticioso. Enfim, quanto a mim, aquilo que deveria

    caracterizar a actividade noticiosa19.

    Para culminar reforma-se o Cdigo de Processo Penal, no em consequncia da

    elaborao doutrinal, ou jurisprudencial, mas tendo como ponto de referncia as sombras do

    processo Casa Pia, afirmando expressamente o ento Ministro da Justia Alberto Costa que foi

    o mesmo guiou as alteraes20.

    No entretanto, a inquietude entre o poder poltico e os tribunais potenciada por

    sucessivos casos que tocam todos os arcos do espectro poltico, e financeiro, e vo desde a

    base at ao topo, vo do Norte ao Sul, da Administrao local Administrao Central, vo do

    Freeport Face Oculta e, passando pelo Portucale, visitam o BPN e outros quejandos.

    O desenrolar de muitos destes processos, recheado de vicissitudes, desenrolando-se ao

    longo de anos, incompreensvel para muitos cidados, tal como tambm o o seu

    desfecho21. Percebe-se na opinio pblica um desprestgio subjectivo que transparece na

    classificao do pas nos ndices de Percepo da Corrupo.

    19 Colquio organizado pela Alta Autoridade para a Comunicao Social, pag 91 Traar as fronteiras entre

    opinio, especulao e notcia. 20 Dirio de Notcias de 15 de Setembro de 2010. 21 Paradigmtico o caso Freeport que, depois de estar parado durante vrios e forma inexplicvel, com os

    responsveis pela aco penal ignorando a sua existncia, passou da imputao de um crime com indcios

    de corrupo, para um crime de extorso, evidenciando uma olmpica mudana de estratgia processual.

  • 23

    Tribunais e Comunicao Social

    De todas estas vicissitudes se aperceberam muitos dos jornalistas que se dedicam rea

    dos tribunais transmitindo para a opinio pblica informao objectiva. Porm, e

    paralelamente, num jogo de sombras chinesas, comeou a tomar forma um novo fenmeno

    no qual o amadorismo na tentativa de manipulao da imprensa substitudo por profissionais

    que, estrategicamente, utilizam os media, condicionando a opinio pblica22.

    Hoje, a relao entre Tribunais e Comunicao Social escreve-se de muitas maneiras e

    com preocupaes diversas no que diz respeito tica e a deontologia. Oscilamos entre a

    notcia objectiva e o jornalismo de investigao isento, tantas vezes importante para a

    formao de uma opinio pblica esclarecida, e a opinio preconceituosa, conduzindo a

    distores da realidade.

    Na primeira a transparncia e a visibilidade que deve rodear os tribunais, nele se

    implicando a crtica fundamentada, que cimento do Estado de Direito, na segunda est

    latente a deslegitimao, ou eroso, quantas vezes deliberada, do papel dos Tribunais. Para

    esta todos os motivos so vlidos para trazer para a praa pblica a decantada crise da justia

    e a ineficincia dos juzes23 24.

    Infelizmente ficou por apurar o misterioso desaparecimento de 6.9 milhes de Euros (vd Jornal de Notcias

    de 19/07/2010). 22 No se pode remeter para o limbo das realidades indesejadas o facto de a relao ente os media e os

    tribunais se ter revelado uma fonte de novos riscos para alguns dos valores fundamentais dos actos do juiz,

    nomeadamente a independncia e a imparcialidade. Na verdade, os fluxos de informao no se limitam a

    descrever o que acontece no campo da jurisdio, mas, muitas vezes, pressionam aqueles que a exercem,

    por vezes com grande intensidade e sem que se visualize a garantia efectiva ou suficiente para obstar a que

    isso acontea, o que traz colao a questo da auto-regulao. 23 No resistimos ao desafio de, a ttulo de exemplo, chamar colao um caso concreto. Na verdade, desde

    que, em 18/10/1989, foi pronunciado no Supremo Tribunal de Justia o Acrdo com a infeliz expresso

    coutada do macho lusitano, existiram milhes de decises proferidas por tribunais portugueses.

    Melhores, ou piores, todas tiveram por denominador comum o exerccio de uma funo constitucional que

    se consubstancia a proteco de direitos consagrados na Lei, legitimando-se pelo respectivo procedimento.

    Porm, a expresso em causa repetida at exausto por alguns dos fazedores de opinio, pretendendo

    significar com a mesma, o paradigma de uma forma tpica de exercer a funo de julgar englobando

    acriticamente todos os juzes. 24 A ttulo meramente exemplificativo de artigos opiniativos Uma justia sem Defesa Expresso

    20/06/2009; Podrido da Justia Expresso de 1/05/2009; Suprema Bofetada Martim Ramires, Sol, de

    2/06/2007; Justia e Preconceito Vicente Jorge Silva, Sol, 24/11/2007; Duas Palmadas no rabo ao apito

    Dourado Vicente Jorge Silva, Dirio de Notcias, de 31/05/2006; O juiz macho e o apalpo latino

    Fernanda Cncio, Dirio de Notcias, de 19/01/2007; Os Olhos Mortos da Justia Vicente Jorge Silva,

    Dirio de Notcias de 24/01/2007.

  • 24

    Tribunais e Comunicao Social

    E se certo que uma mentira, por muito repetida, no se transforma numa verdade,

    no deixa de nos causar a maior perplexidade verificar que, pelo mesmo diapaso, afinam

    alguns dos pensadores a que nos habituamos a dar crdito optando, tambm eles, por uma

    crtica infundamentada25.

    Os tribunais e os juzes, impossibilitados de responder, tornam-se, assim, a catarse, ou o

    pushing ball, de uma sociedade descontente com ela prpria e desejosa de encontrar

    responsveis pela situao em que se encontra. Esse desejo alimentado por bons, e maus,

    motivos tem por consequncia o desprestgio dos tribunais, o enfraquecimento da fora das

    suas decises e, por ltimo, a deslegitimao e a perda de autoridade.

    Porm, tal constatao no pode esquecer que muitas das crticas dirigidas ao

    funcionamento do sistema judicial, e transmitidas pelos rgos de comunicao social,

    formatando a opinio pblica, so fundamentadas e constituem um contributo positivo de

    cidadania.

    A questo que ento emerge do equilbrio a procurar nesta relao ente Comunicao

    social e Justia e relativamente qual muitos alimentam um pensamento de desnimo. Nesses

    sentido vo as palavras desiludidas de Cunha Rodrigues ao afirmar que acreditou que era

    possvel construir uma relao eticamente fundada, transparente e sustentvel entre justia e

    comunicao social para logo a seguir concluir: No era!26

    Pelo mesmo diapaso se pronuncia Antoine Garapon, quando, sustentando-se na

    violao de direitos fundamentais, afirma que a ameaa que os mdia fazem pairar sobre a

    estrutura simblica da justia revelar-se- talvez mais perigosa do que alguns atentados a

    certas liberdades pblicas. Segundo o mesmo o smbolo impe uma distncia. Ora, os mdia

    aboliram as trs distncias essenciais que so a base da justia: a delimitao dum espao

    protegido, o tempo diferido do processo e a qualidade oficial dos actores deste drama social.

    Eles distorcem o quadro judicial, paralisam o tempo e desacreditam a autoridade. Na verdade

    o enfraquecimento das autoridades institudas corresponde a uma perda de soberania da

    democracia sobre si mesma. Os media constituem por isso uma autoridade bem real, mas

    desconcertante porque inconsistente, inconstante e inconsequente, ao contrrio de qualquer

    instituio reconhecida e considerada, estvel e operante.

    25 Nesta linha se encontram Antnio Barreto quando, em 27 de Fevereiro de 2010 afirmava no Expresso a

    suspeita do pagamento a magistrados Judiciais ou do Ministrio Publico de informaes em segredo de

    Justia ou Antnio Arnaut afirmando para o Campeo das Provncias em 29/04/2010 que a corrupo j

    chegou s magistraturas. 26 Recado a Penlope, pg. 103 e segs.

  • 25

    Tribunais e Comunicao Social

    Esse recurso selvagem opinio pblica igualmente prejudicial porque incute a ideia

    de que, numa democracia, o melhor juiz a opinio pblica 27.

    Em ltima anlise est em causa uma tica de comportamentos.

    Efectivamente, medias e justia vigiam-se mutuamente. A misso da imprensa

    informar de forma crtica e nesse exerccio compreende-se a Justia. Por seu turno a esta

    compete garantir a cada cidado a presuno de inocncia e o direito a um processo justo.

    Esta tenso faz deflagrar um paradoxo para os cidados num Estado de Direito pois que se, por

    um lado, o direito a uma informao livre e crtica uma das condies de um regime

    democrtico, por outro, o seu exerccio pode comprometer um certo nmero de direitos

    fundamentais desses mesmos cidados como a presuno de inocncia, o respeito pela vida

    privada ou o direito a um processo justo. A escalada de conflito entre os medias e a Justia

    corre o risco de se fazer custa do cidado.

    Nunca se poder eliminar totalmente tal tenso porque inteiramente diferente a

    lgica e finalidades que inspiram media e justia. Os primeiros privilegiam a rapidez enquanto

    que a justia adopta um funcionamento lento, e reflectido, pois que o seu objectivo no a

    rapidez e o interesse do pblico, mas a equidade.

    Em ltima anlise as divergncias resultam das funes diferentes que ocupam e no

    so negativas pois que a imprensa e a justia no so, nem podem ser, amigos. Quando muito

    sero parentes distantes entre os quais preciso manter um dilogo que seja correcto, mas

    eticamente sem quaisquer concesses, por forma a garantir um equilbrio fundamental num

    Estado de Direito28.

    II.

    A forma como ocorre a relao Tribunais e media tem importantes consequncias,

    positivas e negativas. A primeira cinge-se ao facto de uma actividade de claro interesse

    interesse pblico sair do mundo fechado dos Palcios de Justia, adquirindo uma maior

    visibilidade junto dos cidados. Em simultneo aqueles que exercem a funo de julgar podem

    ver reflectido na comunidade o sentir da sua deciso, capacitando-os para uma eventual

    autocritica. Porm, as expectativas da visibilidade meditica trazem consigo as inerentes

    patologias entre as quais a da prtica pouco rigorosa no exerccio da funo de informar e de

    contribuir para formar uma opinio, expresso de atitudes desatentas complexidade das

    27 O Guardador de Promessas, pg. 77 e segs. 28 Conf. Dirk Voorhoof, La relation entre les Medias et la Justice.

  • 26

    Tribunais e Comunicao Social

    questes e especificidade e sensibilidade dos interesses em jogo. E isto ser assim quando,

    recorrendo a uma compreenso holstica, concluirmos pela intrumentalizao dos meios de

    comunicao social num desafio a direitos fundamentais como a liberdade de expresso e

    informao.

    A afirmao de um exerccio da funo de julgar dentro dos limites da racionalidade e da

    legalidade, legitimando-o por um escrutnio publico exercido pela comunidade informada

    pelos meios de comunicao, no pode esconder o pressuposto fundamental de que estes so

    uma outra forma de poder, o que, como refere Perfecto Ibanez, lhes confere um status de

    ambiguidade constitutiva. Contribuem objetivamente para formar o espao pblico, que a

    essncia mas, ao mesmo tempo, as suas dimenses e os interesses polticos e financeiros que,

    muitas vezes, os movem, conjugados com a enorme capacidade de irradiao, decorrem sem a

    existncia de contrapesos eficazes que funcionem como vlvula de escape

    Porm, como refere Daniel Innerarity (O Novo Espao Pblico pg. 49 e segs.) tal espao

    publico no algo de uniforme, mas sim um produto polidrico duma criao dos meios de

    comunicao que ampliaram enormemente as dimenses do comum, e do pblico, que de

    outro modo no seriam to amplos e visveis. Essa comunidade, criada pelos meios de

    comunicao e pela opinio, um espao que funciona segundo uma lgica prpria.

    Compreender essa lgica fundamental para se no confundir a ideia normativa de espao

    pblico com a opinio pblica que os meios de comunicao de facto configuram.

    A comunicao , efectivamente, o lugar onde se constri o comum, mas este comum

    tem muito pouco valor de realidade e resulta de um dispositivo de construo social.

    A questo , assim, de encontrar a forma como nesse espao publico, construdo de

    forma to desigual, possvel transmitir a informao sobre os Tribunais que fundamenta a

    sua legitimidade. Na verdade, quando se fala sobre o Poder Judicial, ou sobre a crise do

    sistema judicial, est subjacente a questo da legitimidade dos juzes ou da existncia de um

    deficit de legitimao democrtica da jurisdio. Na gnese desta legitimidade no que

    concerne ao exerccio da jurisdio, e como refere Luigi Ferrajoli, encontra-se a legitimao

    formal, que avalizada pelo princpio da legalidade (sobretudo penal) e da sujeio do juiz lei

    e a legitimao substancial, que consiste na funo e capacidade da jurisdio de tutelar os

    direitos fundamentais dos cidados.

    Ao juiz compete o desempenho de uma funo de garantia, da efectividade dos direitos

    fundamentais e, em geral, da observncia da legalidade A sua legitimidade adquire-se (ou no)

    pelo correcto exerccio da funo dentro dos parmetros constitucionais e legais.

    De tal conjugao s pode resultar uma leitura. Na verdade, se a visibilidade transporta

  • 27

    Tribunais e Comunicao Social

    para o eixo do espao pblico os termos em que se processa a administrao da justia tal s

    poder contribuir para a qualidade desta se for assumida a objectividade e a qualidade da

    Informao.

    Ponto que Magistrados e Jornalistas estejam altura dos desafios!

    III.

    Do Segredo de Justia

    Debater o segredo de justia nos dias que passam, debater um segmento da realidade

    sobre a qual ora nos pronuncimos.

    Procurando adquirir uma compreenso de todas as vertentes que se entrecruzam no

    caminho do mesmo segredo, e dos bens jurdicos que tutela, uma primeira tarefa distinguir

    os princpios que o orientam e os valores que se pretende proteger. No que toca, e por muitas

    elaboraes que se pretenda ensaiar, somos sempre reconduzidos ao binmio entre segredo

    de justia e eficincia da investigao criminal e, ainda, primria, ou reflexamente, defesa do

    bom nome e da privacidade que aqui no so mais do que o corolrio da presuno de

    inocncia.

    Hoje, tal como em 1992, o leque dos valores a proteger exactamente o mesmo e j

    ento, perante a Assembleia da Republica, referia o Ministro da Justia Laborinho Lcio que

    ao violar o segredo de justia, do ponto de vista estritamente jurdico, viola-se o bem jurdico

    que a tutela da qualidade da investigao mas, indirectamente, no plano estritamente

    cultural, acaba por se violar tambm o direito ao bom nome e intimidade da vida privada.

    Essa violao, todavia, no pode ser por essa via, no sistema que ternos actualmente,

    juridicamente prevista e sujeita, tambm ela, a urna condenao correspondente.

    Diremos, ento, que o segredo de justia, juridicamente, defende a qualidade da

    investigao e, indirectamente, sempre que preservado, acaba por defender outro tipo de bens

    ou de interesses fundamentais que o sistema jurdico, originria e assumidamente, no tutela

    mas, porque preservado o segredo de justia, acaba por tutelar tambm29. Desde aquela

    data, e de novo, apenas o que entendo ser uma aquisio fundamental no quadro

    constitucional de um Estado de Direito, preocupado com a segurana dos cidados, que a

    considerao da eficincia da justia penal como bem jurdico a proteger.

    Um segundo elemento a ter em contar reconduz-nos aos princpios constitucionais que

    informam, e modelam, o segredo de justia. Aqui o eixo fundamental situa-se no artigo 32. da

    Constituio, que eleva qualidade de bem jurdico-constitucional o segredo de Justia,

    29 Liberdade de Informao Segredo de Justia, Assembleia da Repblica, 1992.

  • 28

    Tribunais e Comunicao Social

    consagrando-o como instrumento da investigao criminal30. A inscrio de tal princpio tem a

    montante a compreenso de uma outra regra que a estrutura acusatria do processo penal,

    assegurando-se o exerccio do contraditrio em determinadas fases processuais artigo 32.,

    n. 5.

    Sendo estes os pontos cardeais que devem nortear o andante destes caminhos de

    segredo a nossa profunda estupefaco com a ruptura constante da Lei 48/2007 de 29 de

    Agosto de 2007. Consagra-se agora a regra da publicidade do processo penal sem qualquer

    limitao contrefctica e sem qualquer considerao pela fase processual. Procurando

    compreender a forma como se articularam no esprito de um legislador, que se presume

    esclarecido, as razes de uma mudana em sentido diametralmente oposto do pr-existente, e

    numa das instituies mais relevantes do processo penal, deparamo-nos com o vazio absoluto.

    Este silncio legitima o nosso apelo intuio como critrio substitutivo31.

    Para a histria de uma alterao fundamental do processo penal fica a Acta n. 20 da

    Unidade de Misso para a Reforma do Processo Penal onde se adivinha a existncia de um

    caderno de encargos, alis confirmado pelo ento Ministro Alberto Costa32, e assumido pelo

    respectivo Coordenador, por contraposio s vozes avisadas de alguns membros de tal

    entidade, alertando para os perigos de uma alterao menos pensada e pior fundamentada.

    Igualmente para o julgamento da histria a indigncia intelectual das declaraes que, no

    Parlamento, acompanharam a alterao em causa, bem expressas na afirmao ento

    olimpicamente produzida de que mudmos o paradigma. Os processos deixaram de estar, por

    regra, em segredo para passarem a ser pblicos, por regra. Portanto, como mudmos o

    30 Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituio da Repblica Anotada. 31 Boaventura Sousa Santos referia j em 2003, pressentindo o futuro, que em minha opinio, a segunda

    posio (manuteno do segredo de justia) , sem dvida, a mais adequada s realidades sociolgicas e

    judiciais do nosso pas. Somos um pas em que as elites sociais, polticas e econmicas esto habituadas

    impunidade que lhes , em parte, garantida pelas reconhecidas debilidades da nossa investigao criminal e

    pela pusilanimidade dos nossos magistrados. Vivemos um momento crucial em que esta situao se est de

    algum modo a inverter, sendo visvel alguma capacidade e alguma vontade poltica para comear a

    investigar e a julgar "os de cima". No admira que a reaco destes seja agressiva. Para bem de todos ns,

    decisivo que esta reaco no atinja os seus objectivos. Para isso, porm, tambm preciso que quem

    "guarda" o processo defina expressamente quem tem acesso a ele e puna exemplarmente quem violar o

    segredo. 32 Noticiava o Dirio de Notcias, de 9 de Setembro de 2006, que O ministro da Justia, Alberto Costa,

    reconheceu ontem ao DN que grande parte da reforma do sistema judicial ontem acordada entre o PS e o

    PSD foi guiada pela experincia de um caso judicial concreto. Por sinal, um processo que envolveu a cpula

    do PS - o ento lder, Ferro Rodrigues, e o seu nmero dois, Paulo Pedroso, que chegou a estar quatro meses

    em priso preventiva ou seja, o processo Casa Pia.

  • 29

    Tribunais e Comunicao Social

    paradigma, no temos receio quanto ao que diz respeito comunicao social. Como

    mudmos o paradigma, repito, e a regra passar a ser a de que todos os processos no esto

    em segredo de justia apenas admitimos algumas excepes, como sabe , no vemos qual

    o problema na conjugao de todos esses artigos33.

    Ao alterar por tal forma o regime do segredo de justia intumos que os Deputados no

    tiveram percepo das consequncias que a sua opo implicava na prpria estrutura do

    processo, conduzindo-os at ao limes de violao da regra constitucional. Como refere

    Figueiredo Dias o Parlamento operou deliberadamente uma revoluo coperniciana da

    natureza do inqurito. Com o que criou limites pesados e de consequncias nefastas e

    impredictveis investigao criminal no seu todo; abriu a porta multiplicao das tenses

    entre, por um lado, o MP e os rgos de polcia criminal e, por outro lado, entre estes e o juiz

    de instruo; e trouxe para a rua situaes eventualmente dotadas de relevo jurdico-criminal

    cujo conhecimento pblico, dado o estdio incipiente em que o seu esclarecimento se encontra,

    prejudicial no s ao dever estadual de investigao do crime, mas tambm a interesses

    elementares das pessoas presumivelmente mas em muitos casos, em definitivo,

    infundadamente implicadas34.

    Quando agora falamos de segredo de justia falamos de algo que uma excepo

    regra da publicidade. certo que o quotidiano judicirio pouco se alterou uma vez que o

    Ministrio Publico sujeita regra do segredo de justia grande parte dos inquritos,

    nomeadamente os relativos s infraces mais graves. Porm, a tentao de resumirmos a

    deriva legislativa ao aforismo de Lampedusa de que preciso que alguma coisa mude para

    que tudo fique na mesma no pode relegar para o limbo das inutilidades o que no domnio

    dos princpios, e do discurso jurdico, que se deve equacionar.

    Curiosamente a alterao legislativa com implantao urbi et orbi da regra da

    publicidade conseguiu algo de inusitado no universo judicirio, concitando a uniformidade das

    crticas de todos aqueles que estudam e conhecem o processo penal ptrio.

    Permitimo-nos agora, e inevitavelmente no domnio dos princpios que no da praxis

    judiciria, ensaiar telegraficamente algumas das principais patologias introduzidas pela

    consagrao da regra da publicidade do processo penal.

    Sintetizando todo o catlogo recriminatrio que a mesma alterao merece sobressaem

    as palavras de Costa Andrade35 no sentido de que intervm tambm aqui um factor simblico,

    33 Deputado Ricardo Rodrigues, Dirio da Repblica, I Srie. 34 Revista Portuguesa de Cincia Criminal, Abril/ Setembro de 2008, pg. 368 e segs. 35 Bruscamente no Vero Passado A Reforma do cdigo de processo penal, pg. 62 e segs.

  • 30

    Tribunais e Comunicao Social

    expresso no teor fraco da dignidade normativa reconhecida ao segredo de justia: tanto na

    existncia como na essncia, quer no se, quer no quando ou quanto, o segredo de justia est

    hoje inteiramente dependente da iniciativa e da interveno dos sujeitos processuais (arguido,

    assistente, Ministrio Pblico, Juiz de Instruo), segundo diferentes modelos de interaco. O

    que significa que o legislador de 2007 se conforma com a possibilidade prtica de no sobrar

    qualquer espao para o segredo de justia. E, por vias disso, com a possibilidade de no

    subsistir qualquer rea de tutela para um segredo de justia que entretanto o legislador

    constituinte erigiu constelao dos bens jurdicos constitucionais.

    Assim, em termos simblicos, o segredo de justia relegado para um plano secundrio

    dependente da conjugao de vontades, ou disponibilidades, e de iniciativas processuais que

    s possvel admitir com violao do programa politico-criminal constante da Constituio.

    A publicidade agora consagrada tanto interna como externa com o que se vislumbra a

    necessidade sentida pelo legislador, inspirado por outros ventos, no sentido de tornar o

    processo penal e, essencialmente, o inqurito, num no man land ou, mais prosaicamente,

    num espao aberto desde o seu incio, destruindo toda a coerncia do sistema36.

    Nos casos de excepo em que a lei permite o segredo de justia a ltima palavra

    incumbe ao Juiz de Instruo. O Juiz das Liberdades , assim, chamado a pronunciar-se sobre

    os interesses e objectivos estratgicos da investigao, equacionando-os com o segredo de

    justia e, por tal forma, se concretiza na mesma pessoa as duas faces de Janus.

    Paralelamente, a desconsiderao do Ministrio Pblico a quem no se reconhece a

    capacidade para, por si, determinar que o processo decorra em segredo e, assim, remetido

    para sombra paternal do Juiz de Instruo em flagrante violao do seu estatuto de detentor

    da aco penal e dominus do inqurito. Criam-se as condies para uma situao conflitual

    entre as duas entidades.

    Alm do que, a nosso ver, o pecado original da inconstitucionalidade de que enferma a

    alterao introduzida com violao do artigo 32. do diploma fundamental outras

    perplexidades se suscitam comeando pela resoluo da antinomia entre sujeitos processuais,

    36 A alterao introduzida pela referida Lei teve um mau prenuncio que acompanha toda a alterao

    normativa elaborada ao sabor da efervescncia dos dias que correm em lugar usurpando o lugar da reflexo

    jurdica sedimentada nos princpios. Como diz Costa Andrade o processo Casa Pia constituiu um marco

    indelvel que no s marcou a sociedade portuguesa como tambm como convocou o legislador para

    alteraes legais que desde logo tinham impressas a violao do princpio constitucional consagrado no

    artigo da Constituio como de pedras angulares que constituem uma aquisio fundamental do processo

    penal.

  • 31

    Tribunais e Comunicao Social

    nomeadamente entre assistente e arguido, quando os seus pedidos so de sinal contrrio37.

    Por outro lado, e como se referiu, o processo assume desde o inicio uma publicidade

    que permite a monitorizao on line por parte dos sujeitos processuais. Tal conhecimento

    o pressuposto de um exerccio imediato do direito de defesa consubstanciado no

    contraditrio. Cria-se, assim, a anarquia processual em que se cruzam dinmicas que Costa

    Andrade denomina de dialgica, dirquica e, de forma assumida ou larvada, conflitual.

    estrutura acusatria do processo contrape-se agora um exerccio do contraditrio

    em toda a sua amplitude; s necessidades de investigao criminal e ao princpio fundamental,

    mas to esquecido, da eficincia da justia penal contrape-se agora uma publicitao que

    inviabiliza a procura, sem sobressaltos, da verdade material.

    As prprias funes do Ministrio Pblico como senhor do inqurito e titular do

    exerccio da aco penal so abaladas por uma interveno do Juiz de instruo que visa

    avalizar as opes daquele.

    No plano externo, o novo regime abateu todos os limites de confidencialidade e

    reserva, expondo o inqurito voracidade da curiosidade pblica e, sobretudo, dos mdia, no

    que Costa Andrade denomina um verso contempornea do secular pelourinho acabando- por

    saciar instintos voyeuristas e prestar servios ldicos, como quotidiano e inesgotvel

    espectculo circense, oferecido a quem no se pode (ou no quer) distribuir po. Para quem se

    permita ler sombra dos ensinamentos de Maquiavel resta saber at que ponto este

    espectculo meditico, alimentado pelo drama judicirio, no constitui uma excelente forma

    de diverso de outras realidades que importa apartar do foco da ateno pblica ou at criar

    mecanismos que, utilizados de forma nvia, constituem o instrumento adequado para matar

    nascena a investigao da grande criminalidade.

    Permitam que concite a vossa ateno para algumas da questes mais relevantes que,

    em concreto, suscita o regime agora edificado. Numa breve sntese:

    Em processo penal o segredo de justia reporta-se a todo e qualquer segredo

    construdo com base em factos, ou acontecimentos, de que algum tem

    37 Pela constitucionalidade se pronunciou o Acrdo do TC n 234/2011, de 4 de Maio de 2011 (DR, II, de 7

    de Junho de 2011) que no julgou inconstitucional a norma constante do artigo 86., n. 3, do Cdigo de

    Processo Penal (CPP), na redaco da Lei n. 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que exige que o

    Juiz de Instruo valide a deciso do Ministrio Pblico de sujeio de processo crime, durante a fase de

    inqurito, a segredo de justia (no mesmo sentido, os acrdos do TC n. 352/2011, de 13 de Julho de

    2011; n. 372/2011, de 13 de Julho de 2011; e 412/2011, de 27 de Setembro de 2011).

  • 32

    Tribunais e Comunicao Social

    conhecimento e que devem permanecer fora do conhecimento de terceiros para

    tutela de determinados interesses que a administrao da justia entende dever

    prosseguir. Esses interesses como se referiu apresentam uma policromia que vai

    desde o interesse do Estado na realizao de uma justia independente, sem

    presses exgenas perturbadoras do equilbrio emocional que deve assistir a quem

    julga, ou quem investiga, at ao evitar da possibilidade de uma actuao visando a

    destruio da prova recolhida, passando pelo interesse em no ver expostos na praa

    pblica factos que podem no ser provados, originando graves prejuzos para a

    reputao e dignidade.

    A proibio da divulgao que constitui o fulcro do segredo refere-se tanto a ocorrncia

    de acto processual como divulgao dos seus termos. Acto processual o acontecimento

    inscrito na relao processual penal e praticado no processo, ou com a finalidade de coadjuvar

    o processo, e por essa forma consubstanciando uma dinmica global em que o processo o

    denominador comum numa uma intrnseca interdependncia funcional.

    A primeira excepo publicidade do processo est prevista apenas para a fase de

    inqurito, nos casos em que o arguido, o assistente ou o ofendido requeiram, e o juiz de

    instruo, ouvido o MP, determine a sujeio do inqurito a segredo de justia. Nesta

    deciso juiz est vinculado ponderao dos interesses dos participantes processuais e o seu

    despacho irrecorrvel.

    Por seu turno, o Ministrio Pblico, pode tambm determinar a aplicao ao processo,

    durante a fase de inqurito, do segredo de justia quando entenda que a excluso da

    publicidade exigida pelos interesses da investigao, ou justificado pelos direitos dos

    sujeitos processuais. Tal deciso fica sujeita a validao pelo juiz de instruo no prazo de 72

    horas. Se o mesmo juiz no validar no prazo fixado, a deciso prvia do dominus do inqurito

    no produz efeitos, correndo o processo em obedincia regra geral da publicidade, em

    contrapartida se o juiz de instruo validar aquela deciso o processo decorre com excluso da

    publicidade, seguindo a regra da recorribilidade fixada no contexto da norma para as decises

    do juiz de instruo em matria de publicidade e segredo ns 2 e 5.

    Reportando-nos aos critrios que devem nortear a deciso do Ministrio Pblico na

    excluso da publicidade evidente que, em primeira linha, se encontra o interesse da

    investigao. Esta, nos casos de criminalidade mais grave, s revela eficcia se decorrer no

    segredo do inqurito, perdendo qualquer significado se o processo for um campo aberto que

    gera a impossibilidade de emprego de quaisquer tcnicas de investigao mais elaboradas

  • 33

    Tribunais e Comunicao Social

    como o caso da intercepo das comunicaes.

    A aferio das necessidades investigatrias demonstrada pelas prprias caractersticas

    do objecto da investigao e revelada pelo tipo de crime, pelos seus agentes e pela estratgia

    investigatria delineada a qual convoca a eventual necessidade de proteger algum, ou alguns,

    dos intervenientes no processo.

    No que toca aos direitos de sujeitos processuais, e como se referiu, estamos

    fundamentalmente em face da necessidade de proteco de direitos individuais.

    Implicitamente a norma contem uma permisso do Ministrio Pblico levantar o

    segredo quando deixarem de existir aqueles critrios.

    A publicidade do processo tem o preciso significado contido no n. 6 do artigo 86 do

    CPP, ou seja, com um contedo mais amplo relativamente ao debate instrutrio e audincia

    de julgamento (com as restries que resultem de circunstncia particulares, fixadas por

    despacho do juiz artigo 87, n 1), narrao dos actos judiciais ou reproduo pela

    comunicao social; e consulta de auto e obteno de cpias, extractos e certides nos

    termos dos artigos 89 e 90.

    Merece uma especial referncia o afastamento de qualquer apelo publicidade dos

    dados relativos vida privada que no constiturem meio de prova n. 7.

    No que toca aos sujeitos ao segredo de justia pode-se afirmar que o mesmo obriga

    todos os sujeitos e participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer ttulo,

    tiverem tomado contacto com o processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes.

    A norma em causa, em funo da alterao legislativa introduzida pela citada Lei, tem agora

    uma maior abrangncia, resultante da disjuntiva, pois que esto contidos na sua letra aqueles

    que por qualquer ttulo, tiverem contacto com o processo, ou que, por qualquer ttulo,

    tiverem conhecimento de elementos do processo o que significa todas as pessoas que por

    qualquer forma de modo directo ou indirecto tiverem acesso a elementos do processo.

    No que toca ao contedo do segredo de justia o mesmo consubstancia-se na proibio

    de assistir ou de tomar conhecimento (por via directa, ou indirecta atravs de mediao da

    informao) do contedo de acto processual a que no haja o direito ou o dever de

    assistncia, e a proibio de divulgao da ocorrncia de acto processual (divulgao ou

    informao sobre a prtica ou a marcao da realizao de acto processual), ou dos termos de

    acto processual que tenha sido realizado (n. 8 alneas a) e b) do artigo 86.).

    Importa aqui sublinhar que em causa est o conhecimento do contedo dos actos ou

    dos termos de um acto praticado em inqurito que decorra com excluso da publicidade e

    adquirido no processo. Consequentemente, a divulgao de um facto cujo conhecimento foi

  • 34

    Tribunais e Comunicao Social

    obtido fora do contacto directo, ou indirecto, com o processo, embora relacionado com o

    mesmo, no viola o segredo de justia.

    A formulao do n. 8, com a expresso conhecimento de elementos a ele

    pertencentes, tem como finalidade e efeitos alargar o mbito da proteco pela extenso do

    universo pessoal; a formulao tem por finalidade terminar com as dvidas e a discusso que

    no teriam consistncia mesmo na formulao anterior reviso de 2007 quanto

    aplicabilidade aos jornalistas do regime do segredo de justia e da consequente vinculao.

    O n. 9 do artigo 86 do CPP cria uma excepo no regime do segredo de justia,

    permitindo que a autoridade judiciria d (ou permita que seja dado) conhecimento do

    contedo de acto ou de documento do processo, se considerar conveniente ao esclarecimento

    da verdade ou se for indispensvel ao exerccio de direitos pelos interessados; o

    conhecimento no pode ser permitido se puser em causa a investigao. A divulgao pblica

    de alguns fatos relativos ao processo pode assumir-se como oportuna e razovel quando o

    regime de segredo tiver consequncias graves para os direitos pessoais do atingido pela

    divulgao pblica de factos relativos ao processo ou quando o seu conhecimento seja

    indispensvel ao exerccio de algum direito processual, como a hiptese de impugnao da

    aplicao de medidas de coaco.

    Sobressai aqui a equao do princpio da proporcionalidade ponderando-se o peso

    daqueles direitos e o sucesso da investigao.

    O n. 1 do artigo 88 consagra o direito de narrao pelos rgos de comunicao social

    do teor de actos processuais que se no encontrem cobertos por segredo de justia, ou a cujo

    decurso for permitida a assistncia do pblico em geral a crnica judiciria.

    O TEDH tem-se pronunciado uniformemente aplicando critrios de proporcionalidade

    no conflito entre a liberdade de informao e as garantias do processo equitativo e a

    necessidade de preservao da autoridade e imparcialidade do poder judicial. Pressuposto das

    sucessivas tomadas de posio que liberdade de informao no algo de absoluto e deve

    estar sujeita a algumas condies, que sejam justificadas pela finalidade de garantir direitos

    individuais ou a autoridade e a imparcialidade do poder judicirio

    Paradigmtico da orientao da mesma jurisdio o acrdo SUNDAY TIMES c. REINO

    UNIDO, de 25 de Abril de 1979, onde o TEDH enunciou os princpios fundamentais, e definiu a

    noo convencional de autoridade do poder judicirio.

    No que toca ao primeiro convoca-se o principio de que compete aos tribunais decidir os

    conflitos jurdicos e instrumento de tal objectivo a existncia de respeito e confiana pelos

    cidados na sua actuao em que est presente a autoridade e a imparcialidade.

  • 35

    Tribunais e Comunicao Social

    Para aferir sobre a necessidade de uma medida que limite a liberdade de informao,

    determinada na perspectiva de avalizar a autoridade e a independncia do poder judicirio e

    quando esteja em causa uma incurso jornalstica num processo em curso, o TEDH tem em

    ateno a natureza da medida, a sua extenso, o estado do processo interno, e essencialmente

    a importncia que tem para o bom funcionamento da justia a cooperao do pblico

    devidamente informado.

    Numa sociedade democrtica a autoridade dos tribunais, consequncia directa da sua

    legitimao, no pode estar condicionada por qualquer preconceito. A existncia de um Poder

    Judicial respeitado uma condio do Estado de Direito e se neste ningum est imune a

    crticas importa que as mesmas assumam tambm a objectividade e seriedade que diferencia

    o jornalista do mero factotum.

    A norma do n. 4, introduzida com a reviso de 2007, probe, como regra, a publicao,

    por qualquer meio, de conversaes ou comunicaes interceptadas no mbito de um

    processo. A publicao s permitida sob a condio de no existir segredo de justia e haver

    consentimento expresso dos intervenientes nas conversaes ou comunicaes interceptadas.

    Consequentemente o contedo daquelas comunicaes ou conversaes constantes dum

    processo no pode ser publicado por qualquer meio.

    Sendo este um dos incisos mais violados do ordenamento jurdico importa precisar em

    primeiro lugar que o mesmo no fere minimamente a liberdade de expresso e de

    comunicao que constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrtica. A

    interdio de publicao de conversaes no contem qualquer limitao ao denominado

    direito de crnica sobre o processo, apenas exigindo uma maior elaborao com apelo a todos

    os elementos relevantes para uma melhor compreensibilidade que poder consubstanciar-se

    no uso de conversaes relevantes que constem do processo quando for pblico. Na verdade,

    o exerccio do direito de informao no impem a transcrio ipsis verbis, parcelar ou

    fragmentada, de conversas ou excertos avulsos de conversas gravadas.

    Teoricamente, o regime especfico do n. 4 justificado por exigncias do respeito pelo

    princpio da proporcionalidade e tambm para a proteco de direitos pessoais e

    constitucionais das pessoas envolvidas. Fundamentalmente o que est em causa a

    publicao de intercepes telefnicas que, nada tendo a ver com o objecto do processo e

    respeitando a fatos com repercusso pblica, so susceptveis de causar impacto meditico.

    Existe aqui uma subverso na utilizao de meio de obteno de prova de cuja utilizao o

    legislador rodeou de especiais cuidados, pela compresso de direitos que consuma, e que

    instrumentalizado com uma finalidade que o mesmo no comporta.

  • 36

    Tribunais e Comunicao Social

    Todavia, ntida a diferena entre a intercepo, cujo contedo essencial para a

    compreenso da relao processual e, nomeadamente, da substncia da prova produzida e

    aquela que nada tem a ver com o processo. A referncia primeira, numa fase sujeita regra

    da publicidade, pode, e deve ser efectuada, pois que s o seu uso permite tornar

    compreensvel o itinerrio processual da prova sendo certo que tal referncia nunca poder

    ser feita atravs da transcrio integral.

    Uma anlise mais aprofundada mereceria o regime desenhado pela Lei 48/2007. Porm,

    por maior que seja o nimo de entrar nestas matrias, no podemos esquecer o intuito j

    publicitado de as revisitar38.

    Aguardemos!

    Coimbra, 1 de Fevereiro de 2013

    38 Segundo a TSF de 22 de Outubro de 2010 a Ministra da Justia Paula Teixeira da Cruz diz que preciso

    revisitar o segredo de justia.

  • 37

    Videogravao da comunicao

    http://justicatv.pt/index.php?p=2177

  • Justia versus Comunicao Social ou vice-versa?

    [Raquel Alexandra Brzida Castro]

  • 41

    Justia versus Comunicao Social ou vice-versa?

    Sumrio:

    1. Questes Prvias: uma misso comum; 2. Justia e Comunicao: Parceiros Constitucionais

    Inseparveis; 3. O Relevo Constitucional dos Direitos dos Jornalistas; 3.1. Em especial: o

    Direito de Acesso s Fontes de Informao; 3.2. A consulta do processo; 3.3. A Audincia do

    Julgamento; 4. O Problema da Tutela Judicial Prvia.

    1. Questes prvias: uma misso comum1

    O controlo da actividade governativa e do exerccio do poder , sem dvida, um dos

    fundamentos substantivos mais relevantes da Liberdade de Expresso e do direito da

    informao. E neste preciso enquadramento que se fala nos meios de comunicao social como

    o Quarto Poder, apostado no controlo e responsabilizao pblica dos poderes legislativo,

    executivo e judicial2. Tal poder no resulta de um estatuto institucional criado e regulamentado

    intencionalmente pela ordem jurdica, mas sim de uma realidade ftica decorrente de uma

    estruturao policntrica e competitiva dos meios de comunicao, que ela reconhece e utiliza3.

    O relevo constitucional que o nosso legislador constituinte decidiu atribuir liberdade de

    informao, corresponde precisamente a uma atitude pragmtica face a uma realidade que o

    direito dificilmente pode controlar, pelo menos, sem sobressaltos democrticos. Para alm

    claro dos traumas do passado relativos liberdade de expresso, to fceis de descobrir no texto

    constitucional.

    A tenso que existe nas relaes entre a comunicao social e a justia acaba por ser o

    reflexo de um constante conflito constitucional. Mas tal como acontece com a ponderao de

    direitos e interesses constitucionalmente protegidos, dessa tenso dever resultar algo que no

    implique o total sacrifcio de um deles, sob pena de violao do seu contedo essencial. No se

    pretende uma justia amiga da comunicao social ou uma comunicao social amiga da justia,

    mas tambm no se pretende que sejam inimigas. desejvel que ambas cultivem uma relao

    de respeito e compreenso mtuas e que saibam conviver na partilha de uma misso que

    comum: a descoberta da verdade.

    1 Doutoranda em Direito e Mestre em Cincias Jurdico-Polticas pela Faculdade de Direito da Universidade de

    Lisboa (FDUL); Assistente Convidada da FDUL e Professora Auxiliar Convidada da Universidade Lusfona; Vogal

    do Conselho Regulador da ERC (Entidade Reguladora para a Comunicao Social); Ex-Jornalista e Ex-Editora de

    Poltica da SIC e SIC Notcias. 2 MACHADO, Jnatas (2002), Dimenses Constitucionais da Esfera Pblica no Sistema Social, Coimbra Editora:

    Coimbra, p. 267. 3 Ibidem, idem.

  • 42

    Justia versus Comunicao Social ou vice-versa?

    J sabemos que nem sempre ser possvel que os jornalistas sejam licenciados em direito

    ou que os magistrados tenham especiais qualidades de comunicao. No vale a pena insistir no

    que no se consegue controlar nem alterar. Esta a realidade e h que lidar com ela. Claro que, e

    falo por experincia prpria, tomar decises que envolvem jornalistas e os meios de

    comunicao social torna sempre quem as toma mais suscetvel de ser escrutinado no espao

    pblico. Quando os destinatrios das decises nem sempre agradveis so os meios de

    comunicao social, a presso meditica uma consequncia inevitvel. Para o bem e para o

    mal.

    Certo que, em matria de justia, por um lado, o legislador processual penal quis que o

    exerccio da liberdade de imprensa dependesse do juiz e que este pudesse avaliar, em funo das

    caractersticas do caso concreto, se deve ou no deferir certos requerimentos dos jornalistas. Por

    outro lado, o juiz no pode esquecer que certo tipo de decises que envolvem os meios de

    comunicao social tero, naturalmente, um impacto maior que outras. Para ajudar reflexo,

    trago-vos um conjunto de questes e decises judiciais que refletem bem essa tenso de que

    todos falam.

    2. Justia e Comunicao: Parceiros Constitucionais Inseparveis

    No faremos nesta sede adequada a nossa crtica adequao de parte da Constituio da

    Comunicao. Para facilitar a presente misso, seguiremos a leitura unnime que a doutrina faz

    da Constituio da Comunicao4: o artigo 37. reconhece e garante a liberdade de expresso e o

    direito da informao5, em geral; o artigo 38. ocupa-se da dimenso instrumental dessas

    liberdades (assegurada pela proteco da liberdade de imprensa e pelo regime dos demais meios

    de comunicao social); por ltimo, o artigo 39. prev uma estrutura organizativa de garantia

    desses vrios direitos e do regime constitucional dos meios de comunicao social a ERC6.

    4 A Constituio portuguesa de 1976 exibe uma regulamentao exaustiva da disciplina da comunicao social,

    o que ter determinado a instabilidade dos seus enunciados: nos artigos 38., 39. e 40. j foram introduzidas

    mais de 50 alteraes MELO ALEXANDRINO, Jos (2009) Problemas Jusfundamentais Emergentes da

    Regulao da Rdio e da Televiso em Portugal Comunicao ao Congresso Luso-Italiano de Direito

    Constitucional promovido pelo ICJP da FDUL; (2006) A Estruturao do Sistema de Direitos, Liberdades e

    Garantias na Constituio Portuguesa, Vol I Razes e Contexto, Coimbra Editora: Coimbra; 5 MELO ALEXANDRINO opta pela total autonomizao dos dois conceitos (1998) Estatuto Constitucional da

    Actividade da Televiso, Coimbra Editora: Coimbra. 6 Para uma anlise constitucional da Regulao da Comunicao Social BRZIDA CASTRO, Raquel Alexandra

    (2013), A Regulao da Comunicao Social numa Democracia Segura, in Segurana Pblica e Privada, 1.

    Congresso Internacional de Segurana Pblica e Privada, Faculdade de Direito de Lisboa e CJLP, Coimbra

    Editora: Coimbra.

  • 43

    Justia versus Comunicao Social ou vice-versa?

    Da anlise da Constituio da Comunicao, resulta que:

    1. A Constituio adopta um conceito formal amplo, querendo abranger todos os

    meios de comunicao social, independentemente da natureza e do contedo da

    comunicao;

    2. A liberdade de imprensa ou liberdade de comunicao social podem ser vistas

    como um modo de ser qualificado das liberdades de expresso e de informao,

    consistindo no exerccio destas atravs de meios de comunicao de massa,

    independentemente da sua forma impressos radiofnicos ou audiovisuais7;

    3. Os meios de comunicao social gozam dessa proteco constitucional, apenas

    como veculos da liberdade de expresso e de informao e no quando esto em causa

    actividades publicitrias ou de entretenimento8.

    A liberdade de imprensa e de informao encontra-se inserida no captulo dos direitos,

    liberdades e garantias, o que quer dizer que deve sujeitar-se ao respetivo regime de proteco

    constitucional. Pela nossa parte, a interpretao e integrao dos comandos constitucionais da

    Constituio da Comunicao baseiam-se nos seguintes pressupostos de uma proposta metdica

    de ponderao 9:

    1. Com ALEXY, consideramos que os direitos, liberdades e garantias devem ser

    entendidos como princpios ou mandatos de optimizao: consagram posies jurdicas

    prima facie, compatveis com uma concepo alargada do Tatbestand, cuja resultado da

    ponderao com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos h-de

    desenhar o seu efetivo mbito de proteco10;

    2. Contrapomos um conceito amplo de limite que torna indiferentes quaisquer

    classificaes de interveno restritiva: desenvolvimento ou restrio, configurao ou

    materializao de um direito fundamental. O que relevante que estejamos na

    7 CANOTILHO, Gomes/MOREIRA, Vital, (2007) Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, Volume I, 4.

    Edio. Coimbra Editora: Coimbra, p. 581. 8 Segundo JNATAS MACHADO, o conceito da liberdade de expresso em sentido amplo abrange a liberdade

    de expresso em sentido estrito (por vezes designada por liberdade de opinio), os direitos dos jornalistas e a

    Liberdade de radiodifuso - MACHADO, Jnatas (2002), Dimenses Constitucionais da Esfera Pblica no Sistema

    Social, Coimbra Editora: Coimbra, p. 371. 9 Para a nossa reflexo sobre vrias propostas metdicas de ponderao (2000) Contributo para o Estudo da

    Eutansia no Direito Constitucional Portugus, Relatrio de Mestrado (indito), Faculdade de Direito da

    Universidade de Lisboa: Lisboa; pp. 103 e segs. 10 Ibidem, p. 106.

  • 44

    Justia versus Comunicao Social ou vice-versa?

    presena de elementos restritivos ou seja de afetao desvantajosa11 do contedo do

    direito fundamental e que essa interveno seja expressa ou implicitamente autorizada

    pela Constituio12.

    Nesse caso, ganham obrigatoriamente relevncia os limites aos limites: desde a

    observncia de princpios como o da proporcionalidade ou da proibio do excesso, da proteco

    da confiana, da garantia do contedo essencial at natureza necessariamente geral e abstrata

    das leis restritivas, da exigncia de reserva de lei. E porqu? Porque em Estado de Direito, a

    liberdade a regra e a restrio a excepo. Na formulao de SCHMITT, a liberdade , em

    princpio, ilimitada, ou, como dizia ALEXY, tem natureza de princpio. A interveno do Estado ,

    em princpio, limitada, em quantidade mensurvel, carente de justificao e susceptvel de

    controlo 13.

    Um dos aspectos fundamentais do regime da liberdade de imprensa e dos direitos nela

    implicados tambm o da sua aplicabilidade directa, conforme determina o artigo 18., n. 1 da

    CRP, sendo o juiz, precisamente, em nosso entendimento, o destinatrio principal deste

    comando constitucional, na omisso do legislador. Concorde-se ou no com o detalhe da

    Constituio da Comunicao, rara no direito comparado, o artigo 18., e noutra perspetiva o

    artigo 288., obrigam a que os direitos, liberdades e garantias da comunicao sejam levados a

    srio em qualquer conflito constitucional com outros direitos ou interesses constitucionalmente

    protegidos.

    Essa afirmao ganha ainda maior relevncia no quadro de uma democracia constitucional

    fundamentalista como a nossa na qual a hiper-rigidez que lhe inerente, supe a

    densificao da ideia de elementos constitucionais, atravs da tendencial consumao da

    conceo poltica de justia no nvel constitucional e concomitante excluso da sua devoluo

    para o nvel legislativo 14. O entricheiramento dos direitos numa clusula de limites materiais

    11 NOVAIS, Jorge Reis (2003), As Restries aos Direitos Fundamentais No Expressamente Autorizadas Pela

    Constituio, Coimbra Editora: Coimbra, pp. 189 e segs. 12 Conforme nota JORGE REIS NOVAIS, o Tribunal Constitucional, para contornar a proibio constitucional de

    restries no expressamente previstas, usa a seguinte estratgia de fuga: se a interveno restritiva no

    toca o contedo essencial, no verdadeira restrio; se a afectao da liberdade se deve necessidade de

    composio de interesses constitucionais conflituantes e essa composio feita de acordo com o princpio da

    concordncia prtica e sem desrespeito pela proporcionalidade, ento o sacrifcio tambm no verdadeira

    restrio; se se trata de concretizar, interpretar, revelar limites imanentes, o prejuzo no tambm verdadeira

    restrio. Ibidem, p. 184. 13 Ibidem, pp. 189 e 190. 14 BRITO, M. Nogueira (2000), Constituio Constituinte: Ensaio sobre o Poder de Reviso da Constituio,

    Coimbra, p. 439.

  • 45

    Justia versus Comunicao Social ou vice-versa?

    ou numa carta constitucional de direitos pode ser considerado antidemocrtico15, mas como

    observa RAWLS, a verdade que julgados atravs dos valores de uma conceo poltica razovel

    da justia, regimes como o da supremacia parlamentar sem qualquer carta de direitos ou o

    alemo podem eventualmente revelar-se superiores a um regime dualista no qual estas questes

    bsicas so resolvidas pela lei fundamental de Ns o Povo16.

    O juiz o destinatrio fundamental do mandato constitucional de concretizao da

    liberdade de expresso e do direito da informao e dos direitos a envolvidos, na ausncia ou

    desadequao do legislador. Em nosso entender, o princpio da aplicabilidade direta dos direitos,

    liberdades e garantias, consagrado no artigo 18. da Constituio no se esgota na aplicao

    direta apenas das normas constitucionais que j so exequveis por si mesmas e por isso

    suscetveis de regular diretamente as situaes da vida subsumveis ao seu Tatbestand. Tornar-

    se-ia redundante 17 a sua afirmao no artigo 18. n. 1 da Constituio, uma vez que essa uma

    consequncia lgica do princpio da constitucionalidade e do valor normativo de todas as normas

    constitucionais e no apenas das normas que consagram os direitos, liberdades e garantias. Com

    efeito, no so as nicas, bem pelo contrrio, pois, em Constituio normativa, postulado

    geral que as suas normas so aplicveis, ou suscetveis de ser aplicveis, diretamente nas

    situaes da vida18.

    No se trata de desvalorizar a necessidade de o legislador desenvolver os preceitos

    constitucionais em matria de direitos fundamentais, at porque tal necessidade far-se- sentir

    quase sempre, no apenas para se delimitar o seu prprio mbito e para se obter a

    pormenorizao do seu contedo, como tambm para se assegurarem as condies mnimas de

    carter formal e processual do exerccio dos direitos19. Trata-se de uma descarga

    constitucional 20 que se faz no prprio benefcio da exequibilidade do direito fundamental.

    15 RAWLS, John (1997), O Liberalismo Poltico, Lisboa, p. 228. O autor refere-se constituio alem que pe

    esses direitos ao abrigo de qualquer emenda, mesmo que a origem dessa emenda resida no povo ou no

    Supremo Tribunal alemo. (...) Deve ser reconhecido que, enquanto tal, o liberalismo poltico no afirma ou

    nega qualquer destas pretenses sendo assim intil discuti-las. O nosso argumento simplesmente o de

    que, independentemente do modo adotado de resoluo destas questes, o contedo de uma conceo

    poltica de justia inclui os valores da razo pblica cuja invocao determina a apreciao dos mritos dos trs

    tipos de regimes Ibidem, Idem. 16 Ibidem, idem. 17 CASTRO, Raquel Alexandra Brzida Castro (2012), As Omisses Normativas Inconstitucionais no Direito

    Constitucional Portugus, Almedina: Coimbra, pp. 133 e segs. 18 MIRANDA, Jorge (2000), Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra Editora: Coimbra. p. 311. 19 QUADROS, Fausto, (1986) Omisses Legislativas sobre direitos fundamentais, in Nos Dez Anos da

    Constituio, Lisboa, p. 58. 20 BLANCO DE MORAIS, Carlos, (2011), Justia Constitucional, Tomo II, Coimbra Editora: Coimbra, p. 528.

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    Justia versus Comunicao Social ou vice-versa?

    Perante omisses inconstitucionais lesivas de direitos, liberdades ou garantias e daquele

    ncleo restrito de direitos sociais fundamentais de prestao, como a sade e a segurana social,

    radicados no princpio da dignidade da pessoa humana, defendemos a afirmao de princpio de

    que perante normas constitucionais no exequveis por si mesmas que o princpio da

    aplicabilidade direta revela grande parte da sua utilidade no exclusiva , sobretudo, nos casos

    que mais diretamente nos interessam em que no exista legislao sobre a matria ou

    quando esta for deficitria: em situaes, portanto, de falta ou insuficincia de lei21. A, o

    princpio valer como indicador da exequibilidade potencial das normas constitucionais,

    presumindo-se a sua perfeio, isto , a sua autossuficincia baseada no carter determinvel

    do respetivo contedo de sentido22, sendo possvel afirmar o dever dos juzes e dos demais

    operadores jurdicos de aplicarem as normas constitucionais e a autorizao para com esse fim

    os concretizarem por via interpretativa23.

    A Constituio presume que, no momento da aplicao das normas de direitos, liberdades

    e garantias, elas estaro aptas a regular as situaes juridico-materiais que cabem nos respetivos

    mbitos normativos. Ou porque so capazes de exibir a suficiente determinabilidade ao nvel

    constitucional ou, ento, porque o legislador lhes conferiu a exequibilidade necessria.

    Neste caso, sustentamos que pode falar-se, pois, de uma sobreposio dos conceitos de

    omisso normativa inconstitucional e de lacuna normativo-constitucional: estar-se- perante

    uma lacuna constitucional inconstitucional. Perante a impossibilidade de aplicao direta de uma

    norma constitucional consagradora de um direito, liberdade ou garantia e de um direito

    fundamental de natureza anloga, o intrprete ou o rgo aplicador do Direito deve, pois,

    entender que se trata de uma lacuna24. Perante uma lacuna, o juiz deve integr-la25, no

    21 ANDRADE, Vieira de, (2001), Os Direitos Fundamentais na Constituio Portuguesa de 1976, 2. Edio,

    Coimbra, p. 201. 22 Ibidem, pp. 201 e 202. 23 Ibidem, p. 202. 24 Segundo GOMES CANOTILHO, as lacunas de regulamentao abrangem dois grupos distintos: 1) lacunas

    ao nvel das normas incompletude da norma que exige complementao para que possa ser aplicado; 2)

    lacunas de regulamentao quando no se trata da incompletude da norma mas de uma determinada

    regulamentao em conjunto. CANOTILHO, J. J. Gomes, (2003), Direito Constitucional e Teoria da

    Constituio, 7. Ed., Coimbra, p. 1160. 25 CASTRO, Raquel Alexandra Brzida (2012), Por Uma Fiscalizao Concreta e Difusa das Omisses Legislativas

    Inconstitucionais que Violam Direitos, Liberdades e Garantias, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor

    Jorge Miranda, Coimbra Editora: Coimbra, pp. 413 e segs.

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    Justia versus Comunicao Social ou vice-versa?

    podendo invocar o falso pretexto de no dispor de norma aplicvel, sob pena de denegao de

    justia26, que o ordenamento jurdico probe e sanciona27.

    Claro que tal princpio no varinha de condo passvel de transformar as normas no

    exequveis que declaram esses direitos em normas exequveis por si prprias28. A soluo de

    recurso tcnica da lacuna , precisamente, uma reao perante as omisses normativas que se

    insere no domnio da patologia constitucional29, justificvel perante um sistema de omisses

    normativas persistentes que no permitem qualquer gozo do direito consagrado

    constitucionalmente30. Permite interpretar o princpio da aplicabilidade direta como uma

    vocao ou uma autorizao ao juiz de usar todos os meios interpretativos e integrativos de

    que dispe, at mesmo para elaborar uma norma de deciso para aquele caso concreto, perante

    determinadas condies, com o objetivo de permitir a eficcia de um direito fundamental3