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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros COELHO, JG. Consciência e matéria: o dualismo de Bérgson [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 258 p. ISBN 978-85-7983-108-9. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Consciência, vida e matéria Jonas Gonçalves Coelho

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    COELHO, JG. Conscincia e matria: o dualismo de Brgson [online]. So Paulo: Editora UNESP; So Paulo: Cultura Acadmica, 2010. 258 p. ISBN 978-85-7983-108-9. Available from SciELO Books .

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    Todo o contedo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio - Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

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    Conscincia, vida e matria

    Jonas Gonalves Coelho

  • 3conScincia, vida e matria

    Consideraes iniciais

    os temas a natureza da conscincia e da matria e a relao entre conscincia e matria, tratados a partir de uma reflexo epistemolgica no Ensaio no mbito da qual se estabeleceu uma distino essencial entre conscincia e matria, e de um confronto com a neurofisiologia materialista, localizacionista e associacionista em Matria e memria no mbito do qual resultou a irredutibilidade e independncia da conscincia em relao matria, foram tambm objeto do terceiro livro mais importante de Bergson, A evoluo criadora. nessa obra, Bergson (1979a) se prope a explicar, em consonncia com o dualismo conscincia e matria estabelecido anteriormente, a origem, a natureza e a variedade da vida. como veremos, o filsofo defende uma concep-o evolucionista da vida, contra e distinta das concepes materialistas evolucionistas ento dominantes, estendendo a conscincia, diferen-temente de Descartes, vida em geral.

    a simpatia de Bergson em relao ao evolucionismo remonta ao incio de sua produo filosfica. o evolucionismo de spencer teria im-pulsionado e inspirado suas concepes filosficas originais a respeito da natureza do tempo. Bergson (1993a, p.40) s no compreendia como essa mesma filosofia de spencer que, feita para seguir o real na sua

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    mobilidade, seu progresso, sua maturao interior, tinha podido fechar os olhos quilo que era a prpria mudana. Da, Bergson mais tarde, quando de posse de uma teoria do tempo real, se propor a retomar o problema da evoluo da vida refazendo quase que totalmente o evolucionismo de spencer. o resultado, como procuraremos mostrar tomando A evoluo criadora como fio condutor, uma explicao da origem, natureza e evoluo da vida na qual conscincia e matria so, por um lado, essencialmente distintas e irredutveis uma outra, e, por outro, so profundamente ligadas, ligao essa que se expressa pelo fato de a conscincia ser responsvel pela evoluo e variao da vida ao mesmo tempo que tem os seus principais atributos e formas determinados pelas diferentes manifestaes de vida e pela lgica de sua relao pragmtica com a matria em geral.

    Trataremos esses dois aspectos separadamente. apresentaremos, primeiramente, a crtica de Bergson s concepes evolucionistas dominantes, o materialismo mecanicista e o finalismo, crtica que culmina na postulao da noo de lan vital, noo-chave para a defesa da irredutibilidade da vida matria, o que significa, como veremos, a distino e irredutibilidade da conscincia matria. Trataremos, num segundo momento, da unio entre conscincia e matria, mas agora, diferentemente do captulo anterior, tomando a unio como um dado e procurando evidenciar como a partir dela que Bergson explica as vrias formas de conscincia. no final do captulo, buscaremos refletir criticamente sobre esse percurso bergsoniano, procurando mostrar que a conscincia aparece simultaneamente como causa e efeito do processo evolutivo.

    A conscincia como causa da evoluo da vida

    I

    Para enfrentar as explicaes mecanicistas e finalistas da evoluo, Bergson (1979a, p.61) elegeu um enigma biolgico o qual lhe permiti-ria mostrar a insuficincia dos princpios invocados de um lado e de

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    outro, ou seja, a formao da estrutura do olho humano. Uma teoria evolucionista deveria ser capaz de explicar satisfatoriamente no apenas as diferenas entre os seres vivos, a variedade da vida na Terra, mas tambm, e principalmente, a semelhana de rgos to complexos como o olho, em sries de evoluo divergente como a dos moluscos marinhos e a dos vertebrados.

    os finalistas, em geral tentando demonstrar a existncia de um arquiteto do universo, destacam que a estrutura maravilhosa dos rgos dos sentidos s poderia ser resultado de um desgnio, com-parando desse modo o trabalho da natureza ao de um trabalhador inteligente (ibidem, p.60). o olho, por exemplo, no poderia ser considerado como resultante do acaso o qual no poderia ter constru-do um rgo cuja funo principal, a viso, depende da coordenao de milhares de elementos.

    Para que se opere a viso [...] preciso que a esclertica se torne transparente num ponto de sua superfcie, a fim de permitir que os raios luminosos a atravessem [...]; preciso que a crnea corresponda justa-mente prpria abertura da rbita do olho; preciso que por trs dessa abertura transparente achem-se meios convergentes [...]; preciso que na extremidade da cmara escura se encontre a retina [...] preciso, perpen-dicularmente retina, uma quantidade inumervel de cones transparentes que s deixem chegar membrana nervosa a luz dirigida segundo o sentido de seu eixo etc. (ibidem, p.61)

    crtico do finalismo, o evolucionismo darwiniano, segundo a descrio de Bergson, defende que essa caracterizao do olho como algo maravilhoso, sugerindo desse modo a necessidade de uma interveno sobrenatural para explic-lo, se deve ao fato de que se considera o olho j formado. essa harmonia indispensvel viso poderia ser explicada naturalmente como um aperfeioamento cres-cente do rgo produzido pelo jogo inteiramente mecnico da seleo natural (ibidem). no caso da viso, essa evoluo se iniciaria com o surgimento casual de uma mancha pigmentar susceptvel ao da luz, constituindo-se essa funo visual numa simples impressiona-bilidade (quase puramente qumica) (ibidem, p.62). em razo da

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    ao direta de algum tipo de mecanismo desconhecido, ou indireta, efeito das vantagens que [a funo visual] forneceria ao ser vivo, ter-se-ia se produzido uma complicao ligeira do rgo e essa, por sua vez, teria levado a um novo aperfeioamento da funo e assim sucessivamente at a formao do olho infinitamente complicado dos vertebrados. Desse modo, a formao progressiva de um rgo to complexo quanto o olho humano teria sido produzida por uma srie infinita de aes e reaes entre a funo e o rgo, sem a interveno de uma causa extramecnica (ibidem), de uma inteligncia divina.

    essa seria uma das verses do evolucionismo darwiniano, o modelo das variaes leves, que se adicionariam pelo efeito da seleo natural, o qual Darwin teria efetivamente defendido em A origem das espcies.1 a outra verso seria o modelo das variaes bruscas, que apareceriam sbita e simultaneamente. Bergson, como mostraremos a seguir, cri-tica ambas as concepes procurando mostrar que elas no resolvem o enigma do surgimento e evoluo do olho nas sries independentes da evoluo da vida. comecemos pelas consideraes de Bergson a respeito da hiptese de que a evoluo do olho resulta do surgimento, ao acaso, de pequenas diferenas em suas vrias partes, diferenas essas que aumentariam gradativamente ao longo do tempo, ou seja, a evoluo do olho consistiria em variaes casuais simultneas em cada uma de suas partes, preservando-se a sua integrao e, conse-quentemente, a viso.

    so vrias as objees levantadas por Bergson contra essa explica-o. Primeiro, a ocorrncia de variaes simultneas e integradas com a preservao da viso seria altamente improvvel, sendo muito mais provvel o surgimento de modificaes isoladas das quais resultaria a cegueira. segundo, no seria razovel tentar resolver essa dificuldade postulando que as variaes no ocorrem simultaneamente, que uma

    1 Referindo-se presena dessa concepo na obra A origem das espcies, de Darwin, Bergson (1991, p.63) diz o seguinte: Darwin falava de variaes muito leves, que se adicionariam entre si pelo efeito da seleo natural. ele no ignorava os fatos de variao brusca; mas essas mutaes, como ele as chamava, a seu ver, s davam monstruosidades incapazes de perpetuar-se, e por meio de uma acumulao de variaes imperceptveis que ele explicava a gnese das espcies.

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    parte do olho se modifica sem prejudicar o seu funcionamento e que apenas com a ocorrncia de variaes complementares posteriores em outras partes do olho que haveria o aperfeioamento da viso. essa explicao seria contrria ao prprio darwinismo segundo o qual no haveria preservao de caractersticas que no fossem teis ao processo adaptativo: como explicar a conservao pela seleo de uma variao insensvel, que embora no prejudique o funcionamento do olho de nada lhe serve se no acompanhada de modificaes complementares? Utilizando-se da metfora arquitetnica, Bergson (1979a, p.65) aponta uma contradio na explicao darwiniana, ou seja, um vis finalstico: raciocina-se como se essa pequena variao fosse uma pedra de espera colocada pelo organismo e reservada para uma construo ulterior. Terceiro, o darwinismo incorreria tambm, e inevitavelmente, em um finalismo, ao explicar a partir de variaes lentas a semelhana entre a estrutura do olho dos vertebrados e dos moluscos duas linhas de evoluo divergente:

    como supor, com efeito, que as mesmas pequenas variaes, em n-mero incalculvel, se tenham produzido na mesma ordem em duas linhas de evoluo independentes, se fossem puramente casuais? e como se tero conservado por seleo e acumulado, de um lado e de outro, sempre as mesmas na mesma ordem, enquanto cada uma delas, tomadas parte, no era de utilidade alguma? (ibidem, p.65)

    Bergson conclui, assim, que no se pode explicar convincentemente a forma atual do olho dos moluscos e vertebrados a partir da aquisio sucessiva de um nmero incalculvel de semelhanas infinitesimais (ibidem, p.66).

    consideremos agora as crticas de Bergson outra hiptese darwi-niana, a de que a forma atual do olho das diversas espcies no decorreu da acumulao gradual de um grande nmero de mudanas, mas sim da ocorrncia casual de um nmero relativamente pequeno de saltos bruscos em cada uma das partes do olho.2 as dificuldades dessa abor-

    2 hiptese defendida por diversos naturalistas, em especial Bateson, o qual teria

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    dagem seriam aparentemente menores, primeiro porque a conservao das variaes bruscas poderia ser explicada pelas vantagens por elas proporcionadas na luta pela preservao da vida, jogo da seleo, e, segundo, porque o nmero de semelhanas entre espcies distintas seria menor, tornando mais fcil aceitar o seu surgimento simultneo casual. nos termos de Bergson, parece que o milagre menor.

    contra essa hiptese, Bergson tambm apresenta vrias objees. Primeiro, na medida em que a viso depende da ao conjunta e im-prescindvel das vrias partes do olho, a ocorrncia de uma modifica-o brusca em apenas uma delas inviabilizaria a viso. e no caso de a modificao sbita ocorrer simultnea e coordenadamente em todas as outras partes do olho,3 dever-se-ia explicar como essa coordenao poderia acontecer sem o prejuzo da viso, pois, ainda que se admita que uma variao acidental numa estrutura to complicada como a do olho gere as outras, no se explicaria por que essas ltimas contribuiriam para o mesmo fim, ou seja, a viso. Mudanas solidrias no seriam necessariamente complementares.

    concordo at certo ponto que uma modificao do germe, que influi na formao da retina, atue ao mesmo tempo sobre a formao da crnea,

    escrito, segundo as palavras de Bergson, um livro notvel, Materials for the study of variation, de 1894, e tambm pelo botnico hugo de vries, sobre o qual Bergson (1979a, p.63) diz o seguinte: esse botnico, trabalhando com a oenothera la-marchiana, obteve, ao cabo de algumas geraes, certo nmero de novas espcies. a teoria que se extrai de suas experincias do mais alto interesse. as espcies passariam por perodos alternantes de estabilidade e transformao. Quando acontece o perodo da mutabilidade, elas produziriam formas inesperadas.

    3 essa uma referncia ao que seria a lei de correlao j defendida por Darwin em A origem das espcies. alegar-se- que uma mudana no est localizada em ponto nico do organismo, e que ela tem sobre outros pontos sua repercusso necessria. os exemplos dados por Darwin ficaram clssicos: os gatos brancos que tm os olhos azuis so, em geral, surdos; os ces desprovidos de pelos tm a dentio imperfeita, etc. admitamos, mas no jogamos agora com o sentido da palavra correlao. Uma coisa certo conjunto de mudanas solidrias, e outra um sistema de mudanas complementares, isto , coordenadas umas s outras de modo a manter e mesmo aperfeioar o funcionamento de um rgo em condies mais complicadas (Bergson, 1979a, p.67).

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    da ris, do cristalino, dos centros visuais, etc., embora se trate no caso de formaes de outro modo heterogneas entre si como no o so sem d-vida pelos e dentes. Mas que todas essas variaes simultneas se faam no sentido de um aperfeioamento ou mesmo simplesmente manuteno da viso, eis o que no posso admitir na hiptese da variao brusca... (ibidem, p.67)

    segundo, as dificuldades seriam ainda maiores se se postula uma coincidncia entre as mudanas do olho em espcies que teriam seguido uma linha de evoluo divergente e independente.

    admito que uma multido de variaes no coordenadas entre si tenha surgido em indivduos menos felizes, que a seleo natural os tenha eliminado, e que, apenas, a combinao vivel, isto , capaz de conservar e melhorar a viso, tenha sobrevivido. ainda preciso que essa combinao se tenha produzido. e, a supor que o acaso tenha feito esse favor uma vez, como admitir que ele o repita no curso da histria de uma espcie, de modo a suscitar cada vez, simultaneamente, complicaes novas, ma-ravilhosamente reguladas umas pelas outras, situadas no prolongamento das complicaes anteriores? sobretudo, como supor que, por uma srie de simples acidentes, essas variaes bruscas se tenham produzido as mesmas, na mesma ordem, implicando cada vez um acordo perfeito de elementos cada vez mais numerosos e complexos, ao longo de duas linhas de evoluo independentes? (ibidem, p.66)

    Baseando-se nessas crticas Bergson conclui que essas duas verses do evolucionismo darwiniano no apenas no decifram o enigma ini-cialmente proposto, ou seja, o desenvolvimento paralelo de estruturas complexas idnticas em linhas de evoluo independentes (ibidem, p.69), mas tambm que elas contradizem seu pressuposto fundamen-tal, ou seja, que possvel explicar mecnica e naturalmente, isto , sem a necessidade de uma intencionalidade inteligente e finalstica, a evoluo das espcies.

    se as variaes acidentais que determinam a evoluo so variaes insensveis, ser preciso recorrer a um gnio bom o gnio da espcie

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    futura , para conservar e adicionar essas variaes, porque no ser a seleo que se encarregar disso. se, por outro lado, as variaes acidentais so bruscas, a antiga funo no continuar a se exercer, ou uma funo nova no a substituir, a menos que todas as transformaes ocorridas juntas se completem em vista da realizao de um mesmo ato: ser ainda preciso recorrer ao gnio bom, desta vez para obter a convergncia das transformaes simultneas, como h pouco para garantir a continuidade de direo das variaes sucessivas. (ibidem, p.69)

    II

    at o momento, seguindo a diviso proposta por Bergson, tratamos das hipteses evolucionistas que explicam as variaes dos rgos como um fato acidental ocorrido no interior do organismo. entretanto, essas alteraes seriam tambm frequentemente explicadas a partir de fatores ambientais externos e nessa perspectiva que Bergson interpreta o conceito de adaptao, em suas verses darwinista e lamarckista. Tra-taremos inicialmente da influncia do meio sobre o organismo segundo a viso darwinista. Bergson identifica a duas possibilidades: o meio externo funcionaria apenas como uma condio casual de eliminao de alguns organismos; o meio externo produziria diretamente as ca-ractersticas adaptativas indispensveis sobrevivncia.

    consideremos primeiramente as objees de Bergson hiptese de que o meio externo favoreceria os membros de uma espcie que, por obra do acaso, estivessem mais bem adaptados e eliminaria au-tomaticamente os inadaptados. Bergson alega que a influncia dos fatores externos apenas indireta e negativa, que ela explicaria apenas o que desapareceu, sendo, portanto, incompleta e insatisfatria para explicar o que fundamental e verdadeiramente enigmtico, ou seja, a estrutura extraordinariamente complicada e idntica dos rgos, em especial do olho, em linhas de evoluo divergente. a adaptao no explicaria como um efeito infinitamente complicado possa ter se produzido mais de uma vez a partir de um nmero infinito de causas acidentais apresentando-se numa ordem casual (Bergson, 1979a, p.54). ainda que se admita que efeitos idnticos possam

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    ser produzidos por causas diferentes, isso no seria suficiente para explicar como que esse mesmo nmero infinito de causas infinitesimais, inteiramente casuais, reapareceria na mesma ordem, em pontos diferentes do espao e do tempo. Bergson prope uma analogia que nos permite compreender bem qual , a seu ver, a prin-cipal dificuldade que essas concepes evolucionistas mecanicistas no conseguem resolver.

    nada h de mais comum que dois caminhantes, provindos de dois pontos diferentes e que tenham vagueado pelo campo ao sabor de sua fantasia, venham a se encontrar. Mas que ao caminhar desse modo dese-nhem curvas idnticas, exatamente superponveis uma outra, intei-ramente improvvel. a improbabilidade ser, alis, tanto maior quanto os caminhos percorridos por um e por outro apresentem meandros mais complicados. e ela se converter em impossibilidade se os zigue-zagues dos dois caminhantes forem de uma complexidade infinita. ora, essa complicao de zigue-zagues mnima em comparao de um organismo em que esto dispostas em certa ordem milhares de clulas diferentes, cada uma das quais uma espcie de organismo. (ibidem, p.57)

    no sendo a adaptao um processo de eliminao promovido pelo ambiente externo, seria ela o resultado de sua ao mecnica de-terminstica? segundo essa concepo, atribuda a eimer, o organismo seria modelado por causas externas explicando-se as semelhanas dos rgos pela semelhana das causas que os produziram, aplicando-se o princpio de que as mesmas causas produzem os mesmos efeitos (ibidem, p.57). a identidade das condies gerais externas e durveis em que a vida evoluiu explicaria a semelhana de estrutura dos rgos em sries de evoluo independentes. a luz, por exemplo, explicaria a constituio do olho dos vertebrados e moluscos.

    se moluscos e vertebrados evoluram separadamente, uns e outros permaneceram expostos influncia da luz. e a luz uma causa fsica que engendra efeitos determinados. atuando de maneira continuada, ela conseguiu produzir uma variao continuada em certa direo constante [...] o olho cada vez mais complexo seria algo como a impresso cada vez

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    mais profunda da luz sobre certa matria que, sendo organizada, possui uma capacidade sui generis para receber. (ibidem, p.70)

    Bergson concorda que a mancha pigmentar dos organismos infe-riores primeiro rudimento do olho pode ter sido produzida pela ao da luz. Mas discorda da generalizao segundo a qual os fatores externos seriam os responsveis pelo modo de ser do olho em qualquer nvel evolutivo que se considere. Fornecer a mesma explicao para o surgimento da mancha pigmentar e para o olho em seus vrios graus de complexidade seria comparvel a explicar pela ao da luz no apenas a fotografia, mas tambm a prpria estrutura e o funcionamento de uma mquina fotogrfica: sem dvida, a fotografia voltou-se aos poucos no sentido da mquina fotogrfica; mas ser a luz apenas, fora fsica, que teria podido provocar essa mudana e converter uma impresso deixada por ela numa mquina capaz de a utilizar? (ibidem, p.71).

    a dificuldade seria maior ainda se considerarmos que o olho no apenas um rgo isolado de viso, mas um aparelho acoplado e articulado com outros aparelhos, por exemplo, o sistema motor, o qual permitiria que a viso se estendesse em ao. a ideia de adap-tao passiva no apenas no explicaria a contento o fato de o olho tirar proveito da luz, pelo que diz respeito capacidade de ver, como tambm no seria capaz de explicar o proveito que o olho tira da luz quanto ao. a viso nos permite utilizar os objetos que nos so vantajosos e evitar aqueles que nos so nocivos, envolvendo, desse modo, a utilizao de mecanismos ligados ao motora. Poder-se-ia considerar que a luz tenha produzido fisicamente uma mancha de pigmento, assim como ela pode produzir movimentos reativos de alguns organismos infusrios ciliados no se seguindo, entretanto, da, que a influncia da luz tenha causado fisicamente a formao de um sistema nervoso, de um sistema muscular, de um sistema sseo, todas as coisas que esto em continuidade com o aparelho da viso nos vertebrados (ibidem, p.72).

    em resumo, embora Bergson concorde que fatores ambientais produzam modificaes no organismo da no se segue que eles possam explicar, como no caso da luz em relao ao olho uma srie progres-

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    siva de aparelhos visuais, todos extremamente complexos, todos, no entanto, capazes de ver, e vendo cada vez melhor (ibidem, p.75). alm das razes apresentadas, essa tese dificilmente poderia ser defendida, tambm pelo fato de ter que se aceitar que constituies fsico-qumicas diferentes, como a dos moluscos e vertebrados, possam resultar em um mesmo rgo, o olho, sob a ao da luz. Dever-se-ia ainda observar que determinadas caractersticas semelhantes do olho de moluscos e vertebrados poderiam ser explicadas a partir de diferentes causas. Por exemplo, enquanto a retina dos vertebrados seria produzida pela expanso que o esboo de crebro emite no jovem embrio [...] nos mo-luscos, a retina decorre do ectoderma diretamente, e no indiretamente por intermdio do encfalo embrionrio (ibidem, p.76).

    III

    Passemos agora s crticas de Bergson interpretao lamarckista do conceito de adaptao. o filsofo privilegia aqueles que seriam os dois princpios fundamentais da perspectiva neolamarckista:4 primeiro, a variao dos rgos decorre de um esforo de adaptao dos seres vivos, esforo esse que levaria a um mesmo resultado nas mesmas circunstncias, principalmente se as dificuldades externas puderem ser superadas por apenas uma soluo (ibidem, p.78); segundo, essa variao dos rgos seria transmitida hereditariamente. em relao ao primeiro aspecto, a crtica de Bergson relativamente simples: o esforo de adaptao explicaria apenas a variao de grandeza de um rgo, ou seja, seu crescimento e fortalecimento, e no o aumento progressivo de sua complexidade.

    Mais ampla e complexa a crtica de Bergson ideia da heredi-tariedade dos caracteres adquiridos. no se trata de criticar a tese da hereditariedade propriamente dita, mas sim de se estabelecer o que que pode ser transmitido hereditariamente. contra as ideias domi-nantes segundo as quais os caracteres adquiridos so os hbitos, isto

    4 Referncia concepo e s obras do naturalista americano cope, The origin of the fittest de 1887 e The primary factors of organic evolution de 1896.

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    , os comportamentos, e que os efeitos do hbito so as alteraes orgnicas decorrentes do comportamento herdado, Bergson apresenta uma outra explicao, a de que a caracterstica adquirida poderia ser alguma tendncia ou aptido natural responsvel pelo surgimen-to do prprio hbito. seria difcil saber se o germe que o indivduo carrega em si transmite o hbito ou uma tendncia natural da qual o hbito apenas o efeito:

    nada prova que a toupeira se tenha tornado cega porque adquiriu o hbito de viver debaixo da terra: tal se deve talvez a que os olhos da toupeira estivessem em via de se atrofiar quando ela teve de condenar-se vida subterrnea. neste caso, a tendncia de perda da vista se teria transmitido de germe em germe, sem que nada houvesse sido adquirido ou perdido pelo soma da prpria toupeira. (ibidem, p.80)

    Bergson tambm critica a ideia de que distrbios comportamentais adquiridos em decorrncia de alguma alterao corporal significativa induzida por meios artificiais possam ser, enquanto tais, transmitidos hereditariamente. Fatos como o alcoolismo dos pais herdado pelos filhos poderiam ser interpretados no como a transmisso direta para o filho do alcoolismo adquirido pelo pai, e sim como a influncia do lcool sobre o plasma germinativo5 do pai. embora parea, nesse

    5 Bergson refere-se aqui a august Friedrich leopold Weismann (1834-1914). esse propunha uma distino entre o germeplasma, ou plasma germinativo, o qual consistia no material responsvel pela hereditariedade, contido nas clulas reprodutivas, e o somatoplasma, ou plasma somtico, material das outras clulas do corpo. sabe-se como Weismann foi levado, por sua hiptese da continuidade do plasma germinativo, a considerar as clulas germinais vulos e espermatozoides como quase independentes das clulas somticas. a partir da, pretendeu-se, e muitos pretendem ainda, que a transmisso hereditria de um carter adquirido seja coisa inconcebvel. Todavia, por acaso, a experincia mostrasse que os caracteres adquiridos so transmissveis, ela provaria, por isso mesmo, que o plasma germinativo no to independente quando se o diz em relao ao meio somtico, e a transmissibilidade dos caracteres adquiridos se tornaria ipso facto concebvel, o que equivale a dizer que conceber e no conce-ber nada tm a ver em caso semelhante e que a questo remete exclusivamente experincia. Mas aqui comea precisamente a dificuldade. os caracteres

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    caso, que o corpo do pai agiu sobre seu germe, de fato, ambos simples-mente teriam sofrido a ao de uma mesma causa, no caso, o lcool. Mesmo admitindo-se que o corpo possa influir sobre o germe, seria legtimo supor que o efeito dessa influncia seja uma alterao geral do plasma germinativo que produziria uma modificao no descen-dente, em geral diferente daquela do ascendente. o que significa, para Bergson, ainda que no o explique em detalhes, que o alcoolismo do filho, ainda que herdado do pai, assumiria formas distintas. o lcool poderia produzir uma modificao em determinada parte do soma, a qual, por sua vez, provocaria ganho ou perda de substncias no plasma germinativo. Dessas substncias poderiam resultar alteraes no filho, diferentes daquelas produzidas pelo lcool no corpo do pai.

    ainda com o objetivo de questionar a tese de que distrbios com-portamentais possam ser herdados ou transmitidos, Bergson interpreta uma experincia que aparentemente demonstra que um estado epil-tico provocado pelo seccionamento da medula espinhal ou do nervo citico de cobaias pode ser transmitido aos descendentes. nesse caso, invocando experimentos de alguns fisilogos, Bergson diz que no h transmisso hereditria de comportamento.

    Resulta, com efeito, das experincias de voisin e Peron, que os ataques de epilepsia so acompanhados da eliminao de um corpo txico, capaz de produzir, nos animais, por injeo, episdios convulsivos. Talvez as perturbaes trficas, consecutivas s leses nervosas que B.s. provocava se traduzam precisamente pela formao desse veneno convulsionante. nesse caso, a toxina passaria da cobaia a seu espermatozoide ou vulo, e determinaria no desenvolvimento do embrio uma perturbao geral, que poderia, entretanto, s produzir efeitos visveis em tal ou qual ponto especial do organismo j evoludo. as coisas se passariam no caso como nas experincias de charrin, Delamare e Moussu. cobaias em gestao, cujo fgado ou rim se deteriorasse, transmitiriam essa leso sua proge-nitora, simplesmente porque a deteriorao do rgo da me engendrara citoxinas especficas, as quais atuaram sobre o rgo homlogo do feto.

    adquiridos de que se fala so no raros hbitos ou efeitos do hbito (Bergson, 1979a, p.79).

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    verdade que, nessas experincias, como de resto numa observao anterior dos mesmos fisilogos, o feto j formado que sofre a influncia das toxi-nas. Mas outras pesquisas de charrin chegaram a mostrar que o mesmo efeito pode ser produzido, por mecanismo anlogo, em espermatozoides e vulos. (ibidem, p.81)

    De acordo com a interpretao de Bergson, os exemplos anteriores mostrariam apenas que a transmisso hereditria de caractersticas adquiridas seria uma exceo, ocorrendo apenas nos casos excepcio-nais nos quais o hbito adquirido produz algum efeito direto, alguma alterao qumica no plasma germinativo que improvavelmente produziria o mesmo resultado no descendente: os hbitos contrados por certo indivduo no tm provavelmente qualquer repercusso na descendncia: e, no caso de terem, a modificao ocorrida nos descendentes pode no ter qualquer semelhana perceptvel com a modificao original (ibidem, p.84). sendo assim, a hiptese neolamarckista da transmisso hereditria tambm no capaz de explicar o desenvolvimento de um rgo como o olho em linhas de evoluo divergente:

    Quando pensamos no nmero enorme de variaes, todas orientadas no mesmo sentido, que se devem supor acumuladas umas sobre as outras para passar da mancha pigmentar do infusrio ao olho do molusco e do vertebrado, indagamos como a hereditariedade, tal como a observamos, teria, algum dia, determinado esse amontoado de diferenas, a supor que esforos individuais tenham podido produzir cada uma delas em particular. (ibidem, p.85)

    Para concluir, podemos resumir a crtica de Bergson s vrias for-mas de evolucionismo nos seguintes termos: ainda que se apoiem em muitos fatos, elas seriam apenas verdades parciais incapazes de explicar a contento a formao de rgos idnticos complexos em linhas de evo-luo divergente. a hiptese neodarwinista de Weismann acertaria ao considerar as diferenas do germe do indivduo como a causa essencial da variao e ignorar os desempenhos do organismo no decorrer de sua vida. Mas da no se segue que tais diferenas sejam meramen-

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    te acidentais e individuais. a hiptese mecanicista/determinista acertaria ao supor que as variaes das diferentes caractersticas se seguiriam, de gerao em gerao, em sentidos determinados (ibidem, p.87). Mas da no se segue que a evoluo do mundo orgnico seja totalmente determinada e muito menos que combinaes de causas fsicas e qumicas bastam para garantir o resultado (ibidem, p.87). a melhor explicao seria a do neolamarckismo e seu ponto forte a interveno do que Bergson chama de uma causa psicolgica, referindo-se provavelmente ao esforo de adaptao, que no , e esse seria o ponto fraco do neolamarckismo, o esforo consciente do indivduo j que esse esforo se restringiria apenas a um pequeno nmero de seres vivos conscientes.

    Passemos ento explicao bergsoniana do processo evolutivo, quela que seria, segundo o que podemos inferir das palavras de Bergson sobre o neolamarckismo, a causa psicolgica no consciente da evoluo.

    IV

    como dissemos na primeira seo deste captulo, uma teoria evolucionista que se pretenda consistente deve ser abrangente o suficiente para explicar tanto as semelhanas quanto as diferenas entre os seres vivos. e isso que Bergson pretende a partir de sua noo de lan vital. o lan vital seria um esforo, lembremos da referncia anterior ao neolamarckismo, com as seguintes caractersti-cas: primeiro, um esforo mais profundo que o esforo consciente individual, ou seja, trata-se de um impulso inconsciente; segundo, esse esforo independe das circunstncias, isto , no produzido por determinaes externas, sendo, portanto, inerente a cada um dos seres vivos; terceiro, transmitido atravs das clulas sexuais aos descendentes, passando, assim, de uma gerao a outra; quarto, no se trata de um princpio material, lembremos que Bergson refere-se a ele como uma causa psicolgica a qual, como veremos a seguir, confrontando-se com a matria, confunde-se com a prpria vida sendo o principal responsvel pela sua evoluo.

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    Para explicar a relao entre o lan vital e a matria Bergson prope uma analogia entre o processo de evoluo da vida e um evento que, curiosamente, est envolvido com a destruio e no com a criao, ou seja, o tiro de um canho. segundo o filsofo, a evoluo da vida no tem uma direo nica como a trajetria de uma granada lanada por um canho. ela tem vrias direes, ela se divide como uma granada que explode em fragmentos, os quais tambm explodem em novos frag-mentos e assim sucessivamente durante um certo tempo. Do mesmo modo que a fragmentao da granada que sucede exploso depende de dois fatores, a fora explosiva da plvora e a resistncia do metal que se ope a essa fora mas acaba vencida por ela, a fragmentao da vida em indivduos e espcies decorreria de uma fora explosiva inerente vida, o lan vital, e de uma resistncia da matria bruta que o lan tende a superar e acaba por consegui-lo. Mas, diferentemente da exploso da granada, a superao da resistncia da matria, a qual implica um desenvolvimento em forma de feixe com a consequente distribuio do lan vital, um processo lento e gradual. embora nada nos impea de imaginar que a evoluo pudesse se efetuar atravs de um nico indi-vduo ou de uma pluralidade de indivduos sucedendo-se numa srie unilinear, ela se fez, graas oposio da matria, por intermdio de milhes de indivduos em linhas divergentes, cada uma das quais terminava por sua vez, numa encruzilhada de onde se irradiavam novas vias, e assim por diante indefinidamente (ibidem, p.54).

    essa descrio bergsoniana da evoluo como a superao da resistncia material por parte do lan vital indica que esse esforo ou impulso o responsvel pelo sucesso adaptativo da vida o qual no poderia, portanto, ser explicado pela determinao de foras materiais externas. Bergson apresenta uma outra analogia que refora essa ideia. o processo evolutivo seria comparvel construo de uma estrada: a estrada deve se adaptar aos acidentes do terreno, mas esses no podem ser considerados nem como causa, nem como determinan-tes da direo daquela. sem o solo, no h, certamente, estrada, mas considerando-se a estrada em sua totalidade, os acidentes do terreno so apenas obstculos ou causas de atraso. afinal, a estrada tinha em vista to somente a cidade e bem que gostaria de ser uma linha

  • CONSCINCIA E MATRIA 127

    reta (ibidem, p.104). Mas quando se trata da evoluo, h uma grande diferena: no se pode falar em estrada nica, pois existem vrias direes sem nenhum alvo a ser atingido, pois ela inventiva mesmo nas adaptaes. nesse sentido que Bergson defende que a vida poderia desenvolver-se e assumir formas diferentes das conhe-cidas em nosso planeta se o substrato qumico e as condies fsicas forem totalmente distintos, desde, claro, que algumas condies de sobrevivncia sejam preservadas.

    no era absolutamente necessrio que a vida mostrasse preferncia pelo carbono do cido carbnico, principalmente. o essencial era que ela armazenasse energia solar; mas, em vez de pedir ao sol que separasse uns dos outros, por exemplo, tomos de oxignio e de carbono, ela teria podido (em teoria, pelo menos, e com abstrao das dificuldades de execuo talvez insuperveis) propor-lhe outros elementos qumicos, que teria sido, ento, necessrio, portanto, associar ou dissociar por meios fsicos inteiramente diferentes. e se o elemento caracterstico das substncias energticas do organismo houvesse sido outro que no o carbono, os elementos caracte-rsticos das substncias plsticas teriam sido provavelmente outros que no o nitrognio. a qumica dos corpos vivos teria sido, pois, radicalmente diferente do que . Teria resultado em formas vivas sem analogia com as que conhecemos, cuja anatomia fosse outra e outra a fisiologia. apenas a funo sensrio-motora se teria conservado, j no fosse em seu me-canismo, pelo menos em seus efeitos. , portanto, verossmil que a vida transcorra em outros planetas, tambm em outros sistemas solares, sob formas de que no temos ideia alguma, em condies fsicas as quais ela nos parece, do ponto de vista da nossa fisiologia, repugnar de maneira absoluta. se ela visa essencialmente captar energia utilizvel para despend-la em aes explosivas, ela escolhe, sem dvida, em cada sistema solar e em cada planeta, como o faz na Terra, os meios mais apropriados para obter esse resultado nas condies que lhe so dadas. (ibidem, p.256)

    considerando-se a oposio entre o lan vital e a matria entende-mos que para Bergson a matria, como obstculo ao lan vital, a causa da diversidade da vida enquanto o lan vital, em que pese as restries impostas pela matria, a causa da semelhana entre os seres vivos. o

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    lan vital seria a chave para decifrar o enigma proposto por Bergson, ou seja, a semelhana entre os rgos em organismos que tm formas e modos de vida muito diferentes. como vimos na seo anterior, essa semelhana no poderia ser suficientemente explicada pela hiptese mecanicista, segundo a qual a evoluo ter-se- dado por uma srie de acidentes acrescentando-se uns aos outros, cada acidente novo conservando-se por seleo, se for vantajoso para essa soma de aci-dentes vantajosos anteriores que represente a forma atual do ser vivo (ibidem, p.54). altamente improvvel que duas sries inteiramente diferentes de acidentes levem a resultados semelhantes. Quanto mais divirjam duas linhas de evoluo, menos probabilidades haver de que influncias acidentais exteriores ou variaes acidentais internas tenham determinado sobre elas a elaborao de aparelhos idnticos, sobretudo se no houver vestgios desses aparelhos no momento em que a bifurcao se tenha produzido. essa semelhana seria natural, pelo contrrio, numa hiptese segundo a qual todas as formas de vida trazem em si o mesmo impulso de vida original, o mesmo lan origi-nal. Bergson diz claramente, embora no d detalhes a respeito, que a semelhana entre os rgos dos seres vivos de espcies to distintas se deve natureza psicolgica do lan vital.

    Mas a evoluo se fez em realidade por intermdio de milhes de indivduos em linhas divergentes, cada uma das quais culminava por sua vez numa encruzilhada de onde se irradiavam novas vias, e assim por diante ao infinito. se nossa hiptese tiver fundamento, se as causas essenciais que operam ao longo desses diversos caminhos forem de natureza psicolgica, devero conservar algo em comum a despeito da divergncia de seus efeitos, como os companheiros separados por muito tempo conservam as mesmas recordaes da infncia. Por mais que se tenham produzido bifurcaes, por mais que se tenham aberto vias laterais em que os elementos dissociados se desenvolveram de modo independente, no deixa de ser pelo impulso primitivo do todo que continua o movimento das partes. algo do todo deve, pois, subsistir nas partes. e esse elemento comum poder tornar-se sensvel aos olhos de certa maneira, talvez pela presena de rgos idnticos em organismos muito diferentes. (ibidem, p.54)

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    como interpretar essa recorrente caracterizao do lan vital como algo de natureza psicolgica? considerando-se as obras de Bergson anteriores a A evoluo criadora, em especial o Ensaio e Matria e memria, nas quais, como vimos nos captulos anteriores, o psicolgico, ao qual ele tambm se refere como esprito e como conscincia, distinto e irredutvel matria, podemos inferir que o lan vital um princpio de natureza espiritual cuja ao e presena no se restringe aos humanos estendendo-se a todas as formas de vida. antes de mostr-lo, consideraremos, na prxima seo, mais detalhadamente, a explicao de Bergson para o surgimento da cons-cincia individual ao longo da evoluo da vida, assim como as suas vrias formas de conscincia dependem da estrutura e das funes corpreas. Mas, como enfatizaremos na seo seguinte, a conscincia, como coextensiva do lan vital, aparece ao mesmo tempo como efeito e como causa do processo evolutivo, estando sempre presente nos seres vivos, virtualmente ou atualizada.

    A conscincia como efeito da evoluo da vida

    I

    Bergson relaciona o surgimento e os vrios modos de conscincia, da mais simples percepo s mais sofisticadas operaes da inteli-gncia, estrutura e modo de funcionamento dos sistemas nervosos e seus respectivos corpos ao longo da evoluo dos seres vivos. como veremos, a conscincia assim descrita uma conscincia incorporada, intimamente associada insero pragmtica dos corpos no mundo que os cerca. e essa possibilidade de ao no mundo pressupe inicialmente a capacidade de locomoo, o que no significa, como veremos poste-riormente, que a locomoo por si s seja suficiente para o surgimento da conscincia individual. De todo modo, a mobilidade aparece como condio necessria da conscincia individual, o que explicaria uma certa medida a sua presena nos animais e ausncia nos vegetais, como veremos a seguir.

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    Para Bergson, o mundo vegetal e o mundo animal constituem-se como dois desenvolvimentos divergentes da vida. embora os dois reinos no sejam absolutamente distintos, h uma diferena de n-fase, de predominncia de determinadas caractersticas que tendem a se acentuar no decorrer da evoluo, definindo, de maneira mais precisa, cada um dos grupos. no h manifestao da vida que no contenha, em estado rudimentar, latente ou virtual, as caractersticas essenciais da maioria das demais manifestaes. a diferena est nas propores (ibidem, p.107). Uma diferena importante entre vege-tais e animais o modo como se alimentam. os vegetais tomam os elementos indispensveis sua sobrevivncia carbono e nitrognio diretamente do ar, da gua e da terra, diferentemente dos animais que se apropriam desses elementos atravs de outros organismos nos quais esto fixados vegetais e outros animais. essa diferena no absoluta, existindo vrias excees de um lado e de outro plantas insetvoras de um lado e cogumelos de outro , mas, como indicado anteriormente, o relevante para Bergson menos a presena excepcio-nal de determinadas caractersticas do que a tendncia predominante em cada um dos reinos.

    essas tendncias fixidez e mobilidade so indcios superficiais de tendncias mais profundas as quais seriam, do lado dos animais, a conscincia desperta e a sensibilidade e, do lado dos vegetais, a inconscincia conscincia adormecida , a insensibilidade.6 Isso por-que a atividade motora dos organismos tornou possvel o surgimento da conscincia enquanto sua falta a atrofiou ou adormeceu. Bergson postula, portanto, que h uma tendncia inconscincia nos vegetais associada sua imobilidade constitutiva. a presena de uma mem-brana de celulose envolvendo o protoplasma imobiliza o organismo vegetal simples e o protege das excitaes externas. ao mesmo tempo, esses vegetais fabricam diretamente as substncias orgnicas a partir

    6 em seu ensaio O possvel e o real, Bergson (1993a, p.101) diz: o vivente cons-ciente de direito; ele torna-se inconsciente, de fato, a onde a conscincia dorme, mas, at nas regies onde a conscincia dorme, no vegetal, por exemplo, h uma evoluo regulada, progresso definido, envelhecimento, enfim, os sinais exteriores da durao que caracteriza a conscincia....

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    dos minerais sem que necessitem de locomover-se para nutrir-se: esta aptido o dispensa, em geral, de mover-se e, por isso mesmo, de sentir (ibidem, p.113).

    Mas a fixidez no seria uma propriedade exclusiva dos vegetais em geral, sendo tambm caracterstica de alguns animais. a fauna dos tempos primitivos mostraria, o que para Bergson impressionante, animais aprisionados num invlucro mais ou menos rgido, o que prejudicava e at impedia os seus movimentos: os moluscos eram mais frequentemente dotados de conchas, os artrpodes providos de carapaas, e at os peixes possuam invlucro sseo extremamente rgido. essa couraa tinha, certamente, a funo de proteger esses animais, tornando-os, organismos flcidos que eram, tanto quanto possvel, indevorveis (ibidem, p.131). Pelo fato de esses invlucros prejudicarem os movimentos e at os imobilizarem, esses animais enclausurados estariam condenados a uma sonolncia, inconscin-cia. Para Bergson, os equinodermos e mesmo os moluscos vivem at hoje nesse torpor. j os artrpodes e os vertebrados escaparam da inconscincia pelo fato de privilegiarem a locomoo, na busca de seu alimento, vegetais ou outros animais, ou na fuga de seus predadores. enquanto os peixes substituram sua couraa por escamas, os insetos tambm se desembaraam da sua, defendendo-se pela agilidade que lhes permite atacar e fugir no momento oportuno. Para Bergson (1979a, p.132), esse fato feliz circunstncia que possibilitou o atual desabrochar das mais elevadas formas de vida. como diz o filsofo, na evoluo conjunta da vida, os mais retumbantes xitos couberam queles que aceitaram os maiores riscos (ibidem, p.133). no processo evolutivo, acabou prevalecendo no reino animal o fator que o separou do mundo vegetal, o movimento e, consequentemente, a conscincia, apesar de entorpecimentos localizados.

    como dissemos anteriormente, o movimento uma condio necessria, mas no suficiente, para o surgimento da conscincia individual. a outra condio, qual j nos referimos no captulo anterior e que agora apresentaremos mais detalhadamente, a indeterminao da ao associada evoluo ou aumento de com-plexidade do sistema nervoso.

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    II

    comearemos pela explicao bergsoniana da forma mais ru-dimentar de conscincia, a conscincia perceptiva. Primeiramente Bergson observa que a relao entre percepo consciente ou no e ao constitutiva de todas as formas de vida em seus vrios graus de desenvolvimento. essa relao j pode ser encontrada na massa protoplasmtica que recebe a influncia de estmulos externos e responde a eles mediante reaes mecnicas, fsicas e qumicas. est tambm presente nas sries de clulas nervosas agrupadas em sistemas, onde se reage excitao exterior por movimentos variados. e ainda caracterstica fundamental dos organismos superiores nos quais se radicaliza a distino entre o automatismo relacionado medula e a atividade voluntria articulada com o crebro. o que diferenciaria as formas mais simples das formas mais complexas de vida o nmero de aparelhos motores com os quais o estmulo recebido entra em contato, ou seja, o nmero de aes possveis a partir de um mesmo estmulo recebido. Um crebro desenvolvido tem um maior nmero de mecanismos motores a serem escolhidos. Uma encruzilhada mais complicada onde se cruzam vias motoras permite os movimentos mais variados. o organismo se conduz cada vez mais como uma mquina para agir que se reconstrusse inteiramente a cada ao nova, como se ela fosse de borracha e pudesse, a qualquer instante, mudar a forma de todas as suas peas (ibidem, p.253). Desse modo, a quantidade e qualidade da ao possvel, bem como a extenso da escolha das aes variam com o desenvolvimento do sistema nervoso o qual esboa os caminhos flexveis de ao.

    comparando o crebro a uma central telefnica, Bergson (1990b, p.26) afirma que o seu papel se limita a efetuar a ligao ou faz-la aguardar, a transmitir e a repartir movimentos. o crebro no acrescenta nada ao que recebe, constituindo-se como um centro onde os estmulos provenientes dos rgos dos sentidos so colocados em contato com mecanismos motores da medula e do bulbo raquidiano. a partir de excitaes recebidas, o crebro prepara movimentos apro-priados. ele conduz o movimento a um rgo de reao escolhido

  • CONSCINCIA E MATRIA 133

    ou abre a esse movimento a totalidade das vias motoras para que a se desenhem todas as reaes que ele pode gerar e para que analise a si mesmo ao se dispersar (ibidem). o crebro parece um instrumento de anlise com relao ao movimento recolhido e um instrumento de seleo com relao ao movimento a executar (ibidem). De acordo com essa concepo, o papel do crebro, assim como o da medula, apenas esboar uma pluralidade de aes possveis ou organizar uma delas (ibidem).

    e justamente essa indeterminao da ao propiciada por um sistema nervoso desenvolvido que torna possvel o surgimento da conscincia perceptiva. Quanto mais desenvolvido o sistema nervoso, mais indeterminada a ao e, consequentemente, mais rica a per-cepo consciente, ou seja, os mecanismos motores se tornam cada vez mais complexos e o campo de relao com os objetos exteriores se amplia, abrangendo um maior nmero de objetos e em uma maior distncia. a extenso da percepo consciente estaria vinculada intensidade da ao de que o ser vivo dispe (ibidem, p.28). ela est ausente sempre que um estmulo se prolongue em reao necessria automatismo; ela se submete relao entre necessidade e distncia: medida que a reao se torna mais incerta, que ela deixa mais lugar hesitao, aumenta tambm a distncia na qual se faz sentir [...] a ao do objeto (ibidem, p.28).

    as consideraes anteriores parecem sugerir uma continuidade, uma diferena apenas de grau entre o homem e o animal, decorrente da semelhana de constituio de seus crebros e associada diferena de volume e complexidade entre eles. contrariando essa expectativa, Bergson pretende que haja efetivamente uma diferena muito mais profunda entre esses crebros; uma diferena de natureza, a diferena entre o limitado e o ilimitado. Para Bergson, apenas no ser hu-mano que o nmero de mecanismos motores que se podem montar, e, consequentemente, o nmero dos detonadores que tm a funo de acionar o mecanismo motor entre os quais oferece a escolha, infinito (Bergson, 1979a, p.264). essa diferena relevante o sufi-ciente para estabelecer a possibilidade de uma conscincia abstrata na esfera humana e a sua impossibilidade ou, quando muito, uma

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    alternncia entre conscincia meramente perceptiva e inconscincia, nos animais.

    Quando se considera o funcionamento do crebro do animal e do homem, estaramos, no primeiro caso, diante de um mecanismo que absorve a ateno e, no segundo, de um mecanismo de que se pode desviar. no animal, os mecanismos motores montados pelo crebro os hbitos que sua vontade adquire apenas realizariam movimentos armazenados nesses organismos esboados nesses hbitos. apenas no homem, o hbito motor poderia ter um segundo resultado incomensurvel com o primeiro. ele poderia impedir outros hbitos motores e, com isso, disciplinando o automatismo, pr em liberdade a conscincia.

    a primitiva mquina a vapor, tal como a concebeu newcomen, exigia a presena de uma pessoa exclusivamente encarregada de manobrar as torneiras, seja para introduzir o vapor no cilindro, seja para nele lanar a chuva fria destinada condensao. conta-se que um menino empregado nesse trabalho, muito entediado com a obrigao de o fazer, teve a ideia de ligar as manivelas das torneiras, por cordes, ao pndulo da mquina. Desde ento, a mquina abria e fechava por si mesma as suas torneiras; ela funcionava sozinha. ora, um observador que comparasse a estrutura dessa segunda mquina com a da primeira, sem se ocupar dos dois meninos en-carregados da vigilncia, s teria verificado entre elas uma ligeira diferena de complicao. tudo o que se pode perceber, com efeito, quando s se olham as mquinas. Mas se dermos uma olhadela nos meninos, veremos que um est absorvido por sua vigilncia, e que o outro est livre para divertir-se vontade, e que, por esse aspecto, a diferena entre as duas mquinas radical, a primeira mantendo a ateno prisioneira, a segunda lhe dando livre trnsito. (ibidem, p.185)

    III a relao entre grau de complexidade do sistema nervoso e o grau

    de riqueza da conscincia pode ser mais bem compreendida quando se consideram as duas formas de conscincia inerentes aos artrpodes e aos vertebrados, a conscincia instintiva e a conscincia inteligente.

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    Bergson postula uma evoluo divergente, culminando, de um lado, nos himenpteros, nos quais prevalece a conscincia instintiva, e, de outro, no homem, no qual prevalece a conscincia intelectiva. o fundamental para a constituio desses dois tipos de conscincia o privilgio do automatismo ou da liberdade dos movimentos, ou seja, a conscincia se manifesta onde houver liberdade, espao para a escolha, e se anula onde prevalece o automatismo. o que acontece que nas atividades maquinais a representao do ato impedida pela sua execuo, a representao obstruda pela ao. o ato to perfeitamente semelhante representao e nela se insere to exata-mente adequao perfeita da representao e da ao que nenhuma conscincia se manifestaria. Para Bergson (1979a, p.145), a conscincia aparece quando existe um obstculo realizao do ato, ou seja, ela estava presente, mas neutralizada pela ao que ocupava o lugar da representao.7 nesse sentido que o filsofo define a conscincia como a inadequao do ato representao (ibidem, p.145), ou como uma diferena aritmtica entre a atividade virtual e a atividade real, medindo a distncia entre a representao e a ao (ibidem). Para Bergson, h uma incompatibilidade entre conscincia e automatismo, esse definido como atividade real. a conscincia envolve escolha, hesitao, aes possveis ou atividade virtual.

    Deduz-se, a partir da, que a inteligncia tende conscincia, enquanto o instinto tende inconscincia. onde prevalece o instinto h pouco lugar para a hesitao e a escolha, j que a natureza or-ganiza o instrumento a manejar, fornecendo o ponto de aplicao e o prprio resultado a obter. nesses casos, a conscincia rara, s aparecendo onde houver contrariedades ao instinto, no estando, portanto, relacionada prpria natureza do instinto. j no caso da inteligncia, o que define a sua essncia o sofrer contrariedades, sendo, portanto, o dficit o seu estado normal: Tendo por funo primitiva o fabricar instrumentos inorganizados, ela deve, atravessando

    7 como vimos anteriormente, o surgimento da conscincia depende tambm da constituio corprea. ou seja, os modos de ser das conscincias instintiva e inteligente dependem das correlatas constituies corporais.

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    mil dificuldades, escolher para esse trabalho o local e o momento, a forma e a matria. e ela no pode satisfazer-se plenamente, porque toda satisfao nova cria novas necessidades (ibidem, p.146).

    Para Bergson, a diferena entre os conhecimentos do instinto e da inteligncia de natureza e no de grau, embora, cada um deles, sob um determinado aspecto, possua conhecimento inato virtual, natural o qual desempenhado e inconsciente e recai sobre as coisas, ou seja, atinge os objetos determinados em sua prpria materialidade. no caso do instinto, o conhecimento est implcito, exteriorizando-se em desempenhos precisos, ou seja, est impli-cado na ao realizada. Trata-se de um conhecimento limitado que se dirige a um determinado objeto ou parte dele, possuindo a respeito desse um conhecimento interior e pleno. Bergson apresenta um exemplo de comportamento instintivo, em que a conduta esboa um conhecimento no aprendido, o do staris:

    esse coleptero deposita seus ovos na entrada das galerias subterrneas que uma espcie de abelha, a antfora, cava. a larva do staris, aps longa espera, espreita a antfora macho ao sair da galeria, agarra-se a ele, fica aferrada a ele at o voo nupcial; nessa ocasio, ela aproveita a ocasio para passar do macho fmea, e espera tranquilamente que esta ponha seus ovos. salta ento sobre o ovo, que lhe vai servir de sustento no mel, devora o ovo em alguns dias, e, instalada na concha, sofre a primeira metamorfose. organizada agora para flutuar sobre o mel, ela consome esse suprimento de alimentao e torna-se ninfa, depois inseto perfeito. Tudo acontece como se a larva do staris, desde sua ecloso, soubesse que o antforo macho sairia da galeria primeiro, que o voo nupcial lhe forneceria o meio de se transportar para a fmea, que esta a conduziria a um depsito de mel capaz de aliment-la quando se transformasse, e que, at essa transformao, ela tivesse devorado aos poucos o ovo do antforo, de modo a se nutrir, a se sustentar na superfcie do mel, e tambm eliminar o rival que tenha sado do ovo. e tudo acontece tambm como se o prprio staris soubesse que sua larva saber todas essas coisas. (ibidem, p.147)

    consideremos mais detalhadamente o que Bergson chama de inteligncia e formas mais abstratas de conscincia dela decorrentes.

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    Primeiramente, o filsofo considera que a inteligncia essencialmente uma faculdade de fabricao. o aparecimento do homem parte culminante da evoluo dos vertebrados sobre a Terra associado ao perodo em que se fabricaram as primeiras armas, os primeiros instrumentos. Um instrumento fabricado a concretizao da inven-o a qual define melhor a inteligncia que a inferncia, visto que essa atividade pode ser considerada como uma modalidade, um compo-nente da prpria inveno: sem dvida, h inteligncia sempre onde houver inferncia; mas a inferncia, que consiste no aproveitamento da experincia passada no sentido da experincia presente, j um comeo de inveno (ibidem, p.139). a inteligncia, mesmo em sua forma mais simples, aspira a fazer com que a matria atue sobre a matria. Tendo em vista essa ligao entre a inteligncia e a ao, compreende-se que as invenes mecnicas permitem utilizar cada vez mais a matria. a inveno mecnica, a fabricao de objetos artificiais como as ferramentas, foi o primeiro empenho essencial da inteligncia humana, o elemento em torno do qual gravita a vida social. Da Bergson considerar legtimo definir o homem tendo em vista essa atividade: se pudssemos nos despir de todo orgulho, se, para definir nossa espcie, nos ativssemos estritamente ao que a histria e a pr-histria nos apresentam como a caracterstica constante do homem e da inteligncia, talvez no dissssemos Homo sapiens, mas Homo faber (ibidem, p.140).

    o instrumento produzido pela inteligncia imperfeito, mas fle-xvel; exige esforo para ser obtido; de manejo penoso; mas, por ser feito de matria inorganizada, pode assumir uma forma qualquer, servir a qualquer fim, livrar o ser vivo de qualquer dificuldade nova que surja e lhe conferir uma quantidade ilimitada de poderes (ibidem, p.141). assim, embora os instrumentos da inteligncia sejam alea-trios, eles podem produzir conquistas ao infinito. eles influenciam quem os fabricou, levando-o a exercer uma nova funo; ao satisfazer uma necessidade, eles criam uma nova, o que faz que, diferentemen-te do instinto que fecha o crculo de ao em que o animal se move automaticamente, eles abrem a essa atividade um campo infinito, impelindo-a cada vez mais alm e tornando-a cada vez mais livre

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    (ibidem, p.142). assim, a inteligncia uma faculdade voltada para a fabricao de instrumento inorganizado artificial. como ela no possui esse instrumento, ela diversifica a sua fabricao conforme as circunstncias e as dificuldades.

    Um exemplo paradigmtico de instrumento flexvel criado pela inteligncia e diretamente responsvel por uma conscincia abstra-ta a linguagem. a linguagem, se, por um lado, depende de uma organizao fsica complexa, por outro, tambm inerente vida social humana. como a funo fabricao/ao no est pre-viamente determinada pela estrutura dos indivduos, o papel social de cada um deles aprendido. Impe-se, assim, uma linguagem que permita, a todo instante, passar do que se sabe ao que se ignora [...] uma linguagem cujos signos que no podem ser em nmero infinito sejam extensveis a uma infinidade de coisas (ibidem, p.142). Por isso, a caracterstica fundamental da linguagem humana no a generalidade, mas a mobilidade do signo, sua tendncia a se transladar de um objeto a outro (ibidem, p.142). Bergson atribui mobilidade das palavras a libertao da inteligncia pelo fato de lhe propiciar ir alm dos prprios objetos materiais que lhe inte-ressam. Inicialmente, a inteligncia se adapta forma da matria bruta, ou seja, a linguagem designa apenas coisas; graas mobi-lidade das palavras que ela pode voltar-se para um objeto que no coisa, e perceber a si mesma como faculdade de representao em geral, isto , a linguagem que torna possvel a autoconscincia ou conscincia de si.8

    a palavra, feita para ir de uma coisa a outra, , de fato, essencialmen-te, deslocvel e livre. ela poder, pois, estender-se, no apenas de uma coisa percebida a outra coisa percebida, mas ainda da coisa percebida lembrana dessa coisa, da lembrana precisa a uma imagem mais fugidia, de uma imagem fugidia, contudo representada ainda, representao do ato pelo qual se a representa, isto , ideia. Desse modo, vai abrir-se aos

    8 a relao entre percepo, pensamento, linguagem e conscincia de si o tema privilegiado da obra de Bergson Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, objeto do captulo 1 do presente trabalho.

  • CONSCINCIA E MATRIA 139

    olhos da inteligncia, que olhava de fora, um mundo interior, o espetculo de suas prprias operaes. (ibidem, p.160)

    ainda que a conscincia tenha sido nessa seo caracterizada como uma propriedade cujas formas dependem da estrutura e funes corporais, cabe lembrar que, diferentemente de uma concepo ma-terialista, a conscincia tambm apresentada, enquanto coextensiva do lan vital, como causa da vida e de sua evoluo. considerando as dificuldades a envolvidas daremos uma ateno especial a esse aspecto na prxima seo.

    A conscincia como causa e efeito da evoluo da vida

    I

    como vimos nos captulos anteriores, desde o Ensaio Bergson frequentemente trata o psicolgico, a conscincia e o esprito como termos correlatos, e tambm apresenta a conscincia como uma propriedade fundamental do psicolgico, do esprito, ou seja, da prpria conscincia, o que o levou, como tambm vimos anterior-mente, a refletir sobre a relao entre a conscincia e a matria, reflexo essa que resultou no estabelecimento de uma distino e na consequente irredutibilidade da conscincia matria. a questo da relao entre conscincia e matria tambm um tema fundamental, seno o principal, de A evoluo criadora, e isso num duplo aspecto. Primeiro, como vimos na primeira parte deste captulo, Bergson postula a existncia de um lan vital para explicar a evoluo da vida. cabe lembrar que o filsofo refere-se a ao lan vital como alguma coisa de natureza psicolgica, o que nos leva novamente a pensar em algo essencialmente distinto da matria, o que parece ser tambm confirmado pela oposio estabelecida entre lan vital e matria na explicao bergsoniana da evoluo da vida. segundo, como tam-bm vimos neste captulo, Bergson apresenta a conscincia em suas

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    vrias formas como um atributo ou propriedade cujo surgimento e aumento de riqueza esto relacionados existncia e complexidade dos diferentes tipos de seres vivos. Todavia, em consonncia com as ideias defendidas no Ensaio e em Matria e memria, no se deve interpretar essa dependncia como reduo da conscincia mat-ria viva, pois, no final das contas, a conscincia correlata do lan vital e, nesse sentido, motor da evoluo, o que significa dizer que num certo sentido a conscincia simultaneamente causa de efeito da evoluo da vida. como interpretar de outra forma as seguintes consideraes de Bergson nas quais sintetiza a sua compreenso do processo evolutivo?

    a evoluo da vida, encarada desse aspecto, assume um sentido mais ntido [...] Tudo se passa como se [grifo nosso] uma vasta corrente de conscincia houvesse penetrado a matria, carregada, como toda conscincia, de uma multiplicidade enorme de virtualidades que se interpenetrassem. essa corrente arrastou a matria organizao, mas seu movimento nela foi ao mesmo tempo infinitamente ralentado e infinitamente dividido. Por um lado, com efeito, a conscincia teve de adormecer, como a crislida no invlucro onde prepara suas asas, e por outro, as tendncias mltiplas que ela encerrava dividiram-se entre sries divergentes de organismos, que alis exteriorizavam essas tendncias em movimentos em vez de as interiorizarem em representaes. no curso dessa evoluo, enquanto uns adormeciam cada vez mais pro-fundamente, os outros despertavam cada vez mais completamente, e o torpor de uns servia atividade dos outros. Mas o despertar podia dar-se de dois modos diferentes. a vida, isto , a conscincia lanada atravs da matria, fixava a sua ateno ou em seu prprio movimento, ou na matria que ela atravessava. ela se orientava, assim, quer no sentido da intuio, quer no da inteligncia. (ibidem, p.182)

    no entendemos que a expresso como se, no incio dessa citao, signifique que se trate apenas de um modo de falar de Bergson. no por acaso que essa mesma perspectiva reafirmada e defendida em um texto no qual Bergson sintetiza tanto algumas de suas ideias fun-damentais do Ensaio e de Matria e memria quanto, e principalmente,

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    a sua concepo evolucionista: A conscincia e a vida.9 entrevemos a novamente, como veremos mais detalhadamente a seguir, que a conscincia tratada ora como causa, ora como efeito da evoluo da vida, ou seja, ora como experincia subjetiva, ora como esprito ou alma. Dividiremos esta seo em trs partes. Primeiro, trataremos da conscincia como efeito de uma determinada organizao material, ou seja, como experincia consciente; a seguir, como esprito, ou seja, como causa dessa mesma organizao e, consequentemente, da prpria experincia consciente; por fim, refletiremos sobre os fundamentos da identificao da conscincia atributo com a conscincia substncia.

    nas consideraes iniciais de Bergson sobre a definio de conscin-cia, o filsofo se refere claramente experincia subjetiva consciente. Diz a que no precisamos definir algo que por experincia prpria j sabemos o que , segundo suas palavras, algo to concreto, to constantemente presente experincia de cada um de ns. e, em-bora saibamos o que essa experincia consciente que vivenciamos subjetivamente, seria difcil defini-la claramente, ou seja, traduzi-la em conceitos.10 Bergson opta, ento, por descrever a conscincia, ou seja, a experincia consciente, a partir do que seriam seus dois traos fundamentais, a memria e a ateno.

    a memria, definida como conservao e acumulao do passado no presente, seria a propriedade principal da experincia consciente, conscincia significa primeiramente memria, propriedade sem a qual a conscincia no existiria a memria existe, ou ento a cons-cincia no existe , a propriedade universal da conscincia Toda

    9 esse texto se originou de uma conferncia proferida em 1911 com o mesmo ttulo e faz parte da obra de Bergson A energia espiritual.

    10 Reafirma-se, aqui, a tese, amplamente defendida no Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, da irredutibilidade da vida interior s descries que tomam como referncia a experincia externa. se, segundo Bergson, no podemos definir, por meio de conceitos, a essncia das coisas materiais, considerando-se que o conceito nos d apenas o que comum aos objetos percebidos objetivamente e no o que particular a cada um deles, a dificuldade seria muito maior no caso das experincias interiores, que so apreendidas apenas subjetivamente. como definir conceitualmente algo que comum em relao a algo que no partilhado na experincia externa?

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    conscincia , pois, memria. a outra propriedade fundamental da experincia consciente a ateno vida no h conscincia sem uma certa ateno vida. Para Bergson, essa ateno inseparvel da antecipao do futuro, ela uma expectativa, considerando-se que os objetos percebidos atentamente, ou seja, conscientemente, no presente, so aqueles que interessam s nossas pretenses futuras, isso porque nossa percepo consciente opera segundo uma lgica pragmtica.11 Memria e ateno, reter o que j no e ante-cipar o que ainda no , seriam propriedades to fundamentais e to interligadas na percepo consciente que Bergson (1993b, p.6) as caracteriza no como duas funes, mas sim como a primeira funo da conscincia, ou seja, somente na experincia perceptiva consciente que o passado, que no existe mais, mantm-se presente e se articula com um futuro que no existe ainda: a conscincia o trao de unio entre o que foi e o que ser, uma ponte entre o passado e o futuro.12

    11 aparentemente, Bergson toma aqui como paradigma um modo particular de experincia consciente, a conscincia perceptiva, pois justamente a percepo que envolve ateno pragmtica vida. cabe lembrar que, para Bergson, percepo e memria so as duas funes elementares do esprito e que no existe percepo consciente sem memria, embora os contedos da memria provenham da per-cepo, o que nos permitiria tambm dizer que no existe memria sem percepo. embora a modalidade de uma experincia consciente possa ser uma lembrana e no uma percepo de como a lembrana decorre de percepes anteriores, ela carrega a sua estrutura originria, que envolve memria e ateno. Mas podemos afirmar que h tambm em Bergson uma precedncia da memria em relao percepo, se nos lembrarmos da explicao bergsoniana da percepo de solidez, no exemplo especfico da sensao de vermelho, tal como apresentada em Matria e memria.

    12 cabe lembrar que, de acordo com a noo bergsoniana de durao, no se trata de uma ponte fixa ligando dois pontos fixos, pois, a rigor, a conscincia que permite que pensemos num passado que j no existe mais e num futuro que no existe ainda e, em parte, pela acumulao do passado, ou seja, pela memria, a conscincia nunca a mesma. o que percebemos de fato uma certa espessura de durao que se compe de duas partes: nosso passado imediato e nosso futuro iminente. sobre este passado nos apoiamos, sobre este futuro nos debruamos; apoiar-se e debruar-se desta maneira o que prprio de um ser consciente (Bergson, 1993b, p.6).

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    Tendo apresentado as principais caractersticas da experincia consciente, Bergson passa a refletir sobre a sua extenso, ou seja, a que seres da natureza poder-se-ia atribuir legitimamente vida inte-rior consciente. chamemos a esse problema de problema das outras conscincias.13 o problema se coloca, como se sabe pelo menos desde Descartes, e Bergson o recoloca nos seguintes termos: no apreendemos direta e imediatamente a experincia consciente alheia como apreende-mos as nossas prprias experincias conscientes. Por isso raciocinamos por analogias esquecendo-nos de que, ainda que elas indiquem alguma probabilidade, no nos fornecem evidncias ou certezas.

    Para saber com plena certeza se um ser consciente, seria preciso penetrar nele, coincidir com ele, ser ele. eu os desafio a provar, por expe-rincia ou por raciocnio, que eu, que lhes falo neste momento, sou um ser consciente. eu poderia ser um autmato engenhosamente construdo pela natureza, indo, vindo, falando; as prprias palavras pelas quais me declaro consciente poderiam ser pronunciadas inconscientemente. (ibidem)

    Mas, diferentemente de Descartes,14 Bergson no desqualifica a probabilidade ou quase certeza de haver uma semelhana interna, no caso a presena da conscincia, postulada a partir da semelhana externa dos corpos: o raciocnio por analogia no d jamais algo alm da probabilidade; mas h muitssimos casos em que esta probabilidade suficientemente alta para equivaler praticamente certeza (ibidem). e justamente apoiando-se nas semelhanas fsicas entre os seres vivos, tentando estabelecer o que seria comum e responsvel pela conscincia, que Bergson estende a conscincia aos seres vivos no humanos. Mas, e a a surpresa, no apenas queles seres vivos que tm um crebro. surpresa pelo fato de a presena ou

    13 ou problema das outras mentes, tal como se o designa em Filosofia da mente. 14 cabe lembrar que, para Descartes, os animais no so seres pensantes, no tm

    alma, so autmatos da natureza. De fato, Descartes no despreza totalmente o argumento por analogia, ele apenas privilegia algumas analogias em detrimento de outras. ou seja, so as diferenas no uso da linguagem entre homens e animais que atestariam a inexistncia do pensamento nos animais.

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    ausncia de crebro poder ser considerada uma diferena importante entre os seres vivos e tambm pelo fato de a estrutura do crebro ser em geral tratada, at mesmo pelo prprio Bergson, como condio para o pensamento consciente.

    Para justificar a atribuio de conscincia a seres sem crebro, Bergson cita casos que mostrariam que as mesmas funes pode-riam ser desempenhadas por rgos cujas formas sejam totalmente diferentes. Por exemplo, a digesto uma funo do estmago, mas no apenas do estmago, a no ser que definamos funcionalmente o estmago como o rgo da digesto: no necessrio possuir estmago, nem mesmo rgos, para digerir: uma ameba digere, embora ela seja apenas uma massa protoplasmtica indiferenciada (ibidem, p.7). a funo da digesto no poderia, ento, ser usada como critrio para estabelecer uma diferena radical, uma desconti-nuidade, entre os seres mais complexos e os seres mais simples. nos seres complexos, haveria apenas uma diviso de funes entre rgos diferentes, diviso essa que teria trazido um ganho na medida em que a especializao contribui para um melhor desempenho da funo. o mesmo poderia ser dito a respeito da relao entre a conscincia e o organismo. a conscincia no seria funo exclusiva do crebro, rgo especializado dos seres humanos e de alguns outros animais, mas estaria tambm presente, ainda que de forma rudimentar, nos seres vivos mais simples, cuja forma indiferenciada indica que no h diviso de funes. como Bergson pensa que o fundamental para a presena da experincia consciente a faculdade de escolher, isto , de responder a uma excitao determinada por movimentos mais ou menos imprevistos (ibidem, p.9), o filsofo conclui que a conscincia est presente, ainda que em estado rudimentar, onde quer que haja algum grau de indeterminao da ao:

    quanto mais se desce na srie animal, mais os centros nervosos se simpli-ficam e se separam uns dos outros; finalmente, os elementos nervosos de-saparecem, confundidos na massa de um organismo menos diferenciado: no devemos supor que se, no topo da escala dos seres vivos, a conscincia se fixava em centros nervosos muito complicados, ela acompanha o sistema

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    nervoso ao longo desse descenso, e que, quando a substncia nervosa enfim se funde numa matria viva ainda indiferenciada, a prpria conscincia a se espalha, difusa e confusa, reduzida a pouca coisa, mas no reduzida a nada? (ibidem, p.7)

    nessas formas de vida rudimentares, nas quais no se encontra uma indeterminao efetiva da ao, como o caso dos parasitas e dos vegetais cuja faculdade de se mover est mais adormecida do que ausente (ibidem, p.10), a conscincia estaria em estado latente. Desse modo, pode-se concluir que a conscincia, em sua forma latente ou manifesta, ambas correlatas do grau de movimento espontneo, uma caracterstica universal dos seres vivos: Parece-me, pois, verossmil que a conscincia, originalmente imanente a tudo o que vive, se entor-pece quando no h mais movimento espontneo e se exalta quando a vida se apoia na atividade livre (ibidem, p.10).15

    Diferentemente, entretanto, da digesto, a funo conscincia no se realiza plenamente nos organismos mais simples tal como se realiza nos organismos que tm crebro. o privilgio do crebro deve-se, como procuramos mostrar no captulo anterior, ao fato de ele ser o rgo que possibilita o movimento espontneo em seu mais alto grau. o crebro parte de um sistema nervoso que inclui a medula e os nervos. a medula conteria mecanismos montados para produzir movimentos como resposta imediata a estmulos externos recebidos, ou seja, respostas prontas. Mas muitos dos estmulos externos no agiriam diretamente sobre a medula, eles passariam por um desvio, por um rgo intermedirio, justamente o crebro, o qual estaria em relao com outros mecanismos da medula capazes de desencadear outros movimentos. o crebro seria, assim, uma encruzilhada, onde a

    15 aparentemente, Bergson no quer dizer que as plantas ou determinados animais tm a possibilidade efetiva de movimento espontneo, de ao livre e, conse-quentemente, de conscincia plena, na condio em que eles se encontram, e sim que eles poderiam ter evoludo em direo a uma estrutura que permitisse tais realizaes como aconteceu com pelo menos alguns animais. a conscincia seria assim uma propriedade universal dos seres vivos, potencial em alguns casos e atual em outros.

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    estimulao vinda por qualquer via sensorial pode seguir por qualquer via motora (ibidem, p.9). Isso significa que a resposta propiciada pelo crebro no est predeterminada no estmulo, a partir dele vrias aes so possveis, ou seja, mecanismo motor acionado, a ao realizada seria aquela escolhida, a mais apropriada, da Bergson dizer que o crebro um rgo de escolha. a ideia de escolha e, mais ainda, de uma escolha norteada pragmaticamente implica uma atividade consciente que, como vimos, envolve o passado e o futuro; mais ain-da, ela seria condio da prpria conscincia: se, como dizamos, a conscincia retm o passado e antecipa o futuro, precisamente, sem dvida, porque ela chamada a efetuar uma escolha: para escolher, preciso pensar no que se poder fazer e lembrar as consequncias, vantajosas ou prejudiciais, do que j foi feito; preciso prever e recor-dar (ibidem, p.9).

    considerando-se essa relao entre conscincia e movimento espontneo, seria possvel que a conscincia se manifestasse em es-truturas artificiais inorgnicas ou orgnicas, semelhantes ou no s estruturas orgnicas existentes, no caso, claro, de elas seres complexas o suficiente para garantir respostas indeterminadas aos estmulos rece-bidos? a resposta negativa. Bergson distingue radicalmente os seres vivos dos seres inorgnicos, matria bruta, alegando que o potencial de conscincia inerente aos primeiros pelo fato de a indeterminao, em maior ou menor grau, ser intrnseca ao domnio da vida enquanto a determinao absoluta e, consequentemente, a previsibilidade seriam propriedades intrnsecas ao inorgnico: a matria inrcia, geometria, necessidade [...] com a vida aparece o movimento im-previsvel e livre. o ser vivo escolhe ou tende a escolher [...] num mundo em que todo o restante est determinado, uma zona de inde-terminao rodeia o ser vivo (ibidem, p.12). De fato, o prprio ser vivo seria uma zona de indeterminao, considerando-se que nesses casos a matria oferece uma certa elasticidade que permitiria um aumento crescente de indeterminao e, consequentemente, uma dilatao da conscincia.

    essas mesmas condies de indeterminao, porm, no poderiam ser criadas artificialmente, quais sejam, estruturas que permitam as

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    mais diferentes respostas diante de apenas alguns estmulos provenien-tes do ambiente externo, e consequentemente propiciar o surgimento da experincia consciente? Para Bergson, isso no seria possvel e em sua justificativa, como veremos a seguir, o que at ento tem sido considerado como efeito de uma certa organizao material aparece como causa dessa mesma organizao. Para evidenci-lo, retomemos a concepo evolucionista de Bergson, s que, agora, sob a ptica do texto A conscincia e a vida, comeando pela posio a assumida diante dos evolucionismos de lamarck e de Darwin.

    II

    Bergson aceita o evolucionismo, mas rejeita a sua fundamentao no adaptacionismo, como se esses fossem termos correlatos. segundo o filsofo, a adaptao no explica a evoluo, muito pelo contrrio, ela explica a fixao da vida em determinadas formas bem-sucedidas no ambiente. Diferentemente disso, dever-se-ia explicar o prprio processo evolutivo, ou seja, o porqu de a vida ter se fixado em tais formas bem-sucedidas por tanto tempo, ou o movimento que leva a formas de vida cada vez mais complexas. como, aos olhos de Berg-son, Darwin e lamarck no explicam satisfatoriamente o movimento evolutivo, o filsofo prope uma explicao: a evoluo resulta de um lan, ou seja, um esforo, uma compulso interior. Qual seria a natureza desse lan? como ele se relaciona com a matria? a resposta primeira questo depende da resposta segunda. comecemos, ento, pela questo da relao entre o lan vital e a matria.

    Primeiramente, a matria apresentada como obstculo, como opo-sio ao lan vital, o que indica uma perspectiva claramente dualista:16

    16 a interpretao do pensamento de Bergson em termos dualistas tem gerado muitas controvrsias, motivadas talvez pelo fato de o filsofo aproximar esprito e matria, caracterizando-os em termos de durao e de diferenas de tenso da durao. Mas tal aproximao no implica a reduo da matria conscincia ou da conscincia matria como estamos tentando mostrar desde o primeiro captulo. em toda a obra de Bergson, esprito e matria so apresentados como dois componentes da realidade cuja relao deve ser compreendida.

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    visvel que o esforo encontrou resistncias na matria que utilizava; teve que se dividir a meio caminho, partilhar entre linhas de evoluo dife-rentes as tendncias que trazia em si; teve que desviar, retroceder; por vezes teve que parar. somente em duas linhas alcanou um xito incontestvel, xito parcial num caso, relativamente total no outro... (ibidem, p.19)

    o uso de termos como resistncia, relacionado matria, e ten-dncia, desvio e retrocesso, relacionados ao lan, faz-nos pensar em finalidade evolutiva determinada por um princpio no material e, s vezes, em finalidade consciente, como se estivssemos diante de um dualismo finalista. e isso fica mais claro quando Bergson se refere ao lan vital como conscincia, a ele atribui a propriedade liberdade, trata a matria como instrumento e descreve a evoluo como a criao de formas de vida que propiciam a expresso ou realizao da liberdade da conscincia.17

    em suma, as coisas se passam como se uma imensa corrente de conscincia, em que se interpenetrariam virtualidades de todo gnero, houvesse atravessado a matria para conduzi-la organizao e para fazer dela, que a prpria necessidade, um instrumento de liberdade. Mas a conscincia teve que cair na armadilha. a matria a rodeia, a prende em seu prprio automatismo, a entorpece em sua inconscincia. em certas linhas da evoluo, particularmente as do mundo vegetal, automatismo e inconscincia constituem a regra; a liberdade imanente fora evolutiva ainda se manifesta, verdade, pela criao de formas imprevistas que so verdadeiras obras de arte; mas estas formas imprevisveis, uma vez criadas, se repetem maquinalmente: o indivduo no escolhe. em outras linhas, a conscincia chega a se liberar o suficiente para que o indivduo encontre algum sentimento e, consequentemente, alguma latitude de

    17 apesar de Bergson criticar o finalismo, por consider-lo incompatvel com a indeterminao e a liberdade por ele defendidas, e postular que a variedade e as formas de vida no esto predeterminadas desde o incio do processo evolutivo, o filsofo d a entender, em vrios momentos de sua obra e no apenas nos casos citados, que a finalidade do processo evolutivo a realizao na matria da pleni-tude da conscincia e da liberdade essencial do esprito. ou seja, como se esse fim tivesse que ser atingido, ainda que as formas para tal realizao no sejam predeterminadas.

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    escolha; mas as necessidades da existncia l esto para transformar o poder de escolha num simples auxiliar da necessidade de viver. assim, de alto a baixo na escala da vida, a liberdade est indissoluvelmente ligada a uma cadeia que ela tenta, todavia, alongar. somente no caso do homem, efetua-se um salto brusco; a cadeia se rompe. o crebro do homem pode parecer-se, com efeito, com o do animal: ele tem de particular o fato de fornecer o meio de opor a cada hbito contrado um outro hbito e a todo automatismo um automatismo contrrio. a liberdade, recobrando-se enquanto a necessidade est s voltas consigo mesma, reduz a matria ao estado de instrumento. como se ela houvesse dividido para reinar. (ibidem, p.19)

    e no parece, como sugere o incio da ltima citao, que essa maneira dualista e finalista de explicar a evoluo seja somente um modo de falar de Bergson. essa mesma concepo que fundamenta a crtica de Bergson pretenso de se produzir a vida artificialmente em laboratrios. segundo o filsofo, ainda que a fsica e a qumica se-jam capazes de produzir uma matria semelhante matria viva, essa matria no seria viva pois nela no estaria instalada o lan vital, ou seja, a fora que a arrastaria para alm do puro mecanismo, fora distinta da matria mas responsvel pelas caractersticas essenciais da vida, a evoluo e a reproduo:

    a vida se instala, em seus primrdios, num certo gnero de matria que comearia ou que teria podido comear a se fabricar sem ela. Mas a matria teria se detido a se fosse abandonada a si mesma; e a se deteria tambm, sem dvida, o trabalho de fabricao de nossos laboratrios. Imitar-se-o certas caractersticas da matria viva; no se lhe imprimir o el pelo qual ela se reproduz e, no sentido transformista da palavra, evolui. ora, esta reproduo e esta evoluo so a prpria vida. Uma e outra manifestam um impulso interior, a dupla necessidade de crescer em nmero e em riqueza pela multiplicao no espao e pela complicao no tempo, enfim, os dois instintos que aparecem com a vida... (ibidem, p.20)

    difcil evitar uma interpretao dualista e finalista do evolucio-nismo bergsoniano ao vermos Bergson caracterizar explicitamente o

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    lan vital como uma fora espiritual que penetraria na matria para abrir uma passagem subterrnea, faria tentativas de todos os la-dos, progrediria um pouco, chocar-se-ia com a rocha a maior parte do tempo, e, entretanto, ao menos numa direo lograria xito e reencon-traria a luz. esta direo a linha de evoluo que termina no homem (ibidem). a seguir, referindo-se ao lan como esprito, Bergson se prope a explicar o objetivo dessa empreitada do esprito na matria: Mas por que o esprito se lanou nesta empresa? Que interesse tinha ele em furar o tnel? (ibidem). a resposta que, se, por um lado, o esforo penoso s pode ser penoso para o esprito , por outro, ele tambm precioso precioso para o esprito , pois seria graas ao esforo que tiramos de ns mesmos espritos encarnados? mais do que tnhamos, elevamo-nos acima de ns mesmos, como se o esprito s pudesse se realizar plenamente na matria: este esforo no seria possvel sem a matria: pela resistncia que ela ope e pela docilidade a que podemos conduzi-la ela ao mesmo tempo obstculo, instrumento e estmulo; ela experimenta nossa fora, conserva-lhe a marca e provoca a intensificao (ibidem, p.22). o homem seria o ponto culminante, a realizao mxima desse grande empreendimento espiritual, embora somente alguns deles, aqueles que estivessem no ponto mais alto da evoluo, sejam a expresso visvel da natureza espiritual oculta que os impulsiona.

    somente no homem, sobretudo nos melhores dentre ns, o movimento vital prossegue sem obstculo, lanando atravs desta obra de arte que o corpo humano, e que ele criou de passagem, a corrente indefinidamente criadora da vida moral. o homem, levado incessantemente a se apoiar na totalidade de seu passado para avaliar tanto mais penetrantemente o seu futuro, o grande xito da vida. contudo, criador por excelncia aquele cuja ao, ela prpria intensa, capaz de intensificar tambm a ao de outros homens, e generosamente iluminar ncleos de generosidade. os grandes homens de bem, e mais particularmente aqueles cujo herosmo inventivo e simples abriu novos caminhos para a virtude, so reveladores de verdade metafsica. eles podem estar no ponto culminante da evoluo, nem por isto eles esto menos perto das origens, e tornam sensvel para ns o impulso que vem do fundo. (ibidem, p.25)

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    Consideraes finais

    a sntese da concepo evolucionista de Bergson apresentada na seo anterior a partir do texto A conscincia e a vida tinha como ob-jetivo ressaltar o fato de o filsofo, partindo da experincia consciente, conscincia como efeito de uma certa organizao material, tentar explic-la a partir da conscincia tomada como causa, ou seja, uma for-a ou energia espiritual. estamos novamente diante de uma abordagem dualista a qual aparece algumas vezes permeada por um vis finalstico. como agora veremos, esse entrelaamento entre dualismo e finalismo no uma exclusividade do texto mencionado, o qual, por tratar-se de uma conferncia, poderia ser considerado como uma posio pontual que no refletiria o pensamento de Bergson em seu conjunto. essa tambm a perspectiva dominante em A evoluo criadora.

    consideremos inicialmente a questo do finalismo. sabido que Bergson frequentemente critica essa posio filosfica que a ideia de objetivo ou de alvo a ser atingido implica a presena, a priori, de um modelo a ser realizado, o que significa que o futuro j estaria realizado no presente, no havendo, portanto, criao. Decorre da que uma explicao finalistca da evoluo incompatvel com a ideia de uma evoluo criadora, tese que, como vimos, defendida por Bergson a partir da noo de lan vital. Bergson faz, ento, a ressalva de que o tom finalstico de suas consideraes sobre a evoluo s t