Coco de roda_-_mestrado_etnomusicologia_2007_-_parte_b
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9
Prefácio *
Neste trabalho sublinha-se a importância do estudo dos testemunhos de dois
cantadores e demais agentes da cena musical de Pernambuco1 em que se insere o Coco
de Roda para, posteriormente, compreender a dinâmica patente no processo
contemporâneo de industrialização musical e inserção deste gênero no mercado de
entretenimento nacional e internacional. Focaliza os problemas sócio-políticos e as
perspectivas adotadas por dois performers do Coco de Roda. Aborda igualmente os
agentes da indústria do entretenimento e da cultura, e o modo como apropriam e
reinterpretam o modelo tradicional de representação deste gênero transformando-o
numa expressão musical midiatizada. Examina a utilização do Coco como mecanismo
de articulação de identidade, forma de entretenimento e mobilidade social, tendo em
conta o processo de globalização em que o Coco está inserido. Analisa os intercâmbios,
conflitos, desencontros e desigualdades nas histórias de vida de Ana Lúcia Nunes da
Silva e Severino José da Silva – dois coquistas do bairro Olindense do Amaro Branco,
Estado de Pernambuco, Brasil.
Partindo da perspectiva de Nèstor Garcia Canclini enfocando o papel da cultura
na sociedade contemporânea (1997), foram cruzados depoimentos, testemunhos de vida,
bem como dados estatísticos a fim de compreender o processo de globalização do Coco
de Roda como parte de uma política transnacional de produção e consumo da cultura do
nordeste do Brasil. Tal método de aproximação fornece pistas sobre o modo como os
artistas e músicos locais interagem dentro do sistema cultural global.
Numa primeira parte, este estudo busca, nos capítulos 2 e 3, uma abordagem
centrada nas perspectivas simbólicas imaginadas do fazer do Coco de Roda segundo
testemunhos dos coquistas Ana Lúcia Nunes da Silva e Severino José da Silva.
Contemplando num primeiro momento o fazer do Coco em seus sentidos lato do
emocional, simbólico e técnico musical, trazendo a tona planos de relações hoje
presente nesta manifestação musicada. Este mecanismo de aproximação do fazer Coco
* O presente estudo apresenta uso do português na grafia atual do Brasil. 1 Ver anexo, Pernambuco: perfil geográfico e demográfico
10
através das experiências de Ana Lúcia do Coco e Severino Pombo Roxo me possibilitou
edificar um percurso etnográfico de abordagem através da articulação dessa prática
segundo as memórias, problemas sociais de realização pessoal e planos de representação
política, social, econômica e cultural desta atividade expressiva. Os significados,
concepções, conflitos e aspirações vivenciadas no quotidiano destes coquistas
trouxeram a esta etnografia um conjunto de relações sociais e conexões trabalhistas
articuladas pelo coquista com outros agentes que atualmente interferem direta ou
indiretamente na realização simbólica, econômica e imaginada do Coco de Roda.
A transformação da música do Coco de Roda numa forma de se obter lucro
incide diretamente nos universos particulares de homens e mulheres que agora se vêem
envolvidos por uma nova maneira de conceber suas relações com o evento sonoro
tradicionalmente vinculado ao religioso e comemorativo. Esta nova inclinação na
vertente econômica da realização musical destes atores concorre a programas de
políticas culturais que mobilizam medidas estratégicas de incentivo a produção musical
de gêneros de identidade e tradição, tornando-os mais competitivos e preparados para
atuar no mercado interno e externo. Revelando que o processo reverte o padrão de
tradição a um formato flexível condizente ao mercado global de entretenimento.
Em sua segunda parte, este estudo busca uma abordagem que complemente o
testemunho dos coquistas e demais atores no campo da realização do Coco. Abordam
aspectos do desenvolvimento setorial da produção musical brasileira e suas implicações
no desempenho musical dos coquistas, enfatizando as ligações entre a produção musical
brasileira e o mercado internacional. Esta aproximação se fez necessária ante a
complexidade das conexões e interesses que, nas histórias de vida de cantadores de uma
tradição oral como Ana Lúcia Nunes da Silva e Severino José da Silva, representa o
campo dos negócios e a política cultural, os mecanismos de apropriação do Coco como
gênero mobilizador de uma fatia do mercado global de representações e os conflitos
advindos desse novo modo de conceber o Coco no cotidiano.
Neste sentido, busquei no capítulo 4 introduzir, com base nas narrativas e
dramas experimentados pelos coquistas e demais atores, uma abordagem do
desenvolvimento setorial da produção musical brasileira, e suas implicações no fazer
musical dos coquistas. Concluindo que a dinâmica de uma mercadorização do
11
conhecimento projeta uma redução deste na forma de sua representação simbólica
afetivo-volitiva e que as imagens de uma identidade cultural, fundada numa política de
resgate de tradições, em benefícios de interesses econômicos, podem corromper o
padrão de tradição dos coquistas quando estes se apropriam de perspectivas inerentes ao
formato de representação global.
O capítulo 5 busca revelar que, na cena musical em que atualmente se insere o
Coco, os modos de apropriação do conhecimento de tradição estão diretamente
relacionados aos modos como a imagem desse saber é apropriada como mecanismo de
inclusão no plano global de concepções. Observando que, o atual plano de relações do
coquista com a tradição tende à fragmentação e hibridismo em valores simbólicos
relativos a memória e identidade cultural, devido este processo de apropriação estar
motivado pelo desejo de ascensão, bem estar, entretenimento e inclusão social.
Concluindo que as dimensões econômica, política e social presentes no imaginário de
realizações (sonhos e fantasias) pessoais, nas histórias de vida de atores do Coco de
Roda em processo de globalização do seu saber, reverte-se num processo de
desencontros e conflitos no cotidiano dos coquistas.
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CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO
O Coco de Roda é um gênero performativo específico ao Nordeste do Brasil,
que, alicerçado em paradigmas extra musicais, se configura por meio de complexa rede
de relações sociais. Cultivado desde o período colonial por negros – escravos e seus
descendentes –, como também por índios e grupos mestiços de classe pobre da periferia
dos centros urbanos, veio a ser classificado pelo folclorista Édison Carneiro (1982)
como uma variante do “samba de umbigada”, gênero representado em festas populares
nos Estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Ceará. Sob a designação
específica de Coco de Roda, representa hoje, no Estado de Pernambuco, uma
manifestação urbana veiculada através dos órgãos de comunicação de massas como uma
das marcas de referência da identidade local.
Sua origem é fonte de controvérsias que realçam a sua matriz africana,
identificada como “batuque”, ou remetem a sua gênese ao encontro entre as matrizes
culturais negras e ameríndias. Tal controvérsia repercute numa revisão da afirmação da
origem do Coco estar unicamente associada ao Quilombo dos Palmares2, reduto de
negros escravos fugidos das senzalas de trabalho forçado no período colonial brasileiro.
Este local específico compõe uma área geográfica brasileira de grande valor histórico
que hoje faz parte do Município dos Palmares, localizado a 104 km de Recife, a capital
do Estado de Pernambuco e a 223 km de Maceió, capital de Alagoas, Estado vizinho.
O folclorista José Aloísio Vilela (1980), postula que essa manifestação popular
tivera sua origem e evolução na pratica da colheita do coco, com fins de suprir
necessidades alimentares, e que no processo de retirada das amêndoas configuraram-se
cantos de trabalhos acompanhados pela rítmica dos sucessivos golpes das pedras contra
os duros cascos dos cocos.
2Quilombo. Termo que no Brasil designa o refúgio, abrigo, ou asilo de escravos fugidos. O Quilombo dos Palmares era constituído de negros fugidos, os quais, no séc. XVII, se estabeleceram no interior de Pernambuco, formando uma república. O termo Quilombo também é usado para designar o folguedo praticado no interior do Estado de Alagoas durante o Natal (período de festas natalinas nos meses de Dezembro e Janeiro), em que dois grupos numerosos, figurando negros fugidos e índios, vestidos a caráter e armados de compridas espadas e terçados, lutam pela posse da rainha índia, acabando a função pela derrota dos negros que são vendidos aos expectadores como escravos.
13
1.1. Estudos em torno do Coco
Existe pouca documentação em torno da cultura expressiva do Coco de Roda na
literatura brasileira. Os primeiros registros etnográficos deste gênero3 foram realizados
por Mário de Andrade, entre os anos de 1928 e 1929 (editados em 1962) quando
Andrade desenvolveu o primeiro estudo da história de vida de um coquista – Francisco
Antônio Moreira, o Chico Antônio – , no Município de Pedro Velho do Estado do Rio
Grande do Norte. Diversos estudiosos das manifestações populares no Nordeste do
Brasil empreenderam concisos registros etnográficos sobre o Coco de Roda como
fenômeno social e cultural, enquanto meio de construção da identidade local, regional e
nacional, tal como Ascenso Ferreira (1951), Leonardo Dantas (1962), Câmara Cascudo
(1962), Borba Filho (1966), Katarina Real (1967), Waldemar de Oliveira (1985) e
Roberto Benjamim (1989). Estes autores, entre outros, contribuíram com estudos do
cotidiano das populações do Nordeste brasileiro.
Abordagens mais significativas dessa prática expressiva apenas foram
desenvolvidas a partir da segunda metade do século XX, nos Estados de Alagoas (Vilela
1951), e Paraíba (Ayala 2000) que forneceram base comparativa que contribui para a
compreensão do Coco em Pernambuco.
No ano de 1951, o folclorista alagoano, Aloísio Vilela, publicou a primeira
edição de estudos sobre o Coco de Roda na cidade de Maceió, no Estado de Alagoas,
intitulado O Coco de Alagoas: origem, evolução, dança e modalidades (reeditado em
1980). Este estudo procurou reunir vasta documentação e depoimentos de praticantes do
Coco, descrevendo o gênero como dança popular de provável origem negra, com
influência indígena, ou seja, uma expressão afro-indígena. Em 1961 Édison Carneiro no
seu estudo sobre “samba de umbigada”, classifica o Coco de Roda como uma variante
do samba. Wa Mukuna (1970) estuda a influência da música Bantu na música brasileira
e identifica dança similar de umbigada em terras do Congo. Marcus Ayala e Maria
Ignez Ayala organizaram o livro Cocos: Alegria e Devoção, uma densa pesquisa
interdisciplinar coletiva integrando estudos a partir das perspectivas das Letras, Ciências
Sociais e Artes, desenvolvida entre 1992 e 1999, acerca de 170 coquistas (cantores,
3 Andrade, Mário de. (1984). Os Cocos. São Paulo, Fundação Nacional Pró/Memória. em notas de Oneyda Alvarenga.
14
dançarinos e músicos) em doze cidades do Estado da Paraíba. Ignez Ayala observa: “...
os cocos não constam com estudos recentes rigorosos e sistemáticos que permitam
analisar sua diversidade. Por causa das diferenças ocultadas sob essa designação, parece
mais apropriado atribuir-lhes um tratamento plural, equivalendo a dizer que sob o
mesmo nome podem se revelar mais do que múltiplas formas de uma única
manifestação cultural; podem se apresentar diferentes práticas poéticas de mais de um
sistema literário.” (2000:231).
Desde 2001 Carlos Sandroni vem desenvolvendo estudos das práticas musicais
populares de Pernambuco, incluindo o Coco. Rosa Sobrinho (2001) cataloga o Coco
em Olinda na sua Monografia do Curso de Especialização em Etnomusicologia,
realizado na Universidade Federal de Pernambuco, sob orientação do Doutor Carlos
Sandroni. Oliveira (2001) foca, sobretudo a percussão de origem negro-africana
presente no âmbito do Coco.
Em 2002, Asa Veghed, em monografia para obtenção do grau de especialização
em etnomusicologia, sob orientação do Doutor Carlos Sandroni na Universidade
Federal de Pernambuco estuda o ‘coquista’ Severino José da Silva, em registro de dados
do Coco como produto de consumo vinculado ao movimento Mangue Beat. Galinsky
(2002: 228) aborda o mangue beat e sua possível relação com o Coco, e analisa
exemplos de hibridismo e fusão como uma das tendências da cultura pop globalizada do
Brasil, nos últimos trinta anos. Analisa igualmente a nova cena nacional e do nordeste
do Brasil, incorporando debates recentes sobre pós-modernidade, globalização.
Em seu estudo sobre o cantador Francisco Antônio Moreira, o Chico Antônio4,
Gilmara Benevides Costa (2004) descreve o modo como a produção literária e musical
de um ator da cultura de identificação popular é apropriada por intelectuais e produtores
culturais locais como representação de uma memória nacional, revelando um plano de
relações entre artistas populares e os intermediários culturais.
A pouca documentação etnográfica e a emergente inclusão de atividades e
artistas de origem popular no mercado fonográfico torna pertinente uma aproximação
4 Primeiro cantador de Coco a ter sua historia de vida etnografada. C.f. p.13
15
etnográfica ao Coco de Roda, que virá a preencher lacuna nos estudos em torno dessa
cultura expressiva no Brasil.
1.2. Objetivo e Problemática
O objetivo desta dissertação de Mestrado é elaborar uma etnografia do Coco
de Roda no início do século XXI (2000-2006), com ênfase nas suas componentes
simbólica e econômica. Como estratégia de investigação, busquei seguir as pistas
ditadas pelas relações articuladas pelos atores dessa prática expressiva – os ‘coquistas’ –
, com os agentes da política cultural que dinamizam o turismo e a indústria audiovisual,
e verificar as estratégias de ascensão social dos coquistas, ante o modelo de reprodução
de uma estratificação de classe.
Foram estudados alguns dos meios da produção simbólica como reflexo dos
mecanismos de inserção de um artista popular no processo de midiatização globalizada.
Este processo implica na transformação de uma prática que, desde registros dos anos 20
até fins dos anos 80, estava inserida numa dimensão micro-familiar e local, e que
atualmente, após sua apropriação pela indústria cultural em discurso e uso de elementos
da tradição de identidade local em convergência a tendências do mercado global5, se
projeta como meio de construção de uma identidade imaginada pernambucana,
nordestina, e brasileira.
Este estudo focaliza o fenômeno do Coco de Roda em processo de
midiatização, articulado por aspirações de ascensão social, produção e consumo
cultural, utilizando como principais métodos a história de vida e a etnografia da
performance. Procurei valorizar não só a versão oficial das políticas culturais e sociais,
5 Este processo que acarretou uma mobilidade de idéias e de valores sociais na arte local de Pernambuco teve sua ebulição logo após a inclusão no mercado discográfico brasileiro, nos anos 90, de composições e arranjos musicais produzidos no âmbito do Movimento Mangue Beat – movimento intelectual de expressões conectadas à produção musical local – . José Machado Pais (2004:12) identificou o Mangue Beat como termo conceptual às idéias de se produzir artisticamente uma interface do passado com o presente. Desde então o Coco passou a ser uma das ferramentas dinamizadoras do pop-rock, no cenário musical brasileiro e na world music, no cenário internacional, através da inclusão de elementos musicais tradicionais na composição, arranjo e performance. Esta tendência teve sua principal alavanca quando a crítica musical e as principais editoras do país convergiram em reconhecimento da popularidade dessa expressão musical junto da parcela jovem e intelectual das zonas urbanas, do Nordeste e Sudeste do país. O que veio a permitir que artistas populares ligados ao Coco concorressem aos fins e interesses da indústria fonográfica e de entretenimento no mercado nacional e internacional.
16
das finanças e dos meios de comunicação globalizados, mas também a versão não-
oficial local, num confronto das relações entre as perspectivas dos artistas, dos
participantes no Coco, dos políticos culturais e dos agentes da indústria..
A valorização das perspectivas dos estudiosos acima mencionados e as dos
‘coquistas’, estabelecidas por uma aproximação com as expectativas que giram em
torno das relações e interesses da classe dos atores desta tradição, permitiu uma
compreensão das tendências e do impacte sofrido no ‘ fazer do Coco de Roda’ após sua
adoção pelo mercado de comunicação de massas. Desta forma, este estudo buscou
analisar as mudanças nos imaginários dos “artistas populares”, as relações (simbólicas,
de gênero, e de classe) estabelecidas entre os artistas e a prática midiatizada, tendo em
conta as ideologias e o impacte dos processos migratórios, comercial, midiático e
tecnológico aos níveis local, regional e global. Deste modo procurei compreender o
modo como os diferentes atores envolvidos no Coco de Roda e no processo de sua
midiatização contribuem para o processo de construção da identidade cultural
imaginada de Pernambuco.
A partir da perspectiva acima delineada, busquei abordar as seguintes
questões:
• Qual o contexto de realização de um Coco de Roda como fenômeno artístico e
social no início do século XXI?
• Como os coquistas e agentes da política cultural concebem o Coco de Roda nas
dimensões simbólica e econômica?
• Quais as expectativas, aspirações e conflitos experimentados pelos coquistas em seu
processo de inclusão no mercado da música?
• Quais as concepções que os coquistas têm da dinâmica de mudança nas suas vidas e
no processo de criação e performance, nas relações sociais, no contexto de
realização, nos significados e valores simbólicos, após sua inclusão na indústria
cultural? O que motiva seu ingresso no mercado de espetáculo e discográfico? O
que o motiva perseverar na manutenção da tradição?
• Como os coquistas renegociam os paradigmas do passado frente aos novos critérios
de representação necessários a sua inclusão no mercado musical globalizado?
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• Qual o critério utilizado pelos agentes da política cultural na seleção, apropriação e
construção do novo perfil de representação do Coco enquanto gênero musical de
consumo?
• Quem é que os agentes do mercado discográfico (como no caso pernambucano e o
francês) elege como representante de uma produção legítima de identidade cultural e
tradição popular? ?
• Qual é o impacte a nível local de integração das representações do Coco de Roda no
mercado World Music?
1.3. Enquadramento Teórico
Guiado sob a óptica multidisciplinar que caracteriza a atual etnomusicologia, o
presente projeto buscou uma apreciação distinta para cada modo específico de conceber
as relações patentes no Coco de Roda em processo de midiatização.
Optei por uma abordagem de cunho “sócio-semiótico” (Canclini 1997: 61-62) para
o estudo da cultura de produção, circulação e consumo, com fins de mostrar a cultura
como processo no qual os significados podem variar, numa perspectiva comparativa
entre indivíduos de uma sociedade, e entre modelos de sociedade. O objetivo é verificar
se existe no imaginário desses atores sociais alguns dualismos entre o econômico e o
simbólico, e entre o individual e o coletivo .
Porém o problema do “sentido aberto da globalização” (Canclini 1997; Mato
1996, e Passeron 1991 in Canclini 1997) integra nesta apreciação as questões culturais e
políticas que engendram concepções construídas no imaginário, sobretudo a respeito das
relações e conexões entre culturas. Nesta acepção, o Coco, enquanto conhecimento e
atividade de classe, grupo racial e espaço geográfico específico, quando deslocado de
seu ambiente de ocorrência, para os planos do regional, nacional e internacional, vem a
ser associado, entre outras concepções imaginadas, a uma arte a ser preservada, a um
discurso político e ideológico, como também ao lazer e entretenimento na crescente
economia industrializada de cultura. Tal estágio de apropriações de um fazer cultural
18
como produto da teia global de perspectivas incide na multiplicidade de imagens,
interesses e concepções engendradas a partir deste fazer.
Segundo Canclini (1997: 61-62) tal apreciação solicita uma abordagem teórica,
conforme propõem Arjun Appadurai (1996) e Frederic Jamerson (1993), considerando a
cultura como uma dimensão expressiva que emerge, ao menos, a partir da relação de
dois grupos, como veículo através do qual esta relação é formalizada subjetivamente e,
única e especificamente num plano do imaginário intercultural, e não no suplemento
que cada cultura possa representar isoladamente dessa relação social de carácter
intercultural. Aqui o que se evidencia é o imaginário articulado especificamente no
momento do cruzamento intercultural.
Tal abordagem torna pertinente verificarmos que o Coco, no universo de seus
artistas não é o mesmo articulado fora de seu contexto original, pois a performance
estandardizada pela indústria do entretenimento necessita de um formato regular e
estereotipado que possa ser etiquetado como categoria de consumo no imaginário
intercultural. Este deslocamento no espaço e no tempo de percepção e realização
permite que o Coco articulado pelo cantador seja percebido e apropriado pelo seu
receptor no conflituoso cruzamento temporal e espacial de concepções entre a função
social, o valor emotivo, e a idéia de entretenimento.
A concepção de perspectivas imaginadas relacionadas ao fazer musical do Coco de
Roda é neste trabalho utilizada, segundo Canclini (1997), na apreciação dos distintos
modos com os quais ‘coquistas’, e os diversos atores com os quais estes se relacionam,
abstraem seu particular percurso no processo de globalização do fazer do Coco de Roda.
Pois cada ator guarda uma particular impressão valorativa dos ganhos e percas
necessárias e toleráveis na conquista de espaços e realizações. Isto se dá através de uma
avaliação pessoal dos riscos postos em jogo quando estes atores se lançam no projeto de
mudança de suas perspectivas de vida. Estas perspectivas representam um imaginário de
concepções que se realizam no plano simbólico antes do plano material da vida social.
Gravar um CD, possuir um empresário ou tocar em público com cachê, pode representar
relativamente um grau de fama e riqueza, segundo suas referências pessoais de sucesso
e fracasso. Sob este ponto de vista, o conceito de realização profissional, pessoal e
social pode variar de ‘coquista’ para ‘coquista’, conforme seu grupo social de relações.
19
Desta forma, este estudo realizado em torno das experiências, aspirações e
expectativas dos coquistas Ana Lucia e Severino Pombo Roxo, foi guiado por discursos
e perspectivas6 relativas à problemática do prazer, da escolha e da realização pessoal – a
nível profissional, de classe, de geração e de gênero –, ao sugerir que as mudanças que
emergem do processo de midiatização de suas criações musicais tenham reflexos na
prática musical, na prática doméstica, referências tradicionais do cotidiano, e no
processo de transmissão oral, na medida em que o indivíduo incorpora a inovação
tecnológica em padrões de vida. Anthony Giddens (1992) postula que estas mudanças
sejam elaboradas por referência interna – reflexiva –, e não só externa dos atores sociais.
Por sua vez, Tomlinson7 (1990) e Putman (1994) afirmam que o consumo deixa de ser
exclusivamente motivado pela busca de um bem-estar, para assumir uma materialização
de uma esfera das aspirações sociais.
O cruzamento das concepções dos planos simbólico e artístico que se apresentaram
reflexivamente nas motivações de Ana Lúcia e Pombo Roxo, me fez perceber que entre
coquistas detentores de uma tradição herdada pela oralidade, a música é usada como
instrumento simbólico de interação social que a remete para além de um sentido
puramente artístico que o Coco em suas características musicais possa revelar. Esta
observação trouxe a este trabalho a necessidade de uma abordagem que, indutivamente
às questões e perspectivas concebidas por estes atores, a partir do conceito local de
desempenho musical ‘legítimo’ de um coquista (pela tradição), possa dar conta do
processo de midiatização que induz a incorporação de novos padrões sociais de vida,
motivando a mudança das aspirações e métodos de desempenho musical no Coco de
Roda.
Esta perspectiva de aproximação me fez considerar que a questão que se torna
evidente no ato e aptidão de representar o Coco está na noção de competência e 6 O discurso in loco constituiu-se como método principal de aproximação e comparação das perspectivas imaginadas e representações articuladas nas relações implementadas pelos coquistas no processo de mercantilização do Coco de roda, e suas experiências de vida. 7 estas afirmações de Tomlinson (1990) constam em Alison J. Clarke (2001), The Aesthetics of Social Aspirations”, in Miller, D. ed., Home Possessions. Material Culture Behind Closed Doors, Oxford, Berg.
20
desempenho ideal adotada, prioritariamente, pela classe de coquistas ou, a seu turno,
pela classe de agentes culturais, visto que a classe de aficionados, de certa forma, está
diretamente vinculada às perspectivas dos coquistas (quando esta categoria do público
guarda vínculos com os coquistas), ou às perspectivas dos agentes culturais (quando o
público concebe o Coco por veículos midiáticos). Neste sentido, escolhi considerar, em
identificação aos critérios de desempenho musical presentes neste processo de mediação
do Coco de Roda, as concepções postuladas por Lev Semenovich Vygotsky (1993) e
John Blacking (1987).
Em seu estudo dos mecanismos do pensamento humano e conseqüente uso de
linguagens em contexto social, Vygotsky identifica que a linguagem (música) somente é
codificada numa ação comunicativa (canto ↔ audição) após o pensamento (poder de
formalizar concepções e interpretação) elaborar juízo e conceitos das coisas (processo
de mediação interpretativa). Em sua análise do pensamento verbalizado pela ação em
contexto social, Vygotsky conclui que “(...) O pensamento propriamente dito é gerado
pela motivação, isto é, por nossos desejos e necessidades, nossos interesses e emoções.
Por trás de cada pensamento há uma tendência afetivo-volitiva, que traz em si a
resposta ao último “por que” de nossa análise do pensamento. Uma compreensão
plena e verdadeira do pensamento de outrem só é possível quando entendermos sua
base afetivo-volitiva.” (1993:129).
Neste sentido, as experiências e aspirações que emergem de contextos sociais são
codificadas na produção cultural, o que condiciona o coquista, na qualidade de ator
(cantador e interprete de Coco), a transformar os fatos e objetos (físicos, simbólicos e
imaginados) que são representados sobre estes planos de relações, tais como se lhe
apresentam à vista, em significados específicos para cada contexto situacional.
Na presente abordagem etnomusicológica, estes significados (das impressões e
experiências que emergem do contexto de um Coco de Roda) se apresentam
reflexivamente em padrões de performance musical, resultantes das convergências e
divergências de perspectivas suscitadas e sublimadas pelas aspirações, realizações,
conflitos e decepções advindas das relações sociais. Deste modo, a criação musical, na
qualidade de linguagem (produção cultural), somente é materializada na forma de um
desempenho de performance musical (produto cultural) após a mediação das
21
experiências adquiridas no passado (que passam a compor o extrato estrutural das
convenções culturais) com as condições motivacionais paralelas às convenções
estabelecidas (estas condições motivacionais paralelas emergem dos contextos de
realização). Desta forma, conforme propõe Vygotsky (1993129), o pensamento musical
tem que passar primeiro pela elaboração dos significados (competência) e depois pela
produção cultural (Desempenho musical)(c.f. graf. 1).
Gráfico 1 – Modelo de Vigotsky (1993) aplicado ao processo
de desempenho de performance musical do coquista.
Para John Blacking (1987) a música é uma linguagem expressiva, marcada por um
poder comunicativo. Em sua proposição ele observa que o uso da música como
instrumento simbólico e interativo em contexto social é mais importante que as suas
características musicais. E conclui,8 “o poder comunicativo da música numa sociedade
depende da forma como ela é usada para mediar as convenções culturais e a liberdade
individual e do modo como a intensa criação pessoal se pode transformar numa
propriedade pública”(Blacking 1987:34) (cf. Graf.2).
8 Segundo tradução de Sardo (2004:19),
Experiências Passadas: Extrato das Convenções Culturais
Mediação de experiências
Motivos Contextuais:
Relações Sociais, aspirações, expectativas, esperanças,
Performance musical Produção Cultural
• Desempenho Musical
Construção de Significados: • Reflexividade • Codificação de conceitos • Poder de Interpretação
Pensamento Musical: • Experiências Musicais • Motivos contextuais
22
Gráfico 2 – Modelo de articulação do desempenho musical proposto por Blacking (1987)
Esta assertiva traz a possibilidade de compreender que essa perspectiva de
Blacking vai além de um domínio da codificação estritamente musical, referindo-se,
primordialmente, ao domínio simbólico das significações musicais, que Blacking
identifica como o poder comunicativo que a música pode assumir numa sociedade ou
comunidade cultural imaginada. Pois, segundo afirma Sardo, “desde que se verifique
alguma compatibilidade entre os códigos musicais e culturais de quem compõe
(individual) e os códigos musicais e culturais de quem recebe (coletivo) existem
condições para que as criações individuais se transformem num patrimônio coletivo”
(Sardo 2004:19).
Quando Blacking (1987:34) observa que a criação e a motivação musical estão
num plano pessoal e individual de relação para cada ator social, apesar das convenções
culturais desenvolverem o sentimento e a habilidade musical para a comunicação com o
‘outro’ num plano coletivo, entendo que a componente individual, que surge como
resultado da experimentação interpessoal de situações sociais e emocionais (Blacking
1987:32 in Sardo 2004:20), contempla um complexo de relações que se geram no
interior uma das outras, interagindo permanentemente e modificando-se conforme os
contextos e concepções culturais onde se inscrevem. Esta perspectiva de observação me
Mediados através da música
... o Poder comunicativo da música
Componente Individual:
Convenções culturais
23
faz conceber em Blacking que a motivação pessoal do coquista em seu processo de
criação também esta condicionada às experiências paralelas (novos contextos musicais e
extramusicais) que emergem dos contextos de realização do Coco de Roda (experiência
musical). Pois o coquista utiliza o conceito de Coco, formatado em sua memória
(convenções culturais), como recurso de solução a tais experiências paralelas (novos
contextos musicais e extramusicais) na ação da performance musical (desempenho
como coquista).
Desta forma, concebo como representação desse processo de criação do Coco de
Roda e concepção do desempenho de um coquista, por seus atores e agentes, a
identificação da componente “experiências paralelas” na proposta de John Blacking.
(C.f. graf. 3)
Gráfico 3 – Modelo de articulação do desempenho musical proposto por Blacking (1987) integrando convenções do gênero e experiências paralelas.
Guiado pelo interesse de melhor compreender o processo de reconhecimento e
validação de um coquista pelo respectivo desempenho, busquei encontrar
conjuntamente nestes dois modelos teóricos uma equação que satisfaça as variáveis que
Processo de Mediação
... o Poder comunicativo da música
Experiência musical: • Convenções do género
Experiência paralela: • Novas experiências
Componente Individual: • Motivação Pessoal
Convenções culturais
24
emergem das relações entre as ‘convenções culturais’, as formas das experiências de
ordem ‘musical’ (convenções musicais do gênero que dialogam com o sistema de
convenções socioculturais em que se inscrevem, e as condições externas a estas
convenções musicais que emergem em novas experiências) ou ‘extramusical’, e a
‘componente individual’ (as motivações), que permitem a música do Coco ser entendida
como um fato social próprio do sistema sociocultural que o gera.
Assim, a partir da premissa de que o fazer do Coco de Roda não é gerado como
um fenômeno estático e desconectado das histórias de vida, considerei, quando em
análise destes modelos teóricos frente às condições de performance de coquistas por
mim verificada, que o coquista (em sua condição de representante “pleno” da arte de
conceber e fazer Coco de Roda) ao experimentar um contacto com novos contextos de
realizações do Coco (ambientes e motivações que de alguma forma revelarem um
deslocamento dos contextos tradicionais) poderá vir a construir novas relações com o
meio (evento musicado) e codificar novos significados (referências externas)
unicamente diante destas condições específicas de realização. Pois estas relações
possibilitam experiências promovidas por um dado contexto social e sua regularidade.
Identifico em análise a estas relações que tais referências externas (Vigotsky,1993:129)
construídas pela vivência musical (com a tradição ou processo de midiatização) estão
relacionadas às convenções culturais identificadas no modelo de Blacking (1987:34).
Neste sentido, percebo que, em suas relações com o meio, o coquista recorre
reflexivamente (pelo seu poder de escolha, análise e interpretação) às convenções
culturais, sempre que contextos de uma festa de Coco for por ele experimentado. Nesta
abordagem a reflexividade surge como a variável funcional do desempenho musical,
para toda relação cumulativa das convenções culturais e experiências musicais mediadas
ante as ‘experiências extramusicais ou musicais paralelas’ (aquelas que de alguma
forma representem para o coquista uma alteração das convenções culturais e paradigmas
musicais já estabelecidos em sua experiência com o Coco).
Neste plano de relações, proponho equação algébrica do desempenho musical
que possa vir a ser satisfeita por um ou mais conjuntos de valores variáveis. Em tal
equação compatível ao desempenho musical, as Convenções Culturais (CC), quando
resgatadas no plano cognitivo da Reflexividade (R), proporcionarão ao coquista a
25
realização do fenômeno Coco da forma como se estabelece o padrão de tradição
concebido. Nesta condição, o Desempenho Musical (Dmusical) se manifestará em sentido
diretamente proporcional às Convenções Culturais (CC), o que indica que o coquista
apresentará uma competência de desempenho compatível a uma vivência previamente
experimentada com o evento do Coco. Desta forma, a componente ‘tradição’,
identificada com as Convenções Culturais (CC), passa a configurar um dos critérios de
identificação da competência e desempenho de um coquista.
Enquanto que, quando o plano das Experiências Musicais (Expmusical) for articulado no
plano cognitivo da Reflexividade (R), o coquista poderá vir a apresentar uma variação
na qualidade de seu desempenho. Pois o plano das experiências, como espaço social,
vem a ser determinado pelo sistema sociocultural que o gera, ou seja, se sua experiência
musical com as convenções do gênero Coco for convergente às condições contextuais
de realização, o coquista apresentará um desempenho diretamente proporcional às
convenções de tradição desse gênero. Mas se as condições do contexto de realização do
Coco não forem convenientemente adequadas a sua experiência musical com este
gênero, o coquista poderá não apresentar um desempenho diretamente proporcional às
convenções de tradição do Coco de Roda.
Nesta perspectiva, estes planos de relação do coquista com as Convenções Culturais e
os possíveis contextos de realização, esta representada pela soma ou união das funções
algébricas (Dmusical = CC . R ) e (Dmusical = Expmusical : R) da equação:
Dmusical = CC . R Φ Expmusical : R
Onde:
� Na função algébrica “Dmusical = CC . R” o símbolo “.” representa que da
relação de multiplicação entre as ‘convenções culturais’ (CC ) e o poder de ‘reflexividade’ (R) o ‘Desempenho Musical’ tende a se apresentar no sentido diretamente proporcional às Convenções da Culturais : ↑CC → ↑ Dmusical;
� o símbolo “Φ” (phi) representa a soma ou união de funções;
� e na função algébrica “Dmusical = Expmusical : R” o símbolo “::::” representa a possibilidade de duas (02) funções de multiplicação serem verificadas entre Expmusicais e R:
26
1. A primeira, advém em resultado a convergências entre a experiência musical com as exigências do contexto, que determinará através do poder de reflexividade do coquista um ‘Desempenho Musical’ diretamente proporcional às convenções do gênero:
↑Expmusical → ↑ Dmusical
2. A segunda, advém da possibilidade do não cumprimento de padrões musicais do Coco de Roda quando as exigências do contexto alterarem este padrão ou representarem novas experiências musicais para o coquista, o que determina um ‘Desempenho Musical’ variável entre a convergência e a divergência de sua performance com as convenções do gênero:
↑Expmusical → ↕ Dmusical O que não implica que numa situação adversa de realização, o coquista perca sua competência, pois identifico que apenas seu desempenho estará em provação.
Ao tomar a reflexividade (R) como a componente variável principal das funções9
desta equação, observo que, por seu plano de ação se desenvolver no campo da
dimensão cognitiva da mediação de experiências (Vygotsky 1993:129), faz considerar o
potencial processo de inovação contido neste plano de codificação de novos conceitos,
por intermédio da construção de significados, o que implica dizer que, pelo atributo da
Reflexividade (R) é possível se estabelecer a ruptura das Convenções Culturais (CC).
Assim, este modelo também comporta a inovação e ruptura das convenções do gênero.
Para tanto, entendo a ‘reflexividade’ (R) como uma ação cognitiva relacionada ao
poder de interpretar, sublimar e racionalizar experiências vividas com base em
convenções adquiridas e exercitadas no meio social. Desta forma, o poder de
reflexividade de um coquista, pressupõe sua potencial competência de reproduzir ou
inovar significados.
Na minha análise do Coco tive em conta igualmente, Thomas Turino (1999),
quando este etnomusicólogo relaciona a música às emoções e à identidade com base no
principio de que a música é uma fonte crucial para a construção da identidade pessoal e
coletiva. Assim o mais relevante é a resposta social que os signos e suas significações
9 Dmusical = CC . R e Dmusical = Expmusical : R
27
gera, e isso se prende aos aspectos associados à identidade, à experiência e às emoções,
na medida em que tende a envolver a área dos sentimentos humanos. Turino permite
perceber em sua abordagem a concepção triádica dos signos – o signo, seu objeto e seu
interprete –, tal como foi defendida por Charles Pierce (2000) que identifica os três
elementos básicos presentes na ação sistemática dos signos e sistemas de significação
que cooperam no processo humano da mediação entre as convenções, as motivações e
as experiências. Essa abordagem revela que não são os múltiplos signos que permeiam
as experiências do indivíduo, que serão importantes para sua interação e integração num
contexto musical, mas só aqueles signos, dentre todos, que efetivamente produzam os
respectivos efeitos suscitados pelo contexto musical.
Nesta medida, a memória social passa a ter um papel relevante no estudo do
imaginário contido nos signos que se reproduzem nas práticas sociais como a festa (a
brincadeira do coco) ou outra comemoração cíclica, onde as comunidades celebram a
rememoração do passado com o propósito da manutenção das suas referências
identitárias.
Penso que nesse processo a comemoração periódica surge igualmente numa
renegociação dos paradigmas do passado, uma vez que silenciam certos aspectos
contraditórios desses dois momentos que se cruzam na memória social, pelos conflitos
advindos deles nas relações e funções sociais dos indivíduos no concurso de uma
identidade local coletiva.
A memória passa assim, a compor uma clara relação com a ideologia que domina a
concepção particular de escolha de cada grupo de signos associados ao contexto de
identidade abstraído por seus agentes. Dessa forma, a ideologia tanto é um agente
modelador da memória, como também, resultado da relação advinda de uma inter-
influencia entre elas (ideologia ↔ memória), da qual surgem novas dinâmicas que tende
a se reproduzir nas novas ou atuais práticas sociais.
"La gente utiliza la ideología para pensar y discutir sobre el mundo
social y, por su parte, la ideología determina a su vez la naturaleza
de tales argumentos y la forma retórica que adquieren".
[Billig, M., 1988 ]
28
Neste sentido, a psicóloga Maria Laura Telo (2003) propõe abordarmos, como
ponto de discussão, os aspectos da história que mudaram em função dessa ideologia, se
levarmos em conta que a formação da memória coletiva veiculada na história social de
um grupo advém da ideologia que a determinou, marcando um diferencial de identidade
local em função do ‘outro’. O que me fez procurar nas perspectivas de tradição e
modernidade abstraídas por Ana Lúcia do Coco e Severino Pombo Roxo, o que mudou,
ou o que continua nessa manifestação. Pois segundo Lev Vigotsky (1993), a
consciência que um ator social tem de si, do seu campo de ação, de suas ações e do seu
mundo de integração, provêem de um conjunto de capacidades cognitivas reflexivas,
compostas pela memória e o pensamento coletivo e funcional aos quais os signos são
estabelecidos socialmente.
A memória, que entre os anos 20 e 30, fora tomada como faculdade isolada de
um fenômeno individual e íntimo, veio, nos fins do século XX, a ser observada por
Halbwachs (1990) como fenômeno coletivo e social, e a ser estudada por Michel Pollak
(1992), “como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações,
transformações, e mudanças constantes” (Pollak 1992:201). A memória, assim
concebida, constitui-se o lugar da conexão entre o real e o simbólico, que se relaciona
com o sentimento de proximidade das variáveis envolvidas nas concepções vividas e
imaginadas. Pollak, sob esta abordagem, propõe a discussão da ligação entre identidade
histórica e memória coletiva.
Como encarar o passado em função do presente? E Como encarar o futuro em
função do presente? Questão ética e filosófica presente nos problemas que se
estabelecem em torno das múltiplas concepções, identificações, classificações e
apropriações da idéia de cultura e patrimônio, visto que a memória e a identidade,
conforme postula Pollak (1992:206), são fenômenos que não devem ser compreendidos
como essências de um indivíduo ou grupo particular, e que podem ser negociadas no
nível das relações sociais, pela ação do ‘outro’ no seu reconhecimento e validação, na
edificação de uma alteridade do fazedor e não do indivíduo potencial.
Ante a preocupação dessa complexa relação entre a memória e a identidade, Pollak afirma:
29
“A construção da identidade é um fenômeno que se produz em
referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade,
de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio de
negociação directa com outros”
[Pollak 1992:206]
João de Jesus Paes Loureiros (2006)10, toma em análise a cultura e o patrimônio
como níveis conceituais relacionados com a herança de um passado, e que devem ser
apreciados em três instâncias inter-relacionáveis dentro de uma dimensão temporal: o
passado, o presente e o futuro. Em sua articulação dessa relação, Paes Loureiro
referencia, no espaço temporal concebido pelo indivíduo, o tempo presente e suas
relações com o passado e o futuro:
“... constatamos o ‘tempo presente’, porque o vivemos. Constatamos
o ‘tempo passado’, pela memória. E constatamos o ‘tempo futuro’,
quando interpretamos e articulamos um tempo passado, presente pela
memória, em função do tempo presente, que vivenciamos.”
[Paes Loureiro, fevereiro de 2006]
O conceito de identidade e familiaridade do evento cultural, como o de expressão
musical, perpassa pelo plano da estratificação social, pela adoção no imaginário coletivo
da idéia da diferença, legitimidade, originalidade e autenticidade de gêneros, raça,
criatividade, musicalidade, formas e estilos, numa transformação de significados e
valores que, entre os coquistas e seus atuais contextos de relação, acentuam
descontinuidades como “desencaixes do tempo e espaço” (Giddens, 1992).
No que se refere aos processos de mundialização e globalização de concepções e
perspectivas Canclini (1999) observa que o contexto atual de homogeneização global é
mobilizado por múltiplos interesses privados de produção, circulação e consumo, e
muitas vezes sem um controle político dos Estados-Nação, o que faz Nestor Garcia
Canclini (ibidem) tomar a globalização, na definição de Daniel Mato (1996 in Canclini
10 João de Jesus Paes Loureiros professor da Universidade Federal do Pará, em seminário Cultura, Patrimônio e Meio Ambiente, realizado em 21 de fevereiro de 2006, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
30
1997), como uma conseqüência de múltiplos movimentos, em parte contraditórios, com
resultados abertos, que não oferecem um conjunto coerente e consistente de paradigmas
para um estudo empírico e consciencioso a nível científico, econômico (Jean-Claude
Passeron 1991 in Canclini 1997) e político, que implicam diversas conexões “local-
global” e “local-local”. O que faz do personagem ativo da ação social em foco, o
coquista, uma variável de suma importância no estudo das relações, acordos e
interligações de livre comércio (Marc Abélès,1994-1996, in Canclini 1997) que
desencadeiam e/ou que são desencadeadas pela globalização a que estão submetidos ao
fazer musical na atualidade, como no caso específico do Coco de Roda.
Tomarei ainda como base teórica a tese de Krister Malm (1992-1993) sobre o papel
da mídia de massa na transformação dos valores de identidade e tradição, como também
os estudos sobre os desenvolvimentos tecnológicos, econômicos, organizacionais e
respectivos efeitos na vida musical local, global e glocal, implementados por Roger
Wallis e Malm (1993), como argumento de apreciação e análise do papel da identidade,
do poder e pertença presentes, coadjuvantes e conseqüentes da política cultural e
midiática das conexões globalizadas que constituem na atualidade a mobilidade social e
a manutenção das tradições.
1.4. Metodologia
Com base numa perspectiva indutiva, a presente dissertação utiliza uma
abordagem etnográfica do Coco de Roda, através de uma imersão direta no cotidiano
das comunidades de ‘coquistas’ do litoral pernambucano, que não se restringiu apenas
ao fenômeno sonoro, mas sim a todo um sistema de atividades musicais e extra
musicais. Conforme propõe Timothy Rice (2004:151-79), procurei focalizar as historias
de vida de Ana Lucia Nunes da Silva e Severino José da Silva, aprofundando o meu
conhecimento das relações sociais provindas dessa prática expressiva, num espaço
propicio a vivencia musical, sob três dimensões: tempo, espaço (local, nacional e
global) e o sentido contido no fazer musical.
A escolha destes artistas populares do bairro olindense do Amaro Branco foi
motivada por estarem reconhecidos, entre seus iguais, como “autênticos” atores desse
31
saber, ao mesmo tempo que estão contidos no grupo de artistas populares ainda em
processo de integração no universo comercial do Coco de Roda.
Os critérios utilizados na escolha destes atores teve como baliza questões de
gênero, classe social, estado de exclusão no cenário musical midiatizado, identidade,
processo de formação musical, ligações religiosas, e conflitos que emergem do processo
de industrialização da música (direitos autorais e concepções de performance).
Ana Lúcia Nunes da Silva, motivada por concepções religiosas e de relações
familiares possibilitou verificar os modos de relação que um coquista mantêm com a
memória de uma tradição oral, e o cruzamento destas com as imagens simbólicas no
decorrer de sua experiência, frente às novas concepções e contextos em que se insere o
Coco e seus praticantes..
Severino José da Silva, o Pombo Roxo, possibilita uma aproximação de uma
realidade econômica que se reproduz entre os artistas dessa classe desde os fins da
escravatura. Seu discurso revela problemas do cotidiano que justifica a adoção de
práticas e mecanismos de sobrevivência.
Juntos representam os demais atores deste folguedo que anima o Bairro
Olindense do Amaro Branco11 e os arredores das cidades de Olinda e Recife, e que
foram iniciados na arte de cantar e improvisar coco por coquistas que fizeram historia
nesta específica comunidade de atores de expressão popular do litoral pernambucano.
Evidenciam ainda as atuais aspirações de ascensão social que mobilizam toda uma
geração de coquistas e demais atores envolvidos no processo de midiatização,
promovido pela indústria discográfica e pelos meios de comunicacção de massas, numa
política cultural sensível às relações econômicas e financeiras, públicas e privadas, que
se estabelecem com o mercado turístico e cultural globalizado.
Seguindo a abordagem proposta por Néstor Garcia Canclini (1999), busquei
focalizar o processo de homogeneização do Coco de Roda em sua produção e consumo
frente as perspectivas dos coquistas Ana Lúcia e Pombo Roxo, e agentes articuladores
11 Amaro Branco. Bairro da Cidade de Olinda de ativa produção desse género específico, sobretudo pelo número e expressiva qualidade de coquistas que ali se encontram.
32
de uma imagem de tradição e identidade pernambucana idealizada na performance do
Coco. Para tanto, procurei identificar as curvas de necessidades que mobilizam os atores
envolvidos no Coco de Roda (coquistas, músicos, agentes de política cultural, etc.), os
conflitos advindos no cruzamento de interesses e perspectivas e os métodos usados na
resolução das diferenças.
A elaboração de histórias de vida, possibilitou adotar uma abordagem específica
para cada caso e análise de conteúdo. Foram realizadas entrevistas não direcionadas em
que minha preocupação primeira foi interagir com o entrevistado, promovendo um
estímulo capaz de favorecer a espontânea retransmissão de suas experiências, conforme
propõem Daniel Bertaux (1997), Jean Poirier, Simone Clapier-Valladon e Paul Raybaut.
(1995). Neste processo participei, enquanto percussionista, como músico performer
junto às atividades artísticas destes atores, além de interagir com eles em seus processos
de articulação de inclusão no mercado de discos e políticas culturais, como estratégia
investigativa de melhor perceber a dinâmica em que estão inseridos, e as formas e
contextos de desempenho do Coco em seu processo de globalização.
Porém, com base na metodologia articulada por Canclini (1999), busquei na
construção e análise dos registros coletados no terreno, cruzar dados estatísticos, relatos
e imagens, em prol de comparar os distintos modos como se globalizam as perspectivas
dos atores desse fenômeno contemporâneo como reflexo de uma política transnacional
de produção e consumo, aos quais Ana Lúcia, Severino Pombo Roxo e outros coquistas,
juntamente a demais agentes sociais da política cultural, estão inseridos na atualidade.
Para tanto, procurei identificar na ótica de Ana Lucia Nunes da Silva e Severino
José da Silva, fatos e articulações que envolvem o Coco de Roda, tais como: contexto
social e de mercado, consciência e uso de artifícios de defesa e apropriação (manejos e
relações ambivalentes estratégicas) com produtores, empresários, instituições religiosas,
investigadores, mídia, músicos e demais atores concorrentes ou convergentes dessa
atividade expressiva.
33
1.5. Entre músico e etnógrafo
Meu interesse pelo estudo do Coco de Roda em Pernambuco surgiu do contacto
pessoal com coquistas, em meu cotidiano de educador musical e músico profissional,
principalmente quando na esfera dessa expressão de tradição artística popular.
As experiências quotidianas com o fenômeno sonoro que configuram a minha
história de vida levaram-me a escolher a música como mecanismo apropriado para
relação e compreensão do mundo. Esta escolha se deu pelo contacto com as expressões
populares desde a infância. Meus pais já demonstravam e rememoravam no cotidiano
do lar suas afinidades e intimidades com expressões musicais de tradição oral. Fazia
parte do meu cotidiano cantar um Baião, dançar Ciranda, batucar um Samba, ouvir
Coco e Embolada, acompanhar Caboclinhos em pleno carnaval, tocar Maracatu,
solfejar composições antológicas da tradição popular, ouvir diariamente gravações que
marcaram a história de uma identificação coletiva com o Estado de Pernambuco, e as
cidades de Recife e Olinda.
Entretanto, minha iniciação musical foi marcada por estereótipos que
relacionavam o fazer popular a condutas contrárias às normas sociais dominantes nas
classes de músicos profissionais. Relativamente esta categoria de qualificação ainda
pesa sobre artistas populares que desenvolvem atividades expressivas de tradição oral e
que hoje dinamizam a cena musical local da world music.
Em minha formação musical no Conservatório Pernambucano de Música, a
identidade da música dos descendentes de negros e índios sempre esteve reconhecida
pela sua estética e expressividade, porém fora pouco estimulada nos contextos artísticos
por não se contemplarem plenamente em sua forma os padrões estéticos e estilísticos da
cultura dominante. Cultura esta que instituiu um paradigma de formação musical
especializada que desvalorizava em seus iniciados toda experiência que não fosse a
formal e prescritiva. Fato que repercutia na vida artística de muitos estudantes, no
abandono ou afastamento das suas experiências de tradição oral frente a formal, ou na
reclusão dessas nos espaços e tempos próprios de períodos de realização de festividades
da igreja. Acredito ser este um ponto relevante a ser considerado quanto à formação das
34
perspectivas dos músicos no Brasil12, por influir na sua articulação do desejável ante o
necessário e prático no cotidiano dos planos do produzir e apreciar música.
Ainda assim, gêneros como o Coco continuaram ativos em seus redutos de
tradição, através de eventos privados de festas familiares abertas ao público. A este
respeito, minha família guardava uma relação com o Coco e outros gêneros de tradição,
formando em minha imagem simbólica da tradição uma paisagem sonora de forte
relação com todas as formas de expressão da identidade negra, indígena, pernambucana
e brasileira. Como redutos de tradição, estes espaços faziam e ainda se fazem
pertinentes a um reencontro com a memória e o saber de tradição oral, visto que a
música popular oportuna ao músico profissional uma experiência que se reverte em
competência de desempenho satisfatório as necessidades de sua função. Este exercício
da memória também se fazia presente quando músicos profissionais se deparavam com
arranjos e composições antológicas destas tradições que identificam um caráter de
diversidade e multiculturalidade da tradição cultural pernambucana13. Mesmo
qualificadas no senso comum como músicas estilizadas, estas criações e
instrumentações me estimulavam uma busca às origens e padrão de estética e estilos de
cada gênero, suscitando-me a rememorar e articular minhas experiências musicais com
o tradicional. Esta busca se fazia pela motivação de uma afinidade aos modelos
musicais e expressivos da minha região geográfica, pela importância deste
conhecimento para um instrumentista do naipe de percussão e pela necessidade de
racionalizar e interagir junto aos detentores deste saber (o Coco de Roda) no âmbito do
trabalho de terreno.
O Coco de Roda foi por mim redescoberto entre antigos costumes de familiares
que testemunharam e externaram suas experiências passadas em festas particulares e
12A este respeito, Costa (1999:6) afirma que: “A valorização da herança cultural afro-brasileira ao longo do século XX combinada com a exclusão social e econômica da população afro-descendente apresenta-se como a característica mais marcante da discriminação racial no Brasil. Ao mesmo tempo em que a nação de brancos, mestiços e negros celebra a cultura afro-brasileira como parte inseparável de seu patrimônio cultural, a integração social e econômica da população afro-descendente se dá em condições extremamente desvantajosa (...). Essa combinação particular de integração cultural e exclusão social permitiu que, historicamente, se constituísse aquilo que ficou conhecido como o mito da democracia racial, ou seja, a presença forte do racismo nas relações sociais e sua negação na auto-representação da nação brasileira.” 13 Estes estilos de composições e arranjos figuram anualmente no panorama sonoro pernambucano durante os Ciclos Carnavalesco, Junino e Natalino, mantendo vivo na memória colectiva o formato estético de diversos géneros.
35
públicas de dança e cantoria, como também entre as oportunidades que tive de subir ao
palco com coquistas ou dividindo com estes seqüências de apresentações no mesmo
evento público, e ainda pela necessidade de estar atualizado frente aos meus alunos de
percussão popular, no âmbito da minha atividade da docência no Centro
Profissionalizante de Musica de Recife. Oportunidades nas quais pude reformular e
refletir minhas concepções do fazer tradicional e do ator desse fazer em sua realização
conforme costume popular e quando imerso no cenário de shows, festas públicas e
mercado de discos.
Neste exercício etnográfico revigorei meu entendimento e articulação do Coco
de Roda em suas nuances de forma, função, e representação performativa e estética, o
que possibilitou realizar uma abordagem analítico-comparativa do fazer intuitivo e
emotivo, edificado pela experiência coletiva da oralidade. Partindo da redescoberta e
cruzamento de experiências proporcionadas pela etnografia e atividade profissional de
músico, procurei realizar uma análise sistemática dos dados.
Conhecer Ana Lúcia Nunes da Silva e Severino José da Silva propiciou-me
vivenciar através de suas palavras, concepções, costumes, experiências de vida,
conflitos, aspirações e articulações musicais (criação e interpretação), um resgate das
convenções culturais que permeiam meu fazer artístico e saber etnográfico. Em parte
estas convenções culturais (Blacking, 1987) se formaram de testemunhos e relatos de
amigos e parentes envolvidos no fenômeno Coco de Roda, e das minhas atuações como
músico.
O contacto com Ana Lúcia me transportou às histórias narradas por meus pais,
avós e tios que na juventude “brincaram” Coco de Roda. Neste transporte identifiquei o
valor afetivo do evento marcado por relações com o religioso e com o compromisso
com esta atividade expressiva. Nesta concepção última, a festa do Coco não comporta
outra motivação que a devoção e cumprimento de um compromisso particular de seu
fazedor, mas que se torna público pela essência de um testemunho dos benefícios
realizados ou realizáveis. Do relacionamento edificado com Severino Pombo Roxo,
encontrei outro plano de relações com o divino e o encantado. Sua iniciação a cultos
afro-brasileiros tornaram mais evidente minhas antigas impressões de uma ligação do
36
fenômeno Coco com a liturgia aos espíritos14, além de um importante depoimento de
vida marcada por carências, limitações e exclusão social que impulsionam indivíduos a
mercantilizar seu saber, unicamente para sobrevivência – como ocorrera com os ex-
escravos, afro descendentes, índios, e mestiços, em sociedades pós-coloniais como o
Brasil.
A relação resultante do cruzamento destas experiências frente ao fenômeno
sonoro do Coco de Roda, vivenciado por pessoas com produção de expressão artística
que ainda estão fora da dinâmica globalizada da sociedade contemporânea por falta de
oportunidades de se fazerem ouvir, denota a importância da tomada de posição
ideológica e política, na representatividade dos interesses de discursos impetrados por
artistas populares. Esta consciência da responsabilidade social do músico e do etnógrafo
contribuiu para edificar a minha personalidade como homem, músico e estudioso.
14 Porém, como o foco deste estudo esteve delimitado no processo de mercantilização do saber tradicional na cena musical pernambucana, e suas repercussões nas histórias de vida destes dois atores, não aprofundei minhas atenções na ligação do Coco a idiomas religiosos. Apenas registrando sucintamente este dado nas linhas que se seguem.
37
Parte I
O Coco de Roda e seus praticantes
38
Imagem 5. Dança da umbigada no Coco de Roda. 03/Maio/1938. Itabaiana (PB). Fotógrafo: Luis Saia durante Missão de Pesquisas Folclóricas
CAPÍTULO 2. A BRINCADEIRA DO COCO DE RODA
Este capítulo tem o objetivo de desvendar o Coco de Roda numa aproximação
etnográfica do evento no início de século XXI. Abordarei os contextos de performação,
as ralações sociais, a dança, a música e poesia. Procurarei compreender sua ligação com
fatos do cotidiano urbano, e a sua apropriação no imaginário individual e coletivo.
2.1. Introdução
O coco de Roda é um gênero
performativo presente predominantemente no
cotidiano do litoral do nordeste do Brasil.
Classificado por folcloristas como ‘dança de
umbigada’ (Carneiro 1961:65-69), devido seus
praticantes movimentarem seus corpos, em pares,
na intenção de contato entre seus umbigos, em
conformidade aos pulsos rítmicos dos tambores e chocalhos articulados por acentuações
sob padrão contrametrico 3+3+2 ( ) de origem identificada com padrões
rítmicos africanos. Existem hipóteses de seu bailado estar relacionado, em sua origem, a
grupos indígenas dos Tupis da Costa.
Esta classificação foi primeiramente adotada por folcloristas nos anos 30 do
século passado, permanecendo por todo o processo de construção da identidade nacional
brasileira, durante e após o Estado Novo (1937 a 1945), quando tais movimentos da
dança foram interpretados como próprios deste fenômeno cultural do cotidiano popular,
nas reuniões de ex-escravos, afro-descendentes, índios e mestiços, como também em
festas públicas e festejos aos santos da igreja católica, também freqüentadas por brancos
de diversas classes sociais. Tal classificação tem sido recompilada em estudos sem
nenhum aprofundamento. Entretanto, após contato com os brincantes15 (participantes de
folguedos) freqüentadores deste gênero, verifiquei que não existe um padrão
performativo contido na dança do Coco de Roda, ficando a cargo de cada participante, 15 Termo adotado por folcloristas em designação do participante de folguedo popular, a partir da expressão êmica ‘brincadeira’, utilizada em identificação da festa em seu caráter profano.
39
ou contexto de validação de grupo, a adoção de um sentido próprio de expressão
gestual.
O espaço da ocorrência do Coco de Roda passa a identificar este gênero como
uma modalidade variante daquela antes praticada nos terreiros de senzalas. Conforme
relato de Severino Pombo Roxo, as festas aconteciam nos arredores dos sítios e
fazendas de grandes proprietários de terras, como também em vilas e casas de zonas
vizinhas a centros urbanizados. A história social, econômica e política do espaço
geográfico de ocorrência do Coco de Roda, aliada a particularidades dos contextos de
sua realização, determina o formato específico que diferencia as formas de se brincar o
Coco. O clima de diversão e informalidade é dinamizado por comidas e bebidas
oferecidas pelo dono da festa, quando o Coco é destinado a comemoração ou fins
privados (casamentos, batizados, etc.), ou quando o contexto é público da comunidade.
Momento em que as comidas e bebidas são comercializadas nos arredores do palco ou
sala de realização da dança.
Como atividade expressiva no litoral de Pernambuco, o Coco é designado coco-
de-praia, coco-de-roda, coco-de-furar, coco-de-embolada, coco-de-rebate, coco-de-
história, dentre outras designações que referem o espaço de realização, a forma e
maneira de cantar, modo de executar os instrumentos ou o bailado, e contexto de
realização. Entretanto, entre os brincantes há uma predominância pela adoção da
designação ‘-de-roda’ frente qualquer outra, mesmo quando recorrem eventualmente ao
termo ‘-de-praia’ na intenção de situar sua brincadeira ao espaço geográfico do litoral.
Neste sentido, o termo coco-de-roda, para cada brincante, encerra distintas concepções
e perspectivas que se vinculam emotivamente, numa interdependência, à forma de se
dançar, ao espaço físico e geográfico de realização, às estruturas das estrofes, aos temas
cantados, à maneira de tocar os instrumentos, à quem está legitimamente apropriado a
estes níveis de performance, aos contextos de realização e respectivos significados, e às
relações com a liturgia da igrejas católica e afro-brasileira.
A música do Coco gira em torno de textos simples e de fácil memorização, em
estruturas de respostas sobre temas diversos entoados melodicamente por um coro que
canta em uníssono. Conforme assegura Ayala (1988:20), todo conhecimento adquirido
através das experiências de vida e do cruzamento de culturas é armazenado pelo
40
cantador para ser utilizado na situação de cantoria. O Cantador (que será neste trabalho
designado conforme o termo êmico ‘coquista’) recorre à articulação ordenada de
expressões, termos e palavras do vocabulário cotidiano para tecer uma imagem sonora
de seus versos.
Guiado pelos padrões rítmicos executados das palmas, pelo sapateado dos
brincantes, acentuações rítmicas e pulso do tambor, pandeiro e chocalhos (idiofone
êmicamente designado de ganzá ou mineiro), o coquista, também identificado como
‘tirador de coco’, faz uso de agilidade mental, sensibilidade poética e conhecimento
geral para descrever, em seu cantar, fatos ocorridos na história de vida de qualquer um
dos brincantes. Um outro componente da cantoria é a poesia não improvisada,
constituída por composições fixas, cujos autores não são, necessariamente, os coquistas
que as interpretam16. Entretanto, enquanto intérprete de contextos do cotidiano, o
coquista busca ser criador na intenção de se distinguir dos demais. Neste sentido, a
criação toma forma de improviso, que segue normas encontradas na embolada,
categoria de cantoria em desafio entre dois coquistas habilidosos na criação de versos
metrificados, muitas vezes em tempo simultâneo aos temas cantados.
A antropóloga Maria Ignez Ayala (2000:22) observa que vários estudos
assinalam a origem negra do Coco, mas não contemplam características que conferem
uma identidade cultural afro-brasileira. Pois, em seu percurso histórico, o Coco fora
percebido como manifestação negra em contexto de cruzamento cultural, tendo em
conta este contexto se estabelecer em relações interétnicas vinculadas com o prazer e o
lazer em festas públicas de dias santos da igreja e comemorações de cunho social. No
âmbito de uma função social coletiva, o Coco já trazia o princípio de uma relação
harmoniosa entre culturas numa rede global de perspectivas e apropriações. Esta
identificação pelo fazer e se apropriar diversamente de evento musicado revela que esta
dinâmica, que hoje se faz presente nas rádios, palcos, e demais meios de comunicação
de massas, já existia num plano local das periferias dos centros urbanos do Nordeste do
Brasil, durante e após a colonização.
16 A este respeito, leia-se Ayala. No arranco do grito:aspectos da cantoria nordestina São Paulo: Àtica (1988): Cascudo, Luis da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Rio de Janeiro: Tecnoprint (1968): e também Almeida, Àtila A. F. de & Alves Sobrinho, José. Dicionário bio-bibliográfico de repentistas e poetas de bancada. João Pessoa/Campina Grande: Editora Universitária/Centro de Ciências e Tecnologia (1978).
41
Imagem 6. O sentido de brincadeira do Coco de Roda. 03/mai/1938. Itabaiana (PB) . Fotógrafo: Luis Saia durante Missão de Pesquisas Folclóricas
2.2. Contexto de realização
O Coco tem lugar em ambiente coletivo
e informal, o que tem levado à associação do
gênero a contextos de diversão e
entretenimento. Em sua realização são ativadas
uma multiplicidade de motivações que fazem
desta prática uma manifestação plural em
contextos e significados. Seu sentido social em
contexto de festa serviu de ferramenta de
classificação redutora dos seus atores e
simpatizantes que, sob a designação genérica de coquistas, são relacionados a estigmas
em categorização a negros, não-alfabetizados ou mestiços de índios e negros habitantes
da periferia, tais como ‘irreverência’, ‘lascividade’, ‘libertinagem’, ‘malandragem’,
‘irresponsabilidade’, etecetera. Estes, em sua maioria, herdeiros de práticas de confissão
religiosa não aceitável nos centros urbanos, seitas afro-brasileiras, também identificadas
de catimbó (prática de rituais de ascendência afro-indígena), tinham uma vida ligada a
atividades laborais de subsistência pela agricultura, pesca, coleta e serviços domésticos
gerais em meios urbanos. Em sua maioria, os coquistas são do sexo masculino, visto no
passado a arte de cantar e puxar o responsório estava nos domínios da ação dos homens.
Porém na atualidade, as mulheres têm assumido, igualmente aos homens, as funções da
composição, interpretação (voz guia de repertório musical, performance de palco, e
canto em desafio) e direção de festas de Coco.
Hábeis oradores de versos metrificados dinamizam também as práticas sociais e
comerciais em ambientes de livre comércio ao proporcionarem um fundo musical ao
cotidiano das ruas e dinâmicas de vidas, ao modo do que hoje vem sendo exercido pelas
rádios, discos, e DJ’s. Estes coquistas de vias públicas buscam uma arrecadação de
dinheiro para sua alimentação e dos seus dependentes. Apesar do caráter de diversão
imposto pela sua presença nos trajetos dos pedestres. Estes homens (em maioria) não
estão para brincadeira e diversão, mas sim para cumprirem seu trabalho diário. Seu
discurso é sempre divertido e por vezes debochado ao caricaturar outros coquistas ou as
pessoas com quem se defronta. A esse respeito, Ayala faz uma descrição dura e sóbria
42
de uma das nuances desta prática em via pública, desenvolvida pelo coquistas que, neste
espaço, passa a ter denominação de embolador – àquele que embola o texto numa fala
rápida, demarcada por uma rítmica que se aproxima da contrametrticidade17 3+3+2
presente no pandeiro ou outro instrumento de percussão:
“ (...) os emboladores improvisam seus versos, sendo cada qual utilizado um
instrumento de percussão (pandeiro e, hoje mais raramente, ganzá) para marcar o
ritmo, que faz fluir a poesia. O confronto se dá de modo a cada coquista procurar
ridicularizar mais seu companheiro através de comparações grotescas, provocando
o riso da platéia. A maneira como os cantadores de coco se dirigem ao público nem
sempre é respeitosa e formal. Basta não receberem o dinheiro no chapéu ou obterem
uma quantia pequena daqueles que compõem sua platéia para a ridicularização
também se voltar contra o público.”
Ayala(2000:21-22)
Em minha análise, tais ridicularizações e comparações grotescas, ora citadas,
são formas estéticas que os coquistas emboladores exercitam ostensivamente para que
essa icônica virtuosidade da rima seja contemplada e agraciada com as moedas dos
aficionados e simpatizantes que param sua rotina diária para, numa fuga as tensões do
cotidiano, buscarem diversão e entretenimento. Porém, é natural que a idéia de
desrespeito e abusos à ordem pública e direitos dos indivíduos que não apreciam esta
arte esteja presente nos discursos de muitas das pessoas abordadas por estes cantadores.
Ainda existe uma certa resistência a esta prática como arte musical no seio da sociedade
urbanizada, fato que denota o processo de exclusão vivenciado por esta categoria de
artista popular. Concebo que a concepção de uma embolada sem esta estrutura de
articulação que envolve o público surtiria numa mudança radical de um modelo que 17 In Sandroni 2001:21-22 – ‘Premissas Musicais’. Designação terminológica introduzida na etnomusicologia por Mieczyslaw Kolinski, no livro “Review of Studies in African Music by A.M. Jones” publicad em janeiro de 1960 no artigo The Musical Quarterly , XLVI/1, p.105-10, quando Kolinski identificou que nas polirritmias africanas, a métrica seriam as pulsações isócronas (se realizam em intervalos iguais de tempo) que, conforme define Simha Arom (in Analyse Musicale, 10, 1988:16;22), possibilitando a coordenação do conjunto, às vezes são manifestadas pelas palmas ou pelos passos de dança dos participantes.
43
intenta chamar a atenção dos ouvintes, aos problemas e necessidades sociais urbanas
vivenciadas por esta classe de atores. Esta resistência preconceituosa, presente em
parcela dos receptores que se defrontam com esta atividade musical, vai além da prática
performativa do coquista em si, abarcando uma concepção redutora, do coquista, às suas
possíveis competências de reproduzir satisfatoriamente a estrutura pericial do sistema de
conceitos dominantes. Pois, a grosso modo, ser negro ou mestiço, pertencer a classe
excluída por sua pobreza e possuir comportamento transgressor a ordem vigente,
incomoda o processo de homogeneização de comportamentos que se instaura pela
globalização de concepções. Esta afirmativa encontra respaldo no fato de que quando
um jovem de classe média e alta, de cútis clara, cabelos lisos, possuidor de beleza em
padrões europeus e de formação compatível com o modelo de representação global,
passa a cantar Coco, este gênero é de rápido assimilado pela sociedade.
O cantar no interior dos transportes públicos, pode ser aqui descrito como o
momento em que o atrito entre concepções contrárias de simpatia, antipatia e tolerância
a esta arte se dá em maior grau quando de forma icônica, sem artifícios e adornos aos
seus interesses, os emboladores sobem nos ônibus (autocarros) pedindo aos passageiros
uma colaboração a sua arte prosaica de cantar, como um recurso complementar as suas
finanças, em anseio de sua sobrevivência. Esta prática, exercida nos pátios e ruas, se dá
de forma espontânea e desinibida através de uma abordagem direta, particular e sem
rodeios a cada passageiro, motorista e cobrador, cantando em alto e bom tom, numa
prosa narrativa ao som do pandeiro, sobre os trejeitos e reações do abordado, tirando
risos de todos os demais presentes, que a seu turno também integrarão, agora
exclusivamente como protagonistas, historias fictícias de uma caricatura real .
Ao contrário do que, para aqueles estranhos a essa realidade de vida, parece ser
uma hostil provocação investida aos direitos do indivíduo, esta pratica implementa uma
aproximação de relações fecundas por entre os passageiros que ao se riem uns dos
outros e de si mesmos, rompem as barreiras e os espaços que separam os indivíduos. A
partir do momento em que passam a se olhar, se reconhecer, se respeitar e conviver sem
medos e receios com seus limites e os dos outros, a informalidade toma conta de toda a
viagem, e do silêncio e isolamento inicial, percebemos trocas de olhares, e sorrisos
incontidos entre todos.
44
Em 1961 Edison Carneiro identificou o Coco como expressão de uma das três
grandes zonas de incidência de formas de batuque no Brasil – designação geral que
cronistas portugueses deram a essa tipologia de dança – que em fases distintas
transformou-se de danças rurais de diversão de escravos, para dança urbana social. Em
sua leitura, o Coco resultara da combinação do samba, dança de umbigada, e do
baiano18 – danças sociais registradas na virada do século XIX. Ou seja, nesta
perspectiva o Coco coexistia com o samba e o baiano e representava uma dança
acompanhada com umbigada como coreografia baseada na iniciativa individual de
interação, envolvida por texto e melodia cantada em estrutura de pergunta e resposta.
Esta concepção do evento Coco esteve presente em quase todas as descrições,
que demarcavam um estilo lascivo de seus praticantes, em conformidade com
perspectivas que classificavam este fazer como marginal frente ao modelo de vida
urbana ideal. Porém, se considerarmos o processo de assimilação do modelo urbano
pelos detentores do Coco, tendo em conta o considerável crescimento das áreas urbanas
de metrópoles como Recife, que praticamente transformou regiões periféricas, antes
marginais, em pólos econômicos e residenciais, notaremos que o Coco não mudou nem
na sua realização, nem no seu conteúdo e que a festa não apresenta obrigatoriamente
esta tendência ao lascivo. Pelo contrário, o Coco encerra uma ligação com a devoção e
compromisso religiosos. A sua configuração urbana de festa pública representa uma
realização paralela, destinada a interesses pontuais da vida social.
A festa do Coco se faz em ambientes públicos, ou aberto a veiculação de
curiosos. A rítmica ininterrupta do tambor, sob cadência de chocalhos cilíndricos
(ganzás ou mineiros), como também pela articulação de pandeiros, e eventualmente
melês (congas), dão a festa um caráter dinâmico, no qual a dominante é o canto de
‘loas19’. Estimulados pelo tema cantado, todos os presentes extravasam suas emoções,
gesticulando o corpo livremente em conformidade com as unidades mínimas do ritmo
extraídas dos chocalhos (ganzás ou mineiros) e acentuações que dinamizam as
execuções do tambor. A este respeito Pombo Roxo20 afirma: “Não há porque resistir se
18 Baiano era uma espécie regional do lundu, em que os parceiros eram convidados às vezes com umbigadas 19 Cantigas populares estruturadas nos cânticos em honra dos santos e espíritos reverenciados em liturgias afro-brasileira - encantados. 20 Em entrevista cedida em 25 de julho de 2004, no bairro do Amaro Branco, Olinda.
45
todos estão também dançando com o toque, qualquer pessoa fica com vontade de entrar
na dança”. (2004)
Durante a brincadeira, lembra Pombo Roxo, cada qual que chegasse e montasse
seu repertório no decorrer da festa, ou, quando convidados com antecedência – prática
mais corriqueira –, criavam suas loas durante os dias anteriores a consagração da festa.
O objetivo principal aos tiradores era apresentar sempre uma criação nova para cada
contexto festivo.
Com base em sua memória, Pombo Roxo observa que o Coco era dançado no
piso batido (barro) forrado com capim (relva) ou palha de coqueiro. Os tiradores
chegavam ordenadamente ao local do salão onde já estava o zabumbeiro, sempre bem
instalado no canto da parede para aproveitar a acústica da casa, com sua ‘paleta’
(bacalhau)21 na mão e a ‘maceta’ (birro)22 na outra. A paleta é de rebate, ou seja,
constrói uma linha rítmica em resposta consecutiva a cada batida da maceta.
Ana Lúcia23(2004) relata que para cantar Coco, o interprete tem que ter o
domínio da oralidade sob atributo de uma eloqüência na narrativa, não se deixando
perturbar pela possível complexidade na organização de palavras que se ordenam numa
prosa em rimas cantadas. Como detentor e articulador do elemento principal no Coco, o
cantador carrega a função de guiar o responsório, e induzir o zabumbeiro a valorizar sua
interpretação no ato da participação do coro em resposta. Em suas palavras, Ana Lúcia
sempre faz referencias a um passado de domínio dos homens nesta função que, após
mulheres como Dona Jove e Maria Belém, o Coco passou a ser composto e interpretado
por mulheres.
Pombo Roxo observa um processo de desencaixe temporal no fazer Coco de
Roda, ao verificar que hoje o músico (zabumbeiro) de Coco de Roda é detentor de um
referendo de performance, que o possibilita competir na cena musical com o cantador.
Antes, o zabumbeiro era um brincante de desempenho certo, que dialogava com a loa e
21 Paleta ou bacalhau é designação êmica para baqueta utilizada na articulação de tambores artesanais tocados durante o Coco de Roda. Trata-se de uma peça em madeira com reduzido diâmetro de espessura. 22 Maceta ou birro designa êmicamente a baqueta, também em uso na articulação de tambores que tem espessura em diâmetro mais grosso que o ‘bacalhau’. 23 Quando em entrevista cedida em 05 de setembro de 2004, no bairro do Amaro Branco, Olinda.
46
a interpretação do tirador de Coco (o cantador). Seu papel no evento era estritamente
funcional e não estrutural. Ou seja, em sua concepção, a rítmica própria do Coco não é
dependente da performance do zabumbeiro para caracterizar o Coco frente outros
gêneros. O zabumbeiro apenas cumpre a função de tornar esta rítmica evidente no
evento. Assim a rítmica do Coco é a estrutura do gênero, e o zabumbeiro dá-lhe a
execução. Uma prova disto é que um cantador mesmo sem a presença de um
zabumbeiro, pode cantar uma loa de Coco de Roda, e esta ainda conter em suas
características, elementos de contornos estéticos e estilísticos na rítmica, prosa e
motivos melódicos próprios e definidores do que se concebe como Coco de Roda.
O conceito hoje vigente (globalizado) de performação, identificado por Pombo
Roxo, desloca o zabumbeiro do plano de acompanhante e contextualizador de uma
performance do cantador, para o plano de uma atuação expressiva de desempenho,
paralela a do cantador, no todo performático. Esta tendência de um tecnicismo do
desempenho, originada da perspectiva erudita, toma conta da nova cena musical do
Coco de Roda pela identificação do fazer funcional tradicional com outros
desenvolvidos em gêneros e estilos globalmente difundidos pelos mass media. Os
instrumentistas instruídos em escolas de música e conservatórios buscam articular no
toque do Coco de Roda desempenhos relacionados a competências técnicas de gêneros,
estéticas e estilos atribuídos a músicos eruditos, de funk, de rock, pop music, world
music, jazz, musica-latina e tecno.
Os jovens instrumentistas, que não receberam instrução formal em instituições
de ensino musical buscam uma realização competitiva em seus desempenhos com os
instrumentistas instruídos em escolas de música e conservatórios. Sua referência padrão
de articulação é desenvolvida nos terreiros de umbanda, onde apreendem fórmulas
intimamente ligadas ao sistema contramétrico (Sandroni 2001:21-28) presente na
rítmica das loas. Entretanto, as perspectivas de competência tendem a contemplar tanto
a instrução prática nos terreiros de culto afro-brasileiro quanto uma instrução formal em
escolas de música. Esta tendência tem revelado conflitos que se manifestam em
estigmas da competência do músico de Coco não estar vinculada majoritariamente a
instrução formal erudita, quando se trata de contratos, formas e vantagens de pagamento
dos músicos. Fato que leva os músicos que vivenciaram o Coco por seu processo
unicamente oral passarem a recorrer ao conhecimento teórico das escolas de música na
47
expectativa de se manterem no mercado. Por outro lado, o fato da perspectiva
globalizada da música pernambucana encerrar conhecimentos genuínos de tradição oral
tem favorecido a concepção de que a instrução formal não supre o desempenho
encontrado nas rodas de coco, levando músicos profissionais e de escolas e
conservatórios de música às rodas de coco e ao terreiro de umbanda.
Esta corrida à aquisição de competência e desempenho condizente com
expectativas da indústria cultural revela duas perspectivas que se cruzam
conflituosamente nas histórias de vida de coquistas: uma, é a de que não basta saber
fazer o Coco, tem que se ter certa formação teórica (competência de ler partituras); a
outra, é a de que não basta ter uma competência teórica, tem que se ter uma experiência
no terreiro (desempenho prático).
Esta tendência, que busca suprir a demanda de consumo da música do Coco
como entretenimento, presente no cruzamento destas perspectivas, interfere na
manutenção de um padrão tradicional que se vê obrigado a adaptar-se aos novos
pressupostos econômicos como produto hibrido entre o exótico e o erudito. Revelando
que a dinâmica global de um imediatismo na produção da arte como objeto pontual de
consumo não encerra compromisso com os meios e processos de produção, apenas com
seu valor econômico.
2.3. Estrutura musical e coreográfica
O gênero Coco-de-Roda é dominado por uma métrica e temática publicamente
conhecida no local e própria ao evento que permite seus participantes interagirem
dinamicamente. A voz ativa é promovida por uma relação social entre seus participantes
que, sem limites gestuais e expressivos cantam e jogam seus corpos ao ritmo dominante
do tambor que sincopa em estrutura contramétrica (Sandroni 2001:21-28) seus timbres
graves.
Basicamente o Coco está representado em Pernambuco por duas grandes
categorias, no que diz respeito ao plano de relação do coquista com o público: a do
Coco-de-Roda, na qual o coquista, a grosso modo, divide o espaço de ação com o
público que se aglomera em sua volta interagindo e respondendo, no cantar e no agir,
48
simultaneamente a sua manifestação cantada; e a do Coco-de-embolada, na qual o
coquista passa a explorar em seu público a competência de decodificar os significados
contidos em seu jogo com as palavras, destacando assim uma distinção entre o espaço
do cantador (centro do espetáculo) e o do público (espectador). A embolada tem sua
forma poético-musical articulada quase que simultaneamente a fatos ocorridos ou em
andamento, o que a faz ser relacionada, pelo senso comum dos espectadores, ao poder
de improviso do cantador que declama melodicamente em prosa, frases que se
intercalam em intervalos de tempo curtos, normalmente em valores rápidos de
articulação, com o predomínio da rima espontânea que melhor se molde aos versos
elaborados, em estilo oral de exprimir-se, comum no cotidiano da região e uso de
vocabulário jargão.
Conforme cita Ayala (1988:15), numa breve distinção entre os cantadores de
viola e os emboladores, o espaço de ocorrência das cantorias dos violeiros repentistas,
está:
“delineado para comportar uma platéia, acomodada em bancos,
cadeiras, ou mesmo em pé, mas que para lá se dirige,
essencialmente, motivada pelo espetáculo. (...) Pode-se afirmar que ,
em geral, os cantadores contam com mediadores para o exercício de
sua profissão, que os convidam ou permitem a utilização de
estabelecimentos comerciais para a realização de cantorias, o que
normalmente não acontece com os emboladores.”
A poesia popular do nordeste do Brasil traz em sua forma a narrativa. Processo
de ‘troca de experiências’ a qual Walter Benjamin (1980:57), em seu ensaio O
narrador, identifica como caráter inalienável às relações sociais e culturais das
sociedades. Essa forma narrativa desenvolvida no cantar do Coco se dá
predominantemente através do uso da rima, geralmente no final dos versos ou das
quadras da poesia, de maneira que a repetição de sons nas ultimas silabas estabeleça
para o ouvinte uma expectativa do bom cumprimento desta convenção. A estrutura
desse cantar está dominantemente fundamentado sob o padrão rítmico contramétrico
3+3+2 (Sandroni 2004:21-28) presente ao jogo de palavras, e que sobre o qual a dança e
as palmas se desenvolve.
49
Este padrão rítmico é possível de ser visualizado analiticamente através da
métrica e contramétrica contida na imagem sonora proveniente das palmas. A fórmula
3+3+2, equivale, quando subdividida ou decomposta, ao seguinte modelo de contagem
do tempo de realização: (1+2) + (1+2) + (1+1).
Onde a primeira sub-parte de cada divisão é acentuada, como segue o exemplo:
3 + 3 + 2
(1+2) (1+2) (1+1)
Gráfico 4 – Articulação contramétrica 3+3+2 presente no Coco
Esta articulação contramétrica, presente nas fórmulas rítmicas cantadas, também
se verifica nas fórmulas tocadas nos instrumentos de percussão ou outros objetos
eventualmente tomados em substituição a estes instrumentos, quando na sua falta no
momento de realização.
O corpo do brincante, ao dançar, segue movimentos repetitivos em
deslocamentos comandados pelo pé direito que, apoiado pelo pé esquerdo segue,
eventualmente palmas, no mesmo padrão contramétrico 3+3+2. Deste modo a parte
impar deste padrão é marcada em seu início pelo pé direito – primeiro com o pé direito
indo pisar à frente e na seqüência pisando na linha do corpo – , enquanto que na parte
par deste padrão o início é marcado pelo pé esquerdo – na linha do corpo – , conforme o
modelo que segue: D x x + D x x + E x (onde o x representa contagem sem movimento
do padrão).
50
D x x + D x x + E x
Gráfico 5 – Movimentos comandados pelo pé direito na dança do Coco
Seguindo as considerações sugeridas nas Premissas Musicais postuladas por
Carlos Sandroni (2001), faço uso do termo “síncope” (ou sincopa), por este vocábulo ter
uso corrente no universo conceitual brasileiro e internacional. Entretanto sou de pleno
acordo com Sandroni de que a lógica do ouvinte atípico ao fazer e vivenciar da rítmica
do Coco é diversa daquela experimentada pelo ouvinte imerso nesta prática expressiva.
Acredito que o choque de culturas promoveu uma concepção cultural dominante que se
impôs sobre as demais por uma soma de fatores extra-musicais que foram
condicionantes do processo colonial e que desencadearam um estranhamento às
estruturas articuladas em eventos sonoros de origem africana, ameríndia e mestiça,
quando da necessidade de designar as articulações contramétricas (Sandroni 2001)
presentes no sistema rítmico do Coco de Roda, que, como Sandroni faz saber, John
Blacking24 (1973) designaria de “estruturas profundas” destas “categorias nativa-
importada”.
A lógica da música erudita ocidental, frente ao cotidiano dos nativos dessa
prática, atribui a fórmulas como: 3+3+2, 3+2+3+2+2 e 3+2+2+3+2+2+2, um caráter de
exceções a regras do sistema “clássico” europeu por resultarem de uma mistura de
agrupamentos binários e ternários. Sandroni destaca que estas fórmulas comportam-se
como time-lines, dos maracatus e xangôs de Pernambuco, do tambor-de-mina do
Maranhão, do candomblé e da capoeira da Bahia, da macumba e sambas cariocas, e que
se revelam de diversas formas nas linguagens musicadas dessas categorias de
manifestação expressiva, seja nas palmas, batidas de agogôs, ou em polirritmias de um
conjunto percussivo.
24 Blacking, (1973) How Musical is Man, Cap.I.
51
O Coco em particular, igualmente ao jongo e ao samba-de-roda, também é
estruturado por tais articulações contramétricas, seja no tocar percussivo, no dançar ou
no cantar. A este respeito, por diversas vezes verifiquei que Veridiano, irmão de Ana
Lúcia e tocador de bombo, articulara o Coco pela fórmula 3+3+2. Esta fórmula também
está presente no bater das palmas como que uma chave rítmica na percepção de muitos
brincantes de Coco e músicos. Porém sua pulsação quando articulada por palmas segue
dinâmica em que a cabeça de cada subdivisão, ou decomposição de cada agrupamento
principal da fórmula 3+3+2, seja destacada por acentuação.
A relação dos sons percutidos e a gesticulação dos brincantes é refletida na
expressividade contida na interpretação do dançarino quando responde freneticamente
com os quadris25, ombros, ou tórax como acompanhamento das acentuações do tambor,
ou chocalho (grande ganzá), como que numa conversação que busca, ao mesmo tempo,
homogeneizar um padrão rítmico entre o tambor e o gesto do corpo, e, quase que
simultaneamente, busca desequilibrar esta regularidade pelos deslocamentos da
acentuação identificada no timbre grave da articulação do tambor.
2.4. Os instrumentos do Coco de Roda
Conforme supracitado, o cantador (coquista) traz em si a função de conduzir as
condições musicais (convenções) a serem utilizadas por todos os presentes no decorrer
de sua cantoria. Não fugindo a regra à participação dos instrumentistas que o
acompanham. Basicamente o Coco é acompanhado por instrumentos de percussão que
cumprem as funções estruturais da regularidade cíclica do andamento da cantoria, dos
movimentos da dança e das articulações contramétricas no tocar percurssivo.
Os instrumentos que se utilizam com mais freqüência no conjunto percussivo do
Coco são: um Tambor (Zabumba, Alfaia/Tambor-de-corda ou Surdo/Surdinho), o
Pandeiro, e um Chocalho (Ganzá/ Mineiro). Eventualmente se utilizam Caixa-Clara
(snare drum), Congas, ‘Melê’ e Djembê (membranofones de percussão direta – com as
mãos) e ‘Abê’ (idiofone feito de guizos sobre uma cabaça grande).
25 Cada uma de duas regiões, uma de cada lado da pelve, em que se situa cada articulação de fêmur com ilíaco; anca.
52
Imagem 7. Zabumba. acessada no Site www.google.com em 23.07.2006
Zabumba
Zabumba é um membranofone cilíndrico largamente disseminado
no Nordeste brasileiro. Igualmente conhecido como Bumbo ou
Bombo, é utilizado freqüentemente no Coco, Forró, Baião, Xote,
Ciranda, e noutros gêneros performativos. Introduzido nas
manifestações locais pelos colonizadores europeus, o seu
principal papel é reforçar a condução e manutenção da cadência rítmica.
Trata-se de um cilindro de madeira delimitado em suas extremidades por duas
membranas denominadas "pele de batida" e "pele de resposta". Antes as membranas
eram exclusivamente de pele animal. Atualmente estas são substituídas por peles
sintéticas que se moldam ao corpo do instrumento por aros metálicos. A tensão
responsável por sua afinação é regulada por meio de parafusos distribuídos
regularmente pelo aro e presos ao seu corpo (fuste). Ainda se encontram zabumbas de
fabricação artesanal (predominantemente encontrado na zona ‘rural’ da região) que
obedecendo a padrões tradicionais apresentam menor altura e diâmetro, possibilitando
uma afinação única para as duas membranas determinada por amarração de corda, da
qual originou a designação de Tambor-de-Corda. Como variante deste, atualmente
encontra-se no mercado de instrumentos o zabumba de metal, , também denominado de
"urbanizado", bombo ou bumbo, é um tambor de fuste em flandres de fabricação
industrial. Por esse motivo trazem de fábrica dimensões normalmente fixadas em 18, 20
ou 22 polegadas de diâmetro, de afinação única determinada por varões que se
estendem paralelamente de uma membrana a outra .
Considerado símbolo da identidade nordestina, o zabumba sintetiza, com
características regionais, a fusão dos ritmos africanos, ameríndios e europeus utilizados
nos Ternos de Pífanos, Banda Cabaçal, Esquenta-muié (termos que designam um tipo
de formação instrumental do Nordeste, constituído de Zabumba, Caixa, Pífano ou
Gaita), Marcha de Procissão, Trios de Forró, Bandinhas de retreta em festas e benditos,
etc.
Executa-se com "birro" – baqueta apropriada para o tipo de articulação e
intensidade de som desejada –, também conhecido no meio profissional como baqueta
53
Imagem 9. Surdo acessada no Site www.google.com em 23.07.2006
Imagem 8. Alfaia ou Tambor de Corda. Imagem acessada no Site www.google.com em 23.07.2006
de bombo ou maçaneta. Sua articulação se dá com uma mão na pele de batida. Porém
usa-se outra baqueta no complemento das articulações feitas com o ‘birro’.Trata-se do
‘bacalhau’, uma vara (galho) fina, resistente e flexível que é articulada com a outra mão
na mesma pele de batida ou na pele de resposta. Enquanto a maçaneta executa a célula
rítmica característica na pele de batida, o bacalhau responde energicamente com figuras
ritmicamente sincopadas na pele de resposta, construindo uma textura sonora
característica dos gêneros musicais nordestinos. O som articulado com o birro produz a
nota fundamental da membrana (membrana solta).
Alfaia ou “Tambor-de-corda”
Alfaia ou “Tambor-de-corda” é um membranofone
cilíndrico feito do tronco da Macaíba, palmeira típica da mata
atlântica da região litorânea do Nordeste brasileiro. Por sua
dimensão de diâmetro avantajado, casco duro e fibroso, gera,
quando talhado internamente (tronco oco), uma sonoridade grave e
densa. A alfaia pode ser utilizada na função do zabumba. Dentre outros tambores, a
alfaia, é o instrumento mais utilizado pelos coquistas.
Surdo
Os termos Surdo e Surdinho, designam igualmente membranofone cilíndrico
também utilizado pelos coquistas em funções idênticas ao zabumba. Tanto o surdo
quanto seu similar proporcionalmente menor, o surdinho, foram
igualmente introduzidos nas manifestações musicais profanas e
religiosas pelas mãos dos colonizadores. O seu papel é a condução
e manutenção da cadência rítmica. O diferencial entre os
instrumentos deste naipe está na profundidade do seu fuste (no
corpo alongado), o que determina suas características sonoras e consequentemente
tímbricas e funcionais.
Cilindro de madeira, delimitado em suas extremidades por duas membranas
denominadas "pele de batida" e "pele de resposta", o surdo utilizado por alguns
executantes de Coco tem uma proporção mais reduzida do que o surdo utilizado no
frevo ou numa escola de samba. É comum entre os coquistas afinar esse instrumento
com membranas exclusivamente de pele animal. Também é comum músicos que façam
54
Imagem 11. Ganzá. Imagem acessada no Site www.google.com em 23.07.2006
Imagem 10. Pandeiro. imagem acessada no Site www.google.com em 23.07.2006
opção por uso de peles sintéticas. Neste caso, na solução a emissão dos harmônicos
deste tipo de pele, costumam recorrer ao abafamento das peles sintéticas.
Pandeiro
O Pandeiro é um membranofone do tipo caixilho pertence a família dos adufes -
tambores de fuste estreito. Este tambor tem respectivamente, duas fontes sonoras: a
membrana e as soalhas. A membrana gera um som fundamental
quando vibra livremente, " som solto", e um "som preso", quando sua
vibração natural é inibida por articulação do executante. As soalhas,
pequenos discos metálicos distribuídos aos pares por todo fuste,
produzem o som característico do pandeiro, como resultado do
choque destes pares de discos no momento da articulação da
membrana.
Ganzá ou Mineiro
No nordeste do Brasil os termos ‘ganzá’ ou ‘mineiro’ designam uma espécie de
chocalho: cilindro de folha-de-flandres, fechado, que contém
grãos. O mineiro diferencia do ganzá em suas dimensões
normalmente maiores, o que lhe conferia preferência quando a
festa era em lugar aberto que necessitava de maior volume de
som. Articulado com as mãos proporciona a regularidade rítmica
da contramétrica 3+3+2, da qual se cria a estrutura do cantar e executar todo o conjunto
percussivo. Por suas funções primordiais o ganzá/mineiro normalmente esta presente
numa roda de coco. No passado, conforme relatou Ana Lúcia e outros informantes, o
cantador de Coco empunhava um ganzá (ou mineiro) no ato da cantoria. Esta
preferência veio a ser eventualmente substituída pelo ‘pandeiro’ que, por possuir
satisfatória equalização de timbres graves (ao modo do tambor), timbres médios (como
os do mele) e timbres agudos e regulares (como o ganzá), ofereceu aos coquistas maior
independência do conjunto percussivo.
As características acima delineada fazem do Coco um gênero de estilo variado
em sua matriz sonora, seja pela expressividade contida na dança, seja pela dinâmica
melódica, rítmica ou instrumental do seu conjunto percussivo.
55
2.5. O Coco como patrimônio e identidade cultural
O Coco de Roda apresentado em exibições predominantemente públicas, foi
apropriado pela sociedade nordestina na construção de sua identidade. Tal processo
possibilitou a concepção local de que a prática do Coco encerra critérios de
representação que caracterizam a “personalidade” pernambucana. Esses critérios, na
atualidade, passam a suprir os interesses da indústria cultural de um produto tradicional
de identidade local apropriado pelo segmento mercadológico do consumo do exótico em
selos da ‘música do mundo’. Esta idéia está presente entre as pessoas intelectualizadas
que se apropriam do modelo oficial de categorização dos gêneros identitários, descritos
por folcloristas, de um saber e prática adotada como patrimônio cultural. Em sua
maioria, estes elementos identitários são advindos da conceituação tipológica de um
conjunto de bens e formas culturais tradicionais, predominantemente de caráter oral e
local, que se mostram inalteráveis em seus modos de apresentação, constituindo-se, sob
este ângulo de apreciação, como depositários privilegiados da identidade do país e
núcleo central da cultura intangível local, regional, e nacional – cuja reputação intocável
de sua pureza restitui a estima pública e/ou particular. Sob esta perspectiva, o Coco,
como um fato folclórico, constitui um patrimônio cultural de Pernambuco, do Nordeste
e do Brasil, como também um complexo de bens, direitos e ações suscetíveis de
apreciação econômica e de salvaguarda.
Atividade expressiva do litoral pernambucano, conhecida em todo Norte e
Nordeste do Brasil como uma dança das regiões litorâneas, o Coco constituiu, desde os
anos 20 do século passado, discursos de patrimônio e identidade de Estados como Rio
Grande do Norte, Alagoas e Paraíba, a partir de estudos acadêmicos e folcloristas desta
prática expressiva que fizeram patentes a idéia de pertença desse gênero por atributos da
geografia de sua localização e ocorrência. Fato que conduziu este gênero ao conflituoso
palco de apropriações político-identitárias em domínio do rótulo cultural ‘coco’, como
ocorrera com outros gêneros, em beneficio de ideologias de uma política cultural, que
reverte a pratica expressiva, de indivíduos antes anônimos para a teia global de relações
políticas e econômicas, em marca coletiva e de domínio público de apropriação e
legitimidade de uma identificação cultural do espaço.
Neste confronto de apropriações o Coco tem suprido ideologicamente
identidades de caráter étnico e de raça, como instrumento de valorização e inclusão
56
social de classe pobre, negra, indígena e mestiça, como também a movimentos
feministas que passam a reivindicar suas conquistas sociais quando da
representatividade de expressões antes concentradas nas iniciativas masculinas. O Coco
toma assim, um formato de estratégias de persuasão e legitimação, pelo reconhecimento
no campo político e econômico de um atributo cultural, de princípios e fundamentos
ideológicos. Desta forma, a ‘cultura’ passa a ser na atualidade um veículo de
identificação política e benefícios sócio-econômicos. E o Coco perde parte de seu
estatuto de expressividade afetivo-cultural para se tornar, enquanto patrimônio de
identidade cultural de espaços de políticas públicas, num mecanismo de interesses
ideológicos paralelos, reivindicação jurídico-social e conquistas políticas.
2.6. O Coco em novos contextos de performação
O Centro Cultural Coco de Umbigada26, nessa esfera de verificação,
“mensalmente (no primeiro sábado de cada mês) vem realizando uma confraternização
aberta de coquistas com objetivo da perpetuação da tradição do Coco, como atitude
de resistência da ‘mais pura cultura’, frente a todas as ‘falsas manifestações
populares’, como o: ’Brega’, ‘forró estilizado’, ‘maracatus estilizados’, etc”. [Beth de
Oxum: 22/06/2003]. Nestas palavras, a organizadora do supracitado evento, demonstra
a sua preocupação com a autenticidade e legitimidade de manifestações da tradição, que
se lhe apresentam ameaçadas pela indústria e política cultural. Fato que motiva uma
regular ativação da confraternização pública, intercalada por suas performances, seja
frente ao grupo Coco de Umbigada, seja em eventos patrocinados por iniciativa pública
ou privada, muitas das vezes em períodos de campanha política ou de ação social, ou
por eventos produzidos e coordenados pela própria organizadora. Rita Amaral (1998:
34-35) observa: “(...) Cada vez surgem mais e mais motivos para se festejar todo tipo de
coisas e modos de fazê-los. (...) Pode-se notar, certamente, o empobrecimento de
algumas festas da atualidade quando comparadas com as que se realizavam no século
passado (como as de Reis e do Espírito Santo, por exemplo) e começo deste (que eram
mais pomposas), especialmente nos aspectos estético e alimentar. Também é possível
26 O Centro Cultural Coco de Umbigada é uma Organização não-governamental (ONG) destinada a preservação da tradição popular do coco, outras manifestações populares e interesses em defesa às descriminações raciais e de gênero na comunidade do Guadalupe em Olinda. Na qualidade de ponto de cultura do Ministério da Cultura, recebe financiamento para promover programação junto a jovens e atores desta manifestação específica. Também incentivada por iniciativa de apoio da Prefeitura Municipal de Olinda, o Centro Cultural Coco de Umbigada organiza oficinas de teatro, marionetes e de percussão.
57
notar a ausência, na primeira metade do século XX das elites em festas tidas como mais
“populares”, como os carnavais de rua, das quais se afastaram, em algumas regiões
(...)”. Tal perspectiva também está presente, como Rita Amaral cita em seu estudo, no
discurso de Câmara Cascudo (1969), Mello Moraes Filho (1979), e Gilberto Freire
(1995). Contudo, como Amaral (1998:35) explica, a efervescência de grandes festas em
centros de atração regionais, marcam um retorno das chamadas ‘elites’ (Amaral: 1998)
às confraternizações públicas do calendário27 turístico publicados pelas prefeituras,
reforçando ainda que “o capitalismo cooptou as festas populares e foi (o capitalismo)
cooptado por elas, (...) também que povo vem reinventando suas festas nas novas
condições de vida resultantes de novos contextos econômicos e sociais.” (ibidem.).
Sob essa perspectiva de um fazer tradicional do Coco moldado por novos
contextos, Beth de Oxum, como é de costume nas festas dessa natureza em toda região,
abriu as portas da sua casa (sede do Centro Cultural do Coco de Umbigada), localizada
na mesma rua onde armara o palco de realização da performance, para que todos os
presentes pudessem comer e beber sem maiores gastos, já que alguns moradores
aproveitavam a oportunidade para comercializar bebidas e ‘tira-gosto’ (petisco de
acompanhamento à bebida). Seu público era composto pelos moradores da localidade a
quem ela dirigira maiores atenções. Porém os convites também se estendiam a outros
apreciadores das expressões populares, das manifestações negras, partidários políticos
da comunidade, integrantes de outros Cocos de Olinda e de cirandas da região
metropolitana. Adultos em sua maioria representavam predominantemente grupos e
admiradores de outras localidades, pois os moradores dos arredores da Igreja de
Guadalupe estavam indiferentes ao evento que estava por acontecer, certamente por este
não se relacionar às comemorações religiosas do ciclo junino, nem à devoção aos santos
reverenciados nestes dias, como São João (dia 24 de Junho), pois Beth de Oxum, como
o próprio nome sugere, é de confissão religiosa ao candomblé.
Ao iniciar a apresentação em palco, Beth de Oxum lembrou a todos os presentes
da estrutura de pergunta e resposta em que o Coco é organizado, principalmente com a
participação do público e da importância do ganzá28 (mineiro) na manutenção da
27 Sites de dados estatísticos e calendários - (Disponíveis na http://www.embratur.gov.br) ; Banco de dados Braznet (http://www.braznet.com), acessados em Agosto de 2006. 28 Ganzá. Instrumento musical composto por um cilindro de folha-de-flandres, fechado, que contém grãos, partículas de chumbo ou seixos.
58
unidade do ritmo. Por isso dois ganzás passaram livremente por entre o público, de mão
em mão, durante todo o evento.
Como solista, o ‘puxador’ (cantador guia) entoa o refrão da loa que é
prontamente respondida pelas coquistas (coro feminino). Este processo se repete em
média, duas ou três vezes; período no qual os ganzás começam a marcar o andamento
imposto pelo puxador. Só depois, é que a alfaia começa a marcar o ritmo característico.
Porém, algumas vezes a alfaia (ou congas) assume a função do ganzá de conduzir o
pulso ditado pelo puxador, como também outros instrumentos assumem a função da
alfaia de conduzir o ‘baque’ (toque ritmado no tambor) sincopado. Dessa forma, ora o
djembê, ora as congas assumem esta função.
O público se aglomera a frente do palco, atraído pelo pulsar sincopado do Coco
de Umbigada, intercalando gritos eufóricos, risos e palmas, numa explicita
demonstração de participação e interação com o evento, fato que marca toda uma
estrutura exclusivamente orientada por uma dinâmica de participação coletiva.
Numa segunda parte, sobem ao palco músicos convidados para o evento e
puxadores de outros Cocos, como Dona Cila, Aurinha do Coco, e Ana Lúcia e suas
coquistas do Amaro Branco. Neste momento o Coco tem seu auge, seja pela
aglomeração de brincantes, seja pela participação cada vez mais expressiva do público
diante das loas puxadas, loas essas de domínio público, tradicionais entre os coquistas
ou famosas na voz do seu respectivo autor e interprete.
Os espaços públicos, ou mesmo privados (praças, mercados, ruas, clubes, bares,
quintais, praias, transportes públicos, ou cômodos de uma casa), tornam-se um dos
sustentáculos dos espaços imaginários da efetiva integração entre indivíduos, pela
mútua experimentação do sentimento presencial como elemento condicionador do
evento. A realização desta brincadeira em horas e espaços não considerados como
laborais, ou destinados exclusivamente a atividades de diversão, como clubes ou teatros,
passou a induzir classes de indivíduos não simpatizantes com este fazer, a caracteriza-lo
como prática inconveniente e inoportuna, própria de classes marginais da sociedade.
Porém , com o advento do Coco nas manchetes de jornais, nas páginas especializadas
em música pop e nos sites da internet, além da constante presença de ‘gringos’
59
(estrangeiros) nas rodas de Coco, o critério de tolerância muda a partir de quando passa-
se a suportar os toques e cânticos dos coquistas.
No entanto, quando da presença de novos atores por entre o público a realização
da festa assume novos contornos significativos. Os conceitos transformam-se em novos
paradigmas que fomentam a realização da festa do Coco, projetam possibilidades e
expectativas antes ausentes entre os brincantes e coquistas. Agora o objeto da festa é
realizar uma mudança de vida. As aspirações concentram-se no acumulo de riquezas
pela fama e sucesso na mídia de massa. Gravar um CD, subir em palcos pelo mundo
afora, aparecer na televisão, ter suas composições reproduzidas nos bares e na boca do
público, é o sonho de muitos que se iniciam neste plano de perspectivas. Para isso,
muitas das vezes, o coquista se submete ao paradigma de mercado repetindo fórmulas
de sucessos para garantir a fatia do mercado de discos que lhe assegure estabilidade no
meio artístico.
Beth de Oxum, coquista do Coco de Umbigada do Guadalupe, bairro de Olinda,
deposita no Coco um caráter exclusivamente de negritude, ao conceber que esse evento
festivo musicado, representa a consagração do negro em praça pública visto o fato
histórico da repressão a toda manifestação dos negros escravos, que, segundo
testemunha Beth de Oxum: “eram impedidos de tudo”. Para ela, a festa negra nas ruas,
na atualidade, representa uma conquista social dos afrodescendentes. Beth lembra que
até recentemente (anos 20 - 40) o negro, e toda e qualquer manifestação relacionada a
ele, era reprimida pela violência da polícia e da discriminação da classe dominante, sob
estatuto da igreja e de classe superior. Entendi em seu discurso, que a categoria
sociedade elitizada faz referência a camada da população que assimilou, e que hoje
assimila como sua, o sistema de perspectivas da classe dominante no âmbito cultural,
econômico e político, incluindo nesse paradigma critérios de raça, gênero, classe e
poder econômico.
60
2.7. Imaginário em torno do Coco O Coco, como uma linguagem expressiva de um complexo de relações humanas,
traz em sua ocorrência um poder comum de representação das significações emanadas
da experiência coletiva e convenções culturais que regem o cotidiano dos indivíduos.
Esta representação simbólica se materializa nas imagens do mundo construídas ou
adaptadas por estes indivíduos quando ativos e soberanos no ato de inter-relacionarem-
se no dia-a-dia. Seus espaços de realização descrevem, de indivíduo para indivíduo, um
percurso pessoal, próprio de experiências emotivas.
Fazer Coco, cantar Coco, dançar Coco, tocar Coco, ou brincar Coco, dentre
outros possíveis meios de experimentações e apropriações, em sublimação às
impressões do mundo, é lançar mão do atributo de um sentido coletivo – identificado
por Clarival do Prado Valladares (1968, In Lody, Raul 1987:15) como “atributo da
comunicabilidade ampla e imediata” – que dilui autorias individuais em favor do usual
comunitário – muitas vezes descrito como de ‘domínio popular’ – inerente a um modelo
de estética local, próprio de situações periódicas e ritualizadas pela coletividade. Estas
situações reforçam o desejo de representação do senso comum de uma identidade
pautada por motivos afetivos, ideológicos, históricos e políticos, o que assegure uma
certa resistência pela manutenção de um saber ideal fundado na memória.
Como pratica performativa, o Coco passa a constituir o espaço específico em
que certa liberdade de expressão se realiza através de uma relação direta e proporcional
aos significados contidos no imaginário de cada indivíduo.
O coquista, na qualidade de co-criador do evento – enquanto manifestação
interativa de um senso coletivo de identificação, comum a todos os componentes do
grupo social – vê-se estimulado, em seu plano cognitivo, a devanear, sublimar, adaptar,
reconstruir, criar, e representar suas imagens mentais, particularmente concebidas, como
mecanismo resultante da necessidade de preencher as lacunas provenientes do processo
de ‘comunicação’.
Pombo Roxo, quando questionado sobre sua concepção do seu gênero de cantar,
definiu o Coco pelo conteúdo significativo da sua música ao dizer:
61
“O Coco... o Coco é a música! E na realidade não é coco [fruto do
coqueiro], o coco[fruto] é do pé [coqueiro]. É o samba que se faz,
que se chama Samba de Coco ... Samba de Coco. Mas tem [em
contexto diacrítico29 definidor do Coco como evento] o Coco de
Pandeiro que é, ... que é dois cantô. (...) Eh!... E tem como no dia de
hoje eh!, o Coco de Embigada [pelo atributo gestual], que a pessoa
dá embigada no outro. Aí vem eu que canto o Coco de Roda, que é o
Coco de tradição que ... tira a pessoa da roda!, Bota!, entra!, bota!
Que a gente faz a noite toda! É Coco de Roda!
(Pombo Roxo em entrevista cedida em 25 de outubro de 2004, no bairro do Amaro
Branco, Olinda)
Ainda motivado pela intenção de ser melhor compreendido em sua definição do
Coco, agora num sentido político e histórico de seu fazer, e por sua convicção desta
prática estar ligada a uma ascendência africana, Pombo Roxo comenta:
“(...) o Coco vem dos escravos! Dos escravos africanos. Não vem
dos índios não! Vem dos escravos africanos. E como eu falei
anteriormente, nas outras entrevistas, vem da alegria dos
sinhozinhos de engenho; vinha dos Coronel; vinha das fazendas;
vinha das residências;... que os negro inventô para poder satisfazer
as vontades ... festêjas dos ricos, né? Dos brancos, Sinhozinhos e tal,
e etecetera! ... Aí inventaram o Coco de Roda pra fazer aquilo dali.
Tanto o Coco como o Maracatu, o Bumba-meu-Boi.’
Pombo Roxo (Ibidem)
Esta perspectiva relatada por Severino José da Silva – o Severino Pombo Roxo,
que diz ser o Coco uma dança de negros promovida pelos ‘sinhozinhos’30 em suas festa
abertas aos negros, índios e mestiços, igualmente é concebida em Diegues Júnior
(1991). Sob esta concepção Diegues Júnior postula que: “(...) os negros transformaram
29 O termo Diacrítico, por mim aqui tomado refere-se àquele sinal que se dá a um contexto de funcionalidade para dar-lhe novo valor, ou a um símbolo, para indicar concepções distintas de um som. 30 Tratamento que os escravos davam ao senhor de engenho durante a colonização brasileira.
62
o seu samba no Coco sem caráter estritamente africano e com influência das casas-
grandes, fazendo uma dança que todos pudessem dançar sem sentir que aquilo era
negro. (...) Feito ao sabor da evolução de raça, toda cheia de quês pitorescos e de
choques culturais, pegou o Coco parte de uma e de outra.(...) ” (1991:237-39).
E deste suposto contexto, se desenvolveram relações de cruzamento de culturas,
de onde emanavam as cantigas da terra de origem negra e indígena que se misturavam
com as palavras, métricas e expressões da língua portuguesa. Em decorrência deste
cruzamento resultou uma grande variedade de ocorrências que se personificaram pelos
seus interpretes cantadores. Daí surgindo afirmativas quanto às formas das estrofes
cantadas, como: o agalopado, sem número certo de pés (denominação tradicional para
as unidades métricas das estrofes); o solto, antigo, já pouco usado; o de entrega, o
topado, o remado, o traquiado e o dobrado.
O que percebo desta relação entre o fazer e o fato, entre o processo e o produto,
é que o coquista não é o criador do Coco, mas o agente social que materializa e
personifica o processo pela representação somática do imaginário coletivo, através das
imagens e seus significados, ou dos universos simbólicos presentes e veiculados
ideologicamente nesse fazer social.
Esse imaginário, contido nas experiências relacionadas num plano simbólico do
sujeito é, para Gomes31 (2006), “a faculdade que evoca objetos e situações ausentes ou
distantes, reais ou fictícias, presentificando-os no universo mental do sujeito (...) –
[quando] – (...) há uma transferência simbólica de sentidos que transgridem o comum, o
real, o natural, e subverte os eventos factuais, de forma voluntária ou não, para uma
situação fantasiosa (...) ” (entrevista cedida em 28 de Maio de 2006). Gomes (ibidem.),
identifica que o ato de fantasiar, em sua origem, pode ser tomado como um “fingimento
da realidade”, classificável como um “efeito mimético” composto por ‘regras próprias’,
pelas quais se criam imagens internas que proporciona uma fuga do ‘absoluto’, do
‘concreto’, do ‘tangível’.
31 Gomes, Adriano Lopes (2006) 'O rádio e a experiência estética na constituição do ouvinte', artigo veiculado na internet no site www.bocc.ubi.pt. (Professor Doutor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN), artigo discutico presencialmente quando em sua estada em Lisboa, para estudos pós-doutorais, entrevista cedida em 28 de Maio de 2006, em Lisboa – Portugal.
63
Este quadro conceptual em que se insere a música tradicional feita no Brasil está
representado no discurso de imagens veiculadas pela comunicação de massas, através de
uma caracterização estereotipada do que vem a ser um brasileiro. Sua música, seus
prazeres, seus costumes, e seus comportamentos, que denotam seu perfil sócio-
econômico, político e cultural, passam a compor simbolicamente as etiquetas de
mercado elaboradas por mediadores de perspectivas de um ideal identitário a ser
apropriado pelo consumo.
Entretanto, existe um abismo entre o coquista junto a sua comunidade de brincantes
e o público ideologicamente envolvido com a produção de artistas populares como os
do Coco de Roda. Este quadro chega mesmo a indicar que o Coco é atualmente um
gênero de público alternativo. Mesmo em Recife seus apreciadores são intelectuais32 e
intelectualizados33, que buscam salvaguardar a tradição ou fazer uso dela como meio de
expressão do modernismo sonoro. Lembro que procurei CDs de Coco em diversas lojas
de discos da Região Metropolitana do Recife e só encontrei em lojas elitistas que
vendem selos especializados em world music, onde são catalogados em secções de
Música Popular, Tradicional, ou World Music e comercializados com preços pouco
acessíveis para a fatia do público de pouca renda. Apesar de grande número de
pernambucanos constituírem um laço afetivo com o Coco, este só se estreita e se
externaliza em períodos de festas Juninas.
Outra ponte desse abismo está no público da Música do Mundo produzida no
Brasil. Estes adeptos ao novo e exótico é que constituem hoje o alvo das ambições dos
artistas populares e profissionais, que vêem nessa demanda o potencial espaço de
divisas não só no período festivo junino, mas durante todo o ano. Esta perspectiva agita
igualmente os bastidores do turismo cultural e fomentam iniciativas de exploração dos
cantadores que, na esperança de inserção no mercado oferecem suas composições sem a
certeza de lhe serem retornados incentivos financeiros.
32 Os indivíduos intelectuais são aqueles que têm o poder e autoridade político-social para justificar formas culturais e sistemas de valores como oficiais. Criando opinião e conceito a ser concebido pela massa. 33 Os indivíduos intelectualizados são aqueles que absorvem conceitos e costumes dominantes sem ponderação, com o único objetivo de ascensão social e inclusão no sistema dominante. Assimilação do padrão.
64
Os paradigmas de mercado, configurados em torno das necessidades de auto-
afirmação do homem globalizado, tomam formas de recursos-chave de suprimento e
preenchimento das lacunas provocadas pelos deslocamentos «espaço-temporais» que
cada vez mais se firmam nas realidades dos cidadãos urbanizados. As necessidades de
tais marcas culturais refletem uma fatia da população que se forma em decorrência de
um processo de insatisfação.
2.8. Conclusão
O que pretendo tornar patente, é que o Coco é decorrente de uma complexa rede
de relações que não se limitam ao fazedor musical específico, ou melhor, àquele
oficialmente eleito, e que por sua vez se elege a esta função social de buscar um
equilíbrio entre o imaginado, o desejado e o real da vida. Entre outra razões, esse
cantador, pela sua própria necessidade de construir esse equilíbrio, lança mão da
tradição oral que lhe serve de ferramenta para suas verdadeiras conquistas como
indivíduo; ao mesmo tempo em que a complexidade da vida social conduz igualmente a
buscas de realizações materiais.
O Coco traz a tona planos de relações que, possivelmente, sempre estiveram
presentes nesta prática performativa desde sua primeira manifestação nas senzalas e
terreiros suburbanos. Porém, esta dinâmica hoje assume nova dimensão pelo
cruzamento de perspectivas do passado, através do recurso da experiência oralizada,
com as do presente, que se firmam pela documentação, assimilação tecnológica,
transculturação e fins econômicos de produção e consumo. Esta dimensão revela o
caráter plural das motivações que povoam o imaginário de seus brincantes, apreciadores
e simpatizantes, em discursos e mobilizações que suprem interesses transversais de
classe, confissão religiosa, identidade étnica e cultural, e poder (interesses ideológicos).
A expressão gestual da dança fora sua marca primeira, por nela estar identificada
o fim de integração entre os participantes. Fato que induziu estudiosos a classificar o
Coco como dança-de-umbigada. Entretanto, frente o processo contemporâneo de
desencaixe tempo-espacial das motivações e perspectivas, percebe-se que sua
identificação passa a ser concentrada na produção e performance dos músicos, cantores,
65
e coro. Seu dançar toma forma de uma coreografia estável e fixa. O mesmo ocorrendo
com sua forma interpretativa de cantar e articular os instrumentos. Denotando como
uma nova lógica nesta prática musical, a perspectiva de competência técnica moldada
pela música erudita. Esta tendência passa a interferir no cotidiano dos brincantes que
assimilam esta nova forma de representação como forma da identidade da comunidade,
vindo a representar as dinâmicas de relações na qual os coquistas Ana Lúcia e Severino
Pombo Roxo estão imersos neste início de século XXI. Dinâmicas estas que passam a
ser o nosso objeto a partir dos capítulos que se seguem.
66
CAPÍTULO 3. COQUISTAS: DUAS HISTÓRIAS DE VIDA A dinâmica do desempenho do Coco está intimamente relacionada com as
histórias de vida dos coquistas. O estudo do percurso de atores como Ana Lúcia Nunes
da Silva e Severino José da Silva permite compreender o Coco pelas experiências dos
detentores de um saber transmitido pela memória de um passado afetivo que supre o
mercado globalizado de musicas do mundo. As relações de poder e de pertença, as
expectativas e os conflitos que marcam o cotidiano, revelam a concepção imaginada dos
cruzamentos de perspectivas que se dão hoje no campo das relações comerciais em que
o Coco está envolvido.
Ana Lúcia Nunes da Silva é um exemplo do artista popular que traz em seu fazer
uma ligação afetiva com o passado, seus significados e funções. Destaca-se pela sua
competência e por seu conhecimento desta arte tradicional. Porém sua relação com o
componente religioso presente no Coco de Roda impede que assimile as novas
perspectivas de utilização do legado tradicional. Esta condição torna-a num excelente
interlocutor no processo do estudo dos conflitos emotivos e funcionais de um Coco de
Roda em processo de globalização.
Severino José da Silva, homem que busca oportunidades de reverter sua
condição social, ingressa no fazer musical do Coco pela experiência presencial junto a
seu pai que, coquista, transmitiu-lhe seu saber desde a infância. Severino José se
apropria de sua condição de coquista como chave de prover suas necessidades. Porém
traz em sua relação religiosa uma devoção aos Mestres e Caboclos, que na Gira de
Mestre toma o Coco agora numa dimensão religiosa. Seu percurso destaca a dimensão
religiosa afro-brasileira contida no fazer performativo do Coco de Roda, na qual muitos
dos novos adeptos do gênero, levados por interesses ambíguos, procuram uma iniciação
nas práticas dos terreiros de umbanda como mecanismo de apropriação do saber cultural
de origem negra.
67
Imagem 12. Ana Lúcia durante gravação de CD. Imagem recuperada do vídeo do DVD ‘Coquistas do Amaro Branco‘ editado em 2005 pelo Estúdio Fábrica
3.1. Ana Lúcia do Coco
3.1.1. Dimensão Familiar
Nascida em 26 de Março de 1944 na Ilha do Maruim (Varadouro – Olinda,
Pernambuco), comunidade hoje denominada como Ilha de Santa Terezinha, Ana Lúcia
Nunes da Silva mudou-se para o bairro do Amaro Branco com 1 ano de idade, onde
reside até os dias atuais. Filha de Maria Francisca Nunes da Silva e enteada de Severino
Nunes da Silva, Ana Lúcia não conheceu seu pai biológico que morrera quando ela
ainda era muito pequena. Do primeiro casamento de sua mãe, Ana Lúcia teve três irmãs,
Maria José, conhecida por Zezé, Eulália, conhecida por Iláia, e Conceição. Após o
matrimônio de sua mãe com Severino Nunes da Silva, Ana teve quatro irmãos, duas
meninas vindas do primeiro casamento do seu pai adotivo e dois irmãos vindos dessa
nova união. Maria Clarisse e Maria Eunice (chamadas de Clarisse e Eunice
respectivamente), por parte de pai, e Maria Olívia e Veridiano, advindos do casamento
de sua mãe e seu padrasto.
Sua relação com Severino Nunes da Silva é por ela descrita como equilibrada e
harmoniosa, a quem Ana hoje deposita todo crédito de pai. Fato que se destaca em seus
discursos nos quais lembra da pessoa de seu padrasto na sua formação religiosa,
educação moral e iniciação a brincadeira do Coco de Roda. Como exemplo, cito trecho
de sua narrativa de chegada ao Amaro Branco, no qual Ana declara a importância da
figura paterna de Severino Nunes da Silva em sua vida.
[Neste exemplo, Ana Lúcia faz uso do termo “pai” com o mesmo peso emotivo para seu
genitor (grafado em negrito = pai) como para seu padrasto (grafado em itálico = pai)]
“eu não tô registrada por meu pai, mas meu pai é Severino da Silva.
(...) porque meu pai quando tomou conta de mim eu tinha 1 aninho, e
68
o outro meu pai tinha morrido. Aí eu fui criada por meu padrasto e
com 1 ano de idade eu vim pra companhia dele. Só sai da companhia
dele por morte. (...) minha mãe é Maria Francisca Nunes da Silva e
meu pai Severino Nunes da Silva”.
[Ana Lúcia, em entrevista no dia 05 de Setembro de 2006]
3.1.2. Relações com o lugar
Quando Ana Lúcia chegou trazida por seu padrasto nas imediações do Farol
construído pelo Ministério da Marinha no alto do morro de Olinda, só havia pequenas
casas de taipa34 entre a densa vegetação. Sítio que progressivamente foi tomando forma
de um povoado, composto predominantemente por famílias que tiravam sua
sobrevivência da pesca e cultivo da terra.
Suas impressões do bairro do Amaro Branco quando na infância assim foi
descrita quando lhe perguntei como era naquela época:
“Oh! Matagal somente e escuridão! Só a casa. Quem fundou foi
ele[seu padrasto] e Seu Sarrapião! (...) O Farol já tinha, ... que
tiraram as casas – as casinha que tava ... onde[hoje] é o Farol tinha
umas casinhas. Tiraram as casinhas e botaram pra cá. Meu pai veio
pr’aqui!
[Ana Lúcia, em entrevista no dia 05 de Setembro de 2006]
Seu padrasto, na qualidade de fundador do que hoje se chama Amaro Branco, já
morava na Vila dos Pescadores ou no que viria a sê-lo antes de tomá-la como filha. Na
sua monografia de especialização em etnomusicologia, realizada na Universidade
Federal de Pernambuco sob orientação de Carlos Sandroni, Rosa Sobrinho (2001:5-6-7)
cita que na década de 40 foi registrado em documentos da Prefeitura Municipal de
Olinda, o surgimento do Bairro do Amaro Branco. Porém, o mesmo autor registra que
34 Taipa, termo émico que designa a parede feita de barro ou de cal e areia, com grossos caibros e fasquias de madeira para reter o barro amassado.
69
aproximadamente no ano de 1851, já haveria um povoado habitado por pescadores, e
“praieiros35” do litoral de Olinda.
Aquele espaço localizado nas encostas da cidade, nos arredores do Farol, desde
1940, fora ocupado em sua maioria por pescadores, visto ser uma área litorânea
dinamizada por atividades pesqueiras de subsistência e comercialização que atraiu
pescadores e comerciantes de áreas litorâneas vizinhas como Recife, Paulista,
Itapissuma, Igarassu, Itamaracá, entre outras, como também do interior do Estado.
3.1.3. Religiosidade
A religiosidade é uma marca forte no percurso de vida de Ana Lúcia Nunes da
Silva, vindo a ser a condição primeira de sua relação com o Coco de Roda. A influência
paterna e materna que está refletida nessa relação é uma dominante na sua concepção do
Coco como expressão musical que, mesmo diante da nova tendência de apropriação e
uso do fazer Coco com fins puramente econômicos, não se mostra abalada. Muito pelo
contrário, sua religiosidade revela-se como um agravante que interfere sensivelmente
em sua adoção de um perfil competitivo de mercado.
De confissão religiosa católica, seu padrasto trazia em suas ações uma
reconhecida conduta moral, motivo pelo qual era convidado em festas organizadas em
contextos de batizado, casamento, aniversário e principalmente de devoção a santos da
igreja. Ana Lúcia lembra que junto com sua mãe, seu padrasto organizava festas
motivadas por diversos fatores além dos citados, na busca de ativar a integração da
comunidade. Devido ao caráter diverso destas festas e nem sempre justificado por
motivos regulares, Ana Lúcia designa-as carinhosamente de “festinhas”.
Severino Nunes da Silva era coquista, na qualidade de organizador de festas e
criação de loas, enquanto sua mãe apenas participava da brincadeira, seja pela sua
motivação a reunião social, seja pela animação e espírito de festa que nesta depositava
quando da sua participação na realização do evento (dançar, responder o mote,
organizar a festa).
35 Praieiro, termo émico sinônimo a praiano: habitante da praia ou do litoral; relativo a, ou próprio da praia, ou beira-mar. Seu uso remete a idéia da pureza paradisíaca de um cotidiano isolado da vida urbana.
70
Ana Lúcia era uma das mais animadas. Lembra que saia nas casas, para pedir
aos pais das amigas que as deixassem acompanhar o Acorda Povo36, ato religioso que,
na imagem simbólica deste cortejo, segundo perspectiva de Ana Lúcia, remonta o
batismo de Jesus Cristo por São João Batista, cujas canções são levadas na batida do
Coco.
Posteriormente seus pais viriam a se tornar evangélicos e Ana Lúcia seguira seus
passos na nova opção religiosa. Não me foi revelado qual denominação evangélica
escolhida, nem o motivo exato dessa mudança, mas o processo de urbanização dos
espaços, tem, no Brasil, descrito uma dinâmica favorável ao crescimento de igrejas-
templo de denominação evangélica. E essa adoção ao novo credo em muito se dá pela
fuga do mal contido no profano identificado nas festas que giram em torno dos dias
santos da igreja católica. Esta justificativa está presente em muitos dos iniciados no
protestantismo na região Metropolitana de Recife que bem assimilam e se apropriam do
discurso de uma liberdade perigosa permitida pelo catolicismo. O combate a esta
permissividade é articulado pelas denominações evangélicas, através de uma rigidez de
conduta exigida a seus iniciados. De fato, Ana Lúcia traz em sua conduta marcas, que
num sentido émico do senso comum nordestino, identificam valores arbitrados como
qualidades de um evangélico (não ingere bebida alcoólica, não fuma, traz cabelos
longos, veste roupas compostas – circunspecta, séria, comedida, modesta – , procura
equilíbrio e controle emocional, sempre cordial e polida em seus gestos). Acredito que a
experiência religiosa de sua família tenha forte influência na sua vida e personalidade, o
que transparece em seu repertório e nas suas composições. Este fato destaca sua
performance frente outros coquistas por não recorrer a temas e gestos libidinosos, ou de
ridicularização de outrem.
36 É uma das procissões dançantes mais antigas do Brasil. Ela se caracteriza pela saída de um cortejo, nas primeiras horas da noite do dia 23 de Junho levando a Bandeira de São João por todos os vilarejos ao som de pequenos grupos musicais e instrumentos de percussão que, a partir da integração dos escravos nos festejos cristãos, com louvação a Xangô na festa de São João, os grupos progressivamente foram formados apenas de percussão.
71
Imagem 13. Ana no Pastoril de 08/12/2003. Imagem cedida por Ana Lúcia em 2004
É de se destacar em seu percurso de vida a atitude, igualmente comum entre os
cidadãos do nordeste do Brasil, de assumir novas posturas perante a religião, na busca
de um caminho mais fiável de realização espiritual. Sendo raro encontrarmos no
cotidiano quem se declare confesso como ‘ateu’. Neste sentido, não há uma adoção
obrigatoriamente fixa a uma ideologia religiosa por toda uma vida, sendo comum a
apropriação da conduta mais sensata possível a cada individualidade. Este fato sócio-
cultural permite que no Brasil surjam novas denominações religiosas que buscam
adequar-se as aspirações e expectativas de salvação dos fiéis. Este percurso particular de
caráter afetivo-volitivo nas histórias de vida, marca nos indivíduos a relação entre sua
natureza humana e a divina. Deste modo, Ana traz em sua vida um acumulo de
experiências junto ao catolicismo e protestantismo, além de sua simpatia, por
intermédio de seu filho Tedd, à umbanda.
Benquista37 na comunidade, é uma pessoa influente na vida das famílias com
que se relaciona. Atualmente católica praticante, Ana Lúcia guarda relações com
eventos da comunidade junto à igreja, ao modo como desde antes de sua conversão ao
protestantismo, na juventude, organizava um
Pastoril38 vinculado ao calendário da Igreja, no
qual ainda hoje reúne anualmente crianças de toda
vizinhança nos preparativos e apresentação desta
representação dramática. Grande parte das
mulheres da comunidade do Amaro Branco, que
hoje guardam vínculos com o Pastoril, foram em
épocas passadas as pastorinhas de Ana Lúcia.
Fato que a revela como um agente ativo e de função social imprescindível para os
moradores e para a manutenção da estrutura social do Bairro.
Sua disposição para a brincadeira do Coco, e seu amor pelo pastoril constituem
uma dimensão afetiva de sua vida que não a priva da realidade de relações práticas do
cotidiano. Conhecida em Olinda por Ana Lúcia do Coco, e pelos mais chegados, por
Ana, esta mulher de fisionomia franzina, cabelos longos, pele morena, traz em sua
37 Benquisto, termo émico em identificação de pessoa querida, estimada por todos, bem-aceita, bem-vista. 38 Pastoril, é pequena representação dramática, composta de várias cenas (jornadas), durante as quais se sucedem cantos, danças, partes declamadas e louvações, e que se realiza diante do presépio, entre o dia de Natal e o de Reis, para festejar o Nascimento de Jesus.
72
personalidade uma relação de empatia com seus amigos e brincantes, caráter que em
palco lhe rende um grau de proximidade com o público que se reverte muitas das vezes
em elogios e expressões em juízo de valor, como: “ela tem um sorriso franco e muita
energia”; “ parece uma menina por sua atividade e energia física”. Seus 62 anos de
experiência de vida passam despercebidos nos olhos de quem não a conhece. Sua
vitalidade impressiona a qualquer um, principalmente quando ela está mergulhada de
corpo e alma no Coco de Roda, no Pastoril e Acorda Povo.
Em sua confissão católica, Ana guarda relações ativas com devoção à São João
Batista – herdada de seus pais e posteriormente reforçada no convívio com Dona Jove39
– , relação que está refletida em seu compromisso com a procissão do Acorda Povo e
com o toque do Coco de Roda no dia 24 do mês de Junho, quando se comemora a Festa
à São João Batista. Porém, após a iniciação de seu filho Tedd no Culto aos Orixás de
Benin – Nação Jeje – , na qualidade de Zelador de Santo, Ana Lúcia também passa a
cultuar o Coco do Mestre Arueira, a quem Tedd guarda devoção, no ritual de Umbanda
designado de “Gira de Mestre”, no dia 16 de Junho.
Seu perfil religioso traduz um laço emocional com a prática do Coco de Roda,
tanto por motivação concebida a nível particular de sua apropriação do Coco como
brincante ou coquista, quanto por devoção ou relação simbólica com a memória, quando
o evento assume um caráter sério e de responsabilidade, na devoção em compromisso
com santos ou entidades religiosas, católicas ou espirituais.
3.1.4. Relações de Gênero, Poder e Pertença.
Casada, mãe de 07 filhos, estudou até a quarta série na Escola Coração de Jesus,
localizada nas imediações de sua casa. De origem humilde e classe pobre, trabalhou
como agente de serviços gerais40 na Celpe – Companhia Elétrica de Pernambuco,
através de empresas de serviços terceirizados (ENORTE), e no Supermercado São Luis
39 Jovelina Gomes Correia, coquista que iniciou Ana Lúcia na prática de cantar Coco. 40 Agente de Serviços Gerais cumpre atividades relacionadas aos serviços de copa, cozinha, conservação e limpeza.
73
Imagem 14. Ana em capa de CD independente produzido por Sergio Bezerra. 2003. Imagem recuperado do CD em 2004
durante 10 anos. Na condição profissional de Artista Popular (categoria autônoma41),
Ana fundou há aproximadamente 31 anos, em sua residência, o Grupo Raízes do Coco,
com duas filhas e vizinhos. Sua iniciativa me induziu levantar a hipótese de que se
manifesta desde então, uma nova dimensão na relação familiar. Na qual o espaço de
apropriação dos cônjuges adquire novos contornos.
A dinâmica que emerge das historias de vida de coquistas como Ana e as
integrantes de seu grupo, revela a apropriação de novas perspectivas que são refletidas
em seus discursos e comportamento frente ao que antes era banal e imperceptível em
seus cotidianos. Surge a preocupação em corresponder suas iniciativas às perspectivas
de mercado que incentivam seu encaixe no modelo de oferta do Coco como produto de
consumo. Conforme Adeilson Silva42 (2006), nesta dinâmica econômica da cultura, o
artista popular passa a gerir suas decisões com base nos custos de oportunidades que
delimitam suas ações entre os benefícios e os malefícios resultantes de suas decisões
para seu fazer artístico. A questão é, o que vai deixar de ganhar o coquista com a
transformação de sua performance frente um paradigma que se esboça como necessário
para o seu sucesso?
Neste sentido, verifiquei que num primeiro
momento os artistas buscam se moldar a critérios
estéticos, com fins de consumo. Indo de encontro as
suas próprias narrativas em depoimento ao
fenômeno da festa, que em sua forma antiga não
exigia o uso de vestimentas apropriadas
especificamente ao evento, ficando a cada
participante se apresentar conforme suas condições
de posse a cada contexto. Desta forma uma das
primeiras preocupações destes artistas é com a
imagem física e vestuário e sua representação na
performance. Sob esta concepção Ana Lúcia passa a adotar tecidos em estamparias com
41
Segundo dispõe a Lei Federal nº 8.212/91, trabalhador autônomo é a pessoa física que exerce por conta própria atividade econômica de natureza urbana, com fins lucrativos ou não. Em outras palavras, é a pessoa física que presta serviços a outrem por conta própria, por sua conta e risco. Não possui horário, nem recebe salário, mas sim uma remuneração prevista em contrato de serviço. 42 Prof. José Adeilson Francisco da Silva do mestrado em economia da UNL
74
motivos florados, com cores vivas e bem definidas, como ocorre com outras coquistas
do cenário musical em que se insere o Coco de Roda. Não se concebe mais dançar o
Coco de Roda, sem uso de uma coreografia mais significante, sem movimentos que
articulem a idéia folclorizada deste gênero. Recorre-se a estereótipos que muitas vezes
os próprios coquistas não identificam como seus. Surge a perspectiva de uma entoação
precisa regulada pelo sistema tonal do coro e a preocupação de uma interpretação
condizente com as expectativas imaginadas de mercado.
Entretanto, transformações aparentemente banais na representação do Coco de
Roda surte numa sensível transformação nas relações pessoais a nível familiar. O tempo
e a atenção passam a ser divididas com expectativas deslocadas em tempo e espaço
distintas do que se configurava antes no cotidiano e o que agora passa a mobilizar
interesses diversos aos das relações familiares. A esse exemplo busquei observar a
dinâmica com a qual o espaço de apropriação dos cônjuges adquire novos contornos.
Na sociedade tradicional pernambucana, a mulher tem um amplo domínio dos
cômodos da casa. Porém, mesmo sem voz ativa na estética e administração do espaço, o
homem circula altivo em algumas partes com especial autoridade, como: a sala, o
quarto, o quintal, além da posse e uso de algumas mobílias (cadeiras ou poltronas) e
equipamentos eletrônicos (TV, DVD, Cd player, etc.) como se fosse unicamente de sua
pertença. Além disto o homem goza de certa autonomia e autoridade em determinadas
ações e funções. Na casa de Ana Lúcia, ao menos em minhas visitas, Juju, seu esposo,
estava sempre recluso no quarto, numa cadeira de balanço junto a parede. Sempre
debruçado sobre a janela como se buscasse lá fora, no horizonte, um refúgio do contexto
de minha presença e de músicos, ou do que essa presença para ele significasse na
relação do casal.
Confesso que uma das coisas que me chamou atenção na casa de Ana foi seu
relacionamento com Juju. Mesmo quando em ensaios do grupo Raízes do Coco, no qual
participei em 2004 como percussionista, ele (Juju) estava contido no quarto olhando
pela janela, o que me fez perceber que ele não compartilha do mesmo espaço e tempo
de ação da coquista, seja por desaprovação ou motivos outros alem do musical. Ana,
por sua vez, trafega dominante por toda a casa. Corre, pula, fala alto com os amigos que
75
vê na rua, intervém nas atitudes dos presentes, opina com entusiasmo, sorri, sacode o
mineiro, ou um pequeno ganzá, dança, gira e canta feliz.
O espaço da coquista é dominante, o que denota um domínio contextual de Ana
Lúcia como personagem de sua vida quando na sua relação com atividades musicais. Já
os cômodos, são divididos acirradamente quando a ação depende da aprovação do
esposo. Em exemplo cito que quando Ana procurou um bombo para que eu afinasse, e
este instrumento estava no quartinho-dos-fundos (ou como também se conhece: quarto-
de-trecos, “quartinho-lá-de-trás”, quartinho-da-bagunça, quarto-de-tralha, ou quarto-de-
cacarecos – espaço físico de depósito, no qual se guardam as coisas que não estão em
uso freqüente, como bombos, enceradeira, bicicletas – ou seja, quarto de deposito), seu
esposo tomou ação imediata de empunhar a chave e abrir o quartinho dos fundos,
ficando plantado na porta observando o que estava sendo remexido durante a procura do
bombo que Ana queria me mostrar. Por diversas vezes Juju ficou reclamando, em meio
tom de voz e de forma polida, o espaço ocupado pelo acumulo de coisas do Coco, como
bombos, ganzás e mineiros, coisas que para ele não têm uma relação funcional já que
não é um brincante de Coco.
Medindo aproximadamente 2,5m por 1,5m, este quarto-de-depósito, localizado
junto à parede da cozinha, nos fundos da casa, está repleto de objetos importantes para
Ana, porém sem uso freqüente. Lá se encontravam três surdos, sendo que dois deles em
dimensões de 20’ ou 18’ polegadas (não sei ao certo, visto o volume de coisas
acumuladas), que Ana havia ganho do seu produtor Sergio Bezerra como agrado ou
pagamento por apresentação pública em evento organizado por ele. E logo abaixo,
estava seu surdo de Coco, o qual era tocado por Vero, seu irmão. Pintado em vermelho,
esse surdo (ou bombo) tem sua afinação feita por meio de varões de rosca (grandes
parafusos) que se estendem do lado da pele de batida ao lado da pele de resposta, apesar
de que em algumas vezes também estar afinado por amarração de corda, como um
Tambor de Corda. Ana mencionara que a pele de batida do bombo estava furada,
porém, pela incisiva presença repreensiva de seu esposo frente à porta Ana resolveu
deixar para outra oportunidade a retirada do surdo para que eu viesse a verificar as
condições de restauro.
76
3.1.5. Aprendizagem musical
Desde pequena, Ana Lúcia conviveu com a brincadeira do Coco de Roda. Sua
vivência se dava em contextos de convenções religiosas que, de certo, marcaram sua
forma e estilo de compor e expressar performaticamente os fatos que integravam, na
qualidade de motivos temáticos, as histórias ou estórias caricatas retiradas do cotidiano
de um dos presentes, ou das experiências comuns da coletividade que eram contadas
em rima e prosa .
Conforme relata Ana Lúcia, o Coco se aprendia em casa, com os familiares e
amigos de grande afinidade em locais de confraternização, como casamentos, batizados
e festejos do calendário religioso. A aprendizagem se dava em contexto de
informalidade, no qual o brincante se vê livre para integração espontânea junto aos
cantadores. Estas condições favoreciam a criatividade, na edificação de uma
personalidade interpretativa própria para os novos cantadores que ali se iniciavam. A
idéia de uma imitação estava presente entre os novatos, principalmente nos primeiros
passos deste construto de um desempenho musical certo e condizente com as
convenções culturais do Coco.
Porém, como observei em campo, o poder de articulação de um desempenho
ideal de uma competência, se dava pela prática em tempo real do evento e não num
estudo elaborado em tempo precedente ao evento. Entretanto, deve ser observado que a
preparação de uma nova composição, também se fazia por encomenda ou estímulo à
competição dos cantadores sobre um mesmo mote.
Ana lembra que começou a participar na brincadeira do Coco ao lado do seu pai
com três anos de idade e que teve a função de cantar “Coco de Resposta43” com seus
catorze anos.
“(...) ele cantava o Coco, (...) eh! eu vi ele cantando
e aprendi os Cocos com ele”
[Ana Lúcia,2004]
43 Coco de Resposta, termo émico que define o estilo cantado e respondido por um coro de vozes.
77
Imagem 15. Dona Jove. Imagem recuperada do Jornal do Commércio de 1998, pertencente ao arquivo pessoal de Ana Lúcia. Foto sem maiores informações.
Dado que revela a importância do modelo de coquista por ela edificado a partir
do percurso de seu padrasto, com quem aprendeu e desenvolveu o gosto por esta
atividade expressiva. Porém, a pessoa que mais marcou sua iniciação, aprendizagem e
construção de uma personalidade como coquista foi Jovelina Gomes Correia, a Dona
Jove, com quem aprendeu a arte de cantar os Cocos que já articulava na qualidade de
integrante de coros de resposta, e desde então passou também a cantar composições
suas. Graças a Dona Jove, como diversas vezes afirmou, Ana Lúcia veio assumir o
papel de “Tiradora de Coco44” com seus dezesseis anos de idade.
Nascida no Município de Buíque, de onde veio em 1915, com
14 anos de idade morar com uma prima em Recife, Jovelina
Gomes Correia, hoje falecida, foi ao lado de Maria Belém,
conforme afirma Ana Lúcia, a primeira cantadora de Coco,
atividade antes exercida unicamente por homens. Com ela,
Ana desenvolveu sua performance e habilidade de interpretar.
Seguindo todos os seus passos e conselhos, Ana Lúcia
adquiriu segurança e um discurso de profunda conhecedora
de sua arte. Atributo que hoje lhe confere um lugar de
destaque entre os coquistas, apesar de ainda ser desconhecida
na cena em que hoje se insere o Coco de Roda em
Pernambuco.
3.1.6. Representação e Performance Musical
Ana relata que para cantar o Coco, o interprete tem que ter o domínio da
oralidade sob atributo de uma eloqüência na narrativa, não se deixando perturbar pela
possível complexidade na organização de palavras que se configuram numa prosa em
44 Tirador de Coco, termo émico que define o cantador responsável pela composição e interpretação de motes.
78
Imagem 16. Vero durante ensaio do Pastoril. Imagem cedida por Ana Lúcia, em 08/12/2003, Olinda.
rimas cantadas. Como detentor e articulador do elemento principal num Coco o
cantador carrega a função de guiar o responsório, e induzir o zabumbeiro a valorizar sua
interpretação através de um jogo de dinâmicas. Embora hoje se perceba mulheres nessa
função frente a um grupo de Coco, outrora só homens detinham este papel. Em parte
isto se dava pela ligação do Coco à estrutura do Candomblé, onde os homens guardam
funções de ogan (também designado e grafado emicamente como ‘ogã-ilu’ – tocador de
tambores na cerimônia de culto afro-brasileiro). Entretanto atualmente a mulher assume
um papel importante na reprodução de um conhecimento de transmissão oral, o que lhe
dá competência a igualmente articular tambores e puxar toadas e loas em modelos
condizentes com a tradição.
Ela lembra que no passado, quando na falta de um bombo,
foi puxado o guarda-roupa do seu quarto para a sala, onde se
realizava a brincadeira. E o batedor do bombo assumiu o domínio
do guarda-roupa na substituição do bombo, fazendo o Coco vibrar
até o amanhecer. Ana Lúcia identifica que o bombo é o
instrumento fundamental para um Coco de Roda. Percebi que ela
guia sua participação no cantar pelo desempenho desenvolvido
pelo batedor do bombo. Entretanto, julgo que o principal
instrumento é o ganzá (ou mineiro) que articula, num timbre
agudo, as unidades mínimas do padrão rítmico característico do
Coco. Porém, sua concepção encontrava abrigo no ajuste de
interpretação e performance presente entre Ana Lúcia e seu irmão
Vero, tocador de bombo.
Dos seus irmãos só conheci Veridiano, o Vero, que tocava o bombo no Coco de
Ana Lúcia e participava no Pastoril quando necessário45. Era um excelente tocador de
45 Após chegar de Lisboa para prosseguimento de investigações de terreno, eu vim a saber pela boca de Ana Lúcia que ele havia falecido em véspera de ano (2005 – 2006), em acidente trágico e em contexto incomum. Ana, que em sua casa esperava Vero para deslocar-se a uma apresentação do Coco, havia visto noticiário televisivo acerca de acidente com vitimas fatais, em que um automóvel atropelara um ciclista e acompanhante que apenas caminhavam em via pública. Ana lembra que lamentou a tristeza do ocorrido para os familiares dos acidentados em pleno Ano Novo, porém, não tinha idéia de que era justamente seu irmão Vero que havia morrido naquele momento; e que como não portava documentos no fatídico acidente, só fora identificado por sua bicicleta vermelha na delegacia, dias após muitas buscas pela cidade.
79
bombo e aprendeu a arte de “batedor de Coco46” acompanhando os passos de Mestre
Dédo – um dos melhores tocadores de Coco da região.
Ainda hoje, Ana procura um percussionista que se encaixe perfeitamente ao seu
repertório e desempenho. Vero foi um dos meus mestres no processo de compreender e
interpretar percussivamente o Coco, pois antes eu ouvia, dançava, mas não interagia
minhas experiências adquiridas de percussionista, com os níveis de linguagem musical
popular do Coco. Através de Vero, compreendi um dos processos mecânicos de
articulação dos impulsos contramétricos 3+3+2 e 2+3+3 (Sandroni: 2001) que eram
habilidosamente articulados por suas mãos.
Ana Lúcia recorda eventos festivos em que tocadores de bombo que, movidos
por intenção de acabar com o festejo, “por pura inveja ou despeito”, pediam para tocar
o bombo usado no evento e assim bater no bombo com força suficiente para furar a
pele. Alguns tinham em si a idéia de perturbar; outros eram levados pela inveja da festa,
dos dotes dos cantadores e músicos presentes, ou rixa com o dono da casa.
A esse respeito Ana conta um caso em que os brincantes avisaram o cantador
que havia um batedor de bombo que queria acabar a festa furando a pele do bombo logo
que tivesse a oportunidade de tocar. Foi quando o tirador de Coco fez de improviso uma
loa que ameaçava quem furasse o bombo, levando todos os presentes a responderem em
uníssono sua ameaça em rima, assustando o homem que rapidamente foi embora.47
46 Batedor de Coco, termo êmico que significa tocador do bombo ou zabumba em festas de Coco de roda, ou outra festa popular onde o respectivo bombo tem função (ex. Maracatu, Ciranda). 47 “ certa vez um homem que era conhecido por furar os bombos em todas as festas, veio na casa de meu padrasto; e foi se chegando, ... se chegando, ... dançando e bebendo, ... disfarçando uma faca na bainha, quando o pessoal reconheceram ele e contaram ao cantador que improvisou no coco uma resposta que todo mundo cantou: - para quem queria furar o bombo um furo grande ia levar” [Relato detalhado de Ana Lúcia com base em sua memória, em entrevista cedida em 07/08/ 2004]
80
3.1.7. Conflitos entre a Criação e o Direito do Autor
O que era brincadeira para Ana Lúcia, entre tantas outras coquistas do Amaro
Branco, foi posto em causa quando eclodiu para surpresa de Ana Lúcia e demais
coquistas, o sucesso da coquista Selma. Pois esta transformou o fazer descomprometido
com interesses econômicos, como assim o era, num negócio de perspectivas lucrativas.
Diante desta cena, Ana disse em entrevista publicada pelo Diário de Pernambuco
(1998):
“Há uma revolta muito grande do povo daqui com Selma do Coco
porque ela nem olindense é e se auto-proclama ‘A Rainha do Coco’.
Rainha é Jovelina, que tem 84 anos e canta desde menina, tirando na
hora os Cocos”
Enquanto Ana nunca cobrou por nenhuma apresentação, Selma registrou várias
músicas em seu nome, deflagrando assim um conflito entre artistas populares pelo
direito da autoria das canções. Ana Lúcia reclama a autoria do Coco “Estrela do Norte”,
gravado e registrado como de direitos autorais, segundo ela, por Selma. Jovelina Gomes
Correia, amiga e mestra de Ana, na época ainda viva com 84 anos, também reclamou a
autoria do Coco “Dá-lhe Manoel”, que Selma também afirma que compôs. Só que,
segundo Ana afirma: “Selma não sabe a letra toda, e ainda canta errado”.
Selma, em entrevista publicada na página Viver do jornal Diário de Pernambuco
de 1998, admite que registrou canções que toma como “domínio público”, pois as
ouvia nas casas dos amigos e ninguém sabia de seus respectivos autores. Em reforço a
um direito adquirido pela legalidade do ato do registro em cartório de direitos autorais,
o Diário de Pernambuco de 1998, na página Viver, observa que Selma, “mesmo sendo
vitima de constantes denúncias de suas “colegas”, tratou com mais profissionalismo o
assunto, registrando em seu nome todas as canções que fez ou que aprendeu ainda
menina, quando era levada pelos pais, para casa de coquistas populares. Músicas como
‘Dá-lhe Manoel” e “A Rolinha”, aprendeu desta época. Para Selma, não adianta
reclamar mais. As acusações, para ela, partem de pessoas que não conseguiram
alcançar a fama, e a conseqüente melhora de renda. “as músicas não são delas, é de
todo mundo, todos podem cantar”, responde.”
81
Acredito que esta problemática seja um reflexo do processo de mercantilização
de práticas tradicionais que oficializou a lógica do domínio público para o que era
produzido por pessoas negras, mestiças e analfabetas, que construíam seu conhecimento
do mundo através de um processo de transmissão oral. O recorte que quero destacar é
que o principal problema não é no potencial de criação de um artista, nem nos critérios
arquitetados de controle e defesa de direitos, mas que toda essa problemática esbarra na
falta de informação dos procedimentos de se fazer valer os direitos, ou o fácil acesso a
estes procedimentos.
Raul Seixas, cantor de rock da cena nacional no Brasil, gravou em 1998 como
de sua autoria a composição Lua Bonita, que é popular na tradição do Coco de Roda, e
que Ana Lúcia identifica como um Coco de Embolada de mesmo nome, que faz parte de
seu repertório. Ana Lúcia confessa que esta composição foi inspirada numa velha valsa
que traz a mesma seqüência harmônica e melodia. Sendo que a defendida por Ana Lúcia
foi por mim transcrita diretamente de sua interpretação em entrevista, e a de Raul
Seixas, só foi por mim registrada em cifras pelo site cifraclub.com.br
(http://cifraclub.terra.com.br/cifras/raul-seixas/lua-bonita-ghwk-2.html).
É possível compararmos as duas composições e vermos uma variação no texto,
seja uma marca de uma variação das fontes de transmissão oral, ou uma estratégia de
fuga do crime de plagio. De qualquer forma o sistema de defesa de direitos autoral tem
sido conivente com o uso de composições ditas de “Domínio Público” com fins e
interesses de mercado.
82
LUA BONITA - Ana Lúcia
(identificada como uma variante de uma velha valsa)
Lua bonita se tu não fosse casada
Eu preparava uma escada
Para no céu te buscar
Bis Eu ajuntava
O teu frio com meu calor
Pedia a Nosso Senhor
Para no céu te buscar
Lua bonita
És dos dedos os brilhantes
És a pedra preciosa
E do jardim, mais bela flor
Lua bonita
Tem São Jorge que é Guerreiro
Tem as estrelas brilhando
E pede a Deus por todos nós
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Lua Bonita – Raul Seixas - registrada em sua autoria
Tom: A Intro: Dm A Cº Bm Bb7+ A
Na seqüência, apresento transcrição da canção Lua Bonita do repertorio de Ana
Lúcia. Esta composição foi recentemente encaminhada para registro e até o momento
não foi deferida como de sua autoria.
A D A Lua bonita se tu não fosses casada D G Eu preparava uma escada F#7 Bm F#7 Pra ir no céu te buscar Bm7 Se tu colasses E7 A Teu frio com o meu calor F#m Bm Eu pedia a nosso senhor E7 A A7 Pra contigo me casar D E7 C#m Lua bonita me faz aborrecimento F#m Bm Ver São Jorge num jumento E7 A A7 Pisando no teu clarão D Pra que casaste E7 C#m Com um homem tão sisudo F#m Bm Que come, dorme, faz tudo E7 A E7 Dentro do seu coração senhor
A Lua bonita D A Meu São Jorge é teu D G E é por isso que ele vive F#m Bm F#7 Pisando no teu esplendor Bm7 Lua bonita E7 A Se tu ouvisses meus conselhos F#m Bm Vai ouvir, pois sou alheio E7 A A7 Quem te fala é o meu amor D Deixa São Jorge E7 C#m No seu jubaio montado F#7 Bm E vem cá para o meu lado E7 A A7 Pra gente viver sem dor D Deixa São Jorge E7 C#m No seu jubaio montado F#7 Bm E vem cá para o meu lado E7 A Pra gente viver sem dor
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Lua Bonita (interpretação de Ana Lúcia)
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O processo social do Coco de Roda, decorrente da dinâmica que condiz com
interesses da indústria fonográfica, supervaloriza a competência e criação de uns em
detrimento e esquecimento de outros, problema que não tem sido contemplado pelas
Políticas Culturais do Brasil e do Mundo. A questão principal é: como regular e
salvaguardar essa produção? e como identificar as falhas do processo de vigilância e
execução destas políticas?
3.1.8. Valor Econômico, Simbólico e Imaginado
“Eu canto Coco com tanta emoção que sempre fiz de graça. Hoje é que o
pessoal vem aqui e me pede um preço”.
[Ana Lúcia,2004]
Com estas palavras, Ana deixa claro que a dimensão afetiva é central no
desempenho do Coco, além das dimensões religiosa e social. Este grau de afetividade
também está presente entre artistas populares, cuja aprendizagem foi realizada numa
outra relação temporal e espacial distinta da atual. A idéia de brincadeira entre coquistas
vinculados à perspectiva de tradição está pautada numa relação gratuita com o outro,
enquanto a nova idéia de brincadeira está na dimensão do valor de consumo.
Diante da valorização da produção musical de Selma do Coco, veiculada em
rádios e outros meios de comunicação de massa, Ana Lúcia e Dona Jove, viram-se
diante de uma nova tipologia de relação com o evento Coco de Roda. A festa de
devoção e de entretenimento que antes conduzia seus brincantes a dimensões de uma
ligação com a memória, passa de um valor de uso significante de experiências e
identidade, a um valor de troca pela credibilidade de mercado e poder de apropriação e
ascensão social. Este novo quadro traz a tona relações de conflito na vida de Ana Lúcia
e Dona Jove. Esta, hoje falecida, reagia de forma áspera quando a imprensa buscava
suas impressões frente o sucesso de Selma do Coco em 1998, dizendo, em desinteresse
a dar entrevistas: “De que vai me servir isso? Não tenho mais nada hoje e não vou
cantar meus Cocos pra você botar no jornal”. Suas palavras, ao lado das de Ana Lúcia,
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sua companheira de “sambadas de Coco14” condiziam expressivamente, com a revolta
de quem foi esquecida a vida inteira e, depois, viu algumas de suas músicas na boca de
outra cantora.
A complexa teia de relações possível de ser traçada nestas narrativas quanto às
noções de musicalidade, etnicidade, identidade nacional e globalização tornam patente o
plano conflituoso em que artistas populares como Ana Lúcia e Dona Jove estão imersas.
“Eu nunca fiz coco por dinheiro não. Também não sabia que ia cantar para
turistas”, contava Jovelina, que teve realmente uma vida sofrida. Foi empregada
doméstica e costurou para fora, atividade que deixou de exercer por conta de um grave
problema na visão. Como tantos outros coquistas da geração passada, compôs seus
Cocos de forma imediata, descrevendo os fatos em tempo real: “O pensamento aparece,
eu não me inspiro em nada, só conto as coisas que acontecem”(Jovelina,1998).
Hoje, os compositores que se enquadram no modelo de mercado, não podem ou
evitam esse procedimento visto que sua performance deve ter uma regularidade para
que seu público, que se forma distanciado da ocorrência – de maneira virtual, seja pela
internet, registro em áudio e vídeo, ou por intermédio de um perfil divulgado pelas
indústrias de discos e comunicação de massas –, mantenha uma relação de identificação
ideológica, mesmo que impessoal e imparcial aos mecanismos de realização do evento.
Dona Jove lamentava o sucesso de outros, construído com a sua inocência, a
custa de uma vida de dedicação afetiva à brincadeira do Coco. Tudo que ganhou cabia
em cima da sua geladeira, instalada no primeiro cômodo da casa, que também abrigava
uma cama e uma velha máquina de costura.
Ana cita que quando a Prefeitura de Olinda veio à casa de Dona Jove
oferecendo-lhe um troféu em reconhecimento a relevância da sua atividade como
coquista para a cidade de Olinda, Dona Jove respondeu: “ (...) já mandei que
entregassem a Selma, que foi quem ganhou o dinheiro”, e dizia com rancor: “Fiquei
revoltada” (relato de Ana Lúcia em 2004).
14 Sambada de Coco, termo êmico relativo a brincadeira em reunião de classe pobre para divertirem-se, bebendo e dançando, nos finais de semana, ou em datas especiais.
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O Coco de Roda, como manifestação popular, sempre esteve ligado a uma
“brincadeira” e, como tal, nunca ocupou espaço maior na audiência da sociedade
urbana. São raras as publicações disponibilizadas ao público, que tratam do assunto e
isto se explica: a tradição sempre foi passada aos mais novos através dos próprios
cantadores pelo atributo da oralidade, entretanto com o desencaixe de espaço e tempo
advindo da tecnologia, não existe uma circulação democrática eficiente de informações,
ficando fácil o descaso, o esquecimento e a manipulação de interesses. E quanto aos
mais velhos, estes foram substituídos, no papel de transmissão da tradição pelo poder da
máquina de informação de massas.
É difícil saber quem compôs o quê e conseqüentemente fazer valer os direitos de
autor. Diante deste abismo no diálogo entre o oral e o prescritivo, o real e o imaginado,
como também entre a realização em tempo real da atividade expressiva e a
representação da sua imagem nos processo globais de interesse privados, públicos,
políticos e econômicos, nenhum coquista teve oportunidade de se preocupar, ou melhor,
poucos coquistas ainda hoje têm consciência dos procedimentos que regem a dinâmica
da política cultural e de mercado no mundo globalizado.
Ana Lúcia, em desabafo, lembrou quando foi entrevistada por um jornalista em
sua casa sobre seu papel no Coco de Roda. Na altura, teve seu depoimento articulado,
na sua perspectiva, de forma irresponsável (por tê-la prejudicado em seus direitos de
autora) após ter cantado um dos seus Cocos na presença do jornalista, afirmou:
“ dei [cantei] um coco a uma pessoa de um jornal. Pessoas que vem
... da rede Tribuna48 ... Não sei quem é, porque é tanta gente e a
gente não grava né? [não lembra a fisionomia]. Não se sabe mais
quem é! Que vai embora e não vem mais.
Então eu cantei um coco e ela: pá – pá – pá – pá – pá – pá
[escrevendo tudo]. É que esse pessoal é tão sabido, é tão vivo! Que
você ta conversando, e ele ta! E nem olha! [escrevendo tudo sem
olhar para o papel].
48 Rede Tribuna, citada em depoimento por Ana Lúcia, é uma emissora de telecomunicação e rádio difusão
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Ele nem olha. E escreve pelo tato! ...
Quem me disse isso pra mim foi Jovelina, essa que morreu (de gripe)
... , eu prestei atenção, e é mesmo! Ela ... escreve pelo tato. Já ta! [e
quando se percebe já está escrito]
A pessoa que já ta craque nisso né nego? “
(Ana Lúcia, 2004, em entrevista cedida, Olinda)
Ana Lúcia, na seqüência de seu relato, faz menção das conseqüências dessa sua
entrevista cedida à jornalista da Tribuna. Ana, pelo que diz abaixo, não deixou claro se
o repórter era de sexo masculino ou feminino. Talvez estivesse apenas preocupada em
relatar o problema da apropriação indevida de sua composição.
“Aí pronto ... ele escreveu o coco todinho que eu cantei!
Não deu nem duas semana! Selma já tava cantando com ele
registrado.
Ela, colocou no jornal e eu não sei como aconteceu.
Ta vendo?!!
Aí, Dona Jove me disse: Deixa pra lá!”
(Ana Lúcia, 2004, em entrevista cedida, Olinda)
O discurso veiculado através dos meios de comunicação de massas passa a ter
função preponderante na imagem que o público irá ter dos fatos que engendram um
evento. As distâncias geográficas, culturais e ideológicas que ora são unidas pela
tecnologia possibilitam que o imaginário deixe de ter relação com o real, antes
experimentado. A tendência atual é de se apropriar de uma imagem descomprometida
com um conteúdo significativo, resultando na liberdade de uso da imagem conforme as
perspectivas e lógica de apropriação.
Quando as primeiras noticias sobre Selma do Coco começaram a surgir nos
principais jornais do sul do Brasil, a impressão que passava era de que Selma era a
única representante do gênero. Seu discurso, suas atitudes, sua ideologia, passaram a ser
o referencial imaginável do fazer Coco de Roda e do ser nordestino. Imagens como esta
institui o que se conceberá do lugar, passando a ter uma conotação influente na política
e economia nacionais.
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Esta nova protagonista que ora surge é Selma Ferreira da Silva, a Selma do
Coco, pernambucana de Vitória de Santo Antão, que viveu no interior até os dez anos,
quando travou contato com as festas juninas e com o Coco de Roda. Fincando
residência no Recife, casou-se, teve 14 filhos e, viúva aos 30 anos, foi viver em Olinda
onde trabalhava como vendedora de tapioca, e nos horários de folga promovia rodas de
coco em seu quintal, que ganharam fama e a fizeram-na viajar para se apresentar em
eventos e casas de espetáculos. Em 1996, após participar como convidada no festival de
rock produzido em Pernambuco para bandas estreantes – o Abril Pro Rock –, na
qualidade de um reforço ao argumento ideológico de Chico Science de uma música que
contemplava dimensões culturais com o passado, Selma teve espaço crescente na cena
musical a partir do público jovem. Fato que reverteu sua atividade lúdica do Coco em
atividade comercial. Sua performance como coquista passou a ser avaliada pela
extensão de compromissos em sua agenda em espaços nacionais e internacionais em
diversos shows. Em 1998 a editora de discos Paradoxx lançou o disco Minha História,
também lançado na Europa.
Diante as acusações de apropriação e registro de canções de outros coquistas,
Selma se defende na pagina Viver do Jornal Diário de Pernambuco em 1998, dizendo:
“Musica popular todo mundo pode cantar, né? Isso é política, coisa de gente que está
com raiva porque não conseguiu o que eu consegui”
E seu segundo trabalho ‘Jangadeiro’, Selma do Coco impõe um nome no
mercado de discos e shows, conforme matéria de Jamerson de Lima, veiculada em 2001
no site Le Mangue (http://www.lemangue.com.br/arquivo/setembro/normal/cds02.html#).
SELMA DO COCO – CD Jangadeiro
(Independente, Preço Médio R$ 18,00 )
Dona Selma para o mundo
O que podem as pessoas esperar de
um disco de Dona Selma do Coco? Aquela
boa batida insistente, o coral, letras fáceis de cantar, músicas sobre
Imagem 17. Selma do Coco. Imagem veiculada no Site Le Mangue acessada no Google.com em 17.05.2006
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pássaros e a marca registrada da cantora: o seu grito "rá rá!". Dessa
forma, de maneira alguma os apreciadores do gênero irão se
decepcionar com Jangadeiro, o novo disco da Dona Selma que,
talvez pensando em pegar carona no sucesso do CD anterior, incluiu
neste uma "Rolinha 2".
Infelizmente, a produção precária de Jangadeiro não
consegue captar a energia que a cantora e sua banda transmite ao
vivo nos shows. Selma do Coco, hoje em dia, é conhecida
mundialmente e já se apresentou em diversos festivais da Europa.
Pensando neste CD também como produto para exportação, ele deixa
a desejar na questão estética. A direção artística foi na contramão do
design das capas de CDs dos atuais artistas pernambucanos e deixou
a arte gráfica de Jangadeiro parecendo trabalho de amador.
Amadora também parece a gravação, que em alguns
momentos deixa a voz da cantora ser sufocada pelos vocais de apoio
de sua família. Mas isso não chega a ofuscar o talento de Dona
Selma, que tanto ao vivo, como em CD sabe fazer aquilo que faz
melhor : colocar todos para dançar.
(Jamerson de Lima, veiculada em 2001 no site Le Mangue, acessado em 15.05.2006)
Atualmente, entre os coquistas, percebe-se uma nova tendência que dinamiza as
relações e interesses entre o ator desta atividade expressiva e o processo de sua
articulação. A mudança revela-se a nível do caráter afetivo do fazer Coco que cede
espaço a questão financeira que predomina na atuação artística do coquista.
Esta afirmação revela o caráter contraditório desta tendência frente percursos
como os de Ana Lúcia. Deixa-se de fazer a festa só por não obter ou não se ter
perspectiva de algum lucro financeiro. Existem alguns pólos de eventos patrocinados
através de política de incentivo a cultura que em períodos cíclicos de festas efervescem
as expectativas de uma realização financeira no campo profissional. O pescador, a
lavadeira de roupas, a domestica, o balconista de loja, o pedreiro, dentre outros
indivíduos que hoje, classificáveis como portadores do saber cultural, buscam fugir da
realidade dura de suas funções laborais de infra-estrutura da maquina urbana,
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rebuscando suas memórias musicais na expectativa de serem fisgados por um bom
produtor artístico.
Ainda na mesma matéria, o Diário de Pernambuco (1998) destacou a
repercussão do sucesso na vida de Selma do Coco: “Desde então, a agenda está sempre
lotada. Na ultima quinta-feira, ela viajou com filho e empresário Jose Ferreira Filho,
mais os 10 componentes de sua banda, incluindo netos e sobrinhos. Foi ao primeiro
show em São Paulo e, de la, seguiria para o Rio de Janeiro e Brasília. De volta ao
Nordeste, já tem apresentação acertada em Natal, Fortaleza, Petrolina e Garanhuns.
“minha vida mudou muito, antes era aquela vida cansada, sem um tostão, hoje eu estou
terminando minha casa para meu filho e netos, e ta tudo bem , graças a Deus”, diz.
As expectativas são irradiadas em vários canais de possível resolução. O jovem
que se vê num fatídico futuro de pobreza, deixa de lado o mundo cotidiano de seus pais
e avós, ou busca nestes, em seu discurso e prática, uma solução ao desejo de inclusão e
ascensão social. Neste sentido a memória dos mais velhos, que convergem para uma
identidade de pernambucanidade e multiculturalidade, que hoje se articula em discursos
da política cultural, supre as esperanças de conquistas por espaços via tradição. Os
estudos acadêmicos passam a ser tomados cuidadosamente como mecanismo de
elevação de status individual que se reverte para a comunidade. Assim o coquista
residente no Amaro Branco, dá ao lugar um valor potencial, além de uma ferramenta de
descoberta oficial da identidade.
3.1.9. Experiência e Aprendizagem em Campo
Quando me apresentei para Ana Lúcia como pesquisador do Coco feito por ela,
passei em sua lógica à qualidade de instrumento do local para ascensão no global. É
sabido por todos que os resultados da edição de um estudo desta amplitude valoriza o
grupo. Surgindo perguntas como: “O que você vai fazer com isso?”, ou “O que vai
mudar em minha vida ser pesquisada?”
A dinâmica social, por si só, me deu o peso da responsabilidade de ser um porta-
voz de uma verdade particular, porque as impressões desse registro advêm de
92
perspectivas de pessoas que buscavam em mim a solução de suas vidas. Daí eu me
questionar e fazer deste questionamento um ato público aos coquistas, sempre que
estava com o microfone ou a caderneta em mãos.
Demonstrando minha atração pelo saber transmitido exclusivamente pela
oralidade assente na memória de cada detentor da tradição do Coco de Roda, me engajei
ao grupo de Ana Lucia no carnaval de 2004, na qualidade de percussionista. Foram dias
de entrevistas, conversas, aprendizagem, e encontros informais com os integrantes do
seu grupo que se confundiam com os vizinhos que veiculavam pela casa de Ana. O
relacionamento tomava o rumo de uma informalidade em conversas cruzadas e
animadas na qual lembravam fatos emocionantes de cada apresentação. Os músicos
muitas das vezes não se conheciam, visto a constante ausência de um músico em função
de outros compromissos que surgiam paralelamente aos ensaios e apresentações do
grupo de Coco de Ana Lúcia. O mais assíduo era seu irmão Vero que, com ar simples e
acanhado, desempenhava magnificamente o bombo.
Muitas vezes eu, tomado pela minha experiência como músico profissional,
achava que sua performance estava muito limitada. Mas ele estava ali, interagindo
muito bem com os outros músicos e com a interpretação de Ana, o que me levou a
reconhecer sua qualidade. Sempre muito bem entrosado e tranqüilo, transmitia aos
demais do grupo uma segurança tremenda, além de propiciar a Ana uma desenvoltura
muito boa durante a apresentação do Coco. Minha opinião crítica a seu desempenho foi
desfeita a partir da altura em que tive oportunidade de tomar o lugar dele no bombo.
Tive grande surpresa em reconhecer o que já havia concluído sobre as dificuldades e
responsabilidade de manter a estrutura rítmica e articular simultaneamente acentos
contramétricos próprios do padrão rítmico do Coco.
A principal função diferenciadora no Coco, junto ao mineiro (ou ganzá), está no
bombo bem articulado. De fato, existem elementos a serem preservados no desempenho
do bombo que um músico não informado poderia tomar como cuidados banais e
supérfluos. A responsabilidade se amplia quando estamos trabalhando com músicos
nativos do gênero que guardam críticas mais relevantes e respeitáveis dessa prática.
93
Imagem 18. Ana Lúcia e o grupo Coco de Raiz . Imagem acessada em 30.09.2006 Veiculada no Site www.musicadepernambuco.gov.br.
3.1.10. Vivência do quotidiano de um grupo de Coco de Roda
Nas linhas que se seguem relato minha experiência de imersão no cotidiano
prático vivido por Ana Lúcia em
uma das oportunidades que tive de
dialogar sonoramente com o Coco
performado por Ana. Esta vivência
se deu nos preparativos para atuar
em palco, em Fevereiro de 2004,
como integrante do seu grupo Coco
de Raíz. Ciente do meu interesse de
aprendizagem por experimentação,
Ana Lúcia que normalmente não
trabalha com ‘caixa-clara’ (snare
drum) ou outro instrumento dessa categoria em seu conjunto percussivo, gentilmente
permitiu que eu me integrasse junto ao seu grupo musical tocando este instrumento. De
modo geral, os grupos de Coco não fazem distinção entre o instrumento que deve ser
utilizado, pois na história da música popular no Nordeste do Brasil, visto a precariedade
de instrumentos à mão dos músicos, todo e qualquer objeto que produza som pode ser
utilizado. O principal fator de classificação de um objeto como instrumento musical está
no timbre e respectiva aplicabilidade funcional. Desta forma qualquer instrumento por
mim tocado, desde que não quebrasse a coerência rítmica e combinação de timbres do
conjunto seria possível. Escolhi a caixa-clara por esta não estar presente no conjunto,
além do que este instrumento pode dobrar as funções: do ganzá, em sua condução
rítmica e acentuação no contratempo, do pandeiro e mele, pela dinâmica contramétrica
articulada em timbres médio, grave e agudo, e do bombo que em acentuações
deslocadas sobre o modelo 3+3+2 ou 2+3+3, encaixam na expressão da dança e do
canto.
Após ensaio, ficou marcada uma seqüência de 2 apresentações no final da tarde
de uma terça-feira de Carnaval. Cheguei à casa de Ana às 16 horas, conforme o
combinado e só se encontravam Vero, Totoca, Vera, e Margarida. Estavam esperando
uma kombi (pequeno autocarro) que seu produtor conseguira. Só naquele momento é
que eu soube onde iríamos tocar. Deveríamos ser levados de kombi até um largo do
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Vasco da Gama, bairro suburbano de Recife, e de lá seguiríamos para o centro de Recife
– bairro do Recife Antigo – no Pólo da Torre Malakoff. Porém estávamos sem a
presença de um pandeirista que não havia chegado até o momento, e de certo não seria
boa idéia esperar, visto que tínhamos que urgentemente descer do morro do Amaro
Branco a procura de uma nova condução, pois a kombi contratada por Sérgio Bezerra, o
produtor de Ana Lúcia, não chegara no horário previsto.
Aquele dia estava prometendo ser muito difícil. Após todos os outros músicos
que moravam nas redondezas chegarem, batemos em retirada a procura de uma kombi
que nos levasse ao palco do bairro Vasco da Gama. No caminho, apesar da voz de
encorajamento de Margarida, Ana lamentava, muito aflita, a falta do jovem pandeirista,
que eu não conheci em nenhuma vez que ensaiei com o grupo “Coco de Raiz”.
Descendo a ladeira, encontramos na Praça do Amaro Branco, um conhecido de
Vero esculpindo um ‘birro’ de ‘jenipapo’49. Até hoje não sei o nome dele, o dia estava
muito corrido, e tudo muito tenso. Ana Lúcia não deixava de lamentar o descuido e o
desinteresse de seu produtor, que por diversas vezes deixou seu grupo em situações
difíceis.
O percussionista já era um homem maduro, em idade que me parecia na faixa
dos 35 anos – se bem que as pessoas mais humildes da população têm uma aparência
muito juvenil, o que poderia me fazer supor que sua idade fosse bem mais avançada.
Ana Lúcia não o conhecia, mas como não havia tempo para escolher, Ana disse: “E aí?
Tu sabe tocar mesmo? Então bora!” . Ele nem pensou duas vezes e se juntou ao grupo,
ali na hora, sem precisar desperdiçar tempo algum. Pegou uma camisa que estava de
lado num banco e jogou sobre o ombro direito e se juntou ao grupo que estava descendo
para a esquina do hospital Tri-Centenário. Pacientemente, ele pegou seu canivete e o
pedaço de jenipapo de uns 20 centímetros no qual esculpia o birro, e seguiu ao meu
lado. Eu pouco falava e só observava o desenrolar dos fatos. Enquanto Ana, de ouvidos
atentos, ia apoiada pelos conselhos de suas cantoras Vera e Totoca. Margarida, como
49 O jenipapo é o fruto do jenipapeiro, uma baga subglobosa que geralmente é de cor amarelo-pardacenta, com polpa aromática, comestível, de que se fazem compotas, doces, xaropes, bebida refrigerante, bebida vinosa e licor. Também de uso freqüente de sua madeira na confecção de artesanato, aros de tambores e baquetas(birro).
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que pouco se importando com tais dificuldades, já ia cantando e puxando conversas
animadas com todos.
Na minha experiência como músico de orquestra de frevo e bloco, este tipo de
situação era normal. Sempre há um imprevisto e o melhor remédio é manter o bom
humor diante das adversidades. Entretanto o problema de Ana era o seu produtor que,
em suas palavras, nunca acompanhava nem assessorava suas apresentações, apenas
conseguia eventos e telefonava para Ana dizendo o local e a hora. Ana então me
perguntou: Fernando! Você já viu uma coisa dessas? Um produtor pode fazer isso?
Toda vez Sergio é assim comigo! Eu me pronunciei dizendo que este comportamento
não era comum a um profissional de produção e questionei a razão que levou Ana a não
procurar outro produtor. Ana então respondeu que tinha medo do que ele poderia fazer
se ela deixasse de trabalhar com ele, pois ela achara que assinou algo num papel e
estava com medo das conseqüências de sua atitude.
Procurei saber o contexto de sua ligação com Sergio Bezerra e ela, num primeiro
momento, procurou desfazer alguma má impressão de Sergio, pois ele fora até hoje o
único que tentou ajuda-la. Neste momento percebi um contexto em que a relação estava
selada por uma gratidão unilateral e não por um interesse profissional do produtor. No
meu entender, Sergio Bezerra não guarda nenhum interesse em colocar Ana no
mercado, apenas se satisfazendo em tê-la disponível para contratos aparentemente
ambivalentes e comprometedores, visto Ana revelar que ele não costumava pagar como
prometido. Esta conclusão me faz supor que, ou Sergio não tem uma boa visão do
produto que vende, ou não tem uma visão da demanda de mercado.
Atualmente as manifestações que remetem alguma ligação com a tradição ou as
que dela advenham estão sendo cortejadas para diversos fins lucrativos. A
administração pública e empresas privadas usam um discurso que evoca ‘cultura’,
‘identidade’ e ‘tradição’ em proveito de seus interesses privados. A esse respeito, é
comum a apropriação do fazer cultural para sustentar ideologias transversais e nem
sempre em favor às concepções ideologias que motivam gêneros de tradição como o
Coco de Roda. Os músicos de outras localidades ou de outra esfera de ação musical vêm
beber da tradição pernambucana para incrementar sua performance e produção criativa.
O mercado do turismo tem nas expressões artísticas um elemento a mais de exploração.
96
As políticas culturais formam um público certo para o consumo de idéias de tradição e
identidade local.
Ana Lúcia afirma que Sergio se auto-intitula produtor de Alceu Valença, um
artista de renome internacional, o que torna pouco provável que ele, sendo um
profissional da produção, não tenha visão suficiente do mercado de espetáculos.
Apesar de toda essa reflexão, estávamos lá em pé, na esquina do Hospital Tri-
Centenário de Olinda, em plena terça-feira de carnaval torcendo para que surgisse uma
kombi de aluguel para irmos ao palanque da Prefeitura no bairro do Vasco da Gama.
Éramos 9 pessoas e quando a Kombi foi locada nos organizamos desconfortavelmente e
partimos para a casa de Joás que morava mais abaixo no Bairro Novo. Lá, Joás e um
amigo completaram a tripulação: Ana Lúcia, cinco cantoras e cinco músicos (bombo,
melê, mineiro, pandeiro, e caixa). Apesar de toda tensão, começamos a tocar o Coco
dentro do carro, mesmo sem muito espaço disponível. O toque foi contagiando todos os
componentes e as coquistas de Ana que estavam na frente da kombi. E de imediato
começaram a cantar. Apenas Ana estava silenciosa e desiludida. Eu sabia que ela estava
temendo não conseguir chegar em tempo no palco e ainda mais do fato de que teria que
pagar o motorista do seu bolso. Por toda a viagem ‘o Coco’ (a brincadeira do coco) não
parou, o que foi muito proveitoso para mim como músico e etnógrafo. Entretanto, após
rodarmos horas e horas, por entre ruas estreitas e desconhecidas, confesso que não mais
sabia onde estava, vindo a perceber que nem mesmo o motorista sabia em que lugar do
Vasco da Gama estávamos. Ao chegarmos no local indicado por Sergio através de
telefonema, fomos surpreendidos em saber que não havia nem evento nem palco
armado no local indicado. Tudo foi muito frustrante. Ana, neste momento,
extremamente confiante e perseverante resolveu procurar outro palanque nas
proximidades. Ao encontramos o palanque da Prefeitura, constatamos que Sérgio nos
dera informação errada do local. Já estávamos atrasados duas horas e a festa ainda não
havia iniciado. Entretanto a segunda decepção foi que o show de Ana, mesmo agendado
naquele palco, foi substituído pelo Maracatu Nação Pernambuco que não estava
agendado para aquele espaço e horário. Diante dos fatos, Ana resolveu assinar sua
presença na ata de coordenação do palco e ficamos assistindo o show do grupo de
maracatu estilizado. O que restou foi irmos ao outro palco agendado por Sérgio, na
Torre Malakoff, no centro do Recife. Lá tocamos já com o dia amanhecendo para uma
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platéia desinteressada em escutar um Coco de Roda, visto este espaço ter uma demanda
ao frevo de bloco, e shows em palco de grupos famosos na mídia televisiva e
radiofônica.
3.1.11. Direitos do Autor e Oportunidades de Mercado
Tive acesso a um grande número de composições que Ana guardava num saco,
dentro de uma caixa no seu quarto. Ela não sabia se suas músicas que foram gravadas
em disco durante um show realizado em Olinda foram registradas como de autoria de
Sérgio ou dela. Na verdade, ela estava coberta de desconfiança, e receio de ser
enganada. Para diminuir sua aflição resolvi solicitar via internet, em seu nome, sob sua
autorização, um Relatório Analítico de Titular Autoral de suas obras junto a União
Brasileira de Compositores – UBC.
De: <[email protected]> Enviado: terça-feira, 18 de maio de 2004 23:02:14 Para: <[email protected]> Cc: <[email protected]> Assunto: Verificação de registro de autoria de composição Prezado Senhor, Venho através deste solicitar com urgência relação das composições de Ana Lúcia Nunes da Silva portadora de identidade nº. 1708287 SSP/PE, CPF nº. 256.594.304-06; com Data de Admissão na UBC/Recife em 05/11/2002 como compositora/interprete/musica. Com fins de verificação, para rescisão de contrato com produtora pernambucana que se diz co-autora em composições registradas junto a esta instituição. Atenciosamente, Ana Lucia Nunes da Silva Endereço eletrônico para contato: http://sea1fd.sea1.hotmail.msn.com/cgi-bin/compose?mailto=1&msg=MSG1084921164.26&start=526130&len=3794&src=&type=x&to=moinhofm%40hotmail%2ecom&cc=&bcc=&subject=&body=&curmbox=F000000001&a=f0e07ebf5240b712004db3088da2d84f de Fernando Antonio Ferreira de Souza
Esta iniciativa foi respondida pela UBC, na quarta-
feira, 19 de maio de 2004 21:06:22 (dia seguinte a solicitação), por via eletrônica
assinada por Antonio Paulo Baptista da Gerência de Atendimento ao Associado, na qual
se prontificou, [sob endereço eletrônico <[email protected]>] a atender a respectiva
solicitação. Fazendo constar em anexo, a relação das composições registradas em nome
de Ana Lúcia Nunes da Silva, conforme redação que se segue:
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Prezada Ana Lucia, Anexo você encontrará a relação de suas obras conforme solicitado. Estamos à sua disposição. Atenciosamente, Antonio Paulo Baptista
Gerência de atendimento ao associado
As 13 (treze) músicas em questão, aqui dispostas em ordem alfabéticas, são:
OBRA(S) CÓDIGO ECAD CÓDIGO ISWC ADEUS MEU POVO 01041410 T0391445081 AZULAO 01041408 T0391445092 BAIANA 01041344 T0391445149 BOA NOITE 01041316 T0391445207 CASA DO FAZENDEIRO 01041402 T0391445116 DO OUTRO LADO DA SERRA 01041397 T0391445138 ESTRELA (A) 01041407 T0391445105 ITAPISSUMA 01041400 T0391445127 MEU LIRIO 01041330 T0391445172 MEU ROUXINOL 01041327 T0391445183 MORENA BONITA 01041320 T0391445194 QUEM TE MANDOU 01041331 T0391445161 TODO MUNDO TEM UM AMOR 01041333 T0391445150
Para o alívio de Ana Lúcia, as 13 (treze) músicas que constavam em seu
repertório, e que foram gravadas no CD ao vivo “Ana Lúcia e as Coquistas do Amaro
Branco” em 2003, produzidas por Sérgio Bezerra quando em show num palanque
armado no bairro de Olinda, estavam registradas em seu nome. Esta informação trazia à
tona a questão dos critérios e medidas que determinam e elegem o grau de honestidade e
profissionalismo dos agentes culturais na construção de uma relação de confiança ou de
desconfiança, como no caso de Ana Lúcia e seu produtor. O que fez Ana Lúcia perder a
segurança no profissionalismo do seu produtor? Quais garantias são necessárias para
que contratos dessa natureza se concretizem sob atributo de credibilidade para as partes
(criador, produtor artístico, patrocinador e coordenador de eventos, e consumidor)?
99
A credibilidade do profissionalismo de seu produtor estava abalada ante o
processo de ascensão de outros coquistas na mídia. A imprensa escrita e televisiva
destacava personagens que Ana conhecia e que, em sua concepção, não eram detentoras
dos créditos de competência a elas estabelecidas. Ana Lúcia tomava em comparação o
percurso artístico e o poder de pertença de bens materiais adquiridos por estes artistas
como avaliador de um sucesso advindo exclusivamente da atividade de seus produtores.
Esta perspectiva é redutora do critério “competência e desempenho” contido na arte e
seu criador, pois deposita unicamente sobre a ação do produtor todos os créditos
alcançados. Particularmente, Ana reclama que estes artistas são aproveitadores dos
espaços abertos pelo mercado de música popular e que se valem do saber de ‘outros’
que não conhecem os meios de promover seu saber artístico.
Ana Lúcia, que estava muito ansiosa pela confirmação de sua autoria, após o
sucesso de minha iniciativa passou a demonstrar bastante confiança em mim, revelando
o desejo de registrar outras músicas que estavam escondidas, de medo que outros
roubassem composições suas e outras que a ela seus mestres haviam confiado.
Consciente da sua expectativa em meu compromisso com seus interesses, solicitei que
Ana Lúcia escolhesse as composições que achasse conveniente registrar sob minha
ajuda. Em seguida, cataloguei cada uma das 58 composições que ela confiou me
apresentar, e orientei cada passo até seu registro efetivo junto a União Brasileira de
Compositores. Estas composições estavam guardadas há anos, desde que através de um
artigo de um repórter, outras pessoas registraram suas músicas e as de Dona Jove em
anos anteriores. Redigi a seguinte apresentação de Ana Lúcia no compêndio das
transcrições das suas composições registradas sob título de “COCOS DE RAÍZ!!!
‘Composições de Coco de Rebate & Coco de Embolada’”, na qual destaquei segundo
sua expectativa, sua experiência, influência, origem, e contexto de realização do Coco
de Roda em sua participação, além de sua inscrição no Ecad da UBC em categoria de
Autora.
100
Minha aproximação aos seus problemas e anseios me fez assumir, por questões
sociais de cunho ético e moral, o papel de ação em prol dos interesses destes artistas,
tomando como modelo e respaldo nesta ação os exemplos bem sucedidos e ilibados, no
âmbito da etnomusicologia, dos autores Steve Feld (1982) e Anthony Seeger (1987),
que trabalharam em defesa das comunidades estudadas. Cito também que a questão
ética sempre esteve na pauta desta pesquisa, e na minha consciência como
etnomusicólogo desde as valiosas orientações de Carlos Sandroni quando no curso de
especialização lato sensu em etnomusicologia realizado nos anos de 2003 e 2004. Com
base nesta premissa de uma ação ética junto a estes artistas, busquei orientá-los no que
estava em meu alcance, na intenção de capacitá-los a enfrentar e auto-gerir sua atividade
frente a complexidade dos processos globais a que estavam propensos a ingressar.
Neste sentido procurei apresentá-los a produtores musicais e organizadores de eventos,
instruí-los como registrar e garantir seus direitos, indicar-lhes os órgãos competentes da
administração pública e incentivo a cultura, e diante das evidências da necessidade de
um registro em áudio para que seu trabalho estivesse compatível com as exigências dos
processos de seleção no mercado e política cultural das Cidades de Recife e Olinda, no
ano de 2004, coordenei a possibilidade de Ana e o grupo Coco de Raiz gravarem um
CD Demo sob minha produção musical em estúdio. A idéia era registrarmos em áudio
suas composições, por mim catalogadas, em três CD’s, reservando-lhe todos os direitos
autorais de criação, arranjo e gestão jurídico-administrativa deste produto (a mim não
cabendo nenhum mérito legal sobre as composições e direitos de reprodução). Minha
perspectiva era que estes CD's dariam um sustentáculo a sua carreira durante três anos.
Ana Lúcia Nunes da Silva _____________________________________________________________________
Uma das mais famosas e conhecidas coquistas da atualidade, desde menina participa das brincadeiras juninas nos arredores de Olinda e Recife, foi iniciada na arte de cantar e improvisar coco por coquistas do nível de Dona Jove, Jovelina Gomes Correia (1915-2001), Zé Aruá, Maria Belém, Benedito Grande do Pandeiro, Cassimiro de Banco, dentre outros Mestres que fizeram historia nos cortejos, acorda-povo, procissão, e demais brincadeiras que em comemoração a São João Batista se estendiam até a festa de Sant’Ana. Há 28 anos fundou o Grupo Coco de Raíz. Hoje como artista popular evidencia toda genialidade e autenticidade de uma das mais puras tradições de origem popular da musica em Pernambuco. _______________________________________________________
Ecad – UBC-União Brasileira de Compositores
Titular 333207 Categoria Autor
101
Seriam lançados um CD em cada ano. Ana e todos do Grupo ficaram em êxtase, visto a
dificuldade de encontrar algum apoio neste sentido. Porém, devido ao alto custo desse
projeto, só conseguimos registrar em áudio cinco faixas. A matriz ficou com Ana Lucia
e uma cópia, após seu consentimento, ficou comigo na condição de que não a usaria
para outro fim que não fosse estritamente à documentação de minha investigação. Hoje
quando estou de visitas em sua casa ela me dá uma atenção especial, na expectativa de
que eu venha a impulsionar sua carreira profissional. Porém, como por ela já é sabido,
não tenho intenção nem interesse de atuar como produtor musical, nem agente ou
consultor de eventos.
Em 2005, Ana Lúcia fez parte do Projeto Coco do Amaro Branco, ao lado de
Ferrugem e Mestre Dédo, dois coquistas de origem no Amaro Branco, que como ela
também almejavam oportunidade de mostrar seu trabalho em CD. Projeto promovido e
coordenado pela cantora e produtora Isa Melo junto ao Funcultura – programa de
incentivo do Estado de Pernambuco.
Ferrugem, com 54 anos, traz em sua experiência o Coco de Embolada,
carpinteiro, marceneiro e marcador, vive atualmente em Recife por motivos
profissionais. Mestre Dedo, aos 59 anos, tem como atividade principal a pesca, sua
experiência está no Coco de Rebate (Coco de Resposta). Sob produção executiva de Isa
Melo e Pedro Rampazzo, este Projeto foi financiado pelo sistema de incentivo a cultura
da Funcultura – Plano Pernambucano de Incentivo à Cultura – Secretaria de Educação e
Cultura do Governo do Estado de Pernambuco.
Este trabalho em estúdio deu a Ana Lúcia mais auto-estima, oportunizando-a
vislumbrar a concretização de uma carreira profissional de coquista. Ainda fala com
receio da sua relação com Sérgio Bezerra. Guarda esperança de encontrar um produtor
que impulsione seu nome e trabalho no mercado de discos e eventos. Suas lamentações
estão ainda focadas nas poucas apresentações em público – representações profissionais
remuneradas –, queixando-se da pouca esperteza de seu produtor. Ana esboçou um
convite para que eu viesse a ser seu produtor, pela atenção e responsabilidade no meu
desempenho em seu benefício, mas sempre sugiro especialistas profissionais nesta
função, que bem mais envolvidos e relacionados no meio midiático e das políticas
culturais de certo lhe trariam resultados mais significantes.
102
Imagem 19. Pombo Roxo cantando em palco. Imagem recuperada de CD independente cedido em 25..09.2005.
O disco Coco do Amaro Branco está tendo boa aceitação entre os coquistas,
elevando o seu nome, o de Mestre Dédo e o de Ferrugem a um reconhecimento de suas
experiências nesta arte musical. Entretanto, como estes dois coquistas, o quotidiano de
Ana Lúcia não mudou, e os seus desempenhos hoje registrados em CD, ao preço de
mercado no valor de R$23,00 (Vinte e Três Reais), estão a serviço de outros artistas que
cantam suas musicas na cena pernambucana e internacional. Em exemplo cito que em
Bruxelas, em Julho de 2005, quando em visita a Radio Panik, fui apresentado a dois
músicos pernambucanos de nomes artístico Guará e Fofão que cantavam cocos de roda
e embolada, e cavalo-marinho. Traziam em seu repertório composições de Mestre Dedo
e de Ferrugem que constam no CD Coco do Amaro Branco – ocasião esta em que me
revelaram os respectivos autores.
3.2.Severino Pombo Roxo
3.2.1. Dimensão Familiar e o Coco
Filho de Epifânio Lourenço Correia, funcionário público do Município de
Olinda, e de Josefa Maria da Conceição, Severino José da Silva nasceu na Praia dos
Milagres, em Olinda, Pernambuco, em 21/06/1951. Teve uma infância difícil. Suas
condições de vida lhe traziam imensos problemas de saúde. Muito pobre, como muitas
crianças das zonas marginais da Região Metropolitana do Recife, pouco recursos tinha
para suprir as necessidades de alimentação. Seus pais saiam na busca de trabalho que
lhe suprisse as condições mínimas de alimentação, deixando-o só com os irmãos.
Severino se queixa de que andava descalço, e não teve acesso à escola ou melhores
oportunidades de vida. Como outras crianças do lugar andava pelos becos brincando de
bola-de-gude, futebol, papagaio (pipa) e pião, além de objetos encontrados no lixo que
tomavam nova forma e função de brinquedos no imaginário infantil.
103
Suas impressões, experiências e expectativas tornam patente a carga emotiva que
move as relações do homem Severino José em sua dimensão familiar e relações com o
espaço.
Tive uma vida muito sofrida. Passei fome, minha mãe vendia água de ganho, pegava marisco, cozinhava na lenha, morávamos em barracos de tábua com piso também de taboa.”
[Pombo Roxo - 2005]
Seu pai é um marco em sua vida, pois a ele Severino sempre faz referências, seja
pela sua habilidade como coquista, seja pelo reconhecimento que, em sua concepção,
seu pai teve como funcionário público. Esta motivação é uma dominante no seu
percurso de vida, um modelo ao qual busca realizar ou completar.
Num reforço ao elo que liga o coquista e compositor Severino Pombo Roxo a
seu pai, ele afirma sua participação na vida do seu pai como também a participação do
seu pai no mundo por ele concebido: “Meu pai trabalhava na antiga Trame, que hoje se
chama Prefeitura de Olinda, na Rua Souto do Mon – Varadouro. A função do meu pai:
eletricista. E eu como menino ajudava ele a botar óleo diesel no motor, para gerar
energia pr’a Olinda, que na época os postes eram de madeira. Com o bom desempenho
trabalhístico do meu genitor, o Prefeito da época deu-lhe um ‘alto cargo’ como ‘Chefe
dos Eletricistas’. Aí então as coisas melhoraram para minha família. É que eu estudava
de mão-em-mão na minha comunidade, passei a estudar particular na Bica do Sr. São
Pedro com a professoura conhecida como ‘Dona Glorinha’. Aí a minha vida foi em
frente. Estudei no Colégio Carneiro Leão Recife, no Sigismundo Gonçalves. Me formei
no Atlântico em datilografia”, estudei em um grupo [escolar] em Salgadinho, lugar
onde também morei, na rua Cláudio Nigro nº 260. Tomei conta de Chafariz pra meu
pai, nas criações de animais; eram de pato, ganço, porco, cabra, bode, paturis, vaca,
cachorro(vira-lata), cágado, cobra, jumento e cavalo. Meus pais tiveram uma
carvoaria, trazendo caminhão, e mais caminhão de Gravatá, de Bezerros e do Sertão.
Possuíram carroça d’água pra tirar a minha mãe da rua com a lata d’água. Era uma
Charrete. Me formei de Rádio técnico, sou eletricista montador, motorista, pedreiro,
apanhador de papel. Atualmente, em pleno ano 2004, atuo como cantor, composito e
percussionista. Tenho um repertório com 318 músicas registradas pelo direito autoral
em nome de Severino Pombo Roxo.”
104
(Conteúdo do relato biográfico, escrito a próprio punho no ano 2005)
Na continuidade de seu relato Pombo Roxo revela que seu pai abandonara o lar,
deixando para ele e sua mãe a obrigação de sustento familiar.
“Na época minha mãe já tava separada de meu pai. Meu pai foi embora com
outra. Minha mãe teve que sustentar o batente. E eu como o mais velho, caí no
mundo. (...) não tinha leite [alimento] e minha mãe dava a mim era caldo de
marisco pegado na foice.”
(Continuação do relato biográfico, 2005)
Neste momento seu tom de voz se mostrou emocionado. Pombo Roxo, respirou
fundo e se referindo aos sacrifícios para ter alimento continuou: “Que ... era tão pouco
na época, que não dava pra dar de comer a família, e minha mãe .. tinha que se prosti
... se prostituir! Pra poder ... é ... é ... é .. acrescentar a responsabilidade ...“.
De imediato fiquei atônito com os fatos relatados, e perguntei por seu pai,
levando-o a abrir suas feridas na minha frente, eu, um estranho, sem vínculos afetivos
com suas experiências, que pouco ou nada poderia dar-lhe um apoio ou mudar sua
realidade, se quer uma expressão que lhe suprimisse a dor.
O elo familiar está presente nas suas perspectivas passadas, presentes e futuras. E
nesta dimensão de envolvimento Severino Pombo Roxo constrói seu perfil de homem,
filho, esposo e pai. Pouco falou de seus irmãos e de como tem sido seu relacionamento
com eles, deixando patente que a diversidade de suas vidas impulsionou cada irmão a
seguir seu caminho. Sua vida esta na dimensão de sua esposa e seus filhos. Sua
motivação está depositada em sua função de coquista, na qual canaliza sua criatividade
e expectativas de um futuro melhor. Sua obrigação está no plano religioso que, como
zelador de santo, guarda devoção a Orixás e espíritos de Mestres. Sua casa é seu
universo de relações e o Coco de Roda, ou como ele designa Samba de Coco de Roda, é
seu plano de ligação e relações com o mundo global.
105
3.2.2. Relações com o Lugar
Seu relato revela fortes relações construídas entre o lugar e as dificuldades e
privações experimentadas. Sua aprendizagem e exercício nesta prática expressiva se
fundaram sob os significados contidos no cruzamento das imagens do Coco como
fenômeno musical e seu espaço geográfico de realização no cotidiano de sua história de
vida, compondo uma relação estreita articulada entre sua personalidade e competência
musicais (experiência construída por alegrias, realizações, sofrimentos e frustrações).
As carências materiais e limitações financeiras de sua família eram as mesmas
de toda a comunidade da Praia dos Milagres. Barracos em palafitas enfileirados aos
corredores de tábuas que lhe serviam de passagem para fora da comunidade. A falta de
água potável encanada e saneamento revelam a pouca atenção dos órgãos da
administração pública de Olinda.
Severino lembra que as Forças Armadas do Brasil, como a Marinha,
regularmente distribuíam sopa para os moradores da comunidade. Momento oportuno
para ‘tirar o atraso da barriga’, que era preenchida normalmente por mariscos e unha-
de-velho, crustáceos retirados à foice e faca de pedras submersas na lama dos
manguezais e marés da região.
“Ela [sua mãe] Cavava a maré ou a praia, pra pegar o marisco.
Pega o marisco: aquele ... unha-de-véio. Pra poder me alimentar. Eu
tomava caldo, o caldo do marisco porque não tinha leite. Mas na
época o Governo dava muito comê a gente. Nos Órgãos Federais,
nos Órgãos Militares, como Marinha, Aeronáutica e Exército que
tinha uma hora determinada que se juntava aquela pobreza todinha,
e dava a sopa com bastante carne nos ossos que, hoje em dia, em
pleno ano 2005, os ossos é tudo limpo!”
Pombo Roxo lembra que na sua infância, a Praia dos Milagres, como o Morro do
Amaro Branco, eram redutos de uma parte menos privilegiada na sociedade olindense, e
respectivamente para a Região Metropolitana e Estado de Pernambuco. Seus moradores
eram um peso para a máquina administrativa como para os cidadãos de classe elevada,
106
ou para os de classe média e pobres que bem assimilaram o perfil ideal de
sociabilização.
3.2.3. Dimensão Espiritual
Sua história de vida está marcada por uma relação de confissão religiosa aos
espíritos, apesar de se autodenominar católico praticante. Severino conta que quando era
criança sofria de ‘um mau’ que o conduziu para a crença nos espíritos. Ele não podia
ficar contrariado mesmo quando brincava que era tomado de assalto por um espírito
violento. Seus pais descobriram com o passar do tempo a forma de aliviá-lo desse
aparente incômodo. O espírito que tomava sua razão só ia embora após ser aproximado
de pombos, ave que lhe trazia, e a Severino José, uma sensação de paz. Entretanto era
necessário que fosse oferecido ao espírito um pombo, de preferência roxo, como
alimento (assado ou cozido). Severino confessa que este fato, depois de ocorrido, era
sempre seguido de gozação por seus colegas da rua. Seu pai tratou de chamá-lo de
Pombo Roxo, apelido que passou a ser referido pelos mais íntimos e todos os
conhecedores de sua situação.
“Eu sou espírita, de família! Que eh! ... meu pai era espírita, minha mãe era
espírita! Então é uma cultura que nós carregamos no sangue. E eu tinha uma
mediunidade na flor da pele; não podia brigar com os colega, não podia brincar de
pião, brincar de papagaio, ... nada, nada! Pegava ratoeira, pegava muito, muito ... na
gaiola, guaiamum. Eu não podia brigar que logo encostava uma entidade espiritual
com nome de um cabôco, e ... e não queria sair mais. E só saia com uma criação que
meus pais tinha em casa de pombos. Aí meu pai [dizia]: - Olha aí! Taí! O menino
pegou o negócio de novo, ... e não sei o quê. Me levava pr’a casa e dava, dava ...
pegava uma criação daquela de pombo, e ele[o espirito] sempre pedia um pombo roxo.
É que meu pai na época tinha: pombo roxo, pombo branco, pombo ... Ele [o espírito]
mandava pegar um pombo pra comê. Aí comia o pombo! Aí , quando comia o pombo é
que ia embora! Aí registrou! Eu tinha uma faixa de 9 anos , 10 anos por aí assim! Isso
o pessoal gravou. Marcou naquela parte ali. Naquela imagem entre a entidade e o
pombo. Marcou, e todo mundo dizia: Olha o Pombo Roxo! O Pombo Roxo vem vindo!
Pombo Roxo! ...e aí ficou. Os meninos gozavam e ficou! Tu sabe como é menino! E eu
107
chorava e ficava arretado! Por isso hoje em dia, eu tenho ... eu tô com 55 anos e formei
um grupo em 1999 com o meu apelido: Grupo de Samba de Coco de Roda Pombo
Roxo. Registrado no Direito ... na Secretaria da Fazenda. E o Pombo ta aí. Tenho
clipe, tenho 4 CD – demo né?!! Tenho 4 CD não é porque sou rico não! Você sabe
come que é. Tenho 4 CD porque chega as pessoa em cima do meu nome, da mídia, e
diz: Pombo! Eu quero fazer uma matéria com tu e te dou um CD. Te dou dinheiro pra
tu comprar uma bolacha do menino, leite. Aí gravou CD comigo. Gravei um CD com a
Suécia, com a Bélgica, com a Alemanha! Tudo gravado aqui mesmo na minha casa! E
hoje não tenho esses CD por que roubaram, só tenho cópias. Agora to esperando aí
agora, um DVD que eu fiz um DVD. Um documentário com a fábrica de disco Mariola.
Lá na Várzea, e assinei todos os documentos. E eles vão correr com esse DVD pela
Europa. Um documentário do Bairro do Amaro Branco”
3.2.4. Dimensão Social
Na conjuntura atual de realizações em prol de uma ascensão social, a idéia de
sucesso e o reconhecimento num campo de ação está diretamente condicionada a
conquistas financeiras e não a conquistas emotivas provindas da prática do Coco. Esta
tendência repercute num conflito entre o que deve ser conquistado e o ideal a ser
conquistado, respectivamente em sua vida privada. A necessidade de alimento e as
obrigações financeiras e sociais prevalecem sobre o fazer unicamente prazeroso. Cantar
Coco é uma forma de angariar recursos para sobrevivência e manutenção familiar.
Viver unicamente de música é um privilégio de poucos. Daí as decepções e as angústias
de uma atuação profissional.
Este conflito na vida de Severino se materializa nas limitações impostas pelo
meio social em que está imerso desde sua infância – bairro pobre e sem infra-estruturas
à margem do centro urbano, poucos recursos financeiros para realização de projetos de
vida, limitações intelectuais, e precárias condições de saúde que se agravaram após
acidente automobilístico que o impossibilitou de andar.
Severino lembra que diante a necessidade de trabalho que possibilitasse sua
sobrevivência, ele lançava mão do exercício de muitas funções além de coquista. Dentre
108
outras a de eletrotécnico domiciliar, quando aguardava pedidos por telefone para se
dirigir a residências das proximidades. Entretanto, em 23 de Outubro de 1993, foi
solicitado que fosse prestar um serviço no Bairro de Santo Amaro, que fica a
aproximadamente 20 quilômetros de sua residência no Amaro Branco. Como não
possuía dinheiro para o transporte público, freqüentemente utilizava bicicleta como
meio de transporte. A casa solicitante de serviços era de sua mãe de Santo, Mãe Linda
de Campo Grande. Porém, em seu trajeto de volta Severino Pombo Roxo sofrera
acidente automobilístico que afetou sua coluna vertebral, o impossibilitando desde então
a livre locomoção.
Porém, na busca de elaborar um discurso de pensamento positivo, advindo dos
fatos e evitando um desestímulo diante da vida, faz uso de uma descrição firme e sem
rodeios, transmitindo uma sensação de segurança.
“Sofri várias fraturas, lesões, torção e escoriações geral nos meus
dois perônios e lesão geral na medula [conforme laudo do ‘INSS50].
Nesse entre meio, fiquei pagando autônomo (recolhimento de
imposto de segurança nacional para quem não tem carteira
assinada) durante dois anos para poder me aposentar. O motorista
que causou que me atropelou (autor do sinistro) era um ‘Federal’
(funcionário de órgão federal). Ele me deu toda assistência incluindo
dinheiro por semana (indenização) = 30.000 mil cruzeiros”
(Continuação do relato biográfico, 2005)
Este acidente mudou sua vida por completo. Hoje Severino tem como seu espaço
de domínio o quarto, a sala e o terraço, sendo freqüente o encontrarmos do lado de fora
de casa ou no portão da rua olhando o movimento das pessoas. Sua impossibilidade de
fácil locomoção impede que se aproprie de outros cômodos da casa e espaços de
relações antes livremente apropriados e articulados. Em decorrência de seu problema
50 INSS – Instituto Nacional do Seguro Social.
109
físico, fica a depender da atenção de familiares e consideração de amigos e pessoas de
interesses afins.
A relação com sua esposa e filhos é aparentemente equilibrada. Não me foram
explicito quaisquer problemas de relacionamento. Sua esposa sempre ativa e calada
demonstra canalizar suas atenções nas dificuldades financeiras. Seu filho menor sempre
ativo corre pela casa com colegas da vizinhança. Seu filho maior busca trabalho e atua
esporadicamente como ‘batedor de bombo’. É destacada a problemática atual e futura
da família, sua esposa fala em irem embora do bairro do Amaro Branco, mas Pombo
Roxo parece não querer esta solução, apesar de demonstrar sem forças para reagir a
soluções que venham de ordem externa às suas opiniões.
Suas palavras contemplam sua liberdade e iniciativa quando jovem e saudável,
condição que de certo não o limitaria a um campo restrito de relações e espaço de
apropriação. A sua persistência e desinibição estão patentes na sua disposição em se
deslocar para diversos lugares, ainda que de difícil acesso para uma cadeira de rodas.
Sob nome artístico de Pombo Roxo, tem discos gravados e sempre canta Coco
em eventos da redondeza. Claro que suas condições atuais promovem certa exclusão em
vários eventos, pois como ele mesmo sempre fala: “quem não tá presente e não dá as
caras, ninguém sabe, ninguém ouve e ninguém vê”. Porém seu nome ainda está presente
na memória de coquistas e do público mais assíduo ao evento do Coco. O imaginário do
senso comum fervilha em elogios ou críticas a seu potencial musical e a originalidade
de suas criações musicais. Suas composições estão na voz de coquistas que nem sempre
fazem citação a sua pessoa, muitos dizem que ele não é o autor das composições
cantadas, e que por isso não há razão para citá-lo. Outros confessam não ter o habito de
citar o autor, seja por não saber quem é, seja por não ter esse costume, ou seja, pelo
desinteresse de se subjugar a competência e produção de outros.
Sua valorização e auto-estima está na sua produção musical e potencial
interpretativo. Fotos de sua iniciação na umbanda estão estampadas como um troféu nas
paredes da sala, ao lado de imagens igualmente valorizadas de seu grupo de Coco. Na
sala estão equipamentos de áudio aos quais ele direciona a reprodução de seu
desempenho musical, como um marcador de sua trajetória artística. Mesmo estes
110
equipamentos, estando bastante danificados. Entretanto, Severino tem neles um maior
zelo e consideração por materializarem sonoramente sua vida de dedicação e
competência. Seu discurso paradoxalmente destaca que o Coco foi, durante sua vida,
mais um mecanismo de sustento do que um meio de extravasar e vivenciar suas
emoções. Foi cantador em ônibus e bonde, e deixou de aproveitar momentos sociais de
entretenimento e prazer, para a comercialização de sua arte.
Existe no Coco relatado por Severino a idéia de uma família alargada, uma
unidade entre todos os praticantes que, pelo convívio e perspectivas mútuas,
desenvolvem laços através de uma linguagem expressiva comum. Surge entre eles a
afinidade de um interesse mútuo pela rememoração de suas raízes, numa continuidade
temporal de uma tradição, pela comemoração, alegria e festa mobilizada e dinamizada
pela devoção e crença na consagração de espíritos.
Através da relação da sua música com o corpo, percebo um mecanismo para
derrubar barreiras de etiquetas, classe e raça que se apresentam no seu cotidiano. Sua
função na comunidade e perante a família vai além da performance como cantador,
suprindo uma realização como homem, filho, pai, esposo, zelador de santo e
profissional.
Severino Pombo Roxo tentou angariar dinheiro através de trabalho como
eletrotécnico. Consertava rádios, radiolas, mesas de som, televisão, vídeo cassete,
amplificadores, enrolava bobinas de alto falantes, entre outros eletrodomésticos.
Recordo que quando o conheci, deparei com sua bancada repleta de equipamentos
desmontados. Como também de seus assessórios e equipamentos de teste, ferros de
solda, etc., acomodados no canto da bancada e abaixo dela, numa caixa sobre a
prateleira inferior, equipamentos que hoje não vejo mais. Pombo Roxo, após uma séria
complicação de saúde, no período de tempo em que estive em estudos em Lisboa,
demonstrou-me certo desestímulo e perca da persistência em sua sobrevivência através
desse ofício. Seu terraço, transformado em centro técnico de consertos de equipamentos,
não comporta uma imagem ideal hoje construída pelo público consumidor que
atualmente escolhe uma oficina de eletrônicos por um padrão estético e não
obrigatoriamente pela competência do técnico.
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Imagem 20. Pombo Roxo performando sobre o tambor. Imagem recuperada de edição em vídeo gravado em entrevista , 25..09.2005.
Sua disposição continua a mesma, mas o desespero toma conta do seu
semblante, como de sua esposa e cunhada. Costureiras de profissão, elas reclamam a
falta de serviços e o afastamento do emprego do qual o patrão não se prontificou de
pagar-lhes os serviços prestados. Sua cunhada se queixa das dificuldades e falta de
interesse das autoridades à situação de penúria dos moradores de Olinda e arredores do
Amaro Branco que não vêem perspectiva de um emprego, quando afirma: “a
dificuldade de trabalho torna muito difícil, para o jovem, a vida aqui. Pois o
adolescente não tem recursos e terminam se envolvendo com droga, por que não têm
oportunidade. A gente trabalha e não recebe”.
Sua esposa não quis falar e se conteve a ficar do lado de Pombo Roxo calada,
apenas tomando conta do filho menor, que insistia em pegar meu equipamento para
brincar. A realidade cotidiana do artista popular é totalmente adversa daquela da
performance que estimula o imaginário e sublima as expectativas do público assíduo e
simpatizante ao Coco de Roda.
3.2.5. Aprendizagem do Coco e Relações com o Contex to
Sua iniciação ao Coco se deu pela
experiência junto ao seu pai. A idéia de
profissionalismo primeiro foi focalizada
quando seu pai veio direcioná-lo a
aprender mecânica de automóvel em
oficina de um amigo, o que possibilitou
que ele se tornasse motorista de caminhão,
confessando que nunca aprendeu
eficientemente nada sobre mecânica de
automóveis. Ele revela que paralelamente
ao período de prática de mecânico aprendeu a beber, a fumar e freqüentar festas e
cabarés. Seu envolvimento com a brincadeira do Coco de Roda estava restrito a época
de São João. Seus pais é que cantavam e tocavam Coco como convidados o ano inteiro,
em festas de crianças recém-nascidas, festas de casamento, festas de uma parede recém-
construída (parede de taipa ou tábua – e não de tijolos).
112
Nesta época de sua infância, em que seu pai cantava Coco em momentos
festivos, não existiam repertórios pré-definidos. O Coco era dançado no piso batido
(barro) forrado com capim (relva) ou palha de coqueiro. Os tiradores chegavam
ordenadamente ao local do salão onde já estava o zabumbeiro, sempre bem instalado no
canto da parede para aproveitar a acústica da casa, com sua paleta (bacalhau) na mão e a
maceta (birro) na outra.
Seus pais que mantinham uma relação estreita e participativa no Coco o
possibilitaram experienciar o contexto da cantoria. O caráter familiar desta prática foi
uma dominante em sua vida, pois seus pais dispensavam uma relação mais que festiva e
profana com o evento Coco. A relação familiar também estava pautada por uma relação
com a umbanda, como Severino revela em suas lembranças: “Os meus pais eram
espíritas, cantor e percussionista, tinham centro espírita e faziam festa junina em estilo
de samba Coco de Roda. E convidavam cantores anônimos para minha casa – me
lembro bem que tinha ‘Dona Carminha’ de Salgadinho; minha tia e madrinha ‘Mãe
Biata’ de Tia Rosa da Barreira. Tinha ‘Fome’, ‘Gilberto Doido’, ‘Dona Joana/Colina’,
‘Glorinha do Amaro Branco’, ‘Dona Rita’, ‘Dona Raquel’, ‘Dona Margharid’a de
Percilho’, ‘Sr. Nino’, ‘Sapo Nu’ (ou Sapulnur?), ‘Sr. Avinho’, ‘Sr. Carioca do
Padeiro’,’Dona Elza do Bixo’, etc,etc,.”
3.2.7. Representação Social e Performance Musical.
A produção musical é parte de uma superestrutura de relações de classe. A
representação dessa estrutura social, focalizada pelas perspectivas concebidas por
Severino Pombo Roxo, segue na direção das verdades em que ele acredita. O individual
está imerso no meio de sua música que se manifesta através de perspectivas
contextualizadas com o processo. Neste sentido, sua memória viva de fatos e detalhes
expressas em suas composições e interpretação o fez conhecido como Severino Pombo
Roxo. Em seu relato é possível percebermos o vigor de sua produção artística e a
apropriação dos recursos jurídicos de reconhecimento de autoria, que conseqüentemente
denotam a consciência de um direito adquirido por esse processo.
113
Quando questionado por mim, se o discurso usado para seduzir o público a pagar
pelo serviço era um artifício estratégico de motivar [uma atitude do público por um jeito
de pedir] uma colaboração. Pombo Roxo enfaticamente relutou tal hipótese, atropelando
minha fala, dizendo: “Eu não enganava não! Eu não enganava. Até hoje não me fiz
enganar. (...) quando eu não tinha nada a resolver através do dinheiro, eu dizia que
tava ali fazendo aquele trabalho cultural, pra poder me alimentar. A mim e a minha
família ...”
Ao descrever como era seu quotidiano de coquista profissional, Pombo Roxo
mais uma vez lembra a pessoa de seu pai como um modelo de desempenho do
repertório em público: “Eu fazia rua pra ganhar um dinheiro e dar de comer a família.
Aí eu dizia as loas que meu pai cantava na época!”(Pombo Roxo: Olinda, 25.08.2006)
Perguntei-lhe o que era loa. E ele definiu como: “O coco. A loa é o samba de
coco!”. Sua definição, como em todo processo de transmissão oral que tive
oportunidade de experimentar, só assume um caráter de esclarecimento real quando é
dotado da funcionalidade prática própria do evento concebido. Para tanto se torna
necessário à materialização do conceito pelo exemplo prático. Desta forma, Pombo
Roxo lançou mão do pandeiro e começou a cantar:
“ Aí eu fazia:
Ò! Juraci tira a menina do sol!
*
Ò! Juraci tira a menina do sol!
Por causa da brincadeira
‘ ‘ Diz qué melhó, é melhó!
Juraci!
***
Ò! Juraci tira a menina do sol!
Oi tira a menina do sol
Eu vou contar sua história
Leva a menina pra escola
114
Para aprender o B-A-BÁ!
E mostrar o qué qui há
‘ E depois me dizer: come que é!
No meio dessas mulhé
Eu não to cantando só!
Juraci!
Ò! Juraci tira a menina do sol!
E constituindo seu cantar ao contexto de sua ocorrência, Pombo Roxo seguiu
descrevendo seu proceder como artista cultural de rua:
“Mas aí eu dava um gingado assim como no meu tipo, ao meu estilo
da época! Dava o gingado e depois girava o pandeiro, e passava o
pandeiro de roda em roda calado. Que antes já tinha pedido a
colaboração, que servia pra comprar um remédio pra minha irmã,
pra minha mãe, pra mim mesmo, ou comprar um calção, umas
sandália.”
(Pombo Roxo: Olinda, 25.08.2006)
Este tipo de representação do ‘coquista’ tende a ser mais solicitada nos meios
profissionais de performance e no terreiro de umbanda, mesmo havendo necessidade de
certo conhecimento da aprendizagem formal. O terreiro tem se tornado o elo mais
evidente para aquisição de um conhecimento profundo de gêneros como o Coco de
Roda. Fato este que se verifica no mercado de música associada à identidade
pernambucana que hoje efervesce em Recife, como em todo Estado.
Pombo Roxo observa que inversamente ao que ocorria no passado, quando o
Coco era cantado pelo balanço do ganzá, sem microfones, sem estruturas de som, hoje
os interesses estão deslocados do evento em si e a ganância da fama e do dinheiro
tomam o sentido da performance. O cantor sempre procurava chegar às festas com uma
música nova que era aprendida por todos, em tempo real. Hoje o músico desenvolve
suas habilidades nos bastidores e nos estúdios. Pombo declara que ser coquista hoje é
para quem pode pagar por uma produção e não pra quem acredita no que faz.
Atualmente procura-se percussionistas com habilidades múltiplas, do erudito ao
115
popular, o que tem levado o músico do conservatório para o terreiro e o músico do
terreiro para o conservatório. E a música tende a ser um mecanismo de representação
social de um sistema de concepções adverso ao cotidiano dos coquistas, ainda ligados
ao afetivo e volitivo das intervenções cantadas no Coco de Roda.
3.2.8. Autoria e Oportunidades de Mercado
Pombo Roxo desabafa em alusão a sua apresentação dias atrás, para a qual
recebeu apenas R$ 5,00 (cinco reais) para passar toda a noite do primeiro sábado de
Setembro de 2006 (das 23h00 até às 07h00 da manhã seguinte) num Coco do Bairro
vizinho – Bairro do Guadalupe – como ‘tirador de Coco’ (cantador), para animar a festa
de um projeto apoiado pela Prefeitura de Olinda, conforme fui informado por pessoas
presentes. Pombo Roxo se mostrou indignado com a tendência atual que move do Coco
de Roda em Olinda, quando afirma: “O problema de uma ganância artística, em que as
pessoas só buscam aparecer e se promover. É cada um por si. Não tem mais a idéia de
conjunto. Todos querem pegar o microfone e aparecer. Mas poucos têm repertório e
competência como eu.”
(Pombo Roxo: Olinda, 20.09.2006)
Sua condição de ‘tirador’ experiente e detentor de vasto repertório o torna
imprescindível, no entanto seu saber não é valorizado financeiramente. Cinco Reais não
pagavam nem dois refrigerantes no comércio de bebidas do próprio evento. A passagem
de ônibus (autocarro) varia de R$1,60 á R$2,65 reais. É deprimente vê-lo em sua
cadeira de rodas esperando a hora de ser convocado para cantar, o que normalmente
ocorre pelas 3 da manhã, após todos cantarem Cocos pouco elaborados e de beleza
reduzida, misturados com temas associados à escola-de-samba, umbanda, e de outros
autores ausentes à festa. O próprio Pombo Roxo se viu plagiado por cantadores que,
sem repertório próprio e sem estratégia de atuação em palco, se valem da autoria alheia,
melodias, loas, dinâmica, e interpretação.
Entretanto Pombo Roxo que sempre se declara um artista de primeira linha, não
se abala pelo uso desregrado de sua produção. Em sua concepção e auto-estima, isso é e
sempre foi comum entre os mestres de Samba de Coco que lhe serviram de referência e
com os quais aprendeu sua arte. Lembra que no passado, os tiradores famosos eram
116
plagiados e sempre se impunham pela performance em público e novas criações de loas.
Segundo Pombo Roxo é um marcador diferencial entre aquele ‘que é’ e aqueles que
‘pensam que são’. “Fazer Coco não é para qualquer um, tem que ter dom”. O tirador,
nessa concepção, supera estes problemas através de desafios de competência e
desempenho travados em público.
3.3. Conclusão
A inclusão do Coco de Roda nos planos de interesses globais de uma política
cultural impacta o fazer dos coquistas pela amalgamação do formato tradicional em suas
experiências de vida. Como exemplo, os relatos de Ana Lúcia Nunes da Silva e
Severino José da Silva revelam os conflitos e decepções que emergem dessas relações.
A discórdia toma conta entre coquistas contemporâneos da comunidade do Amaro
Branco, a partir da elevação do fazer Tradicional num plano de veiculação de rádios e
palcos franceses e belgas. Ser coquista passa a representar uma possibilidade de
ascensão de classe, deslocando os artistas populares a planos de relações transculturais
imaginadas, mas nem sempre realizáveis. Produtores buscam implementar um fazer
original em consonância com o mercado de conceitos de uma identidade pernambucana.
Surge um novo mercado de possibilidades a músicos profissionais que outrora
ignoravam o valor cultural e econômico do Coco de Roda. O título de uma formação
técnica passa a definir um padrão de qualidade, e o coquista passa a se ver excluído
desse plano de realizações que se molda sobre seu saber cultural. O medo do roubo e
apropriação indevida de suas composições faz o coquista se isolar de eventos antes
vivenciados. Despreparados, estes artistas se lançam na busca de conquistas no mundo
de estéticas do exótico. Após gravar um CD, ir ao exterior torna-se uma meta, que se
revela decepcionante pela sua incompletude na função de resolver suas necessidades. A
tristeza se confunde com o prazer pela tradição assumida em compromisso velado por
confissões religiosas.
117
Parte II
O Coco no campo dos negócios e política cultural
118
Os capítulos 4 e 5 que se seguem, buscam uma abordagem que complemente as
narrativas e dramas experimentados pelos coquistas e demais atores na realização do
Coco de Roda como gênero musical midiatizado. Abordam o desenvolvimento setorial
da produção musical brasileira, e suas implicações no fazer musical dos coquistas.
119
CAPÍTULO 4. POLÍTICA CULTURAL E A MERCADORIZAÇÃO DO COCO
O discurso que interliga as políticas públicas e a mercadorização do Coco ao
simbolismo espacial de uma identidade cultural e uma auto-identificação com esta, está
organizado, ou arquitetado, em Pernambuco, por uma gama de relações de identidade
com a tradição cultural transmitida oralmente. Esses espaços e tempos dialogados
através de um Coco de Roda são socializados e localizados mediante a representação e
ação deliberada num ‘revival’ da tradição em benefício a ideologias de ordem política e
econômica. Neste sentido, os comportamentos e costumes da população de fazedores e
espectadores da produção artística de tradição, tal como a dinâmica que rege e
intermedeia as conexões entre o mercado de discos e indústria cultural com o
patrimônio imaterial, tendem a estar guiados no sentido de uma dinâmica social e
política que estimule uma apropriação da identidade pernambucana por meio do
consumo de rótulos de cultura que convirjam aos interesses e expectativas advindas da
mundialização dos conhecimentos e globalização das finanças e perspectivas.
Assim concebendo o atual quadro sócio-político e econômico da música de
tradição em Pernambuco, busquei neste capítulo introduzir, com base nas narrativas e
dramas experimentados pelos coquistas Ana Lúcia Nunes da Silva e Severino José da
Silva, e demais atores do contexto em que estes coquistas se inserem, uma abordagem
do desenvolvimento setorial da produção musical brasileira, e suas implicações no fazer
musical dos coquistas.
4.1. O Coco e o comércio cultural
O Coco, gênero performativo ao qual é atribuído pelas políticas culturais um
sentido identitário e patrimonial, representa, entre as categorias de artistas populares,
intelectuais mobilizados em defesa de uma tradição cultural pernambucana,
comunidades que demandam uma inclusão e ascensão de classe e grupos organizados de
identidade étnica negra, um forte elemento de unidade coletiva necessário à construção
de um referencial simbólico do local frente ao global. Neste processo, o coquista,
visando suas aspirações de ascensão social pelo valor econômico desse gênero como
120
produto de mercado, toma o Coco como objeto estratégico de conquistas de espaços na
vida cotidiana.
A noção moderna de patrimônio que emergiu do confronto entre práticas
‘progressistas’ e individualistas, de um lado, e a relação com a herança comum da
memória coletiva, do outro, promoveu um processo de museificação da tradição pela
categorização de gêneros do passado com fins de salvaguardar elos com as origens.
Warnier (2002:63-65) observa que a transformação dos saberes e do savoir-faire
fundamentais contidos numa tradição (literatura, artes, idioma religioso, ciências
empíricas e comportamentos) é cada vez mais uma maneira de se restringir o percurso
de acesso a formas do cotidiano do passado. Fazer música de tradição oral não
representa na atualidade uma forma fácil de inclusão social, pois este meio de
representação da identidade local está desconectado com as tendências globais de
identificação. A utilização pelos média de componentes de tradição não se articula com
os significados reais de detentores de práticas como o Coco, o que implica dizer que
este gênero tem duas dimensões simultâneas de realização, a dos aficionados ao gênero,
por interesses ideológicos (produção e consumo mediatizado, identificação cultural e
entretenimento), e a dos coquistas, pelo simbólico da memória com o passado. Esta
dicotomia entre a modernidade de conquistas e recursos tecnológicos e a memória
herdada, revela um plano de negociações bilaterais que fragmentam o espaço de
relações sociais. O Coco de Roda, muitas vezes concebido pelo senso comum das
metrópoles, como expressão de atores de identificação anônima do cotidiano brasileiro,
ressurge em favor da cultura nacional através de políticas culturais do Estado-Nação.
Estas políticas, por um lado, conforme afirma Warnier (2002:68), constituem uma
proteção contra a ameaça das indústrias culturais transnacionais que reduzem gêneros
de tradição local em rótulos de consumo, o que incita o Estado a valorizar em seus
discursos suas práticas tradicionais. Por outro lado, favorecem o surgimento de
inumeráveis conflitos culturais, ao suplantar fenômenos expressivos de tradição, como o
Coco de Roda e seus respectivos valores de significado local, em detrimento de outros
fenômenos e significados que, favorecidos ideologicamente, os torna uma variante de
secundário valor de salvaguarda.
121
Os Estados são, conforme sugere Warnier (2002:68-69), os primeiros
responsáveis pelo etnocídio51 das suas próprias minorias. Isto não representa ser uma
conseqüência da hegemonia dos poderes industriais, mas um resultado da ingerência
dos que exercem localmente o poder, por buscarem numa via de mão única reconstruir
uma identidade regional do local reinventando e voluntariamente unificando padrões
culturais. A importância da cultura popular na construção de uma identidade nacional
passa a ser reconhecida pelo Governo Federal brasileiro através de medidas da política
pública que traz entre seus planos de ação responder aos anseios de indivíduos, grupos e
comunidades culturais que não viam suas práticas respeitadas no decorrer da história,
como o caso dos afro-descendentes e suas formas de relação com o religioso e
manifestações culturais. Mas, conforme postula Warnier (Ibidem.), tais políticas de
defesa de identidades plurais em conflitos interculturais, precipitam-se na identificação
de categorias de produtos das indústrias culturais.52
Ao mesmo tempo em que carrega em si elementos fundadores de uma cultura,
as políticas públicas de preservação do patrimônio resultam de um constante processo
de transformações, assimilações e misturas. Ao assumir e reconhecer a importância de
gêneros de tradição para a construção de uma identidade nacional que compreenda toda
a diversidade das manifestações culturais do Brasil, o Governo Federal busca fortalecer
uma consciência de cidadania no país. Esta intenção esboça-se na questão do
financiamento da cultura que vem implementando, desde meados de 1995, uma política
de parceria entre a administração pública, os produtores culturais e a iniciativa privada.
Tal política se apóia na legislação de incentivo fiscal às atividades artísticas e culturais e
permite, no caso do cinema, que os investidores privados deduzam 100% do que
aplicam e, no caso das outras áreas culturais, entre 66 e 76%, dependendo da natureza
das empresas, podendo-se chegar aos mesmo 100% para o caso das artes cênicas,
música erudita e instrumental, livros de arte, acervos de museus, itinerância de
exposições de artes plásticas e acervos de bibliotecas públicas.53 É uma política fiscal
51 Segundo Denys Cuche (1996:58), etnocídio significa “a destruição sistemática da cultura de um grupo, ou seja, a eliminação, por todos os meios, não só dos seus modos de vida, mas também dos seus modos de pensamento. O etnocídio é, pois, uma desculturação voluntária e programada”. In:Warnier, Jean-Pierre (2002) A mundialização da cultura. Lisboa: Editorial Notícias, p.31. 52 Warnier (2002:68-69) verifica que a título de tendência geral, constata-se que as políticas culturais do patrimônio e da educação apenas podem ter em conta os particularismos logo que eles estejam moribundos ou que já não representem uma ameaça de irredentismo político. 53 Dados divulgados em 28 de fevereiro de 2007 em pagina on-line assinada por José Álvaro Moises no site http://www.mre.gov.br/cdbrasil/itamaraty/web/port/artecult/incent/apresent/apresent.htm
122
que intenta atrair o interesse das empresas privadas a se associarem ao Governo Federal
e aos produtores culturais para garantirem o desenvolvimento da cultura.
O Coco como expressão de um fazer tradicional contido na memória por um elo
de identidade com a origem, que se destaca como expressão própria do lugar, passa a
corporizar fronteiras entre perspectivas de culturas de Pernambuco que hoje se cruzam
no ambiente urbano. Este revitalizar do fazer local é uma das marcas da globalização
que fragmenta uma perspectiva em múltiplas formas de apropriação. Desta forma,
importa observar o funcionamento e tendências da maquina administrativa da cultura
que ativa a indústria cultural e seu impacte no cotidiano da comunidade de coquistas do
Amaro Branco, pela perspectiva de Ana Lúcia e Severino Pombo Roxo, e agentes de
grupos de interesses nesta atividade de expressão cultural.
4.2. Política Cultural e Mercado
No número 587 do Suplemento Mais! do jornal Folha de São Paulo, publicada
em 18 de Maio de 200354, Luis Costa Lima55 observou que a política de incentivo a
cultura não tem cumprido com o requisito “função social”56 ao contemplar
majoritariamente projetos, produção e produtos de fácil e imediato retorno financeiro a
entidades públicas e privadas. Neste sentido, Costa Lima discute o pouco prestígio dado
aos estudos, docência e produção acadêmica, ao identificar que, muita das vezes, os
interesses que regem as políticas culturais não se relacionam com a produção, formação
e manutenção do padrão intelectual e cultural ideal de conhecimentos. Este dado realça
a predominância da componente econômica nas relações entre produção cultural e a
iniciativa de fomento a cultural.
54 Mais!, Suplemento quinzenal da Folha de São Paulo, página 3, seção +brasil 504 d.c.(depois de Cabral). Matéria intitulada “A questão da cultura” de Luis Costa Lima: ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) – autor de “intervenções” (Edusp) e “Mimesis – desafio ao pensamento” (Civilização Brasileira), entre outros. 55 Luis Costa Lima: ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) – autor de “intervenções” (Edusp) e “Mimesis – desafio ao pensamento” (Civilização Brasileira), 56 crescimento econômico e a melhoria da qualidade de vida dos brasileiros, conforme concepção do Ministério da Cultura como órgão do Estado que tem a missão institucional de formular e promover o desenvolvimento da Cultura, pela qual foram construídas políticas, programas e ações.
123
Imagem 21. Dança do Coco de Roda. Imagem de autoria desconhecida veiculada no Site do Ministério da Cultura de Pernambuco. 2005.
Imagem 22. Coco de Umbigada em evento público incentivado por política cultural. Imagem veiculada Site da Cidade de Olinda, acessado em 27.03.2005
Em sua perspectiva, esta prática, que reflete uma tendência de exclusão de um
ramo da produção cultural em detrimento de outro, desestimula e até bloqueia a
intenção de investimento de capital na produção audiovisual e espetáculos de música
que são gerados para fins educativos e de desenvolvimento social e não apenas
econômicos.
Diante do crescente número
de investimentos num modelo
flexível e condizente às
perspectivas de mercado, Lima
teme que a cultura, assim gerida,
se preste a um populismo
retrógrado e imediatista. Esta
tendência tem se revertido, muitas
vezes, na busca de incentivo no
estrangeiro para setores da
produção cultural como o da música tradicional. Este dado nos remete às conexões
globais a que se estendem às produções musicais nordestinas desde os anos 90. Em
Pernambuco, este processo transparece na produção musical intimamente ligada às
concepções midiáticas, do rock, reggae, funk e rap, gêneros que constituem nova cena
musical do Recife entre jovens das classes média e alta, e dos intelectuais.
Esta produção busca a interconexão entre
um modelo de tradição e a rede mundial de
circulação de conceitos que demarcam as novas
tendências da indústria cultural. Ou seja, gêneros
de tradição oral são beneficiados quando
aglutinados a modelos performativos do mercado
global, pois o perfil concebido de ‘tradição’, que
hoje veicula nos mídia de massas, está de alguma
forma emoldurada por um formato do hibridismo
com o modelo contemporâneo de música de
massas. E mesmo quando esse fazer tomado como produto de geração de riquezas ainda
124
guarda uma estrutura estética em perspectiva vinculada ao tradicional, está
performaticamente adaptado ao paradigma da representação como exibição comercial
de entretenimento. Hoje vemos o Coco apresentado em performances com efeitos
luminosos sobre os artistas, dinâmica de palco, vestuário apropriado ao imaginário
concebido pelo senso comum como próprio do evento, repertório diversificado, dança
ensaiada com coreografias, etc.
Parece-me que a participação da classe média e alta, predominantemente branca,
tem um peso significativo na repercussão e representação que se expande no imaginário
dos múltiplos planos setoriais da sociedade de atores locais que por sua vez dinamizam
as produções artísticas, visto o conceito hegemônico advindo da perspectiva de uma
elite legitima o pleno exercício do fazer local.
Nesta perspectiva, coquistas como Ana Lúcia do Coco e Severino Pombo Roxo
passam a buscar representar seu fazer em linguagens de expressão musical coesas e
coerentes a estéticas de um fazer que convirja a perspectivas econômicas de produção e
consumo. Esta tendência reflete um novo modelo de gosto veiculado nas rádios e
editoras de CDs, e que se verifica na forma como se é apropriada a música no cotidiano
dos habitantes urbanos, em seu uso pessoal, privado e até comercial (MP3, leitores de
CD e DVD, toques de celular, etc.).
Esta nova forma cotidiana de relação simbólica com a música de tradição ocorre
por meio de uma estética híbrida entre o tradicional advindo da oralidade e o popular
comercializado pelos média, numa patente legitimidade do formato erudito. Ou seja, ao
sugerir indutivamente a atitude da ‘redescoberta’ de um saber ‘tradicional’ de
transmissão oral como o Coco no seio dos próprios detentores desse saber, os pontos de
cultura formal erudita fazem crer que o valor da atividade expressiva está diretamente
relacionado com um processo de assimilação que esta atividade tem do padrão cultural
dominante, em seus arranjos e padrões de performance, ao modo como ocorrera com o
samba do morro que adotou no formato ‘bossa nova’ elementos estéticos eruditos. Em
exemplo cito que progressivamente o Coco vem, mesmo entre coquistas sem formação
formal em conservatórios e escolas de música, a apresentar uma tendência à distribuição
harmônica das vozes do coro em terças, sextas e quintas. Em parte, esta tendência se dá
pela presença cada vez mais freqüente, nos terreiros, rodas de coco e estúdios de
125
gravação, de músicos com formação em escolas especializadas em música. Esta prática
no harmonizar arranjos vocais antes organizados numa estrutura ‘mais livre’ de
expressão, com certa dominância do uníssono nas vozes do coro, revela um processo de
assimilação do modelo dominante nos meios de comunicação oficial que, na teia global
dos receptores, tem se estabelecido como ‘expectativas’ pré-estabelecidas de uma
performance ideal das vozes.
Este processo de assimilação de um padrão exterior ao do cotidiano dos
coquistas revela que os artistas populares do Coco não são obrigatoriamente
aproveitados por esta dinâmica de produção cultural, na qual não basta a criação
intuitiva no contexto de relações sociais, requerendo antes um mecanismo eficiente de
representação vinculado a uma infra-estrutura estética, jurídica e tecnológica que
assegure qualidade seriada e regular da produção musical como objeto de mercado que
garanta retorno econômico a investimentos financeiros. Neste contexto, os atores mais
promissores são os que mediatizam o saber tradicional, sem que seja necessário em sua
performance um aprofundamento e comprometimento com sentidos que regem o fazer
tradicional entre coquistas. Desta forma, este ator de ideologia deslocada com o espaço
identitário de seu discurso musical, faz uso flexível de elementos-formadores-chave da
tradição, em consonância com as exigências de mercado.
Jurandir Figueiredo57, secretário de patrimônio da Fundação do Patrimônio
Histórico e Artístico de Pernambuco - FUNDARPE, conhecido no setor artístico como
Jura Figueiredo, em sua função de selecionar grupos e intérpretes para eventos e
festivais promovidos pelo Governo de Pernambuco, revelou, em entrevista realizada em
28 de Setembro de 2006, que o processo de seleção de grupos de cultura popular , no
qual se inserem coquistas como Ana Lúcia e Pombo Roxo, incluem apresentação de CD
demo, gravação em DVD, reportagens comprovativas de apresentações em eventos
passados e proposta do show em palco. Jura Figueiredo me explicou que a aprovação de
uma proposta depende de critérios pessoais de cada componente da banca de avaliação
do material fornecido, dos quais manuseiam os dados impressos, o áudio e o
audiovisual, e definem os grupos e intérpretes mais bem produzidos como também
aqueles que melhor se mostrem preparados para abrilhantar o evento e a reputação de
57 Jurandir Figueiredo, [email protected]
126
diversidade cultural associada à música feita em Pernambuco. Desta forma, artistas
populares que não trabalhem sob consultoria de especialistas neste campo de ação, ou
que não tenham recursos para contratarem os serviços de produtor que conheça os
modelos estéticos vigentes por cada banca de avaliação, estarão fadados ao fracasso.
No campo das relações internacionais, o ano de 2005 representou novas divisas
para a música brasileira em campo francês, quando novos artistas e gêneros se
estabeleceram ao lado dos sucessos de clássicos da Música Popular Brasileira. No site
http://www.musicadobrasil.org.br, consta um texto de Fabio Seabra do Jornal das
Gravadoras – RJ, na qual refere os lançamentos de artistas brasileiros em várias
vertentes expressivas, que tiveram lugar no 1° semestre de 2006. Entre estes artistas,
verificam-se grupos que só são conhecidos na França, como Orquestra do Fubá – com o
trabalho Quem Mando –, o pernambucano Silvério Pessoa que trabalha com vertentes
populares do Baião, Coco de Embolada, Pé de Serra, entre outras, revelando que o
mercado da ‘world music’ ainda pode absorver a música de origem popular produzida
no Nordeste do Brasil. A este respeito Fábio Seabra cita que o programa NUANCES
DU BRÉSIL, apresentado na França pela L’Association Graffiti Urban Radio e na
estação local alternativa da 88.6 FM, divulga e valoriza excepcionalmente os
representantes brasileiros desta corrente da produção musical. Este programa está no ar
há mais de um ano em francês e agora, há cerca de 4 meses, também tem sido difundido
em português. Trata-se de um programa semanal com 24 transmissões durante a semana
sendo um dos programas de maior audiência em Paris.
No seu texto, Fábio Seabra destaca a importância de que cada vez mais o artista
brasileiro deva investir em qualidade de seu trabalho, buscando tornar-se conhecido
tanto no Brasil como noutros países, visto o potencial dessa produção brasileira ser
promissora e o mercado de música no exterior está solícito por trabalhos relevantes
desta natureza.
Na busca deste mercado, o Ministério da Cultura, a Agência de Promoção de
Exportações do Brasil (Apex) e as gravadoras de músicas independentes assinaram em
21 de julho passado, o termo que institui o Programa de Apoio à Exportação de Música
(Pró-Música), que tem por objetivo estimular e divulgar a música brasileira (através do
trabalho de músicos brasileiros) no exterior. No início de Setembro foi apresentado o
127
projeto final, pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil, e o ministro do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan.
No intento de evitar os impedimentos de uma inserção positiva desta fatia de
mercado produzida no Nordeste brasileiro no cenário econômico global da música
fonográfica, teve lugar em Fevereiro de 2007 no Recife, a primeira edição da Feira
Música Brasil58 que objetificou oportunizar a produção deste setor como de outros que
existem no Brasil. Neste sentido, o ministro da Cultura Gilberto Gil lançou este projecto
de negócios da música, durante a Popkomm – o maior acontecimento musical da
Europa, com shows, rodadas de negócios e conferências –, realizado em Berlim e em
Genebra, quando chefiou a delegação brasileira que participou das discussões da 42ª
Assembléia Geral da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI)59,
conforme consta no site da Agência Brasil60.
Financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES), este empreendimento inédito na indústria da música brasileira, prevê em seu
planejamento original atingir sua maturidade na terceira edição, período necessário,
segundo relata o jornalista Sérgio Sá Leitão – assessor da presidência do BNDES e um
dos envolvidos na formatação da Feira Música Brasil –, para esta Feira se tornar
referência e contar com adesão máxima do setor. Esta perspectiva se confirma no artigo
do Diário de Pernambuco assinado por Michelle de Assumpção (Domingo, 10 de
Dezembro de 2006), quando o presidente da Associação Brasileira da Música
Independente (ABMI), Carlos de Andrade, observando o valor comercial e cultural da
música produzida em Pernambuco, lamenta que seus executores, por não serem bons
negociantes, não proporcionam inserção da música local no mercado. Este dado revela
uns dos impedimentos enfrentados por Ana Lúcia e Pombo Roxo na aspiração de
inserção no mercado fonográfico, e o êxito de outros artistas profissionais da música
58 Feira Música Brasil, empreendimento de relações do mercado musical brasileiro no plano nacional e internacional, financiado pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, e Ministério da Cultura), com parceria da Associação Brasileira da Música Independente (ABMI), com apoio do Sebrae, Prefeitura do Recife, Governo do Estado de Pernambuco – Fundarpe e MinC –, e Embratur. 59 Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), este organismo é uma instituição intergovernamental com 180 países-membros. Além da proteção da propriedade intelectual, ele é responsável pela administração dos tratados multilaterais. 60 Site da Agência Brasil http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2006/09/21/materia.2006-09-21.7569127611/view
128
regional de tradição não-coquistas nos negócios e oportunidades no mercado musical
internacional.
4.3. O Coquista e a Política Cultural
Durante entrevista, Ana Lúcia fez menção a um espaço localizado nas
proximidades do Amaro Branco – subida do Córrego do Monte –, relatando que este
local serviu de suporte aos interesses de incentivo a cultura local, implementado pela
Prefeitura de Olinda, quando foram mobilizadas ações de salvaguarda da tradição do
Coco e outros gêneros. Neste espaço territorial foi instalado um núcleo de eventos
designado por seus atores pelo nome de Bancário, com fins de entretenimento da
comunidade do Amaro Branco e circunvizinha, além do principal interesse de
manutenção da cultura tradicional das expressões populares através dos shows, cursos
de dança, confecção de instrumentos, e da arte de cantar e tocar do maracatu, coco,
pastoril, dentre outros folguedos e autos. Por sua vez, conforme Ana Lúcia me fez
entender, esta iniciativa só se realizava através de patrocínio da iniciativa privada sob
benefício fiscal do Município.
Ali, Ana Lúcia e outros brincantes [cito o Mestre Custódio no discurso de Ana
Lúcia], detentores de um conhecimento burilado pela experiência, e imbuídos por um
compromisso de zelar pela arte de tradição oral, ensinaram Pastoril e Maracatu,
respectivamente.
É interessante observar que alunos da rede pública de ensino inscritos e
freqüentadores dessa tipologia de escola comunitária, normalmente não esboçam
interesse pela cultura expressiva de sua comunidade sem que haja uma divulgação
implementada por organismos legitimados pela sociedade, como autoridades de poder
representativo para o grupo. Daí, após a morte de ‘Seu Bancário’, nome dado ao
organizador e coordenador deste projecto frente à Prefeitura, o espaço foi desativado,
abandonado e esquecido pela comunidade e pelos órgãos responsáveis por ações sociais
de cidadania, juntamente com as empresas e iniciativas antes financiadoras desse
evento.
129
Espaços como este viabilizam um franco desenvolvimento das atividades
musicais e de dança na região. No entanto, sem um núcleo mobilizador, nada acontece,
o que torna os agentes nucleares dessas organizações comunitárias [como a pessoa de
“Seu Bancário”, funcionário aposentado de uma Agência bancária local] pontos focais e
aglutinadores de interesses na mobilização, incrementação e realização de projetos
populares de fim social. As atividades desenvolvidas nestes espaços de realização social
reverte-se de múltiplas formas em benfeitorias para os envolvidos, sejam estes pessoas
físicas ou jurídicas. Neste sentido, a comunidade dos brincantes têm oportunidade de
exercitar suas relações com a memória oral. Os Departamentos de Cultura das
instituições administrativas de Governo (da União, do Estado, do Município), revertem
em seu proveito os resultados desta iniciativa. As ONGs articulam suas relações e
interesses de benfeitoria a comunidades carentes. Os segmentos partidários à ideologia
política possibilitam realizar suas mudanças no plano social e econômico, e na indústria
audiovisual e comunicação de massas surgem novos argumentos de divisas. O comércio
local efervesce após uma realização dessa natureza.
Neste sentido, o Jornal da Prefeitura do Recife, publicado em Janeiro de 2003,
trouxe em caráter de “prestação de contas ao povo”, matéria que destacava os
resultados da administração do Governo do Prefeito João Paulo Lima e Silva, em
cumprimento ao respectivo plano administrativo. Nesta edição focalizou o Recife pela
sua importância econômica, política e cultural, que com seus 1,5 milhão de habitantes, é
a maior metrópole da região Nordeste. Esta edição de comunicado buscou transparecer
a gestão administrativa de 2002 que movimentou orçamento de R$ 996 milhões para
reverter à realidade de dois terços da população, que vive entre a miséria e a pobreza,
destacando o esforço em valorizar e fortalecer a cultura local que se estende por
conexão aos municípios de Abreu e Lima, Camaragibe, Jaboatão dos Guararapes,
Olinda, Moreno, Paulista e são Lourenço da Mata, que juntos compõem a região
metropolitana de Recife. Neste intento, relata o interesse de criar oportunidades de
geração de renda, investimentos na saúde e na educação.
Tomada em seu discurso de gestão administrativa, o artigo do Jornal da
Prefeitura do Recife, intitulado Capital Multicultural, esclarece que sua meta é
democratizar o acesso e valorizar a cultura pernambucana, destacando: “É’ assim com o
carnaval e o São João. E’ assim com o Programa Multicultural do Recife, que promove
130
a democratização e movimenta a economia local. Girando pela cidade e gerando
cidadania, o Multicultural contou com a participação de 1.242 jovens de regiões da
cidade, que, em 79 oficinas, shows, recitais e exposições, mostraram uma cidade que
produz, participa e preserva sua cultura.”(Nota de campanha política sem autor
identificado, página 14. 2003).
Pontos nucleares de ação cultural como o de Seu Bancário, revelam ser, em toda
região metropolitana, focos dinamizadores de atividades culturais em plena harmonia
com interesses de ações sociais administrativas e políticas do poder público, por
tornarem materialmente visíveis iniciativas públicas e privadas, e seu respectivo
controle fiscal. Envolvendo um complexo de relações que convergem em promover
eventos variados de lazer em áreas específicas, com o objetivo de: regulamentar áreas
urbanas onde há potencialmente atividades econômicas, estabelecer revitalização local
com participação da comunidade, criar mecanismos para ampliação da participação
democrática nas questões públicas e estimular a cultura como atividade econômica e
turística. (ver gráfico 5).
Gráfico 6 - Complexo de relações em torno do ponto de cultura “Seu Bancário”.
131
Muitas das vezes, esses agentes nucleares de projetos, tornam-se líderes
comunitários em defesa de interesses da coletividade junto à administração pública e
privada. A esse exemplo, observo que Beth de Oxum, organizadora do Centro Cultural
Coco de Umbigada, tornou-se uma referencia entre alguns dos coquistas do Amaro
Branco, como também entre parte da mídia e opinião pública, por possibilitar que a
prática do Coco esteja presente no calendário de realizações local.
Como programa de intervenções realizadas pelo Estado junto a instituições civis,
entidades privadas ou grupos comunitários, a política cultural tem o objetivo de
satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas
representações simbólicas61. Entretanto, os artistas populares que mantêm os fenômenos
culturais como um ‘todo’ no simbolismo da identidade coletiva, estão, via de regra,
sujeitos à lógica da sociedade onde ocorrem sob estatuto de salvaguarda, ou sob uma
perspectiva de políticas de entretenimento. Sob este entendimento, a Funcultura –
Fundo Pernambucano de Incentivo a Cultura – e programas de incentivo a cultura dos
municípios, implantam uma política cultural para constituir o conjunto de iniciativas
direcionadas à produção, distribuição e uso da cultura, com base na pluralidade e na
diversidade das manifestações culturais. Além disso direcionam a preservação e
divulgação do patrimônio histórico, e ordenamento do aparelho burocrático, facilitando
o acesso da população aos bens, espaços, atividades e serviços culturais incentivados
pelo Sistema de Incentivo a Cultura.
Estudioso em políticas de ação cultural, Teixeira Coelho (2004: 293-99),
observa que as políticas culturais estão orientadas sob parâmetro de uma lógica da
oferta (no apoio aos artistas, na criação e manutenção de uma infra-estrutura), ou de
uma lógica da demanda (políticas direcionadas a formação e estímulos ao público).
Seus objetos são da ordem das tradições culturais supostamente autóctones, ligadas às
origens do patrimônio histórico e artístico próprios de uma identidade nacional.
Segundo os circuitos nos quais buscam intervir, as políticas culturais viabilizam
setores de produção, distribuição e consumo da cultura, através de medidas de
financiamento a produção cinematográfica, distribuição de livros, viabilização
econômica a espetáculos teatrais ou musicais. Nesta forma de intervenção, as atuações
61 Segundo Planos & Metas de Ação da Prefeitura de Recife no site www.recife.pe.gov.br
132
de iniciativa privada, são por vezes consideradas como modalidades à parte, por limitar-
se a definir incentivos fiscais (para a cultura, regras de mecenato, etc.) sem determinar
diretamente quais modos culturais serão beneficiados e em que circunstâncias. Estas
categorias de atuação junto à cultura devem, segundo afirma Coelho (Ibidem: 296), ser
consideradas como espécies das políticas de mercado em geral, visto se inspirarem na
lógica do mercado. Esta afirmação me leva a crer que a lógica da demanda se sobrepõe
à lógica da oferta. Assim, o detentor de cultura tradicional vê-se submisso às condições
e relações de interesses advindos da demanda de mercado local, e esta, por sua vez,
segue de perto as tendências globais.
As políticas culturais também se ocupam das expressões culturais que, em
princípio, não estão destinadas a suprir a dinâmica competitiva de mercado. Tais
expressões não atraem o interesse econômico, tanto na sua produção quanto nos seus
objetivos. Nesta categoria incluem-se grupos folclóricos, e outras categorias
comunitária de músicos amadores, como também programas voltados à defesa,
conservação e difusão do patrimônio histórico.
Como cultura expressiva baseada num saber de tradição que ora se insere no
processo de globalização por via de uma dinâmica de mercado, o Coco vê-se
contemplado pelas políticas culturais de duas formas paradoxais a da lógica econômica
que o inclui como produto da indústria de discos. De um lado, através de eventos sem
fins lucrativos e com finalidade de preservação do gênero tais como: festejos e oficinas
de ensino dos métodos e formatos tradicionais do gênero, em comunidades redutos
desse saber, como os organizados por Seu Bancário ou o de Beth de Oxum, que
resultam de políticas culturais de incentivo. E de outro, em contextos que encerram
medidas de salvaguarda pelo registro em vídeo e áudio desta prática, na qualidade de
patrimônio imaterial. Porém, quando utilizado como elemento dinamizador de
atividades econômicas pela indústria do entretenimento e turismo, que representam
divisas para a economia do município, estado e região, o Coco é contemplado por
políticas culturais que beneficiam relações comerciais com vista ao consumo e à
circulação de capital.
A complexidade de relações entre os atores da cultura popular e os agentes com
os quais eles se ligam na viabilização de sua arte, passa a ser a problemática que as
133
políticas culturais tentam resolver, por ações de sensibilização e esclarecimento como a
desenvolvida nos anos 90, por força da UNESCO, quando foi elaborada em 1997 a
Legislação de Proteção ao Patrimônio que instituiu o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – IPHAN. A sensação de impunidade ou morosidade das ações
legais, conduzem os atores a se digladiarem por um espaço no mercado fonográfico, no
qual invariavelmente ficam com a menor fatia. Nesse campo de conflito, artistas
profissionais que interpretam modelos estéticos de mercado, passam a representar com o
apoio de produções de sucesso, o grupo de detentores de tradição de Coco de Roda. A
esse respeito Ana Lúcia afirma: “Não me importo com o sucesso dos outros, acho que
todos têm o direito de um lugar. O sol nasceu pra todos, não é? Mas, por que nós que
fazemos o original como diz a tradição, que eles mesmos [os intérpretes profissionais]
consideram quando vêm aqui aprender com a gente, não conseguimos trabalhar e ter
um lugar pra tocar? Nem no Carnaval! Nem no Carnaval meu filho, eu tenho um
espaço certo! A Prefeitura e toda essa gente de produção só querem eles [os interpretes
profissionais] que fazem tudo errado e do jeito que eles [A Prefeitura e os produtores]
querem.” (Ana Lúcia em entrevista cedida em 15 de setembro de 2004, Olinda)
Na qualidade de artistas populares representantes de classe de tradição da cultura
pernambucana, Ana Lúcia e Pombo Roxo vêem-se envolvidos nos processos de seleção
em eventos promovidos por projetos aprovados em sistemas de incentivo a cultura,
guardando expectativas de conquistarem espaço estável nos eventos culturais que
ocorrem durante todo o ano no Recife, Olinda, e noutras cidades. Esta dinâmica de
competição por espaços em palcos de festividades de ordem pública, com duração
média de aproximadamente 40 minutos à 1 hora de apresentação, muitas das vezes
desgastam o entusiasmo destes artistas populares, por expô-los ao atrito com outros
artistas. Como a oferta de músicos, grupos e performances é grande, todo o esforço não
é compensado pelo cachê disponibilizado. As produções destes projetos não dispensam
atenções devidas aos grupos que verdadeiramente movimentam e fazem viáveis estes
projetos junto às comissões de análise deliberativa de incentivo financeiro. Ana Lúcia
reconhece que o valor do cachê é aproximadamente de R$ 800,00 (oitocentos reais) para
seu grupo de 10 integrantes e que este montante não cobre os gastos de produção do
vestuário, transporte, alimentação, cachê dos músicos e manutenção de instrumentos.
Ela se queixa que seu trabalho é desvalorizado pelas autoridades, e que como ela precisa
trabalhar, se submete ao valor que lhe é atribuído pelo mercado. Estes eventos culturais
134
se apresentam ao público como estruturas de grande porte, em palcos em grandes
dimensões, com equipamentos de iluminação e de som de primeira linha, com grande
equipe de produção, em espaços estratégicos da cidade, mobilizando infra-estrutura com
empresas de apoio, resguardados com segurança da prontidão especializada da empresa
estadual de energia elétrica, e segurança pública da Guarda Municipal e Polícia Militar.
Toda esta infra-estrutura para garantir o sucesso de realização do projeto que trará
inúmeros artistas da cultura popular, mas com cachês minguados frente aos cachês
‘recheados’ de estrelas da música popular midiátizada.
A tecnologia passa a ser imprescindível no processo de seleção de projetos
musicais organizados por comissões de cultura. A apresentação de um registro em áudio
e vídeo anexado ao projeto, transformou-se, de um recurso supérfluo de seduzir os
jurados, a um dos critérios exigíveis no processo seletivo. Desde esta obrigação, a
qualidade técnica de gravação, ao lado da estética da composição, e arranjo musical, se
tornou num recurso influente na decisão da comissão de cultura. Ante esta regra e
demais exigências, o artista popular passa a solicitar os trabalhos técnicos de uma
empresa de consultoria jurídica e administrativa, ou de um produtor, que articule uma
boa rede de contactos entre o artista e a empresa financiadora.
Laurecília Ferraz62, advogada, consultora de projetos culturais e produtora
cultural desde 1996, expõe um modelo gráfico da ação implementada por equipe de
consultoria na captação de recursos e viabilização da realização do projeto, entre o
artista popular e empresa, entidade oficial que patrocina:
Gráfico 7 - Ação mediadora da equipe de consultoria
62 Laurecília Ferraz – consultora cultural. Ex-produtora cultural. Endereço: Rua Soares de Azevedo, 136. Poço da Panela, Recife-PE-BRA. CEP 52061-310. Fones: 55 81 3442.4965/92925333. Fax: 55 81 3267
Artista Popular
Equipe de Consultoria
Empresa
135
esboçada por Laurecília Ferraz.
Neste aspecto, Laurecília Ferraz – também conhecida no ramo cultural como
Laura Ferraz –, observa que o contexto atual no qual o artista popular se insere não
comporta mais que ele acumule funções na execução e administração de sua criação
artística frente à necessidade de edificação, manutenção e administração de sua carreira
profissional: “O artista em Pernambuco, ... ele não é só ‘O Artista‘ – o criador da obra
–, ... mas ele é o produtor; ... ele é o assessor de imprensa; ... na verdade ele é tudo! E
isso não tem mais espaço no mercado, né? Você não pode mais abraçar tudo sozinho.
Então hoje você tem que descentralizar isso, e pra você descentralizar você tem que ter
profissionais competentes nessa área que não permite mais amadorismo. Daí a grande
dificuldade que os artistas têm ... ‘O Artista Popular’, né? Aquele do maracatu rural,
do coco, do caboclinho,... o próprio poeta do povo, ... esse daí [o artista] tem mais
dificuldade, quando eu falo, não é de produzir sua arte, mas é de colocar sua arte no
mercado. Porque não adianta você ser o criador pra si mesmo. Não tem sentido isso!”
(em entrevista gravada em 01 de Setembro de 2006, Recife)
Segundo Laura Ferraz, na seqüência de sua explanação: “o Produtor Cultural
tem os meios para fazer com que aquele [o artista] seja divulgado plenamente pra
população em geral; ele vai dar evidência a esse artista. O que acontece
principalmente no Nordeste, e especificamente aqui em Pernambuco, que eu mais ...
[onde] tenho essa relação, é que o artista, ele é tudo! Isso ta dificultando, na verdade,
ele se tornar notório regionalmente, até mesmo na própria cidade; eh! ... na cidade,
regionalmente, nacionalmente, e internacionalmente; que isso na verdade ... o maior
desejo do artista é ele se tornar reconhecido. Não só ele como e principalmente sua
obra. Então é que o produtor cultural entra pra viabilizar isso. O produtor cultural é
aquele que viabiliza desde o início. Não da produção, mas de conseguir material pra
essa produção, como a exposição, ... ele é quem vê todos os detalhes: de quem vai fazer
parte da equipe de produção, como por exemplo o pessoal de apoio, como o próprio
jornalista, como o diretor de um teatro, né? Como um assistente de direção, e etecetera
e tal, dependendo do segmento cultural que a pessoa tomar”. (em entrevista gravada em
01 de Setembro de 2006, Recife)
136
A este respeito Carlos de Andrade – presidente da Associação Brasileira da
Música Independente (IBMI) –, em entrevista ao Diário de Pernambuco63, observa que
“para quem se sente pronto para o mercado lá fora, é hora de começar a se articular,
preparando material (CD, release bilíngüe, DVD com videoclipe) e procurar um selo
experiente (em transações comerciais internacionais, de preferência) para representa-
lo”, justificando que “o papel do músico auto-produtor não é sentar na mesa de
negociação, isso é para o distribuidor”.
Teixeira Coelho (2004) identifica que as políticas voltadas ao desenvolvimento
de condições que positivem os usos da cultura quer através de programas de informação
aos receptores, quer através de cursos, seminários, conferências, debates, e ateliês livres,
além de outras atividades que se enquadrem na educação informal, são ações políticas
que proporcionam a formação de um público seleto aos paradigmas ideológicos vigente
nos mais diversos ramos estéticos e estilísticos, condizentes com as expectativas de
demanda política, social, cultural, e econômica, em consonância a um perfil
hegemônico global.
4.4. Direitos Autorais64, Interesses Econômicos e Ética
Roberto Benjamin65 (2006) faz saber que diante as regulamentações de
procedimentos estabelecidos por políticas culturais surgiram conflitos resultantes da
valorização econômica dos bens culturais imateriais e que a estes bens foi dada uma
dimensão de patrimônio de referências culturais de um autor ou grupo, como
edificadores de uma referência social do local frente ao global. Benjamin observa que:
“na medida que o capitalismo avança, o patrimônio imaterial adquire um valor
econômico (...) e um valor moral desse fazer adquire nas dimensões dos direitos em
defesa do autor e criação ”. Surge porém um problema na identificação de tais direitos
63 artigo do Diário de Pernambuco assinado por Michelle de Assumpção, publicada no domingo, 10 de Dezembro de 2006, na página D1 do Caderno Viver, intitulada ‘Música brasileira no campo dos negócios’ 64Direitos definidos pelo Governo Brasileiro através dos Decretos 75.699/75 e 57.125/65, respectivamente, conforme publicado pelo ECAD no site www.ecad.org.br/ViewController/público/Home.aspx?codigo=6 65 Benjamin, Roberto, Bacharel em Direito, Professor e Pesquisador com especialização em Comunicação Social e Livre-docência em Ciências Políticas e Presidente da Comissão Pernambucana do Folclore e da Comissão Nacional de Folclore, em entrevista no seminário ‘Patrimônio Imaterial’, do Curso dos Problemas Atuais da Cultura Popular realizado pela Associação Respeita Januário e Fundação Joaquim Nabuco, nos meses de Agosto e Setembro de 2006.
137
que por serem subjetivos tornam-se difíceis de ser identificáveis legalmente: “Se é
imaterial, como vai ser identificado?” (Benjamin, em entrevista em 17 de outubro de
2006, Recife). Desta forma, para que o direito autoral venha a ser atribuído em ação
jurídica deve ser materializado no seu aspecto físico. Ou seja, o valor como patrimônio
cultural fica diretamente ligado ao espaço físico onde se realiza a pessoa do autor, ou ao
documento escrito, já que não se pode vigiar o imaterial. Assim, busca-se identificar o
espaço de reprodução para proteção e salvaguarda.
O Bairro do Amaro Branco torna-se potencialmente um espaço material
associado à realização do Coco de Roda, de Praia e de Embolada, e seus habitantes
passam a ser potenciais portadores de tradição. A idéia de autoria coletiva permite
considerar o problema do uso indevido dos proveitos econômicos. Entretanto Benjamin
(Ibidem) observa que, “quem declara que é de domínio público sabe onde coletou e de
quem coletou”. Esta questão traz grande discórdia entre os próprios artistas do Coco.
Ana Lúcia identifica uma composição como de sua posse, seja por criação própria ou
por herança de seus mestres e familiares. Porém, outros coquistas e até músicos
profissionais que fazem do Coco, nesta nova dimensão do mercado de discos, lançam
mão, em seus trabalhos, de composições de Cocos não registradas, classificadas de
domínio público. E mesmo quando identificam o autor certo ou provável, obtêm o
direito sobre a obra, devido o fato da sua gravação ser inédita no âmbito dos órgãos de
registro competentes. De modo inverso, Pombo Roxo, de posse do mecanismo jurídico
de determinação da pertença autoral de um bem intangível, toma como primeira
iniciativa o registro junto a órgãos competentes de composições de Coco por ele
defendidas como de sua autoria, gerando em resposta à sua ação críticas e acusações de
coquistas como Ana Lúcia, que põem em julgamento o mérito e a credibilidade de sua
autoria em boa parte das composições por ele registradas.
Este problema que surge na relação entre coquistas (como entre artistas de
outros gêneros de tradição popular), ante o recente processo de profissionalização
induzido pela industrialização do Coco, me levou a questionar se a patrimonialização de
bens culturais pode trazer benefícios (e para quem?), já que a dimensão econômica do
Coco de Roda se sobrepõe ao evento em sua representação no contexto. Este
questionamento surge da minha experiência em campo, quando vejo o criador de uma
composição viver na miséria, frustrado com a realidade de ver outros tirando possíveis
138
lucros de sua criação. E reflito: ¿Não seria mais correto e econômico, os mecanismos e
entidades gerenciadores da política, defesa e fiscalização em salvaguarda aos direitos de
criação, identificar as vias que provocam a mudança do fazer tradicional, do que tentar
salvaguardar o que supostamente está em vias de desaparecimento, como se este
fenômeno ameaçado não tivesse por si só a competência de se auto-gerir e sobreviver às
espoliações dos seus direitos pelo mercado globalizado de músicas? A tendência de
socorrísmo, sem uma medida de prevenção, não seria uma omissão frente o vetor da
mudança?
Roberto M. Moura (2000:1-9)66, observa que há um tratamento diferenciado
entre a música popular que se produz e realmente é apreciada no Brasil e aquela que é
massificada, principalmente através dos meios eletrônicos de comunicação. O autor
deste artigo verifica que as pesquisas do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e
Distribuição), órgão responsável pelo recolhimento e pagamento dos direitos autorais no
Brasil, identificam que não existe relação entre as canções mais executadas na rádio e
televisão brasileiras e as que o brasileiro comum prefere ouvir nas apresentações ao
vivo, identificando neste sentido que nenhuma das vinte primeiras músicas destacadas
como as mais apreciadas e consumidas, segundo pesquisas de mercado assinadas por
entidades de marketing da indústria da música, fazem parte da escolha espontânea das
que são de fato consumidas em bares, churrascarias, restaurantes, e festejos públicos em
todo o Brasil67. Este dado conduziu Roberto Moura a inferir que o gosto público não
está representado de forma fiável nos meios de comunicação de massas.
Roberto Moura supõe, conforme postula Morin (1969:49), que as listas de rádio
e TV tratam prioritariamente da cultura de massas que tende “a corroer, desagregar as
outras culturas”, deixando de lado a fatia de produção que realmente traduz uma
identificação cultural das músicas com o público. Em seus questionamentos este autor
indaga: ¿por que esse cancioneiro, apesar de permanecer no imaginário popular, é
subestimado pelos que dirigem a indústria fonográfica ou os espetáculos televisivos e
radiofônicos? ¿E por que artistas com trajetórias e conceitos musicais definidos, como
66 Em seu artigo ‘A tv e a trilha sonora do Brasil’, publicada no site www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html Pagina acessada em 25 de Setembro de 2005. 67 Boletim oficial cedido ao autor pelo ECAD, de 10/06/1999.
139
tem ocorrido com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Daniela Mercury, submetem-se ao
gosto do mercado e às ordens dos que dirigem o show-biz?
Atualmente se vê alguns exemplos de conscientização dos direitos de criação de
artistas populares (como coquistas e cirandeiros), por parte de artistas estabelecidos no
cenário musical, porém a dinâmica de mercado não permite que o fato do
reconhecimento de um direito real de criação seja exercitado em transações comerciais.
Simon Frith (1988:1) observa a este respeito, que a música carrega em si 'uma cesta de
direitos’ que são explorados não só quando a música é vendida em forma registrada para
o público, mas também quando difundida em rádio, televisão, em filmes ou vídeo
comercial ou não-comercial. Desta forma, o manuseio destes direitos convergem para
um monopólio de empresas detentoras de maior poder de capitalização em
investimentos. Neste sentido, Frith observa ainda que o monopólio que privilegia
proprietários protegidos por direitos autorais musicais (e particularmente dos direitos de
performance) é o ponto central dos interesses em investimentos das corporações de
entretenimento, e que estes direitos autorais, assim gerenciados, revelam ser
prioritariamente de caráter político e econômico, e não um assunto moral. (Ibidem)
4.5. Hibridismo: Critérios de Criatividade, ‘Multic ulturalidade’ 68 e Performance.
A criatividade consta como um argumento em prol da qualidade de uma banda,
grupo musical ou intérprete. Mas os critérios dessa categoria de qualidade estão nas
mais das vezes vinculados a uma competência provinda daqueles que experimentaram
uma vivência musical com a tradição que lhes assegura um desempenho legítimo ao dos
fazedores hoje classificados de ‘mestre’ no saber de tradição.
Entretanto, o termo ‘mestre’ que se aplica como crédito e consideração àqueles
formadores dos novos artistas populares que dinamizam a cena urbana do Coco,
Maracatu, e outras manifestações musicais, não retorna aos artistas populares
tradicionais da forma como se poderia imaginar (através de uma presença ativa destes
na cena musical). Suas vidas e atividades culturais continuam no mesmo plano de
realização de outrora, e como se não bastasse, eles tendem a um processo de
descontentamento do seu fazer não adaptado ao mercado de valores estereotipados. 68 Definição êmica das políticas culturais e ideologias de inclusão social de classe. Trata-se de uma noção aplicada à diversidade de gêneros da cultura expressiva de Pernambuco.
140
Na verdade, o que mais entra em consideração para o artista popular é o novo
valor de sua produção e saber. Porém, o atual mercado do “tradicional” está mais
receptivo à nova geração de coquistas – jovens em sua maioria de classe média ou pobre
que de alguma forma vivenciaram o processo de transmissão oral. Desta maneira, este
aprendiz de tradição constitui-se como representante ideal para inclusão do fazer Coco
no formato híbrido das novas tendências da música regional em suas vertentes pop
music e world music da cena internacional. Ainda observo que músicos iniciados em
educação formal em conservatórios e escolas de música especializadas passam a figurar
na qualidade de representantes da cultura popular, categoria de intérpretes e criadores
conectados simultaneamente com a tradição e com tendências globais, que o mercado
busca absorver em resposta a demanda crescente de público.
Este novo espaço de oportunidades que se abre nas histórias de vida de jovens, em
sua maioria, de classe pobre, os leva a figurar como peças-chave em grupos de música
pop ou de raiz que transitam com certa facilidade nos meios midiatizados. Esta
tendência permite que este formato da “tradição” seja apropriado como argumento de
discursos ideológicos diferentes aos afetivo-volitivos que são próprios dos cantadores
de Coco, como Ana Lúcia e Pombo Roxo.
Como percussionistas e detentores de formatos apreendidos, mesmo com pouca
profundidade, junto aos mais velhos e experientes interpretes da arte popular, estes
novos artistas de uma tradição em demanda de consumo, constituem-se detentores de
uma legitimidade para o grupo musical em que estão inseridos, ao menos nos discursos
veiculados em jornais, rádios e tv’s. Desta forma, uma estratégia de legitimidade de um
grupo musical que defende uma identificação com o tradicional em sua performance e
repertório, estaria em ter entre seus integrantes um ‘nativo’ do espaço geográfico
legitimado como de potencial reduto de artistas tradicionais. Esta nuance faz emergir
uma nova forma de se prevalecer de um saber cultural, mesmo que em muitas das vezes
o padrão discursado em sua proposta musical não condiga com seu respectivo
desempenho musical. Neste sentido, busca-se falar como um coquista, dançar como um
coquista, interpretar composições como se concebe que seja por um coquista, vestir-se
como um coquista, num sentido, performar teatralmente como se fora um ‘verdadeiro’
coquista. Neste momento é que os jovens da classe média – que na história dos
movimentos de classe do Brasil buscou arduamente fugir dos estigmas da pobreza
141
consumindo e assimilando as ideologias, comportamentos e costumes da classe
dominante –, passam a figurar estrategicamente encenações representativas da tradição,
das quais usa-se o recurso de fundir a tradição com conceitos harmônicos e estilísticos
do rock, musica pop, jazz, reggae, hip hop, funk, dentre outros gêneros, constituindo um
novo formato da tradição local que supre selos da ‘música do mundo’.
Em parte, esta tendência ao híbrido na tradição oral foi ativada por Mestre
Salustiano, artista popular de Cidade Tabajara no Município de Paulista, em
Pernambuco. A quem é cedido o crédito de primeiro, entre os artistas populares, a
organizar em um único evento, vários gêneros da tradição pernambucana. Sua iniciativa,
festejada pela indústria cultural, desencadeou a experimentação de várias outras
manifestações por um único fazedor de gênero musical particular69, agora como
articulador do ‘todo’ que compõe a diversidade musical pernambucana. Esta tendência
de composição da performance cultural se reverteu num modelo economicamente viável
de arte para órgãos e instituições da política cultural, indústria do turismo e do
entretenimento, designada como ‘multiculturalidade70’. Esta designação passou desde
então a melhor representar o fazer artístico em Pernambuco como atributo de
criatividade e diversidade cultural.
Coquistas como Ana Lúcia e Pombo Roxo que desenvolvem uma única atividade
no cenário da música popular passam a constituir uma parcela de artistas que
potencialmente se inserem num contingente marcado pela exclusão na seleção de
produtores de trabalhos de arte popular. Estes produtores trazem em seus critérios de
avaliação de desempenho a concepção de que uma boa apresentação interpretativa deve
constar de uma miscelânea de gêneros, sempre articulados de forma criativa e nova com
fins de cativar e conquistar o público.
Em artigo do Diário de Pernambuco71(2006), assinado por Michelle de
Assumpção, a cantora e interprete da música jovem da ‘nova cena recifense’ de música
urbana – Isaar de França72, é, a exemplo desse processo de classificação de critérios de
69Salustiano era intérprete de Cavalo-Marinho 70 Definição êmica das políticas culturais e ideologias de inclusão social de classe. Trata-se de uma noção aplicada à diversidade de gêneros da cultura expressiva de Pernambuco. 71 Da Zona da Mata aos trilhos urbanos, editado pelo Jornal Diário de Pernambuco, Caderno Viver, página C1 de terça-feira, 24 de Outubro de 2006. 72 Isaar de França, ex-Comadre Fulorzinha, brincante do Boizinho Alinhado, Afoxé Ilê de Egbá, maracatu Piaba de Ouro e percussionista do projecto Santa Massa e Aparelhagem, e bandas do DJ Dolores.
142
desempenho multicultural, eleita como representante da nova leva de criatividade,
hibridismo, multiculturalidade, contemporaneidade, experimentação, sentimentalismo e
tradição, reprocessada em linguagens do pop rock sob influências musicais do popular.
Esta citação possibilita ver o quanto e em que grau artistas populares de Coco
como Ana Lúcia e Pombo Roxo estão distanciados em sua dinâmica de performação de
Isaar e outros intérpretes que hoje veiculam na mídia e efervescem o mercado musical e
políticas culturais.
O paradoxo de realização musical da ‘multiculturalidade’ quase que se apresenta
diariamente nos meios de comunicação, possibilitando-nos refletir esta dinâmica
cultural. Em exemplo cito que no mesmo Caderno Viver do Jornal Diário de
Pernambuco (2006)73, assinado por Aline Feitosa, no artigo Novos palcos para os
tambores do candomblé, é articulado o processo de inserção do Grupo Mazuca da
Quixaba74 na rota de palcos locais (programação da Terça Negra75), regionais, nacionais
e internacionais, por este grupo conter em sua performance o atributo de levar ao palco
jovens iniciados aos costumes do culto afro-religioso através de formação musical
profana. Nesta dinâmica os atores engajam na perspectiva, ideologia e discurso do
produtor na construção de uma imagem propícia ao consumo no mercado world music,
na expectativa de uma mudança de sua realidade.
4.6. Conclusão.
O plano global das relações possibilita intercâmbios culturais de tradição que
etiquetam a o desempenho artístico como objeto de consumo da indústria do
entretenimento, lazer e prazer, forjando no imaginário dos expectadores, através de
ações de política cultural dos setores e órgãos da administração pública, uma
experiência sintetizada do fenômeno Coco de Roda. Na paisagem sonora do espaço
urbanizado o Coco é reduzido a um rótulo do lugar geográfico e cotidiano dos coquistas
73 Novos palcos para os tambores do candomblé Editado no Caderno Viver, pagina C6 do Jornal Diário de Pernambuco de terça-feira, 24 de Outubro de 2006. 74 Grupo produzido por Shacon Viana, que traz sonoridades de Nação remanescente do Congo, composto por oito jovens ligados aos toques dos mestres e caboclos de Jurema, oriundo do terreiro Joana D’arc, na comunidade do Pina, Recife, Pernambuco. 75 ‘Terça Negra’ é um termo instituído pela política cultural do Município de Recife na designação do espaço da programação de eventos da Prefeitura destinado às manifestações de caráter negro do Estado.
143
que se transforma em linguagem corrente facilmente captável pelo senso comum e
apropriada como real modelo da tradição local do Amaro Branco, de Olinda, do
nordeste, do Brasil, em nome de intenções estratégicas das novas tendências do
planejamento urbano e indústria do turismo cultural. Estas tendências que surgem de
associações entre produção cultural e imagem urbana repercutem num sensível aumento
da experiência e competência “cultural” na ordem global de concepções graças à
produção diversificada em níveis de interesses ideológicos, economia, estéticas e
tecnologia abrangendo um amplo público. Abrem-se oportunidades para a
“capitalização” da cultura popular. O Coco como “cultura de identidade e tradição
brasileira” se expande, não por causa de algum aumento real de oportunidades para os
reais detentores desse saber, mas em função do aumento em diversidade das formas
pelas quais a experiência cultural é disponibilizada, e pelos diversos modos de
assimilação, e apropriação desse saber como um bem de consumo. Entretanto, o
coquista ainda vinculado a paradigmas de tradição não consegue se engajar
satisfatoriamente neste processo, e suas frustrações são revertidas em conflitos entre o
valor afetivo e significante do seu fazer, e o valor comercial e estereotipado de sua
produção.
Podemos dizer, como afirma Pereira (2006) parafraseando Frederic Jamerson,
em análise crítica da “utilização” dos eventos de música como ícones para o turismo
cultural, que a produção musical atual inscreve-se na aceleração dos ciclos do estilo e da
moda, no crescente poder da publicidade e da mídia eletrônica e no advento da
padronização universal do “pastiche esquizóide da cultura pós moderna [sic]”,
perdendo rapidamente a sua capacidade de propiciar a vivência do passado em direção a
um futuro melhor (Jameson, e Connor, 1996: 43).
Concluindo que a dinâmica de uma mercadorização do conhecimento projeta
uma redução deste na forma de sua representação simbólica afetivo-volitiva e que as
imagens de uma identidade cultural, fundada numa política de resgate de tradições, em
benefícios de interesses econômicos, podem corromper o padrão de tradição dos
coquistas quando estes se apropriam de perspectivas inerentes ao formato de
representação global.
144
CAPÍTULO 5. CENA MUSICAL: OPORTUNIDADES E PERSPECTIVAS A cena da música popular em Pernambuco revela uma dinâmica de
oportunidades voltadas ao mercado fonográfico e turístico que repercute na nova forma
de produção, distribuição e consumo de gêneros performativos. Observo, porém, que as
categorias de artistas, produtores e consumidores compõem um processo pessoal de
conceber o que seja arte, cultura, tradição, e sua respectiva familiaridade com as
particulares experiências de vida. Ana Lúcia disse que não iria mais a qualquer festa do
Coco, porque nem todas se tratavam de uma brincadeira como ela aprendeu e
experimentou desde a infância. O problema mais visível que mobiliza Ana Lúcia a tal
constatação está nos conflitos advindos das finanças que estruturam tais eventos.
Gerados pela diferença no campo do «fazer» ‘uma negociação dos espaços’, estes
eventos globalizados banalizam a relação intimista daquelas pessoas da comunidade que
ainda têm e guardam um apego ao Coco da forma antiga. Assim, identifico que duas
categorias bastariam para, grosso modo, resumirmos o público espectador do Coco de
Roda, ou outra modalidade de prática expressiva. A primeira, seria a dos ‘brincantes’ –
nativos ou iniciados não só no fazer, mas principalmente na perspectiva motivadora
desse fazer –, e a segunda categoria, aquela constituída por todos os indivíduos que se
apropriaram da performance, ou foram levados a ela por circunstâncias externas a seu
real significado, e muitas vezes adversas às suas ‘origens culturais’.
Ser sujeito localizado no ambiente expressivo de um Coco de Roda assume a
dimensão de ser também pernambucano, em toda sua essência cultural. O evento em si
não exige um saber especifico e recluso. Trata-se de oportunidade de integração a uma
luta de classe que é representada pela consagração da dança em espaço neutro – a rua.
O palco de atrações localizado em espaço público como o realizado na Rua do
Guadalupe permite que o público se afeiçoe com o evento do Coco através do contato
com os músicos que se acotovelam por entre a platéia na ânsia de atuarem nos
instrumentos dispostos por detrás dos microfones, e através da sua produção moldada
em formato de disco, suprindo expectativas entre os espectadores, do padrão de tradição
veiculado pela comunicação de massas. Sob esta perspectiva, este capítulo busca revelar
que, na cena musical em que atualmente se insere o Coco, os modos de apropriação do
conhecimento de tradição estão diretamente relacionados aos modos como a imagem
desse saber é apropriada como mecanismo de inclusão no plano global de concepções.
145
Observando que, o atual plano de relações do coquista com a tradição tende à
fragmentação e hibridismo em valores simbólicos relativos a memória e identidade
cultural, devido este processo de apropriação estar motivado pelo desejo de ascensão,
bem estar, entretenimento e inclusão social.
5.1. A Apropriação do Coco como Mecanismo Mobilizador de Mercado
O Coco, como certos cristais, apresenta uma propriedade de se fragmentar em
diversas faces imaginadas de apropriação e interpretação segundo determinados planos
de relações possíveis, concebidas por seus atores. Cada qual com uma motivação, meta
própria e comportamento específico, proveniente de uma busca a uma ocasião de lazer,
da curiosidade, de sensações estéticas, de informações, do simples comércio de produtos
relativos ou indiferentes ao evento, ou de um compromisso político, social e artístico.
Em fim, vários modos de percepção e níveis de relação estão presentes numa
manifestação popular dessa natureza.
Teixeira Coelho observa que um público é, “em primeiro lugar, uma entidade
marcada por uma relativa homogeneidade” (2004:323). Em outras palavras, Coelho
aponta que, o conjunto de pessoas que constituem o perfil de um público não se limita
apenas aqueles indivíduos que praticam uma atividade expressiva, mas que
prioritariamente remete, sob este ângulo, àqueles que assumem um mesmo tipo de
comportamento diante desta atividade, e que, sobre e a partir desta atividade, expressam
opiniões e juízos de valor consideravelmente convergentes em nível do simbólico, do
imaginário, das sensações e sentimentos. Ressaltando ainda que, não obrigatoriamente,
as pessoas presentes e ativas numa manifestação como a de um Coco de Roda devam ter
sobre este evento a mesma opinião e tipo de competência artística76, disposição estética,
atitude geral de um contexto e discurso próprio e ideologia convergente.
76 Competência artística Conhecimento, por parte de um indivíduo ou grupo (no limite, de um público), que lhe permite situar uma obra qualquer em seu contexto próprio, ao identifica-la no interior do universo artístico em que se encaixa. Não dizendo respeito a uma qualquer habilidade de execução de uma obra de arte, mas a um reconhecimento artístico. Dependendo antes de tudo da educação formal para as artes, como um delineador de/ou sinal distintivo de classe ou status. Sob este foco, a ação cultural faz servir-se das competências artísticas para facilitar a consecução dos fins por ela visados. Referência: Bourdieu, Pierre e Darbel, Alan. L’amour de l’art: lês musées d’art européenes et leur Public. Paris, Minuit, 1969.
146
Nesse sentido, a competência artística não representa uma habilidade de
execução ou articulação técnica do fazer musical ou gestual (expressão da dança), mas o
conhecimento que permite, por parte do indivíduo ou grupo, situar a obra em seu
contexto próprio. Esta competência, conforme Blacking (1973 e 1987) sugeriu, assenta
em Convenções Culturais que partem de conhecimentos adquiridos e vivenciados que
possibilitem uma plena identificação com a cultura expressiva. O desempenho musical
(poder de comunicação musical), está condicionado ao poder e competência de mediar,
adaptar ou transformar reflexivamente as convenções culturais frente às novas
experiências musicais.
Coelho (2004:94-95) verifica que a competência artística deriva, embora não
exclusivamente, de um conhecimento simbólico – codificado – de dimensões estéticas
em sentido estrito, ligado à esfera do emocional, do sensual e do intuitivo. A
competência artística assim concebida é vista como sinal distintivo de classe ou status,
tomada para a ação cultural como um meio ou instrumento, e não como um fim do
processo de aquisição dessa qualificação de status de classe. Ou seja, a ação cultural não
se destina fundamentalmente ao objetivo de habilitar pessoas à determinada
competência (poder de desempenho), pois se assim o fosse buscaria em suas ações
difundir o Coco na ótica do coquista tradicional, capacitando pessoas a concepções da
vida e de mundo respaldadas num estilo de vida pautado unicamente no plano de
relações afetivo-volitiva com a memória e valores morais que os impediriam de
experienciar o Coco como objeto exótico de consumo de uma identificação político-
ideológica de poder, prazer, entretenimento e ascensão social, como também de um
modismo global. A ação cultural da política de mercado intenta fazer uso de categorias
de competências artísticas (poder de apropriação de convenções de mercado para o
consumo) que destacam as necessidades de um público, para facilitar a consecução dos
fins da industria cultural. Desta forma, concebo que existem categorias de competência
artística que se moldam a fins de interesses específicos nas relações sociais, econômicas
e políticas das sociedades da atualidade.
Sobre este crivo de apreciação, encontramos num evento do Coco de Roda
aficionados da música popular de tradição que vindos de outros bairros, e de outros
espaços e planos de relação, em sua maioria de classe média, reconhecem o Coco como
147
mais uma forma de representação política e ideológica de classe, e expressão do seu
mundo sonoro de inclusão social (convenção global de identidade cultural imaginada).
Este público que hoje se forma, chega em bandos: das escolas, dos bares, do trabalho,
portando um conhecimento específico dos símbolos que dinamizam a dimensão estética
do gênero performativo a que estão filiados, e que por sua vez podem ser encontrados
na dimensão rítmica do Coco.
Estes adeptos de práticas culturais tradicionais constituem, na atualidade, um
forte braço da sustentação da música midiática em veiculação na cena jovem da música
pernambucana, pela aceitação desse gênero performativo na cena brasileira e
internacional. Coelho (2004:323) sustenta que numa sociedade de massas há grande
dificuldade para isolar-se um público definido ou descrito de acordo com esta exigência,
visto que o cenário cultural contemporâneo está cada vez mais fragmentado de
tendências híbridas, “(...) ao modo pelo qual, modos culturais ou partes desses modos
se separam de seus contextos de origem e se recombinam com outros modos ou partes
de modos de outra origem, configurando, no processo, novas práticas. (...)” (Coelho,
2004: 125). Este cenário cultural esboça tendências de identificação dos elementos do
Coco como pertencentes a diferentes domínios musicais. Porém, estas tendências de
identificação do público que consome o modelo de mercado do Coco, não se realizam
em seus discursos de apropriação e ideologia, mas pelo motivo dos elementos
constitutivos que identificam gêneros híbridos interculturais, originarem-se de modos
estéticos e estilísticos transplantados de gêneros tradicionais de referência da cultura
popular.
Neste contexto estão os públicos do rock, do jazz, do hip hop, da MPB, dentre
outros, que, mesmo separados por discursos e perspectivas estéticas e emotivas
distintas, mantêm entre si uma convergência na representação simbólica de elementos
do Coco na sua música, performance musical e discurso, em justificativa ao seu
desempenho musical rotulado como híbrido.
148
Imagem 23. Aymeric Lehembre em atividade na Rádio Panik, Bruxelas. Imagem por ele cedida em Janeiro de 2007.
Imagem 24. Caju e Castanha. Imagem acessada no site Google.com, em 22.06.2006
A este exemplo, Castanha, da dupla de emboladores77 Caju e Castanha78 (2005),
afirma, em entrevista cedida em Paris a Aymeric Lehembre, da Rádio Panik de
Bruxelas, durante a execução da programação das festividades do ‘Ano do Brasil’ na
França (ação cultural anual do programa de política cultural do governo francês,
realizado em 2005):
“ É pra nós uma honra muito grande vir aqui intercalar essa
mistura de ritmos, ... trazer essa brasilidade, né! A música
pernambucana, a música nordestina ... e a música brasileira, que
é a embolada ... que misturando-se com o forró; misturada com a
sanfona de Dominguinhos, né! E o baião de Luiz Gonzaga!.....
e!!! ... a embolada do Caju e Castanha ...o rap ... né! Do rap
wood !! ... e ! ... toda essa mistura de ritmo, que estamos trazeno
.... do ... brasileira, né! Pra mostrar, aqui, na
França...(....)...Estamos contente ... que ... novos horizontes que
se abre! Novas porta! E nós estamos muitos feliz!!”
[Castanha: 2005]
77 Embolada é um estilo performativo do gênero Coco, que se caracteriza pela disputa em desafio entre dois cantadores de Coco. 78 Ricardo Alves da Silva (Caju) e José Roberto da Silva (Castanha), dupla de emboladores pernambucanos com vinte e sete anos de carreira e quatorze de edição de discos, que utilizam elementos do coco de embolada como componente de suas carreiras profissionais na industria de discos.
149
Imagem 25. Castanha, do grupos de emboladores Caju e Castanha. Imagem acessada no site Google.com, em 22.06.2006
No decorrer da entrevista, Aymeric Lehembre (da Rádio Panik), buscando maior
aprofundamento do contexto e caráter estético e estilístico da embolada, estimula
Castanha a um discurso de esclarecimento desta forma de se fazer Coco através de uma
comparação articulada entre embolada pernambucana, que Aymeric, em seu juízo,
citara ser a verdadeira embolada do Brasil, e a embolada francesa, dos fabulosos
Troubadours, Castanha faz a seguinte categorização:
“(...) a embolada francesa, ela é um pouco meio rap, né! Ela leva
uma levada, uma batida de rap. E a embolada brasileira, ela ........
realmente ela leva ... é! ... , não deixando de também ser um rap;
tanto é que o pessoal do rap brasileiro fala que a embolada é a
mãe do rap! Então, é o seguinte, aqui eles usa também os
instrumentos mas numa batida de rap. Lá agente usa os
instrumentos mais numa batida de forró (...)”
(Castanha:2005)
Castanha, em seu discurso deixa evidente a ideologia dominante nesse segmento
do mercado da música que busca legitimar a pratica de um fazer musical global de
identidade multifacetada, através de sua aproximação ao local. Ainda nesta categoria
ora retratada, estão os músicos que se valem da oportunidade para apreenderem uma
fórmula-chave que se reverta em favorecer sua performance na reprodução e ou
aplicação destes matizes da música popular, no seu espaço e tempo de atuação musical.
Estes que compõem uma requintada classe de público, que, em sentido restrito, detêm
domínio e acesso não só ao poder de competência artística como também ao da
disposição estética, vêm de procedências diversas, destacando-se dentre todos, os
pesquisadores e músicos estrangeiros, que apenas por sua presença provocam um misto
de inquietações e estímulos em torno de toda valorização e reconhecimento desta pratica
expressiva entre os músicos, sejam profissionais ou amadores.
150
Não seria difícil de identificá-los [os pesquisadores e músicos estrangeiros] em
meio ao público que freqüenta os Cocos ou outros gêneros expressivos em pauta nas
programações culturais da região metropolitana de Recife. Quando em suas atividades
de investigação estes passam muitas das vezes a competir com o próprio evento por
suas diferenças biofísicas, estéticas, costumes e comportamentos ao que é comum e até
então pouco valorizado pela população do lugar, como também pela parafernália de
equipamentos e acessórios de registro em vídeo e áudio que trazem consigo. Identifico
particularmente este agente externo como interface entre o crédito e o descrédito de um
fazer tradicional, antes deslocado e antagônico, e agora simbólico de identidade e
gênero local representado a nível global.
5.2. Conflitos entre Fama e Satisfação Pessoal
Em outubro de 2002, quando em sala de aula do Centro de Criatividade Musical
do Recife – escola técnica profissionalizante voltada à formação musical de jovens da
rede pública de ensino do Estado de Pernambuco –,como professor de bateria, fui
visitado por Aymeric Lehembre, um rapaz de procedência européia que se identificou
como radialista da Rádio Panik, emissora de radiodifusão de Bruxelas. Aymeric, fora
trazido até mim por um aluno (Rone Gomes). Aymeric buscava informações sobre a
cena musical jovem de Recife que desenvolvia uma relação com a tradição local. Suas
questões giravam em torno da origem e da forma de cada género musical, e como se
concebia a química do hibridismo no mangue bit, e noutras tendências que veiculavam
no panorama sonoro Belga (World Music).
Após este contacto, Rone Gomes tornou mais transparente sua intenção em
conhecer profundamente os gênero e estilos que faziam parte do seu universo de
percussionista e trompetista profissional. Dessas conversas, travadas em aula e nos
corredores, descobri que como ele, eu partilhava desse mesmo universo de gosto,
conhecimento e experiência no seio familiar, e que minha formação musical estava,
desde seu início, dissociada do universo popular de tradição oral. A partir de então
procurei de imediato ir ao encontro do mundo sonoro no qual estava imerso, mas que
paulatinamente me distanciara pela perspectiva da aquisição da erudição européia como
151
única e real forma do saber. Via de regra, a idéia imanente de profissionalização musical
perpassa pela formação erudita, em conservatórios, escolas de música, ou bandas
musicais (nas cidades do interior), como também na aquisição de comportamento e
vocabulário específico musical, além do manuseio de tecnologia mecânica e eletrônica
peculiar ao cotidiano sonoro musical dos especialistas (instrumentos e equipamentos
musicais, microfones, etc.).
No plano oposto de relações com a música, os artistas populares não vivenciam
a experiência musical por seu valor comercial, mas sim por uma realização afetiva com
a memória. Porém, confrontados nos seus cotidianos com a nova dinâmica pós-
moderna, experimentam ver seu conhecimento ser manipulado como mecanismo de
conquistas e ascensão social pelo sistema de articulação do tradicional pela indústria
cultural, fato que se reverte, em suas histórias de vida, numa busca de inclusão no
mercado da música pop e world music, na esperança de melhora financeira e ascensão
social. Esta tendência entre coquistas permite que se perceba o confronto entre as
representações afetivas com o modelo de mercado que sugere a assimilação de
perspectivas globais e adoção de procedimentos e funções técnicas (educação musical
formal, performance musical em palco, domínio de conhecimento técnico de estúdio,
aprimoramento da dicção e oratória, coreografias performáticas, etc.), que representa a
aquisição de competência dominante. Fato que revela um estigma interiorizado pelo
artista popular, de que seu saber é redutor em seu valor musical para o mercado, e que
sua competência depende do juízo e arbítrio das convenções dominantes. Em exemplo,
cito o Mestre de Dédo79, pescador de profissão, que em 2005 experimentou o mundo
dos discos ao fazer parte do CD ‘Coco do Amaro Branco’ produzido por Sambada
Comunicação e Cultura, através do programa de incentivo Funcultura, quando disse:
“Quando a gente não espera é que sai. Eu nunca pensava vir num lugar desse
maravilhoso pra gravar Coco! Eu não tinha nem idéia! Aí chegou aquela menina, Isa
[Isa Melo] ... até que fim que a gente chegou! E hoje em dia me sinto feliz com a
história do meu Coco(...)”. 79 Mestre Dédo foi um coquista do Amaro Branco, compositor e exímio batedor de Coco (tocador de Bombo) que, com seus 59 anos (no período de investigação em terreno, 2006) de idade, passa aproximadamente 20 dias por mês em alto-mar como pescador. Sendo este seu universo inspirador de suas composições. Dédo Aprendeu a arte do Coco com seus irmãos que animavam as rodas de Coco na região. Porém, no início de 2007 (data que não me foi informada), quando já se encerrara das investigações em terreno, Mestre Dedo veio a ser vitimado fatalmente após desentendimento no seu ciclo de relações.
152
Imagem 26. Marc Règnier, Imagem acessada no Google.com, em 26.08.2006
Mestre Dédo, que tomo aqui em exemplo as atuais tendências no universo
simbólico de um artista popular, passa a construir em seu imaginário a perspectiva de
um profissionalismo como músico e cantador de Coco, o que raras vezes se concretiza,
visto que estes atores não conseguem se moldar a um perfil de performance de palco e
absorver ou ser absorvido pela indústria discográfica. Este problema é recorrente entre
coquistas que não conseguem tão facilmente se desligar da dinâmica em que estão
imersos. Estas conclusões surgem de observação e de depoimentos de produtores que
relatam os problemas enfrentados por um cantador popular quando se envereda no
percurso de relações midiáticas de produção e de consumo.
Marc Régnier citou que em seu selo Outro Brasil, o cantador e exímio
rabequeiro Seu Luiz Paixão não conseguiu se moldar
satisfatoriamente ao público europeu, visto que sua
performance estava limitada a um padrão típico de
apreciação do nordestino, ou do público brasileiro de música
de tradição oral. E como o público de alcance do Outro
Brasil não é exclusivamente de brasileiros em terras
européias, mas sim de europeus apreciadores de música do
Brasil e do mundo, o artista tem que seguir a lógica de
performance em consonância com a demanda do público alvo do selo de Régnier.
O sucesso do CD de um artista popular, que num primeiro momento é veiculado
e reconhecido na esfera de coquistas, artistas populares e cena elitizada da ‘música
folk’, ‘raíz’ e ‘world music’, traz consigo um isolamento daquele que antes convivia e
interagia livre e espontaneamente com o grupo, e agora, diante do conflito de relações
pessoais resultante do sucesso, vive isolado, vindo a mudar seus grupos e princípios de
relação. A esse exemplo cito o clima de intriga e desconfiança presente num show
público de Coco, realizado em plena rua:
153
Os músicos se revezavam sobre um mesmo instrumento durante a execução de
uma canção. Os coquistas estavam lado a lado cantando clássicos da antologia popular e
suas composições de coco. O público, num mesmo plano do grupo de coquistas,
circundava o desempenho destes num grande frenesi, dançando e respondendo os
refrões. Porém, eu que estava como observador e não brincante, apesar de me conter
com muito esforço para não cair na folia do cantar e dançar presenciava o confronto de
competências travado em pleno palco.
Os tocadores de ‘melê’80 concorriam para tomar posse do lugar e instrumento
executado por outro instrumentista. E quando de posse do almejado instrumento, fazia o
possível para desfazer a imagem de bom músico conquistada pelo tocador anterior, ao
mostrar competitivamente toda sua habilidade e técnica. Muitos dos músicos, a que me
refiro, eram iniciados no candomblé ou umbanda, e quando não, eram músicos de
outros níveis culturais de performance que, ali inseridos por certo grau de relações,
buscavam adquirir desempenho e competência técnica condizente com seus fins e
interesses extralocais.
Da mesma forma, os cantadores procuravam mostrar seus dotes frente ao
desempenho do outro coquista. Pombo Roxo observa que, muitas das vezes, os
cantadores que aderem a práctica de autopromoção por ganância, numa clara
concorrência com seus iguais em nome da fama num mercado que se abre, eram e são
postos à prova quando vierem a dividir o palco com um coquista famoso do lugar.
Hoje o músico também se impõe ao mercado por sua atuação fora do palco.
Numa mesma proporção, o género e estilo, ou categoria musical a que está vinculado
seu trabalho, e mais ainda, sua atuação em graus de relações sociais fora de palco
determina a classe intelectual de seu público e conseqüentemente o valor social de sua
obra. Não é de hoje que profissionais passam a estar relacionados, no imaginário
coletivo, a um universo musical de sua performance, como nativos e até autoridades de
uma originalidade do que dizem e fazem. Porém, em manifestações populares como o
Coco de Roda, quando ainda moldadas numa perspectiva de ‘brincadeira’, a dimensão
80 Na nação afrobrasileira Nagô os instrumentos musicais de ritual (membranofones de pelo animal) de timbre mais agudo (diâmetro menor) designa-se Melê.
154
de respeito à competência e qualidade de um coquista está relacionada à sua maturidade
no evento, condição sine qua non preservada por um critério de experiência no fazer.
Desta forma, no fazer tradicional, a fama do artista popular é proporcional ao
reconhecimento público de uma competência e desempenho funcional, enquanto que a
fama do artista profissional é majoritariamente vinculada a um desempenho estético-
visual de um género híbrido. O que marca uma tendência ao culto da imagem.
O que distancia um plano de criação e performance peculiar de tradição oral do
plano de criação e performance prescrito que hoje se impõe no mercado de
entretenimento, é a proximidade entre o artista e seu público. No plano de tradição oral
o fazer musical ocorre numa dimensão horizontal com a comunidade, na qual a relação
está pautada pela interação e integração entre os participantes enquanto ‘músicos’ e os
participantes enquanto “público”.
5.3. Dimensões Econômicas, Políticas e Sociais do Coco no selo ‘Outro Brasil’
A demanda presente na cena pernambucana do Coco de Roda reverte-se numa
produção musical vinda de fora dos conservatórios das escolas de música. A produção
musical, pelo contrário, surge nas esquinas, nas garagens, em quartos fechados, nas
ruas. Os recursos dessa produção são múltiplos e multiplicáveis segundo o potencial dos
indivíduos se articularem em grupo. A música rotulada de folclórica supre a necessidade
de delimitação das fronteiras – um regulador espacial que toma dimensões políticas,
quando tratado em relações transnacionais. Marc Règnier observa este caráter político e
social de sua função de empresário e produtor musical do selo Outro Brasil quando diz:
“ (...) Ah! Pessoalmente, o trabalho que eu faço é extremamente
satisfatório. Com uma dimensão quase política, do que eu faço. Volto
aos meus estudos de diplomacia, de relação internacional – que eu
tenho muita dificuldade para explicar pra minha vó! Mas que é um
fato. É uma dimensão política ... Cultural e Política ... CULTURAL e
POLÍTICA, né? Ou POLÍTICA, né? Que passa exatamente pela
155
cultura. De fazer descobrir uma outra coisa ... um “OUTRO
BRASIL”, pro público daqui !!!
Claro, claro !! Tem uma dimensão política, meu trabalho tem uma
dimensão social. Mais social, vamos dizer ... pros músicos
brasileiros, a quem eu dou uma oportunidade; e uma dimensão
política pro pessoal daqui [França] de descobrir uma outra cultura.
De ver que tem outras pessoas, e não só ... produções européias
fazendo ... Reaquecendo a proposta da bossa nova, entendeu?
Misturando tudo em Jazz...”
[Marc Règnier, em entrevista no Café du Nord, Paris, 24/03/2006]
Através do seu selo “OUTRO BRASIL”, Règnier passa a ser uma via de
referência no imaginário dos músicos profissionais, ou daqueles que querem ser
músicos em Pernambuco – os “ouvintes-compositores” – e fantasiam através da
actividade de Règnier, sua inclusão no mundo dos discos e shows no exterior. Règnier
passa a ter desde então, sua perspectiva de competência e desempenho considerada
como modelo de performance a ser alcançado pelos artistas populares. Isso reverte para
Règnier como uma grande responsabilidade em suas observações.
“Eu ... há (02) duas semanas atrás estava no Recife, para ...
convidado para Conferência, fiz uma Conferência sobre minha
própria experiência ... é bom! ...
E de noite tinha uns shows ...
Bem! Não vou citar nomes ... mas tinha uma banda diferente, que é
bem conceituada hoje em dia lá na cena de Recife. Tocou! É bom! È
muito bom! Excelentes músicos, bom repertório, muito bem
executado, tudo muito bem feito, mas... mas ... falta magia!
Logo depois disso, entrou Erastos Vasconcelos, começou o show
dele, e ali meu sorriso abriu! Ali havia magia. Ali havia alguma
coisa que não sei definir. Não sei como quantificar, mas é magia!
156
Não sei como explicar, há uma parte de magia na musica que me
fascina até hoje, e que faz que ...
As vezes eu penso ... ‘ homem! após ... eu ouço tanta musica! Eu vejo
tanto show por semana ... minha esposa é jornalista musical, a gente
vai a 3(três), 4 (quatro) shows por semana aqui em Paris, a gente vê
de tudo! ... Tudo! ... E às vezes eu passo 3(três), 4(quatro) meses sem
me emocionar com um show.
– Ora bom! Será que eu cheguei nofinal da linha, será que
nunca mais vou me emocionar? E de repente, ... é igual quando você
tem uma história de amor que acaba ... e diz : Não! Nunca mais vou
me apaixonar! Sofri, sofri demais! E um dia quando você menos
espera, bum! A magia te pega assim![num estralar de dedos]. A
bofetada te pega sem você esperar! E ali marca de prazer! Que bom!
Que bom!’ Entendeu?”
[Règnier, em entrevista no Café du Nord, Paris, 24/03/2006]
Selos como o Outro Brasil criam mediascapes (Appadurai 1996), como um
portal virtual, do qual territórios globais de imagens do real são capturados e difundidos
através dos canais mediáticos, criando um espectro alargado de experiências não
vividas, disponíveis, assimiláveis, livremente interpretáveis, confundindo o real com a
ficção. Sua alargada difusão contribui para corroborar a idéia da inexistência de gênero
musicais estanques e essenciais. Discurso que tomou corpo no movimento mangue beat,
qual buscava capturar os valores contidos no passado como elemento de apropriação e
transformação num novo tempo e espaço, por meio de uma reinterpretação de princípios
harmônicos, melódicos e rítmicos da tradição do Coco de Roda, Coco de Embolada, da
Ciranda, do Cavalo Marinho, do Maracatu Baque Solto e Baque Virado, Gira de
Mestre, Toques de Umbanda, entre outras manifestações presentes na cena de Recife.
A argumentação do “caos” toma conta do movimento jovem da cena de
Pernambuco a partir de Recife, se alastrando ao interior do Estado, eclodindo em novas
tendências de se fazer o popular dos avós de forma vanguardista e conectada com os
recursos tecnológicos. Antes, a música e costumes tradicionais não eram consideradas
157
Imagem27. Chico Sciènce. Imagem veiculada no site em wwwlemangue.com. 24.05.2005
como expressividade do futuro vigoroso, radical, dinâmico e
juvenil, mas sim de um passado caduco e até vergonhoso.
Chico Science (Francisco França) encabeça essa tendência na
música, por um hibridismo do fazer tradicional numa
linguagem imersa no contexto globalizado, fazendo uso em
sua linguagem de imagens do caos tecnológico fundido ao
caos do passado. Seu tema é atual e a base de seu som é do
passado. Seu vocabulário sonoro é neo-psicodélico e serve de
pano de fundo a temas atuais do hip hop veiculados na
periferia das metrópoles. Essa argumentação atrai o público
jovem à tradição, mas como um simples instrumento de expressão e não como elemento
cultural de integração social.
Contador (2004) identifica esta tendência em quase todas as manifestações
negras urbanas da contemporaneidade, mas principalmente no rap e no techno. Sua
observação aplica-se o caso pernambucano da nova geração de bandas, que se
apropriam dos elementos do rap e techno como mecanismo de hibridação dos gêneros
tradicionais ao rock, funk, hip hop, jazz, e aos próprios rap e techno. É de se observar
que os elementos matizes dos gêneros da tradição local guardam nesse processo uma
vitalidade em tempo real das dimensões e experiências dos ouvintes.
Rone Gomes, percussionista do grupo olindense Dun Dun Batá, em depoimento
a nova cena musical no mercado global, em Setembro de 2004, disse:
“ Isso gira e dinamiza todos a quererem fazer alguma coisa, porque eles
têm aquele ideal, aquela coisa! Movendo eles, e que começa a movimentar
tudo!”
O selo Outro Brasil põem em ação todo um processo de apropriação de uma
imagem global ideal de um fazer, como um pacto de inclusão. Em sua sensibilidade,
Règnier justifica o prestígio da produção musical brasileira no cenário World Music,
por ele dinamizado na França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Suécia, e outros países da
União Européia, para onde Pernambuco hoje é um pólo cultural dominante:
158
“ (...) Um país onde se faz isso: é o Brasil! Porquê? Porque o Brasil,
ele é... a música brasileira ... ela é a forma de fusão de tantas
influências ... africanas, índias, e européias ... e isso pra mim é world
music. O Brasil seria o país da world music, entende? No sentido de ,
realmente, ... onde você pode encontrar, eh! Elementos, inspirações
da música do mundo inteiro. Muita gente, eh!!... é engraçado o
exemplo, essa coisa .. no úlimo show que a gente fez com a Renata
Rosa, eu achei a Renata .... no show dela .... tanta gente que não
conhecia a música dela antes, ... é por isso que é um show! .... eu já
ouvi pessoas me dizendo: Cara! isso me lembra .... o ... Isso me
lembra a música do ... do Mali; isso me lembra as polifonias lá da
Indonésia; .... é cara! Isso me lembra a música Celta; cara isso me
lembra a música Cajan ...... né, do ..... lá da Luisiana!”
Esta dinâmica econômica, política e social, incide diretamente no fazer dos
coquistas a partir do momento que estes fantasiam o estrelato da fama e a estabilidade
financeira. Pois se um artista que “não sabe nada da cultura” (Ana Lúcia,2004, quando
em entrevista), foi até a pessoa do cantador popular ou do batedor de zabumba para
aprender esse saber tradicional, e hoje está retratado em revistas e jornais como estrela
da musica tradicional pernambucana, por quê o coquista nativo, e afetivamente
envolvido no evento Coco de Roda, não conseguiria, ou melhor, não pode igualmente
conquistar um espaço de sucesso profissional como músico?
Tal questionamento está no olhar de apreensão do artista popular que, fazedor de
Coco de Roda apenas como uma brincadeira, se sente espoliado e injustiçado pelos
fatos materializados na sua realidade. E sonha enterrar suas decepções logo que entre
pela porta de sua história de vida, uma pessoa (produtor, pesquisador, político),
empresa, ou instituição, que lhe traga esperança e oportunidades de trabalho e riqueza.
159
5.4. Conclusão
Atualmente, a trajetória dos coquistas tem sido concebida e empregada em nome
de uma possível “vocação” contemporânea (da competência com o passado),
relacionada ao turismo cultural e ao mercado de eventos de porte internacional,
entendendo a indústria cultural, os serviços especializados e a alta tecnologia como
manifestações mais que “naturais” de uma metrópole. Essa relação provoca o
descontentamento dos coquistas com o fazer banalizado de um evento de tradição.
Entretanto, quando este fazer redutor é revertido em dinheiro e melhoras sociais, a
ideologia de uma pureza e autenticidade é posta em causa, cedendo lugar aos rótulos
que se revertem em moedas.
O que mais me transpareceu em Ana Lúcia e Severino Pombo Roxo foi que seus
mundos particulares de relações do cotidiano não mudou. Eles são os mesmos, gostam
das mesmas coisas que antes, guardam a mesma simplicidade para os fatos da vida,
trazem o Coco como uma expressão de sua personalidade, que fora adquirida pela
vivência, pela fé, pela paixão, pelo amor, pela tradição de um costume oral ser
estabelecido quando relacionado com o imaterial, com o imanente, com o mágico, com
o divino. O Coco é uma relevante motivação em suas histórias de vida. Suas relações
assemelham-se pelo compromisso com a idéia contida no Coco que lhe dá sentido e
significado. O Coco é um Patrimônio íntimo de cada um. O que mudou foi o meio em
que estes atores estão imersos.
Igualmente a outros coquistas, Ana Lúcia e Pombo Roxo não conhecem os
artistas de Coco festejados pela mídia de massas e pela indústria cultural que dinamizam
os festivais nacionais e internacionais, e selos de disco e produção de cultura, ficando
seu ciclo de relações e contactos restrito ao meio local e tradicional de realização.
Ana Lúcia não consegue se encaixar como coquista no novo paradigma que rege
a lógica dos coquistas hoje globalizados que, na sua concepção é totalmente diferente no
modo de ver as coisas e de se relacionar com os fatos. Para Ana, o contexto está
160
mudado, embora o Coco em sua perspectiva ainda seja o mesmo, o que a leva a tentar se
encaixar na maquina do mercado fonográfico. Gravar um disco é no que mais se fala.
Esta motivação, mesmo apenas trafegando no plano do simbólico, é necessária para a
coquista se fazer prevalecer como artista e autora frente os que ela considera
aproveitadores da produção dos legítimos representantes dessa manifestação expressiva.
Ela não tem a verdadeira noção do dinheiro que se movimenta na produção, prensagem
e distribuição de discos, e nem da proporção e repercussão (no campo jurídico,
trabalhista, político e financeiro) disso em sua vida. Sua expectativa é poder comprar
uma máquina de lavar nova, um refrigerador (frigorífico), reformar sua casa, adquirir
eletrodomésticos, comprar um carro. Enfim, sua relação com o Coco mercantilizado
pela lógica da espetacularização do saber tradicional é unicamente econômica de
ascensão financeira sem perca do estatuto social de coquista tradicional.
Severino Pombo Roxo, não consegue se encaixar como coquista no novo
paradigma que rege a lógica dos coquistas hoje globalizados por falta de oportunidade.
Mesmo envolvido com o Coco por relações sentimentais com o fazer tradicional e o
compromisso litúrgico nas Giras de Mestre, sua história de vida, marcada pela memória
de miséria, não o possibilitou escolher vivenciar o Coco apenas pela devoção e prazer.
Desde cedo complementou suas rendas, quando as tinha, como cantador de Coco nas
ruas, bares, bordéis, feiras, ou onde houvesse possibilidade de arrecadar capital
necessário a sobrevivência. Pombo Roxo, hoje como sempre, entrevê na função de
coquista uma porta de saída da sua realidade sofrida. A mercantilização do formato
«coco» não o aflige, pois ele guarda a certeza que o formato do espetáculo é uma
manipulação do imaginário do público, e não dele. Como Ana Lúcia, ele espera
melhorar pela música sua condição de vida. Nunca vi, nem ouvi, nas resumidas
oportunidades de contacto com ele, sua preocupação com o futuro. Sua necessidade está
no presente. É o agora que deve ser mudado. Por isso ele não teme o futuro do Coco,
pois é apropriado para o momento atual. O futuro, para Pombo Roxo, tem a mesma
dimensão do passado, pois não é o presente.
Este desencaixe entre a realização do Coco no espaço tradicional, e no mercado
fonográfico, turístico e de espetáculos, se reverte numa desqualificação conceitual do
coquista restrito ao local frente o artista performers divulgado pela mídia. Este fato
confunde o grande público na identificação e qualificação do melhor e mais original
161
representante desta prática expressiva. Concluindo que as dimensões econômica,
política e social presentes no imaginário de realizações (sonhos e fantasias) pessoais,
nas histórias de vida de atores do Coco de Roda em processo de globalização do seu
saber, reverte-se num processo de desencontros e conflitos no cotidiano dos coquistas.
162
Observações finais
O Coco é um dos géneros performativos tradicionais do Nordeste do Brasil.
Cumpre notar que a diversidade de sua ocorrência induz atribuir-lhe um tratamento
plural. Sua atividade em contextos de cruzamento étnico, com predominância de negros
e indígenas, lhe confere uma identidade mestiça que também se verifica em discursos de
brasilidade. Porém, a predominância de contrametricidade (3+3+2) no desempenho dos
membranofones (tambores) e idiofones (mineiros e ganzás), destaca o domínio de
culturas afro-brasileiras.
Conforme as narrativas de Ana Lúcia Nunes da Silva (Ana Lúcia do Coco) e
Severino José da Silva (Pombo Roxo) – ‘coquistas’ independentes do eixo de
realizações e incentivos das políticas públicas e privadas –, seus conflitos advindos das
renegociações entre paradigmas do passado e do presente contribuem como pano de
fundo na realização dessa actividade expressiva.
Diante da emergência, em suas vidas, da necessidade de uma ascensão simbólica
no plano social e econômico, os coquistas não percebem o processo e conseqüências
advindas da dinâmica da mudança que paulatinamente se dá nos seus processos de
criação e performance, nas relações sociais, no contexto de realização, nos significados
e valores simbólicos.
Na concepção de Ana Lúcia do Coco e Severino Pombo Roxo, o processo de
criação do Coco ainda permanece inalterado, pois estes actores recorrem à estrutura
composicional transmitida por seus Mestres.
O sentido religioso contido no Coco de Roda está refletido na concepção
particular que Ana Lúcia e Pombo Roxo dão ao Coco, enquanto música e contexto.
Com o advento do formato comercial do disco, o artista popular passa a buscar uma
dinâmica de criação que se molde a um público deslocado do seu plano de expressão e
163
realidade contextual. Neste formato de relações, o processo de integração cultural não
contempla uma proporcional interacção entre criador e espectador.
Surgem o produtor musical e o consultor artístico, como mediadores entre o
artista criador da obra de arte e o espectador que demanda esta criação. Com base em
sua experiência com eventos artísticos e poder nos meios de interesses econômicos,
políticos e de serviços culturais, a oferta, investimento e demanda de consumo passa,
por sua ação, a construir uma consciência social comum ao Coco. Assim, o Coco de
Roda vem a suprir demandas de investimento por parte de indústrias que buscam
oportunidades de distribuição de seus serviços e produtos, de experiências culturais de
pessoas ligadas com o mercado de música regional e world music, segundo suas
necessidades de entretenimento, conhecimento do “outro”, ascensão social e lazer, e as
necessidades dos coquistas e brincantes no exercício da memória, inclusão social,
realização de aspirações e identidade cultural.
Os espaços de relações nos quais o coquista está envolvido, estão representados
em seu repertório, quando testemunha em seu cantar fatos do cotidiano ou quando
delimita fronteiras qualitativas deste espaço de criação, ao tecer comentários redutores a
outros modelos de criação (profano, religioso, histórico).
O caráter familiar contido nesta prática é uma dominante na história de vida de
coquistas tradicionais. Esta dimensão de relações influi diretamente no grau de
apropriação dos padrões necessários para que o artista popular entre competitivamente
no mercado da musica, o que implica observar que, quanto mais envolvido
emotivamente com a forma de tradição herdada por transmissão oral, menos o coquista
se integra nos paradigmas globais.
Na conjuntura atual da cena musical pernambucana, a dinâmica de realização do
Coco está direcionada em prol de uma ascensão social. A idéia de sucesso e
reconhecimento num campo de ação está diretamente condicionada a conquistas
financeiras, e não a conquistas emotivas. Cantar Coco é uma forma de angariar recursos
para sobrevivência e manutenção familiar.
164
As dificuldades de estabilidade profissional para os coquistas provoca decepções
e angústias advindas da atuação profissional, quando nesta o artista popular tem que se
dispor a romper seus laços emotivos e éticos com o evento, frente aos paradigmas da
comercialização de sua arte.
Existe na narrativa de Severino Pombo Roxo, a idéia de uma família alargada
pelo fazer do Coco. Surge entre os coquistas a afinidade de um interesse comum pela
rememoração de suas raízes, na continuidade de uma tradição, pela alegria e festa
dinamizada pela devoção e crença em consagração a Santos, espíritos, ideais políticos
ou de classe. A realização social prevalece como um marco de sua importância como
realizador dos seus paradigmas funcionais na família e comunidade em que se considera
pertencente.
O coquista, quando se dispõe a actividade profissional de artista popular em
plenitude, passa a experimentar o isolamento da fama ou abandono pelo fracasso, que se
estabelece em relações ambivalentes dominadas por vantagens e interesses financeiros.
A desconfiança toma conta de suas impressões, e os relacionamentos, antes
espontâneos, tornam-se arbitrados pela conveniência. O medo passa ser uma dominante,
e os recursos jurídicos fazem-se necessários.
Apesar de ser uma expressão de origem na liturgia afro-brasileira aos Mestres e
Orixás da Umbanda e Candomblé, respectivamente, o Coco de Roda está intimamente
ligado à devoção católica a São João Batista. De modo geral, o Coco tradicional surge
num evento que contempla uma intensa relação dos indivíduos enquanto colectividade.
A criação em moldes de tradição se dá pela exposição de fatos que o coquista capta no
cotidiano, numa estrutura de verso e prosa em que a integração do público é
estritamente necessária.
O Coco no universo de seus detentores não é o mesmo representado fora de seu
contexto original, pois a performance estandardizada pela indústria do entretenimento
necessita de um formato regular e estereotipado que possa ser etiquetado como
categoria de consumo no imaginário intercultural.
165
Como dimensão de expressões em representação as experiências do cotidiano, o
Coco está distintamente separado em dois planos: o plano religioso, que dinamizam
suas relações com os Mestres e Orixás; e o plano secular profano, referente às relações
de mercado e à de sobrevivência. A relação entre o ‘ fazer’ e sua apropriação é
diretamente proporcional ao contexto de sua realização (palco de representações). Ou
seja, o contexto que proporciona a experiência passa a ser uma das referências de
identificação qualitativa do evento e sua apreciação.
A idéia de fazer Coco de Roda, concebida pela demanda de público aficionado a
esta expressão, é construída por um discurso de identidade, originalidade e tradição
advindo de políticas culturais. O público do selo “Outro Brasil”, concebe o Coco, por
aquilo que experimentou em palco ou através de CD’s, e não pelo que o coquista
experimenta em suas relações emotivas com o evento. O público que atualmente se
aglomera em torno de uma festa de Coco de Roda, na Região Metropolitana de Recife,
busca momento oportuno de reafirmar suas referências identitárias pelo exercício da
memória, uma memória contemplativa de uma dimensão da tradição emotivamente
imaginada que se realiza simbolicamente no contexto da festa. Esta dimensão de
sublimação da identidade está deslocada em sua concepção, da dimensão da memória de
uma ação concebida pelo coquista no seu ‘viver’, ‘ sentir’ e ‘fazer’ Coco de Roda.
As estruturas tomadas como estáticas, pelos coquistas ligados emotivamente à
tradição, se dão num plano abstrato e do simbólico de sua realização, pois surgem de
um diálogo íntimo entre ele, o coquista, e a imagem de um modelo ideal contido na sua
memória. A dimensão micro-familiar e local de sua realização denota que o coquista,
como o brincante, guarda neste fazer uma relação emotiva com a memória. Esta relação
se estabelece por uma renegociação dos paradigmas do passado em resposta à nova
dinâmica social dos centros urbanos. A memória passa, assim, a compor uma clara
relação com crenças, valores e costumes que surgem do processo de recordação social e
que dominam a concepção particular de identidade abstraído por seus agentes.
Quando argumentam que sua representação desse modelo ideal é mais legítima e
autêntica que a de outros artistas populares (coquistas e performers), Ana Lúcia e
Pombo Roxo recorrem ao plano sentimental de suas experiências de vida nas quais a
sua prática do Coco de Roda está ancorada. Este processo de apropriação simbólica se
166
dá num plano contextual de sua realização, no qual o imaginário estimulado pela
experiência é amarrado na memória por referências simbólicas de identificação e
familiaridade de uma identidade. A diferença entre concepções construídas de uma
referência está em quem faz a narrativa e como se faz, no momento da apropriação
imagética do evento e sua acomodação na memória e respectivo resgate.
O Coco de Roda é assumido por seus detentores e agentes da política cultural
como manifestação econômica e simbólica, quando passa a representar interesses de
produção e consumo de um modelo de identidade cultural. Sua inclusão no sistema de
bens imateriais de consumo provocou a mudança de perspectivas dos coquistas e
músicos profissionais que antes recorriam a festa do Coco como brincantes. O valor
contido nesse saber, atualmente vai além do participativo, pois se torna necessário um
aprofundamento técnico que proporcione uma assimilação de competência de
performance apropriada para os palcos e estúdios de gravação.
Desta forma, a competência de articular um instrumento dentro de um padrão
contramétrico, próprio do Coco, faz parte de uma das estratégias de ascensão conceitual
dos músicos profissionais na cena local e global e pernambucana. Hoje não mais se
admite que um percussionista pernambucano ignore a técnica de um ritmo local como o
Coco de Roda.
De outra forma, os coquistas buscam através do Coco de Roda, oportunidade de
ascensão social e melhora financeira, que via de regra se materializa pela aquisição de
imóveis e bens eletrônicos de consumo. Esta dinâmica de aspirações e mecanismos de
inserção social, denotam a consciência e reprodução, mesmo que inconsciente, de um
sistema de exclusão social do qual busca escapar.
O processo de midiatização globalizada demanda um estado de transformação e
apropriação de uma referência de identidade, que na conjuntura atual, está regulada pelo
processo e expectativas decorrentes da mundialização do Coco. Neste processo, os
média seguem as tendências da demanda pelo lazer e entretenimento, no qual o Coco de
Roda é articulado por relações ambivalentes de aspirações de ascensão social,
necessidade de lazer e entretenimento, e interesses econômicos de produção e consumo.
167
A partir do momento em que o Coco de Roda foi enquadrado num estatuto
qualitativo de arte e performance, seu fazer passou a ser concebido segundo critérios
redutores de classificação. A política cultural que hoje rege as ações de salvaguarda e
entretenimento não guarda compromisso com os interesses e necessidades dos
coquistas. A dinâmica destas ações serve unicamente as perspectivas globais de
consumo.
Desta forma, concluo que as classes de atores que envolvem a música do Coco
de Roda e sua midiatização, concorrem em suas interconexões (sociais e políticas de
cultura), a estabelecer formas consensuais de unificação da identidade cultural
imaginada em Pernambuco, regendo-se por perspectivas da industria cultural.
Neste processo, os critérios utilizados de seleção do representante ideal da
autênticidade e legtimidade do Coco como atividade expressiva, ficam submissos ao
imaginário ideologicamente veiculado ao nível do público, sistema de política cultural e
comunicação de massa, que concebe o Coco segundo suas perspectivas particulares das
motivações, contexto de realização e performance deste gênero como fenômeno
musical. Como os agentes da política cultural e comunicação de massas atuam em
funções de categorização da arte e dos artistas, o critério de seleção da melhor atuação
do Coco, passa a ter como ultima palavra um agente que pouco ou nada conhece dos
fundamentos que mobilizam os reais detentores deste saber.
Este fato traz uma luz no entendimento do porquê o mercado fonográfico e
midiático (como no caso pernambucano) elege como modelo de uma produção legítima
de identidade cultural e tradição popular, artistas com produção ou concepções músicais
expressivas desvinculadas dos padrões culturais dos coquistas. Os artístas performativos
de um modelo de mercado, não guardando prevenções a atritos ou rompimento de
convenções musicais e motivacionais do gênero que regem o real significado de
realização do Coco, passam a qualidade de melhores intérpretes representantes das
imagens que mais beneficiam a industrialização do Coco de Roda.
Esta constatação me faz supor que o perfil de coquista imaginado pelo senso
comum do público consumidor do Coco enquanto género de mercado, é daquele
indivíduo portador de um saber exótico e já extinto nos meios urbanos, que se
168
materializa em sua performance de forma intuitiva e espontânea. Enquanto que entre
músicos profissionais, managers e agentes da política cultural, o perfil de coquista
imaginado é daquele intérprete popular que, nascido no local de realização do evento,
ou a ele vinculado por motivações profundas, guarda um conhecimento interpretativo
que sobrepõe e supera todas as expectativas técnicas e expressivas de performance.
Porém, entre os coquistas e brincantes, o perfil se estabelece em torno de um
compromisso e dedicação com a memória, devoção religiosa, e amor à brincadeira.
Esta diversidade de concepções imaginadas, fazem valer designações de
supraqualificação, especialização ou ligação identitária e afetiva com o lugar de
atividade do artista popular, seja no reforço do valor e crédito da categoria de coquistas,
seja na divulgação da produção midiática. Assim, tanto entre os coquistas como entre os
artístas performers, encontramos designações como: Mestre Dédo, Coquistas do Amaro
Branco, Ana Lúcia do Coco, Coquistas de Olinda, etc.
O Coco, encontra-se num processo de deslocamento da sua percepção e
realização que leva à sua contemplação como prática expressiva contemporânea com
fortes vínculos com o passado, num conflituoso cruzamento entre a função social, o
valor emotivo e o entretenimento.
169
170
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178
Entrevistas
Data Entrevistado Local
22/06/2003 Beth de Oxum Olinda 25/07/2004 Ana Lúcia Nunes da Silva Olinda 25/07/2004 Severino José da Silva Olinda 07/08/2004 Ana Lúcia Nunes da Silva Olinda 02/09/2004 Rone Gomes Olinda 05/09/2004 Ana Lúcia Nunes da Silva Olinda 25/10/2004 Severino José da Silva Olinda 20/05/2005 Aymeric Lehembre Bruxelas 22/05/2005 Aymeric Lehembre Bruxelas 15/06/2005 Armando Coxe Bruxelas 07/08/2005 Aymeric Lehembre Bruxelas 05/10/2005 Severino José da Silva Olinda 24/03/2006 Marc Règnier Paris 15/04/2006 Aymeric Lehembre Bruxelas 28/05/2006 Adriano Lopes Gomes Lisboa 25/08/2006 Ana Lúcia Nunes da Silva Olinda 25/08/2006 Severino José da Silva Olinda 01/09/2006 Laurecília Ferraz Recife 05/09/2006 Ana Lúcia Nunes da Silva Olinda 09/09/2006 Ana Lúcia Nunes da Silva Olinda 09/09/2006 Severino José da Silva Olinda 20/09/2006 Ana Lúcia Nunes da Silva Olinda 20/09/2006 Severino José da Silva Olinda 28/09/2006 Jurandir Figueiredo Recife 07/10/2006 Beth de Oxum Olinda 17/10/2006 Roberto Benjamin Recife
179
Anexo
180
Pernambuco: perfil geográfico e demográfico
Localizado no centro-leste da região Nordeste do Brasil, Pernambuco tem como
limites os estados da Paraíba e Ceará ao norte-oeste, o oceano Atlântico ao leste, os
estados de Alagoas e Bahia ao sul, e o estado de Piauí ao oeste. Com o 19° maior
território da Federação Brasileira, ocupa uma área de 98.937,8 km². Seu nome vem da
denominação em línguas indígenas para o pau-brasil (Ceaselpinia echinata).
De clima basicamente tropical, Pernambuco apresenta variantes em outras áreas
do seu territótio, estas variações se dão em decorrência da variação da altitude. Seu
relevo é moderado, e 76% do território estão abaixo dos 600m. Tem como principais
rios o São Francisco, o Capibaribe, o Ipojuca, o Una, o Pajeú e o Jaboatão. Seus
municípios mais populosos são: Recife, Jaboatão dos Guararapes, Olinda, Caruaru,
Paulista, Cabo de Santo Agostinho e Vitória de Santo Antão. Pernambuco possuía em
2000, 7.918.344 habitantes, que representa ser o 7° mais populoso, e o com uma
densidade populacional de 80,65 hab/km², o 6° mais povoado. Sua economia se baseia
na agricultura, pecuária e criações, bem como na indústria (alimentícia, têxtil, química,
metalúrgica e eletrônica).
Recife é a capital, e pólo administrativo da região metropolitana, com uma área
de 210 km2, o que corresponde a 0,2% da extensão territorial do Estado de
N
181
Pernambuco. De acordo com o Censo demográfico de 2000, realizado pela Fundação
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o Recife possui uma população de
1.422.905 habitantes, distribuída por 94 bairros.
Região Metropolitana do Recife
182
Olinda é a terceira maior cidade de Pernambuco. Segundo dados oficiais
publicados pela Prefeitura deste município no site http://www.olinda.pe.gov.br , Olinda
abriga em seus 40,83 quilômetros quadrados de extensão territorial uma população de
367.902 habitantes, o que significa uma densidade demográfica de 9,010 habitantes por
quilômetro quadrado, segundo o Censo Demográfico de 2000. Desses 40,83 km2, 1,2
quilômetro quadrado é de área tombada e 10,4 km2 de área de preservação.
A taxa de urbanização é de 98%, o faz de Olinda um município eminentemente
urbano. O Produto Interno Bruto (PIB) do município em 1996 era de 1.020.826.915,
quase o dobro do registrado em 1980, segundo dados do IBGE.
A maioria dos chefes de família (44,96%) possui renda de até dois salários
mínimos e a totalidade da população uma renda média mensal de 3,787 salários
mínimos, segundo o Censo 2000. Cada família possui em média 4,41 membros. Vinte
seis por cento da população desenvolve atividades econômicas ligadas à área de
Serviços, mas a maior taxa de ocupação (27%) está em áreas de atividades não-
especificadas pelo IBGE, no Censo 2000.
A taxa de analfabetismo na faixa etária de 11 a 14 anos caiu de 13,6%, em 1991,
para 6,46%, em 2000. Na faixa acima dos 15 anos, a queda foi de 14,8%, em 1991, para
9,93%, em 2000.
183
Bairro do Amaro Branco na Cidade de Olinda
Bairro do Amaro Branco
Bairro do Amaro
184
FONTES CONSULTADAS:FONTES CONSULTADAS:FONTES CONSULTADAS:FONTES CONSULTADAS:
CAVALCANTI, Carlos Bezerra. O Recife e seus bairros. Recife: Câmara Municipal, 1998. 166p.
POPULAÇÃO residente e densidade populacional por ordem decrescente de densidade, segundo bairros- Recife, 2002. [Documento elaborado pela Prefeitura da Cidade do Recife, Seplam/Dirbam/Deip, baseado no Censo demográfico 2002, do IBGE]. O Site da Fundação Joaquim Nabuco (em 08.03.2007) http://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=16&pageCode=299&textCode=1497&date=currentDate E o Site da Prefeitura de Olinda (em 17.05.2007) http://www.olinda.pe.gov.br/portal/olinda_em_dados.php
185
Demonstração do processo de globalização do Coco de Roda – Documento de apoio ao texto da dissertação –
– Edição Fernando Antônio Ferreira de Souza – – Formato: CD Áudio –
O gênero performativo Coco de Roda quando inserido no processo de
globalização permite perceber alterações significativas em suas estruturas afetivo-
volitiva, musical, performativa, contextual e de fim social. Aqui destaco 3 exemplos
desse processo de mudança no plano musical:
1. Conflitos de pertença na autoria de composições e legitimidade de
representação.
Faixas 1 e 2: ainda que de forma velada surge entre coquistas a questão
de quem é o autor de composições editadas e representadas
em público. A exemplo cito:
• Faixa 1 - Eu vinha do Norte p´ro Sul (Coco de Rebate)
i. Interprete e autor: Pombo Roxo
ii. Produção independente – ano não informado
Este exemplo de edição em estúdio evidencia a ausência
de outros instrumentos além do pandeiro, ganzá
(chocalho) e bombo. Sem muita atenção dispensada a uma
afinação do coro e de uma equalização do bombo frente
outros instrumentos e voz. Também se observa o
andamento guiado pelo ganzá (chocalho) que , ao lado do
pandeiro, descreve por acentuação a articulação
contramétrica (3+3+2) comum ao Coco.
Eu vinha de Norte p’ro Sul Foi numa Jangada a motor
Eu vi o ronco da pedra
Cuidado p’ra não vira
(mas) Cuidado! P’ra não cair ! [Pergunta]
E o tubarão não pegar [Rebate/Resposta]
Bis
186
• Faixa 2 - Eu vinha do Norte p´ra terra
i. Interprete e autor: Mestre Dedo
ii. Produção midiatizada pelo Projeto ‘Coco do Amaro Branco’,
produzido por Isa Melo com apoio do Funcultura – 2005
Coco de Rebate (Coco de Resposta), foi editado em
estúdio em formato comercial, com evidência de congas,
que dobram as funções do ganzá (chocalho) na condução
do rítmica e acentuação das articulações contramétricas
3+3+2. Enquanto que o bombo passa a ser equalizado de
forma menos densa no conjunto percussivo, na intenção de
valorizar outros intstrumentos e reduzir o peso dominante
de seu timbre grave (bastante incomum no formato
comercial das musicas veiculadas pela mídia).
Apresentando um espaço de introdução às vozes e de
possível improviso, além de vozes femininas com mais
resolução de afinação em modos formais.
Eu vinha do norte p’ra terra
Na minha jangada a motor
O vento à gerar luz
Oh! Só faltemos virar
Mas cuidado p’ra não cair ! [Pergunta]
E o tubarão não pegá [Rebate/Resposta]
Bis
187
2. Mudanças em nuances do padrão e valores musicais de representação do
gênero no processo de edição em estúdio, com base em critérios da
indústria fonográfica.
Faixas 3 e 4: o processo de edição em estúdio, sob produção de agente
não familiarizado com o gênero, induz alterações no
formato de representação.
• Faixa 3 - O Homem é o Rei do Império
i. Interprete e autora: Ana Lúcia
ii. Produção Demo independente produzida por Fernando Souza – 2004
Gravado em estúdio sob critérios de arranjo, dinâmica e
equalização guiados por Ana Lúcia. Com mele, bombo,
ganzá (chocalho), pandeiro e caixa-clara como
instrumentos acompanhantes. Ana Lúcia reivindicou a
valorização do bombo no conjunto instrumental. Este
exemplo apresenta andamento dentro do cotidiano dos
toques de Coco de Roda, e permite perceber uma
preocupação com as vozes do coro.
O Homem é o Rei do Império
E tem a força de Sansão
A natureza reina
No tempo de Salomão
Ai! Vamos brincar no rojão
Vamos brincar no salão
Bis Rebate
Bis Pergunta
188
• Faixa 4 - O Homem é o Rei do Império
i. Interprete e autora: Ana Lúcia
ii. Produção midiatizada pelo Projeto ‘Coco do Amaro Branco’,
produzido por Isa Melo com apoio do Funcultura – 2005
Gravado com congas, bombo, ganzá (chocalho) e
pandeiro. Todos equalizados no formato comercial
veiculado na cena atual da musica pernambucana
midiatizada. O andamento mais acelerado interfere numa
interpretação mais afetiva da cantora.
O Homem é o Rei do Império
E tem a força de Sansão
A natureza reina
No tempo de Salomão
Mas! Vamos brincar no rojão
Vamos brincar no salão
Bis Rebate
Bis Pergunta
189
3. Formato comercial de apropriação do Coco em outros gêneros de
mercado.
Faixas 5 e 6: agregado a problemas autorais a midiatização reduz o
padrão do Coco a formatos híbridos globalizados em favor
da indústria cultural
Faixa 5 - Vendedor de Caranguejo
i. Interprete e autor: Pombo Roxo
ii. Produção independente – ano não informado
Este exemplo de edição em estúdio evidencia a ausência
de outros instrumentos além do pandeiro, ganzá
(chocalho) e bombo. Sem muita atenção dispensada a uma
afinação do coro e de uma equalização do bombo frente
outros instrumentos e voz. Também se observa o
andamento guiado pelo ganzá (chocalho) que , ao lado do
pandeiro, descreve por acentuação a articulação
contramétrica (3+3+2) comum ao Coco. Cantado no
formato cotidiano da festa do Coco.
190
• Faixa 6 - Vendedor de Caranguejo
i. Interprete e co-autor: Rone Gomes
ii. Produção independente – ano não informado
Coco apropriado à forma comercial do forró, com
instrumentos eletrônicos (guitarra, contrabaixo, teclado),
instrumentos de sopro (trompete, saxofones e trombone), e
percussão (bateria, congas e pandeiro). Apresenta em seu
arranjo elementos harmônicos da musica midiatizada,
valorizando o contexto de resposta, próprio do ‘coco de
resposta’, que passa a estar deslocado nas vozes dos
instrumentos de sopro que utilizam recursos adaptados da
salsa, reggae e outros gêneros e estilos caribenhos que
estão, em conformidade, presentes na estrutura própria dos
arranjos de frevo (gênero de música de tradição no
carnaval de Pernambuco, que é estruturado
dominantemente sobre instrumentos de sopro e percussão)
na musica pernambucana.