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CLASSES SOCIAIS E CONSTRUÇÃO DA HEGEMONIA DAS CLASSES SUBALTERNAS Franci Gomes Cardoso 1 RESUMO Aborda categorias analíticas centrais do pensamento de Gramsci e da tradição marxista (Classes Sociais, Classes subalternas, Hegemonia e transformação Social) reconstruindo- as na configuração histórico-conceitual do objeto de estudo: Classes Sociais e Construção da Hegemonia das Classes Subalternas. Parte da premissa inspirada, fundamentalmente, na visão gramsciana: é exigência histórica do processo de transformação social a ruptura, pelas classes subalternas, com a ideologia dominante e a construção de uma concepção de mundo própria que constitui a base de ações vitais.Essa premissa se constitui eixo condutor para a reconstrução do objeto deste estudo. Palavras-chave: Classes sociais. Classes subalternas. Hegemonia. ABSTRACT It addresses central analytical categories of Gramsci's thinking and Marxist tradition (Social Classes, Subaltern Classes, Hegemony and Social Transformation) by reconstructing them in the historic-conceptual configuration of the object of study: Social Classes and Construction of the Hegemony of the Subaltern Classes. Part of the premise inspired fundamentally in Gramsci's view: it is a historical requirement of the process of social transformation to break the subaltern classes with the dominant ideology and the construction of a conception of their own world that forms the basis of vital actions. This premise constitutes the guiding gaxis for there construction of the object of this study. Keywords: Social classes. Subaltern classes. Hegemony. 1 Doutora em Serviço Social: Políticas Sociais e Movimentos Sociais pela PUC/SP; Professora aposentada, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFMA. Professora Visitante do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Socioespacial e Regional da UEMA.

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  • CLASSES SOCIAIS E CONSTRUÇÃO DA HEGEMONIA DAS CLASSES SUBALTERNAS

    Franci Gomes Cardoso1

    RESUMO

    Aborda categorias analíticas centrais do pensamento de Gramsci e da tradição marxista (Classes Sociais, Classes subalternas, Hegemonia e transformação Social) reconstruindo-as na configuração histórico-conceitual do objeto de estudo: Classes Sociais e Construção da Hegemonia das Classes Subalternas. Parte da premissa inspirada, fundamentalmente, na visão gramsciana: é exigência histórica do processo de transformação social a ruptura, pelas classes subalternas, com a ideologia dominante e a construção de uma concepção de mundo própria que constitui a base de ações vitais.Essa premissa se constitui eixo condutor para a reconstrução do objeto deste estudo.

    Palavras-chave: Classes sociais. Classes subalternas.

    Hegemonia.

    ABSTRACT

    It addresses central analytical categories of Gramsci's thinking and Marxist tradition (Social Classes, Subaltern Classes, Hegemony and Social Transformation) by reconstructing them in the historic-conceptual configuration of the object of study: Social Classes and Construction of the Hegemony of the Subaltern Classes. Part of the premise inspired fundamentally in Gramsci's view: it is a historical requirement of the process of social transformation to break the subaltern classes with the dominant ideology and the construction of a conception of their own world that forms the basis of vital actions. This premise constitutes the guiding gaxis for there construction of the object of this study.

    Keywords: Social classes. Subaltern classes. Hegemony.

    1 Doutora em Serviço Social: Políticas Sociais e Movimentos Sociais pela PUC/SP; Professora

    aposentada, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFMA. Professora Visitante do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Socioespacial e Regional da UEMA.

  • 1 INTRODUÇÃO

    É possível que, em face do fracasso das experiências socialistas no final do

    século XX, levantem-se questões quanto à pertinência do objeto deste estudo pelas suas

    perspectivas teórica e política, bem como quanto à possibilidade que teria o pensamento

    gramsciano de contribuir para o desvelamento de questões postas, hoje, pela ordem social.

    Mas essas questões podem ser efetivamente respondidas. Gramsci inclui-se entre os

    pensadores cuja proposta está fundada no pensamento de Marx e muitas das ideias

    difundidas, tanto na produção gramsciana quanto na marxiana, podem estar insuficientes

    para esclarecer problemas deste século.

    Entretanto, isso não significa que as teorias por eles fundadas tenham deixado

    de ser um instrumento fundamental para apreender a realidade atual. A perspectiva teórico-

    metodológica dos dois teóricos revolucionários é a que permite o conhecimento das

    determinações da vida social na ordem burguesa, desvelando os processos que a

    engendram e as totalidades que a constituem.

    No contexto dessa opção teórico-metodológica e política, a prioridade dada a

    Gramsci se justifica pela contemporaneidade de seu pensamento, por ser a prática política o

    eixo central de sua preocupação teórica e, sobretudo, pela importância que assume em sua

    produção, a reforma intelectual e moral- a formação de uma nova cultura pelas classes

    subalternas – como condição de hegemonia dessas classes.

    As contribuições, neste estudo, de pensadores da tradição marxista e de

    Gramsci, em particular, constituem referências básicas e genéricas para pensar a realidade

    social como totalidade histórica e para apreender o movimento do real e reproduzi-lo

    idealmente. Priorizei neste estudo as fontes bibliográficas, entendendo que: se é verdade

    que a história de um problema é um problema da história, ou seja, que a história do

    tratamento de um objeto passa a fazer parte desse objeto, então as reproduções ideais

    também se materializam, o teórico se converte em objeto prático.

    A sistematização de parte dos resultados dosmeus estudos, aqui estruturada em

    forma de artigo, compõe-se de dois grandes itens, com pequenos desdobramentos: no

    primeiro, debato o conceito de classe social, a partir de Marx e busco precisar o meu

    entendimento sobre classes subalternas inspirada, fundamentalmente, em Gramsci e nas

    contribuições de Sartriani; no segundo estabeleço relações entre as categorias consciência

    de classe, organização e hegemonia, evidenciando o significado que têm no processo de

    superação pelas classes subalternas, de sua condição de subalternidade. Concluo a

    exposição recuperando aspectos relevantes do confronto das classes subalternas com o

    Estado e classe dominante no processo de construção de um novo bloco histórico e aponto

  • alguns elementos fundamentais da atual conjuntura brasileira fundamentada em Gramsci,

    mostrando a atualidade do seu pensamento.

    2 CLASSES SOCIAIS E CLASSES SUBALTERNAS: do conceito clássico ao debate

    contemporâneo

    Tanto na literatura universal quanto na nacional há profundas divergências sobre

    a questão das classes, seja em termos de sua conceituação, seja quanto à sua existência.

    Daí, a importância da investigação e debate desse conceito.

    Parto, inicialmente, das formulações de Marx, sobre classe social, por ser este

    teórico revolucionário a fonte mais relevante dessa relação conceitual e histórica e amplio a

    discussão com o conceito de classes subalternas e com outras formulações

    contemporâneas que pertençam ao mesmo campo teórico, enquanto procedentes de

    analistas da tradição marxista.

    Entre 1844 e 1846 Marx vincula-se ao movimento operário, tanto do ponto de

    vista político quanto do teórico. Com essa vinculação começa a surgir a determinação de um

    projeto revolucionário que se destaca como ponto fundamental no itinerário de Marx. É

    naquele período que se verificam os encontros de Marx com a economia política, com a

    possibilidade de revolução e com a ultrapassagem da filosofia especulativa. Surgem aqui, as

    categorias de classe e revolução.

    No Manifesto Comunista, 1848, a acepção usada, por Marx, do termo classe

    refere-se aos amplos conjuntos de sujeitos históricos que se constituem segundo um critério

    objetivo: por manterem relações similares com os meios de produção. Dito de outra forma, o

    termo classe, no Manifesto Comunista, refere-se aos

    [...] agrupamentos de exploradores e explorados que, em virtude de razões puramente econômicas são encontrados em todas as sociedades humanas que ultrapassassem a fase primitiva comunal e, como argumentaria Marx, até o triunfo da revolução proletária (HOBSBAWM, 1988, p.36).

    São classes diferentes e antagônicas que emergem com a dissolução das

    comunidades primitivas: a burguesa constituída pelos capitalistas modernos, proprietários

    dos meios de produção que empregam o trabalhador assalariado; e o proletariado

    constituído pelos trabalhadores assalariados modernos, que, não possuindo meios de

    produção próprios, são obrigados a vender a sua força de trabalho para sobreviver.

    Nessa acepção de Marx, sobre classe social, dois elementos importantes se

    destacam: a propriedade dos meios de produção e a consequente condição de

    assalariamento de setores da sociedade que não possuem esses meios. É, portanto, a partir

    das relações econômicas que esses grupos se definem enquanto classes. Numa segunda

    acepção usada por Marx ele introduz um elemento subjetivo no conceito de classe – a

  • consciência de classe - cuja discussão é feita em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte.

    Com esse elemento, uma classe, em sua acepção plena só vem existir no momento

    histórico em que começa a adquirir consciência de si como tal.

    Partindo dessas reflexões e reafirmando meu ponto de vista quanto à existência

    das classes sociais, minha referência neste estudo, é a concepção de classes sociais como

    Grupos que se definem, enquanto classe, pelas relações de propriedade com os meios de produção (proprietários ou não proprietários) e pela identidade no modo de pensar e de agir, consolidando-se, efetivamente, como tal, à medida que desenvolvem sua consciência de classes. Ou seja, à medida que o movimento da história é tornado consciente pelo conhecimento dos grupos antagônicos de sua situação de classe (CARDOSO, 1995, p.61).

    Sobre as classes subalternas, para precisar meu entendimento, parto da

    premissa de que a condição de subalternidade é determinada pelo lugar que segmentos

    dessas classes, numa sociedade capitalista, ocupam no conjunto das relações de produção

    e nas relações de poder. Segundo Sartriani,

    Quando nos ocupamos de uma sociedade em que os meios de produção são propriedade privada, a distinção primeira e fundamental que se opera é entre classe capitalista [...] a que detém a propriedade dos meios de produção e classe proletária [...] que não possuindo tal propriedade, é constrangida a vender a sua força de trabalho aos detentores do capital, com isso se alienando (produzindo mais valia para a outra classe por meio do trabalho alienado) (SARTRIANI, 1986, p.98-99).

    Feita essa distinção, acrescenta, ainda, a necessidade de inclusão dos

    trabalhadores improdutivos, os desempregados e desocupados, os quais se encontram à

    margem da própria divisão classista da sociedade burguesa, mas, a meu ver, na condição

    de subalternidade. Nesse ponto de vista, incluem-se no âmbito das classes subalternas,

    todos os segmentos da sociedade capitalista que não possuem os meios de produção e

    estão, portanto, sob o domínio econômico, político e ideológico das classes que

    representam o capital no conjunto das relações de produção e das relações de poder:

    assalariados dos setores caracterizados como primário, secundário e terciário ( elementos

    dos setores produtivo e improdutivo); os que exercem atividade manual e os que exercem

    atividade não manual e intelectual. Incluem-se, ainda, os segmentos não incorporados ao

    mercado de trabalho, que são os trabalhadores em potencial, inclusive o exército industrial

    de reserva, que é um segmento extremamente funcional para o capitalismo.

    No pensamento gramsciano, a relação entre classes dominantes, classes

    dirigentes e classes subalternas só se explicita quando se tomam, dialeticamente, as

    categorias sociedade política ou Estado e sociedade civil. Gramsci estabelece duas grandes

    esferas na superestrutura: a esfera da sociedade civil e outra da sociedade política ou

    Estado. Ambas as esferas superestruturais formam, em conjunto, o que Gramsci define

    como “Estado no sentido integral: ditadura + hegemonia”, ou, como o próprio teórico

  • revolucionário escreve em outro contexto, “sociedade política + sociedade civil”. Assim

    concebendo, as duas esferas do Estado

    Servem para conservar ou promover uma base econômica de acordo com os interesses de uma classe fundamental. Mas o modo de encaminhar essa promoção ou conservação varia nos dois casos: no âmbito e através da sociedade civil as classes buscam exercer sua hegemonia, ou seja, buscam ganhar aliados para suas posições mediante a direção política e o consenso; por meio da sociedade política, ao contrário, as classes exercem sempre uma ditadura, ou, mais precisamente, uma dominação mediante a coerção (COUTINHO, 1988, p.77).

    Quando uma classe controla o Estado e impõe-se às demais classes através do

    aparato jurídico-político, ela se torna dominante. Mas pode, também, ser dirigente quando

    estabelece relações orgânicas com a sociedade civil. É a capacidade que tem uma classe

    de ser, ao mesmo temo tempo dominante e dirigente, hegemônica que consolida a unidade

    histórica de determinada(s) classe(s).

    As classes subalternas necessitam, de modo geral, dessa unidade histórica

    porque não dispõe do controle sobre o Estado nem exercem a hegemonia sobre as demais

    classes. Entretanto, essa unidade é construída e a sua consolidação supõe, inclusive, que

    as classes se tornem dirigentes, antes mesmo de serem dominantes.

    Para Gramsci, entre os grupos subalternos um tenderá a exercer a hegemonia

    sobre os demais através do partido, concebido como intelectual coletivo. O grupo a que

    Gramsci se refere é o proletariado industrial, à medida que consegue criar um sistema de

    aliança com os demais grupos e frações de classes afins e mobilizar o conjunto dessas

    classes contra o capitalismo e o Estado burguês.

    3 SUPERAÇÃO PELAS CLASSES SUBALTERNAS DE SUA CONDIÇÃO DE

    SUBALTERNIDADE, NO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

    Neste item tomo como ponto de partida a categoria hegemonia, por considerá-la

    ponto de referência conceitual básico, no pensamento político de Gramsci, no qual essa

    categoria é pensada sob diferentes óticas, sendo a ótica da reforma intelectual e moral a

    mais pertinente ao objeto deste estudo.

    No pensamento gramsciano, a formação da consciência nacional popular

    depende da capacidade das classes subalternas, da cidade e do campo, de se constituírem

    em uma alternativa de reorganização social e política da sociedade. Essa questão está

    relacionada a uma perspectiva que coloque na ordem do dia o problema da construção de

    uma hegemonia de novo tipo.

    Assim o tema da hegemonia é central entre as preocupações de Gramsci, em

    relação às possibilidades de as classes subalternas se tornarem protagonistas históricos,

    dotados de vontade coletiva própria. Nesse sentido, a hegemonia se refere à capacidade de

    uma dessas classes que aspire a dirigir o conjunto da sociedade em trabalhar os interesses

  • do conjunto dos grupos subalternos, em termos de um projeto universal que contemple a

    organização e a participação relacionadas á política como dimensão pedagógica.

    Essa noção de hegemonia tem um cunho cultural que não opera apenas no

    âmbito intelectual, mas informa toda a cotidianidade dos sujeitos. Desse modo, participar de

    forma organizada da política, numa perspectiva pedagógica, é manifestarcapacidade de

    intervir no processo de transformação social e político de modo consciente.

    É nesse sentido que entendo a organização e a consciência de classe como

    condições para a conquista da hegemonia pelas classes subalternas.

    3.1 O conceito de hegemonia em Gramsci

    Na dialética do pensamento gramsciano a questão da hegemonia – a partir da

    qual e para a qual o teórico e militante marxista pensa a política – é trabalhada em diversos

    ângulos, entre eles: um, que toma a questão das alianças de classes (operários e

    camponeses) como central; outro que destaca o partido político como intelectual coletivo, ao

    qual é atribuída a tarefa de estabelecer o nexo entre intelectuais e massa, cultura científica e

    cultura popular, no sentido da construção de uma vontade coletiva nacional popular, ou seja

    da constituição das classes subalternas como sujeitos da ação histórica; e um terceiro, que

    examina o processo de construção da hegemonia como reforma intelectual e moral, ou seja,

    como construção de uma nova cultura..

    Esses ângulos de discussão estão estreitamente imbricados, mas constituem, ao

    mesmo tempo, eixos de análises diversificados de um conjunto unitário. Portanto, é possível

    aos analistas do pensamento gramsciano, enfatizarem um ou outro eixo de acordo com os

    interesses de estudo, sem perder de vista as relações existentes com a totalidade da

    construção teórica da categoria de hegemonia, feitas pelo autor.

    Com esse entendimento, examino aqui o conceito de hegemonia enfatizando o

    eixo de análise referente à reforma intelectual e moral, à perspectiva de construção de uma

    nova cultura.

    Nessa perspectiva de construção de uma nova cultura, a reforma intelectual e

    moral é um processo que se realiza na prática política e é um “terreno para um ulterior

    desenvolvimento da vontade coletiva nacional popular, no sentido da realização de uma

    forma superior e total de civilização” (GRAMSCI, 1989, p.8-9).

    Considerada a partir desse eixo de discussão, a hegemonia, no pensamento

    gramsciano tem uma função eminentemente pedagógica, enquanto processo de

    constituição ideológica das classes subalternas, que se realiza tanto para afirmar a direção

    dessas classes quanto para superar a sua condição de subalternidade, construindo uma

    nova ordem social.

  • se refere

    Nos termos colocados, é evidente que o caráter pedagógico da hegemonia não

    [...] às relações especificamente escolares, pelas quais as novas gerações entram em contato com as antigas e lhes absorvem as experiências e os valores historicamente necessários, „amadurecendo‟ e desenvolvendo uma relação própria e culturalmente superior. Esta relação existe em toda a sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo com relação a outros indivíduos, bem como entre camadas intelectuais e não-intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos do exército. [...] É uma relação ativa de vinculações recíprocas (GRAMSCI, 1987, p. 37).

    que provoca mudanças no modo de pensar e agir dos sujeitos e onde há

    negação/superação de hierarquias.

    Gramsci concebe a constituição da ideologia das classes subalternas como uma

    condição essencial para a conquista da hegemonia dessas classes, na medida em que

    conseguem romper com a dominação ideológica das classes adversárias. Esse rompimento

    não se efetiva independentemente das transformações econômicas, mas não há, por outro

    lado uma dependência absoluta dessas.

    No pensamento gramsciano a ideologia é uma “concepção de mundo que se

    manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as

    manifestações da vida individuais e coletivas” (GRAMSCI, 1978, p.16). A ideologia tem,

    portanto, um peso decisivo na organização da vida social, pois se realiza concreta e

    historicamente, resultando do movimento da estrutura social.

    Para Gramsci, essa manifestação da ideologia, enquanto concepção de mundo,

    objetiva-se em graus diversificados que ele procura demonstrar em suas reflexões sobre o

    processo de elaboração de uma concepção de mundo crítica e coerente. Estabelece,

    nessas reflexões, a relação entre filosofia, senso comum e religião, situando esses

    elementos no interior desse processo de elaboração.

    Ao tratar a filosofia, Gramsci ressalta que há um preconceito bastante difundido

    de que ela seja algo muito difícil a que apenas uma determinada categoria de cientistas

    tenha acesso, insistindo que tal preconceito seja destruído. Isso porque, para Gramsci,

    todos os homens são “filósofos”, na medida em que – mesmo sem terem consciência -, na

    mais simples manifestação da atividade intelectual está contida uma concepção de mundo,

    ou seja, está implícita uma ideologia.

    Segundo o teórico marxista, essa filosofia tem limites porque é espontânea. Mas

    é acessível a todo mundo, manifestando-se

    [...] na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não simplesmente de palavras gramaticalmente vazias de conteúdos; no senso comum e no bom senso; na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e agir que se manifestam naquilo que se conhece geralmente por „folclore‟ (GRAMSCI,1978,p.11).

  • Nessas formas pelas quais são manifestadas concepções de mundo que,

    segundo Gramsci, são espontâneas, podem ser avaliados os graus de elaboração

    ideológica; ou seja, a maior ou menor complexidade da concepção de mundo de cada um e

    qual o grupo a que pertence: se o de “homemmassa ou de “homem coletivo”. Pois o grau de

    concepção de mundo pode revelar a tendência a um ou outro grupo, respectivamente.

    Para Gramsci:

    [...] pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que partilham de um mesmo modo de pensar e agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. (...) Quando a concepção de mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homem-massa, nossa própria personalidade é composta de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de histórias passadas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano, mundialmente unificado. Criticar a própria concepção de mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e levá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido (GRAMSCI, 1978, p.12).

    Desse modo, a consciência de nossa historicidade, de sua fase de

    desenvolvimento e de sua relação com outras concepções de mundo é condição

    fundamental para a constituição de uma filosofia crítica e coerente. A construção dessa

    filosofia superior ou a criação de uma nova cultura significa, além de todo um processo

    crítico e de descobertas originais, a difusão e socialização de verdades já desvendadas para

    torná-las a base do agir das classes subalternas, “[...] o elemento de coordenação é de

    ordem intelectual e moral” (GRAMSCI, 1978, p.14).

    A hegemonia – enquanto reforma intelectual e moral – é, precisamente, a

    criação de homens capazes de

    [...] pensar coerentemente e de modo unitário o real presente, tornando uma nova cultura patrimônio de todos. Este é um fato filosófico bem mais importante e original do que a descoberta, por parte de um „gênio filosófico‟, de uma nova verdade que permaneça patrimônio de pequenos grupos intelectuais (GRAMSCI, 1978:14).

    Situando os elementos históricos, filosofia, senso comum e religião no processo

    de elaboração de uma nova concepção de mundo, Gramsci entende a filosofia como uma

    ordem intelectual, por ser, ao mesmo tempo, crítica e superação dos demais elementos.

    Nesse sentido, a filosofia coincide com o bom senso, que se contrapõe ao senso comum.

    Mas, lembrando o argumento de Gramsci, ao afirmar que “todos os homens são filósofos”

    porque na mais simples atividade intelectual existe uma concepção de mundo, é importante

    ressaltar que a diferença fundamental entre esses fenômenos é o nível de elaboração

    crítica. Seguindo o raciocínio do teórico marxista, tanto a religião quanto o senso comum (

    que também não coincidem, mas o primeiro é um elemento do segundo) expressam

    concepções de mundo, mesmo que os sujeitos não tenham consciência do que expressam.

    Ademais, o próprio Gramsci, na passagem de Cadernos do cárcere em que reflete sobre a

  • relação entre ideologia e filosofia, parte da concepção de religião como concepção de vida e

    a relaciona ao conjunto das ideologias.

    Para o teórico marxista, se a religião é uma concepção de mundo (filosofia) com

    uma moral (norma de conduta) correspondente, não pode existir diferença entre religião e

    ideologia e, em última análise entre ideologia e filosofia, embora uma religião, uma filosofia

    ou uma ideologia, todas possam manifestar-se, historicamente, como fatos individuais.

    Essa análise pode se estender para a relação entre filosofia e senso comum,

    uma vezque ambos constituem concepções de mundo e ambos manifestam-se como

    fenômenos históricos individuais, sobretudo pela diferença de nível de elaboração e de

    criticidade existente entre eles.

    Enquanto concepção fragmentária, o senso comum manifesta a coexistência de

    filosofias diferenciadas que são explicitadas na contradição entre o pensar e o agir, ou seja,

    há uma concepção de mundo que se expressa através do fato intelectual e outra que se

    manifesta na ação efetiva. Essa contradição será superada com a elevação do senso

    comum ao plano crítico que, segundo Gramsci, faz-se através da luta concreta, nos

    cotidiano das classes subalternas, a partir dos problemas por elas enfrentados. Assim, as

    classes subalternas poderão chegar a um nível cultural superior e crítico. Mas Gramsci vai

    mais além em seu projeto revolucionário. Para ele não se trata apenas de realizar uma

    reforma intelectual e moral dos estratos sociais culturalmente atrasados, mas de realizar

    umprojeto educativo capaz de tirar as massas da passividade e de construir a sua

    hegemonia e uma nova ordem social.

    Portanto, se o senso comum é passível de transformações, realizar sua crítica e

    a sua superação, pela filosofia, significa desenvolver um processo pedagógico e político,

    referenciado na prática histórica das classes subalternas.

    Assim, se o modo de pensar e a organização política ocupam um lugar decisivo

    na conquista da hegemonia, no pensamento gramsciano, também é decisivo o papel que o

    teórico marxista confere aos intelectuais e ao partido na construção de uma nova cultura.

    Gramsci entende que “uma massa humana não se distingue e não se torna

    independente „por sí‟, sem organizar-se; [...] e não existe organização sem intelectuais, isto

    é, sem organizadores e dirigentes [...]” (GRAMSCI, 1978, p.21).

    Nos termos aqui expostos, a preocupação de Gramsci com a passagem

    dasclasses subalternas à posição hegemônica está vinculada à necessidade do

    desenvolvimento de um novo projeto cultural que seja capaz de propiciar a elaboração de

    uma concepção de mundo própria das classes subalternas,autonomizando-a em face do

    domínio ideológico das classes dominantes. Ou seja, liberando-a da racionalidade

    capitalista.

  • 3.2 Consciência de classe e Organização: determinações básicas na construção da hegemonia das classes subalternas

    A consciência de classe, no pensamento marxiano, se constitui como um

    processo histórico e dialético, constituído por homens concretos inseridos em determinado

    modo de produção e relações sociais correspondentes:

    [...] os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais e ativos, tais como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas (MARX; ENGELS, 1991, p.36-37).

    A consciência de classe está, portanto, diretamente vinculada à atividade

    material e coletiva dos homens, sendo impossível concebê-la em cada homem isolado no

    conjunto das relações sociais.

    A consciência é, antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas para o indivíduo que toma consciência; é, simultaneamente, a consciência da natureza que inicialmente se depara ao homem como uma força francamente estranha, toda poderosa e inatacável, perante a qual os homens se comportam de uma forma puramenteanimal e que os atemoriza tanto como aos animais; e, por conseguinte, uma consciência da natureza puramente animal (MARX; ENGELS, 1991, p.36).

    Por outro lado, na medida em que o homem toma consciência da necessidade

    de estabelecer relações com os indivíduos que o cercam, isto marca, para ele, a tomada de

    consciência de que vive efetivamente em sociedade. Mas o elemento chave determinante

    da constituição da consciência humana é o trabalho. Pois ao contrário do que acontece com

    o trabalho animal, o produto do trabalho humano já está contido na imaginação do

    trabalhador. Este imprime ao material o projeto que, conscientemente, tem como alvo. Diz

    Marx:

    [...] na produção social da própria existência os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forçasprodutivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo social, político e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (MARX, 1978, p.129-130).

    Nessa perspectiva, a consciência de classe é determinada por forças motrizes

    estruturais (forças relativamente permanentes) e por elementos conjunturais que se

    apresentam como ocasionais,imediatos ou espontâneos em contextos determinados e

    momentos históricos dados. Mas sejam quais forem esses contextos, (desde que em

    sociedades de classes), entendo que a organização das classes subalternas é uma

    exigência fundamental, porque é na luta organizada que os segmentos subalternos da

    sociedade elevam sua consciência e sua solidariedade, e expressam suas vontades

    coletivas.

    Para Gramsci, o proletariado pode, na perspectiva da revolução:

    [...] tornar-se classe dirigente e dominante na medida em que consegue criar um sistema de aliança de classes (operários e camponeses), que lhe permita mobilizar, contra o capitalismo e o Estado burguês, a maioria da população trabalhadora – o

  • que significa, na Itália, dadas as reais relações de classes, existentes, que o proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue obter o consenso das amplas massas camponesas (GRAMSCI,1987,139).

    Mas, para isso, Gramsci (1989 a) insiste em que o proletariado abandone modos

    de pensar corporativistas e supere interesses imediatistas e particularistas. Pois, a partir

    dessa superação, vai desenvolvendo-se o processo de formação de uma consciência – a

    consciência de classe – que se manifesta na prática política. Nesse processo, são

    destacados pelo autor três momentos ou graus de relação de forças nas análises histórico-

    políticas, que, fundamentalmente, são os seguintes: o primeiro é a relação de forças ligada à

    estrutura objetiva; o segundo é a relação das forças políticas, onde é apreendida a formação

    da consciência e organização dos grupos sociais; o terceiro é o da relação das forças

    militares - o militar, num sentido estrito ou técnico-militar e o político militar. O primeiro grau,

    que é o mais elementar, é denominado de econômico-corporativo, havendo uma unidade

    entre um determinado grupo profissional, mas não ainda uma unidade do grupo social mais

    amplo. O segundo grau corresponde ao momento em que se adquire a consciência da

    solidariedade de interesse entre os membros do grupo social, mas ainda no terreno

    meramente econômico. O terceiro grau, momento propriamente político, evidencia a

    passagem da estrutura para a esfera das superestruturas complexas. Essa passagem da

    estrutura para a superestrutura, que se efetiva no terceiro momento da consciência política

    coletiva, é denominada por Gramsci de catarse. É o momento em que o proletariado deixa

    de ser “classe em si” e se torna “classe para si” e consegue elaborar um projeto político para

    toda a sociedade, cujo objetivo é conquistar a hegemonia, elevando ao máximo de

    universalidade o ponto de vista das classes subalternas.

    Convicto de que apenas a situação objetiva não impulsiona essa classe à

    revolução e da exigência de uma análise concreta dos processos históricos, Gramsci

    entende que o partido enquanto locus da organização do proletariado,precisa de um aparato

    teórico para desvendar a realidade social e atuar sobre ela.

    A abordagem feita por Gramsci sobre a aliança de classes é na perspectiva de

    construção de um novo bloco histórico, na construção de novas relações de hegemonia que

    se fundam na unidade de força das classes aliadas – proletariado e as grandes massas

    camponesas – na luta contra a classe dirigente.

    4 CONCLUSÃO

    A apreensão feita das questões aqui expostas me permitem concluir pensando a

    atualidade da sociedade brasileira que vivencia, neste momento histórico, uma profunda

    crise estrutural e, fundamentalmente política, onde a luta das classes se tornou mais

  • explicita com o excessivo avanço do pensamento conservador das elites reacionárias do

    país.

    Essas elites reacionárias têm o Estado sob controle e impõe-se às demais

    classes, em particular às classes subalternas, através do aparato jurídico-político e

    coercitivo, mantendo-se dominante pela força e atos golpistas, destruindo processos

    democráticos com argumentos farsantes de combate à corrupção, da qual são os principais

    protagonistas.

    Feita esta breve reflexão, fundamentada nos ensinamentos de Gramsci e

    demonstrando a sua atualidade, retomo a premissa que norteou este estudo, agora como

    tese, reafirmando que: é exigência histórica do processo de transformação social a ruptura,

    pelas classes subalternas, com a ideologia dominante e a construção de uma concepção de

    mundo própria que constitui a base de ações vitais.

    REFERÊNCIA

    CARDOSO. Franci Gomes. Organizações das classes subalternas: um desafio para o

    Serviço Social. São Paulo, Cortez: Editora da Universidade Federal do Maranhão, 1995.

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    Janeiro, Paz e Terra, 1988

    GRAMSCI, Antônio. A questão meridional. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio

    Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

    . Concepção dialética da história. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 3 ed., Rio de

    Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

    . Maquiavel, a política e o Estado moderno. Trad. Luiz Mário Gazzaneo. 7ed.,

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    . Os intelectuais e a organização da cultura. 7 ed., Rio de Janeiro: Civilização

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    HOBSBAWM, (org). História do Marxismo. Vol. VI. “O marxismo na época da Terceira

    Internacional: da internacional comunista de 1919 às frentes populares”, trad. Carlos

    Nelson Coutinho, Luiz Sérgio N. Henriques e Amélia Rosa Coutinho. 2. Ed. Rio de Janeiro,

    Paz e Terra 1988.

    MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Trad. José Arthur Giannotti e Edgar M.

    São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Coleção Os Pensadores)

    MARX, Karl & ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1991.

    SARTRIANI, Luigi M. Lombardi. Antropologia cultural e análise da cultura subalterna,

    trad. Josildeth Gomes Consorte. São Paulo, Hucitec, 1986

  • O Caderno 25 de Gramsci

    Lincoln Secco

    Resumo

    Este artigo apresenta uma leitura dos estudos sobre os grupos

    subalternos de Gramsci à luz de questões atuais como: o

    feminismo, racismo e a pluralidade da classe trabalhadora.

    Palavras - Chaves: Gramsci - Estudos Subalternos - Cadernos do

    Cárcere

    Abstract

    This article presents a reading of Gramsci's subaltern studies under

    perspective of current issues such as: feminism, racism and plurality

    of the working class.

    Key Words: Gramsci -Subaltern Studies - Prison Notebooks

    1. INTRODUÇÃO

    Podem os subalternos falar? A questão que gerou ampla discussão na historiografia

    recuperava uma ideia de Antonio Gramsci que estivera virtualmente esquecido. As minúcias

    filológicas dos vários conceitos gramscianos têm sido objeto de profundas investigações.

    Termos como “hegemonia” e “sociedade civil” já sofreram o escrutínio de autores de

    diferentes perspectivas teóricas durante meio século ou mais. Já o conceito de subalternos

    foi discutido amplamente depois que a escola de historiadores indianos criou os chamados

    Subaltern Studies, em torno principalmente da leitura do famoso Caderno 25 do Cárcere, em

    que Gramsci concentra suas passagens sobre os que estão “à margem da história”.

    Em seguida, o conceito ganhou a adesão dos estudos culturais dos EUA. Portanto, o tema

    se difundiu mundialmente por causa das primeiras abordagens em língua inglesa. Massimo

    Modonesi e Guido Liguori fizeram uma revisão do conceito e mostraram como a forma da

    edição inglesa dos textos selecionados de Gramsci e erros de leitura condicionaram aquela

    recepção indiana e estadunidense (Del Roio, 2017).

    A subalternidade ainda tem uma tradução espacial, de resto já presente em seu último texto

    pré-carcerário, “Alguns Temas da Questão Meridional” (1926). O Mezzogiorno é, na Itália, a

  • própria expressão da subalternidade de uma classe ou conjunto de fragmentos de classes

    oprimidas e, de alguma forma, exploradas pelo capital industrial do norte. Como bem nota

    Marcos Del Roio, os grupos subalternos podem ser compreendidos como periferias das

    classes dirigentes. Por baixo do espaço supostamente homogêneo de um Estado Nacional,

    é possível vislumbrar as verticalidades (como diria Milton Santos) do capital transnacional

    que geram desigualdades sociais mais ou menos visíveis no território.

    2. DESENVOLVIMENTO

    Discute-se se ao trocar o uso de “classes” por “grupos” Gramsci estaria fugindo à censura

    carcerária. Ainda que o termo classe apareça muito, é notável que em seus Cadernos do

    Cárcere as expressões lotta de classe e lotta di classi sejam utilizadas somente nove vezes

    e lotte di classe uma só vez.

    Nas únicas quatro vezes em que aparece nos Cadernos o termo classes instrumentais está

    vinculado aos intelectuais ou ao tema da escola unitária. A Classe operária é citada só três

    vezes ― os termos “operário” e operária” como substantivos ou adjetivos aparecem bem

    mais. Mas não é pelo mero registro quantitativo que se pode atribuir a importância de um

    conceito, embora sua recorrência seja um índice importante da direção que a pesquisa

    gramsciana seguiu.

    Gramsci, por exemplo, define uma única vez as classes fundamentais. O sentido é bem

    preciso: elas são produtivas e se dividem em borghesia capitalistica e proletariato moderno.

    Apenas em mais dois momentos escreve sobre os “grupos principais das classes

    fundamentais” e a relação destas com os intelectuais.

    Os subalternos, sempre no plural, não possuem uma definição precisa. Eles não substituem

    o proletariado, embora possam contê-lo. A razão disso é que eles se definem em relação a

    outros grupos homogêneos. Os subalternos são tudo menos homogêneos e se caracterizam

    pela desagregação, a espontaneidade, a falta de organização permanente (leia-se bem: não

    de qualquer organização!).

    A pesquisa dos subalternos está subordinada ao vasto empreendimento teórico de Gramsci:

    compreender como se transforma a estrutura em ação, a espontaneidade em direção

    consciente.

    De volta à questão do início, os subalternos podem falar, é evidente. Ainda que emudeçam

    (muitas vezes propositalmente). Eles tendem a se unificar, mesmo que a tendência seja

    rompida sistematicamente pela ação das classes dominantes; e até mesmo podem se

    organizar, ainda que de modo episódico. Traços de sua direção própria e consciente se

  • mostraram ao longo da história em seus levantes desagregados e descontínuos. Com um

    desses casos Gramsci inicia seu Caderno 25: a trajetória de Davide Lazzaretti.

    Os seguidores de Lazzaretti atuavam no sudoeste da Toscana no século XIX.

    Curiosamente, naquela região, em 1953, o Partido Comunista da Itália obteve sua maior

    votação percentual: 48,8%. Lazzaretti nasceu em 1834. Era um carregador, vendedor

    ambulante etc. Em 1848 tem uma visão e vinte anos depois, durante uma das piores safras

    da Itália, com aumento de impostos sobre os camponeses, ele teve uma crise espiritual.

    Torna-se santo e tem apoio extra-oficial da Igreja para combater o liberalismo laico.

    Em 1870 ele profetizou o aparecimento de um novo chefe e monarca, vindo do Sinai, que

    desceria o monte Amiata com os camponeses, para libertá-los. Formou a milícia do Espírito

    Santo e colônias “comunistas” nas montanhas. Os fiéis ergueram uma igreja. Sua doutrina

    evolui e se descobre que ele mesmo é o Messias. Ele irá descer a montanha no fim do

    Reino da Graça (o pontificado de Pio IX). Mas ele morrerá, rezava a profecia.

    Tais acontecimentos tiveram como pano de fundo um papado de reação ao socialismo e ao

    liberalismo condenados em 1864 no documento “Sílabo dos Erros de Nossa Época"

    (Syllabus Errorum). Dez anos antes haviam sido proclamados os Dogmas da Imaculada

    Conceição e o da Infalibilidade Papal e em 1858 o milagre de Lourdes veio a reforçar a

    política católica da Imperatriz Eugênia na França, consorte de Napoleão III. Quando em

    1870 Roma tornou-se capital do Reino da Itália o Papa declarou-se prisioneiro no Vaticano e

    proibiu os católicos italianos de votar nas eleições.

    Em 1878, Pio IX e o rei Vittorio Emanoelle morreram. Lazzaretti havia retornado da França,

    onde tinha adeptos abastados e reuniu 3 mil pessoas no dia da Assunção (14 de agosto).

    Dias depois, ele desceu com a multidão e a bandeira de Cristo e da República para a aldeia

    de Arcidosso. Os carabinieri mandaram que eles voltassem. Lazzaretti disse: “Se vocês

    querem paz, eu lhes trago a paz; se vocês querem comiseração, eu lhes trago comiseração;

    se vocês querem sangue, aqui estou eu”. Foram fuzilados. Lazzaretti morreu assassinado

    cruelmente, como Gramsci sublinha. Os outros foram condenados à prisão e o movimento

    despareceu aparentemente.

    Hobsbawm (1970), a quem em parte se deve o relato acima, mostra, entretanto, que quando

    houve a tentativa de assassinar Palmiro Togliatti em 1948, os comunistas ameaçaram pegar

    em armas, mas foram contidos pela direção do Partido Comunista Italiano. Algumas aldeias

    se sublevaram e Arcidosso estava entre elas.

    Mais tarde, um dirigente comunista que conhecia a história de Lazzaretti, citou o profeta num

    comício naquela localidade. Depois do comício foi levado à parte por algumas pessoas que

    estavam contentes com a citação do profeta. Eram... seguidores do profeta! Eram também

  • comunistas, porque o profeta certamente teria apoiado o PCI, mas eles não sabiam que o

    partido valorizava a luta do profeta. O movimento subsistira na clandestinidade. Para

    Hobsbawm o movimento milenarista tinha sido absorvido por uma direção política moderna:

    o comunismo.

    Em Gramsci, diferentemente de Hobsbawm, parece haver maior consideração para com a

    espontaneidade. Esta aparece correlacionada à palavra “popularidade”, às formas

    elementares, às ideias republicanas (misturadas ao fanatismo religioso).

    O próprio Lazzaretti era leitor insaciável, embora não seja preciso que os opúsculos

    populares cheguem em grande tiragem aos camponeses, como acentua Gramsci. Suas

    visões são fruto de experiências reais com reminiscências literárias e tradições medievais. A

    essas se associam “máximas socialistóides”.

    A espontaneidade por si só não permite explicar, por exemplo, de que maneira os

    camponeses anarquistas andaluzes na mesma época da Rebelião do Monte Amiata levaram

    a cabo greves gerais e insurreições coordenadas. O fato dos anarquistas rejeitarem a

    disciplina administrativa, não quer dizer que não estavam organizados como argumentou

    Temma Kaplan em sua crítica da ideia de milenarismo.

    A teoria milenarista não mostra como uma ideologia “pré-moderna” se transformava em ação

    política (Kaplan, 1977, p.231). Os anarquistas construíram sindicatos, tentavam ocupar

    fabricas e organizar a produção em situações revolucionárias. A espontaneidade porém não

    atingiu níveis organizativos maiores. A sociedade imaginada pelos anárquicos seria mais

    factível num modelo de sociedade agro letrada, embora os testemunhos do zapatismo, por

    exemplo, revelem planos de auto-organização econômica e aliança com operários urbanos.

    O mesmo se pode dizer de experiências autogestionárias na Espanha.

    Ocorre que depois de 1968, uma crítica radical não comunista apresentou características

    avançadas. Ela é expressão de sociedades industriais e pós industriais e não mais agrárias

    e questiona a alienação como um processo de estranhamento não tanto no processo

    produtivo, mas na esfera do consumo de massa; a repressão psico-ideológica; e a

    exploração do tempo livre propiciado pela mais valia relativa. Por fim, apela ao

    subproletariado urbano (recrutado em todas as classes, como se afirmava no Manifesto

    Comunista) para além de uma classe operária (vista como integrada) e do campesinato,

    virtualmente desaparecido na Europa Ocidental. Numa conjuntura assim é que se deu a

    recepção do Caderno 25 em países da periferia, onde o campesinato era importantíssimo,

    caso da Índia.

    Toda a rebeldia autônoma dos subalternos é de grande valia ao historiador integral, diz

    Gramsci na sequencia de seu Caderno 25. Até mesmo as monografias locais, cujas fontes

    são raras, contribuem para resgatar o seu passado de suposto silêncio.

  • Gramsci chega a tangenciar o problema da opressão racial quando cita grupos subalternos

    de outra raça, cultura e religião (como os escravos da Roma antiga). Mas em todos os seus

    cadernos são incipientes as referências ao racismo.

    Há interessantes notas sobre as diferenças entre trabalhadores nacionais e estrangeiros,

    mas não muito. O mesmo sobre as mulheres. Além de naturalizar comportamentos

    femininos e atribuir a elas a frivolidade e a fragilidade psicológica em suas Cartas do

    Cárcere, ele chega a escrever no Caderno 25 que “a questão da importância das mulheres

    na história romana é similar à dos grupos subalternos, mas até um certo ponto: o machismo

    só pode ser comparado a um domínio de classe em um certo sentido”. O problema é que ele

    também escreve que isso “tem mais importância para a história dos costumes que para a

    história política e social”.

    Mesmo sendo homem de sua época, portanto não isento de preconceitos, Gramsci foi além

    das classes fundamentais do capitalismo e descobriu no silêncio da história das camadas

    subalternas as dimensões culturais que não podiam ser simplesmente incorporadas ao

    conceito de um proletariado europeu, branco, masculino e heterossexual.

    Ele não abandonava a centralidade operária definida pela sua inserção nas relações de

    produção capitalistas. A subalternidade era uma dimensão a mais que permitia entrecruzar

    as diversas formas de sujeição de trabalhadoras e trabalhadores em sentido amplo. Abria-se

    a perspectiva de compreender a opressão de gênero, étnica, regional, linguística e outras

    tantas sem esquecer a de classe, reconfigurando-a.

    Mas por que foi necessário criar outra categoria ao lado do proletário? Ambos (subalternos e

    operários) são dominados, mas o locus da subordinação de um é interno ao processo de

    produção, enquanto o do outro é predominantemente externo. Marx já havia estabelecido

    uma minuciosa estratificação dos subproletários que tinham uma relação intermitente com o

    trabalho produtivo, seja como exército de reserva de mão de obra ou como parte de uma

    das categorias da superpopulação relativa (excedente) tratadas em O Capital (no capítulo

    “A Lei Geral da Acumulação Capitalista”).

    Gramsci não abandonou a natureza econômica da subalternidade, mas ampliou sua

    dimensão cultural. O fato de muitas causas feministas serem incorporadas pela Ordem, por

    exemplo, é antes um atestado de seu caráter antagônico ao capital do que de seu lugar

    secundário face à “luta de classes”. É por isso que há a preocupação em cooptá-las! Toda

    luta operária percorreu historicamente uma trilha estreita entre a integração e a repressão.

    As diferentes demandas dos novos sujeitos da subalternidade, outrora marginalizadas pelos

    próprios marxistas, tem forte relação com o recorte da classe social, mas desde que a

    classe seja vista em sua pluralidade cultural.

  • Gramsci permitiu a ampliação da classe sem negá-la e indicou dimensões que ele mesmo

    não podia expandir. Os subalternos estão além do espaço de dominação fabril sem deixar

    de portar a primordial subordinação econômica (direta ou indireta) ao lado de outras formas

    de sujeição, tão importantes quanto aquela. O “econômico” aqui refere-se à dominação

    sobre aquele que é impedido de produzir livremente o seu mundo material e espiritual.

    Giorgio Baratta chamou a atenção para o fato de que entre o operário e o marginalizado

    surge uma vizinhança muito próxima. Afinal Gramsci cita a convivência do trabalhador

    nacional com os imigrantes de outras etnias, por exemplo.

    Gramsci, porém, não ignorou as limitações da subalternidade. Às vezes com rigor excessivo.

    Como os camponeses, para ele os subalternos não criaram seus próprios intelectuais

    orgânicos, os seus dirigentes, e nem assimilaram intelectuais tradicionais. Embora na Itália

    parte dos intelectuais tivesse origem camponesa.

    Em primeiro lugar, a própria contraposição entre intelectuais orgânicos e tradicionais perdeu

    sentido com a penetração de todas as instituições de pesquisa e ensino pelo capital. Há até

    mesmo uma distinção no interior da intelectualidade trabalhadora. Algumas áreas da

    pesquisa são relegadas a uma situação “periférica” diante de outras que produzem ciência

    aplicada de ponta. São elas que impõem ao conjunto das ciências puras e das artes os seus

    critérios de mensuração da produtividade.

    Em segundo lugar, a história revelou levantes cuja liderança foi exercida por minorias ativas

    não permanentes, criadas no próprio “teatro de operações”. Elas sempre definiram uma

    tática nova. Mas é uma ilusão achar que fossem desorganizadas e agrupadas ad hoc.

    A espontaneidade, característica dos grupos subalternos, não seria antes um traço

    revalorizado no século XXI depois que organizações tradicionais da classe operária se

    burocratizaram por cem anos ou mais? A esquerda social democrata perdeu a capacidade

    de manobrar no terreno da luta cotidiana. Por outro lado, o protesto autônomo esgota-se em

    si mesmo, eventualmente com uma vitória e outras vezes não. E o faz não por uma “falta”,

    mas porque essa é a sua “natureza”: é sempre um grupo organizado que desata um dos nós

    da rede de poder, esperando com isso que outros se organizem em seguida para desfazer

    outros pontos. A forma do movimento é horizontal quando vista em conjunto.

    O traço espontâneo pode ser uma resistência a grupos políticos para os quais (como já

    lembrava Rosa Luxemburg em seu artigo “Questões Táticas”) basta mobilizar as massas de

    vez em quando como se elas fossem “reservistas” de um corpo de oficiais burocratas.

    Como escreveu Gramsci num trecho de sua obra intitulado “Espontaneidade e direção

    consciente”, a “experiência cotidiana iluminada pelo senso comum” não pode estar em

    oposição à teoria marxista: “entre uma e outras há diferença quantitativa, de grau, não de

  • qualidade” e tem que ser possível uma passagem de uma à outra reciprocamente.

    O Caderno 25 talvez sugira mesmo uma crítica aos rumos da própria Revolução Russa.

    Afinal, Gramsci diz que “só a vitória 'permanente' rompe, e não imediatamente, a

    subordinação”. O autor parece dar relevo ao advérbio de tempo (imediatamente). Além

    disso, o substantivo “vitória” é adjetivado com uma palavra entre aspas: “permanente”.

    Uma vanguarda num país simultaneamente moderno e atrasado como a Rússia não parece

    ter rompido a subordinação. A este respeito, num mar revolto de relatos do período,

    poderíamos nos remeter às Memórias de Vitor Serge, que conheceu o processo

    revolucionário e os seus líderes, incluindo Gramsci. E compreendeu o quanto as condições

    dadas, aliadas às escolhas políticas da Revolução, não permitiram a “vitória permanente”.

    Isso faz recordar a carta em que Gramsci conta sua viagem à Ilha de Ustica para esperar o

    seu julgamento. Alguém o reconhece como o chefe do comunismo italiano e indaga se ele

    seria o líder do país caso o seu partido vencesse. E Gramsci responde que, sendo sardo, a

    ele seria destinado no máximo um posto de sub-chefe nos correios, cargo normalmente

    destinado a pessoas como ele... Decerto, há uma blague. Mas ela pressupõe que mesmo

    depois da vitória da Revolução muitos traços de subalternidade persistem.

    Na época moderna, entretanto, há uma hegemonia ativa do grupo dirigente e dominante que

    abole qualquer autonomia dos subalternos. Esta renasce de outra forma como partidos,

    sindicatos, associações de cultura. Aludindo provavelmente ao fascismo, Gramsci diz que as

    ditaduras contemporâneas suprimem legalmente essas novas organizações autônomas e

    tentam incorporá-las à atividade estatal numa forma totalitária.

    Entrementes, cabe ressaltar que a manutenção da hegemonia dos grupos dominantes

    depende do nascimento de partidos novos para “manter o consenso e o controle dos grupos

    subalternos”. Ou seja, a classe hegemônica torna-se Estado (força) e se mantêm também

    como partidos (consenso). Ao mesmo tempo impede, quando pode, os subalternos de

    serem partido e, por extensão, Estado.

    Seria a hegemonia objeto de uma disputa? Ou ela seria antes uma totalidade? Nos

    movimentos sociais é comum se falar em contra-hegemonia. Mas haveria a possibilidade de

    duas hegemonias? A hegemonia é um fato total e dentro dela se estabelecem os limites que

    permitem a existência organizada das próprias forças que se consideram contrárias à

    hegemonia existente.

    Um governo é forte porque representa o interesse aparente de um conjunto amplo de

    valores dominantes na sociedade civil. E porque ao mesmo tempo garante a expectativa de

    que os representantes dos subalternos podem exercer o poder dentro das regras existentes.

  • Dir-se-ia mais: que o seu governo de fato implementaria mudanças estruturais na sociedade.

    Além de esterilizar os subalternos em níveis “pré-políticos”, pode ser que o grupo

    hegemônico tenha que aceitar a organização partidária dos subalternos dentro da ordem,

    embora isso não seja previsto no Caderno 25.

    A unidade dos grupos dominantes se faz no Estado e sempre que a subalternidade se ergue

    contra eles, sua autonomia é abolida, incorporada e esterilizada num nível corporativo e

    vigiado. Não seria a própria Democracia um mecanismo de perda da autonomia quando a

    “oposição” é legalizada?

    3. CONCLUSÃO

    Para estudar a história dos subalternos Gramsci propõe determinados passos na pesquisa:

    formação objetiva dos grupos subalternos no mundo da produção econômica; sua

    mentalidade; reivindicações; tentativas de influenciar os grupos dominantes etc.

    Para Gramsci “em todo movimento 'espontâneo' há um elemento primitivo de direção

    consciente”. Mas há que se lembrar a outra face da moeda: a exigência de uma auto-

    educação das camadas subalternas e de uma direção que, não lhe sendo exterior, não pode

    simplesmente se confundir com elas. Este debate continua indispensável.

    Numa página do Caderno 25, Gramsci cita uma história de Tácito: um senador propôs que

    todos os escravos vestissem um uniforme. O Senado Romano recusou a proposta porque

    os escravos poderiam se dar conta de que eram a maioria. Os subalternos são a maioria

    desagregada. Sua autonomia depende da unificação consciente de suas lutas.

    Podem os subalternos falar? A pergunta devia ser dirigida a eles.

    Bibliografia

    Barata, G. Antonio Gramsci em Contraponto. São Paulo: Unesp, 2011.

    Del Roio, Marcos T. (Org). Gramsci: Periferia e Subalternidade. São Paulo: Edusp, 2017 (no

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    Gramsci, A. Quaderni del Carcere. Torino: Riunitti, 1977.

    Hobsbawm, E. Rebeldes Primitivos. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

    Kaplan, Temma. Origines Sociales del Anarquismo en Andalucia. Barcelona: Grijalbo, 1977.

  • A QUESTÃO PEDAGÓGICA E A PERSPECTIVA DE HEGEMONIA DAS CLASSES

    SUBALTERNAS2

    Marina Maciel Abreu3

    RESUMO

    Aborda com base em Gramsci, a questão pedagógica na organização política das

    classes subalternas e a mediação dos intelectuais nos processos de formação de uma

    nova e superior cultura, na luta pela hegemonia, como estratégia revolucionária. O

    conteúdo desdobra-se em dois eixos: a) elementos histórico-conceituais da formação

    da cultura pelas classes subalternas na luta pela hegemonia, fundantes de novas

    relações pedagógicas; b) relações pedagógicas na formação de uma nova cultura: a

    dialética intelectual-massa e o trabalho como princípio educativo. Conclui com a indicação

    de desafios pedagógicos da formação de uma nova cultura.

    PALAVRAS–CHAVE: Questão Pedagógica, Cultura, Ideologia, Hegemonia, Intelectuais.

    THE PEDAGOGICAL QUESTION AND THE PERSPECTIVE OF

    HEGEMONY OF THE SUBALTERN CLASSES

    ABSTRACT

    It deals with Gramsci, the pedagogical question in the political organization of the subaltern

    classes and the mediation of the intellectuals in the processes of formation of a new and

    superior culture, in the struggle for hegemony, as a revolutionary strategy. The content

    unfolds in two axes: a) historical-conceptual elements of the formation of culture by the

    subaltern classes in the struggle for hegemony - the thematic nucleus of new pedagogical

    relations; b) pedagogical relations in the formation if a new culture: the intellectual-mass

    dialectic and work as an educational principle. It concludes with the indication of the

    pedagogical challenges of the formation of a new culture.

    KEYWORDS: Pedagogical Question, Culture, Educational Principle, Hegemony,

    Intellectuals.

    1- INTRODUÇÃO

    Este trabalho parte da tese gramsciana: “toda relação de „hegemonia‟ é necessariamente

    pedagógica” (GRAMSCI,1999,p.399), mediante a qual Gramsci vincula as relações pedagógicas às

    relações de hegemonia e, assim, as demarca conceitual e historicamente, para além das relações

    2 Este texto é uma versão revista e ampliada do artigo “A Questão pedagógica na luta pela Hegemonia em

    Gramsci”, publicado nos Anais do IX Simpósio Nacional Estado e Poder: Gramsci na Pesquisa Histórica, realizado na UFF, Gragoatá/Niterói, outubro de 2016, acesso http://9simposioestadoepoder.blogspot.com.br/. Busca adensamento do estudo sobre a temática na particularidade da questão pedagógica na organização da cultura e a perspectiva da luta das classes subalternas pela hegemonia na sociedade. 3

    Doutora em Serviço Social, Professora aposentada, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFMA. E-mail: [email protected]

    http://9simposioestadoepoder.blogspot.com.br/mailto:[email protected]

  • especificamente escolares. Pode-se entender as relações pedagógicas na análise gramsciana

    elaboradas no conjunto das relações sociais constitutivas da cultura na luta pela hegemonia, em que o

    conceito do trabalho é o princípio educativo, mediante o qual é estabelecido um tipo de conformismo

    social. Toda hegemonia expressa em seu desenvolvimento uma cultura, como sociabilidade sustentada

    em um determinado conformismo social, isto é, um certo equilíbrio psicofísico (adequação entre a

    atividade intelectual e as necessidades da produção e do trabalho), que pode ser imposto pelos

    interesses da acumulação do capital sobre as classes subalternas e, por isso, base de uma cultura

    alienada e alienante, ou estabelecido por essas classes, conformismo próprio, dinâmico, sustentáculo da

    organização de uma cultura emancipada. Para Gramsci,

    pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o

    de todos os elementos sociais que compartilham de um mesmo modo de pensar e de agir. Somos

    conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens coletivos. O

    problema é o seguinte: qual é o tipo de histórico de conformismo, de homem–massa do qual

    fazemos parte? (GRAMSCI,1999,p.94)

    Em sua análise do “Americanismo e Fordismo” (GRAMSCI,2000b), Gramsci acentua que

    “os métodos de trabalho são indissociáveis de um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a

    vida; não é possível obter êxito num campo sem obter resultados tangíveis no outro.”

    (GRAMSCI,2001,p.266). Considera o fenômeno do americanismo, a partir do padrão fordista/taylorista,

    “o maior esforço coletivo realizado até agora para criar, com rapidez incrível e com uma consciência do

    fim jamais vista na História, um tipo novo de trabalhador e de homem” (GRAMSCI,2001,p.266),

    adequado ao novo padrão de produção e trabalho. Na crítica profunda desenvolvida por Gramsci, desse

    movimento, encontram-se elementos da sua reelaboração do conceito de trabalho como princípio

    educativo, como base de um novo conformismo, nexo entre a construção de um padrão produtivo e de

    trabalho e a organização de uma ordem intelectual e moral pelas classes subalternas; princípio que se

    funda na necessidade histórica da constituição de um processo mais amplo de superação da

    racionalidade da produção capitalista e instauração de uma nova e superior cultura – uma nova

    sociabilidade. Para Gramsci, não se pode esperar a nova ordem dos grupos sociais „condenados‟ por

    ela, só se pode esperar dos grupos sociais que estão criando, “por imposição e através do sofrimento,

    as bases materiais desta nova ordem: estes „devem‟ encontrar o sistema de vida „original‟, e não de

    marca americana, a fim de transformarem em „liberdade‟ o que hoje é „necessidade‟.”(GRAMSCI,

    2001,p.281)

    Nessa perspectiva de análise, os movimentos culturais traduzem um amplo trabalho de

    elaboração de uma concepção de mundo, de uma filosofia e sua difusão na perspectiva de

    transformá-la “em bases de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual.”

    (GRAMSCI,1999,p.96). Equivale dizer, produzir uma atividade prática e uma vontade, nas quais essa

  • concepção de mundo esteja contida como premissa teórica implícita, ou seja, como uma ideologia.

    Trata-se de um processo mediado pelos intelectuais e instituições de cultura, dentre elas, a escola e a

    religião (catolicismo) são historicamente as mais importantes, além das instituições de organizações

    política das classes sociais, em que o partido político é a culminância, como intelectual coletivo. Inclui-se

    também a preocupação de Gramsci com a comunicação (jornais, revistas, e outros meios destacados à

    época) como instrumento principal. São medições mediadas pela relação entre o Estado e a sociedade

    civil, considerando-se que o Estado tem como uma de funções fundamentais, “educar a grande massa

    da população para um certo nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de

    desenvolvimento das forças produtivas e, por conseguinte, aos interesses das classes

    dominantes.”(GRAMSCI,2000b,p.284).

    Na formação de uma nova cultura pelas classes subalternas, esse movimento requer novas

    e originais relações pedagógicas adequadas ao rompimento com a ideologia dominante que se tornou

    senso comum, fonte de acomodação e de passividade, no desenvolvimento e transformação do núcleo

    sadio do senso comum, o bom senso, em uma concepção de mundo própria, unitária e coerente, capaz

    de “conservar a unidade ideológica em todo o bloco histórico que está cimentado e unificado justamente

    por aquela ideologia.” (GRAMSCI,1999,p.99). Este é para Gramsci, o problema fundamental desse

    movimento cultural.

    2- ELEMENTOS HISTÓRICO-CONCEITUAIS DA FORMAÇÃO DA CULTURA PELAS CLASSES SUBALTERNAS NA LUTA PELA HEGEMONIA - núcleo temático de novas relações pedagógicas

    A necessidade histórica da construção da hegemonia pelas classes subalternas como

    estratégia revolucionária recoloca a formação de uma nova cultura como uma necessidade no processo

    de reforma intelectual e moral, na luta e conquista da emancipação político-ideológica dessas classes e

    alteração das relações de força para a conquista do poder do Estado. Esses processos, de natureza

    ideológica/política/militar, são constitutivos do amplo movimento de transformações estruturais e

    superestruturais de superação da ordem burguesa.

    Há que se considerar que as articulações entre esses processos nas formulações

    gramscianas nos marcos da estratégia revolucionária da “guerra de posição” na luta pela hegemonia,

    suscitam ambiguidades e polêmicas, considerando, sobretudo, a ênfase dada à reforma intelectual e

    moral como condição necessária, mas não suficiente à tomada do poder estatal, que, para muitos

    intérpretes e críticos, aparece como centralidade da luta e, por isso mesmo, tratada equivocadamente

    como única expressão das funções de hegemonia e, consequentemente, chancela a crítica à análise

    gramsciana como politicista e voluntarista. Em contraposição a essa tendência de interpretação,

    concorda-se com o entendimento de que o movimento de constituição de uma nova hegemonia envolve

  • a conquista da direção, primeiro no âmbito da própria classe e depois direção+domínio4, e entre esses

    “momentos há um interregno de ruptura, pois nenhuma classe social armada e dominante cede seu

    poder militar e seus privilégios só por convencimento.” (SECCO,1996,p.86).

    Deste modo, a reforma intelectual e moral como um amplo movimento de crítica e

    destruição da cultura dominante “significa criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade

    coletiva nacional-popular, no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização

    moderna.” (GRAMSCI,2000b,p.18). Assim, a formação de uma vontade coletiva, como expressão de

    um processo de reforma intelectual e moral desenvolvido pelos subalternos, significa a “consciência

    operosa da necessidade histórica como protagonista de um drama real e efetivo.”

    (GRAMSCI,2000b,p.17). É, portanto, um processo complexo onde se evidenciam os nexos

    contraditórios entre a base econômica e a superestrutura na constituição de um novo bloco histórico, de

    uma nova hegemonia5, e se apresenta como “possibilidade inscrita na totalidade social”

    (DIAS,1996,p.14).

    Na perspectiva de desvendar a hegemonia burguesa para melhor instrumentalizar a

    construção da hegemonia das classes subalternas, tendo presente a relação orgânica e dialética entre a

    estrutura e a superestrutura, Gramsci elabora, em contraposição ao economicismo e ao liberalismo, a

    “noção geral de Estado” ou do Estado integral (GRAMSCI,2000b, p.354), na qual “entram elementos

    que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado =

    sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção).” (grifos do autor).

    (GRAMSCI,2000b,p.244). Nessa formulação, Gramsci (2000b) atenta para o fato de que as funções do

    Estado não se resumem às atividades coercitivas desenvolvidas pelo aparato do governo executivo e

    instituições jurídico-policiais ou sociedade política = Estado no sentido estrito, mas inclui funções de

    consenso ou educativas a cargo dos organismos privados da sociedade civil. Distinguem-se os

    “elementos constitutivos do Estado em sentido orgânico e mais ampliado (Estado propriamente dito e

    sociedade civil),” (GRAMSCI,2000b, p.244). A concepção gramsciana do Estado abrange, portanto,

    4 Importa considerar que o conceito de hegemonia, inicialmente construído como um dos lemas políticos centrais no

    movimento social-democrata russo do fim dos anos 1890 a 1917 (ANDERSON,1986,p.16), expressando o papel

    preponderante do proletariado na revolução burguesa russa como protagonista de uma perspectiva revolucionária

    na luta pela libertação de todas as classes e de todos os grupos oprimidos, reduz-se à função de direção no interior

    dessa classe. Amplia-se, posteriormente, para explicar a dominação burguesa, passando a contemplar as funções

    de direção e domínio (supremacia).

    5 Sob este ângulo de análise, é entendido o enraizamento do aparelho de hegemonia na sociedade civil

    considerada em sua dupla dimensão, isto é, político-ideológica e econômica, na medida em que para Gramsci, “a

    hegemonia nasce da fábrica e necessita, apenas, para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários

    profissionais da política e da ideologia” (GRAMSCI,2001,p.247); e, a concretização das funções de direção e

    domínio nas mediações que corporificam a relação entre a sociedade civil e o Estado. As funções de hegemonia

    (direção e domínio) na concepção gramsciana dão conta das estruturas de poder burguês no ocidente e das

    possibilidades de destruição/construção das mesmas estruturas pelas classes subalternas, estando essas funções

    associadas à relação orgânica entre Estado e sociedade civil.

  • “todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e

    mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados” (GRAMSCI,2000b,p.331).

    Daí, a crítica de Gramsci da tendência de identificação entre Estado e governo, como “uma

    representação da forma corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade política e sociedade

    civil” (GRAMSCI,2000b,p.244). Além disso, interpretações equivocadas da relação entre sociedade

    civil e sociedade política, constitutiva da noção geral de Estado, envolvem inúmeras polêmicas6 e

    banalizações da análise gramsciana, sobretudo em relação à concepção de sociedade civil que tende a

    ser confundida e reduzida a “uma associação de associações amorfa, desestruturada, sem cortes e sem

    contradições, homogeneizadas” (NETTO, 2004), em contraposição ao Estado, restrito a governo,

    também homogeneizado e isento de contradições. Diferente do que acentua Gramsci, ao se referir às

    „iniciativas privadas‟ para caracterizar a sociedade civil nos terrenos da atividade econômica e das

    atividades político-ideológicas7, na unidade dialética da relação com o Estado. Afirma Gramsci que,

    uma das funções mais importantes do Estado burguês, é a de educação da grande massa da

    população, para a adesão e consentimento ao projeto dominante. Desta forma, o Estado cria

    mecanismos e instituições próprias, dentre elas, são as mais importantes historicamente,

    a escola, como função educativa positiva, e os tribunais, como função educativa repressiva e

    negativa, (...) na realidade, tendem para este fim uma multiplicidade de outras iniciativas e de

    outras atividades ditas privadas que formam o aparelho da hegemonia política e cultural das

    classes dominantes. [...] Mas, na realidade, só o grupo social que coloca o fim do Estado e o seu

    próprio fim como objetivo a atingir pode criar um Estado ético, tendendo a pôr termo às divisões

    internas em que implica a dominação etc. e a criar um organismo social unitário técnico-moral.

    (GRAMSCI, 2000b,p.284).

    Tais processos difundem-se na sociedade na perspectiva da unidade entre o Estado e a

    sociedade civil, unidade consubstanciada numa relação contraditória de negação e afirmação, na qual é

    plasmado o conteúdo “ético” do Estado, base da unidade do bloco histórico. Na totalidade do bloco

    histórico, é que a cultura se expressa, cujo desenvolvimento está ligado a uma dialética intelectual-

    massa em que a compreensão crítica do homem ativo de massa, em relação a uma nova cultura,

    é obtida (...) através de uma luta de „hegemonias‟ políticas, de direções contrastes, primeiro no

    campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria

    concepção do real. A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a

    consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria

    e prática finalmente se unificam. (GRAMSCI,1999,p.103).

    6 Ver BOBBIO,1987; ANDERSON, 1986; DIAS et all,1996; COUTINHO,1992, dentre outros.

    7 Algumas formulações gramscianas, se tomadas isoladamente, deixam margem a interpretações da sociedade

    civil referida apenas à superestrutura. Buci-Glucksmann (1980,p.99) oferece uma contribuição sobre o conceito

    gramsciano de sociedade civil captado em sua dupla dimensão: “Por um lado, ele diz respeito às „sociedades

    capitalistas‟, ou seja, às condições materiais, ao sistema privado de produção. Por outro lado, ele implica os

    aparelhos ideológicos-culturais da hegemonia, o aspecto educador do Estado.”

  • Nessa linha de discussão, a ideologia tem centralidade como o cimento do bloco histórico e,

    o conceito de hegemonia representa além do “progresso político-prático, um grande progresso filosófico,

    porque implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequada a uma

    concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda

    restritos. (GRAMSCI,1999,p.104). Para Gramsci,

    ( [...] toda filosofia tende a se tornar senso comum de um ambiente, ainda que restrito (de

    todos os intelectuais). Trata-se, portanto de elaborar uma filosofia que – tendo já uma

    difusão ou possibilidade de difusão, pois ligada à vida prática e implícita nela – se torne um

    senso comum renovado com a coerência e o vigor das filosofias individuais. E isto não pode

    ocorrer se não se sente, permanentemente, a exigência do contato cultural com os

    „simples‟).(GRAMSCI,1999,p.101).

    É importante demarcar que para Gramsci,

    Uma filosofia da práxis só pode apresentar-se, inicialmente, em uma atitude polêmica e

    crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto

    existente (ou mundo cultural existente). E, portanto, antes de tudo, como crítica do „senso

    comum‟ (e isto após basear-se sobre o senso comum para demonstrar que „todos‟ são

    filósofos e que não se trata de introduzir ex novo8 uma ciência na vida intelectual de „todos‟,

    mas de inovar e tornar „crítica‟ uma atividade já existente); e, posteriormente, como crítica

    da filosofia dos intelectuais, que deu origem à história da filosofia e que, enquanto individual

    (e, de fato, ela se desenvolve essencialmente na atividade de indivíduos singulares

    particularmente dotados), pode ser „culminâncias‟ de progresso do senso comum, pelo

    menos do senso comum dos estratos mais cultos da sociedade e, através desses, também,

    do senso comum popular (GRAMSCI,1999,p.101).

    É evidente na análise de Gramsci que “a relação entre filosofia „superior‟ e senso

    comum é assegurada pela „política‟.”(Gramsci,1999,p.100). Isto porque, a unidade orgânica da

    relação estrutura e superestrutura, em que a determinação da estrutura não é mecânica, supõe a

    posição ativa da superestrutura, exatamente na medida em que as superestruturas reagem sobre a

    estrutura e a política sobre a economia. Significa o processo político-pedagógico de superação da

    dicotomia entre o pensar e o agir como devir histórico, como expressão “da luta perpétua”

    (GRAMSCI,1999) e conquista da unidade na relação entre teoria e prática, cindida pelas relações de

    dominação e alienação. A dicotomia entre o pensar e o agir na sociedade capitalista em relação às

    classes subalternas, é uma necessidade da reprodução da ordem burguesa, e se manifesta na

    consciência contraditória do homem ativo de massa, ou seja, é possível dizer que ele tem duas

    consciências:

    uma implícita na sua ação, e que realmente o une a todos os seus colaboradores na

    transformação prática da realidade; e, outra, superficialmente explicita ou verbal, que ele herdou do

    passado e acolheu sem crítica. Todavia esta consciência verbal não é inconsequente: ela liga a um

    grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de uma

    maneira mais ou menos intensa, que pode até mesmo atingir um ponto no qual a contraditoriedade

    8

    Grifado pelo autor

  • da consciência não permita nenhuma ação, nenhuma escolha e produza um estado de

    passividade moral e política. (GRAMCI,1999,p.103).

    O senso comum, portanto, expressa a consciência contraditória, reflete uma concepção de

    mundo ocasional e desagregada com momentos de lucidez sobre a própria realidade de vida, que bem

    traduzem expressões populares de uma filosofia, e despertam para a “superação das paixões bestiais e

    elementares numa concepção da necessidade que fornece à própria ação uma direção consciente.”

    (GRAMSCI,1999,p.98). Para Gramsci, “este é o núcleo sadio do senso comum, que poderia ser

    chamado de bom senso e que merece ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente”

    (GRAMSCI,1999,p.98), em nova concepção de mundo, base de uma nova e superior cultura, que

    requer e consubstancia novas e originais relações pedagógicas.

    Gramsci refere-se a esse movimento na relação estrutura e superestrutura como “catarse”,

    para indicar “a passagem do momento meramente econômico (egoístico-passional) ao momento ético-

    político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isto

    significa também a passagem do „objetivo ao subjetivo‟ e da „necessidade à liberdade'."

    (GRAMSCI,1999,p.314).

    3- RELAÇÕES PEDAGÓGICAS NA ORGANIZAÇÃO DE UMA NOVA CULTURA: a dialética

    intelectual-massa e o trabalho como princípio educativo

    Para Gramsci todos os homens são intelectuais na medida em que todos são filósofos,

    ainda que a seu modo, inconscientemente, pois “até mesmo na mais simples manifestação de uma

    atividade intelectual qualquer, na „linguagem‟ está contida uma determinada concepção de mundo”

    (GRAMSCI,1999,p.93), todavia, chama atenção para o fato de que “nem todos os homens têm na

    sociedade a função de intelectuais” (GRAMSCI,2000a,p.18). A função intelectual encontra-se contida

    não no que é intrínseco a essas atividades, mas no conjunto do sistema de relações no qual se

    encontram os indivíduos que as personificam, isto é, na função social da categoria profissional dos

    intelectuais na organização da cultura, mediante exercício das funções subalternas da hegemonia social

    e do governo político, que equivale dizer, nas funções de coerção e consenso (direção e domínio). Deste

    modo, evidencia-se, na análise gramsciana, a vinculação orgânica entre intelectual e classe social, que

    marca a necessidade histórica de unidade entre teoria e prática, como uma questão política dos

    intelectuais. Isto por que a autoconsciência crítica significa,

    histórica e politicamente, criação de uma elite de intelectuais: uma massa humana não se

    „distingue‟ e não se torna independente „para si‟ sem organizar-se (em sentido lato); e não existe

    organização sem intelectuais, isto é sem organizadores e dirigentes, ou seja, sem que o aspecto

  • teórico da ligação teoria-prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas

    „especializadas na elaboração conceitual e filosófica. (GRAMSCI,1999,p.104).

    Gramsci considera que a classe detentora do capital, em seu processo de constituição,

    desenvolve as mais amplas camadas de intelectuais. Ela não apenas desdobra na maioria das vezes,

    suas funções essenciais em novas especializações profissionais, como cria - para qualificar técnicos

    para o desempenho dessas funções - o mais complexo sistema educativo de formação dos intelectuais,

    onde a escola é a principal e a mais importante instituição. Além disso, o próprio mundo da produção é

    instância formadora desse intelectual. Assim, como assinala Dias (1991), seja na escola, seja no mundo

    da produção, “todos os elementos vitais do processo produtivo nada mais são, em última análise, do que

    racionalizações do processo vital da classe dominante; (o que é „prática‟ para a classe fundamental se

    torna „racionalidade‟ e especulação para seus intelectuais). (DIAS,1991,p.10). Sob o ponto de vista das

    classes subalternas, a formação de seus intelectuais se efetiva apesar e contra o sistema político-

    ideológico dominante. Em contraposição à cultura política da burguesia viabilizada nos diferentes

    espaços da sociedade capitalista, as classes subalternas formam seus intelectuais em espaços

    diferenciados, em que o partido, o sindicato e outras instâncias de organização são as “academias”. A

    esses intelectuais compete o trabalho de reforma intelectual e moral, ou seja, de elaboração de um

    pensamento superior ao senso comum, mantendo sempre uma relação educativa formativa com a

    massa tendo em vista a sua elevação intelectual e cultural, condição necessária na formação de uma

    nova cultura. Gramsci sublinha a importância do partido político, como intelectual coletivo, na elaboração

    e difusão das concepções de mundo e como elaboradores das intelectualidades integrais e universais,

    representa “o crisol da unificação da teoria e prática entendida como processo histórico real.”

    (GRAMSCI,1999,p.105). Nesse processo, constitui uma mediação essencial, na medida em que

    com o crescimento dos partidos de massa e com a sua adesão orgânica à vida mais íntima

    (econômico-produtiva) da própria massa, o processo de estandardização dos sentimentos

    populares, que era mecânico e casual (isto é, produzido pela existência ambiente de condições e

    pressões similares), torna-se consciente e crítico.(GRAMSCI,1999,p.148).

    A formação do intelectual vinculado às classes subalternas, especialmente ao operariado

    fabril, Gramsci (2000a) considera – contrariando a tese taylorista do desenvolvimento de atitudes

    maquinais no trabalhador fabril - que “a educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial,

    mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual” e ressalta

    que,

    o modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, motor exterior e

    momentâneo dos afetos e das paixões, mas numa inserção ativa na vida prática, como construtor,

    organizado, „persuasor permanente‟, já que não apenas orador puro – mas superior ao espirito

    matemático abstrato; da técnica – trabalho, chega à técnica – ciência e à concepção humanista

    histórica, sem a qual permanece „especialista‟ e não se torna „dirigente‟ (especialista+ político).

    (GRAMSCI,2000a,p.53).

  • Assim, o processo da crítica e da formação de uma nova cultura supõe a elaboração de

    uma nova concepção de mundo e requisita relações pedagógicas originais, criativas, orientadas pelo

    conceito do trabalho criador, trabalho concreto, como devir histórico e princípio educativo, em detrimento

    do trabalho alienante, trabalho abstrato. Deste modo, as relações pedagógicas ai construídas fundam-se

    em um novo principio educativo centrado no trabalho, a partir de uma nova lógica entre o padrão de

    produção e de trabalho e a necessidade histórica de uma nova cultura, na luta pela hegemonia; ou seja,

    busca modificação entre a atividade intelectual e o esforço muscular nervoso para o estabelecimento de

    um novo equilíbrio – conformismo -, na perspectiva de uma nova cultura. Trata-se do conceito de

    equilíbrio

    entre ordem social e ordem natural com bas