Classe trabalhadora e política de esquerda no Brasil Francisco … · 2017-11-01 · Classe...
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Classe trabalhadora e política de esquerda no Brasil
Francisco Pereira de Farias1
1. Partido e classe2
A política de esquerda, na sociedade capitalista3, aparece como um conjunto de
práticas partidárias, sindicais, mobilizadoras etc., cujo um dos elementos é a prática do
partido de representação de classe. A nossa reflexão se inicia, pois, pela análise dessa
forma de partido.
A função mandatária do partido
O partido de representação de classe distingue-se por reivindicar a si a
identidade classista. Em geral, o partido político expressa concretamente interesses de
classe, exceto aquele que se descola dos interesses sociais mais amplos, como o “partido
de clientela” e o “partido-seita”. Pois sendo própria do partido político a busca de
conquista da direção do aparelho de Estado, as políticas que o partido almeja se
destinam a impactar os interesses sociais, em competição ou antagônicos, no interior da
coletividade. Em outras palavras, o partido político tende a constituir-se em mandatário
de uma classe social.
Mas, por diversas razões, somente as correntes partidárias mandatárias da classe
do salariado tendem a se apresentar na cena política com a nomeação dos interesses de
classe enquanto tal. Em primeiro lugar, o grande número de membros da classe viabiliza
o tipo de apelo eleitoral, uma vez que a posição de classe não se restringe aos
trabalhadores da esfera da produção. O processo social de produção da mais-valia
envolve a interdependência dos âmbitos de produção (capital industrial) e circulação
(capital comercial). Pois, por um lado, o mais valor produzido na esfera industrial só se
realiza na esfera comercial, pelo consumo; e, por outro, a demanda suscitada pela base
monetária circulante só se efetiva com a produção de bens. Apesar de as frações do
capital competirem pela cota de presença na taxa de exploração do trabalho, existe uma
comunidade de interesses comuns das mesmas, oposta à comunidade dos interesses
1 Pós-doutorando em Sociologia Política (USP) e Professor em Ciência Política (UFPI). 2 Este item reproduz, em versão modificada, o conteúdo de meu artigo “A política de aliança de classes (I)”, Informe econômico (UFPI), v. 36, 2016. 3 Para noção de sociedade capitalista, ver Karl Marx, O capital: crítica da economia política. Vol. 1, São Paulo: Abril cultural, 1983.
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afins de assalariados dos circuitos do capital. Tais elementos – a interdependência e os
interesses comuns - de delimitação do agrupamento global constituem a base para que
os trabalhadores da circulação possam se reconhecer como membros da mesma classe
que os da produção.
Em segundo lugar, devido ao caráter coletivo do processo de trabalho na
Empresa Moderna, o trabalhador assalariado tende espontaneamente a valorizar o
associativismo, em suas expressões sindical e partidária, para a defesa de seus
interesses. Embora existam contratendências ao associativismo proletário - como o
sentimento de individuação produzido pela divisão e especialização de tarefas na
Empresa e o efeito personalizante do tipo de direito configurado no contrato de trabalho
assalariado -, elas não são suficientes para apagar as marcas do coletivismo. Quando o
trabalhador assalariado vai ao sindicato e ao partido, ele chega com o sentimento de que
os valores e interesses dessas organizações estão acima de suas projeções e carências
individuais.
É diferente a condição do proprietário privado dos meios de produção, que tende
a valorizar o individualismo, vendo a sua empresa antes como competidora nas relações
do mercado. Embora os empreendimentos estejam interligados pela divisão social do
trabalho no conjunto da sociedade e pela imposição da taxa média de lucro, a inclinação
da classe capitalista é de adesão ao discurso do indivíduo, inclusive na esfera política.
Quando o empresário capitalista participa em associação patronal ou partido político,
ele o faz imbuído do sentimento de que seu ponto de vista e seu interesse estão acima
dessas organizações.
Uma condicionante mais profunda dessa diferença entre o proletariado e a
burguesia frente ao associativismo diz respeito à posição das classes sociais na
comunidade global. Na coletividade com Estado e dividida em classes antagônicas, as
classes sociais são as comunidades concretas, em torno dos interesses em comum de
cada uma delas. Nessas condições históricas, a coletividade tornou-se uma comunidade
abstrata, a memória da perda da comunidade concreta de uma coletividade onde não
havia divisão de classes e aparelho de Estado. Ora, cabe à classe dominada a aspiração
de reconquista da sociedade igualitária economicamente (sem classes sociais e Estado),
correspondente à comunidade concreta da coletividade. Por isso o proletariado
apresenta-se como o guardião do sentimento de coletividade originário.
Em terceiro lugar, os efeitos das políticas do Estado - ao implementar medidas
como salário-mínimo, previdência social, educação básica, saúde, habitação – induzem
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à agregação e a articulação de setores ou profissões da classe do trabalho rotineiro, em
torno de reivindicações comuns. Pois os resultados de tais políticas impactam
desfavoravelmente aos interesses da classe subordinada. A tendência é de os
trabalhadores “executores” se organizarem globalmente para se contrapor aos
desequilíbrios resultantes.
O discurso de classe, referidos aos polos do antagonismo social, não pode ser
direto, exceto em conjunturas revolucionárias. Pois o tipo de estrutura do Estado produz
efeitos de abstração dissolventes da identidade antagônica e, em consequência, faz
emergir na cena política cotidiana a relação de competição, dentro da ordem. O efeito de
pessoa, atributo conferido aos agentes sociais da capacidade subjetiva de agir
livremente, decorre da estrutura jurídica do Estado. É própria do aparecer da norma do
direito estatal a transformação de regras funcionais (imperativos hipotéticos), visando
disciplinar relações de reciprocidade, em leis incondicionais (imperativos categóricos),
cujos fundamentos remetem à crença da liberdade humana. O específico do direito
moderno é não apenas a atribuição da forma sujeito (livre) aos agentes da produção,
como também a relação de igualdade entre suas personalidades, através do direito de
propriedade privada (de meios de produção, por um lado, e de força de trabalho, por
outro) - o que viabiliza o contrato da compra e venda da força de trabalho, aparecendo
essa troca como uma relação de equivalência.
Por sua vez, a forma povo-nação é, em parte, decorrência da estrutura
burocrática do Estado moderno. (A estrutura econômica capitalista também contribui
para produzir o fetichismo do interesse nacional.) As normas burocráticas de acesso
universal às tarefas estatais e recrutamento com base no critério formal de competência,
compatíveis com a forma sujeito igualitário do tipo de direito, exigem a formação da
sociedade ilusória denominada povo-nação. Trata-se de associação imaginária (um falso
contrato) porque os papeis de empresário capitalista e trabalhador assalariado não estão
numa relação equitativa, uma vez que o salário não remunera todo o valor de troca
produzido pelo uso da força de trabalho, mas apenas a parte relativa à reprodução desta.
Essa sociedade do contrato falseado requer um sistema de fronteiras nacionais, por
causa de o encontro entre o governo profissionalizado e os cidadãos formalmente
igualados se dar num contexto histórico de distribuição desigual das forças produtivas
pelo espaço mundial. Então os capitais mais fracos no espaço territorial global
necessitam do Estado nacional para a defesa dos seus interesses frente aos capitais mais
fortes e resistem à formação de um Estado mundial. A busca de afastar a influência da
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propriedade fundiária tradicional no aparelho estatal levou à centralização do poder
político, instaurando mecanismos de controle sobre os poderes regionais e locais. A
burocracia do aparelho de Estado pôde, então, apresentar-se a si mesma com o papel de
representante do coletivo de indivíduos autônomos (povo) e habitantes de uma secção
territorial com centralização política (nação), o que induz a classe assalariada à
desconfiança em sua organização enquanto classe e a fidelidade em primeiro lugar ao
povo-nação.
A conjugação desses efeitos fetíchicos – sujeito, povo-nação – produzidos pelo
tipo de estrutura jurídico-burocrática do Estado impede que a nomeação do antagonismo
de classes (“burguesia e proletariado”) emerja na cena política. Em seu lugar,
dependendo da conjuntura concreta e das forças dos partidos de representação de classe,
outros termos do antagonismo, convertido em competição, apresentam-se na cena
aberta, tais como “ricos e pobres”, “elite e massa”, “patronato e empregados”.
O partido político contribui, pois, para a formatação da identidade da classe, se
adota um discurso compatível com a dinâmica da luta de classes, a competição ou o
antagonismo. A relação entre o partido político e a classe social torna-se de implicação
mútua. De um lado, o partido expressa os interesses de sua base social, embora não
necessariamente refletindo-os de forma sociográfica na composição dos seus quadros
dirigentes, uma vez que fatores como o programa partidário, a institucionalização
organizacional e as predisposições ideológicas dos dirigentes jogam um papel mais
importante na representação dos interesses sociais. De outro lado, o partido mobiliza,
organiza e educa a sua base de classe - tendo em conta a teoria política, o programa de
governo, a democracia partidária. Em outras palavras, o partido político exerce o seu
papel de dirigente ou vanguarda do grande número de membros da classe social.
Obstáculos à função mandatária
Definimos acima a questão da representação de classe do partido político,
referenciando-a na relação entre o discurso do partido e a dinâmica da luta de classes.
Cabe agora nos reportarmos aos obstáculos - o personalismo, a burocratização, o
vanguardismo - que concorrem para distorcer a função mandatária de classe.
O personalismo de líderes tem existência quando parte dos adeptos ou
simpatizantes do partido passa a um comportamento de massas (sentimentos sensitivos,
irracionais - agindo por instinto, imitação ou contágio). O fenômeno da massificação
junto ao partido da classe trabalhadora se dá por fatores tanto materiais (acesso à
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informação) quanto culturais (escolaridade), em última instância remetidos à
desigualdade de condições na divisão social do trabalho. Assim, a exposição intensa aos
meios simplificadores de informação e comunicação, bem como a imposição de baixo
patamar de escolarização científica produzem predisposições discursivas que tendem a
naturalizar e superestimar as qualidades pessoais dos dirigentes políticos.
Porém, talvez mais importante que o personalismo dos líderes partidários é o
desvio de burocratização. O partido sofre em sua forma de organização os efeitos do
burocratismo do Estado. A especialização de funções (diretivas, parlamentares,
técnicas) e a profissionalização (aquisição do saber-fazer) para os seus exercícios
induzem a uma hierarquização entre, de um lado, quadros dirigentes e, de outro,
militantes de base, cujo relacionamento tende a reproduzir-se em termos de mérito. Isso
transfere para o partido os efeitos da representação no aparelho do Estado, quais sejam,
a apatia política dos representados e a independência dos mandatários.
Por fim, outro perigo para o partido de classe é o vanguardismo. Uma dimensão
do fenômeno se produz quando correntes partidárias passam a atuar estritamente
orientadas pelos objetivos estratégicos (revolucionários) de classe, num contexto de
ausência das condições da crise estrutural da formação social. Tais correntes se isolam
das lutas da classe por reformas e podem se transformar, na expressão de CERRONI
(1982), em partidos-seitas, voltados para o discurso doutrinário de auto-identificação.
O partido de classe ou socialista caracteriza-se por elaborar um programa com
“dupla armadura”, distinguindo o projeto “para o imediato” (proposições a discutir e a
adaptar na negociação com os outros) e o “para o futuro” (modelo antevisto e
intencional de sociedade).4 Uma razão disso advém das próprias condições de
constituição e emergência da classe social. Como indicou Nicos Poulantzas, as classes
sociais são e não são efeitos das estruturas da totalidade social, formulação que leva em
conta dois gêneros de agrupamento: a classe em luta por reformas (internas aos limites
impostos pela vigência das estruturas valorativas) e a classe antagônica (tendente a
transformar o modelo de sociedade).5 A classe social, em contextos de estabilidade
social, possui assim dois aspectos: um descritivo (a classe competitiva) e outro
prospectivo (a classe revolucionária).6 A greve por salário, por exemplo, torna-se
4 Prestipino, Giuseppe. Le socialisme en Occident. Actuel Marx, n. 3, 1988. 5 Poulantzas, Nicos. Pouvoir politique et classes sociales. Paris: Maspero, 1972. 6 Garo, Isabelle. La bourgeoisie de Marx: les héros du marché. In : Vários autores. Bourgeoisie: état d’une classe dominante. Paris : Syllepse, 2001.
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manifestação da prática competitiva e apenas potencialmente da revolucionária. Por isso
se pode dizer que a classe proletária assume um duplo estatuto, ao mesmo tempo
reformista e revolucionário. Como expressa Étienne Balibar, “em realidade, existem
sempre dois coletivos de trabalhadores, imbricado um no outro e formados dos mesmos
indivíduos (ou quase), entretanto incompatíveis.7
2. Sobre a esquerda socialista no Brasil8
O ciclo do PCB
A historiografia sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB) tem no trabalho de
Ronald Chilcote, Partido Comunista Brasileiro, um dos seus pontos elevados, pelo
efeito provocado de sua inserção na tradição de estudos sobre a vida partidária no
Brasil. Trata-se, para esse autor, de produzir um estudo sociográfico bem informado
sobre as principais controvérsias teóricas relativas ao objeto pesquisado.9 A nossa
exposição sobre a questão da política do PCB vem em parte apoiada neste trabalho de
R. Chilcote.
A importância do PCB como força política veio se dar na primeira metade da
década de 1930 por meio da sua influência no programa reivindicativo da Aliança
Nacional Libertadora (ANL). O projeto político delineado era de viabilizar o
desenvolvimento capitalista no Brasil – por meio da industrialização em bases privadas
e nacionais e de uma ampla reforma agrária contra o latifúndio semi-feudal – para
preparar a passagem ao “socialismo”. Em termos táticos, assim, o PCB lutava por uma
“revolução democrático-burguesa”; uma revolução não no sentido político, pois já havia
ocorrido uma transformação burguesa do tipo de estrutura jurídico-administrativa do
Estado brasileiro entre 1888-1891, com a abolição do direito escravista e a instauração
das regras administrativas com base no critério de mérito, e sim de caráter econômico: a
7 Balibar, Étienne. La philosophie de Marx. Paris : Découverte, 2001, p. 95. 8 Este item retoma em parte os conteúdos de dois artigos por mim escritos, “Classe social e partido de classe: o PCB na redemocratização de 1945”, Cadernos de Pesquisa (UFPI), v. 4, n. 1, 2015, e “A política de aliança de classes (II)”, Informe econômico (em publicação); e de um terceiro, escrito em parceria com Ferdinand Cavalcante Pereira, “Perspectivas da crise política no Estado democrático do Brasil”, Le Monde Diplomatique – Brasil, fevereiro de 2017, acesso em http://diplomatique.org.br/perspectivas-da-crise-politica-no-estado-democratico-do-brasil/. 9 Cf. Chilcote, R. Partido Comunista Brasileiro. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
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difusão do trabalho assalariado no conjunto da formação social e a transformação das
relações semi-servis no campo.
Em consonância com esse projeto para o imediato, o posicionamento do partido
em boa parte das questões de política econômica divergia dos pontos de vista da
burocracia estatal. Enquanto os dirigentes estatais tendiam, por exemplo, a enfocar os
problemas da inflação e do déficit externo a partir da relação com o desempenho da
balança comercial do país, os Comunistas enfatizavam a falta de controles pelo Estado
especialmente sobre as remessas de lucro e o bloqueio do mercado interno pela ausência
de uma reforma agrária e pela cooptação e a repressão à luta sindical. A prática do PCB,
no pós-1930, estava polarizada pelas temáticas da política salarial, da questão agrária e
do imperialismo – cujas diretrizes comporão o programa da ALN de oposição ao
governo.
A tentativa do PCB em depor o governo pelas armas em 1935 deveu-se em boa
medida à presença do grupo de ex-tenentes, sob a liderança de Prestes, que aderira ao
Partido. A visão militarista de Prestes, já como principal liderança do partido,
subavaliou o apoio que os Comunistas tinham junto à maioria social para adotar essa
forma de luta.
Após a derrota desta tentativa insurrecional, o PCB reorientou seu método de
luta para linha constitucionalista, engajando-se no processo de redemocratização de
1945. O partido passara a defender, desde 1943, no contexto de participação do governo
brasileiro na guerra contra o eixo Nazi-Fascista, a política de “União Nacional”. O
apoio ao governo Vargas em sua intervenção no conflito internacional tinha como
contrapartida as reivindicações da volta da democracia e a anistia aos presos políticos,
incluindo o líder do partido, Luiz Carlos Prestes.
Com a volta da legalidade dos partidos políticos em 1945, após a ditadura do
Estado Novo (1937-45), o PCB lançou candidato próprio à eleição de Presidente da
República, obtendo cerca de 10% dos votos, e conquistou uma expressiva bancada na
Assembleia Constituinte de 1946. Na Constituinte, a bancada Comunista debateu os
temas que polarizavam a classe trabalhadora, mas estava em posição minoritária; a
avaliação de um analista é de que, na Carta do Pós-Guerra, os parlamentares
8
majoritários que a redigiram “foram fortemente influenciados pelas ideias do
liberalismo econômico, das quais o Estado Novo se havia desviado”.10
A força eleitoral dos Comunistas deveu-se, em parte, a sua inserção no
movimento de trabalhadores. Vários são os índices dessa inserção; primeiro, nas
eleições de 1945, a maioria dos trabalhadores manuais da cidade de São Paulo votou no
PCB; segundo, dos 14 deputados Comunistas eleitos à Assembleia Nacional
Constituinte, 09 seriam identificados de origem na classe trabalhadora; terceiro, o PCB
tinha influência preponderante na Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Indústria e na Confederação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Crédito;
quarto, os militantes Comunistas controlavam o maior sindicato no Brasil - o Sindicato
dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de São
Paulo; quinto, a imprensa e os meios de propaganda do PCB, diferentemente de seus
opositores não-comunistas nas grandes cidades, dedicavam-se à causa do movimento de
trabalhadores.
Os trabalhadores jogaram um papel ativo na conjuntura da redemocratização de
1945, em especial com a greve nacional dos bancários como ponto alto do movimento
trabalhista. Os bancários tinham conseguido desencadear uma greve para pressionar os
patrões e o Estado, e obtiveram que o PCB assumisse uma posição mais combativa. O
partido surgia “para milhares de trabalhadores, não como o partido que mandava
‘apertar os cintos’, mas como o partido que desafiava a exploração econômica, a
miséria”.11
Com isso, “um novo padrão de relacionamento entre o Estado e o
movimento sindical foi sendo paulatinamente estabelecido, à medida que os sindicatos,
a maioria deles sob a influência do PCB, foram se colocando na direção das lutas
econômicas dos trabalhadores”.12
A força eleitoral dos Comunistas explica-se também pela sua política de “União
Nacional”. A coligação PCB-Vargas significava uma aliança da classe trabalhadora com
o projeto de industrialização da burocracia do Estado, projeto que não era inteiramente
coincidente com o da burguesia industrial. Enquanto os agentes governamentais
sustentavam um modelo industrial centrado na participação da empresa estatal
10 Giovanetti Neto, Evaristo. O PCB na Assembleia Constituinte de 1946. São Paulo: Novos Rumos, 1986, p. 80. 11 Frank Alem, Silvio. Os trabalhadores e a “Redemocratização”. Dissertação de Mestrado, IFCH-Unicamp, 1981, p. 195. 12 Idem, ibidem, p. 231.
9
(siderurgia, petróleo, energia elétrica), no controle da presença do capital estrangeiro
(remessa de lucros, exploração dos recursos naturais, dívida externa) e na
regulamentação das relações de trabalho (salário-mínimo, assistência à saúde, férias,
aposentadoria); os representantes industriais se posicionavam contrários ao monopólio
estatal na indústria de bens de produção, à regulamentação do investimento estrangeiro
no setor produtivo e à implementação das leis trabalhistas. Assim, no contexto das
décadas de 1930/1940, o Estado brasileiro representava não a hegemonia da burguesia
industrial, mas sim os interesses institucionais globais (centralização política,
intervencionismo econômico) da burguesia; ao mesmo tempo que esse Estado exigia
sacrifícios de interesses específicos das frações (industrial, mercantil) dessa classe. O
partido, quando se coligou a Vargas, tratava como aliado o conjunto da burguesia
brasileira. Um sinal da autonomia do partido nessa aliança era que ele não adotava, em
questões importantes (inflação, déficit externo, salário, questão agrária, imperialismo), a
visão econômica do nacional-desenvolvimentismo, dominante no aparelho de Estado.
A posição do PCB frente aos primeiros anos do governo Dutra (1946-47) não
podia deixar de ser crítica, apesar da linha política do partido de União Nacional.
Embora tivesse o cuidado de evitar um ataque sistemático ao governo do general Dutra,
eleito com o apoio de Vargas, estava presente no discurso Comunista a preocupação
com os enclaves liberais e conservadores no governo. A III Conferência do PCB, em
julho de 1946, expressava sua linha constitucional-aliancista: “acatar as decisões das
autoridades e lutar pela solução pacífica dos problemas nacionais, não significa ficar de
braços cruzados nem se conformar oportunisticamente, sem protesto, com as
arbitrariedades e violências”.13
Em 1947, a pretexto de o PCB estar atrelado aos
interesses da URSS, o governo Dutra aprovou a cassação dos direitos políticos do
partido e recrudesceu a repressão ao movimento sindical sob sua influência, a exemplo
das categorias dos portuários e bancários - como formas de concretizar a visão liberal
governista em matéria de política salarial.
Enfim, a política do PCB durante o processo da redemocratização de 1945-46
significou que uma parte da classe trabalhadora não se encontrava subordinada ao bloco
no poder, apesar de buscar uma aliança com os seus representantes, em favor da
ampliação de reformas políticas e econômicas. Movendo-se no campo político sem opor
a independência e a aliança, o PCB teve uma prática marcada pelos “sinais da
13 Carone, Edgard. O PCB (1943-1964). São Paulo: Difel, 1982, p.67.
10
dissidência” em relação aos governos de Vargas e de Dutra, posicionamento distinto de
uma política “colaboracionista” ou política de apoio.
O ciclo do PT
O trabalho de André Singer, Os sentidos do lulismo, procura decifrar os
significados das práticas do Partido dos Trabalhadores (PT) e do governo Lula (2003-
2010) a partir das relações de classes. A sua análise da relação do governo Lula e a
classe dominante privilegia os conflitos entre, de um lado, a ‘coalizão rentista’ (capital
‘financeiro’ nacional e internacional) e, de outro, a ‘coalizão produtivista’ (capital
industrial e classe trabalhadora). Por sua vez, a análise da relação do governo Lula e a
classe dominada destaca o papel do “subproletariado” no realinhamento eleitoral que
possibilitou a ascensão da coalisão de esquerda ou centro-esquerda liderada pelo PT.14
A nossa indagação sobre a política do PT referenciar-se-á, em parte, nessa análise de A.
Singer.
Durante a transição ao capitalismo industrial no Brasil (1930-1964), o campo da
esquerda socialista havia sido liderado pelo PCB, que surgira filiado à IIIª Internacional
Comunista, sob a liderança do PC da URSS. No modelo soviético, o Estado era
encarregado de controlar a propriedade dos meios de produção e de planificar a
economia. Havia a predominância dos planos centralizados, que se referiam à economia
e a cultura. A divisão do trabalho técnico e social foi intensificada. E o partido único
tornou-se o órgão supremo do Estado. Assim, a Internacional Comunista estava
comprometida com uma concepção estratégica que, intervertendo o programa socialista,
passou a defender os interesses, por assim dizer, de uma nova classe dominante, a
burguesia de Estado.
No entanto, o PCB manteve uma coerência de objetivos táticos, sustentando, nas
condições históricas da sociedade brasileira, o programa de caráter nacional-
democrático, não ainda “socialista”, embora tenha mudado de método quanto à
perseguição destes fins imediatos, adotando em função da conjuntura política ora a
prática insurrecional, ora a legalista. O programa político era o de viabilizar o
desenvolvimento capitalista no país por meio da industrialização em bases privadas e
nacionais e de realizar uma ampla reforma agrária contra o latifúndio tradicional.
14 Singer, A. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
11
Mas, no processo da industrialização, a burguesia industrial não se mostrou
favorável à aliança com a classe assalariada. Dada sua condição ambígua em dispor de
uma base de acumulação própria e ao mesmo tempo depender monetariamente do
capital agromercantil, a fração industrial preferiu voltar as costas à tese do capitalismo
nacional-democrático. Como não tinha força para subordinar no interior do bloco no
poder os interesses da economia agromercantil, a liderança industrial aderiu, não sem
momentos de hesitação, como na Guerra de 1932 e na deposição do Presidente Getúlio
Vargas em 1954, ao compromisso de equilíbrio político que sustentava os governos
nacional-desenvolvimentistas. Porém, com o avanço do processo de industrialização, a
burguesia industrial passou a organizar-se para a conquista da hegemonia política,
viabilizada com o golpe civil-militar de 1964.
No processo de abertura democrática do final dos anos 1970, vários fatores
convergiram para formação do PT como expressão da interdependência entre
organização partidária e classe social; primeiro, a emergência do sindicalismo menos
subordinado à institucionalidade do Estado; segundo, a mobilização dos movimentos
sociais urbanos; terceiro, a renovação do catolicismo tradicional com a Teologia da
Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base; quarto, a reorganização da militância
dos agrupamentos de esquerda socialista. Mas talvez possamos dizer que o elemento
determinante, em última instância, do surgimento desta nova força partidária de
esquerda foram as consequências da hegemonia do empresariado industrial, que elevou
as taxas de crescimento econômico, mas sem possibilitar a reprodução ampliada da
força de trabalho, ao beneficiar-se do regime repressivo do Estado.
O PT nasceu no Brasil como manifestação da nova esquerda socialista.
Reivindicava uma visão crítica da experiência chamada socialista, contrapondo a essa
experiência o controle dos meios de produção pelos trabalhadores, o planejamento
descentralizado, o pluralismo partidário; e propunha a conquista da direção do Estado
burguês com base no programa “democrático-popular”, impulsionado pelos
movimentos sindicais e sociais. No intervalo de uma década veio tornar-se a principal
força partidária no campo da esquerda brasileira, em razão, em parte, da crise do PCB,
provocada pelo golpe civil-militar de 1964, que fez desacreditar o programa “nacional-
democrático”; e, outra parte, pela ascensão das lutas reivindicativas e de oposição ao
regime militar.
As aspirações da maioria eleitoral que deu vitória à candidatura de Lula na
Presidência da República em 2002 foram apresentadas nos documentos (1)
12
“Concepções e diretrizes do programa de governo do PT para o Brasil – Lula 2002”; (2)
“Carta ao Povo Brasileiro”; (3) “Programa de Governo 2002 – Coligação Lula
Presidente – Brasil para todos”. O teor das diretrizes de política econômica e social
apontava para medidas tais como: honrar os contratos e preservar o superávit primário;
proteção à produção nacional, reduzindo as altas taxas de juros e empreendendo uma
reforma tributária; regulação da entrada de capital estrangeiro; incentivo às exportações;
proteção ao emprego; ampliação das políticas sociais.15
A política econômica no primeiro ano do governo Lula assumiu um perfil de
transição, combinando a manutenção de medidas de estabilidade monetária com
iniciativas na área social. Sob a pressão do chamado “risco Lula” (a expectativa de
agentes do mercado monetário que continuasse o ataque especulativo da fuga de capitais
iniciado durante a campanha eleitoral, mesmo após ter exposto a suas intenções de
governo na Carta aos Brasileiros), o Presidente Lula nomeou uma equipe econômica
que tomou medidas conservadoras, como o ajuste fiscal e a reforma da previdência, sob
a alegação de evitar os riscos inflacionários. Paralelamente, os investimentos em
programas sociais começaram a trazer para a base de apoio ao governo os setores mais
pobres. Em seguida, a mudança da equipe econômica, abandonando a orientação
conservadora da política econômica, substituindo-a por um modelo de desenvolvimento
que articulava crescimento econômico com políticas de distribuição de renda e
estabilidade monetária, mostrou a “intuição” e o “pragmatismo” do Presidente Lula.16
(Cf. SADER, 2013.)
Os dados apontam um desempenho positivo nos indicadores econômicos e
sociais do país. A taxa de inflação decresceu, registrando os índices de 9,3%, em 2003,
e 3,1%, em 2006. Ao mesmo tempo, o governo conseguiu reduzir os juros em quase
metade; a taxa Selic, que atingiu em maio de 2003 o índice de 26,3%, chegou ao final
de 2006 com o índice de 13,2%. Por sua vez, deu-se o aumento gradual do salário
mínimo, que passou de R$ 302 para R$ 402 no período. Embora os gastos com saúde e
educação não tenham progredido na mesma proporção, houve uma ampliação
significativa na área de proteção social, que passou do patamar de 13,7% para 20,5%,
entre 2003-2006.
15 Martuscelli, D. Crises políticas e capitalismo neoliberal no Brasil. Curitiba: CRV, 2015. 16 Sader, E. A construção da hegemonia pós-neoliberal. In SADER, E. (org.). Dez anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.
13
Esses resultados foram, em boa parte, produtos da frente de forças sociais e
políticas, que conseguiu reverter o padrão de desenvolvimento socioeconômico dos
governos anteriores sob a orientação do pensamento neoliberal. Por um lado, a
coligação PT (Lula) e PL (José de Alencar) induzia a um acordo tácito das lideranças de
trabalhadores – CUT, MST – e setores empresarias nacionais – FIESP, FEBRABAN –
em torno de uma nova política de desenvolvimento econômico e social. Por outro lado,
iniciativas conjuntas das lideranças empresariais e dos trabalhadores repercutiam no
interior do aparelho governamental, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico
e Social, cujo funcionamento envolvia a negociação de patrões e empregados.
A vitória dessa coalisão política pressupunha dois condicionantes. Primeiro, o
condomínio de interesses no sistema hegemônico entre a fração dos bancos e a fração
industrial; tal equilíbrio de posição deveria se chocar com as diretrizes da política
neoliberal – desregulamentação monetária, taxas de juros elevadas –, que privilegiavam
os interesses dos bancos dentro do grande capital. Segundo, os setores empresariais
hegemônicos deveriam conceder de fato ganhos para as classes trabalhadoras; isso
implicava um novo padrão de política trabalhista e social, que possibilitasse a
reprodução ampliada da classe assalariada. Como declarou um dirigente sindical, “era
preciso romper flancos no campo adversário e construir alianças. Em reunião do CDES
defendi o emprego e o salário para fortalecer o mercado interno como forma de
enfrentamento da crise”.17
Em síntese, o PT e a CUT praticaram uma política de aliança de classe, cujos
resultados no global foram de ganhos reais para os interesses da maioria social, sem
deixar de privilegiar os interesses hegemônicos do capital; todos ganharam, embora não
na mesma proporção. Afinal, o governo de esquerda ou centro-esquerda se instalou sem
revolucionar as estruturas do Estado burguês, que, pelos seus valores e pela sua
institucionalidade limitada a tais valores, impõe invariavelmente a convergência da
política estatal aos interesses da classe dominante ou da sua fração hegemônica. Mais
concretamente, as alianças Lula-Alencar e CUT-FIESP produziram efeitos que
ampliaram de fato o bem-estar da maioria social, num contexto em que frações da
burguesia (multinacionais, grande comércio, bancos estrangeiros) patrocinavam a
17 Henrique, A. Um olhar dos trabalhadores: um balanço positivo, uma disputa cotidiana e muitos desafios pela frente. In SADER, E. (org.). Dez anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.
14
adoção de políticas regressivas dos direitos sociais; ao mesmo tempo, essas alianças
ensejaram a estabilidade política para consecução de um programa
neodesenvolvimentista.
A crise política de 2016
A política governamental de alavancar o investimento produtivo por meio do
financiamento estatal provocou a reação dos bancos privados, que se opuseram em
especial às medidas de redução da taxa de juros; e não obteve o apoio ativo da fração
industrial, pelo receio de o governo vir a implementar medidas “populistas”
(bonapartistas). O governo viu-se então em dificuldades, pois, por um lado, as altas
taxas consomem boa parte do orçamento estatal com o pagamento dos juros da dívida
pública e, por outro, os novos investimentos produtivos tornam-se menos atrativos,
induzindo as empresas industriais a aplicarem os recursos no sistema monetário, cuja
rentabilidade vem elevada.
Como então expandir a empregabilidade produtiva, aumentar a capacidade
extrativa do Estado e ampliar os serviços governamentais à reprodução da força de
trabalho? Ficou difícil diante da resistência política do capital-dinheiro. Assim, o
sistema monetário gerará mais dinheiro de modo fictício, fazendo a economia da
materialização do circuito produtivo. Torna-se compreensível que o excesso em
dinheiro-moeda provocará sua subvalorização.
O enfoque dos representantes políticos do capitalismo financeiro com dominante
monetária será o de resolver o problema da instabilidade do dinheiro-moeda por meio
de uma política de redução de custos das empresas, como forma de elevar a
produtividade dos capitais, buscando readequar a defasagem de esfera monetária e base
material da economia. A receita para o grande capital serão as medidas de combinar a
inovação técnica com a desregulamentação das relações de trabalho; privatizar as
empresas estatais lucrativas; desregulamentar a circulação de mercadorias e de dinheiro.
Cabe então apontar que em boa medida as pressões do capital financeiro com
dominante monetária e seus principais representantes partidários (PSDB e parte do
PMDB) induziram o Governo Dilma, no início do segundo mandato em 2015, a adotar a
política do ajuste fiscal, numa tentativa de recuo provisório em sua linha política mais
geral do intervencionismo estatal. A concretização dessa política de “um passo atrás e
dois passos à frente”, ficou a cargo do Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, um
representante direto dos bancos privados.
15
Disso decorreram tensões no interior da coalizão governante sobre os custos
regressivos desse desvio na política do crescimento econômico. Setores empresariais e
sindicais, bem como lideranças partidárias passaram a manifestar os descontentamentos
com os efeitos das medidas contencionistas dos gastos governamentais e os riscos de
uma recessão econômica. A associação patronal dos industriais, FIESP, passou à
posição de ruptura com a coalisão governante. A representação sindical dos
trabalhadores, CUT, adotou a postura de aliada crítica do governo. A mudança do
Ministro da Fazenda, de Joaquim Levy (orientação liberal) para Nelson Barbosa
(pensamento desenvolvimentista), não foi suficiente para produzir um conjunto de
medidas reaglutinadoras da frente social e política neodesenvolvimentista.
Por sua vez, a coalizão de oposição tomou a iniciativa de combinar a tática do
desgaste político das forças governantes por meio do tema da “corrupção” (clientelismo
político) com a proposta de impedimento da Presidente do Executivo Dilma Rousseff a
pretexto de desvios administrativos. Ter encontrado dentro do PMDB um grupo que,
por motivações partidárias (carreiras políticas) ou pessoais (envolvimentos ilícitos),
estava disposto a romper com a coligação governante foi o catalizador do golpe
palaciano.
Em 2016, a cena política veio marcado pelas tensões entre os segmentos do
grande capital, competidores pela influência política, e também pela disputa dos
partidos principais no seio da coalisão governante, visando a ocupação do aparelho de
Estado. Este segundo aspecto da competição política vem expresso por meio da
rivalidade entre Presidência da República e Presidência da Câmara dos Deputados,
quando um ramo estatal passou a acusar o outro de práticas desviantes face às regras
administrativas e eleitorais.
O ápice da crise será de a Presidente Dilma Roussef (PT), ex-guerrilheira, presa
e torturada no período do regime militar, sofrer impeachment em 31 de Agosto de 2016,
sob a acusação de desvio administrativo, num processo movido pelo Presidente da
Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), político profissional carreirista, que semanas depois
terá o seu mandato suspenso por investigação de crime de desvio pessoal de recursos,
em tese, partidários. Mas o ponto máximo da encenação macunaímica desta crise
política foi a Presidente da República ter sido condenada, sob a audiência de rede
nacional de televisão, por desvio de responsabilidade administrativa e, em seguida, ver
assegurados os seus direitos políticos.
16
3. Uma análise crítica do programa do 6º Congresso Nacional do PT
I. Diretriz estratégica
“Esse mundo não pode ser compreendido e nem superado, se não
empreendermos a crítica radical do capitalismo e a defesa do socialismo democrático,
recolocando essa perspectiva como motor de nossas ações”. 18
Encontra-se a assertiva, com a qual concordaremos, de que o objetivo de
socialismo democrático é o produto da análise crítica do capitalismo. Por um lado, essa
crítica se apoia no discurso filosófico, a filosofia materialista da história ou
materialismo histórico. Se a classe dominante, a burguesia, precisa da crença na
filosofia idealista (o direito da forma sujeito, etc.) para reproduzir a sua dominação (o
contrato de trabalho assalariado), resta à classe dominada, o proletariado, adotar a
filosofia materialista (a liberdade como ilusão, etc.), a fim de confrontar os valores e os
interesses de seu oponente antagônico. Não basta à classe do trabalho assalariado
avançar em direção aos valores do idealismo na forma humanista (racional),
abandonando as formas místicas (revelação); pois o interesse em abolir a sua sujeição a
uma minoria social leva essa classe a uma exigência radical de ruptura valorativa. Uma
consequência dessa exigência na formação da classe proletária foi a publicação do
Manifesto Comunista na primeira metade do século XIX.
Enquanto fundamentado nos axiomas do materialismo, histórico e dialético, o
socialismo democrático deixa de ser, portanto, um ideal para se converter numa
aspiração realista. Mas, de outro lado, o conhecimento sobre a sociedade capitalista se
constrói também a partir do discurso científico, ou seja, de demonstrações não
filosóficas ou não axiomáticas. Até o momento, pouco se reconheceu a diferença entre
filosofia materialista e ciência crítica ou não axiomática; como a fração mais poderosa
do capital tende a se alinhar com o discurso na forma mística, pois produz efeitos mais
estáveis nas instituições políticas, as frações subordinadas inclinam-se ao discurso na
forma racional. A tarefa progressista tem sido, assim, a de secularizar (separar do
misticismo) o campo da política. Entretanto, passados 150 anos da publicação de O
capital, em que Karl Marx estabelece a ciência do processo histórico, e passado um
século de política secularizada de esquerda (progressista), simbolizada pela Revolução
Russa de 1917, soou talvez a hora de a esquerda socialista desenvolver o seu programa
18 Partido dos Trabalhadores. Caderno de Resoluções do 6º Congresso Nacional. Brasília, junho de 2017, p. 9. Disponível em http://www.pt.org.br/wp-content/uploads/2017/07/6-congresso-pt.pdf.
17
com base não apenas na filosofia materialista (distinta do humanismo liberal), como
também na ciência da história (diversa da filosofia da história). Este último aspecto foi
um dos mais agudos temas apontados por Louis Althusser em Ler O capital: o a-
humanismo teórico. Esta foi também uma sugestão das mais incisivas de Ruy Fausto em
Caminhos da esquerda: “é assim, respeitando uma antropologia nem humanista nem
anti-humanista, que se deve construir uma política para esquerda”.19
II. Situação nacional
1) “O governo Michel Temer está refazendo a Constituição e, sem legitimidade,
efetiva um programa antipopular e antinacional derrotado nas urnas desde 2003, visando
ampliar a lucratividade do capital”.
A classe do capital se divide internamente segundo várias linhas de conflito em
torno da disputa pela participação na massa de lucros; temos a indústria em competição
com os bancos; o banco nacional, com o banco estrangeiro; o capital estatal, com o
capital privado etc. O fator de aglutinação de um sistema de frações ou outro é o
impacto da política econômica do Estado; o resultado da intervenção do Estado
concretiza os conflitos potenciais das frações enraizadas na esfera econômica, pois as
frações se mobilizam para defender ou rejeitar certas medidas estatais. Em outras
palavras, certos grupos diferenciados na esfera econômica não se concretizam de
imediato no plano político, eles têm antes um caráter potencial; outros grupos,
diferenciados por outros critérios, é que se manifestam. A política do Estado vem ser,
assim, o fator de emergência de um sistema de fracionamento ou outro, ou ainda de
vários sistemas combinados.20
Está cada vez mais claro que o programa antipopular e antinacional do governo
Michel Temer (PMDB) vem de encontro aos interesses do anel de frações composto
pelo capital bancário, capital estrangeiro e capital privado. O governo aprovou a PEC
55, que promove o ajuste fiscal e congela por 20 anos os investimentos estatais, e
retomou a linha de privatizar áreas estratégicas da economia nacional, bem como de
conceder ao capital estrangeiro a exploração de recursos naturais no país.
19 Ruy Fausto. Caminhos da esquerda: elementos para uma reconstrução. São Paulo: Companhia da Letras, 2017, p. 105. 20 Cf. Décio Saes, República do capital: capitalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001.
18
2) “De inspiração antineoliberal, nossos governos implementaram não apenas
políticas públicas de inclusão social e transferência de renda, mas principalmente de
ampliação de direitos”.
A hegemonia do capital mercantil não possibilitava sequer a reprodução normal
da força de trabalho, impondo à classe trabalhadora uma jornada de trabalho extenuante
e condições de trabalho degradantes. Com a ascensão do capital industrial, os
trabalhadores conquistaram os direitos do trabalho e o acesso às condições mínimas,
materiais e culturais, da civilização moderna. Finalmente, a formação do capital
financeiro (a coexistência de indústria e banco no seio de um conglomerado econômico)
levou o capital produtivo (indústria) a adotar uma política de alianças com a classe
trabalhadora organizada, afim de defender a sua lucratividade contra o poder crescente
do capital rentista (banco). Deste pacto social (gravitando basicamente em torno da
redistribuição dos ganhos de produtividade na empresa industrial), surgiu nos EUA e na
Europa após Segunda Guerra Mundial o chamado Welfare State, possibilitando pela
primeira vez na história do capitalismo as condições da reprodução ampliada da força
de trabalho. Da mesma forma, o acordo de capital produtivo e sindicalismo
independente trouxe ao Brasil dos anos 2000 essa dinâmica de ampliação dos direitos
sociais, implementada e expressa nos governos sob a liderança do PT.
O primeiro governo Dilma Rousseff (2011-15) veio concretizar a hegemonia
política do capital financeiro com dominante industrial, em aliança com a classe
trabalhadora assalariada. A política econômica do Estado beneficiava prevalentemente o
grande capital industrial e gerava um acréscimo na taxa de mais-valor que podia ser
redistribuído para ampliação da reprodução da força de trabalho.
O intervencionismo adotado pela equipe econômica do governo incidiu no
investimento produtivo por meio do Plano de Aceleração do Crescimento, que focava
em obras de infraestrutura (portos, aeroportos, estradas, fontes de energia), e através das
desonerações fiscais e previdenciárias, crédito subsidiado dos bancos estatais, redução
de taxa de juros e barateamento de preços de insumos às empresas industriais. Tais
medidas ensejaram o aumento da rentabilidade do capital industrial e estimularam os
ganhos de produtividade pela adoção de novas tecnologias.
O segmento de bancos do capital financeiro não se sentiu contemplado com a
política industrial do governo, porque continha as linhas da redução da taxa de juros ao
crédito de investimento e da isenção fiscal das empresas. Os representantes dos
banqueiros reagiram a essas medidas governamentais, sob os argumentos de que se
19
chocavam com a meta de controle da inflação da moeda e levariam ao
sobreaquecimento da demanda efetiva. Ao final dessas manifestações, embora
continuassem a se beneficiar com a bancarização de contingentes da classe assalariada
que ascendiam materialmente no período, os bancos estavam na oposição ao governo.
As aspirações conscientes da coalisão governamental que deslocou a hegemonia
política para o setor industrial foram expressas num conjunto de diretrizes, chamado de
Nova Matriz Econômica. A NME indicava (a) afrouxar o controle sobre a política
monetária; (b) reforçar o incentivo ao investimento privado; (c) defender o crescimento
do mercado interno. O resultado da NME foi abrir novas frentes de expansão ao
investimento produtivo, especialmente na construção da infraestrutura das atividades
econômicas.
No entanto, apesar de o governo sustentar a hegemonia do setor industrial, os
representantes diretos dessa fração de classe transitaram para a postura de não fazer a
defesa do governo diante das críticas do setor bancário. É que os representantes
industriais intuíam, mas de maneira distorcida, a possibilidade de o governo adotar uma
política bonapartista, ou seja, passar a exigir sacrifícios de todas as frações do capital
para garantir o crescimento econômico. Assim, identificavam no “lulismo” (o
crescimento econômico com a ampliação de direitos sociais) da Presidente Dilma o
fantasma de Getúlio Vargas. O que o governo pedia, na substância, era que os
industriais abrissem mão de interesses imediatos, a desregulamentação das relações de
trabalho, em prol mesmo de seus interesses de longo prazo, a preponderância
econômica.
3) “Os documentos congressuais sintetizam o rumo que nosso partido propõe às
classes trabalhadoras e às forças progressistas de nosso país. São uma ferramenta para
avançarmos na unidade do campo popular, em sua capacidade de luta, tendo como
objetivo central a reconstrução de uma alternativa democrática contra as oligarquias
nativas e seus sócios internacionais”.
Carece no Caderno de Resoluções do 6º Congresso Nacional a indicação dos
contornos dessa recomposição de forças progressistas no país. Ora, no Brasil atual
ocorre uma disputa entre o grande capital e o médio capital. O grande capital não está
disposto a assumir maior participação nas tarifas de impostos, e com isso aliviar os
custos para o médio capital com os gastos de política social; mas o médio capital dispõe
de forte recurso de barganha, que é a capacidade de absorver o contingente de força de
trabalho no curto prazo e, assim, contribuir para política de combate ao desemprego. É
20
oportuno lembrar que a capacidade de endividamento deste setor do capital estaria no
limite, e, se proposta, por exemplo, uma política de corte dos incentivos fiscais e
creditícios ao grande capital e de transferência desses recursos para o capital não-
oligopolístico, essa fração poderá, dentro do quadro da crise, transformar-se em
importante força política.
Analistas de esquerda, como Ruy Fausto, Renato Janine Ribeiro e outros, vêm
chamando a atenção para proposta de reforma tributária. Por exemplo, no Brasil, não há
a cobrança de imposto sobre lucros e dividendos dos acionistas enquanto pessoas
físicas. Para liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, a esquerda deve
estar unida ao propor “uma política econômica não recessiva, e uma democratização do
sistema tributário no país”. 21
Outro aspecto a ser considerado diz respeito aos segmentos da burocracia do
Estado. Ruy Fausto, tratando sobre o tema da segurança internacional, adverte: “seria
importante estimular as vocações para carreira militar de jovens com convicções
democráticas e progressistas”.22
Talvez R. Fausto pense na força como último recurso
de poder. Mas se considerarmos a interdependência entre a lei e a aplicação da lei, então
temos de levar em conta também a reforma do sistema judiciário. Convém destacar
nesse caso o papel das faculdades de direito e seu sistema de ensino; aqui têm vigência,
em termos de progresso social, as filosofias jurídicas mais atrasadas (a mitologia do
direito natural etc.). Seria importante não apenas pluralizar o ensino doutrinário, como
também estimular a introdução da pesquisa científica na formação dos membros dos
aparelhos judiciários.
4) “Os oligopólios da comunicação estão em sintonia com a violência perpetrada
por setores do Ministério Público, das polícias e do Judiciário, que se erigiu no Brasil
como um poder bonapartista, isto é, que se anuncia acima das classes e dos poderes da
República”.
Não há um poder bonapartista do ramo judiciário no Brasil, pois o Estado
bonapartista é o produto de um equilíbrio de forças entre as frações da classe
21 Cf. Guilherme Boulos. “Por uma nova pedagogia de esquerda: entrevista”. In Fornazieri, A. & Muanis, C. (orgs.). A crise das esquerdas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. 22 Fausto, R. Op. cit., p. 93.
21
dominante.23
Ora, o que vimos com o golpe político foi a tendência a um deslocamento
da hegemonia política das mãos da burguesia industrial às do capital monetário. É
verdade que a burocracia estatal possui interesses específicos e se representa missões
universalistas. Mas tais representações e objetivos são limitados e reconduzidos aos
valores e interesses da fração hegemônica na classe capitalista. Mais especificamente,
ao se lançar numa cruzada de moralização em abstrato das instituições políticas, a
burocracia judiciária do Estado brasileiro tem favorecido, de modo consciente ou
inconsciente, o retorno da hegemonia política neoliberal.
Consideremos o tema da chamada corrupção política. Se no plano geral o
clientelismo serve aos valores da classe dominante - pois afasta a classe trabalhadora de
seus interesses globais, ao orientar-se por demandas individuais, paroquiais, locais etc. -
, em contextos específicos ele pode desempenhar um papel ora conservador, ora
progressista - a depender da correlação de forças no jogo de interesses das frações
dominantes.
Como indicou Nicos Poulantzas, o capital monopolístico se divide em capital
estrangeiro e burguesia interna, existindo uma disputa dessas frações no seu interior.24
Ora, a partir da crise de 1970, o setor interessado em criminalizar o uso do clientelismo
político será o capital estrangeiro, devido a sua ligação com a integralidade do programa
neoliberal, especialmente a política monetarista de contenção de gastos do Estado. Para
os representantes desse capital, as práticas clientelistas são um desperdício no modo das
despesas governamentais, que deveriam se pautar não por demandas setoriais ou
regionais, mas pelo interesse geral da nação (leiamos: interesse do capital estrangeiro).
Em diversas democracias capitalistas, as práticas clientelistas são consideradas
ilegais (uma exceção são os EUA, onde existe a regulamentação dos chamados lobbies).
Uma das razões dessa interdição jurídica seria a busca do grande capital internacional
de restringir o poder das burguesias internas, tendentes a fazer uso do clientelismo como
recurso de sua coesão política. Em outras palavras, a política do capital monopolístico
internacional de conter os gastos do Estado a seu favor procura impor o controle do
clientelismo, lançando mão da sua judicialização.
23 Cf. Francisco Pereira de Farias. Estado burguês e classes dominantes no Brasil (1930-1964). Curitiba: CRV, 2017. 24 Cf. Poulantzas, N. Les classes sociales dans le capitalisme aujourd’hui. Paris : Seuil, 1974.
22
A burguesia interna, conquistando a hegemonia no Estado nacional, pode fazer
um uso progressista do clientelismo, porque, embora essa fração de classe venha ter a
preponderância na política nacional, ela joga um papel em parte subordinado no plano
da política internacional, ou seja, dos interesses do capital imperialista central. A
burguesia interna torna-se ao mesmo tempo uma fração hegemônica (no plano nacional)
e uma fração semissubordinada (no plano internacional). No Brasil dos anos 2000, a
utilização de barganhas pela burguesia interna junto ao Estado para conquistar mercados
no exterior ou manter o controle da produção nacional de petróleo provocaram reações
do capital internacional para tentar desestabilizar o governo de esquerda ou centro-
esquerda.
Do ponto de vista da relação com sua base social específica, não haveria
coerência do partido de esquerda em fazer concessões ao clientelismo político. Pois às
forças de esquerda interessa restringir o clientelismo junto aos assalariados, uma vez
que se torna um obstáculo à generalização dos interesses de classe. Mas, enquanto
participantes de uma aliança de classes que ascende ao governo do Estado burguês, seria
quase inevitável algum tipo de clientelismo de “cúpula”. As pressões
intergovernamentais podem levar o partido a lançar mão de práticas seletivas, em vista
da estabilidade da coalizão governante.
A abordagem do clientelismo político por correntes de esquerda em termos da
ideologia público /privado produz propostas políticas pouco eficazes. Do ponto de vista
prático, se aceita as proposições de judicialização das barganhas partidárias na vida
política. Não se questiona quando a legislação põe no mesmo plano a corrupção privada
e o lobby político. Mas a regra institucionalizada da burocracia moderna é de que o
funcionário não deve confundir os seus meios de vida com os meios administrativos do
Estado. Disso não se infere que um agente estatal, atuando em vista de objetivos
partidários, estará “privatizando” o Estado. Embora na prática a linha divisória entre o
“privado” e o “público” venha oscilar, devido aos surtos de individualismo e
carreirismo na vida político-partidária, em princípio a atuação, por exemplo, de um
político para alocar recursos estatais a um grupo ou comunidade em troca de apoio
político-partidário não se confunde com o desvio de recursos para a sua vida privado-
familiar. Renato Janine Ribeiro observou essa diferença quando se referiu ao caso da
morte de um ex-prefeito do PT: “mas, para Celso Daniel, uma coisa seria a corrupção
23
(sic.!) para o bem de um projeto político; outra, a corrupção para pôr dinheiro no bolso,
algo que ele não admitia”.25
Cabe então a indagação: uma política progressista deveria se posicionar a favor
da proposta de descriminalização do clientelismo político? Podemos fazer uma analogia
com o problema do consumo de drogas. A criminalização das drogas acaba tendo por
efeito favorecer os interesses econômicos do grupo de traficantes, sob a aparência de
preservar os valores morais da sociedade. A satisfação das aspirações de indivíduos e
comunidades mostra-se um caminho mais eficiente para o controle do uso de
entorpecentes. Da mesma forma, a criminalização do clientelismo político termina por
privilegiar os interesses das frações hegemônicas do capitalismo mundial (capital
monopolístico internacional, burguesia americana etc.), sob a aparência de defender os
valores e os interesses gerais das nações. A participação e a organização seriam os
meios mais eficazes de combater o clientelismo junto às classes subordinadas.
Tornar-se-ia, pois, desejável a inclusão na retomada da reforma política desta
questão da regulamentação do lobby político. Isso implicaria uma retomada de temas
polêmicos, como o financiamento de campanha eleitoral. De qualquer modo, diante da
investida do capital internacional e imperialista, sob a coordenação de suas agências de
representação (Banco Mundial, ONU, FMI, OMC, OCDE), substituindo o cavalo de
batalha dos “direitos humanos” pela cruzada civilizatória do combate à “corrupção
política”, cabe aos grupos de esquerda um posicionamento claro: o clientelismo político
não é corrupção.
III- Balanço de uma experiência histórica
“As teses debatidas no 6º Congresso oferecem diferentes interpretações.
Algumas apontam para existência de uma estratégia de conciliação de classes, que
inclusive não teria se preparado para hipótese de ocorrer uma reação golpista. Outras
interpretações reconhecem decisões efetivamente incorretas, mas consideram que elas
teriam se dado nos marcos de uma estratégia correta, que buscou levar em conta a
correlação de forças.”
Sobre este ponto decisivo, o balanço da experiência de governo, o documento se
encaminha por evitar a discussão das divergências e a incorporação de uma análise
histórico-científica da questão.
25 Ribeiro, R. J. Op. cit., p. 23.
24
Em documentos preparatórios ao 6º Congresso Nacional, as correntes que
sustentam ter sido a política concretizada pelo PT orientada pela estratégia da
conciliação de classes argumentam que tal política possibilitou a conquista de reformas
moderadas, mas foi insuficiente para enfrentar a crise do capitalismo neoliberal, com
medidas adequadas de política econômica e com a preparação da classe trabalhadora
para os enfrentamentos políticos diante da classe dominante e os seus setores
hegemônicos. Ligado a essa estratégia, o partido não pôde impedir que o governo sob
sua direção adotasse a partir de 2015 uma política equívoca de combinar o ajuste fiscal
com altas taxas de juros, que terminou por provocar o distanciamento dos setores do
empresariado beneficiados com o desenvolvimentismo capitalista nos governos Lula e o
primeiro mandato de Dilma.
Do ponto de vista teórico, a tese da conciliação de classe pretende abarcar uma
situação intermediária entre a colaboração de classe e a aliança de classe. Ora, numa
conjuntura de reprodução da ordem social, a política da classe dominada tende a
assumir uma de duas possibilidades: a política de apoio (sem contrapartida aos
interesses de classe) ou a política de aliança (conquista de ganhos materiais e culturais
para a classe). A estratégia da conciliação de classe seria uma política bastarda: uma
mistura de colaboração de classe (a política de apoio) e independência de classe (a
política de aliança). Mas isso não poderia ter vida longa; na prática, há ou a política de
apoio, em troca de ilusões prometidas pela classe dominante, ou a política de aliança, na
qual são feitas realmente concessões aos interesses dos dominados, em proveito de uma
hegemonia de setores da classe dominante.
No entanto, seria exagerado se dizer que o PT e a CUT praticaram uma política
de traição à classe trabalhadora, vendendo ilusões no lugar de benefícios concretos.
Basta vermos os indicadores sociais do período das gestões governamentais sob as
lideranças do PT para nos convencer que no global os resultados foram positivos aos
interesses da maioria social, sem deixar de privilegiar os interesses das frações
hegemônicas do capital. Afinal, o governo de esquerda ou centro-esquerda se instalou
sem revolucionar as estruturas do Estado burguês, que, pelos seus valores e pela
institucionalidade limitada a tais valores, impõe invariavelmente a convergência da
política estatal aos interesses da classe dominante ou da sua fração hegemônica. Mais
concretamente, as alianças Lula-Alencar e CUT-FIESP produziram efeitos que
ampliaram, de fato, o bem-estar da maioria social, num contexto em que as burguesias
dos países centrais patrocinavam as políticas de regressão dos direitos sociais; ao
25
mesmo tempo que essas alianças ensejaram uma estabilidade política para a consecução
de uma política econômica desenvolvimentista, que privilegiava os interesses da
burguesia interna (bancos nacionais, indústrias nacionais, agronegócio), em
contraposição aos interesses dos capitais enfeudados aos interesses estrangeiros e
imperialistas.
A política de ajuste fiscal foi sem dúvida um fator da crise de aliança de classes,
porque essa medida atendia antes aos interesses e às pressões da burguesia associada ao
imperialismo dos países centrais (EUA, Alemanha). A gestão de Dilma em 2015 tentou
seguir o exemplo do primeiro ano do governo Lula, com ênfase numa política de
estabilização monetária, para em seguida retomar a política de crescimento econômico,
mas não teve êxito nisso por conta dos efeitos da crise internacional e em especial pela
retração do mercado de bens primários, principal fonte de divisas do país.
De qualquer modo, o desfecho do golpe político, com o fim da coalizão
partidária governante e da aliança de forças sociais relacionada, vai requerer uma nova
linha programática do PT e das forças de esquerda ao momento atual. Diante de um
governo de instabilidade hegemônica, oscilando entre, de um lado, políticas “ortodoxas”
neoliberais e, de outro, políticas “heterodoxas” desenvolvimentistas, o novo programa
exige que não apenas se evite a conquista do Estado pela burguesia associada, como
também se contraponha à unidade do grande capital privado um conjunto de medidas
estatizantes (defesa das empresas estatais), anti-imperialistas (salvaguarda dos recursos
naturais, controle das remessas de lucros, tarifas protecionistas do mercado interno) e
antimonopolistas (redirecionamento do crédito estatal, reforma do sistema tributário).
O caráter desse programa vem ser o das “reformas estruturais” (mudanças dentro
da ordem capitalista, mas que se encaminham para transformação estrutural contra a
ordem capitalista) ou das “reformas revolucionárias” (ampliação do bem-estar material
e cultural da maioria social que se liga às aspirações da igualdade econômica e
civilizacional no socialismo). Nesse sentido, vem reafirmado o sentido da política de
esquerda, tão bem expresso na fórmula de Ruy Fausto: “a política dos que defendem os
interesses dos não detentores de capital, em oposição aos interesses dos que dispõem
dele”.26
26 Fausto, R. Op. cit., p. 110.