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TRADUÇÃO
EDMUNDO BARREIROS
J U L I E T M A C U R
ASCENSÃO E QUEDA DE LANCE ARMSTRONG
CIRCUITO DE MENTIRAS
J U L I E T M A C U R
ASCENSÃO E QUEDA DE LANCE ARMSTRONG
CIRCUITO DE MENTIRAS
Copyright © Juliet Macur, 2014
Todos os direitos reservados, incluindo o direito de reprodução no todo ou em parte, em quaisquer meios.
título original
Cycle of Lies: The Fall of Lance Armstrong
preparação
Maira ParulaThadeu Santos
revisão
Anna Beatriz SeilheShirley Lima
diagramação de miolo
Ilustrarte Design e Produção Editorial
cip-brasil. catalogação na publicação sindicato nacional dos editores de livros, rj
M262c Macur, Juliet Circuito de mentiras : aqueda de Lance Armstrong / Juliet Macur ; tradu-ção Edmundo Barreiros. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Intrínseca, 2014. 416 p. : il. ; 23 cm.
Tradução de: Cycle of lies: the fall of Lance Armstrong ISBN 978-85-8057-586-6
1. Armstrong, Lance, 1971-. 2. Ciclistas - Estados Unidos - Biografia. I. Título.
14-13843 CDD: 927.9662 CDU: 929:796.61
[2014]Todos os direitos desta edição reservados àEditora Intrínseca Ltda.Rua Marquês de São Vicente, 99, 3o andar22451-041 – GáveaRio de Janeiro – RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br
Este é o meu corpo, e posso fazer o que
eu quiser com ele. Posso forçá-lo, estu-
dá-lo, prepará-lo, escutá-lo. Todo mun-
do quer saber o que eu tomo. O que eu
tomo são seis horas de ralação em cima
da minha bicicleta todos os dias. E você,
toma o quê?
— LANCE ARMSTRONG
S U M Á R I O
Prólogo 11
Parte Um Mentiras da família 21
Parte Dois Mentiras do esporte 53
Parte Três Mentiras para a imprensa 121
Parte Quatro Mentiras da irmandade 171
Parte Cinco Mentiras do herói americano 213
Parte Seis A verdade 299
Epílogo 363
Agradecimentos 373
Notas 377
Bibliografia selecionada 405
Índice 407
11
P R Ó L O G O
A propriedade dos sonhos de Lance Armstrong, avaliada em 10 milhões
de dólares, fica escondida por trás de um muro alto de pedra calcária
creme do Texas e um sólido portão de aço. Os visitantes param em uma en-
trada circular sob um grande carvalho cujos galhos se projetam na direção de
uma mansão em estilo colonial espanhol de 725 metros quadrados.1
A árvore por si só já é um símbolo da famosa determinação de Armstrong.
Ela ficava do outro lado do terreno, uns cinquenta metros a oeste da casa.
Armstrong a queria perto da escada da entrada. A transposição custou 200 mil
dólares. Seus amigos próximos brincam que ele, que é agnóstico, realizou tal
projeto para provar que não precisava de Deus para mover céus e terra.
Por quase uma década, eu e Lance Armstrong tivemos um relacionamen-
to litigioso. Tinham se passado sete anos desde que seu agente, Bill Stapleton,
ameaçou me processar pela primeira vez. Na época, eu era uma dos muitos
repórteres que Armstrong tentou manipular, seduzir ou pressionar. Mover
processos contra jornalistas que ousavam desafiar sua história de conto de
fadas era um modo rápido e fácil de convencer as pessoas de que escrever
criticamente a seu respeito não valia a pena. Com o passar dos anos, ele pas-
sou a me considerar um dos muitos inimigos em que ele e seus treinadores
tinham de ficar de olho.
Só agora, após sua queda, concordamos com algo próximo de uma tré-
gua. E, apesar de negar, sei que ele resolveu conversar comigo por achar que
poderia controlar o rumo do meu livro. Sem chance, disse a ele. Depois de
várias investigações civis e criminais sobre se Armstrong tinha orquestrado
12 C I R C U I T O D E M E N T I R A S
um sistema de doping sofisticado para ganhar sete vezes o Tour de France;
depois de todos os depoimentos de ciclistas que o conheciam melhor do que
qualquer um e que tinham negado sob juramento toda defesa pública feita
por Armstrong; depois que ele mentiu muito e um pouco mais, o atleta mais
famoso de nossa geração percebeu que de repente eu estava com munição de-
mais. Mas noto que, mesmo agora, ele ainda acha que ocupa uma posição
de quase poder absoluto.
“Você pode escrever o que quiser”, disse ele em uma de nossas muitas entre-
vistas. “Mas o seu livro se chama Circuito de mentiras, não? Isso tem que mudar.”
Fiz entrevistas exclusivas com ele em cinco países, em ônibus de equipes
que fediam a lycra suada durante o Tour de France, em elegantes quartos de
hotel em Nova York, dentro de limusines, em frias salas de reunião e durante
horas por telefone.
Agora, na primavera de 2013, depois que todo o seu mundo desmoronou
e os caminhões de mudança estão começando a esvaziar sua adorada mansão,
vim visitá-lo em sua casa em Austin, no Texas, pela primeira vez.
Sim, está bem, pode vir, disse ele. Sitiado pelos infinitos obituários de
sua célebre (e agora fraudulenta) carreira, ele queria se assegurar de que eu
escreveria “a história verdadeira”.
Então aqui estou, estacionando sob o grande carvalho que Armstrong
mudou de lugar por capricho, e por que não? Olho para a casa e penso em suas
camisas amarelas. Um mês depois que a Agência Antidoping dos Estados
Unidos (Usada) liberou mil páginas de provas contra Armstrong e retirou
dele todos os seus títulos do Tour, ele tuitou uma foto sua deitado e relaxado
num sofá em forma de L em sua casa com as sete camisas amarelas pendura-
das cerimoniosamente atrás dele. A arrogância em pessoa: “De volta a Austin
e relaxando.” Isso foi em novembro de 2012. Será que sete meses depois
ainda o encontraria com tal atitude desafiadora?
Antes que eu tirasse as chaves da ignição, um rosto angelical de cabelos
castanhos encaracolados e despenteados surge na minha janela, e duas mão-
zinhas de uma criança pequena batem no vidro. É Max, o filho mais novo
de Lance.
13P R Ó L O G O
Armstrong está atrás dele de chinelo, com uma camiseta preta e shorts
de basquete que batem nos joelhos cobertos de cicatrizes. Seus olhos estão
escondidos por óculos bem escuros.
— Diga oi para Juliet, Max — diz Lance.
— Oi, Juuu-liiiéééé-teeee! — diz Max. Depois ele se vira para o pai e
pede sorvete, o que faz o pai rir, algo que nunca tinha visto antes.
— Sim, você vai ganhar um sorvete — diz Armstrong. — Você foi ótimo,
rapazinho, ótimo mesmo.
Subimos a escada da entrada e Armstrong para diante da porta. Passa os
olhos pela árvore, pela casa, pela vida de que desfrutou.
— O lugar é maravilhoso, né? — diz ele.
— É. Vai sentir saudade?
Armstrong não quer se mudar, mas precisa fazê-lo. Seus patrocinadores o
abandonaram, levando junto 75 milhões de dólares estimados em ganhos
futuros.2 Se for derrotado em todos os processos movidos contra ele, pode
perder mais de 135 milhões.3 Para “queimar menos”, como ele diz, parou de
alugar uma cobertura no Central Park em Manhattan e uma casa em Marfa,
no Texas. A próxima coisa de que abrirá mão é sua mansão em Austin, troca-
da por uma residência muito mais modesta perto do centro.
Seus ex-patrocinadores — entre eles a Oakley, a Trek Bicycle Corpora-
tion, a RadioShack e a Nike — o deixaram implorando por dinheiro. Ele os
considera traidores. Diz que a receita da Trek era de 100 milhões de dólares
quando ele assinou com a empresa e chegou a 1 bilhão em 2013.4
— Quem é o responsável por isso? — pergunta ele. — Está bem aqui,
porra. — Ele cutuca o próprio peito com o indicador direito. — Desculpe,
mas é verdade. Sem mim, nada disso teria acontecido.
Depois de dispensado pelos patrocinadores, ele se livrou de tudo que ti-
nha dessas marcas. De vez em quando ainda é possível ver um de seus amigos
de Dallas calçando um Nike amarelo personalizado para Armstrong, com
“Lance” bordado em pequenas letras de forma amarelas nas linguetas pretas.
Um bazar de caridade em Austin está repleto de suas velhas roupas da Nike
14 C I R C U I T O D E M E N T I R A S
e óculos Oakley. Os funcionários da transportadora que encaixotaram as
coisas de sua casa de hóspedes na semana anterior a minha visita vão ter de se
contentar com algum produto de marca que tenha sobrado na garagem: bo-
nés pretos Livestrong da Nike, bolsas pretas para material esportivo da Nike
com o logo em amarelo, lentes e armações Oakley e uma caixa de bonés nos
quais se lê “Yes on Prop 15”, um projeto de lei de 2007 no Texas, apoiado
pelo ciclista, para lançar títulos no mercado e com eles levantar fundos para
pesquisa, prevenção e educação sobre o câncer.
Em 1989, Armstrong deixou Plano, um subúrbio de Dallas, e se mu-
dou para Austin. Nessa cidade progressista ele cresceu como um adolescente
rude, combativo e sardento, com cabelos ondulados castanhos descoloridos
nas pontas, uma argola dourada na orelha esquerda, uma corrente prateada
no pescoço com um pingente na forma do mapa do Texas e uma carteira de
identidade falsa.
Com renda de 12 mil dólares por ano e a ajuda de um benfeitor local
chamado J.T. Neal, que o acolheu, ele foi morar num pequeno apartamento
por 200 dólares ao mês.5 Ele o decorou com um sofá de couro preto grande
demais, uma poltrona combinando e, acima da lareira, colocou a caveira de
um touro de raça texano pintada de azul, vermelho e branco.
A mudança de um apartamento minúsculo para uma enorme proprieda-
de foi reflexo da ascensão de Armstrong à moderna santidade americana: um
sobrevivente do câncer que venceu os melhores ciclistas do mundo em uma
corrida duríssima, que saía com as mulheres que quisesse e ainda ganhava
milhões com isso.
Armstrong adora esta casa. Adora seus espaços abertos e as janelas que
vão do chão ao teto. Adora o luxuriante jardim projetado, onde seus filhos
jogam futebol, e a piscina cristalina (uma “piscina de borda negativa é o
nome correto, não piscina infinita”).6 Nos fundos da casa há fileiras de altos
ciprestes italianos.
Ele se mudou para esta casa em 2006 após vencer pela sétima vez o Tour
de France, um feito inédito. Disse uma vez que o lugar era seu esconderijo.
Dentro dela “ninguém vai mexer comigo”.7 Depois de driblar as tentativas
15P R Ó L O G O
quase constantes de expor seu doping, ele podia virar à esquerda no corredor
principal, logo depois à direita e entrar em sua adega para pegar uma garrafa
de Tignanello e brindar a sua boa sorte.
Sobre uma mesinha ao lado de um sofá, há um modelo de noventa cen-
tímetros de um jato Gulfstream, que era o meio de transporte favorito de
Armstrong para voos de longa distância. É branco com faixas pretas e ama-
relas dando a ideia de velocidade. Ele e seus amigos costumavam ficar em pé
quando o avião decolava, “surfando” enquanto este subia em direção ao céu.
Ele vendeu o avião por 8 milhões de dólares em dezembro de 2012, enquan-
to se preparava para as despesas legais que viriam após a Usada revelar suas
trapaças.8
Assim que nos instalamos em sua sala de imprensa no segundo andar da
casa principal, aparecem suas filhas gêmeas, Grace e Isabelle. As pré-ado-
lescentes são cópias da mãe, Kristin: bonitas e loiras. Seus sorrisos abertos
revelam aparelhos prateados reluzentes.
— Oi, pai! Comprou aquelas saias que a gente viu na internet? — per-
gunta Isabelle enquanto ela e a irmã fazem o sofá de cama elástica.
— É, pai, você comprou as saias? — insiste Grace.
— Não, ainda não — diz Armstrong. — Já está quase na hora de tomar
uma cerveja. Seria bom se uma das duas mocinhas pegasse uma pra mim.
Shiner Bock.
Grace grita.
— Shiner Bock! Você não sabe? É uma cerveja, é B-O-C-K. Não é uma
tampa de rosca.
Depois, com a cerveja na mão, Armstrong olha para mim.
— Assim é a minha vida. Horrível — diz ele.
Ele diz o quanto gosta de ficar com as crianças em casa — elas são trans-
parentes e puras, jovens demais para engambelá-lo. Pergunto se ele acha que
as pessoas se aproveitaram dele, se ele se sente usado.
— Ah, sim.
— Por quem?
— Por todo mundo. Pode fazer uma fila.
16 C I R C U I T O D E M E N T I R A S
O garoto que antigamente decorava a sala com a caveira de um touro tor-
nou-se um colecionador de arte sofisticada e cara. Seus gostos são evidentes,
se não desconcertantes. Ao entrar em sua casa vejo um painel de vidro pin-
tado de mais de 3x1,5 metro de largura que, a um exame mais detalhado, é
na verdade um painel feito de centenas de borboletas coloridas, uma peça
de Damien Hirst chamada A árvore da vida. Hirst é conhecido por suas ins-
talações polêmicas (como a cabeça cortada de uma vaca sendo devorada por
vermes dentro de uma caixa de vidro). Em 2009, quando decorou uma bici-
cleta de corrida de Armstrong com borboletas, o grupo de defesa dos direitos
dos animais People for the Ethical Treatment of Animals (Peta) chamou o
trabalho de uma “barbaridade horrorosa”.9
Quanto mais obras de arte vejo pela casa, mais estranho me parece o seu
gosto artístico. Chamar suas escolhas de sombrias é ser bondoso, chamá-las
de controversas é simplista. Tudo o que Armstrong diz de qualquer uma
delas é que são “muito foda”.
Mas veja: acima da lareira, na sala de jantar ampla e formal, flanqueada
por pias de água-benta de mármore, há uma foto intitulada Urina e sangue
no VII. É de Andrés Serrano, fotógrafo que ganhou fama por sua foto de
1987 de um crucifixo de plástico mergulhado na urina do artista. Há algo
de harmônico no fato de estarem no mesmo aposento tanto o fotógrafo
quanto um atleta que diz ter passado por centenas de exames de sangue e
urina para controle antidoping.
Do lado oposto da sala fica o seu escritório, com pouca luz, feito com
tons diferentes de madeira: um lugar para pensar. Sentado à sua mesa, num
canto, Armstrong tem uma vista direta para seus troféus do Tour de France,
sete taças de porcelana roxa com detalhes dourados delicados posicionados
em prateleiras no alto da parede, cada um sob seu próprio spot, todas ilu-
minadas.
À esquerda da mesa uma obra de arte que pode falar muito de seus rela-
cionamentos rompidos com a família, amigos, amantes e colegas de equipe.
Uma foto em tom de sépia de Luis González Palma mostra um homem
e uma mulher dançando abraçados. Será que estão mesmo? Numa olhada
17P R Ó L O G O
mais atenta, vejo pontas se projetando das costas do casal. Armstrong admi-
tiria apenas que a obra é sombria.
E então vejo a obra de Jesus.
À direita de sua mesa uma pintura espanhola do século XVII da crucifica-
ção ocupa quase toda a parede. Quatro mulheres choram aos pés do Cristo,
que está com a cabeça pendente e coroada por um halo brilhante. Há anos a
pintura ficava na capela que o ciclista construíra para a ex-mulher, católica,
dentro da casa deles em Girona, na Espanha. Ele mesmo não é um homem
religioso. Diz considerar a religião uma reunião de hipócritas.
No canto do escritório, com vista para uma escadaria, há outra imagem
da crucificação. O efeito completo da obra só é visto de certos ângulos, a
partir dos quais a imagem de Cristo pregado à cruz pode ser vista.
“Um homem levou a culpa por mil pecados”, diz Armstrong. Mas, mes-
mo na presença desses crucifixos, ele na verdade está falando de si mesmo.
Como se quisesse que eu escrevesse que ele foi um mártir de um século de
doping no ciclismo e essa fosse a maneira de garantir que eu fizesse isso.
Ele vai até uma mesinha de centro e pega uma escultura — um braço,
da mão ao cotovelo. A peça, do artista japonês Haroshi, é feita com muitas
camadas de pranchas de skate prensadas. O dedo do meio da escultura está
para cima.
“Isso tem tudo a ver com a história da minha vida”, diz ele. Então coloca
a escultura na minha cara. Vejo as mãos de Armstrong. Em cada uma das
palmas há uma pequena ferida onde ele me disse que um médico cauterizou
alguns cistos. Penso em estigmas. “Vá se foder”, continuou, rindo.
Sete anos atrás, ele disse aos três filhos mais velhos de seu casamento aca-
bado, Luke, Grace e Isabelle, que eles terminariam o ensino médio ainda
morando na casa perto do grande carvalho.10 Ele devia isso a eles. Eles o ha-
viam seguido do Texas para a França e para a Espanha inúmeras vezes. Enfim
poderiam criar raízes. “Prometo”, disse ele. “O pai de vocês não vai se mudar
de novo.” Eles morariam a seis minutos da mãe, Kristin, e poderiam contar
com o costume de se sentar em volta da grande mesa de jantar cercada por
18 C I R C U I T O D E M E N T I R A S
fotos em preto e branco da família. Eles sabiam onde o pai estaria na maioria
das noites da semana — num sofá em frente à TV vendo Anderson Cooper
360° na CNN. No verão de 2012, Armstrong construiu um anexo no pri-
meiro andar para que a família cada vez maior tivesse um sétimo quarto de
dormir. A casa já era seu refúgio. Ele morava ali com a namorada, uma loira
alta, magra e bonita chamada Anna Hansen, e os dois filhos deles, Max, de
quatro anos, e Olivia, de dois, uma sósia de Shirley Temple. Armstrong e seu
clã tinham planejado ficar ali, seguros e felizes por muito tempo.
Agora, porém, os homens da mudança estão chegando. É 6 de junho
de 2013, cinco anos antes da data prevista para a formatura de Luke. De
manhã, uma fila de caminhões pretos vai entrar em sua casa e derramar car-
regadores de camisetas de mangas curtas pretas. A atmosfera já é de enterro.
A transportadora já esvaziou a casa de hóspedes de 150 metros quadrados,
uma minimansão, com sua fachada acobreada combinando com o telhado
vermelho alaranjado.
Em 7 de junho, volto para ver os trabalhadores esvaziarem a casa principal.
Eles tiram os troféus do Tour das prateleiras iluminadas, embalam em plástico
bolha verde e guardam em caixas azuis. Numa caixa com o número 64 escrito,
um carregador coloca um porta-retratos prateado com uma foto 12x18 da
equipe de Armstrong do Discovery Channel, de 2005, sentada a uma mesa de
jantar depois de sua sétima e última vitória no Tour. Ele, seus colegas de equi-
pe e Johan Bruyneel, o diretor de longa data da equipe, estão com sete dedos
erguidos. Há uma pulseira amarela de borracha no pulso de cada homem. A
mesa está cheia de copos de vinho vazios. Uma outra vida.
A caixa 64 vai para o caminhão com o resto. Sigo os carregadores até a
sala de imprensa. Com luvas brancas de algodão, eles tiram as sete cami-
sas amarelas emolduradas da parede atrás do sofá. Na véspera, quando eu e
Armstrong estávamos sentados nessa sala, ele teve uma ideia. Perguntou se
eu queria deitar no sofá, se queria sair numa foto com as camisas que ainda
tinham sobrado.
“Vai ser engraçado”, disse ele.
Não entendi a piada.
19P R Ó L O G O
* * *
Antes do amanhecer, ainda escuro, Armstrong deixou a mansão para sempre.
Às 4h15 da manhã de 7 de junho de 2013,11 com Hansen e seus cinco filhos,
ele foi para o Aeroporto Internacional de Austin-Bergstrom e embarcou num
voo comercial para o Havaí, onde passariam a primeira parte do verão.
Armstrong me diz que saiu da casa que construíra sem olhar para trás. Diz
que sentimentos nunca foram tão importantes para ele. A mudança significa
apenas que aquela parte de sua vida terminou e que outra vai começar. É só
isso, diz ele. Talvez ele acredite nas palavras que saem de sua boca. Talvez não.
Vários dias depois, só dois de seus bens ainda permaneciam na proprieda-
de. Um deles não coube no caminhão de mudanças: um Pontiac GTO preto
conversível 1970 que ele ganhou de presente da cantora Sheryl Crow, com
quem teve um romance nada discreto que terminou quando ele a deixou,
pouco antes de ela descobrir um câncer. O carro, com as lembranças de ou-
tro fracasso de Armstrong, é avaliado em cerca de 70 mil dólares.12
E, finalmente, deixada na sala de estar da casa de hóspedes, restou uma
bateria completa e montada. Apenas mais uma peça da vida desfeita daquele
homem. Oh beat the drum slowly and play the fife lowly,* pensei enquanto
olhava para a bateria, palavras de uma canção que conheci numa época em
que trabalhei no Texas.
Take me to the valley, and lay the sod o’er me,
For I’m a young cowboy and I know I’ve done wrong.**
* Toque devagar este tambor e a flauta baixinho.
** Leve-me para o vale e me cubra de terra,/ Porque sou um jovem caubói e sei que errei.
23
C A P Í T U L O 1
A mãe de Lance Armstrong, Linda, é sempre a heroína da própria his-
tória. Segundo o que conta, os dois, ela e Lance, lutaram para sobre-
viver no bairro de Oak Cliff, em Dallas, nos miseráveis conjuntos habita-
cionais do lado errado do rio Trinity.1 Só tinham um ao outro. Armstrong
nunca conheceu o pai, ela criou o menino sozinha.2 Ela disse que o ensinou
a andar de bicicleta, encorajou-o a ser um atleta, pagou pelo equipamen-
to, comprou sua casa, viajou para ver todas as suas corridas, arranjou seus
patrocínios e às sete da manhã de todo sábado o acompanhava para que pu-
desse derrotar outro grupo de, digamos, corredores de meia distância pré-
-púberes.3
Em sua autobiografia, No Mountain High Enough [Nenhuma montanha
é alta demais], ela se deleita com a pergunta frequente: “Como uma mãe
solteira adolescente conseguiu criar um super-herói da vida real?”4 Na nota
da autora, antes do desenrolar da história, ela nos alerta para seu relato “to-
talmente parcial, subjetivo, tendencioso, indulgente e inconscientemente
fantasioso”.5 E chega a dizer: “Outra pessoa pode ter um ponto de vista dife-
rente.”6 Ela desafiava essas pessoas a escreverem seus próprios livros.
Linda usa pseudônimos para os três ex-maridos: Eddie Gunderson, Terry
Armstrong e John Walling. Chama o pai de Lance de “Eddie Haskell”, o
personagem doce e tolerante de Leave It to Beaver, programa de TV dos anos
1950-1960. Os Gunderson foram a primeira família de Lance Armstrong.
Eddie Gunderson e Linda Mooneyham se casaram quando ainda estavam no
ensino médio. O bebê nasceu sete meses depois.
24 C I R C U I T O D E M E N T I R A S
O casamento apressado juntou duas famílias problemáticas. Os dois avôs de
Armstrong bebiam demais, e suas mulheres e filhos os deixaram depois de mais
um incidente provocado pela bebedeira.7 O avô paterno era tão perverso que
botava gatinhos em potes de vidro para sufocá-los.8 O pai de Armstrong era
um alcoólatra que teve tantas mulheres quanto sua mãe teria de maridos:
quatro.9
Aos vinte anos, Armstrong tinha vivido com três pais diferentes: um bio-
lógico, um adotivo e um padrasto.10 (Em seu livro, Linda Armstrong escreve
sobre os fracassos de sua vida amorosa como resultado de escolhas “burras,
autodestrutivas, insensatas e completamente bêbadas”.)11 Depois disso, Lan-
ce foi jogado de um lado para o outro num turbilhão de uma dúzia de pais
substitutos de sua própria escolha.
Como palestrante motivacional, Linda ganhou dinheiro falando clichês
sobre sua luta para criar o maior ciclista que o mundo já havia visto, dizendo
à plateia: “Tínhamos tudo contra nós” e “Era uma questão de sobrevivência”.
Ela conta como Lance uma vez apareceu numa corrida nas montanhas do
Novo México sem camisa de manga comprida e como, enquanto os outros
corredores tinham uniformes caros, ele teve que usar o minúsculo agasalho
rosa dela para se aquecer. Ele quebrou o recorde do circuito.
Ela fala sobre ir “da pobreza sem dinheiro ao sucesso pessoal” e destaca
que teve papel essencial nas conquistas do filho.12 “Eu realmente acredito que
nossos filhos são um produto nosso.”
Segundo seu relato, ela foi a única presença constante na vida dele. Desde
o princípio deixou claro que ela, e apenas ela, seria responsável pela formação
do filho. O primeiro passo nesse sentido se deu quando ela o afastou da fa-
mília Gunderson.13 A mãe de Armstrong contou a sua versão da história por
anos. É uma história que sempre levou Willine Gunderson Harroff, mãe de
Eddie, e a irmã dele, Micki Rawlings, às lágrimas.
Linda Armstrong disse que cuidou de Lance sozinha, que outras pessoas
tiveram apenas papéis pequenos na vida dele, independentemente de sua
contribuição ou do tempo em que estiveram envolvidas.14 Ela se diz mãe
solteira, apesar de só ter ficado sem marido por um ano, antes de Lance
25M E N T I R A S D A F A M Í L I A
completar dezessete anos,15 e mesmo assim a família de seu primeiro marido
afirma que a ajudou a tocar a vida cuidando dele enquanto ela trabalhava.16
Com o tempo, a imprensa preferiu a história da tragédia e triunfo: aquela em
que um dos maiores atletas da história era fruto de uma mãe adolescente que
lutou pela sobrevivência sem contar com ninguém além do filho pequeno.
As invenções de Linda não caíram bem no resto da família de Lance, segun-
do Willine Gunderson.
Os Gunderson tinham sua própria versão da infância de Lance para con-
tar.17 Para começar, eles chamavam o pai de Lance de Sonny.18 Ele era boni-
to, um rebelde de olhos azuis com cabelos castanhos brilhantes, um sorriso
malicioso e disposição para ajudar amigos a roubar toca-fitas de carros esta-
cionados. Certa vez ele entrou com sua motocicleta pela porta dos fundos
e pela cozinha da casa de uma namorada da escola, o que fez os pais dela
chamarem a polícia.
No bairro onde moravam, Wynnewood, uma área de classe média da
cidade, nada parecida com “os conjuntos habitacionais de Dallas” mostrados
nos vídeos promocionais das palestras de Linda, os Gunderson eram vizi-
nhos de outra família, os Mooneyham.19
Linda Mooneyham era uma das garotas mais bonitas da escola e uma
estrela do grupo de líderes de torcida. Sonny a chamou para sair. Logo eles
começaram a namorar e a circular pela cidade no Pontiac GTO envenenado
de Sonny. Ele tinha um charme de bad boy que o fez numa noite do inverno de
1970 sussurrar no ouvido de Linda: “Faça amor, não faça guerra.”20 Naquela
noite, ela engravidou. Quando Linda, com dezesseis anos, se recusou a fazer
um aborto, sua mãe a expulsou de casa. Longe de ficar desamparada (“tínha-
mos tudo contra nós”), ela encontrou uma família que a acolheu e então foi
morar na casa de Sonny. Tornou-se, na verdade, uma filha adotiva de Willine
Gunderson, cujos membros da família chamavam de “Mom-o”.
Willine era mãe solteira cujo ex-marido sempre atrasava o pagamento da
pensão alimentícia, isso quando pagava. Por 43 anos, ela trabalhou no First
National Bank de Dallas. Sua noção de família era tão forte, diz ela, que
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insistia para que as duas filhas e Sonny fossem à igreja juntos três vezes por
semana. Ela nunca criticava o ex-marido ausente porque queria que os filhos
tivessem sua própria opinião sobre ele. Ela e Linda ficaram próximas como
melhores amigas durante a gravidez da adolescente.
Quando Linda fez dezessete anos, ela e Sonny, também da mesma idade,
se casaram em uma igreja batista cheia de colegas da escola — alguns, sem dú-
vida, perceberam a barriga de grávida da noiva sob o vestido branco bordado
e esvoaçante. Isso foi em fevereiro de 1971. O menino chegou em setembro.
O nome foi uma homenagem a Lance Rentzel, grande wide receiver do time
de futebol americano Dallas Cowboys, que um ano antes tinha sido preso por
exibir a genitália para uma menina de dez anos.21 Pelo vidro do berçário na
maternidade, o pai viu que a cabeça do recém-nascido era torta: comprida
demais, estreita demais. A mãe, uma mulher muito pequena, deu à luz um
menino com 4,4 quilos.22
— O que há de errado com a cabeça dele?23 — perguntou o pai, as lágri-
mas escorrendo pelo rosto.24
— Vai melhorar — disse uma das irmãs. — Vai ficar direito. Eu sei que vai.
Linda arranjou um emprego de meio período num mercadinho. Sonny
trabalhava numa padaria e entregava jornais, mas a paternidade não lhe trouxe
uma maturidade repentina. Quando menor de idade, ele fora levado várias
vezes diante de um juiz de menores. Em 1974, quando o filho tinha dois anos
e meio, e ele e Linda já estavam divorciados, Sonny Gunderson passou sua
primeira noite na cadeia como adulto, preso por arrombar um carro.25
O casamento durou pouco mais de dois anos. Linda diria em seu livro
que Sonny era tão violento com ela que seu pescoço e braços ficavam com
hematomas. Anos mais tarde, o ex-marido admitiu ter dado um tapa nela,
mas apenas uma vez.26
Gunderson contou à família que depois do divórcio passou meses quase
como um zumbi. Queria consertar o que havia estragado, porém, não sabia co-
mo. Costumava sentar na rua em frente à creche onde o filho passava o dia e
ficava vendo o menino brincar no parquinho. Ele não podia pagar pensão, nem
iria. Ignorava as notas promissórias que se acumulavam em sua caixa de correio.
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Para a família de seu pai, Armstrong era Lance Edward Gunderson. Eles
ainda o viam nos natais e em outros encontros familiares, quando brincava
com os primos. Ainda têm fotos dele, amareladas e desbotadas. Sua avó tem
um álbum de 10x10 centímetros feito para ela pela mãe de Armstrong. Linda
o assinou com o nome do filho: “Para Mom-o Willine. Com amor, Lance.”
Willine “Mom-o” Gunderson é a avó paterna de Armstrong. Em quase todas
as fotos dela com o pequeno Lance, ela está beijando o neto, de olhos fecha-
dos, o tipo de momento que uma avó quer que dure para sempre. Seu filho
é parcialmente culpado por isso ter durado tão pouco.
Sempre que via Lance, o próprio Gunderson agia como criança. Enquan-
to sua mãe e as duas irmãs observavam, ele levava o garoto para passear em
sua bicicleta de dez marchas e em sua motocicleta. Inevitavelmente, algumas
saídas terminavam em problemas. Uma vez Lance chegou em casa com uma
queimadura do tamanho de uma moeda na panturrilha, pois esbarrou no es-
capamento da moto. Em outra ocasião, ficou com o dedão do pé sangrando
ao prendê-lo nos raios da bicicleta. Linda culpou Sonny por sua negligência
e puniu Willine por deixar que o menino se machucasse enquanto estava sob
seus cuidados.
— Você não pode mantê-lo numa redoma de vidro a vida toda — disse
Willine à jovem mãe.
— Eu sei o que é melhor para ele — retrucou Linda.27
“Ela era maternal”, diz Willine. “Mas era nova demais, não entendia
que crianças pequenas podem amar mais de uma pessoa. Não queria que
ele amasse mais ninguém além dela. No entanto, os pequenos amam qual-
quer um que os ame. Isso não afeta em nada o amor que sentem por suas
mães.”
Quando Linda deu entrada no pedido de divórcio em 15 de fevereiro
de 1973, simplesmente não aguentava mais Sonny. Ela casou com Terry
Armstrong, um vendedor, em maio de 1974, um ano após a assinatura dos
papéis de divórcio. Apesar de Sonny não saber na época, sua vida com Lance
logo estaria encerrada.
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Os Armstrong se mudariam dali, acabando com qualquer contato com os
Gunderson, e Terry adotou oficialmente Lance. Linda disse em sua autobio-
grafia que Willine concordou que era melhor para Lance nunca mais ver os
Gunderson. Contudo, sempre que alguém sugere isso para Willine, ela fica
boquiaberta. “Oh, não, não”, diz ela.
O último contato direto que Willine teve com Linda e sua família foi quan-
do Lance tinha cinco ou seis anos. Ela foi à casa da mãe de Linda para levar
seus presentes de Natal.
— Linda me disse para não aceitar mais nada seu — disse a mãe dela. —
Qualquer coisinha que você dê a ele não compensa o problema que ela tem
com Lance depois de ele ter algum contato com você.
Trêmula de tristeza, Willine disse baixinho, quase para si mesma:
— Você não tem o direito de separar uma família. — E foi embora com
os presentes na mão e lágrimas nos olhos.
Nos anos seguintes à partida de Lance, Willine e Micki andavam com sua
foto em pingentes de ouro ovais pendurados no pescoço. No de sua avó, ele
é um bebê, talvez com uns dez meses de idade, usando um macacãozinho
vermelho de bombeiro. No da tia, um garotinho com um sorriso pateta.
Até hoje, Willine se lembra da última vez que o viu. Estava cuidando
dele, que tinha uns quatro anos. A mãe passou para apanhá-lo e o encontrou
embaixo da mesa da sala de jantar dos Gunderson. A avó se lembra do meni-
no dizendo contente: “Eu agora só vou morar aqui. Não vou ocupar muito
espaço. Vou morar aqui embaixo dessa mesa.” A mãe, no entanto, agarrou
Lance pelo braço e o levou porta afora com o menino chorando pelo cami-
nho. E bateu a porta. A avó nunca mais veria o garoto.
Os Gunderson nem imaginavam que os Armstrong moravam em
Richardson, um subúrbio no norte de Dallas, e não tinham dinheiro para
contratar um advogado ou investigadores para localizá-los. Eles esperavam
que Lance fosse procurá-los um dia, talvez quando tivesse os próprios filhos.
Na igreja da família, a Four Mile Lutheran, que os parentes de Armstrong
ajudaram a fundar e a construir a leste de Dallas há 165 anos, por anos a
congregação rezou todo domingo por ele.
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Os Gunderson às vezes lhe escreviam, mas ele nunca respondeu. Eles
raramente ligavam para a família de Linda e, quando tentavam, só ouviam o
clique de um fone sendo recolocado no gancho.
O irmão de Linda, Alan, sentia pena de Sonny e era a única fonte de in-
formação dos Gunderson sobre o garoto. Uma vez ele foi à casa de Sonny e
lhe deu uma foto de escola colorida de Armstrong, de 20x25. Os Gunderson
examinaram de perto o rosto de Lance, a primeira vez que o viam em mais
de cinco anos.
Ele tinha os mesmos olhos azuis profundos do pai, as mesmas maçãs do
rosto pronunciadas. Eles queriam saber se ele tinha outras características da
família. Lance era cabeça-dura e obstinado? Tinha problemas com autorida-
de? Sentia o mundo com intensidade? Era rancoroso?
A avó de Armstrong agora tem quase noventa anos. Quando fez oitenta,
foi morar com Micki, que vive em um dos bairros mais exclusivos de Dallas,
em meio a mansões e grandes propriedades protegidas por guaritas. O mari-
do desta, Mike Rawlings, foi eleito prefeito em 2011.
Os fartos cabelos castanhos de Willine ficaram brancos como a neve. Sua
postura antes ereta como uma vara tornou-se permanentemente curvada.
Ela usa um andador e precisa de óculos de lentes grossas e luz forte para
enxergar. Também está perdendo a audição, mas sua mente está lúcida. Ao
lado da cama tem fotos de seis dos sete netos e seis dos onze bisnetos, porém,
nenhuma foto de Lance Armstrong em idade alguma, nem dos cinco filhos
dele. É como se ele nunca tivesse existido em sua família.