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OVDIO JAIRO RODRIGUES MENDES
CONCEPO DE CIDADANIA
DISSERTAO DE MESTRADO
Orientador Prof. Doutor JULIANO MARANHO
FACULDADE DE DIREITOUNIVERSIDADE DE SO PAULO
SO PAULO2010
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OVDIO JAIRO RODRIGUES MENDES
CONCEPO DE CIDADANIA
Dissertao apresentado na Faculdadede Direito como requisito paraobteno do ttulo de mestre emFilosofia e Teoria Geral do Direito, soborientao do Professor DoutorJuliano Maranho.
FACULDADE DE DIREITOUNIVERSIDADE DE SO PAULO
SO PAULO2010
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A todos os brasileiros, cidados
annimos, que, ao pagarem impostos,
financiam as instituies pblicas de
ensino como a Universidade de So
Paulo.
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Agradecimentos
Ao Professor Doutor Juliano Maranho, que, por motivos outros, gentilmente aceitou ser
meu orientador exatos seis meses antes do prazo final para depsito desta dissertao.
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RESUMO
A dissertao tem por objetivo a investigao, no mbito da filosofia do direito, do
significado da concepo de cidadania, seja ela formulada em termos tericos ou prticos.
A hiptese central que a cidadania uma linguagem, semelhante s linguagens naturais,
que se modificam ao longo do tempo pelo uso, mas que mantm intacto o ncleo, com as
modificaes se processando nas camadas que o circundam.
No ncleo da linguagem cidadania esto as noes de consenso e utilidade.
Consenso entre pessoas significa que elas so socialmente iguais e esto aptas a exporem
suas idias e vises sobre a melhor forma do convvio social harmnico e que sero
ouvidas e ouviro as idias e vises de seus concidados. Da inter-relao dessas idias e
vises esto dispostas a extrarem uma posio comum que reflita o equilbrio alcanado
como resultado do encontro de significados diferentes para a vida social. Mas, igualmente
importante, esto dispostas a observarem os princpios a que chegaram em suas vidas
cotidianas.
A noo de utilidade repousa na necessidade de resolver os problemas que se
apresentam na vida em sociedade. A cidadania no uma noo abstrata desligada dos
fatos concretos, mas expressa maneiras de, em igualdade de condies e possibilidades,
todos participarem na proposio de solues e serem capazes de formularem posies que
mantenham a coerncia e sistematicidade de procedimentos passados, presentes e futuros.
Uma concepo de cidadania que seja de aplicao e domnio pblicos objetiva evitar que
solues contingentes sejam adotadas sem considerao dos possveis reflexos nas vidas de
outras pessoas e das geraes futuras. A funo da teoria assume, ento, o papel de
ordenao e guia das aes prticas.
Na defesa da cidadania enquanto linguagem universal de expresso para
sentimentos e aspiraes coletivos conjugado com a superao de problemas, grandes
narrativas universais, como as concepes formuladas por Aristteles, Hobbes e as
derivadas do contrato social de Rousseau, aliadas s narrativas que configuram o perodo
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ps-independncia do Brasil so analisadas, principalmente a encontrada na promulgao
da Constituio Federal de 1988. Esta encontra sua principal justificativa na eleio da
cidadania como fundamento de existncia do Estado pela enumerao de direitos valorados
como fundamentais para o respeito vida digna e com padres mnimos de bem-estar
individual e social. Em termos menos abstratos, a Constituio de 1988 define os direitos
que configuram o senso de liberdade, rompendo com a heteronmia do cidado em funo
do Estado que predominava nas constituies anteriores.
Palavras chaves: Cidadania, Direitos, Democracia, Teoria da Cidadania,
Liberdade.
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ABSTRACT
The dissertation takes the investigation as an objective, in the context of the
philosophy of the right, of the meaning of the conception of citizenship, be it formulated in
theoretical or practical terms. The central hypothesis is that the citizenship is a language
similar to the natural languages, which are modified along the time by the use, but the core
remains intact, with the modifications taking place in the layers that surround it.
In the core of the citizenship language there are the notions of consensus and
usefulness. Consensus between persons means that they are socially the equals to each
other and are suitable exposing his ideas and visions on the best form of the social
harmonic living together and that they will be heard and will hear the ideas and visions of
his fellow-citizens. They are able to get from the inter-relation of these ideas and visions a
common position that reflects the balance reached as result of the meeting of different
meanings for the social life. But, equally important, they are concerned for observing the
beginnings that they brought near in his daily lives.
The notion of usefulness rests in the necessity of resolving the problems that show
up in the life in society. The citizenship is not an abstract notion apart from the concrete
facts, but it relates to manners of, in equality of conditions and means, give to every one
the change of proposing solutions and formulating positions that maintain the coherence
and systematic approach of past, present and future proceedings. A conception of
citizenship that is of public application and domain aims to avoid which possible solutions
are adopted without consideration of the possible reflexes in the lives of other persons and
of the future generations. The function of the theory assumes, then, the paper of ordering
and guide of the practical actions.
In the defense of the citizenship while universal language of expression for feelings
vehicles and aspirations conjugated with the overcoming of problems, great universal
narratives, like the conceptions formulated by Aristotle, Hobbes and the derivatives of the
social contract of Rousseau, allied to the narratives that shape the period post-
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independence of healthy Brazil are taken into consideration, mainly the considered one in
the promulgation of the Federal Constitution of 1988. This one finds his principal
justification in the election of the citizenship like basis of existence of the State for the
enumeration of rights judged as meaningful for the respect to the worthy life and with least
standards of individual and social well-being. In less abstract terms, the Constitution of
1988 defines the rights that shape the sense of freedom, breaking with the dependent
condition of the citizen in function of the State that was predominating in the previous
constitutions.
Key Words: Citizenship, Rights, Democracy, Citizenship Theory,
Freedom.
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SUMRIO
1. Configurao do problema ................................................................ 1
1.1. Importncia da concepo de cidadania ............................................ 5
1.2. Delimitao de objetivos ................................................................... 9
1.3. Mtodo da investigao ..................................................................... 11
2. Narrativas universais sobre cidadania ............................................... 15
2.1. Filosofia e cidadania em Aristteles .................................................. 20
2.2. Filosofia e cidadania em Hobbes ....................................................... 24
2.3. Dos requisitios ticos da cidadania a partir de Rawls, Dworkin e Dahl 25
3. Cidadania no Brasil: a cidadania prtica e suas inflexes .................. 35
3.1. Institucionalizao da dependncia no perodo colonial .................... 39
3.2. Primeira inflexo na concepo de cidadania: a necessidade de
constituir o Estada Nao ................................................................... 43
3.3. Segunda inflexo na concepo de cidadania: a modernizao do
Estado e da sociedade ......................................................................... 49
3.4. Terceira inflexo na concepo de cidadania: o cidado como
fundamento do Estado ......................................................................... 52
4. A narrativa contempornea sobre cidadania fundada em direitos ....... 63
5. A manipulao das imagens pessoais pela teatralidade dos projetos
polticos ............................................................................................... 70
6. Concluso ............................................................................................ 79
Referncias bibliogrficas ................................................................... 85
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1. CONFIGURAO DO PROBLEMA
Esta uma investigao, no mbito da filosofia do direito, sobre o que significa
cidadania, seja ela formulada em termos tericos ou prticos. A hiptese central que a
cidadania uma linguagem, semelhante s linguagens naturais, que se modificam ao longo
do tempo pelo uso, mas que mantm intacto o ncleo, com as modificaes se processando
nas camadas que o circundam. No ncleo da linguagem cidadania esto as idias de
consenso entre pessoas socialmente iguais, significadas no termo simples concidados, e
de estabilidade nas relaes entre concidados, significada no termo composto harmonia
social. O ambiente de formulao da hiptese est a seguir descrito.
Habitamos um mundo em que cadeias sucessivas de fenmenos so por ns criadas
e projetadas para se associarem com as mais diversas necessidades da vida cotidiana, de
modo a continuamente requererem nossa ateno e gerarem novas necessidades. Como
exemplo, o consumo fundado no critrio principal do impulso pela necessidade aparente
recebe constantes incentivos. Seu disfarce concretiza-se no argumento de gerao de
empregos e impulso atividade econmica, com conseqente melhoria do padro de vida
geral. Adotado de modo amplo e acrtico, posteriormente um cdigo de defesa do
consumidor torna-se imperioso porque fornecedores no agem eticamente com os
consumidores. Em outro exemplo, a encosta de um morro clandestinamente invadida e
povoada e, acobertada por interesses de agentes polticos especficos, tolerada. Mais tarde,
na ocorrncia de algum acidente grave, como o desmoronamento e soterramento de casas
em funo de fortes chuvas, o poder pblico instado a resolver o problema, quando no
acusado, de modo amplificado, de desleixo. Inmeros outros exemplos, retratados
cotidianamente pelos meios de comunicaes, podem ser citados, e a caracterstica que
parece ser comum a todos o modo como so abordados. Majoritariamente, os argumentos
explicativos no apresentam coerncia sobre suas causas lgicas, limitando-se esfera das
opinies pessoais que, quando relacionadas aos assuntos pblicos, perdem
significativamente o poder de convencimento pela fcil refutao por outras opinies. Isso
acontece por que opinies pessoais denotam a concentrao argumentativa na particular
esfera de atividade e interesse do argumentador, sem a devida valorao dos argumentos
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alternativos que abrangem diversas faces do mesmo problema. Somente o confronto
sistematizado de argumentaes permite determinar racionalmente suas importncias
relativas e delinear um sistema que, minimamente, apresente equilbrio entre vises da
realidade concorrentes. Essa desconsiderao pelo argumento discordante revela que os
pontos de partida das idias que justificam as opinies no so comuns ou que a pessoa as
desconhece. Ora, por no apresentarem uma idia inicial consensual, as opinies, embora
abordem conjuntamente o mesmo aspecto ftico da realidade, analiticamente dizem
respeito a imagens diferentes, quando no antagnicas, de representao do mundo.
Por outro lado, a importncia das opinies reside em que, apesar do aparente
avano do conhecimento cientfico que modela e correlaciona as seqncias de fatos
possveis no interior de um quadro referencial consensualmente aceito, ao julgarem os
fatos primordialmente a partir de concepes particulares as pessoas revelam imagens que
refletem as maneiras como concebem e julgam os fenmenos presentes no mundo
concreto. E nessas imagens desvelam elevado antropocentrismo associado ao total
desconhecimento das conexes passadas que resultam nos acontecimentos presentes. Essa
inabilidade de organizao do passado com o presente e projeo para o futuro foi
denominada por Donald Levine de fragmentao da experincia (LEVINE, 1995:7),
fenmeno que reduz a abrangncia da existncia s sensaes presentes e vivncia
imediata. O paradigma de nossa poca, presente na expanso dispersiva das tecnologias
analticas (cognio e expanso das sensaes), em detrimento do elemento analtico-
explicativo, denota a valorizao da gratificao imediatista e a cultura de hegemonia do
novo em detrimento do histrico. Tal fenmeno caracteriza o processo j h algum tempo
identificado como racionalizao instrumental da realidade em ambiente de
competitividade industrial (LEVINE,1995:7-8). O ambiente competitivo requer a
utilizao de tecnologias progressivamente mais eficientes e retro-alimentado pelo
clculo consumista que exige a novidade dotada da crescente eficincia.
Outro aspecto marcante de nossa cultura baseado nas imagens em constante
movimento (ou fragmentao da experincia) que travestimos de novo prticas que foram
usuais no passado ou ento mudamos de opinies aos sabores dos acontecimentos. Dois
exemplos sero a seguir descritos e que melhor traduzem o significado da fragmentao da
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experincia. O primeiro mostra que esse fenmeno no se limita unicamente aos fatos
corriqueiros, mas abrange setores que, intuitivamente, se supunha mais sistematizados e
reflexivos sobre seus atos. caso do ambiente legislativo, marcadamente as constantes
emendas Constituio Brasileira, lei fundamental e suprema do ordenamento jurdico
nacional, que at 11 de novembro de 2009 teve 61 emendas promulgadas. Em termos
mdios, foi uma emenda a cada quatro meses desde a promulgao em 5 de outubro de
1988. Embora argumentos possam ser elaborados tentando demonstrar o porqu das
constantes modificaes constitucionais, como, por exemplo, a alegao de que o texto
constitucional por demais pormenorizado e que o processo de transformao social
vivido pelo Brasil desde a redemocratizao tem-se operado com imprevisvel rapidez,
contra-argumentos podem ser oferecidos afirmando que, talvez, seja mais fcil mudar a
constituio onde no se quer obedec-la. E aqui estamos na seara das opinies, sem
concordncia sobre a questo de a constituio ser definitivamente importante e dever ser
obedecida ou se repetimos a prtica adotada pelo Governo Regencial do Brasil em 1831.
Pressionado pela Inglaterra, promulgou lei declarando livres os escravos que aportassem
no Brasil desde ento e punindo severamente a prtica de trfico, lei que existiu apenas
formalmente, pois o trfico continuou por mais 20 anos, at 1852.
O segundo exemplo de fragmentao da experincia mostra como, sem habilidade
para correlacionar passado e presente, e dessa correlao estabelecer conseqncias para o
futuro, atribumos roupagem nova e desenvolvemos argumentos que apenas repetem
noes que esto profundamente arraigados em nossa cultura e que, ironicamente, so elas
exatamente as causas do problema que estamos resolvendo. Exemplifica deciso prolatada
por um tribunal brasileiro1, conforme segue: o municpio de So Leopoldo interps
apelao em Reexame Necessrio contra deciso que determinou a admisso de candidato
negro aprovado em concurso pblico pelo regime de reserva de cotas para afro-
descendentes. Na fundamentao da deciso que confirmou a admisso do apelado, o
Relator se apoiou no conceito de discriminao positiva, caracterizado pela adoo de
aes que protejam o gozo e o exerccio de direitos humanos e liberdades fundamentais por
parte de determinados grupos tnicos ou de indivduos em igualdade de condies com os
demais cidados. Refere-se, tambm, a substitutivo ao Projeto de Lei n 650/99, aprovado
1 Apelao Cvil 70023237878, 3 Vara Cvel da Comarca de So Leopoldo RS, de 10 de julho de 2008.
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pela Comisso de Constituio e Justia do Senado Federal em 17/04/2002, que pretende
instituir, por cincoenta anos e em percentual no inferior a 20% to total, cotas para negros e
pardos em concursos pblicos, nas universidades pblicas e privadas e nos contratos de
crdito educativo. Esquematicamente, os argumentos podem ser condensados na seguinte
hiptese: existem grupos sociais que no conseguem autonomamente exercer os direitos
inerentes cidadania e, para que esses direitos se tornem concretos, indispensvel a
proteo estatal. Questes como o porqu da ausncia da autonomia ou da
indispensabilidade da proteo estatal e conseqncias futuras dessa interveno no so
postas, mas dadas como evidentes. Tem-se um problema imediato e a resposta
igualmente imediata, sem a necessria conexo sistematizada com aes passadas e com
desdobramentos futuros. Alis, aqui o futuro parece estar deterministicamente
estabelecido: as conseqncias devem, obrigatoriamente, adequar-se s imagens que
supomos as mais adequadas na soluo da questo. Contingncias so priori ignoradas.
A anlise da histria do Brasil mostra, entretanto, que a mesma hiptese foi adotada
no perodo de consolidao da independncia. No debate entre conservadores e liberais, os
primeiros defendiam que, em um pas com uma populao no preparada, em termos de
instituies civis e mentalidade cvica, para se auto-governar, o Estado deveria assumir a
tarefa de propulsor da transformao poltica, em contraposio ao proclamado pelos
liberais, de educar o povo para o exerccio da cidadania (CARVALHO, 1991: 6). Se a
tradio colonial portuguesa criara cidados dependentes, caberia ao Estado a preparao
desses cidados para a liberdade, para o autogoverno. A viso conservadora foi
hegemnica e, cerca de 160 anos depois, o problema ainda se coloca. Mudou a cena
histrica, alteraram-se os atores, mas a relao hiptese-concluso continua a mesma.
nesse contexto especfico que a concepo de cidadania abordada nesta
dissertao. Se as diferentes opinies sobre o que seja cidadania so certas ou erradas no
constitui o ncleo da investigao. O objetivo reside na abordagem no fragmentada do
que possa constituir exercer o direito de cidadania. E para tal, urge visitar concepes
passadas desse conceito e entender as mudanas e motivaes por que passou at adotar as
roupagens presentes, caracterizadas no gozo de direitos.
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1.1. IMPORTNCIA DA CONCEPO DE CIDADANIA
A concepo de cidadania pode ser abordada sob duas ticas: cidadania terica e
cidadania prtica. A cidadania prtica aborda a forma como os direitos que compem a
rbita da cidadania so exercidos e respeitados no cotidiano das pessoas. Direitos so
importantes por que definem, de forma geral, comportamentos caractersticos dos membros
de uma sociedade, a denominada sociedade civil. De forma ampla, a Constituio Federal
de 1988, no art. 5, define os direitos individuais da pessoa. Mas os direitos no podem ser
concebidos apenas pela tica de propriedades incidentes sobre a figura da pessoa, como
explicita o pargrafo I do referido artigo (homens e mulheres so iguais em direitos e
obrigaes). Cada direito possui seu conjugado, que a obrigao de zelar e respeitar o
direito do outro. Se, como anteriormente destacado, paradigma de nossa poca cada
pessoa livremente desenvolver uma imagem que represente sua particular concepo de
vida e, a partir dela, expressar opinies que externalizem essa imagem (paradigma esse
constitucionalmente expresso como direito subjetivo pelos pargrafos IV liberdade de
manifestao do pensamento - e X inviolabilidade da imagem do art. 5), o equilbrio
entre o gozo do direito e a obrigao de respeitar o gozo alheio configuram possibilidades
de violaes que, em termos sociais, indicam patamares em que diferentes grupos sociais
de uma mesma sociedade respeitam ou tm sua cidadania concretizada. Por ser o locus
especfico para resoluo de controvrsias, o poder judicirio surge como meio adequado
para aferio de como as pessoas percebem o respeito aos seus direitos e aos de outras
pessoas, como indica o seguinte excerto de deciso judicial ocorrida recentemente2:
A funo jurisdicional transcende a modesta e subserviente atividade de
aceder aos caprichos e vontade do legislador, pois, (...), o Juiz no se
constitui em um simples tcnico que mecanicamente aplica o Direito em
face dos litgios reais, mas, buscando solucionar os conflitos de interesse
entre sujeitos de Direito, o magistrado aparece como uma verdadeira
fora de expresso social que se define pelo exerccio de uma funo
autnoma e irredutvel em relao s outras esferas de competncia do
2 Apelao cvil n 70016616732/2006, 19 Cmara Cvil, comarca de Bento Gonalves RS- 2006.
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Estado. (...)
Diferentemente da "declarao de 1789", (que proclamava os princpios
da liberdade, da igualdade, da propriedade e da legalidade), os direitos
fundamentais do homem (inclusive dos brasileiros) esto impregnados de
conotaes mais modernas, tais como: igualdade, dignidade, no
discriminao; direito vida, liberdade, ... . Do art. 22 at o art. 28, a
declarao Universal consubstancia os direitos sociais do homem, assim:
direito segurana social (que a humanidade levou sculos para
conquistar e que alguns dos projetos de reforma da Constituio,
propostos pelo Governo, querem simplesmente eliminar) e satisfao
dos direitos econmicos, sociais e culturais indispensveis dignidade
humana e ao livre desenvolvimento de sua personalidade; direito ao
trabalho, escolha do trabalho, condio satisfatria de trabalho e
proteo contra o desemprego, o salrio condigno, liberdade sindical;
moradia ...
Neste exemplo, um magistrado arbitra pela defesa do que denomina direitos
sociais dos homens e outorga aos juzes a funo de verdadeira fora de expresso
social que se define pelo exerccio de uma funo autnoma e irredutvel em relao s
outras esferas de competncia do Estado. Entretanto, o significado da tomada de posio
e a conseqente emisso de juzos valorativos somente podem ser consistentemente
analisados sob a tica de uma teoria da cidadania que estabelea parmetros comuns no
sopesamento dos argumentos prs e contrrios deciso. Por que, ao julgar fundado nos
direitos sociais dos homens, o juiz, de forma indissocivel, adotou uma noo de
cidadania sinnima de justia, ou, em termos aristotlicos, de medida entre pretenses
opostas. Como bem demonstra o excerto em seu incio, a funo jurisdicional transcende
a modesta e subserviente atividade de aceder aos caprichos e vontade do legislador,
direitos concorrentes (e no necessariamente opostos), que talvez outras pessoas
apontassem como mais adequados de serem declarados merecedores do voto do juiz,
podem ter sido preteridos, como o direito de propriedade, que no aparece na parte da
apelao transcrita, mas constituiu o motivo da disputa judicial. Tais controvrsias somente
podem ser valoradas no mbito de uma teoria da cidadania, que estabelea priori
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condies a serem satisfeitas pelas atitudes e aes dos membros da sociedade.
Em sentido diverso do acima exposto, mas ainda no campo da cidadania prtica,
pessoas podem emitir juzos que radicalizem as diferenas entre pessoas e atrelar direitos
diferentes para classes de pessoas diferentes. Neste contexto, teve incio em meados dos
anos 80 do sculo passado o desenvolvimento do direito penal do inimigo (JAKOBS &
MELI, 2008), que divide os nacionais em duas classes de sujeitos: aqueles que aceitam a
existncia do Estado e que, portanto constituem seus cidados, com direitos e deveres
constitucionalmente definidos e garantidos, e aqueles que propugnam a destruio estatal
junto com o modelo social que representa, no podendo, em conseqncia, receber a
denominao de cidados. A estes cabe a classificao de inimigos, com a implementao
estatal de regras penais radicais que permitam a defesa efetiva do modelo social vigente.
Embora razes tericas sejam apresentados na justificativa do direito penal do inimigo,
estas justificam aes dirigidas contra pessoas especficas que se supem no estarem aptas
a participar da sociedade civil. Mesmo tais excees (e a caracterstica principal dessa
formulao de ser um direito de exceo e excluso) requerem uma teoria geral e
abrangente da cidadania que enfoque o enquadramento argumentativo em parmetros
racionalmente estabelecidos em detrimento do elemento puramente emocional.
Por terem formulado teorias gerais e abrangentes sobre a sociedade civil nos
regimes democrticos contemporneos, trs autores e trs respectivas obras norteiam os
rumos desta dissertao. So eles: John Rawls e o livro Uma teoria da justia (RAWLS,
2002), situado no campo da filosofia moral (ou tica moral) que orienta as formas como as
instituies devem se comportar em sociedades bem-formadas; Ronald Dworkin e
Levando os direitos a srio (DWORKIN, 2002), que defende o argumento de que
decises judiciais devem ter origem em um princpio comum que impea decises to
somente baseadas na utilidade de resultados ou em preferncias polticas; e Robert Dahl
com Um prefcio democracia econmica (DAHL, 1990), que define os parmetros a
serem preenchidos pelas modernas democracias do mundo ocidental, nas quais o Brasil se
inclui, de modo a permitir a participao com justia na formao e desenvolvimento
desses pases. Esses autores no esto diretamente preocupados com uma teoria geral e
abrangente da cidadania, como o fez Aristteles na Antigidade sob a tica da poltica
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(ARISTTELES, 1997), mesmo por que a cidadania uma condio assumida em suas
obras, mas desenvolvem argumentos que especificam sob que condies, nos regimes
democrticos contemporneos fundados na economia de mercado, possvel a constituio
do cidado livre em sua vontade e autnomo em suas aes. Essas teorias, de certa forma,
se interligam por permitirem a apropriao de elementos comuns suficientes para a
sistematizao de uma teoria racional ampla e abrangente da concepo de cidadania.
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1.2. DELIMITAO DOS OBJETIVOS
A motivao central desta dissertao so as caractersticas que assume a cidadania
hoje no Brasil. Mas para essas caractersticas no se apresentem como aspectos
fragmentados da experincia, urge a sistematizao, pelo enfoque lgico-analtico da
experincia histrico, das diversas formas como a cidadania foi concebida em pocas
distintas em respostas s necessidades prprias desses tempos. Por que, se a cidadania hoje
pode ser expressa em termos de direitos e obrigaes, do qual exemplo eloqente encontra-
se no Cdigo de Defesa do Consumidor, que regula direitos de consumo, nem sempre foi
assim. No Brasil imperial, mais especificamente no Perodo Saquarema (CARVALHO,
1991), direitos civis foram claramente diferenciados em relao a direitos polticos e estes
ltimos receberam especial tutela estatal. Assim, talvez de forma um tanto quanto
arbitrria, mas delimitada por narrativas que se supem fundamentais na gnese da
cidadania enquanto modo prescritivo de comportamentos sociais, trs vrtices na histria
universal foram estabelecidos para, tomados como paradigmas, situarmos os momentos de
transformaes da concepo de cidadania no Brasil ps-independncia. Na histria
universal, o primeiro vrtice emana da concepo aristotlica de cidadania, de feies
elitistas e centrada na participao poltica. O segundo vrtice surge no sculo XVII, com
as narrativas hobbesianas que se opem aristotlica e estabelecem a igualdade na
liberdade entre os homens pela eleio do soberano como nico ser, depois de Deus, capaz
de dizer o certo e o errado nas relaes intra-sociais. Sob o aspecto da igualdade na
liberdade para aes e comportamentos sob a gide do soberano nasce a moderna
concepo de sociedade civil, com a figura do soberano-rei, enquanto fonte das normas e
das leis, substituda pela soberania estatal (e correspondentes constituies) no mundo
contemporneo. Finalmente, o terceiro vrtice funda-se nas Revolues Francesa e
Americana, que iniciaram a tradio at hoje majoritariamente seguida das liberdades
individuais e democracias republicanas. Inspirador da Revoluo Francesa, o filsofo,
escritor e poeta Jean-Jacques Rousseau concebeu a moderna concepo da cidadania
poltica como autogoverno e , tambm, um dos inspiradores dos escritos de filosofia
moral de John Rawls sobre sociedades bem-formadas.
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As narrativas brasileiras que retratam o desenvolvimento da cidadania no perodo
ps-independncia encontram, sob diversos aspectos, analogias nas narrativas universais. A
primeira delas est centrada no perodo Saquarema, poca em que a independncia j est
consolidada. Tal qual a cidadania aristotlica, uma cidadania poltica de natureza elitista,
onde amplos setores da populao, aqui inclusos os escravos, esto alijados de seu
exerccio.
O segundo vrtice surge com o Estado Novo de Getlio Vargas, com a tutela da
cidadania de natureza corporativa, ensejando a posterior configurao desse tipo de
cidadania como cidadania regulada por Wanderley Guilherme dos Santos (SANTOS,
1979). semelhana do modelo hobbesiano, o soberano-estado unilateralmente decide e
implementa constitucionalmente os direitos dos cidados-trabalhadores. O exemplo tpico
desse perodo o incio do direito de natureza trabalhista.
A terceira narrativa tem seu centro na Constituio Federal de 1988, baseada na
igualdade de direitos entre todos os cidados e encontra semelhanas na declarao dos
direitos do homem e do cidado da Revoluo Francesa. Marco desta fase, o Estado passa
a ser visto como resultado da vontade conjunta dos cidados e no como representante de
interesses especficos. Para tanto, necessita no apenas promover a racionalizao na
utilizao dos recursos pblicos e incentivar a competio entre atores econmicos em prol
do desenvolvimento social, mas assumir o papel de ferramenta de concretizao do modelo
democrtico ao contrapor-se ao funcionamento fechado de seus rgos ou existncia de
privilgios injustificveis. Decorre dessa mudana de paradigma estatal que o cidado no
mais pode ser concebido como beneficirio passivo de direitos tutelados pelo Estado,
reivindicando condies de bem-estar e sem se envolver construtivamente na gerao
desses benefcios. Tambm o Estado precisa ter capacidade de decidir administrativa e
gerencialmente e ser capaz de implementar decises, o que se convencionou denominar
por governana, que, em ltima instncia, caracteriza um Estado forte do ponto de
vista fiscal (fechamento contbil entre receitas e despesas), administrativo e de
legitimidade poltica, sempre tendo por objetivo final a consolidao e fortalecimento da
cidadania (CARDOSO, 1998).
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1.3. MTODO DA INVESTIGAO
praxe de a pesquisa jurdica limitar-se doutrina e jurisprudncia. Mas, assim
procedendo, esta dissertao teria por foco a cidadania prtica. Mas, por situar-se na
Filosofia do Direito, seu foco expande-se para o mbito analtico-sistemtico e abarca
conceitos prprios da filosofia moral, da interpretao histrico-valorativa e da prpria
filosofia jurdica. O objetivo, nesta perspectiva, desenvolver a modelagem analtica que
permita detalhar conceitualmente e valorar casos concretos de forma no fragmentria e
no anacrnica, identificando a cidadania como concepo intimamente associada ao
estgio de desenvolvimento social e com os problemas enfrentados pelas sociedades
durante suas diversas fases existenciais. Nesse percurso, como j citado anteriormente, o
objetivo compreender racionalmente a fase presente do Brasil como nao integrante do
mundo ocidental.
A justificativa central do modelo investigativo a pessoa caracterizada como
cidado e sua insero harmnica no ambiente social, expressa na relao do ser com o
dever-ser. O ser se expressa na existncia concreta de pessoa, adjetivada como cidad ou
no, e seus condicionamentos. Essa relao j se configurava na teoria de Aristteles, na
caracterizao da pessoa de acordo com possibilidades empricas de existncia e sua
idealizao pelas prescries de comportamentos que permitissem alcanar o ideal de
beleza e bem-estar da plis. uma teoria focada na igualdade entre cidados gregos, no
entre indivduos. Sob as fronteiras em que a democracia grega floresceu, a escravido no
representava contradio, mas, pelo contrrio, condio de possibilidade ao liberar o
cidado do trabalho no-intelectual e do comrcio para dedicao s tarefas polticas. Da o
fato de representar um anacronismo julg-la por parmetros contemporneos, ignorando os
valores especficos daquela poca e cultura. O dever-ser, enquanto ideal normativo,
centrava-se na pessoa, mas as dividia em classes: pressupunha a continuidade das pessoas
classificadas em escravos, em comerciantes e cidados gregos. Da harmonia entre esses
elementos dependia a configurao e beleza da plis.
A teoria social de Thomas Hobbes assumiu o carter de igualitarismo. Todas as
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pessoas gozam de liberdade igual e so signatrias do Contrato Social sob supremacia do
Soberano. O dever-ser est expresso na necessidade de garantia para a paz e segurana
sociais, somente alcanveis sob a configurao do homem racional que entende que sua
vontade somente pode concretizar-se na medida da harmonizao com a vontade de seus
concidados. Onde a vontade absoluta predomina a conseqncia o estado de natureza,
em que o caador de hoje pode ser a presa de amanh, no repetir de ocorrncias sem fim. A
abordagem metodolgica diferente em relao aristotlica, mas a motivao igual: a
preocupao com a pessoa.
Com origem no Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau e o declnio na
confiana nos atos do Soberano, o enfoque no arqutipo de pessoa expandiu-se. O dever-
ser social requer, alm da igualdade formal (ou terica), a igualdade de oportunidades para
gozo das riquezas somente produzidas com a participao de todos via diviso social do
trabalho. A responsabilidade de manuteno da paz social deslocou-se do Soberano para o
Direito e as figuras imparciais dos juzes. O Direito assume o papel de fiador da liberdade
e garantidor de sua eficcia. Esta transformao tem conseqncias profundas na
concepo de pessoa. Em Aristteles a procura da virtude que melhor expressasse o que se
entendia por pessoa feliz se concretizava na contemplao passiva da natureza humana,
que necessariamente tendia para a realizao de suas potencialidades. Hobbes rompe com a
concepo de Aristteles e afirma que tudo no mundo movimento. Para que esse
movimento desordenado, representativo de caos, seja sistematicamente compreendido e
passvel da predio, preciso enquadr-lo em um sistema de referncias, como Descartes
propusera para a matemtica. O clculo das aes adquire contornos em um sistema que,
semelhana do quadro referencial cartesiano de ordenadas e abscissas, situe o Soberano
como varivel independente e os cidados como variveis dependentes. O rei normatiza os
espaos onde os cidados exercem suas aes. O equilbrio social advm do encontro da
vontade do rei com a do cidado. Posteriormente, com a substituio do Soberano pelo
Direito, o ordenamento jurdico torna-se o sistema de referncia (Art. 5, II - ningum
ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei da
Constituio de 1988) e seu objeto configura-se na harmonia entre as liberdades individual
e social (Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza - 1 parte do
art. 5). O ideal de Rousseau de o cidado somente obedecer s leis gerais que ele prprio
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editar configura-se na eleio dos legisladores.
Ao Direito cabe a tarefa de interpretar sistematicamente as leis e adequ-las aos
casos concretos, diluindo as diferenas entre a expresso da liberdade enquanto teoria e a
expresso da liberdade enquanto prtica. Para atribuir contornos menos diludos ao que
seja a liberdade, os direitos surgem como elementos configuradores de seu significado.
Direitos e obrigaes no so elementos atomizados, mas partes simtricas em torno de um
eixo consensual cuja referncia o ordenamento legal. Nesse contexto, configura-se como
non-sense listar direitos como elementos atomizados ou privilgios, servindo apenas para
apontar a fragmentao da experincia. Se, por exemplo, o pargrafo IV do art. 5 da
Constituio estabelece que livre a manifestao do pensamento, isso no significa que
os concidados sejam obrigados a presenciar sua manifestao ou aceit-lo, pois deixaria
de configurar um direito para transformar-se em imposio. Ao direito de manifestao do
pensamento corresponde o ato simtrico e pacfico de respeitar a recusa de aceitao do
outro. O eixo sob o qual a simetria determinada jaz no consenso de que todos gozam do
direito de manifestao em igual proporo ao direito de recusa e, violado esse consenso,
ao Direito cabe pacificar as relaes entre as partes.
So os argumentos de autores que se supem representativos das diversas
configuraes sociais democrticas contemporneas3 que embasam a presente dissertao.
Sociedades de cunho no-democrtico no so abordadas, bem como as concepes de
cidadania oriundas da filosofia de procedncia marxista. Alm disso, somente aqueles
conceitos que, de uma forma ou de outra, expressem a realidade brasileira foram
considerados, Se comparaes com outras sociedades contemporneas aparecem ao longo
do texto, tal fato visa to somente enfatizar a realidade vivida no Brasil.
Finalmente, a dissertao centra-se na interdisciplinaridade entre direito, filosofia
moral, filosofia poltica e histria. Alis, o local privilegiado em que se tecem os
argumentos o do direito, mas este aparece mais como o fiador institucional de posies
surgidas em outros ramos do conhecimento, como filosofia e a cincia poltica. Embora
grandes tericos do passado sobre os direitos dos homens, os chamados direitos naturais,
3 Uma definio tcnica de sociedade democrtica pode ser encontrada em MARSHALL e JAGGERS(2007).
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tenham sido juristas, como Samuel von Pufendorf, com o advento do direito codificado (ou
positivo) a rea jurdica deslocou-se da esfera puramente criativa para a esfera
interpretativa, alargando e legitimando noes que se situam especificamente em seu
campo de ao (da, talvez, a idia de que os tribunais, para atuarem, precisam da
provocao). Tal fato no representa, sob hiptese alguma, demrito para os atores
jurdicos, mas apenas conseqncia da diviso de funes presentes nas modernas
sociedades. Desenvolvida e positivada a concepo abstrata, cabe ao direito a guarda de
sua integridade e obedincia, interpretando-a ao caso concreto.
No captulo 2 as narrativas sobre cidadania de Aristteles e Hobbes so
examinadas. Os elementos que se supem comporem o ncleo da cidadania contempornea
so extrados de autores como Rawls, Dworkin e Dahl, em abordagem interdisciplinar
entre filosofia moral, filosofia jurdica e filosofia poltica.
No captulo 3 as fases que identificam as transformaes sofridas pela concepo
de cidadania no Brasil ps-independncia so abordadas. So elas de natureza poltica (no
Brasil imprio), econmica (incio no Estado Novo e trmino com a redemocratizao do
Brasil, mais especificamente com a Constituio de 1988) e ps-1988, com a
redemocratizao do Pas.
No captulo 4 a cidadania enquanto correlao entre direitos e obrigaes
abordada para, no captulo 5 serem levantadas algumas hipteses sobre a espetacularizao
da cidadania, fenmeno que aponta para a transformao dos cidados em platias para
projetos de poder de polticos profissionais.
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2. NARRATIVAS UNIVERSAIS SOBRE CIDADANIA
Inicialmente, um posicionamento sobre o olhar para o fenmeno histrico precisa
ser explicitado. A cidadania requer a identificao das necessidades prticas enfrentadas
por cada configurao social de modo que possa racionalmente ser situada, evitando
posicionamentos anacrnicos. Afirmar que determinado regime de governo foi imperfeito
porque tolerou a escravido, por exemplo, representa olhar e julgar a partir de conceitos
contemporneos prticas que, ao tempo que existiram, sculos atrs, eram perfeitamente
legais e moralmente corretas. Representa mais uma afirmao emotiva do que
argumentao racional. Por outro lado, isso no significa que determinados conceitos
surgidos ou desenvolvidos nesses tempos no sejam positivamente valorados atualmente.
Embora na poca estivessem restritos aos cidados, os conceitos gregos de isonomia (todos
submetidos em igual medida s mesmas normas) e isegoria (todos tm o mesmo direito de
manifestar livremente o pensamento pelo discurso), sob ponto de vista semntico,
continuam vlidos, com ambos apresentando correspondncias na Constituio de 1988
(art. 5, I - homens e mulheres so iguais em direitos e obrigaes, e IV - livre a
manifestao do pensamento).
A primeira referncia histrica ao conceito de cidado (etimologicamente filho da
plis, ou indivduo que pertence cidade e nela reconhecido) situa-se na Grcia antiga,
mais precisamente no pensamento de Aristteles, autor que abordou sistematicamente as
relaes sociais da poca e nas quais uma particular concepo de cidadania se apresenta
como elemento legitimador das prticas da vida comunitria. Embora atualmente a
cidadania esteja intimamente correlacionada com direitos e justia (SADEK, 1977; 2000;
2005), na Grcia antiga implicava um modo tico de ser e agir do homem grego,
concretizada na participao poltica no traado dos destinos da plis e a classificao das
pessoas em classes, com diferenciao nas correspondentes funes sociais, denotava a
estrutura capaz de atender as necessidades prticas do cotidiano.
Na inter-relao dos elementos constitutivos da cidadania grega, as noes
consenso e utilidade funcionam como o elo de unio que permite a sistematizao e
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coerncia na concepo final do cidado e sua participao nos destinos da plis. Ao
mesmo tempo em que til para a cidade, o cidado til a si mesmo pela realizao da
possibilidade apenas latente de experimentar a felicidade e ser honrado. Mas a utilidade
apenas se realiza pelo consenso de idias e, nesta, o sujeito precisa confrontar a maneira
como se v a si mesmo e aos outros com a idia simtrica de como os outros o vem. O
consenso resulta no equilbrio entre ver e ser visto e, por conseqncia, somente pode
existir em ambiente de coletividade.
Essas noes aparecem em todas as narrativas citadas nesta dissertao e parecem
configurar o que se poderia hipoteticamente delimitar como caracterstica da cidadania
enquanto linguagem universal para expresso de necessidades prticas pontuais dos
grandes agrupamentos humanos e necessidades igualmente importantes de exteriorizao
dos anseios de liberdade e modelagem do mundo de acordo com intuies do que seja o
bem e o justo. As grandes narrativas, tanto universais, por que julgadas representativas da
vontade e igualdade entre todos independentemente da nacionalidade, quanto as
particulares, por que representam vises dos caminhos a serem trilhados para que se
fundam nas universais, se inserem no contexto da cidadania enquanto linguagem universal.
pela utilizao da cidadania enquanto linguagem universal que a delimitao dos
espaos onde a cidadania se torna possvel, no apenas como ideal, mas como prtica
difundida no dia-a-dia das pessoas, que se forja uma consenso geral do que signifique ser
pessoa e quais condies necessitam ser satisfeitas para que noes como dignidade, honra
e comportamento tico no sejam violados ou ofendidos. A rea imaginria delimitada pelo
acordo consensual especifica as fronteiras no interior das quais os cidados podem livrem
exercer sua aes sem impedimentos alm daqueles por eles mesmos impostos por
intermdio de regras de condutas. O consenso significa para o cidado que ele no livre
para agir e conduzir-se irrestritamente, mas deve pautar-se por aqueles princpios e normas
livremente compactuados com seus concidados. Na filosofia poltica e moral, Thomas
Hobbes (HOBBES, 2003) foi o primeiro a defender o consenso de renncia liberdade
ilimitada em favor do soberano. Em contrapartida, este determinaria, por intermdio da
edio de leis de condutas, o espao onde o seria possvel o cidado exercer, com
segurana e proteo, sua vontade e liberdade agora condicionada. Rawls (RAWLS, 2002)
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desenvolveu a argumentao do vu de ignorncia, em que o sujeito no conhece a
posio que ocupar na escala de benefcios da organizao social, para legitimar a
necessidade de consensos sobre regras de procedimentos. Esses acordos consensuais, sob a
tica de fundamentos, aproximam-se da renncia liberdade ilimitada defendida por
Hobbes. Os participantes renunciam queles aspectos de suas vontades que so inaceitveis
por outros, da mesma forma que outros participantes tambm renunciam aos aspectos que
no podem ser aceitos por todos, de modo a permitir um espao compartilhado (e por isso,
pblico) onde o bem coletivo predomine.
Enquanto Hobbes formulou sua teoria em funo das guerras que assolavam a
Inglaterra e a defendeu como nica soluo vivel para o retorno paz e prosperidade,
Rawls adotou o caminho seguido por Rousseau (ROUSSEAU, 1978b), de procedncia
iluminista, de elaborao abstrata dos fundamentos que legitimam a teoria. Mas, se tal
procedimento pode ser acusado de irreal ou apenas demonstrativo de um ideal especfico,
nem por isso a noo de consenso perde importncia. Importante terico da
contemporaneidade, que manteve acentuado debate com Rawls, Jrgen Habermas tambm
tem no consenso um dos fundamentos de sua teoria (HABERMAS, 1998). Para ele, a
caracterstica principal da democracia no se encontra na crena de prevalncia das regras
das maiorias, mas por que, fundamentalmente, as pessoas se renem, discutem, tanto
concordam quanto discordam e se conciliam em consensos. Por maiores que sejam as
divergncias de opinies, existe algo sobre a qual precisa haver um consenso mnimo: as
pessoas vivem em um mundo concreto e, para que seja possvel a convivncia pacfica,
sobre aqueles pontos necessrios ao bem-estar preciso haver concordncia, ou consenso.
Mas qual o porqu da cidadania se aproximar, estruturalmente, da forma de uma
linguagem universal?
Qualquer meio sistemtico para a comunicao de idias ou sentimentos pelo
intermdio de signos de qualquer natureza constitui uma linguagem (HOUAISS, 2009).
Nessa conceituao, o Portugus, como a Matemtica e a Cidadania so linguagens.
Gramaticalmente, o Portugus existe, a Matemtica ou existe e a Cidadania . O
Portugus existe na medida em que as pessoas falarem portugus, mas, em uma hiptese
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extremada em que fosse substituda entre seus praticantes por outra lngua, como o ingls,
o francs ou o alemo, com o passar do tempo e em termos da simples troca de linguagens,
tal fato no teria maiores conseqncias. Representaria processo semelhante ao ocorrido
com o latim, lngua oficial da Repblica Romana. Utilizado e difundido pela Igreja
Catlica, foi uma lngua universal na Idade Mdia e parte da Moderna. Foi, tambm, meio
de comunicao obrigatrio entre acadmicos e filsofos europeus medievais, e,
atualmente, empregada apenas em crculos restritos, como a Igreja Catlica, mas no
como lngua materna. A Matemtica apresenta duas linhagens de abordagens: um ponto de
vista que considera que os princpios matemticos so descobertos, apresentando
existncia prpria, e outra que tais princpios so criados, existindo apenas na esfera
intelectual. Os membros do primeiro grupo recebem a denominao de Platonistas, ou
ponto de vista Absolutista e, para esse conjunto de matemticos, a Matemtica . Aos
membros do segundo grupo o da criao classifica-se de posio construtivista: a
matemtica inventada pelos matemticos e, portanto, existe, da mesma forma que o
portugus criado e modificado por seus praticantes. No tocante Cidadania, ela ! Est
indissoluvelmente associada condio humana e foi descoberta pelos gregos, embora
negada maioria da populao no incio de sua vigncia. Mas isso faz parte do processo de
descoberta e afirmao de uma linguagem enquanto fenmeno social. O oposto da
cidadania, a escravido4, tem sua existncia inconcebvel na atualidade, tanto que textos
legais, como o Cdigo Penal Brasileiro (Art. 149), no mencionam a possibilidade de
ocorrncia de situaes de escravido, mas de condio anloga de escravo, pois, admitir
a existncia deste seria negar a condio de cidadania de toda pessoa nascida sob jurisdio
de um estado determinado. Alis, todos os sistemas jurdicos contemporneos consideram
abstratamente a cidadania uma pr-condio para a prpria existncia do Estado, como
afirmado explicitamente no Art. 1, Pargrafo II, da Constituio Brasileira de 1988. De
modo sintomtico da importncia das vises transmitidas pela tradio e do falar entre as
geraes, esta constituio, por priorizar a explicitao dos direitos dos cidados em
relao s constituies brasileiras anteriores, no ficou livre totalmente do modelo de
dirigismo estatal naquelas predominantes: a cidadania est enumerada aps o princpio da
4 Embora gramaticalmente, de acordo com o Houaiss, o antnimo de escravo seja liberto, livre, enquantoadjetivo essa palavra designa aquele (ou aquela) que inteiramente submisso a um poder que lhe externo (externa), como um senhor. Ora, a significao de Rousseau (ROUSSEAU, 1978) para acidadania exatamente no estar submetido a nenhum tipo de poder alm daquelas regras que a prpriapessoa elege como adequada para sua vida em sociedade. Alm do mais, algum pode no dispor daliberdade, como uma pessoa legalmente cumprindo pena em uma priso, mas nem por isso ela escrava.
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soberania, mesmo por que, como explicitamente descrito no pargrafo nico deste mesmo
artigo, o poder poltico nasce no povo, ou conjunto de cidados da nao. Da, um
entendimento de que o primeiro fundamento da repblica deveria repousar na cidadania e
no na soberania. Mas, de qualquer forma, a ordem de colocaes serve como alerta: a
cidadania , abstratamente, garantida pelo direito, enquanto coleo de predicativos que
afirmam propriedades do sujeito. Mas a realizao concreta da cidadania fica a cargo de
cada um dos sujeitos individualmente considerados, como caracterstica fundamental das
linguagens. A fluncia em qualquer lngua exige sua prtica e estudo, em um processo que
perpassa a existncia de cada nome prprio.
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2.1. FILOSOFIA E CIDADANIA EM ARISTTELES
Para abordar a cidadania na perspectiva grega torna-se necessrio compreender sob
que tica desenvolveu-se a filosofia de Aristteles, pois foi este o autor, dos escritos que
chegaram at o mundo contemporneo, aquele que mais tratou de forma sistemtica sobre
a cidadania. Em oposio a Plato, que centrou sua filosofia no Cosmos, ou no
especulativo, Aristteles preocupou-se com o mundo concreto, emprico, na esfera humana
da vida em oposio divina, sem, porm, esquecer as justificativas tericas para seus
posicionamentos. Abordou relaes que seriam hoje denominadas de jurdicas, mitigando
tanto a desigualdade quanto a igualdade de natureza matemtica em favor da
proporcionalidade. Classificou a justia em geral (ou moral e poltica) e particular (aqui
especificamente jurdica, de atribuir a cada um o que lhe pertence). Priorizou os modos de
ser do homem, fornecendo regras para preservao das instituies e luta contra a
corrupo (CUNHA, 2009). O objetivo de Aristteles no se dirigiu a algo absoluto, ideal;
ao contrrio, visou to somente a felicidade humana. Sua teoria poltica, em que o cidado
figura central, tem lugares delimitados, no utpicos, com povo, vizinhanas, classes
sociais e objetivos definidos: prover cada comunidade, por intermdio de uma constituio
prtica, da forma de existncia que melhor bem-viver lhe proporcionar. Para Aristteles, tal
constituio somente seria alcanada por meio da poltica e, da, sua figura central, no
papel do cidado, quer conceituado em termos ticos (ou tericos), que se realiza na
educao pelas virtudes, ou caminho para a felicidade, quer na esfera ftica, pelas aes e
procedimentos no interior da plis. Se a maior felicidade a vida contemplativa racional,
tambm, de algum modo, o 'andar a procur-la' () na vida poltica (de acordo com as
virtudes) pode constituir um segundo nvel de felicidade (CUNHA, 2009). Se todas as
coisas possuem uma finalidade, ou teleologia, a do homem, expressa na felicidade, s se
realiza pela utilidade do exerccio da cidadania. Se na matemtica e nas cincias naturais a
certeza de ordem racional, no exerccio da cidadania, expressa pela poltica, de natureza
tica. Caracteriza-se pela justa medida na utilizao dos elementos requeridos pela vida
material e na prudncia e equilbrio proporcionados pela experincia, elementos capazes de
melhor expressar o que se entende por bem ou aquilo que bom. Para Aristteles, o
bem, ou aquilo que bom, um fim perfeito em si mesmo, tornando a presena de
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outros adjetivos dispensveis. Sua conseqncia prtica a felicidade, donde ser cidado
na plena acepo da palavra ser feliz, caracterstica em potencial da existncia humana.
Ser feliz, em um primeiro momento, ter honra, aqui apartada do mero prazer. O prazer
encontra sua maior expresso entre os escravos, a plebe e alguns membros das classes mais
abastadas. A honra tambm se distingue da riqueza, que deveria ser valorada como meio
para alcance da felicidade e no como fim em si mesmo. Por expressar, em um primeiro
momento, a felicidade e, por isso, estar indissoluvelmente ligada Poltica, a honra
virtude pessoal encontrada mais nos que honram do que nos que so honrados por outras
pessoas. Entretanto, a honra expressa somente parcialmente a felicidade, porque podem
existir pessoas honradas e infelizes. Mas o verdadeiro cidado, aquele que souber
aproveitar das virtudes intelectuais representadas pela educao, pelo raciocnio lgico e
pela prudncia, e das virtudes morais, representadas pela liberalidade e moderao, em
benefcio dos concidados na busca pelo Bem, no ter como no ser feliz.
Em termos menos filosficos e mais prticos, a cidadania configurava-se como
condio e referncia para a participao poltica no governo da plis. Em Atenas, grupos
relativamente pequenos de pessoas (necessariamente cidados), em relao ao total de
habitantes da cidade (no-cidados, ou escravos, comerciantes, mulheres e estrangeiros),
reuniam-se em assemblias e detinham o monoplio de debater e oferecer solues aos
problemas da cidade. Todos estavam sujeitos s mesmas normas e todos tinham igual
direito de manifestao da opinio. Pela discusso racional e clara obtinham-se os
consensos sobre as solues para os problemas da plis.
A execuo das tarefas correspondentes s solues era delegada aos magistrados,
periodicamente selecionados entre aqueles cidados que aspiravam tal cargo. Eles sabiam
de antemo que suas atividades estariam sob constante vigilncia das assemblias e que
eventuais incompetncias na execuo das tarefas que lhe haviam sido atribudas estariam
sujeitas a severas sanes (MANIN, 1997). Essa era uma importante caracterstica da
democracia e cidadania, pois, para os gregos, o cidado, mais do que haver nascido na
plis, era definido pela participao no poder de julgamento e no poder de comando
(ARISTTELES, 1997).
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Se o poder de comando derivava das aes dos magistrados, escolhidos
periodicamente dentre os membros das assemblias, ou podia eventualmente derivar
diretamente destas, o poder de julgamento era prerrogativa exclusiva dos membros das
assemblias, que eram a mais forte expresso concreta do exerccio da cidadania. Manin
(MANIN, 1997:23) descreve o processo de exerccio do poder de julgamento que, de modo
simplificado, pode ser expresso da seguinte forma: No incio de cada ano, as leis vigentes
eram submetidas apreciao das Assemblias de cidados. Se qualquer delas fosse
questionada pela Assemblia, qualquer cidado deveria propor uma substituta e cinco
outros cidados ficavam encarregados de defender a rejeitada, originando o contraditrio
entre as partes. Adicionalmente, qualquer cidado, ao longo do ano, poderia
justificadamente propor a substituio de uma lei por outra. O processo de escolha de
cidados para defenderem a lei em pauta e conseqente contraditrio repetia-se. Para as
leis vigentes, seis magistrados detinham a incumbncia de supervisionar suas aplicaes,
com os casos de invalidades na aplicao concreta ou conflitos entre leis submetidos
apreciao da Assemblia, que poderia ento iniciar o processo de reviso como descrito
acima.
Para ser cidado, segundo Aristteles, alguns requisitos deveriam ser preenchidos,
sendo o principal deles aquilo que modernamente se define como competncia pessoal: a
capacidade de no apenas exercer o papel de governante quando necessrio, mas tambm
saber portar-se como governado. O fundamento da democracia grega residia no na
existncia de governantes e governados, mas na possibilidade de cada cidado ocupar as
duas posies alternadamente (MANIN, 1997:28), que caracteriza um outro conceito
umbilicalmente associado ao de cidadania, alm do de igualdade entre cidados gregos: o
de liberdade: Uma das formas de liberdade governar e ser governado alternadamente.
() a excelncia do todo bom cidado a capacidade de comandar bem e obedecer bem.
(...) Somente pode comandar bem aquele que tambm demonstrar a capacidade de
obedecer bem. (Aristteles apud MANIN, 1997:28). Da decorrerem algumas
conseqncias importantes da concepo de cidadania: somente sob condies de governos
democrticos (sob a concepo grega de democracia, ou de liberdade e possibilidade do
cidado ser governante e governado em ocasies distintas) a cidadania torna-se concreta,
pois esta a forma de governo adequada para que os cidados exeram o princpio
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democrtico (tenham liberdade e possibilidades de exercerem os papis de governantes e
governados). Os cargos pblicos devem ser limitados no tempo, com rodzios na suas
ocupaes. Nesse contexto, as concepes modernas de liberdade (em termos gerais) e
igualdade entre todos se figura como anacrnica realidade dos gregos antigos. Para estes,
no era logicamente possvel atribuir ao dependente economicamente de outrem (no
necessariamente escravo) ou ao estrangeiro a possibilidade de ser cidado, j que, entre
classes, essas pessoas concretamente no eram iguais. De onde viriam o desenvolvimento
das competncias necessrias ao exerccio do governo em quem no dispunha nem de
educao nem da prpria liberdade de conduzir autonomamente sua existncia? Mesmo
entre os cidados, a melhor ocasio para serem governados situava-se na juventude e
primeiros anos da vida adulta, ocasio adequada para o aprendizado obedincia, com os
mais velhos, pela experincia de vida passada, apresentando maior obedincia para o
comando. Essa era a caracterstica diferenciadora dos gregos e demais povos na
Antigidade. Entre estes, os reis governavam vitaliciamente e o povo se limitava a
obedecer (Aristteles apud MANIN, 1997:29).
O que precisa ficar claro na concepo de cidadania dos gregos antigos que, alm
de uma classificao jurdica que separava as pessoas em escravos e dependentes, metecos
(estrangeiros) e cidados, decorrente da constatao emprica de que as pessoas
apresentavam-se dessa forma desde tempos imemoriais, a cidadania se configurava como
habilidade pessoal a ser desenvolvida e exercida coletivamente, configurando aquilo que,
modernamente, podemos denominar de caractersticas psicolgicas do indivduo. O
exerccio da cidadania, mais que condio, exigia responsabilidades e comprometimentos
livremente assumidos pela pessoa em prol do bem comum, tendo por fundamento a
possibilidade de que, no mbito do ideal democrtico grego de cada um viver como da
melhor forma o desejasse, as aspiraes individuais necessitariam estar coletivamente
harmonizados nas decises majoritrias. O no cumprimento das obrigaes pessoais
necessariamente redundava em debates nas assemblias sobre a culpa ou no do acusado,
resultando em punies que podiam terminar no exlio ou na morte, dependendo da
gravidade da acusao.
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2.2. FILOSOFIA E CIDADANIA EM HOBBES
Em 1651 foi publicado na Inglaterra O Leviat, uma das obras mais importantes
da filosofia poltica ocidental, seno a mais importante (pelo menos na viso de Leo
Strauss (LEVINE, 1995: 121)), por representar a primeira empreitada bem sucedida da era
moderna em oferecer resposta ao que o bem da vida e relacion-la com a correta
ordenao da sociedade, de tal modo que a economia, a antropologia, a cincia poltica e a
sociologia contemporneas nada mais so que elaboraes, revises ou substituies da
cincia social iniciada pelo filsofo ingls Thomas Hobbes (LEVINE,1995:121). Para
Hobbes, a ordem hierarquicamente estabelecida na sociedade e que atinge seu vrtice no
rei, , racionalmente, a melhor das ordens possveis. Em crtica direta a Aristteles, Hobbes
consumou o posicionamento j latente desde Maquiavel de que o guia da ao no deve
repousar em noes idealmente elaboradas do que seja a vida humana, mas na crua
realidade de como os homens agem e pensam no decorrer da vida cotidiana. Em
contraposio idia aristotlica de que a contemplao racional o estado prprio da
natureza humana, Hobbes, influenciado pelos novos desenvolvimentos cientficos de seu
tempo, como a fsica de Galileu e os desenvolvimentos na Geometria, adaptou tais
princpios psicologia e defendeu que, assim como o Universo no esttico, tambm a
natureza humana encontra-se em permanente ebulio originadora de desejos ilimitados.
Em termos morais, Hobbes deslocou a tica da esfera das virtudes e valores aristocrticos,
como defendia Aristteles, para o campo das igualdades fundadas na justia, j que, ao
depositar no rei a fonte da legislao e da proteo social, por meio de um contrato social,
todos se tornam iguais em oportunidades e benefcios sociais. O principal destes benefcios
o controle do desejo insacivel de poder e a evitar a morte violenta causada pela mtua
predao. Se antes do contrato a anarquia imperava, com a ordem social instvel e
entremeada por guerras civis, aps o contrato social o soberano assume a responsabilidade
de manter a ordem social estvel e banir as guerras civis da sociedade, propiciando o
desenvolvimento da ao racional.
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2.3. DOS REQUISITOS TICOS DA CIDADANIA A PARTIR DE
RAWLS, DWORKIN E DAHL
Contemporaneamente, a noo de cidadania como resultado da existncia e livre
participao, enquanto opo de escolha pessoal, nas instituies pblicas foi retomada, na
filosofia moral e poltica, por Jahn Rawls (RAWLS, 2002). A crtica principal de Rawls
centra-se no predomnio do utilitarismo (pelo menos entre os autores da filosofia poltica
em lngua inglesa) enquanto critrio norteador de escolhas pblicas. O utilitarismo pode
ser expresso no seguinte princpio: a maior felicidade para o maior nmero (RAWLS,
2007:392). Sua interpretao significa a maximizao da felicidade associada ao bem-estar
total entre o maior nmero possvel de pessoas da populao, tanto em termos presentes
quanto futuros, na medida em que os atos pblicos interfiram nessa distribuio. O
problema desse princpio que a utilidade total deve ser maximizada e no a utilidade
mdia, tornando-se perfeitamente possvel a existncia de minorias desassistidas e, por
conseqncia, a marginalizao social, desde que o nmero total de pessoas satisfeitas
supere aquelas. Igualmente, se o total de pessoas beneficiadas superior ao total daquelas
excludas, enquanto ocorre uma alternncia entre as pessoas no beneficiadas o grupo das
beneficiadas abrange sempre as mesmas pessoas. Uma teoria da justia no pode
permitir que desvantagens [sociais] para alguns sejam justificadas por vantagens para
outros (KILCULLEN, 2006). De maneira enviesada, essa parece ter sido uma prtica
rotineira no desenvolvimento econmico brasileiro, representada pela mxima existente em
fins dos anos sessenta e incio dos setenta do sculo passado de incentivo ao crescimento
concentrado do bolo [econmico] para sua posterior repartio. Aqui, a concentrao e
acmulo da riqueza social tinham por objetivo alcanar um patamar que tornasse possvel a
redistribuio futura de parte dessa riqueza sem afetar a continuidade do processo
acumulativo em ambiente de livre concorrncia do mercado. Para Rawls, entretanto, a
defesa da utilidade mdia centra-se na racionalidade da ao pblica baseada no na
simples maximizao da acumulao econmica, mas na igualdade de oportunidades
(justia social) para cada sujeito poder participar na apropriao das riquezas socialmente
produzidas.
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Rawls desenvolveu um modelo terico capaz de nortear valorativamente a
classificao de uma sociedade real em quo justa ela na criao de oportunidades para
seus cidados, independente das diferentes posies sociais por estes ocupadas. Trs
axiomas fundam a teoria.
O primeiro axioma, denominado vu de ignorncia, fixa-se no estabelecimento de
consensos em uma sociedade hipottica a respeito de que premissas so justas na aceitao
de regras para diviso das riquezas socialmente produzidas. A experincia emprica
demonstra que uma posio socialmente considerada mais importante que outra origina a
apropriao em grau mais elevado das riquezas sociais do que uma posio considerada
irrelevante. Mas, por no ter conhecimento de que lugar ocupar na hierarquia social dessa
sociedade hipottica, o sujeito, racionalmente, no tende a defender privilgios, j que a
possibilidade de situar-se ao nvel dos menos beneficiados iguala-se a de situar-se ao nvel
dos privilegiados. Da o fato de as pessoas tenderem a defender regras de distribuio
eqitativas, facilitando a obteno de consensos.
O segundo axioma diz respeito igualdade de condies nas oportunidades de
participao nos postos pblicos. Todos os membros da comunidade devem possuir
igualdades de oportunidades no acesso educao e formao tcnica, assim como a
outros bens necessrios para a configurao de habilidades requeridas pela sociedade em
que so membros. O objetivo desse axioma evitar distores nas qualificaes das
pessoas em funo das condies existentes no meio em que nasceram (denominado pelo
autor de sorte social, como o nascimento em um ambiente provido de profundas
restries econmicas capazes de bloquear o aproveitamento de oportunidades decisivas na
formao exigida para participao nos mais prestigiados cargos pblicos). Se excluses
so permitidas, a marginalizao social tende a reproduzir-se de forma autnoma, criando
focos de tenso sociais e perpetuando situaes de necessidades materiais.
O terceiro axioma diz respeito existncia de instituies de mbito pblico que
publicizem e utilizem nos atos que normatizam suas atividades as regras que balizam a
convivncia social. Se todos tm direitos de reivindicar a igualdade de acesso nas
oportunidades de participao na gerao e distribuio das riquezas sociais, os consensos
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que norteiam esses direitos devem ser do conhecimento de todos. Devem essas instituies
participar no incentivo constituio e manuteno da cidadania e de cidados cnscios de
seus direitos e deveres.
No tocante ao conceito de cidado cnscio de seus direitos e deveres, ou
concepo poltica de pessoa, Rawls destaca a concepo de que os cidados se julguem
livres sob trs aspectos:
1 Os cidados so livres no sentido de se conceberem a si mesmos e a seus
concidados como capazes de formularem uma relao moral do que seja o
bem. So vistos como no estando de modo fundamentalista ligados a
determinada concepo de verdade. Podem, motivados em crenas razoveis e
racionais, rever as posies que adotam em determinados momentos de suas
existncias. Dada sua capacidade moral de formular, revisar e procurar
concretizar racionalmente uma concepo do bem, sua identidade pblica de
pessoa livre no afetada por mudanas em sua concepo especfica do bem
ao longo do tempo. (RAWLS, 2000:73);
2 O segundo aspecto da liberdade diz respeito s pessoas se considerarem
no direito de fazerem reivindicaes s instituies em que atuam na promoo
de suas concepes de bem, desde que essas concepes de encaixem na
crena pblica de justia. Esta uma forma de as pessoas se sentirem
importantes (e realmente serem) na construo e manuteno da sociedade que
julgam justa.
3 O terceiro aspecto da liberdade relaciona-se com a percepo de serem
capazes de assumir responsabilidades por seus objetivos, ajustando seus fins e
aspiraes quilo que se julga razovel esperar que possam fazer. Alm disso,
so vistas como capazes de restringir suas reivindicaes quelas permitidas
pelos princpios de justia (RAWLS, 2000:77).
Mas no apenas a moralidade individual baseada em princpios conhecidos e
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aceitos por todos que configuram uma sociedade onde a justia seja exercida com
eqidade. As instituies dessa sociedade tambm devem adotar e seguir os princpios
estabelecidos na Posio Original. Abordando a noo de sociedade, Rawls a concebe,
idealmente, como tendo de preencher o requisito de bem-ordenada, cujos pressupostos
so trs:
1 Se trata de uma sociedade na qual existe um consenso a respeito dos
princpios pblicos de justia, isto , cada sujeito aceita, e sabe que os demais
tambm aceitam, os mesmos princpios norteadores do conceito de justia;
2 Esse consenso a respeito de justia interpretado por todos como
significando que concretamente observado pelas instituies significativas da
sociedade, sejam elas de natureza poltica, social ou econmica, visto que a
cooperao a forma que melhor permite a busca e satisfao das necessidades
de cada cidado;
3 As idias expressas nos dois pressupostos anteriores so efetivas, isto ,
no so apenas meros aspectos formais, mas podem ser percebidas por todos
nas decises oriundas das diversas instituies sociais. Por isso mesmo, essas
instituies so vistas como sendo justas. Numa sociedade assim [na qual os
trs pressupostos acima mencionados esto presentes], a concepo
publicamente reconhecida de justia estabelece um ponto de vista comum, a
partir do qual as reivindicaes dos cidados sociedade podem ser julgadas
(RAWLS, 2000:79).
Sintetizando a idia de justia como eqidade, Rawls prope dois princpios de
justia capazes de nortear a forma pela qual as instituies mais importantes de uma
sociedade realizam os valores de liberdade e igualdade numa sociedade em que os
indivduos so tidos como livres e iguais. Importante destacar que as instituies
consideradas so importantes (s quais Rawls denomina de instituies bsicas) porque
capazes de influenciar o comportamento dos cidados e por estes vistas como
imprescindveis ao seu modelo de organizao social em outras palavras, instituies
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institucionalizadas. So elas tambm portadoras de formas de organizaes que permitem
de forma mais efetiva a realizao dos valores de liberdade e igualdade.
Esses princpios sofreram alguns ajustes desde que propostos inicialmente no livro
Uma teoria da Justia (RAWLS, 2002:64) at sua forma final presente em O
liberalismo poltico (RAWLS, 2000:47-48). Essas modificaes, visando dar uma maior
preciso aos termos utilizados nas definies, so frutos de cerca de 22 anos de debates a
respeito da teoria decorridos entre as publicaes americanas do primeiro e segundo livros.
Os princpios aqui apresentados so aqueles constantes em O liberalismo poltico:
1 - Todas as pessoas tm direito a um projeto inteiramente satisfatrio de
direitos e liberdades bsicas iguais para todos, projeto este compatvel com
todos os demais; e, neste projeto, as liberdades polticas, e somente estas,
devero ter seu valor eqitativo garantido.
2 As desigualdades sociais e econmicas devem satisfazer dois requisitos:
primeiro, devem estar vinculadas a posies e cargos abertos a todos, em
condies de igualdade eqitativa de oportunidades; e, segundo, devem
representar o maior benefcio possvel aos membros menos privilegiados da
sociedade.
Cada um desses princpios regula as instituies numa esfera particular, no
apenas em relao aos direitos, liberdades e oportunidades bsicos, mas
tambm no que diz respeito s reivindicaes de igualdade; a segunda parte do
segundo princpio, por sua vez, sublinha o valor dessas garantias institucionais.
Juntos, os dois princpios regulam as instituies bsicas que realizam esses
valores, conferindo-se ao primeiro prioridade sobre o segundo. (RAWLS,
2000:47-48).
Os conceitos de efetivao da realizao dos valores de liberdade e igualdade so
extremamente importantes no sistema de Rawls, que a simples repartio da riqueza social,
sem que esses elementos estejam presentes, so insuficientes para caracterizar uma
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sociedade como justa.
Outros escritos de um autor contemporneo abordando a expresso dos sentimentos
singulares e suas conseqncias concretas na vida social so os do jurista americano
Ronald Dworkin (DWORKIN, 2002). Analisando diversas decises judiciais e o caminho
seguido pelas interpretaes de textos legais que fundamentam decises de tribunais,
Dworkin defende a necessidade de um princpio que embase todas as decises judiciais, e
esse princpio somente pode ser a integridade, ou no-negociao de compensaes que
justifiquem as desigualdades de tratamentos entre cidados. Por mais adequados que sejam
as regrais do bem-estar econmico, da adequao poltica de determinadas decises, ou da
utilidade social de outras, a cidadania e, em ltima instncia, as noes de liberdade e
justia que legitimam as sociedades democrticas contemporneas, no podem prescindir
do sentimento que todos os cidados so iguais e devem ser julgados pelos mesmos
princpios.
O mbito da filosofia poltica em Dworkin est situado na teoria liberal do direito.
Liberal no implica o sentido que normalmente lhe atribudo pelo pensamento clssico: a
diviso entre uma teoria positivista derivada de fatos representados em regras emitidas por
instituies autorizadas para tal (ou nas condies suficientes e necessrias para validade
de uma proposio jurdica) e uma teoria utilitarista que tem por proposta to somente o
bem-estar da maior proporo da sociedade. Uma teoria liberal do direito significa que
deve ser simultaneamente normativa e conceitual. Intrnseca na noo de conceitual est
a escolha entre a natureza do direito como poltica ou jusnatural. Se poltica, os princpios
sobre regras da maioria inscritos na Constituio so partes integrantes do direito; se
jusnatural, ento as concepes genricas e socialmente compartilhadas que direitos so
inatos condio humana podem ser contrapostas aos princpios constitucionais que
eventualmente os limitem.
A concepo de direito liberal pressupe a democracia (DWORKIN, 2006), com
regras constitucionalmente expressas, aceitas e seguidas pela maioria dos membros de uma
sociedade. Portanto, sua natureza poltica. Essa proposio integra a concepo
comunitria de ao coletiva ao caracterizar o cidado participativo que identifica os atos
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praticados na sociedade a que pertence como atos seus (senso moral), percebendo-os como
constitutivos dos condicionamentos que determinam as escolhas disponveis na vida diria.
O cidado, por seu senso-comum, identifica-se na concepo democrtica de participao
comunitria, que pressupe a condio de igualdade poltica, em oposio a uma maioria
com critrio estatstico. Essa igualdade recusa a idia de trocas compensatrias, geralmente
debatidas como meios de consensos polticos e /ou econmicos, em que pretenses so
substitudas por ofertas alternativas na suposio utilitarista de que melhor ceder e no
perder tudo do que defender posies legitimamente representadas por princpios
constitucionais (DWORKIN, 2003). Assim, as trocas compensatrias, ou solues
conciliatrias, so injustas por princpio, na medida em que estabelecem diferenas entre
pessoas ou grupos de pessoas. So preferveis somente s situaes extremas, quando
grupos inteiros de pessoas seriam severamente prejudicadas e a soluo conciliatria
permite que alguns (no todos) tenham seus direitos respeitados.
A concepo conjugada da conciliao a integridade, que nasce da confluncia de
teorias da legislao e da deciso judicial. A teoria da legislao deve restringir o que
legisladores ou outros participantes na criao do direito podem corretamente fazer ao
expandir ou alterar normas pblicas. A teoria da deciso judicial deve exigir que, na
medida do possvel, normas pblicas sejam tratadas e respeitadas como conjuntos
coerentes de princpios, cuja conseqncia a permisso para que normas implcitas sejam
desveladas de normas explcitas. Restringindo o que pode ser feito na expanso ou
alterao de normas pblicas pela observao dos mesmos princpios considerados no
tratamento de normas pblicas pelo judicirio, a integridade se expressa como esse
conjunto coerente de princpios igualmente considerados em todas as decises polticas da
comunidade.
Concretamente, a integridade um ideal por existir a possibilidade de conflito com
o que se considera justo ou com o que se considera imparcial. A justia uma questo de
resultados. Por mais eqitativos que sejam os procedimentos observados para se alcanar
uma deciso, poltica ou de outra natureza, ela provoca injustia quando nega s pessoas
recursos, liberdades ou oportunidades que razoavelmente se acredita que elas tm direito.
Somente em um estado utpico seria possvel pensar que as decises polticas so sempre
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coerentes, ocasio que a integridade seria desnecessria. Em um estado concreto, para que
a integridade seja efetiva, pessoas e grupos necessitam o direito de controle mais ou menos
igual sobre as decises legislativas que as vincularo em seus comportamentos. Mas se as
pessoas tm concepes diferentes sobre que responsabilidades especiais decorrem das
prticas sociais que definem grupos e percebem algumas como no sendo tambm suas,
isso no justifica a imposio da vontade da maioria numrica nem a negociao
objetivando a diviso eqitativa na aplicao de princpios, de acordo com a justia
distributiva. Pois se assim fosse, a ordem pblica seria tratada como mercadoria, mais
precisamente um bolo, com cada grupo recebendo eqitativamente a parte que lhe cabe.
Em questes de princpio, a ordem pblica no pode ser fracionada entre correntes de
opinio. Se existem divises irreconciliveis entre as opinies a respeito da justia, o
acordo deve ser externo - sobre que sistema de justia a ser adotado e no interno,
baseado em concesses. A integridade violada toda vez que uma comunidade estabelece e
aplica direitos diferentes, embora coerentes em si mesmos, mas que no podem ser
defendidos em conjunto como expresso integrada de princpios de eqidade, justia e
devido processo legal.
O Estado, como ente unitrio que se expressa por uma responsabilidade poltica e
que constitudo por uma comunidade a que se chama nao, no pode aceitar trocas
compensatrias porque compromete seus princpios. atravs da responsabilidade poltica
(autoridade moral) que a integridade se afirma e que o direito se conforma como atividade
interpretativa, protegendo contra a parcialidade, a fraude e a corrupo oficial. Se as
pessoas aceitam que so governadas por regras explcitas resultantes de decises polticas
tomadas no passado e por quaisquer outras regras decorrentes de princpios que essas
decises pressupem, ento o conjunto de normas pblicas pode adaptar-se facilmente ao
desenvolvimento social.
Esse processo no totalmente eficiente quando as pessoas divergem, mas aceita
transformaes orgnicas, propiciando aquilo que Kant e Rousseau chamaram de
autolegislao, desde que observada a integridade. Esta (a integridade) insiste em que cada
cidado pode aceitar as exigncias que lhes so feitas e pode fazer exigncias aos outros,
compartilhando e ampliando a dimenso moral de qualquer deciso poltica explcita.
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Tambm promove a unio moral e poltica dos cidados ao solicitar a interpretao da
organizao comum da justia decorrente da cidadania, interpenetrando circunstncias da
vida pblica com a da privada. Trata-se da noo de fidelidade a um sistema de princpios
que cada cidado tem a responsabilidade de identificar, ainda que apenas para si mesmo,
como o sistema da comunidade qual pertence.
Para Dahl, as instituies pblicas (e aqui est assumido o regime democrtico de
governo, de acordo com a antiga condio enunciada por Aristteles de que a cidadania
somente possvel sob a democracia) as instituies so sociais por que admitem um
nmero no limitado de participantes e so democrticas por que as decises so
estabelecidas por consensos em que todos tm o direito de emitirem opinies discordantes
entre si. As caractersticas dos consensos abrangem sete suposies:
1 os participantes de instituies sociais democrticas devem chegar
consensos que sejam de cumprimento obrigatrio para todos os membros como
resultado do livre debate de idias;
2 esses consensos so estabelecidos em dois estgios distintos: num
primeiro momento, as questes so colocadas e num segundo momento so
debatidas, da surgindo o consenso decorrente de um ncleo mnimo de
proposies contidas nas diferentes posies dos participantes que se acredite
seja aceito por todos;
3 os consensos devem ser impostos somente s pessoas que participam
espontaneamente da instituio, por que obrigaes no podem vincular
pessoas que no esto obrigadas a segui-las;
4 deve ser observado um princpio de igualdade real e no apenas formal
entre as opinies dos membros da instituio. Os votos de todos os membros
tm o mesmo peso na determinao das posies diferentes que tornar-se-o
parte dos consensos;
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5 deve ser observado um princpio de liberdade entre as opinies dos
membros da instituio. Cada um deve estar apto a expor e defender suas
idias, sem a necessidade que um rbitro externo emita sobre elas um juzo de
valor;
6 deve ser observado um princpio de igualdade em possibilidades de
deciso. Os membros que se renem para procurar um consenso devem ter o
grau de conhecimento compatvel com as exigncias da questo e possuam
tambm o senso crtico necessrio para discernir se a questo requer um
consenso. Devem, tambm, ser capazes de reconhecer em que situaes esse
consenso extrapolar os limites da instituio e afetaro os comportamentos de
outras pessoas, ocasies em que as opinies dessas pessoas podero ser
requeridas;
7 Um princpio de justia. Se determinados bens no podem ser repartidos
de forma igualitria entre todos, a justia exige que o merecim