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1Cinema e pera:Um encontro esttico em Wagner
ndice
Introduo ....................................................................................................3
Captulo I ......................................................................................................12
De como Ernst Bloch recuperou Wagner para a Ps-Modernidade ou como apera wagneriana vai ao encontro do cinema por uma esttica de aproximao
1.1 Os paradoxos wagnerianos ...........................................................19 1.2 A reflexo repetida ou o leitmotiv wagneriano .......................33 1.3 A vontade universal como representao do homem e da
natureza....................................................................................40
Captulo II....................................................................................................45
De como o espetculo operstico do sculo XIX revolucionado porRichard Wagner e caminha para a integrao completa do som e imagem
2.1 A obra de arte total ........................................................................51 2.2 As luzes da ribalta e a mise-en-scne............................................56 2.3 A obra de arte do futuro.................................................................63
Captulo III...................................................................................................70
De como duas estticas caminham na mesma direo ou como apera wagneriana e o cinema bebem nas mesmas fontes eproduzem novas mentalidades no campo das artes e das cinciasdos sculos XIX e XX
3.1 O jogo da arte ou a arte do jogo.....................................................80
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2 3.2 Os primeiros passos da aglutinao...............................................89 3.3 Por uma igualdade esttica ou a msica no cinema Wagner...95
Captulo IV...................................................................................................109
De como o cinema entrou para a histria do sculo XX e formou uma nova maneira de ver e ouvir o mundo das imagens e dos sons
4.1 A histria agora outra..................................................................115 4.2 E o futuro, como ser? ..................................................................118
Concluso....................................................................................................121
Bibliografia..................................................................................................123
-
3Introduo
Ter exercido, por mais de 18 anos, a atividade profissional
de crtico de cinema ensinou-me a amar, respeitar e concluir
que sei que nada sei sobre a stima arte. A fascinao sempre
foi, e continua sendo, o sentimento primeiro da minha relao
com o cinema. Como no admirvel Cinema Paradiso de
Giuseppe Tornatore, sinto-me ainda o pequeno Tot que est
sempre olhando encantado a magia da imagem em movimento.
Ou ainda como o menino de outro extraordinrio filme italiano,
Splendor, de Ettore Scola, que o primeiro a chegar com seu
banquinho para a sesso que se dar na praa da aldeia. Hoje,
certamente obedecendo a um outro ritual, tenho a convico de
que o cinema no est mais s, nem mais o nico e est em
permanente dilogo com outros mundos da modernidade.
Foi esse sentido de fronteira que me levou aventura de
tentar promover um encontro entre o grande espetculo do
sculo XIX, o drama wagneriano, e o smbolo mais caracterstico
do sculo XX, o cinema. No pretendo ir alm desse agradvel e
estimulante encontro. Nada desejo provar, nem alcanar
verdades cientficas. uma reflexo que me proporcionou
muitos prazeres aos olhos e ouvidos, ao corao e mente.
Este encontro me exigiu viagens por muitos caminhos j
percorridos e outros absolutamente novos, onde o sabor da
aventura se acentuou. Comea exatamente com a estimulao
-
4provocada por um filsofo, Ernst Bloch, que tem, como
categoria central de seu pensamento, uma das realidades mais
difceis de serem percebidas e vividas pelo homem - a
esperana. Na busca dessa utopia, ele encontrou a msica.
Sua especulao tornou-se de fato uma filosofia da msica.
Suas anlises so sempre muito penetrantes e trazem ngulos
novos para velhos problemas da esttica musical. Wagneriano
de primeira hora, Bloch no se deixou levar tanto pela paixo.
Procurou entender a obra do compositor alemo, revelando as
suas intimidades estticas mais profundas. Abriu espaos de
especulao inusitados, que me permitiram uma aproximao
com o cinema.
A partir desta inspirao procurei reorganizar a histria
desse espetculo, enfatizando suas novidades e possveis
ligaes com o futuro. O destaque vai para a produo da
imagem cnica associada ao som. Imagem e sonoridade so os
focos de interesse.
Segue-se a indagao sobre identidade das formas, e,
portanto, das artes. Suas estticas, em suma. Objetivava
entender como o pensamento filosfico filtrou as caractersticas
dessas manifestaes que do sentido ao ser humano e s a ele
pertencem, porque s ele as cria. Nenhum outro ser realiza essa
extraordinria proeza. Meu percurso foi breve e muito simples.
Permitiu-me, no entanto, avaliar melhor o caminho que Wagner
fez para chegar sua concepo de obra de arte total, um
-
5evidente e feliz encontro com o cinema, que ele no chegou a
conhecer.
Por fim, a conexo com o mundo da imagem, do som e do
movimento era um natural corolrio. Ambos representao do
mundo e do homem, pera e cinema chegavam ao ponto de
entroncamento. Uma vez juntos logo se separavam por
exigncia mesma da nova inveno. Novamente as identidades
aparecem como definidoras de campos e objetos. Caminham por
um sculo em diferentes espaos, embora guardando evidentes
sinais de comunho. Esse certamente o futuro que cada vez
est mais perto dos nossos coraes e mentes.
Durante toda essa aventura intelectual, uma coisa me
causou forte impresso. A personalidade e a determinao
desse personagem existencialmente contraditrio, mas de um
talento transbordante. Wagner nasceu em 1813, em Leipzig, e
morreu em 1883, em Veneza. No chegou a completar 70 anos.
Sua obra, porm, monumental e est enraizada
profundamente na cultura alem, dali se universalizando.
Homem do seu tempo, estava de olho no futuro. Viveu uma
Alemanha esfacelada que inicia o sculo medieval e termina
moderna e poderosa. Tornou-se um smbolo da modernidade
no apenas pelo acorde inical de Tristo e Isolda , mas por
uma vastssima produo intelectual que inclui, alm da obra
musical, obras de pesquisa, ensaios, artigos, poemas e todos os
libretos de suas peras. Foi tambm idealizador e construtor,
com a ajuda de arquitetos e engenheiros, do teatro que se
-
6tornou uma espcie de templo de peregrinao para os adeptos
dessa quase religio que a pera wagneriana.
Para uma melhor contextualizao de sua obra, fao, a
seguir, um perfil das principais peras de Wagner, com base no
belssimo livro de Andr Tubeuf1.
O Navio Fantasma ( 1843)
Este navio tornou-se um mito, mas o ttulo de origem
alem, Der fliegende Hollnder. Um capito holands
literalmente voa de mar em mar, sem poder repousar por ter
sido amaldioado ao desafiar os cus passando pelo Cabo das
Tempestades. No poder tocar a terra durante sete anos. S
uma mulher fiel o poder salvar dessa maldio.
Wagner, aos 30 anos, tambm no tinha porto seguro.
Apaixonou-se por esse personagem a ele apresentado por uma
novela de Heinrich Heine. Tambm ele se sentia exilado e sem
ligaes com o mundo. Senta a personagem salvadora. Uma
jovem cheia de f que conhece a balada do holands e o salva,
pagando com a sua prpria vida.
Personagens: Vanderdecken, o navegador errante
holands; Daland, capito noroegus; Senta, sua filha; Erik, um
caador; Mary, governanta de Senta; e o timoneiro.
Tannhuser ( Dresden 1841/ Paris 1861)
1TUBEUF, Andr: Wagner: LOpera des Images. Paris. Chne, 1993.
-
7Uma lenda medieval forneceu a Wagner um segundo heri
com o qual ele tambm se identificou. Tannhuser um artista,
um prncipe do canto, que est prisioneiro dos encantos de
Vnus em sua gruta, do mesmo modo que Ulisses foi de Circe. E
no foi por prazer que ele se ligou a ela, mas talvez pelo gosto de
sua prpria perdio. Como todo artista tem tambm seus
demnios!
Mas uma outra voz o chama e o traz de volta ao mundo.
a lembrana de Elisabeth. Tannhuser rompe ento as ligaes
com Vnus e toma de novo seu lugar como cantor. Ela, no
entanto, reaparece no hino que ele canta ao amor. Elisabeth
intercede pelo cantor que dever ir em peregrinao a Roma,
para expiar sua falta. O Papa, porm, no lhe d o perdo.
Tannhuser retorna ao seu pas com a maldio ainda sobre
ele. Elisabeth morre de tanto suplicar pelo pecador. Ele tambm
tem o mesmo fim. S que um grupo de novos peregrinos que
volta de Roma traz o cajado papal, agora florido, para indicar
que Tannhuser fora perdoado graas devoo de Elisabeth.
Para a verso apresentada, em Paris, em 1861, Wagner
acrescentou uma bacanal na gruta de Vnus. Esse fato suscitou
o mais famoso escndalo da histria da arte. O Jockey-Club
vaiou; Baudelaire adorou.
Personagens: Tannhuser; Elisabeth; Conde Herman;
Vnus; Um jovem pastor; Outros cavaleiros e menestris;
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8Wolfram von Eschenbach; Walter von der Vogelweide; Heinrich
der Schreiber; e Reiman von Zweter.
Lohengrin (l850)
O terceiro heri que tambm se identifica com Wagner
Lohengrin. Ele vem do cu para salvar Elsa, injustamente
acusada de matar o prprio irmo. um cavaleiro de armas
prateadas que chega montado num cisne. Na verdade, o
prprio irmo de Elsa transformado pelos feitios de Ortrude.
Esta casada com o conde Telramund que era o tutor dos
irmos. Perante o rei, Lohengrin duela com ele, e vence. Mas
antes de defender a Elsa, impe uma condio: nunca lhe
indagar o nome nem o lugar de onde veio. Essa condio
quebrada por ela e o cavaleiro volta para o Monsalvat, no
realizando o amor prometido.Os encantos tambm se quebram e
o cisne volta a ser Gottfried.
Personagens: Elsa de Brabant; Lohengrin; Rei Henrique;
Conde Telramund; e Ortrud.
Tristo e Isolda (1865)
Lugar de identificao suprema para Wagner: os amantes
lendrios, arqutipos da paixo amorosa ocidental. Mas Wagner
mistura os venenos. Tristo filho da Noite, nascido da morte
da me, sua nica aspirao a volta ao lugar de origem. Isolda
-
9tambm deseja a morte uma vez que uma esposa prometida e
no pode amar Tristo. Mas, em vez do veneno ambos tomam a
poo mgica do amor. Desaparecem as interdies e vivem um
profundo idlio amoroso, mas Tristo ferido de morte. Seu
desejo de morrer em sua terra natal concedido e Isolda
tambm se despede da vida com o famoso Liebestod. a morte
de amor.
Personagens: Tristo; Isolda; Brangne; O rei Marke;
Kurwenal; e Melot.
Os Mestres Cantores (1868)
a histria de um concurso de canto, como Tannhuser.
Nesta pera Wagner se divide em dois. ao mesmo tempo
Walter, o cavaleiro que aprendeu tudo com os passarinhos, e
que nada conhece das regras do bem cantar, mais parecendo
um outsider na conservadora Nuremberg, e Hans Sachs o
sapateiro-poeta que concorre pelos belos olhos de Eva. H ainda
um terceiro concorrente o escrivo Beckmesser. Na disputa, a
juventude de Walter empolga. Mas o sapateiro Hans Sachs
rene a tradio e a jovialidade, entusiasmando a todos.
Personagens: O jovem cavaleiro Walter; Eva, filha do
ourives; Madalena, sua companheira; David, aprendiz de
sapateiro; e os 12 Mestres Cantores, com destaque para o
sapateiro Hans Sachs.
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O Anel dos Nibelungos (1869/1876)
O ciclo dos Nibelungos composto por quatro peras: O
Ouro do Reno, Walkiria, Siegfried e O Crepsculo dos Deuses.
Narram a saga de um estranho Olimpo. Na primeira pera, o
ano Alberich renuncia ao amor para ficar com o ouro do Reno,
enquanto Wotan, o deus dos deuses, contrata com os gigantes
Falsot e Fafner a construo do Walhalla, um palcio para
repouso dos heris. Quando os gigantes terminam a obra e vo
cobrar a paga a Wotan, ele no tem outra soluo seno
arrancar de Alberich o tesouro do Reno. Os gigantes brigam
entre si, e um deles se transforma em drago para guardar a
riqueza.
Esse tesouro roubado acaba provocando, ao longo das
histrias seguintes, toda a sorte de tramias entre os deuses, os
heris e habitantes das profundezas. O amor sempre
impossvel e os deuses parecem no ter mais salvao. Todas as
relaes se deterioram at que o prprio Walhalla destrudo,
determinando o crepsculo dos deuses.
Os personagens centrais desse complexo drama so os
seguintes: Wotan, Alberich, Mime, Frika,Freia, Erda, Froh, Loge,
Donner, as donzelas do Reno (Woglinde, Wellgunde e
Flosshilde), Brunhilde, Siegmund, Sieglinde, Hunding, Siegfried,
Fafner, Gunther, Hagen e Waltraute.
Parsifal (1882)
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a busca da redeno salvfica, representada no clice
sagrado que teria sido usado por Cristo na ltima Ceia. Vrios
destinos se cruzam representando mundos opostos. De um
lado, a luz, de outro, as trevas. A peregrinao de Parsifal para
cumprir sua misso redentora atravessa perigos, tentaes,
amores, lutas, violncias e pecados. Mas, no final, Parsifal ser
rei, batizar Kundry e dar sade a Amfortas, cumprindo-se a
redeno pelo amor.
Personagens: Parsifal, Kundry, Gurnemans, Amfortas,
Klingsor e Titurel.
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Captulo 1
De como Ernst Bloch recupera Wagner para a Ps-
Modernidade ou como a pera wagneriana vai ao encontro
do cinema por uma esttica aproximativa
Cinema e msica sempre se deram bem. Parece terem sido
feitos um para o outro. Se nos primrdios do cinema a msica
foi usada para abafar o som do projetor, logo a seguir ela se
meteu no interior do drama e da comdia produzidos pela nova
inveno que iria revolucionar a face mais criativa do homem do
sculo XX. No h a menor dvida que essa atrao natural foi
-
13
prdiga em efeitos que ainda no foram de todo assimilados
pela reflexo acadmica. To pouco no se pode colocar em
dvida que esse acaso feliz foi facilitado por criaes e
pesquisas que embora guardassem autonomia de objeto,
mtodos e tcnicas, acabaram por definir fronteiras e
intersees entre as artes.
Nesse caminho histrico, muitos encontros se realizaram a
partir da interdependncia das formas artsticas, das novas
tecnologias, da especulao filosfica, at mesmo sem que seus
autores suspeitassem. De qualquer modo, so indagaes que
esto sempre na ordem do dia a desafiar a sensibilidade e a
inteligncia de artistas e estudiosos dos fenmenos estticos.
Wagner certamente foi uma dessas personalidades
inquietas que alm de produzir a sua arte, tambm refletiu
sobre o seu ofcio e deixou para a posteridade o registro de seu
pensamento. A obra de sua vida foi exatamente a constante,
pertinaz e incansvel busca da forma de arte total: a pesquisa
do espetculo que fosse uma espcie de amlgama de todas as
artes, e, por isso mesmo, se constitusse em algo autnomo,
novo e que respondesse s necessidades espirituais do prprio
homem. No foi por outra razo que chamou a pera de drama
musical. De fato, queria estabelecer uma diferenciao com o
passado, mesmo que seu conceito, na realidade, pouco alterasse
o prprio sentido da pera. Marcar a diferena da sua
concepo para as demais era uma espcie de mote permanente
de seus escritos.
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Sem dvida, foi em pera e Drama que esse tema foi
mais profundamente abordado por ele. No entanto, sobre esses
aspectos mais ou menos especficos relativos problemtica do
drama musical, falarei em outra parte deste trabalho. Neste
espao, o que me interessa mais retomar a idia do encontro
entre Wagner e o cinema. Comeo por recuperar o artigo de
Jacques Bourgeois2, Musique dramatique et Cinema,
publicado na Revue du Cinma nmero 60, de fevereiro de
1948. Nele, o autor invoca o trabalho artstico de Wagner para
mostrar como a msica no apenas est presente no cinema,
mas como ela faz parte intrnseca de seu discurso.
Bourgeois distingue o que ele chama de msica dramtica,
do que tambm chama de msica pura. Assim, ele define a
primeira como aquela que exprime, sustenta ou se impe
ao dramtica, em oposio a uma esttica da msica pura.
Faz referncia ainda msica de programa que, sem dvida
alguma, atingiu a plenitude de sua riqueza formal no sculo
XIX. E sobre a herana dessa msica narrativa que ele faz a
sua anlise, apontando a Wagner como o criador da msica
dramtica moderna.
J o maestro e violinista Yehudi Menuhin diz o seguinte da
obra de Wagner: Seus dramas musicais so escritos como
filmes, atribuindo temas a cada personagem, refletindo cada
mudana de tenso emocional, e suas tcnicas de
2 BOURGEOIS, Jacques: Musique dramatique et cinma. In Revue du Cinema n 60/fev.48
-
15
composio ter-se-iam adaptado bem ao cinema .3 sobre o
encontro possvel entre o cinema clssico e a pera wagneriana
que este trabalho pretende refletir. A suposio do maestro
Menuhin foi a mesma que a minha. Imaginei o poderoso
Richard Wagner chegando ao sculo XX, e, num passe de
mgica, assumindo um set de filmagem tal como Fellini o fez
em E la nave va, por exemplo. 4 Mas, certamente, no apenas
Wagner chegaria ao cinema. A pera um produto de muitas
fontes, assim como o cinema.
Se, por um lado, Wagner cunhou a expresso obra de arte
total, por outro, suas teorias sempre estiveram em sintonia com
a busca de uma esttica que, de alguma forma, desse pera
autonomia artstica. Seus escritos caminham muito nessa
direo, como alis os de muitos tericos do cinema. No
parece, pois, ser uma mera suposio a observao do maestro
Menhuin. Mais que isso, a fronteira entre as artes deve ser
objeto de constante pesquisa. No h dvida que Wagner
identificado primeiro como msico, embora muitos o
considerem mais como homem do espetculo. Certamente esta
vestimenta cabe tambm na sua personalidade artstica. Mas,
mais do que o homem, interessa aqui o seu legado. E a partir
dele exatamente que Ernst Bloch faz a sua reaproximao com
o compositor j nos anos 60. Esse novo olhar lana as bases
3 MENUHIN, Yehudi e DAVIS, Curtis W. : A msica do homem. Sao Paulo, Martins Fontes, 1990, p. 250.
4A citao a Fellini to aleatria quanto outra qualquer. Apenas a imagem do cineasta italiano, dominandocompletamente o espao de seus dramas, me leva a esta aproximao aparentemente fora de propsito. Noquero estabelecer comparaes. Apenas fustigar a imaginao.
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das relaes possveis da pera wagneriana com o cinema, que
eu pretendo abordar.
Bloch est sob a influncia das novas verses e montagens
capitaneadas pelos netos de Wagner, Wieland e Wolfgang.
sabido que a aproximao da nora de Wagner com o nazismo, e,
em especial com Hitler, comprometeu bastante a imagem de
Bayreuth. E o esforo todo dos netos foi no sentido de tentarem
desvincular-se desse passado imediato. Permitiram-se ousadias
que talvez o av no aprovasse. No entanto, as reflexes de
Ernst Bloch adquirem tambm um significado de atualidade
que pode perfeitamente tornar-se uma espcie de reencontro do
legado wagneriano com a arte emblemtica do sculo XX, o
cinema.
Trata-se de um artigo que introduz uma srie de textos
escolhidos de Wagner. O filsofo aproveita a ocasio para
elaborar algumas linhas de pensamento que no apenas
reabilitam o compositor, mas tambm apontam para uma nova
forma de entender suas propostas. Antes, porm, traa, em
poucas linhas, uma espcie de trajetria das hostilidades que
envolveram a obra wagneriana.
O primeiro momento identificado como aquele que durou
at os anos 80 do sculo passado, quando o compositor alcana
um grande sucesso ainda em vida. Essa situao dura at os
anos 20 quando novamente entra na sombra. o momento em
que surge na Alemanha a chamada nova objetividade. Com
incrvel rapidez, a recusa a Wagner virou moda, diz Ernst
-
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Bloch. Essa segunda onda acaba difundindo entre os jovens
uma indiferente ignorncia em relao sua obra.
Para Bloch, so os remanescentes da mentalidade
conservadora, ainda presos pera-ballet. Embora jovens,
quando se opunham a Wagner, era a carta de Mendelssohn que
jogavam ao invocar o nome de Brahms. Logo o Brahms que se
debruou sobre a partitura dos Mestres Cantores durante
semanas! Nada leva a crer, portanto, que essa onda contra
Wagner tenha qualquer reparo musical digno de importncia.
Falava-se do romntico tardio, com cheiro de mofo. Mas, o
definitivo dessa repulsa foi, sem dvida, a admirao de Hitler
pela obra de Wagner, atravs de algumas idias perigosas como
a teutomania e o arianismo. Entre tantas outras manifestaes,
o canto final de Sachs dos Mestres Cantores, encenado no
Congresso Nacional do Partido Nazista em Nuremberg foi um
elemento significativo para tornar o mundo wagneriano ainda
mais suspeito.
A polmica, relata ainda Bloch, voltava-se sobretudo
contra as partituras wagnerianas, requentadas, pomposas,
segundo esses crticos. Por outro lado, os mesmos diziam que
eram perfeitas como composio. Um certo exagero dominava
essas mentes que se referiam inclusive ao aspecto diablico das
dinmicas wagnerianas. a partir dessas crticas, nem sempre
razoveis, que Ernst Bloch lana o seu olhar sobre as
montagens feitas no incio dos anos 60 em Bayreuth. Ele
presencia o que chama de renascimento da cena graas
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direo das luzes que so guiadas pela msica. Bloch prenuncia
assim uma retomada favorvel a Wagner, depois de um
crepsculo to longo quanto o que se iniciou nos anos 20. Diz
mais: a profundidade desta msica no foi at agora
esclarecida. Alguns sinais de uma nova aurora wagneriana so
objeto de seu estudo.
Depois de uma srie de consideraes sobre como as novas
geraes devem se aproximar da pera wagneriana, Ernst Bloch
aproveita a ocasio para desmistificar alguns preconceitos que
se formaram, ao longo dos anos, em torno de certos temas que
freqentemente foram responsveis por atitudes apaixonadas e
pouco refletidas. No apenas aspectos musicais, mas tambm
de encenao, so por ele recolocados, a partir de uma nova
viso do espetculo operstico. Um deles certamente a questo
do Bel Canto.
Para Bloch, Wagner pode e deve ser executado em sua
forma meldica. Nada de gritos e estridncias. So poucos os
momentos em que o registro quase uniforme. Como exemplo,
ele cita certas narraes de Wotan. Mas, considerar que
impossvel cantar Wagner, como muitos fizeram crer, um
absurdo, segundo afirma Bloch. verdade que as grandes
sopranos disparam agudos estridentes de dar calafrios. Os
grandes tenores trombeteiam satisfeitos ou ameaadores. raro
ouvir dos cantores wagnerianos uma emisso nobre,
aculturada, com destaques ntidos, e uma voz que sobe e desce
e desce e sobe com uma adequada preparao, diz ainda o
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19
autor. E completa comparando os mesmos intrpretes que
cantam Mozart ou Verdi sem que nada disso acontea.
claro, diz ainda Bloch, que Wagner tem a sua parte de
responsabilidade pelas vozes super-excitadas e ameaadoras,
alm daquele timbre que aparenta o violoncelo, sem, no
entanto, a ele se igualar. De qualquer modo, essa questo do
Bel Canto tambm de responsabilidade dos maestros, assim
como o prprio peso das orquestras em relao s vozes. Ele d
como exemplo o interldio da Viagem de Siegfrid sobre o Reno
que vai, de certo modo contra a corrente, movido pelo canto,
embora, de fato, siga a corrente. So certas acentuaes e
coloridos propostos por Wagner que encontram em seus
intrpretes formas diferenciadas, por mais que o compositor
tenha deixado instrues bastante explcitas sobre como
executar suas criaes.
Os paradoxos wagnerianos
So os paradoxos que tm maior relevo, num primeiro
momento da anlise que Ernst Bloch faz da obra de Wagner.
Quem d muito dar qualquer coisa a algum. Com esta frase,
Bloch quer afirmar que Wagner atende tanto ao vulgar como ao
erudito. Este paradoxo intriga os especialistas. Mas, no se
trata de uma msica simplista em oposio a formas mais
complexas. Simplesmente, diz ele, Wagner toma, em matria de
inveno, aquilo que encontra. Isto vale no s para o Canto
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Estrela Vnus, um romance banal mas sempre denso de
sentimento. Vale ainda, e a responsabilidade bem maior, para
o juhu - uma aspirao de pequenos burgueses em frias - no
Hojotohoou no Jerumde Hans Sachs cheio de golpes de
acompanhamento. Bloch cita ainda outras passagens que
foram definidas como msica para ouvintes no-musicais.
Este primeiro paradoxo - a juno, numa mesma obra, de
elementos populares e eruditos - talvez a razo principal da
grande audincia da melodia wagneriana. Mas no se pode dizer
simplesmente que a banalidade sobressai ao refinamento. De
fato, ele surpreende quase sempre. Sua msica desafia
permanentemente as convenes. muito mais moderna, na
expresso de Bloch. essa mistura de ouvidos - o erudito e o
vulgar - que cria a figura que Bloch chama de olhar sonoro
que rompe no improviso, emergindo de uma profundidade
insuspeita, e segura a ateno.
um pouco como a obra cinematogrfica que a todo
momento busca elementos de encantamento do espectador. A
surpresa talvez uma das suas chaves fundamentais. Procura
seduzir a ateno do espectador com uma tcnica prpria de
representao das idias e dos sentimentos. De certo modo, as
dissonncias wagnerianas tm tambm um carter de ruptura.
Bloch d o exemplo do acorde inicial de Tristo e Isolda, hoje
j bastante citado e conhecido, mas que provocou um imenso
estranhamento nos ouvidos mais tradicionais. Diz ele:
-
21
construdo de modo que seja impossvel definir
nitidamente at mesmo a tonalidade. Alm disso,
tambm conceitos de harmonias tradicionais como
modulao, alterao, etc. , no confronto se tornam
plidos. Assim como, com freqncia, intervm tambm
uma outra dissonncia no resolvida, ou seja, uma
outra dissonncia no mais referida ao contexto
harmnico surpreendente num duplo sentido: tanto
imprevista quanto previsvel. Mas um prever que
irrompe quase que imediatamente em uma frase
estranha tonalidade. O canto de Brangne do alto da
torre, que soa amplo e quase estranho, com aqueles
violinos que Thomas Mann definiu como os mais
agudos de qualquer regio, traduz um xtase musical
que com certeza oposto angstia e advertncia que
parece significar na estrutura da pera.
O paradoxo parece ser assim algo inerente opera
wagneriana. No, porm, o paradoxo da mera aparncia. E sim
o que vai essncia dos sentimentos humanos. como se
Wagner lutasse o tempo todo para encontrar uma sada. E neste
sentido, como diz ainda Bloch, o contra-Wagner est contido
no verdadeiro Wagner.
Praticamente toda a obra do autor est mesclada com
esses aspectos aparentemente contraditrios. So muitos os
exemplos dados por Ernst Bloch. No o caso aqui de cit-los.
Interessa apenas enfatizar essa relao entre o texto, a msica e
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22
a encenao. Todos colaboram, em sua medida e limites
prprios, para uma viso e audio do todo. O detalhe do incio
recolhido mais adiante, retornando na sua identidade prpria
ou na sua identidade modificada. No se trata apenas do
leitmotiv musical, mas tambm dos espaos cnicos e da
prpria postura dos atores-cantores. , sem dvida, um
verdadeiro processo de montagem em que cada elemento
singular se liga ao todo para construir uma narrativa ampla e
unitria.
Neste sentido, vale examinar um pouco o paradoxo da
relao msica e palavra, apontado por Ernst Bloch, na obra de
Wagner. A primeira observao diz respeito mltipla
estratificao que palavra e msica assumem nas peras
wagnerianas. Mas, antes mesmo de classificar essa
estratificao, bom esclarecer que Bloch no pensa essa
relao de forma mecnica. Tanto a percepo do ouvinte
atento, como a viso do espectador seduzido podem se dar em
terrenos muitas vezes no explcitos. So espaos e tempos que
se passam no interior das sugestes musicais, textuais, cnicas
e psicolgicas dos personagens. Essas filigranas podem estar
at mesmo na conformao de um instrumento. como se
aquele som estivesse imbudo de um esprito infundido no corpo
do instrumento sonoro. Wagner, de certo modo, buscou at
mesmo a conformao material de alguns instrumentos para
obter a sonoridade espiritual, material e sensual desejada.
Palavra e msica, portanto, no coincidem espontaneamente de
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23
modo agradvel aos sentidos, para citar a expresso de Bloch.
Basta lembrar que o mesmo leitmotiv usado em diferentes
peras, como no caso da tetralogia, assumindo significados
mltiplos.
Obviamente os paradoxos se formam exatamente nessa
relao complexa e multifacetada. Numa tentativa de
classificao, ainda que provisria, Bloch, de certo modo,
aponta trs funes principais, mas no exclusivas, para se
entender a relao palavra e msica em Wagner. A primeira a
funo de simultaneidade. Neste caso, a msica reclama o
texto. Haveria uma atrao entre as duas formas de expresso.
Uma no informa nada de diferente da outra. como se palavra
e msica se identificassem de tal modo que uma serve outra
por fora da necessidade intrnseca de ambas. Essa primeira
funo tem muitos exemplos na obra wagneriana. Bloch mesmo
os fornece. Mas, o que interessa no momento mostrar como
essa atrao de dois modos de produzir sentido podem
enriquecer de significado um discurso artstico. Se nas suas
peras Wagner at mesmo elaborou tcnicas prprias de
composio, encenao, uso de texto, orquestrao e
instrumentos, entre tantas outras inovaes, ele o fez com o
propsito de buscar a integrao entre as diversas formas de
expresso.
esta espcie de uso diferenciado de materiais que produz
a novidade. Aparentemente tudo igual, isto , palavras e
temas musicais unidos conduzem a um entendimento da
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24
histria narrada e do sentimento vivido pelos personagens.
Acontece que a idia de um sentido unvoco pode at ter sido o
motivo central do controle criativo de Wagner, mas no se fecha
apenas na sua inteno. Objetivamente falando, o que Wagner
criou no mais dele, mas de seus executantes e intrpretes.
Assim, quando Ernst Bloch fala da funo de simultaneidade
entre palavra e msica, na pera wagneriana, est abrindo a
possibilidade de que essa mesma funo possa ser observada
em outro contexto. Embora, mais adiante este tema v ser
retomado, no quero deixar de registrar aqui o quanto essa
simultaneidade est presente no cinema. Ele no apenas
relaciona palavra e msica em simultaneidade, mas todas as
suas outras matrias, como a imagem animada, por exemplo.
Isso faz com que a polmica antiga entre cinema mudo e cinema
falado no tenha hoje qualquer sentido.
Tambm a segunda funo, entre palavra e msica na
pera wagneriana, apontada por Bloch, tem uma forte
aproximao com o cinema. Trata-se do que ele chama de
antecipao. Segundo ele, a palavra pode, de algum modo,
antecipar situaes. Mas, o mais freqente a msica exercer
essa funo, atravs dos motivos-temas. Bloch, no entanto, d
um exemplo em que o texto, de certa forma, pr-anuncia algo
que ainda ir acontecer. Refere-se ele ao episdio em que
Sieglinde, quase sonhando, parece ver sua prpria imagem
rememorando o passado e imaginando ver Siegmund no tempo
e no espao onde no apenas j o havia visto antes, como
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25
tambm ouvira a sua voz, e, no meio do canto diz: e agora
novamente o sinto ao longe. um canto, ainda segundo Bloch,
que caminha do indeterminado para o explcito ao terminar o
jbilo primaveril do antes e do depois. Significa que o
sentimento vivido por Sieglinde se projeta num futuro que est
de algum modo ligado ao passado. A experincia vivida projeta o
idlio futuro. Essa situao primaveril, no entanto, em outros
momentos, torna-se trgica. Na obra de Wagner, essa oscilao
atmosfrica bastante caracterstica. como se o drama quase
comandasse as aes musicais - afirmao contestada por
muitos autores, inclusive por Bloch.Cito aqui, por exemplo, A
pera como drama de Joseph Kerman:
...Em pera, o dramaturgo o compositor. O que
conta no a narrativa, situao, smbolo, metfora, e
assim por diante, conforme estabelecido por um libreto,
mas o modo como tudo isso interpretado por uma
inteligncia superior. Essa inteligncia escreve a
msica. Estou ciente, claro, de que esta viso da
pera to perscritiva quanto descritiva. Uma obra de
arte em que a msica no consegue exercer a funo
articuladora central deveria se chamar qualquer coisa,
menos pera.5
Essa questo da primazia da msica sobre o drama tem
todo o sentido em outros compositores, mas em Wagner no.
Ele sempre foi o criador completo de suas obras. Essa
5KERMAN, Joseph: A pera como drama. Rio. Jorge Zahar, 1990, p. 12.
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26
articulao de que fala Kerman era uma coisa natural no
compositor. mais ou menos como no cinema hoje chamado
autoral. evidente que o fazer cinematogrfico se divide em
mltiplas funes. H tambm os casos em que se renem
numa nica pessoa os aspectos mais criativos da stima arte.
Mas, o que importa aqui muito menos a funo no fazer. ,
sim, o criar como ato autnomo, pessoal. E no h dvida:
neste particular, Wagner foi um criador, assim como tantos
cineastas o so hoje. Importa tambm mostrar como essa
funo de antecipao faz parte da linguagem cinematogrfica
mais corriqueira, assim como a terceira funo expressa por
Bloch, que chamo aqui de recordao.
No cinema, essa figura de linguagem chamada flashback
tem significado semelhante ao efeito recordao das peras
wagnerianas. No se trata de uma recordao qualquer, mas
algo que faz o drama musical caminhar, aprofundar seu
sentido, abrir novas perspectivas de entendimento dos aspectos
enfocados na ao. tambm este o sentido que muitas vezes a
recordao transmite no cinema. Sobre esssas relaes, tratarei
mais profundamente em outro captulo. Volto agora aos
paradoxos de que fala Ernst Bloch.
No h dvida de que o modo como Wagner constri seus
dramas musicais lembra muito o processo da montagem
cinematogrfica, pelos menos no que diz respeito aos mtodos.
E bvio que numa viso eisensteiniana o que aparece em
primeiro lugar exatamente a atrao, o contraste, o paradoxo,
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27
a contradio. Muitas vezes essa forma de trabalhar com os
opostos acaba produzindo um tipo de reflexo que, de certo
modo, transcende os prprios dados da ao dramtica em si.
Bloch, ao levantar esses elementos paradoxais na pera
wagneriana, no faz outra coisa seno explicitar o sentido que,
na essncia, Wagner desejava transmitir com a sua arte.
claro que mesmo considerando a palavra importante, o
compositor cria as suas referncias mais contundentes pela
msica, e, em particular, no seu caso, pelos leitmotiven. So
eles que, de algum modo, levam identificao de personagens,
situaes e at mesmo objetos de diversas naturezas. Mas, no
apenas a uma mera identificao. Seu objetivo vai muito mais
alm. Revela sentimentos futuros ou recorda situaes j
sentidas, mesmo que apenas no inconsciente. Esse trnsito
espao-temporal torna seu relato musical extremamente denso
e complexo de sentidos.
Os paradoxos so, portanto, elementos de uma realidade
criativa que est na prpria estrutura da pera wagneriana. No
so considerados apenas os aspectos formais. Outras camadas
de elementos a eles se associam na elaborao do discurso
musical. Muitos autores j se aventuraram na exegese dos
mistrios wagnerianos e realizaram belas construes. No
entanto, esse trabalho de Ernst Bloch merece especial ateno
por se tratar de um levantamento com evidentes conexes com
a arte do cinema.
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Ao analisar os dramas musicais, Bloch no s elabora uma
slida construo, como a conecta com as abordagens de outros
autores que, como ele, perceberam os paradoxos iluminadores e
verdadeiramente dialticos das montagens sonoras, textuais e
cnicas de Wagner. E para exemplificar uma dessas situaes,
Bloch escolhe Baudelaire. Diz ele: No foi sem razo que
Baudelaire amou esta msica. No apenas s como msica,
mas como msica de uma eficaz montagem. E um vrtice dessa
irradio sonora est, sem dvida, em Siegfried , quando
Mime quer ensinar a Siegfried o sentimento do medo, e Siegfried
ouve, apenas acenado, o leitmotiv que em si j contm -
embora de forma remota e, portanto, em Siegfried ainda no
consciente - a presena de Brunhilde, e o motivo do amor, ainda
desconhecido, fundido com o do medo. um paradoxo? Sem
dvida. Fundir o medo com o amor no parece ser a forma mais
normal de expressar esses dois sentimentos aparentemente
inconciliveis. Mas, no modo de construir essa arquitetura
musical, Wagner cria novos sinais sonoros que interferem no
andamento do drama narrado e na prpria reao psicolgica
dos personagens envolvidos. como se o sinal sonoro desse ao
espectador-ouvinte um sentido de antecipao da ao
dramtica para relativizar a prpria auto-suficincia do heri
que acabara de zombar de seu pai adotivo (Mime) e de se
gabar de ser impenetrvel ao medo. Se o medo aparece como
um desafio absolutamente transponvel, o amor soa como uma
espcie de destino muitas vezes ameaador, condenado,
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29
impossvel, romntico, e s uma vez redentor, ao que tudo
indica na pera Parsifal.
Na tetralogia, esses sentimentos se entrecruzam numa
espcie de metfora do mundo, s que vivida pelos deuses
ancestrais. E por isso, talvez, a ousadia wagneriana no tem
limites. E nesse mundo de contradies, a msica estabelece os
parmetros, mas, ao mesmo tempo, amplia a gama de sentidos
possveis no seu drama musical, tornando-o mais complexo e
aberto a novas interpretaes. A cada tempo novas descobertas
so realizadas e suas inspiraes so de tal forma provocantes
que, em menos de cem anos aps sua morte, bibliotecas
inteiras se formaram no estudo e interpretao de suas obras.
Paradoxos como estee apontados por Bloch so uma espcie de
marca registrada da obra wagneriana.
Continuando esse provisrio levantamento, Bloch mostra
como o mtodo wagneriano no se restringe apenas a uma
tcnica banal de utilizar o leitmotiv ou os temas condutores. A
inter-relao de formas realiza plenamente os objetivos do
criador. De um lado, ele utiliza o enredo do drama para adensar
o sentido desejado. E de outro, a msica confirma ou no essa
abordagem. Para mostrar como Wagner realiza essa ampliao
de sentido, cito textualmente a passagem de Bloch falando de
um trecho da pera Crepsculo dos Deuses:
Siegfrid j bebeu a poo do esquecimento que Hagen
lhe deu. Ela age rapidamente e desencadeia um efeito
verdadeiramente desconcertante: no momento preciso
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30
em que pronunciado o nome de Brunhilde, a
recordao dela desaparece completamente em Siegfrid,
como se de uma tumba sonora surgisse o tema do
esquecimento. Mas, algum tempo depois - um tempo
cheio de horrveis enganos, como o da encomenda a
Brunhilde e o casamento escandaloso de Gutrune -
durante a caa no Odenwal, Hagen toca ainda mais
uma vez no mesmo assunto com Siegfrid ainda
inconsciente.E, quando Siegfrid, liberado do
encantamento, transpassado pela lana de Hagen,
reconquista a memria e, moribundo, v a face da
morte, exatamente neste momento ecoa pela segunda
vez o motivo do despertar, o mesmo e na mesma
tonalidade de d maior que novamente passa de forma
majestosa para o acorde de r menor, aquele mesmo
acorde que havia acompanhado, como uma sonoridade
primordial, o abrir-se a luz dos olhos de Brunhilde, o
seu ingresso na vida, na existncia suprema. E
exatamente o mesmo motivo agora tocado - identidade
do no idntico - com o beijo de Brunhilde, um beijo
dado morte. Nesta ltima identidade entre luz e morte
(completamente diferente das notas da morte por amor)
est de fato o paradoxo mais profundo e mais
significativo da expresso musical wagneriana.
Este exemplo caracteriza bem como os elementos no tm
vida prpria. Esto sempre a servio de uma determinada ao.
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Mesmo a msica, matriz de todo o processo criativo de Wagner,
de algum modo, se submete a outros elementos do drama. So
at subvertidas as regras da composio que ainda vigoravam
no sculo em que o autor viveu. Sem tornar o exemplo de Bloch
um paradigma do seu trabalho, creio que extremamente
elucidativo desse processo de construo que se estrutura, no
pela integrao dos fatores, mas por sua oposio. curioso
como esta busca de um sentido oculto, que est no ntimo dos
personagens e s vezes at no seu inconsciente, uma espcie
de destino que acompanha cada passo da pica ou da tragdia
narradas. Trata-se, sem dvida, de uma busca insacivel. Em
praticamente todas as peras de Wagner, esta observao est
presente. como se o autor estivesse em constante pesquisa
sobre a alma humana. Certamente escolheu criar seus heris
na mitologia para no ferir mais as susceptibilidades de seus
contemporneos, pois, de fato, o que Wagner fez foi uma grande
metfora dos comportamentos do ser humano com suas
paixes, mesquinharias, interesses, arrebatamentos, luzes e
trevas. Porm, mais do que isso, se assim posso dizer, Wagner
perseguiu sempre o Graal, entendido no apenas como a
relquia sagrada, mas como uma forma de absoluto que, de
certo modo, imprime sentido a todas as coisas. Trata-se,
indiscutivelmente, de uma caminhada cheia de contradies e
ousadias, que, no entanto, sempre busca um sentido para a
vida.
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32
Na anlise feita por Ernst Bloch, o personagem Siegfrid
encarna um sentimento que no se esgota no momento
presente da ao. A morte no fecha o ciclo da vida. De certo
modo, o despertar beira da morte, associado idia de luz,
torna-se algo prximo ao que se pode chamar de outra vida. No
propriamente uma ressurreio, pois, de fato o mundo dos
deuses est acabado. Mas, sem dvida, uma esperana,
consubstanciada, alis, pelo emocionante canto final de
Brunhilde. Talvez a redeno pelo amor, como diz Ernest
Newman em seu estudo sobre a pera O Crepsculo dos
Deuses. Bloch, no entanto, prefere ficar com o conceito de
paradoxo, ao invs da soluo pela redeno. Na sua concepo,
o final do Crepsculo no significa uma concluso. O tema da
redeno que, de fato se estende e parece no encontrar fim,
embora rico de pulses meldicas, demasiadamente
ecoante para se tornar uma concluso efetiva. Para Bloch ele
mais um paradoxo que leva a alguma coisa de novo. Neste
sentido, esta abordagem confirma um pouco o que disse antes:
Wagner s concluir sua inquietante busca no Parsifal, obra,
esta sim, conclusiva. Alis, Nietzsche percebeu logo esse
movimento e se afastou em definitivo do amigo, de forma
extremamente agressiva, chamando esta ltima obra de
decadente. Certamente Nietzsche se equivocou. J Gabrielle D
Annunzio o disse num livro chamado La Musica di Wagner e la
Genesi del Parsifal, editado, em 1914, em Florena, pela
-
33
Quatrini. Neste pequeno ensaio, D Annunzio mostra todos os
equvocos nietzscheanos com relao ao Parsifal.
O Parsifal, segundo Bloch, uma obra dualstica. Ela se
desenrola sobre Montsalvat que est dividido em duas
alternativas: o jardim encantado de Klingsor e o celeste templo
do Graal. No primeiro, sob a influncia rabe, observa-se um
mundo demonaco e triste. J no segundo, com caractersticas
gticas, resplandece o ambiente purificado, depois de um
perodo tenebroso. Esses dualismos que se estruturam em
paradoxos esto tambm em Tristo e Isolda e outras peras
de Wagner.
A reflexo repetida ou o leitmotiv wagneriano
Alm dos paradoxos, Ernst Bloch destaca a questo dos
leitmotiven. Esse talvez tenha sido o recurso wagneriano mais
freqente que o cinema utilizou e utiliza ainda. No h a
menor dvida de que esta forma foi uma das que mais se
adaptou prpria linguagem cinematogrfica, numa
assimilao natural e no consciente por parte dos criadores da
stima arte. Bloch, naturalmente preocupado em limpar o
nome de Wagner e apresentar sua obra s novas geraes,
dedica ao tema observaes extremamente pertinentes e
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lcidas. Embora essa questo dos leitmotiven v ser objeto de
um certo aprofundamento mais adiante, registro aqui alguns
princpios que me parecem inspiradores para a relao que
desejo fazer com o cinema enquanto expresso dos conflitos da
vida e da prpria condio humana. Alis, nesse contexto que
o prprio Bloch realiza a sua leitura de Wagner.
A primeira questo levantada diz respeito origem do
leitmotiv. bvio que a discusso se inicia por rebater
algumas expresses, at certo ponto irnicas, de alguns crticos
de Wagner, como a de Debussy que comparou os leitmotiven a
uma agenda de endereos. Citando o prprio Wagner em pera
e Drama, onde ele diz que os seus leitmotiven so expresso
plstica de um sentimento, colunas do edifcio dramtico, do
qual retornam mudados e bem calibrados fazendo nascer
absolutamente sozinha a mais alta forma musical unitria.
No se tratava, ainda segundo Bloch, nem mesmo de dar nomes
fixos a cada motivo condutor, como aconteceu posteriormente
em Bayreuth, muitas vezes de forma bastante problemtica.
Mas Wagner aceitaria, de bom grado, a comparao de seu
sistema de leitmotiv ao que Goethe chamava de reflexo
repetida para se referir ao dj vu acstico. No se trata,
portanto, de uma repetio mecnica. Mas, de algo que poderia
tambm ser comparado s concordncias da Bblia de Lutero,
ainda segundo palavras de Bloch. Isto quer dizer que tanto no
quadro comparativo da bblia luterana, como na reflexo de
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35
Goethe, o leitmotiv wagneriano acrescenta novos significados
s motivaes originais.
Esta problemtica questo , no entanto, historicamente
muito anterior, embora tenha aparecido como uma novidade em
Wagner, ou, ao menos, como um fenmeno aparentado a ele.
Um dos incios certamente est ligado s tpicas floraturas com
as quais se cantava o amor ou o dio no antigo melodrama.
Depois, continua ainda Bloch, encontra-se freqentemente a
mesma figurao - confiada aos arcos ou aos sopros - quando
aparece um criado, um empregado ou ainda um velho. O motivo
recorrente de Samiel no Franco Atirador, de Carl Maria von
Weber, torna-se caracterizante, assim como o motivo da morte
na Carmen se aproxima tambm a este modelo e no aos
exemplos dinmicos encontrados em Wagner. O exemplo mais
evidente e fascinante est em Berlioz em sua Sinfonia
Fantstica, no tema da idia fixa, que retorna continuamente
nos vrios movimentos da pea sinfnica.
Os exemplos acima so apenas aluses, uma vez que todo
esse processo de retomada de temas tem origem mesmo na
sonata clssica, segundo opina Ernst Bloch. Em funo dessa
observao, tentou-se explicar todas as outras retomadas
wagnerianas que, assim, respeitariam a estrutura da sonata
clssica. Bloch, no entanto, mostra como, em Wagner, a
estrutura dos motivos condutores assume uma nova identidade,
deixando de ser apenas um mero elemento construtivo, na
expresso de Alfred Lorenz que, em seu livro O Segredo da
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36
Forma em Richard Wagner, analisa as conexes estruturais da
obra wagneriana. Para Bloch, o leitmotiv wagneriano tem de
fato um qu de especfico cuja expresso e funcionalidade no
se esgotam na forma sinfnica.
Algumas referncias, nem sempre lisongeiras, so
lembradas por Bloch em relao aos leitmotiven. Uma delas
diz respeito idia de que o motivo condutor invade, sem pedir
licena e de forma quase autoritria, o ouvinte-espectador. E
isso traz lembrana o prprio sentido da publicidade
moderna. claro que esta referncia, trazida tona por Bloch,
no significa que o leitmotiv tenha servido a propsitos de
carter comercial. Simplesmente quer mostrar que, de algum
modo, a repetio penetra no mago dos desejos e os faz aflorar,
despertando as vontades que estavam adormecidadas ou
embotadas. Essa uma curiosa referncia, no inventada por
Bloch, que explorada pelos adeptos da teoria da indstria
cultural moderna. Mas, o que importa o que Bloch diz a
seguir:
Por mais que esta msica - as peras de Wagner -
pressuponha a ao, tambm a ao j foi concebida na
concepo desta msica. Explicando melhor: foi
concebida na criao de um amlgama que separa a
msica de Wagner da msica absoluta, inclusive nos
seus preldios e interldios em que o texto est
ausente. O leitmotiv transparente em relao ao
texto no apenas a partir de sua prpria residncia
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37
tonal, mas por ele mesmo ser metafrico, e, portanto,
diferente da forma sonata.
Bloch invoca tambm diversos autores, inclusive Thomas
Mann, para conferir o status de poticos aos motivos
condutores de Wagner. Refere-se tambm ao fato de que a
poesia est tambm no andamento musical quando este
consiste no aprofundar e no aflorar, no retornar e no concordar
com intermitncias, como no caso do motivo do sono, da chama
ou do encantamento que so to plenos de alegorias. Fala de
Theodore Storm e Mann com expresses como o jardim, o frio
cortante que penetra obliqamente, enfim, poesia recheada de
elementos alegricos, para dizer que Wagner manipulou de
forma semelhante seus motivos condutores. nesses meandros
da alegoria que o leitmotiv se afirma no apenas como
regresso recuperada, mas tambm como antecipao
acelerada.
Normalmente se conhece mais a funo leimotvica como
retorno ou recordao. Neste contexto, o inconsciente ou o
esquecido que ressurge no personagem que muitas vezes age,
por ele movido, apenas num lampejo de ao instantnea, e,
portanto, caracterstico de uma situao passada que volta.
tambm muitas vezes uma aluso sonora que surge, sem que
precise durar muito. Nestes casos, o passado vem tona de um
modo integrado ao personagem sem qualquer interferncia
externa. como se o seu mundo interior fosse assaltado por
esse retorno e o movesse para a frente ou para o
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desenvolvimento da ao em foco. Mas, com mais freqncia, o
passado permanece em profundidade, na soleira da conscincia,
no mbito daquilo que foi, e dali se anuncia. Esse anncio vem
muitas vezes s pela orquestra, num plano em si mesmo
inferior em relao ao personagem que atua na cena mais
acima. Bloch refere-se naturalmente situao em que Wagner
colocou a orquestra, o fosso, exatamente para obter, entre
outras coisas, esse efeito.
Para ilustrar esse tipo de leitmotiv, Bloch recorre a um
pequeno momento da Walkyria em que Siegmund est
narrando a sua histria para Sieglinde e Hunding. Trata-se
ainda do primeiro ato, quase no final da cena dois. Siegmund
fala das lutas que travou com diversos inimigos, sempre
junto com o seu pai. Num determinado momento, porm,
acabou se separando dele. Tentou, por todas as formas,
encontr-lo. Buscou por toda a floresta seus rastros,
encontrando apenas a pele de um lobo. E neste ponto canta o
seguinte: Vazia estava diante de mim ( a pele do lobo) ao pai
no encontrei. Nesse exato momento, os trombones, como se
estivessem a uma grande distncia, entoam o motivo do
Walhalla, com uma parada sobre a ltima nota, marcando uma
espcie de olhar para trs. E continua Bloch: O texto cantado
na cena no fala e no atua completamente onde atua o
motivo condutor da msica; por isso que nasce a uma
enunciao desdobrada, na cena e na orquestra, embora uma
ressoe na outra, criando uma assincronicidade contempornea.
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Bloch afirma ainda que a tcnica do monlogo interior
em James Joyce foi declaradamente elaborada sob a influncia
desta enunciao.
Trata-se, portanto, de um terreno em que participam no
apenas a msica, mas o universo psicolgico que estrutura as
histrias narradas na cena. E a o leitmotiv tanto pode vir na
forma de recordao quanto de antecipao. No h dvida que
esta tcnica de composio, feita com material j apresentado
ao ouvido do espectador, tem no conjunto das peras O anel
dos Nibelungos a sua construo mais sofisticada e mais
completa. Nesse contexto extremamente rico de relaes e de
significados, a habilidade criativa de Wagner nos leva a
proposies que transcendem o imediatismo das aes cnicas e
buscam, de fato, um sentido, no mnimo metafrico, para no
dizer at metafsico, como Bloch chega a afirmar. Da mesma
forma, os motivos condutores so uma espcie de suporte que
faz aflorar freqentemente o inconsciente no apenas dos
personagens, mas at mesmo de espaos sagrados que j
contm em si uma memria acumulada de elementos vividos ou
de sinais de futuro.
Bloch chega a afirmar que esses sinais so uma espcie de
momento plstico do sentimento do leitmotiv, que atualiza o
personagem, atravs de um aceno orquestral ou por fragmentos
sonoros e musicais que vem superfcie. Muitas vezes essa
premonio orquestral aparece exatamente porque o
personagem em cena no pode ainda ter conhecimento do que
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40
ainda est por acontecer. Mas, para o espectador/ouvinte essa
antecipao parcial funciona como motivo de expectativa e at
mesmo de seduo para segurar a sua ateno, como alis o
cinema sempre faz. claro que com tcnicas e meios
completamente diferentes, mas com um modelo esttico muito
prximo desse proposto por Wagner e to bem sublinhado por
Ernst Bloch, cinema e pera chegam a uma ntida aproximao
de estruturas artsticas.
Para concluir esta exposio de Ernst Bloch sobre os
leitmotiven wagnerianos, falta dizer que os motivos condutores
no esto sempre servindo ao dramtica. Eles tambm
formam sua prpria matria, tendo obviamente vida prpria.
Em seu percurso nos dramas musicais wagnerianos, os
leitmotiven assumem at mesmo um carter utpico. Mas isso
uma outra histria que no se justifica no contexto deste
trabalho. J estaramos falando da concepo central da
filosofia de Ernst Bloch, o que foge ao nosso objetivo.
A vontade universal como representao do homem e da
natureza
Bloch desenvolve ainda um outro tema que, sem dvida,
pode ser aproximado s questes estticas do cinema.Trata-se
do que ele chama de pastoral ecoante. Ele fala, em ltima
instncia, da msica que, de alguma forma descreve a natureza.
Diz ele que o que caracteriza a obra de Wagner uma pulsao
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41
interior que invade a cena de modo vibrante. Mas sua msica
canta tambm o mundo externo. Corre, murmura, vacila, se
apaga pouco a pouco, ilumina, retumba. Mas, diz ele, os
riachos e os campos j estavam presentes na expresso musical
antes de Wagner. Em Mozart, por exemplo, podem-se ouvir
esses elementos, como no pequeno dueto entre Susanna e a
condessa Almaviva, em As bodas de Fgaro. A criada Susanna
termina o seu canto entre as estradas que vo dar no jardim do
amor que est imerso na noite, dizendo: Que suave brisa esta
noite soprar sobre os pinheiros do bosque. E no canto
alternado: Chega enfim o momento em que gozarei, sem
ansiedade, nos braos do meu dolo. As referncias ao jardim
do amor assim como a outros elementos naturais, como a noite,
o luar, as rosas, enfim, descries musicais naturalistas.
E o que dizer ento da sinfonia Pastoral de Beethoven,
onde o riacho e o furaco so no apenas descritos, mas se
transformam numa imagem sonora que a tantos j inspirou?
Mas Bloch diz que a msica naturalstica pr-romntica, em
sua maior parte, era feita de modo relativamente simples. Fala,
por exemplo, da figuratividade grfica dos oratrios e cantatas
de Bach, assim como dos quadros sonoros de Haydn na
Criao e outras peas, dizendo inclusive que esta tendncia
musical remonta ao perodo medieval tardio, especialmente o
francs. Analisa ainda exemplos de outros compositores , como
Mendelssohn em Sonho de uma noite de vero, onde a
Stimmung (atmosfera, ambiente, clima...) tambm uma
-
42
imagem sonora. Invoca ainda outros msicos somente para
dizer que esse tipo de msica que, de alguma forma, est no
apenas na inspirao de todas as pocas, como se integra
completamente sensibilidade humana.
No caso especfico de Wagner, o que Bloch enfatiza que
todos os elementos se associam para criar o brilho natural que
tanto a natureza, quanto a construo humana so capazes de
nos transmitir. Neste sentido, nada mais revolucionrio que o
preldio de O ouro do Reno, que tanto deixou espantados os
espectadores que o ouviram pela primeira vez, em 1869,
segundo observao de Ernest Newman6: Consiste em nada
mais que um som persistente, durante 136 compassos, em tom
de mi bemol. Sua finalidade de sugerir o Reno; a idia , antes
de tudo, uma espcie de inundao, seguida de vagas fortes e
depois de outras, cada vez mais fracas. Certamente a
preocupao de Wagner no se restringe a este tipo de
metonmia, se assim se pode dizer. Ele estava tambm
interessado em tornar a msica figura sonora integradora de
um espetculo nico e de inspirao schopenhaueriana. Alis, a
origem talvez esteja em Schelling que, em sua filosofia, diz que
a msica est suspensa no espao para tecer, com o corpo
transparente do som e do tom, um universo audvel. Mas, sem
dvida Schopenhauer, aqui citado por Bloch, que explicita
completamente essa idia wagneriana: A msica faz aparecer
imediatamente a coisa em si, e esta , sob diferentes nveis de
6NEWMAN, Ernest: Histria das grandes peras e de seus compositores. Porto Alegre. Globo, 1952
-
43
observao do fenmeno, a vontade vida, desesperada,
jubilosa, e, em suma, apaixonada. Essa viso de Schopenhauer
integralmente assimilada por Wagner. Diz Bloch: A superfcie
musical vibrante das figuras do mundo deglutida pela unidade
absoluta da vontade que atemporal, aespacial e acausal; e
fogo, gua, terra, pessoas, destinos so, no s seus efeitos
reais, quanto a sua anunciao.
Bloch quer dizer que Wagner, com sua msica da
natureza, no quer estar ligado a uma raiz sonora apenas. A
coisa em si de Schopenhauer no conhece nenhum princpio de
individuao. Tambm a msica wagneriana, segundo Ernst
Bloch, conhece pouco ou at no conhece as autnticas
pessoas. Pertencem todas, evidentemente como atores,
natureza universal que a nica de fato a agir. Elas agem
tambm, claro, sob o impulso da natureza, parecendo,
portanto, homogneas ao tempo, ao fogo, primavera. Tanto os
destinos individuais, como os elementos da natureza irradiam
essa vontade universal, cujo sentido s pode ser explicado na
sucesso de paradoxos em que homem e natureza se agitam
para alcanar a vontade universal.
Certamente estas anlises de Ernst Bloch mereceriam ser
ampliadas e discutidas com maior profundidade. Mas, o que
interessa aqui a maneira como esta espcie de retrica
musical-cenogrfica funciona na construo de um espetculo
que junta, no sentido de amalgamar, a pica e a tragdia dos
-
44
gregos a uma filosofia da msica para erguer um edifcio nico
que Wagner chamava de drama musical. E exatamente o que
da resulta que, sem dvida, realiza o encontro esttico com o
cinema. E para concluir esta apresentao sobre as lcidas
categorias interpretativas de Ernst Bloch, cito o prprio autor
quando fala que a pastoral musical do futuro leva em seus
ombros Wagner, como uma nave com vento favorvel e como a
luz no coro final de Os mestres cantores: a aurora vermelha de
chamas que desponta entre as foscas nuvens. E para no
aparecer nua, a luz chamar sempre para si tambm estas
nuvens escuras, para carregar-se de cores.
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45
Captulo 2
De como o espetculo operstico do sculo XIX
revolucionado por Richard Wagner e caminha para a
integrao completa do som e imagem
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46
Bertolt Brecht disse, certa vez, que, no sculo XIX, toda a
cidade alem, com mais de 50 mil habitantes, tinha a sua
pera, ou um teatro onde se apresentavam encenaes
opersticas. Este fenmeno no era exclusivo da Alemanha. Em
toda a Europa, a pera ganhava espao e se tornava mesmo
quase popular. Ao mesmo tempo, esse gnero musical se
adaptava s novas exigncias de seu pblico, cada vez mais
frvolo e de interesses imediatistas, caracterstica alis da franca
consolidao do capitalismo no mundo ocidental.
A pera chegou ao sculo XIX depois de um percurso de
mais de 200 anos, desde que Dafne, de Jacopo Peri, com
libreto de Ottavio Rinuccini, foi montada, pela primeira vez, no
Palcio Corsi, em Florena, em 1597. Na poca foi chamada de
unpera in musica, para talvez se distinguir da Camerata
Florentina que reunia nobres e msicos para discutir o teatro
grego e at fazer pequenas encenaes musicais. Peri fazia parte
do grupo criado pelo conde Giovanni de Bardi. E , no mnimo,
curiosa a escolha do mito de Dafne para este primeiro drama
musical. Filha do rio Ldon ou Peneu, era amada por Apolo que
a perseguia insistentemente. No conseguindo escapar a esse
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assdio, Dafne pediu ao pai que a transformasse. Assim, ela se
tornou um loureiro que ficou sendo a rvore predileta de Apolo e
de cujas folhas eram feitas as coroas oferecidas aos guerreiros
heris. A pera foi montada diversas vezes, mas a msica se
perdeu, embora o libreto tenha sido preservado.
Deste incio associado nobreza florentina, a pera logo se
deslocou para outras cidades italianas. J em 1607, Claudio
Monteverdi escreveu Orfeu, sua primeira pera, em Veneza.
Melhor msico que Peri, j havia composto madrigais e suas
peras eram menos aristocrticas e acadmicas e mais
sofisticadas do ponto de vista musical. Ainda em Veneza,
inaugurado o primeiro teatro de pera, o San Cassiano, em
1637. Nos fins do sculo XVII, a cidade tinha 20 teatros desse
gnero. Foi tambm com os compositores venezianos que os
termos ria e recitativo comearam a substituir arioso, rtulo
preferido pelo grupo Camerata. A estrutura da ria e do
recitativo atravessou os sculos, sofrendo mudanas aqui e ali,
mas, em essncia, cumprindo as mesmas funes. A ria era
uma cano cheia de ornamentos vocais, cantada em solo. J o
recitativo contava a histria acompanhada por cravo ou rgo.
Distinguiam-se os recitativos em: secco, acompanhado s pelo
cravo: e accompagnato, com a participao de toda a orquestra.
Foi tambm a partir do sculo XVII que os castrati passaram a
ter grande relevo nas encenaes opersticas, uma vez que em
alguns estados italianos as mulheres no podiam se apresentar
nos palcos.
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Fenmeno tipicamente italiano, a pera logo se espalhou
pela Europa, levada, por exemplo, para a Frana, por um
italiano, Giovanni Lulli, que ficou mais conhecido como Jean
Baptiste Lully. Ele introduziu esse espetculo na corte de Lus
XIV, dando-lhe um grande requinte literrio, caracterstica que
at hoje parece predominar na pera francesa. Alm do texto
literrio de alto nvel, Lully introduz o bal nas suas montagens.
Se Lully levou a pera para a Frana, Georg Friedrich
Hendel a introduziu na ustria e a implantou na Inglaterra.
Mas ainda na Itlia que aparece a pera cmica no sculo
XVIII. La serva padrona, de Pergolesi, inaugura o gnero
tambm chamado de opera buffa que acabou se opondo opera
seria. Nas peras encenadas nos teatros lricos pblicos, o
compositor no era a figura dominante em que mais tarde se
tornou. Elas eram geralmente preparadas por compositores e
poetas desses teatros, utilizando freqentemente msicas de
diferentes origens para adapt-las e adequ-las aos cantores em
voga, que, sem dvida alguma, eram a principal atrao. Esse
tipo de comportamento acabou gerando uma srie de
deformaes que distanciaram o espetculo, de suas origens.
As concesses se tornavam cada vez maiores. Os libretos
eram freqentemente tolos e inconsistentes. Nem a boa msica
os conseguia salvar. Essa degradao atingia tambm as
encenaes e o prprio mundo do espetculo operstico.
Christoph Willibald Ritter von Gluck realiza uma grande
reformulao na pera do sculo XVIII. Volta tragdia grega,
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buscando na poesia e no drama o equilbrio entre a msica, o
texto e o teatro. Nesse contexto, surge o gnio de Mozart que faz
sucesso nos trs gneros opersticos: o singspiel ou pea
cantada que era um texto falado combinado com nmeros
musicais. So singspiel O rapto do serralho (1782) e A flauta
mgica (1791); a opera seria, Idomeneo (1781) e La clemenza
di Tito (1791); e a opera buffa, As bodas de Figaro (1786),
Don Giovanni (1787) e Cosi fan tutte (1790). O gnio de
Mozart imprimiu em suas peras msica sublime, comdias
soberbas, e rias e recitativos extremamente criativos.
Quando o sculo XIX comea, todos os gneros opersticos
j deixaram praticamente o meio aristocrtico e foram para os
grandes teatros pblicos, dando acesso a platias populares.
Segundo o Dicionrio Grove de Msica7, uma manifestao
desse fenmeno foi a popularidade das peras de resgate, das
quais Fidelio (1805), de Beethoven, a mais conhecida. E
continua: As platias burguesas foram sem dvida um fator
influente na evoluo da grand opera francesa com seus
enredos carregados de emoes, orquestrao cheia de colorido
e trechos para grande coro; os exemplos de maior sucesso
resultaram da colaborao entre o libretista Scribe e o
compositor Meyerbeer. A natureza e o sobrenatural invadiram a
substncia do drama, particularmente na Alemanha, com
Weber, Marschner e outros.
7Dicionrio Grove de Msica. Edio concisa por Stanley Sadie. Rio. Jorge Zahar Editor, 1994
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neste novo contexto que aparece Richard Wagner com
suas inovaes. Sua atuao se deu em todos os nveis do
espetculo. claro que o sculo XIX foi tambm o tempo em
que viveram o gnio de Giuseppe Verdi, Rossini, Donizetti e
Puccini, para falar do principal quarteto operstico italiano. Em
matria de compositores, o sculo XIX foi prdigo. A
contemporaneidade de vrios gnios em diferentes
manifestaes artsticas, cientficas e culturais contaminou,
sem dvida, a impressionante produo criativa do sculo
passado. bvio, que uns interagindo com outros
impulsionaram um desenvolvimento da inteligncia mundial.
Num tempo rapidssmo, por exemplo, a Alemanha passou de
uma situao praticamente medieval no incio do sculo, para
uma grande potncia, j no seu final. evidente que todo esse
contexto ps-Revoluo Francesa significou uma crescente
modernizao das relaes econmicas, sociais, polticas e
culturais.
A pera foi logicamente atingida por esse sopro
modernizador. E Wagner soube valorizar como ningum sua
genialidade. Traou um caminho a seguir, e dele no se afastou
um instante sequer. Como todos os renovadores, voltou aos
clssicos gregos. L encontrou o sentido mesmo do espetculo
enquanto representao do mundo. Foi tambm l que se sentiu
seguro para buscar nos mitos aquelas pulses mais elementares
da prpria histria do homem. Suas primeiras tentativas de
criao foram aliceradas no cultivo dos bons exemplos. Imitar
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os mestres, copiar os mestres. Mas, acima de tudo, conhecer
Beethoven profundamente. Esse era o seu ideal. Alis, suas
cpias de partituras ficaram famosas.
Embora tenha tido sua caligrafia musical elogiada, Wagner
se sentia bem mesmo, era criando. E o fez em todos os sentidos.
Escrevendo, compondo, dirigindo, interpretando, construindo,
enfim, realizando todas as tarefas de um artista mtiplo,
inquieto, quase insacivel, Wagner acabou por tornar realidade
toda sua potencialidade. Suas teorias sobre a arte,
especialmente sobre a pera, concretizaram-se em obras. Ao
todo, Wagner comps 13 peras . Sua produo intelectual
fertilssima. Alm de ter escrito muito, orientou de modo preciso
a montagem se seus espetculos e at construiu um teatro para
apresent-los.
A obra de arte total
Gesamtkunstwerk (obra de arte total) - era assim que
Wagner via a pera. Para ele, era a nica arte que podia juntar
todas as outras: msica, poesia, teatro, pintura, dana e
escultura. Mas, para que essa juno fosse realizada era
necessrio que cada parte perdesse algo da identidade prpria e
se colocasse a servio de uma idia integradora e acima de
qualquer individualidade. Portanto, no adiantava
simplesmente juntar esses elementos numa espcie de balaio
comum. Mas, porque a pera seria o caminho, o leito por onde
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essa integrao se faria? No fundo mesmo a resposta est nos
gregos.
A tragdia, de fato, nunca foi outra coisa para os gregos
seno um espetculo. Algo para ver, ouvir, sentir e entender.
esta ltima capacidade humana, que nos dada pela
inteligncia, que Wagner considera fundamental para o poeta.
O homem s pode exprimir-se atravs da inteligncia, diz ele
em pera e drama.8 E continua: ela, a inteligncia, que
combina, decompe, distribui e separa. E mediante a lngua,
esta sim derivada do sentimento, capaz de descrever as
impresses e a prpria concepo do sentimento. Mas a lngua
tambm limitada por condies dadas. Com este raciocnio, ele
conclui que o criador do drama deveria passar da msica
linguagem das palavras. E chega de novo tragdia grega:
Na tragdia grega, acontece algo semelhante, mas por
razes inversas. A sua base era a lrica. Porm, na sua
evoluo foi adotando a forma da lngua falada, como a
sociedade. Fundada sobre o sentimento natural, moral
e religioso atinge o estado poltico. O drama do futuro
dever, portanto, fazer o caminho inverso, isto , da
inteligncia dever retornar ao sentimento, pois, ns
progredimos da individualidade pensada para a
individualidade real.
Quis Wagner dizer, portanto, que a msica que exprime
um sentimento mais amplo, caminha para a palavra como uma
8WAGNER, Riccardo: Opera e dramma.Torino.Fratelli Bocca, 1894.
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espcie de necessidade irresistvel. E, neste particular, assume
o contexto cultural completo, incluindo a, bvio, o Estado, e,
portanto, o nvel poltico. bom no esquecer que, no sculo
passado, a tradio de censura era muito forte. O prprio
Wagner foi obrigado a mudar algumas de suas peas em funo
da censura.
Embora essa justificativa para a entrada da palavra na
msica, segundo a concepo de Wagner, no seja a nica, ela
parece ter sentido, ainda mais se seu estudo pretendia projetar
um novo tipo de espetculo. Sua prpria obra parece se
conduzir segundo a pesquisa terica que foi fazendo ao longo de
sua vida. De fato, o jovem Wagner (1830-1840) imita os
compositores em voga, com a diferena de que mesmo nesse
incio j era o libretista de suas composies. Nessa primeira
fase, usa obras pr-existentes como inspirao e as adapta para
o seu objetivo. Assim foi com o conto La Donna Serpente de
Carlo Gozzi do qual se originou As Fadas; Measure for
measurede William Shakespeare que inspirou Proibio de
amar; e o romance Rienzi, the last of the roman tribunes de
Edward Bulwer-Lytton que o levou a Rienzi. Ao assumir
tambm as funes de libretista, Wagner percebeu o quanto era
importante essa sua atitude, que j era preconizada pelos
chamados profetas do romantismo musical alemo, em
particular Ludwig Tieck, Jean-Paul Richter e Ernst Theodor
Amadeus Hoffman. Entendeu ainda, segundo Marcel
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Schneider,9 a vantagem de ser seu prprio libretista. Podia
desenvolver os personagens, escolher os episdios em funo
das possibilidades musicais que eles tinham, alm do fato de
que na criao do roteiro, j tinha em vista a msica que iria
compor. Esta deciso, de incio de carreira, deixa claro que
Wagner no estava apenas interessado na imitao dos outros,
mas tinha a ambio de caminhar com luz prpria.
Como bem observa Marcel Schneider, no foram apenas
os gregos e os romnticos alemes que guiaram os passos de
Wagner na concepo desse novo espetculo. No perodo de
transio (1839-1850) em que praticamente foram compostas
O navio fantasma, Tannhuser e Lohengrin foi guiado pelo
que chamou de meu anjo bom. Referia-se a Beethoven. No se
tratava apenas de encontrar a palavra certa, mas tambm a
msica certa. Com isso, abandona o bel canto e adota a
sinfonia. Citada por Schneider, usa a seguinte metfora:
Juntar, no leito do drama musical, a rica torrente da msica
alem, como Beethoven fez. O estilo dramtico e o estilo
sinfnico so assim pinados para participarem da sua
novidade. Isto, de certo modo, consolida a idia de que a
representao teatral um dos elos desse processo de
assimilao de formas.
Surge, ento, uma outra inveno, segundo ainda Marcel
Schneider. Esta, de alguma forma, retoma e sistematiza a
tradio que Carl Maria von Weber criara por instinto, ou
9SCHNEIDER, Marcel: Wagner. So Paulo. Martins Fontes, 1991.
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esprito da poca, em suas peras. A partir de O navio
fantasma, Wagner vai buscar na lenda a matria prima de seus
dramas. Mais tarde, na interpretao de Schneider, com o
Anel, o mito substitui a lenda. E no Parsifal, troca o mito
pela ao sagrada. Assim, levado por reflexes que a todo
momento pululam na sua mente, Wagner vai concebendo
alguma coisa que precisa de uma identidade prpria, pois bebe
de muitas fontes e corre o risco de no ser nada. Portanto,
perfeitamente explicvel sua reao pera que era
apresentada no seu tempo. Os episdios negativos de Paris, por
exemplo, acabaram por formar nele a convico de que a pera
no poderia ser mais um mero divertimento, mas deveria se
transformar numa espcie de cerimnia social e religiosa.
Parsifal, queiramos ou no, foi a concretizao desse objetivo.
E Bayreuth foi o templo construdo para esse ritual operstico.
De qualquer modo, suas concepes so dinmicas e
ganham sempre novos contornos. O que Wagner busca no
drama, diz Schneider, a unidade orgnica profunda, o
movimento contnuo da obra, o poder expressivo da msica, do
ponto de vista do drama. E completa: A pera clssica
sacrificava o assunto ao canto, a pera romntica sacrificava a
msica ao movimento. Para Wagner, tratava-se de restaurar a
dignidade do assunto, a importncia do movimento dramtico e
de transformar a partitura em sinfonia.
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As luzes da ribalta e a mise-en-scne
Alm das questes que envolvem msica, poesia e drama,
que so talvez o ncleo essencial da proposta wagneriana,
aspectos referentes a outras formas de criao de espetculos
passam tambm a fazer parte do conjunto de sua reflexo e
produo criativa. Talvez uma das mais importantes tenha sido
a revoluo operada nos teatros do sculo XIX. Principalmente
em Paris. No h dvida que Wagner aprendeu muito naquela
cidade que, no incio de sua carreira, representava para ele a
possibilidade de conquistar o mundo. Paris era, de fato, o centro
de maior irradiao da cultura operstica naquela fase do
sculo. Apesar dessa sua primeira estada em Paris ( de
setembro de 1839 a abril de 1842) ter sido um fracasso quase
completo, teve ocasio de observar as grandes mudanas que
estavam ocorrendo na pera francesa. Eram elementos que,
pouco a pouco, se introduziam na representao e na
encenao propriamente dita.
Um deles foi a inveno das luzes da ribalta, em 1826.
Outro foi a adoo dos livros de produo - livrets de mise-en-
scne - ainda no comeo do sculo XIX. Esses livros incluam
notas e ilustraes de cenrios e figurinos, mostrando como
tinha sido a produo original parisiense. Seu objetivo inicial
era orientar os teatros do interior no sentido de terem um guia
de produo. Os livrets de mise-en-scne falavam ainda das
necessidades de iluminao, como deveria ser a direo e quais
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os requisitos vocais para os principais papis das peras. Eram
uma espcie de roteiro de produo. claro que todos os
compositores desejavam primeiro o sucesso em Paris. L,
poderiam utilizar efeitos espetaculares, incluindo o bailado, que
havia sido introduzido na pera francesa por Lully. Alis, as
produes francesas ficaram tambm famosas por suas
concepes de trajes, msica e cenrios, segundo afirma John
Louis Digaetani.10
Hoje talvez no nos demos conta da importncia de
algumas dessas mudanas no desenvolvimento do espetculo
operstico. Mas, s para ilustrar como foram decisivas essas
novas conquistas, basta dizer que as chamadas luzes da ribalta
deram um brilho extraordinrio ao palco. A substituio das
velas de cera e dos lampies a leo, pelo gs de carvo, tornou a
representao menos arriscada e menos enfumaada. Com a
chegada da eletricidade aos palcos, os recursos de iluminao
se ampliaram muito. Apenas seis anos separam a inaugurao
da pera de Paris, da luz eltrica, que substituiu a iluminao a
gs, em 1881. Ela havia sido projetada por Charles Garnier e
inaugurada em 1875. Foi tambm no sculo XIX que foram
inventados e levados para os palcos das peras o panorama, o
diorama e o panorama parcial . O prprio Louis-Jacques
Daguerre, um dos inventores da fotografia, aplicou esses efeitos
ticos em produes teatrais.
10DIGAETANI, John Louis: Convite pera. Rio. Jorge Zahar Editor, 1988.
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Todas essas inovaes foram fruto da Revoluo Industrial
e tornaram a apresentao de espetculos algo mais sedutor.
No foram abandonados de imediato os teles pintados, nem
muitas solues criadas na Itlia, Inglaterra e Frana,
principalmente. No entanto, era bvio que o espetculo teatral
tinha agora novas possibilidades, tambm mecnicas. As
mquinas de teatro se aperfeioaram. De certo modo, a iluso
passou a ser construda de forma mais convincente. Espao,
movimento, cor, luz, construo se associam para um mesmo
espetculo. Cenrios fantsticos e arquiteturas engenhosas
passaram a fazer parte dos principais teatros de pera da
Europa.
claro que a tudo isso Wagner estava atento e refletindo
sempre sobre o que via e observava. Por outro lado, estava
sempre pesquisando e estudando. Portanto, quando ele realiza
suas propostas ou escreve sobre elas, esse trabalho fruto de
amadurecimento prvio bastante considervel. Basta observar
as datas em que suas obras estrearam. H sempre a diferena
de alguns anos entre elas, com exceo das primeiras obras.
bvio que tambm Giuseppe Verdi inovou a pera do
sculo XIX. Alis, ambos nasceram no mesmo ano e, em vrios
momentos, Verdi declarou admirao por Wagner. No entanto,
como o meu objetivo mostrar como a presena inovadora de
Wagner o aproxima da esttica cinematogrfica, deixo apenas
registrado que o grande compositor italiano tambm contribuiu
para as transformaes que se operaram no campo do
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espetculo operstico. Devo dizer ainda que as circunstncias
histricas tambm influram muito nessas duas carreiras. Basta
dizer que, tanto Alemanha como Itlia realizaram suas
unificaes no perodo de vida de ambos os compositores.
Revolucionrios, cada um a seu modo, produziram obras de
extraordinria importncia para seus prprios pases e
influram decisivamente nos seus destinos.
Wagner talvez tenha sido mais contundente em suas
propostas. Ele, de fato, refez a pera durante a sua vida,
insistindo, em particular, que a pera era em primeiro lugar
uma arte, e entre as artes, a primeira.11Fiel a esse princpio,
procurou adequar todas as condies artsticas e materiais
sua forma de conceber a pera. Ao contrrio de muitos de seus
contemporneos, que no consideravam o drama importante -
pois, para eles, era apenas uma espcie de desculpa para
algumas rias para bons cantores e alguns efeitos de cena
brilhantes - Wagner toma muito a srio a estrutura dramtica
de suas narrativas musicais. O palco para ele um espao
quase sagrado. Se a msica tinha uma funo essencial e
fundamental na construo do espetculo, o drama no poderia
de forma alguma ser desprezado. E mais que isso, era parte
integrante desse conjunto, tornando-se, portanto, tambm
essencial ao espetculo. No foi por outro motivo que Wagner
mandou escurecer o auditrio. Com isto, quebrou uma rotina
que estava enraizada nos hbitos do pblico. Muitos se
11DIGAETANI, John Louis. Op. Cit..
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acostumaram a conversar durante a apresentao. Outros iam
visitar seus amigos nos camarotes. Outros ainda estavam mais
interessados em observar as jias e roupas das mulheres do que
em prestar ateno ao espetculo.
Por causa dessa exigncia de escurecimento da sala,
Wagner teve muitos opositores. Mas, no espao de dez anos
todos os teatros de pera da Europa tinham adotado o mesmo
procedimento. Seu objetivo era naturalmente fazer com que o
espectador entrasse no clima da representao e fosse envolvido
por sua magia. O palco deveria ser alvo de ateno total. O
pblico no deveria se dispersar.
No foi s essa mudana que Wagner executou no ritual
do espetculo operstico. Cuidou muito tambm da cenografia.
Talvez no tanto quanto desejasse, pois muitos efeitos
cenogrficos exigiam condies que no estavam ainda
disponveis. De qualquer modo, usou a iluminao de forma
muito mais criativa, embora com recursos at inferiores aos que
j existiam em Paris. Digaetani registra, por exemplo, a
instalao de uma cortina de vapor atrs do arco do proscnio,
na frente do palco, que produzia as cerraes e nevoeiros das
produes.
Outra inovao fundamental foi a colocao da orquestra
abaixo do palco, escondida por uma lmina de metal curva.
Tratava-se no apenas de esconder os msicos para no distrair
o espectador, mas tambm liberar Wagner para usar certos
sons, despercebidos em suas fontes. Gostaria aqui de abrir um
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parntese para comentar a funo dessa percepo sonora
wagneriana, em relao ao cinema. evidente que o cinema
usar essa percepo quase que exaustivamente, criando uma
associao nova entre msica e imagem. A fonte sonora no
precisa necessariamente ser percebida em cena para conseguir
o objetivo desejado. Muitas vezes, a sua no identificao
espacial que acaba criando a atmosfera esperada, ou mesmo a
identidade do personagem ou a explicitao da situao
encenada. No quero me deter aqui sobre este tema, uma vez
que mais adiante a ele voltarei com mais detalhes. Mas, era
importante registrar essa concepo que o cinema ir
desenvolver de forma extraordinria, no sculo XX.
Alm dessa concentrao no drama, Wagner queria de
seus espectadores um acompanhamento quase ritual de seu
mundo musical. Quando construiu Bayreuth, por exemplo,
queria que as cadeiras fossem duras para evitar qualquer tipo
de cochilo, segundo registra Digaetani. Mas, acima de tudo, com
a ajuda de Gottfried Semper e Karl Bundt, projetou Bayreuth,
sem camarotes. Apenas um, para o rei Ludwig II da Baviera,
que fora seu mecenas. Desejava tambm que esse teatro fosse
para o povo e no para a decadente aristocracia. Pretendia que
esse espao fosse mais democrtico.
No que diz respeito ao trabalho dos cantores em
cena,Wagner tambm inovou. Tinha sempre muito cuidado na
escolha de seus intrpretes. Muitas vezes no conseguia os que
desejava, mas sempre trabalhou muito com eles. Dava-lhes
-
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instrues precisas no apenas em relao voz, mas tambm
em relao ao comportamento em cena. Em alguns casos
chegava mesmo a fazer a sua escolha a partir do physique-du-
rle dos cantores, embora isso nem sempre fosse possvel,
devido tradio de que os bons cantores tm sempre um corpo
avantajado. De qualquer modo, sua escolha sempre levava em
considerao, em primeirssimo lugar, a qualidade vocal do
intrprete. No se pode, no entanto, deixar de salientar essa
preocupao com a qualidade da encenao, da qual ele no
abria mo.
Por fim, gostaria de ressaltar que esse esmero com as