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MAGDA RITA RIBEIRO DE ALMEIDA DUARTE CHRISTUS VINCIT, CHRISTUS REGNAT, CHRISTUS IMPERAT: REPRESENTAÇÕES DE IGREJA E IMPÉRIO, LEGITIMAÇÃO EM UM SÓ DEUS (SÉCULOS XI E XII) UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS MONTES CLAROS Dezembro/2012

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MAGDA RITA RIBEIRO DE ALMEIDA DUARTE

CHRISTUS VINCIT, CHRISTUS REGNAT, CHRISTUS IMPERAT:

REPRESENTAÇÕES DE IGREJA E IMPÉRIO, LEGITIMAÇÃO EM

UM SÓ DEUS (SÉCULOS XI E XII)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

MONTES CLAROS

Dezembro/2012

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MAGDA RITA RIBEIRO DE ALMEIDA DUARTE

CHRISTUS VINCIT, CHRISTUS REGNAT, CHRISTUS IMPERAT:

REPRESENTAÇÕES DE IGREJA E IMPÉRIO, LEGITIMAÇÃO EM

UM SÓ DEUS (SÉCULOS XI E XII)

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em História, da Universidade

Estadual de Montes Claros, como parte dos

requisitos para obtenção do título de Mestre em

História.

Área de concentração: História Social

Linha de Pesquisa: Cultura, Relações Sociais e

Gênero

Orientador: Franscino Oliveira Silva

Co-orientadora: Helen Ulhôa Pimentel

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

MONTES CLAROS

Dezembro/2012

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MAGDA RITA RIBEIRO DE ALMEIDA DUARTE

CHRISTUS VINCIT, CHRISTUS REGNAT, CHRISTUS IMPERAT:

REPRESENTAÇÕES DE IGREJA E IMPÉRIO, LEGITIMAÇÃO EM

UM SÓ DEUS (SÉCULOS XI E XII)

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, da

Universidade Estadual de Montes Claros como parte dos requisitos para obtenção do título de

Mestre em História que, em caso de aprovação será assinada pela Comissão Examinadora

citada abaixo.

Prof. Franscino Oliveira Silva

Orientador – Departamento de História – Unimontes

Profa. Helen Ulhôa Pimentel

Co-orientadora – Departamento de História – Unimontes

Profa. Ana Paula Tavares Magalhães

Departamento de História - USP

Profa. Cláudia de Jesus Maia

Departamento de História – Unimontes

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

MONTES CLAROS

Dezembro/2012

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A meu bem,

Aos meus queridos: papai, mamãe, Hérica, Tatinha e Cátia.

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AGRADECIMENTOS

Um trabalho pronto nem sempre é uma pesquisa acabada. Muitos passos ainda

precisam ser dados nesse caminho. A história não acaba e nem poderia acabar assim. Como

disse o Duby (1993), ela continua. Enquanto andamos, muitos nos acolhem e nos ouvem, por

mais mirabolantes ou inúteis sejam as nossas ideias. A esses amigos que me deram os

ouvidos, os olhos, a paciência, eu preciso agradecer logo, para que no longo caminhar eu não

vá cometendo o pecado da ingratidão.

Ao Professor Franscino Oliveira Silva, porque sou eu a primeira da sua lista de

devedores eternos. Durante esses quatro anos – incluindo a especialização que antecedeu a

este mestrado – ele me ofereceu mais que orientações à pesquisa, mas também, e de maneira

muito generosa e amiga, encorajamento acadêmico e consideráveis doses de incentivo para

continuar a árdua tarefa de estudar o Medievo, não obstante as nossas dificuldades de

estudantes do “além-mar”.

A Professora Helen Ulhôa Pimentel, pela orientação tão eficaz e pródiga. Suas leituras,

as incontáveis e valiosas sugestões foram essenciais para que o trabalho ganhasse esse

desenho. Minha dívida com ela é igualmente infindável. Imensa é a minha gratidão também

pelo notável estímulo para que eu continue essa trajetória acadêmica.

Ao Professor César Henrique Porto, meu orientador na graduação, por ter me ajudado a

dar os primeiros passos na pesquisa sobre o medievo. Sou grata pelo incentivo, pela conversa

franca sobre o meu objeto de trabalho e pelos livros.

A CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pelo

fomento desta pesquisa.

A Universidade Estadual de Montes Claros pela oportunidade de crescimento por meio

do Programa de Mestrado.

Aos professores do Mestrado, pelo empenho e pela notável iniciativa de possibilitar o

crescimento da pesquisa regional. Uma deferência especial à geógrafa que me ajudou a

melhor compreender as relações entre poder e território, Professora Anete Marília Pereira.

A Professora Ana Paula Tavares e a Professora Cláudia Maia, por terem aceitado

participar da banca examinadora. Também incluo a Professora Simone Lessa que, ao lado da

Professora Cláudia, deu grandes contribuições no exame de qualificação.

Aos professores, estudiosos da Idade Média, que contribuíram largamente para o

desenvolvimento desta pesquisa com livros, sugestões e diálogos, às vezes, bem francos.

Minha gratidão sem medidas a: Ana Paula Tavares (USP), José Luiz Santos (USP), Leandro

Duarte Rust (UFMT). Também ao Professor Vinícius Dreger (USP), um especial

agradecimento, por ter contribuído com a maior parte da bibliografia relativa ao Império

Germânico medieval e, sobretudo, por ter me apresentado às fontes concernentes a Henrique

IV, além das conversas pertinentes ao assunto.

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A minha querida amiga e Professora Filomena Cordeiro que sempre esteve pronta para

me ajudar em todos os aspectos acadêmicos e pessoais, pelo carinho e amizade de sempre.

Ao meu esposo querido, pelo amor, pelo apoio constante e, sobretudo, pela paciência.

A minha família e aos meus amigos (todos – especialmente, à Iara e aos meus amigos

primeiros do curso de História, aqueles que estiveram comigo na minha formação inicial:

Leila, Fabrícia, Marcinha e Juliano – a este último pelo suporte na conferência do trabalho),

pela confiança, pela força e por acreditar sempre em mim, mais do que eu mesma.

Sobretudo a Deus, pela luz.

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“E se, sob as bênçãos de Deus, ele [Henrique IV] recobrar seus sentidos, não importa o que

ele tenha tramado contra nós, ele nos encontrará sempre prontos para recebê-lo na santa

comunhão...” (Gregório VII, Epistolae collectae, 1076)

“Prometo manter a devida obediência em todas as coisas à Sé Apostólica e a vós, Papa

Gregório.” (Henrique IV, Promissio Oppenheimensis, 1076)

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RESUMO

Nosso trabalho busca analisar as representações da Igreja e do Império a partir das

relações entre os poderes secular e espiritual, nos séculos XI e XII, considerando o processo

reformista e a Controvérsia das Investiduras entre o Papa Gregório VII e o Rei Henrique IV.

Com o aporte metodológico das representações e da Análise de discurso, extraímos dessa

relação de poderes, que abarca nosso objeto de estudo, o seguinte problema: qual o

significado da Controvérsia das Investiduras para o processo de construção e consolidação das

representações da Igreja e do Império nos séculos XI e início do XII? Com o objetivo de

compreender o processo de construção das representações anterior ao período reformista,

buscamos traçá-lo a partir da elaboração das imagens da Igreja e do Império até aquela época.

Depois, analisando os documentos originados no conflito entre o Rei e o Papa, relacionamos o

processo reformista e a Controvérsia àquelas construções. A análise colocou-nos diante de um

quadro de imagens que nos possibilitou um resultado para o nosso questionamento inicial: a

Controvérsia das Investiduras significou mais que um conflito pelas nomeações episcopais

dentro do processo de reforma eclesiástica. O conflito correspondeu a uma grande batalha de

representações de mundo.

PALAVRAS-CHAVE: Igreja, Império, Representação, Gregório VII, Henrique IV,

Reforma.

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ABSTRACT

Our work intends to analyze the Church and Empire representations from the

relationship involving the secular and spiritual powers in the 11th

and 12th

centuries. For this

we considered the reform process and the Investiture Controversy between Pope Gregory VII

and King Henry IV. Taking methodological support at the Representations and Discourse

Analysis, we extract from those relationships, that embrace our subject, the following

problem: what’s the significance of Investiture Controversy for the process of construction e

consolidation of the Church and Empire representations throughout 11th

and in the early 12th

century? With the purpose of comprehending the process of construction of representations

before the reform era, we tried to draw it from the elaboration of the Church and Empire

representations until that time. Afterwards, analyzing the documents produced during the

conflict between the King and the Pope, we linked the reform process and the Investiture

Controversy to those constructions. The study placed us in front of a set of images that allow

a perception of a result for our early question: the Investiture Controversy meant more than a

quarrel for the Episcopal appointments in the process of the ecclesiastical reform. The conflict

signified a great battle of representations of world.

KEYWORDS: Church, Empire, Representation, Gregory VII, Henry IV, Reformation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................11

CAPÍTULO 1 – ENTRE DIADEMAS, TIARAS E PODER: REPRESENTAÇÕES DE

IGREJA E IMPÉRIO NO CENTRO-MEDIEVO...............................................................23

1.1 As imagens da Igreja: a formulação eclesiológica do Primado como pedra

angular.....................................................................................................................24

1.1.1 Corpus Christi: à imagem daquele que a criou.....................................39

1.1.2 Esposa: uma visita ao Cântico dos Cânticos.........................................41

1.1.3 Mater et Navis Petri: uma mãe que acolhe, um barco que leva a

Deus......................................................................................................43

1.1.4 O papa: o sucessor de Pedro.................................................................48

1.2 Representações de Império, de Rei e de Imperador................................................54

CAPÍTULO 2 – NON EST POTESTAS NISI A DEO..........................................................71

2.1 Algumas teorias das relações de poder entre Império e Papado.............................71

2.2 E por falar em Reforma...........................................................................................84

2.2.1 Contra o nicolaísmo e pela moralização do

clero...................................................................................................88

2.2.2 Contra a simonia, pelas investiduras eclesiásticas e pela Libertas

Ecclesiae................................................................................................93

2.3 A guerra pelas investiduras: as representações construídas por papa e rei...........100

2.3.1 Ato I em dois atos: o divórcio e a questão da igreja

milanesa...............................................................................................105

2.3.2 Ato II – A eleição de Gregório: “contrário a seus costumes, colocaram o

controle dos negócios em minhas

mãos”...................................................................................................111

CAPÍTULO 3 – PELA JUSTITIA E CONTRA A SUPERBIA: O CAMINHAR DO

CONFLITO E O CONTÍNUO DESVELAR DAS REPRESENTAÇÕES......................116

3.1 Ato III – Fase I do conflito: excommunicatio de Henrique e renúncia a

Gregório...............................................................................................................119

3.2 Ato IV – Canossa: penitência, perdão, reconciliação? O ritual de deditio de

Henrique IV..........................................................................................................132

3.3 Ato V – A nova excomunhão de Henrique, a virada da opinião pública contra

Gregório e o fim do papa - não do conflito..........................................................146

3.4 Finda a guerra, mas a Contenda se arrasta século XII adentro.............................151

3.5 Volta às representações.........................................................................................163

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................169

REFERÊNCIAS....................................................................................................................173

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação surgiu do amadurecimento da pesquisa que venho desenvolvendo

desde a graduação em História. A primeira monografia sobre o tema das investiduras1 no

século XI foi o trabalho de conclusão de curso, orientado pelo Professor César Henrique de

Queiroz Porto, intitulado Do céu à terra do altar ao trono – relações entre Igreja e poder

laico na Idade Média. Nesse primeiro momento, de maneira incipiente, comecei a reconhecer

as relações entre os poderes espiritual e temporal realizando um estudo bibliográfico por meio

do qual pude perceber as disputas entre os dois poderes para se estabelecerem como

autoridades supremas na sociedade cristã ocidental no século XI.

Posteriormente, tive a oportunidade de continuar com o tema em uma pós-graduação

Lato Sensu na monografia Quod solus possit uti imperialibus insigniis – os princípios de

poder e de política no discurso de Gregório VII (1073 – 1085), orientado pelo Professor

Franscino Oliveira Silva. Nessa fase da pesquisa, tive um contato maior com as fontes e pude

realizar um estudo mais aprofundado das relações de poder a partir do discurso de Gregório

VII especialmente nos Dictatus Papae. O que me intrigou e levou a continuar o estudo do

tema no mestrado foi a hipótese da existência de um forte discurso religioso do qual

emanavam representações que serviam de sustentáculo tanto para o poder do rei quanto para o

poder do papa.

Assim, comecei a fazer uma leitura mais apurada das fontes régias e pontifícias bem

como de outros novos textos, identificando e analisando os diversos aspectos relacionados à

legitimidade – ou ao processo de legitimação – daqueles poderes. A thrice-repeated Christus

vincit, Christus regnat, Christus imperat – Cristo vence, Cristo reina, Cristo impera – que

abre o título deste trabalho foi escolhida por uma razão especial. Ao percorrer as páginas

anotadas por Morrison para apresentar as cartas – documentos oficiais – imperiais do século

XI que traduziu e organizou junto com Theodor E. Mommsen (2000, p. 25), deparei com a

menção às Laudes de Ivrea cantada para aclamar o prelado de Ravena, o antipapa

henriquiano, Clemente III, e também o próprio imperador, Henrique IV.

As Laudes foram proclamadas, provavelmente, na última década daquele século e a

parte que compreende a tríplice repetição, no seu texto e contexto, remete-nos ao nosso

problema que compreende o seguinte questionamento: qual o significado da Controvérsia das

Investiduras para o processo de construção e consolidação das representações da Igreja e do

1 Grosso modo, investir quer dizer nomear. As características específicas desse tipo de nomeação poderão ser

entendidas ao longo do trabalho.

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Império nos séculos XI e início do XII? A partir dessa indagação é que tenho como objetivo a

compreensão das representações das duas instituições e de como se efetivou a busca de sua

legitimação fundamentada no discurso religioso naquele período.

A despeito dos aspectos metodológicos deste trabalho, não pretendemos pensar a

história que pesquisamos como História da Igreja pura e simplesmente, mas, de maneira mais

ampla, como História Cultural que abranja de maneira pluridimensional as percepções e

experiências do homem e o seu viver em sociedade fazendo disso uma base da cultura

política. É, no entanto, impossível ignorar a história da instituição eclesiástica já que a grande

parte dos documentos que os medievalistas usam originou-se entre clérigos que, em razão da

sua ligação com a Igreja, deixaram, naturalmente, impressões de homens com ela envolvidos.

Para tanto, percorremos, no âmbito teórico-metodológico, os caminhos das

representações bem como da Análise do Discurso. O descortinar do mundo medieval

proporcionado pelas fontes – notadamente as cartas do rei Henrique IV e do papa Gregório

VII e também da biografia anônima do rei – demandam essa abordagem metodológica. Ao se

considerarem cabeça2 da christianitas (cristandade), o papa e o rei alicerçaram suas

reivindicações sobre representações construídas ao longo de séculos. De um lado, aparecia a

imagem do papa, sucessor de São Pedro na Roma primaz – representação cuja gênese é quase

tão antiga quanto à própria Ecclesia (Igreja). Dessa disseminada ligação do bispo romano com

o Apóstolo, derivaram outras representações entre as quais a que conferia ao prelado o

supremo poder de tudo ligar e desligar na terra e conseguintemente no céu. Em decorrência

disso, a cabeça do corpo formado pela Igreja, incluindo toda a sociedade cristã, era o papa, o

Vicarius Petri ou mesmo o Vicarius Dei. Muitos dos documentos produzidos pelo papado e

por reformadores, como Humberto de Moyenmoûtier, versam sobre esse ofício papal e sobre

a sua relação com os cristãos, especialmente abordam o tema sobre as investiduras. Nesse

sentido, entre os textos que nos servirão de fontes estão muitas cartas de Gregório VII e

fragmentos de textos produzidos por reformistas.

De outro lado, as representações de Império estavam ligadas ora às teorias de não

intervenção do poder temporal nos negócios eclesiásticos, ora à defesa da colaboração entre

2 Como se perceberá ao longo do trabalho e em todos (pelo menos aos que tivemos acesso) os estudos sobre o

assunto, o termo “cabeça” significa liderança, guia, mas também, e principalmente, vem no sentido de parte do

corpo. Dessa forma, o uso da expressão “o cabeça” para líder vai se alternar com o de “a cabeça” para designar o

chefe do poder espiritual e, às vezes, do temporal, como parte do corpo mesmo. Isso se dá, como se verá logo no

primeiro capítulo, em razão da construção da representação da Igreja e da sociedade cristã como um corpo de

que todos os cristãos são membros (sociedade corporativa). Neste caso, o papa ou o rei (dependendo da

percepção), em razão de sua função no corpo social eram a cabeça. “Qual é a cabeça deste corpo que é a

Cristandade? Na verdade, a Cristandade é bicéfala. Tem duas cabeças: o papa e o imperador”. (LE GOFF, 2005,

p. 267).

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os dois poderes, ou, ainda, à acepção sacralizadora do poder secular – que é um poder

profundamente marcado por características religiosas na Idade Média. O rei que é apresentado

muitas vezes como o braço humano forte – e também guerreiro – que protege a Igreja com sua

espada era também aquele que recebeu do próprio Deus seu divino poder, que o fazia Rex Dei

Gratia – Rei pela graça de Deus. A imagem do rei é, dessa maneira, sagrada, nos moldes dos

grandes reis das histórias bíblicas. Eram os reis medievais cristãos os que guerreavam guiados

pela força do divino e para proteger a instituição criada pelo próprio Cristo. Tais soberanos

tinham como espelho reis como o próprio Saul (quando foi ungido) (1Samuel 10, 1 e 11, 12-

15), Davi (1Samuel 16, 12-13), Salomão (1Reis 1, 30-40) e o rei Melquisedeque, este muito

mais antigo e ele em especial (Gênese 14, 18), considerados sacerdotes de Deus.

Dessa maneira, consideramos que essas representações presentes nos discursos do

papa e do rei eram fundamentadas pela autoridade de quem os realizava. O que é peculiar ao

discurso de autoridade são a compreensão e o reconhecimento – juntos. Para ser reconhecido,

o discurso deve ser pronunciado por alguém legítimo, em ocasião legítima e também em

forma legítima. Isso se liga à perspectiva do ato de autoridade. (BOURDIEU, 1996, p. 91-93).

As ações do papa e do rei só eram legítimas quando as realizassem dentro de sua

competência. Era necessária a aquiescência dos fiéis e dos súditos àquele discurso para que a

representação se consolidasse. Esse assentimento proporcionava a legitimação das ações bem

como do discurso do chefe de poder.

As representações de Regnum et Sarcedotium se traduzem num conflito que reflete um

confronto por um determinado modo de se ordenar a sociedade e, por isso, de organizar a

estrutura social de maneira hierarquizada. (CHARTIER, 1991, p. 186). Para compreender essa

percepção de luta de representações como reflexo da busca por determinado ordenamento

social, é preciso entender a noção de representação que fundamenta este trabalho.

Inicialmente, pensamos na análise trazida por Bloch em Os Reis Taumaturgos quando

discorre acerca dos milagres régios e a sua existência efetiva a partir da crença do povo neles.

Se as pessoas acreditavam no milagre, então, ele passava a existir. Le Goff lembra que nessa

percepção de Bloch não “há determinismo, mas correlações racionais entre os fenômenos

históricos, sem que se tenha a identificação hegeliana entre o racional e o real”. (BLOCH,

1993, p. 16). Analisando por esse viés, as representações de papa e de rei como cabeças da

cristandade, um e outro buscando a posição superior, por diversas vezes, eram legitimadas

pela crença dos cristãos. Isso se dava principalmente no que diz respeito ao papel do papa

cujo poder sempre (sem temer o determinismo) era justificado pelo discurso religioso e, na

maioria absoluta das vezes, pela própria Bíblia.

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Andemos mais adiante no conceito de representação. Desta vez, pensemos na acepção

empregada por Chartier (1991, p. 184) que considera as relações de representações aquelas

entre “o signo visível e o referente significado” ou mesmo relações “entre uma imagem

presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga”. É neste autor

que vemos a noção de representação de maneira mais abrangente e mais elaborada para esta

pesquisa. Chartier defende que o conceito viabiliza a integração de três perspectivas mais

amplas. Desse modo, assegura que:

As representações coletivas que incorporam nos indivíduos as divisões do

mundo social e estruturam os esquemas de percepção e de apreciação a partir

dos quais estes classificam, julgam e agem; em seguida, as formas de

exibição do ser social ou do poder político tais como as revelam signos e

‘performances’ simbólicas através da imagem do rito ou daquilo que Weber

chamava de ‘estilização da vida’; finalmente, a ‘presentificação’ em um

representante (individual ou coletivo, concreto ou abstrato) de uma

identidade ou de um poder dotado assim de continuidade e estabilidade.

(CHARTIER, 1994, p. 104).

Sobre essa percepção de Chartier, é pontual a conclusão de Pesavento: o real e o

imaginário não são opostos. Nesse sentido, o discurso e a imagem, além de refletirem a

perspectiva real da sociedade, são compreendidos como fundamentos de instituição de poder

bem como de mudança da realidade. Sendo assim, “a representação do real, ou o imaginário,

é, em si, elemento de transformação real e de atribuição de sentido ao mundo”.

(PESAVENTO, 1995, p. 18).

É possível então, a partir dessa acepção, perceber a organização ou, pelo menos, a

tentativa de estruturação da sociedade cristã medieval considerando a divisão de papéis ou de

ofícios na proposta de hierarquização trazida por alguns reformadores, especialmente, por

Gregório VII, que considerava o pontífice – portanto, a si mesmo – a cabeça da cristandade.

Isso não se deu diferente com Henrique IV. Conforme seu biógrafo anônimo, usando o

preceito defendido por Gregório de Catino, “o rei era a cabeça da Igreja” (MOMMSEN &

MORRISON, 2000, p. 101).

No que tange ao discurso, continuamos a pensar na relação do sujeito com o contexto

fortemente religioso da Idade Média. Quando, por exemplo, analisamos as cartas de Henrique

IV, de todas as que tivemos acesso, não há sequer uma que não faça qualquer referência a

aspectos caracteristicamente religiosos. Termos como Deus, Cristo, Igreja, bênçãos,

obediência (no sentido religioso, à Sé Romana, ao Papa), salvação humana, são apenas alguns

que podem ser encontrados na coleção de escritos do chefe temporal germânico – dele próprio

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ou da chancelaria real. Obviamente, não se pode ignorar que tais documentos foram

produzidos no contexto da controvérsia com o Papa Gregório VII, no entanto, há outra

questão. As ações do rei não eram, por diversas vezes, compatíveis com aquele discurso

religioso. Suas promessas de fidelidade à Sé de Pedro eram quebradas na primeira

necessidade de realização de um acordo político ou de qualquer outro ato que o mantivesse

com a coroa ou que o fortalecesse.

Diante disso, observamos o homem medieval a partir da característica mostrada por

Haroche sobre a formação do sujeito que é, para aquele período, o de “forma-sujeito

religioso”. Desse modo, o discurso religioso constituía o sujeito, o homem medieval.

(ORLANDI, 2010, p. 51). Olhando por esse ângulo, entendemos que o rei – cristão que era –

não era a primeira instância em enunciação, já que ele compunha o grupo de homens

medievais.

Henrique IV parecia se encaixar bem na ordem do discurso, pois obedecia “às regras

de uma ‘polícia’ discursiva”, embora seus atos fossem contrários ao que dizia e prometia.

Para se ajustar ao “verdadeiro” do discurso, o rei reivindicava seu caráter sagrado e tudo que

emanava dessa perspectiva religiosa para se manter dentro das tais regras exigidas pelo

controle discursivo. (FOUCAULT, 2011, p. 35-36). Na esteira de Foucault, analisamos

também a existência de um ritual no discurso do rei.

O ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e

que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar

determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define

gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de signos

que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou

imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os

limites de seu valor de coerção. Os discursos religiosos, judiciários,

terapêuticos e, em parte também, políticos não podem ser dissociados dessa

prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo

tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos. (FOUCAULT,

2011, p. 39).

No entanto, e antes de tudo, pensamos o discurso, como traz Orlandi (2010, p.21),

como algo que supera os signos e a língua, algo carregado por um “processo de significação”

e de constituição do sujeito.

Desse modo, diremos que não se trata de transmissão de informação apenas,

pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos

afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de

constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente

transmissão de informação. São processos de identificação do sujeito, de

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argumentação, de subjetivação, de construção da realidade, etc. Por outro

lado, tampouco assentamos esse esquema na ideia de comunicação. A

linguagem serve para comunicar e para não comunicar. As relações de

linguagem são relações de sujeito e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e

variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito de sentidos entre

locutores. (ORLANDI, 2010, p. 21).

Além desses preceitos ligados à noção de representação e de discurso, há outros que

deverão ser enfatizados aqui e confirmados ao longo do trabalho. Reforma e liberdade

correspondem a duas dessas noções. Para tanto, buscou-se a acepção trazida por Constable,

em seu The Reformation of the Twelfth Century (2009). Assim, de acordo com esse autor,

reformare e reformatio foram os termos mais utilizados para designar as transformações no

âmbito religioso ocorridas nos séculos XI e XII. Ambos poderiam fazer referência tanto a uma

restauração e a uma renovação – ou mesmo a um despertar – quanto a um renascimento e a

uma “re-formação”. Constable considera o significado cristão tradicional – como Paulo aludiu

em sua Carta aos Romanos 12,2 – relacionando a reformatio a uma definição do ideal de

renovação pessoal. “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela

renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é

bom, o que lhe agrada e o que é perfeito” (BÍBLIA, 1995), exortava o apóstolo. No entanto,

na esteira de Paulo (e a doutrina cristã sempre foi essencialmente paulina), esse conceito

estendia-se também às instituições – tais como a Igreja, o Império, a sociedade como um todo.

(CONSTABLE, 2009, p. 3).

Em outro texto, Renewal and Reform in Religious Life (1991, p. 38), Constable

enfatiza a diferença entre o termo reformare usado por Gregório Magno – em sua obra

Moralia – e o sentido aplicado por Gregório VII no século XI. Enquanto o primeiro fazia

referência a uma reforma pessoal, o último falava de reforma da Igreja, numa perspectiva

mais ampla, uma transformação da instituição como um todo. Essa distinção é fundamental

para este trabalho, para que sejam melhor compreendidas as propostas do reformador

Gregório VII.

Consoante aos textos produzidos nos séculos XI e XII, falar de renovação, de

transformação, de reforma, é absolutamente necessário. Havia, na perspectiva reformista uma

proeminente valorização da renovação no âmbito externo, como chamou Constable (1991, p.

38-39), supraindividual. Era essa a principal característica da reforma. Para o autor, os

documentos eclesiásticos e leigos apresentavam esses termos em abundância o que revelava a

busca pela renovação da sociedade cristã, das instituições e dos costumes. Muitas dessas

expressões tiveram origem em documentos antigos, tradicionais. O emprego desses termos

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traduzia a percepção de que as instituições, bem como as posturas, eram passíveis de

mudanças. Era a crença de que o presente poderia ser melhor se se renovasse. Era uma

perspectiva de mudança, com bases no passado e voltada para o futuro, que envolvia não

somente os reformadores. A renovação, a reforma da sociedade em que viviam, era uma busca

que abrangia também os leigos e também os hereges. Segundo Constable, ao longo do século

XII ocorreu uma ideologia “de trás para frente” da reforma. “Os ideais eram frequentemente

os mesmos, mas os reformadores tendiam a olhar menos para o passado e mais para o futuro,

em busca dos modelos que buscavam impor sobre o presente”. (CONSTABLE, 1991, p. 38-

39).

Nesse sentido, conforme Gerhart B. Ladner, (1991, p. 29) a relevância do século XII

para o sentido da reforma compreende exatamente essa ideia de associação entre as velhas e

as novas perspectivas de mudanças. No entendimento do autor, houve uma ampliação do

sentido de renovação para além das fronteiras do âmbito religioso. Sendo assim, esse

alargamento abrangeria uma renovação e uma restauração também na esfera política.

Dentro desse processo de renovação, de reforma, buscou-se enfaticamente a Libertas

Ecclesiae. A luta pela libertação da instituição eclesiástica do controle temporal marcou todo

o século XI e parte do XII, em meio à Reforma que culminou na Controvérsia das

Investiduras entre Gregório VII e Henrique IV. Na disputa pelo poder, pela cabeça da

Cristandade, o papa e o rei pareciam buscar o controle do discurso para alcançar seu intento.

De um lado, o Pontífice avocava seu direito de investir bispos de acordo com princípios por

ele considerados basilares da Igreja. De outro lado, o imperador do Sacro Império Romano-

Germânico – Henrique IV – reivindicava o direito de continuar nomeando os prelados de

acordo com a costumeira prática de ingerência temporal nos negócios eclesiásticos. O

contexto desse conflito é que servirá de base para esta pesquisa, no intuito de compreender as

relações entre Igreja e poder temporal naquela época e as representações realçadas ali.

Merecem, então, destaque as expressões Reforma Gregoriana3 e a Controvérsia das

Investiduras, pois muitos estudos apresentam a luta dos reformadores pela restauração e

renovação da Igreja, no século XI, como uma mudança estrutural que afetou a sociedade

cristã medieval como um todo. De um ponto de vista mais amplo, Leyser (1994),

ousadamente, designou a reforma de maneira geral, e dentro dela o Conflito das Investiduras,

3 Usamos este termo somente por ser de mais fácil identificação com o movimento reformista ocorrido nos

séculos XI e XII. Não ignoramos que durante o século XX, desde a obra de Fliche dos anos 20 (La Réforme

Grégorienne), esse conceito passou por diversas transformações na historiografia medieval.

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como a “primeira revolução europeia” e garantiu que sua amplitude fora tal que alcançou todo

o âmbito social.

Por outro lado, Melve (2007, p. 3-4) afirma que, ultimamente, o termo “Conflito das

Investiduras” tem sido usado para se referir a uma mudança de época marcada pela virada do

milênio. Sobre a perspectiva de revolução, o autor aponta que as ramificações revolucionárias

do conflito têm sido destacadas, muitas vezes comparando-o com outras conhecidas

revoluções. Por fim, ressalta que muitos caracterizam o período como de “mudança de

mentalidade”. Independentemente das inúmeras discussões e repercussões provocadas pelo

conflito e pelas diversas direções que elas tomam, é inegável que ele tenha causado grande

impacto em vários aspectos da vida social e política daquela sociedade. Exemplo disso foi a

perspectiva intelectual, também influenciada, em que se viu nascer o primeiro debate público

na Europa medieval. Portanto, Melve reivindica o reconhecimento das mudanças que o amplo

alcance do debate provocou na esfera pública (MELVE, 2007, p. 4).

No intuito de compreensão conceitual de Libertas é fundamental lembrar que, para

alguns autores, a perspectiva de liberdade compreendida no período, considerando a disputa

entre Regnum et Sacerdotium, estava voltada para a concepção paulina. Na esteira de Paulo,

os reformadores entendiam que a liberdade do homem era justificada pela graça de Deus. A

realeza era uma benção conferida pela graça divina e os clérigos eram mediadores de tal

graça. (LUSCOMBE, 1988, p. 171). O Apóstolo exorta em 2 Coríntios 3, 17: “Pois o Senhor

é o Espírito, e onde está o espírito do Senhor aí está a liberdade”. (BÍBLIA, 1995). Essa

acepção de liberdade pode ser percebida na reforma inclusive quando se trata da

transformação na vida religiosa.

Em análise ao mesmo termo, Paul (2004, p. 215) não faz referência direta à noção

paulina de liberdade e assevera que o conceito de liberdade que aparece nos documentos do

período não é precisamente bíblico já que, no Novo Testamento, ele não constitui um termo

fundamental. No entendimento do autor, o termo é de origem romana e possui forte sentido

jurídico. Nesse sentido, a liberdade não promove a extinção da autoridade ou de estruturas

hierarquizadas, mas significa que cada indivíduo goza, dentro da ordem estabelecida pela

norma, dos direitos que a ele são reconhecidos. É isso que determina a diferença entre um

escravo e um homem livre. É esse também o ponto que distingue um povo civilizado de um

povo bárbaro. No uso feito pela instituição eclesiástica, a definição do conceito foi ampliada

para abranger o sentido religioso bem como o moral. Neste caso, a distinção maior é entre a

Ecclesia e o mundo. Isso também compreendia a diferença entre o clero e o corpo político a

que pertencia. Essa distinção também se apresenta nas questões que relacionam o Reino e o

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Sacerdócio. A essa perspectiva que liga o termo liberdade ao direito romano, Pierre Bonassie

(2006, p. 63), ao relacionar liberdade e servidão, agrega a influência germânica em que: “o

homem livre é aquele que porta armas, participa de expedições guerreiras e é admitido na

partilha do butim”.

Paul, lembrando sempre o contexto de reforma no século XI e o movimento pela

Libertas Ecclesiae, completa:

Nos tempos carolíngios, Igreja e Império eram termos intercambiáveis, o que

não ocorre mais, já que a Igreja reivindica sua “liberdade”, quer dizer, seus

direitos próprios. Enquanto que o objetivo último dos fiéis é sempre alcançar

a salvação, a Igreja e o Império não representam mais um papel equivalente

para realizar esta vocação. A diferença se apresenta progressivamente. O

papel das duas instituições é percebido de modo mais preciso. A Libertas

Ecclesiae esta no princípio de uma renovação espiritual da Igreja, obstruída

até ali pela submissão aos poderes que governam o mundo. (PAUL, 2004, p.

215-216).

No Brasil, o estudo de temas relacionados à Idade Média ainda está restrito a poucos

centros de pesquisa. Apesar de a internet “revolucionar o acesso aos corporibus documentais”

(SANTOS, 2010, p. 28), ainda há grande dificuldade, para os estudiosos do “além-mar”, de

acesso às fontes e à bibliografia, fora da rede mundial de computadores, que ofereça suporte

ao desenvolvimento de assuntos ligados ao Medievo. Assim sendo, este trabalho, que busca

analisar as representações da Igreja e do Império nos séculos XI e início do XII, a partir da

Reforma e da Controvérsia das Investiduras, se constituirá fonte, material bibliográfico, para

novas pesquisas.

Entre os trabalhos sobre essas relações entre o poder temporal e o espiritual no

Medievo, com alguma ênfase para a Controvérsia das Investiduras, como produção acadêmica

brasileira, podemos citar o texto de José Antônio de C. R. de Souza e de João Morais

Barbosa, O reino de Deus e o reino dos homens – as relações entre os poderes espiritual e

temporal na Baixa Idade Média (da Reforma Gregoriana a João Quidort), de 1997. Outra

iniciativa que dedicou algumas páginas ao tema que abordamos foi a preciosa síntese do

Professor Daniel Valle Ribeiro, Igreja e Estado na Idade Média, em coleção paradidática de

1995. Outros trabalhos, uma quantidade considerável de artigos, têm sido publicados pelo

Professor Leandro Duarte Rust abordando perspectivas historiográficas bem atuais sobre o

tema. Não temos conhecimento de nenhuma tese que compreenda somente e especificamente

as relações entre Gregório VII e Henrique IV, como tema principal, produzida no Brasil.

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Os principais textos que nos nortearão nesta pesquisa são trabalhos, entre outros, de

José Antonio de C. R. de Souza, de Marcel Pacaut, Giles Constable e I. S. Robinson. Entre as

referências complementares encontram-se trabalhos de James Henderson Burns, de Marcel

Pacaut, de José Antonio de C. R. de Souza, de Vinícius César Dreger de Araújo, de David

Luscombe e Jonathan Riley-Smith, entre outros.

Antes de explanarmos nossa divisão de capítulos, um último aspecto exige que

sejamos mais claros: nosso corpus documental. Nossas fontes se constituem de documentos

oficiais, principalmente cartas, produzidos pela Cúria pontifícia (ou pelo Papa) e pela

Chancelaria régia (ou pelo rei). Correspondem aos textos traduzidos do latim, organizados e

publicados por Ephraim Emerton – The correspondence of Pope Gregory VII: selected letters

from the Registrum – e as Imperial Lives & Letters of the Eleventh Century, por Theodor E.

Mommsen e Karl F. Morrison.

Nossas fontes são, em sua maioria, traduzidas do latim para o inglês4, e algumas para o

português. Embora haja alguns documentos anteriores, a correspondência pontifícia, que

corresponde à maior parte do nosso corpus, é datada 23 de abril de 1073 a 1084. Seu lugar de

origem é, em sua maioria, o Registrum papal. Podem ser encontradas na sua forma original na

Patrologia Latina (PL), bem como na Monumenta Germaniae Historica (MGH). As cartas de

Henrique IV são datadas entre 1054/1056 e 1106 e também compõem o acervo germânico. As

fontes em português utilizadas neste estudo foram traduzidas por Souza e Barbosa. Sua

origem não é divergente das outras. Outros documentos de natureza secundária foram

utilizados e suas referências aparecem ao longo do texto.

Considerando, entre outras, essas duas características dos nossos documentos (são

documentos oficiais e são traduzidos), temos consciência que alguns cuidados devem ser

tomados. O caráter oficial e a questão da tradução aumentam a “fragilidade” das nossas

fontes. Em primeiro lugar, no que tange ao caráter oficial das cartas, pensamos o documento

como algo que foi escrito meticulosamente para passar não só determinada informação, mas

também para aparentar certos valores. As cartas são intencionalmente escritas para que o

destinatário conheça o que o remetente quer. No caso dos documentos oficiais, esse aspecto

favorece a crença de que essas fontes são mais exatas. Eles são “bem-preparados” para

passarem credibilidade. Mas aqui, mesmo conscientes dessas “inexatidões”, não temos a

intenção de julgar, mas de compreender mesmo pelo não-dito. (BLOCH, 2001, p. 89-124).

4 As traduções das edições de documentos, bem como da bibliografia em francês e em inglês são de nossa

responsabilidade.

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Em segundo lugar, uma explicação quanto à originalidade das fontes também se

impõe. E, neste caso, a reflexão se volta para a condição e o contexto de construção do

documento. Ele não foi produzido para registrar “a verdade” dos acontecimentos, mas para

manifestar uma intenção do escritor que é completamente influenciado pelo seu contexto.

Nesse caso, o documento por si só é o fato histórico. Numa perspectiva arqueológica

foucaultiana, entendemos nosso corpus como constituído de “camadas”. Além do contexto de

sua produção, outros aspectos influenciam na formação desses “cortes” e, em nosso caso, a

tradução se mostra como tal. Se o documento original, produzido em latim já traz suas

diversas características derivados da sua condição de produção, o traduzido traz, além disso,

as impressões e, mesmo que não intencional, a infidelidade do tradutor, na tentativa de

aproximar o sentido do texto ao do seu vernáculo. São diferentes camadas discursivas. Para

Foucault, os instrumentos que os historiadores possuem para analisar os documentos

favorecem a percepção de “camadas sedimentares”, que ele mesmo explica:

[...] as sucessões lineares que até então tinham sido objeto de pesquisa,

foram substituídas por um jogo de interrupções em profundidade. Da

mobilidade política às lentidões próprias da “civilização material”, os níveis

de análise se multiplicaram: cada um tem suas rupturas específicas, cada um

permite um corte que só a ele pertence; e, à medida que se desce para as

bases mais profundas, as escansões se tornam cada vez maiores. Por traz da

história desordenada dos governos, das guerras e da fome, desenham-se

histórias quase imóveis ao olhar – histórias com um suave declive: história

dos caminhos marítimos, história do trigo ou das minas de ouro, história da

seca e da irrigação, história da rotação das culturas, história do equilíbrio

obtido pela espécie humana entre a fome e a proliferação. (FOUCAULT,

1987, p. 3).

Por último, um ponto fundamental a ser lembrado sobre os documentos que compõem o

nosso corpus corresponde ao modo de escrever as cartas. As características e termos

religiosos que frequentemente aparecem tanto nas missivas régias quanto naquelas pontifícias

não devem surpreender o pesquisador que reconhece quem as escreveu. Não discutiremos

noções de autoria, a partir da Análise do discurso, mas precisamos lembrar que tanto a

chancelaria real quanto a Cúria pontifícia era composta por prelados bem treinados com um

linguajar carregado de termos e sentidos religiosos. Embora a historiografia tenda a

caracterizar as cartas pontifícias do medievo, por exemplo, como tratados políticos, mesmo

que elas fossem carregadas desses significados, a ciência de que não possuíam,

necessariamente, essa natureza é fundamental. Cheney, ao apresentar sua seleção de cartas do

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Papa Inocêncio III, traz essa questão de maneira bem pontual. Tomemos para o nosso caso as

palavras dele.

As cartas são um guia acurado para os sentimentos, a doutrina e a política do

papa? Sem dúvida, elas são comumente tratadas com tal. Historiadores da

Igreja e da teoria política constroem, a partir delas, uma figura composta das

teorias papais de governo. Nem sempre é lembrado que essas cartas

pontifícias não foram em sua maioria tratados sobre a natureza da autoridade

política ou algo desse tipo. Elas eram enunciados ocasionais adaptados aos

correspondentes e às circunstâncias”. (CHENEY, 1952, p. 32-33).

Desse modo, a organização no nosso trabalho foi idealizada em três capítulos divididos

da maneira que passamos agora a descrever. No primeiro capítulo, analisamos a construção

das representações da Igreja e do Império e como elas apareceram em alguns documentos do

século XI. Destacamos imagens da Igreja ligadas ao Primado de Pedro e representações como

o Corpus Christi (Corpo de Cristo), a Sponsa (Esposa), a Mater (Mãe) e a Navis Petri (barca

ou barco de Pedro). Ainda na perspectiva da Igreja, analisamos a figura do papa e a evolução

dos princípios de poder que deram base ao papado na Idade Média. Além disso, realizamos

uma análise das representações de império, de rei e imperador a partir de Carlos Magno, mas

com ênfase nas dinastias pós-Carolíngias – Otônidas e Sálios, a partir das noções do sistema

de Igreja Imperial e de realeza sagrada.

No segundo capítulo, aparecem algumas teorias das relações de poder entre Igreja e

Papado que foram construídas ao longo da Idade Média. Isso porque analisaremos a reforma a

partir da luta contra a simonia, o nicolaísmo5 e a ingerência laica. Destacamos os anos que

precederam a eleição de Gregório VII até o processo de ascensão desse papa e as relações do

Império com a Sé Apostólica naqueles tempos.

O terceiro capítulo traz considerações acerca do caminhar do Conflito das Investiduras

por meio de cartas e atos de Gregório VII e Henrique IV até o seu fim com a Concordata de

Worms em 1122. Analisamos as imagens das duas instituições que implicavam luta política,

as repercussões na esfera pública a partir das manifestações episcopais e dos príncipes e

ressaltamos as representações que saíram vitoriosas, que alcançaram legitimidade ou que se

dissiparam. Além disso, destacamos o evento de Canossa como um dos momentos

fundamentais, carregado de significados, para a questão da legitimidade do Império.

5 O termo é usado no sentido que aparece no Apocalipse 2, 6, faz referência aos nicolaístas das Escrituras.

Villoslada (1953, p. 357) também faz menção a essa significação. O exegeta que comenta o texto na TEB

(Bíblia: Tradução Ecumênica) afirma que se tratava, provavelmente, de uma heresia sobre a qual não há

referências se não no Apocalipse 2,6 e 15. O livro traz o termo reprovando os adeptos dessa prática,

considerados tendentes ao gnosticismo e à libertinagem. (BÍBLIA, 1995, p. 2.428).

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CAPÍTULO 1

ENTRE DIADEMAS, TIARAS E PODER: REPRESENTAÇÕES DE

IGREJA E IMPÉRIO NO CENTRO-MEDIEVO

Na sociedade medieval, a convivência de dois poderes, o secular e o espiritual, cuja

origem repousava na divindade, via alternar acordos de sobrevivência e conflitos derivados do

mesmo motivo6. Não entendemos por poder secular aquele marcado pela característica

puramente leiga. Embora essa noção de poder abarque o temporal, o terreno, as coisas ligadas

ao império e ao príncipe, falar de poder laico na Idade Média sem considerar a construção

dessa acepção e as bases em que ela foi fundada é, no mínimo, anacrônico, para não dizer

perigoso. O poder dos chefes temporais era revestido de um inegável caráter sagrado. Desde

os séculos VIII e IX, a própria Igreja havia legitimado esse aspecto divino, religioso, do poder

temporal. Contudo, ele não se originou naquele período. A realeza sagrada é uma

característica muito mais remota que aqueles tempos, como veremos mais tarde7. (BLOCH,

1993, p. 110). De onde queremos partir para analisar as representações desse poder e do poder

espiritual8, do século XI, em meio à reforma da Igreja, esse caráter sagrado estava longe de

desaparecer.

De outro lado, o poder espiritual, que se caracterizava principalmente por aspectos

religiosos, abrangia mais que a tipicidade do âmbito religioso. O Sacerdotium abarcava

também aspectos da vida mundana porque, naturalmente, agia sobre ela. O poder espiritual

era representado pela Igreja e por seu clero. Tal poder era o elo entre o mundo terreno e o

6 Durante muito tempo, naquele período, as relações humanas – dos homens com seus semelhantes, com seus

superiores hierárquicos –, a consciência do homem quanto a seus direitos e deveres, tudo era moldado numa

perspectiva intelectual constituída a partir de preceitos bíblicos e teológico-cristãos. (MARKUS, 1988, p. 86). 7 Para uma perspectiva mais aprofundada de poder secular na Idade Média, levando em conta, entre outros

aspectos, o caráter sagrado da realeza e o tema proposto neste trabalho, conferir: E. Kantorowicz, em Os dois

corpos do Rei; M. Bloch, em Os reis taumaturgos; S. Bagge, em Kings, politcs, and the right order of the world

in German historiography; G. Althoff, em um trabalho acerca de rituais entre os reis germânicos, muito

importante para a historiografia germânica medievalista, intitulado Oto III; a impressionante coletânea de T.

Reuter, publicada depois de sua morte, Medieval Politics and Modern Mentalities; entre outros. 8 Com o poder espiritual, a historiografia é ainda mais generosa, em quantidade, que com o poder secular.

Inclusive as publicações em português são mais acessíveis, embora o número de obras traduzidas seja

incomparável às publicadas em inglês, francês ou alemão. Independente da língua, temos, a título de exemplo, D.

Iogna-Prat, com La Maison Dieu; R. G. Villoslada, com Historia de la Iglesia Catolica; R. Southern, com A

Igreja Medieval; o clássico de G. Barraclough, Os Papas na Idade Média; Daniel Valle Ribeiro, Igreja e Estado

na Idade Média; J. A. de C. R. Souza e J. M. Barbosa, O Reino de Deus e o Reino dos Homens; a coletânea

organizada por J. A. de C. R. Souza, O Reino e o Sacerdócio; várias obras de Arquillière como L’Augustinisme

Politique; obras mais gerais e complementares como a de Peter Brown, A ascensão do cristianismo no Ocidente

e de J. Chélini, Histoire religieuse de l’Occident medieval. Para o pensamento político, de ambos os poderes, não

deixemos de conferir também a grande coletânea The New Cambridge Medieval History, para este trabalho o

volume 04, que abrange os anos de 1024-1198, organizada por David Luscombe e Jonathan Riley-Smith.

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celeste. Os dois mundos foram magnificamente representados por Agostinho9 a partir da

imagem das duas cidades: a cidade de Deus e a cidade terrena.

Sendo assim, tentaremos, neste capítulo, entender as imagens que a Igreja possuía no

século XI e buscaremos identificar a construção dessas representações ao longo da sua

história, enfatizando alguns teóricos eclesiásticos que deram sua contribuição para sua

formulação. Neste estudo, pensamos representação como “[...] relação entre uma imagem

presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outro porque lhe é homóloga” ou como a

relação entre “[...] o signo visível e o referente decifrável”. (CHARTIER, 1991, p. 184). Para

tanto, consideraremos o contexto da reforma da instituição naquele século, bem como da

Controvérsia das Investiduras10

(1049 – 1122) decorrente do processo reformista. Faz-se

também necessário à discussão representações do império como poder contestante da Igreja.

Entre os dois poderes – espiritual e temporal – embora em conflito, tal como “as duas

cidades”, não se podia identificar a tênue linha que os dividia.

1.1. As imagens da Igreja: a formulação eclesiológica do Primado como pedra

angular

A proposta reformista dos primeiros séculos do segundo milênio já apareceu fortalecida

pelo discurso da primogenitura da Igreja Romana, da crença de que a cadeira pontifícia era, de

fato, a cátedra de Pedro. Quando Gregório VII, no século XI, reivindicava a proteção do

Apóstolo em suas missivas, o Pontífice o fazia crente de que o lugar que ocupava não era

outro senão o de Pedro. Essa confiança dava possibilidade de desenvolvimento, fornecia

suporte para a construção das propostas da reforma. Eram múltiplos discursos formando

relações de sentido. A primazia romana estava atrelada ao discurso da cátedra de Pedro e, ao

mesmo tempo, ambos fundamentavam o discurso proposto por Gregório VII, como se verá. E,

obviamente, outros enunciados aparecerão como suporte da reforma ao longo da pesquisa. No

9 Nasceu em Tagaste em 354. De origem pagã (pelo pai) e cristã (pela mãe, Mônica), Agostinho cresceu em

meio a práticas do cristianismo, embora tenha sido batizado apenas em 387. Depois que estuda retórica em

Cartago, Agostinho abandona os princípios cristãos e se envolve com práticas maniqueístas. Estudou muitas

obras neoplatônicas, especialmente Plotino, o que influenciaria mais tarde a escrita de várias de seus livros que

até hoje são importantíssimos para diversas esferas de pesquisa. Mais tarde, seduzido pelo discurso do bispo

Ambrósio (tornou-se santo e reconhecido como doutor da Igreja), foi batizado e entrou para o clero chegando a

se tornar bispo de Hipona, no norte da África. Agostinho é muito conhecido principalmente pelas suas acepções

filosóficas e teológicas. Entre os seus legados para a história da humanidade estão as obras Sermões, Confissões

e A cidade de Deus. Agostinho é considerado um dos doutores da Igreja. (Mais sobre Santo Agostinho, conferir

PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000. p. 323). 10

Na verdade, embora esse conflito tenha ficado conhecido como Controvérsia das Investiduras, a questão das

investiduras era, de fato, somente um dos pontos da contenda. (MELVE, 2007, p. 603).

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entanto, embora não se ignore os intuitos diversos por traz desses discursos, busca-se

compreendê-los sob a luz do conflito de poderes que foi desencadeado no contexto do projeto

da Libertas Ecclesiae.

Em Gregório VII, a referência a Pedro aparece em todos – ou em quase todos – os

documentos. Sua certeza de que ele é o sucessor do Príncipe dos Apóstolos é inegável.

Quando nada diz no corpo da missiva, ao menos no cabeçalho aparece a saudação seguida da

concessão da benção do sucessor do Apóstolo – comum na maioria dos documentos

pontifícios, em geral. No começo da carta em que admoesta Henrique IV a obedecer aos

preceitos da Igreja e a não mais usar as investiduras, Gregório VII escreve: “Gregório, [...], ao

rei Henrique, saúde e benção apostólica”. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 46; EMERTON,

1990, p. 86)11

. No meio do documento, reivindicava a liberdade da igreja de Milão cujo bispo

houvera sido investido pelo rei e, portanto, a ele devia fidelidade. Ao clamar pela

independência da dita igreja, o Papa o fez apelando para a fé do monarca no Apóstolo Pedro:

“[...] peço e conjuro tua Alteza, por amor a Deus e por tua reverência a S. Pedro, que restituas

o direito de liberdade àquela Igreja”. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 47; EMERTON, 1990,

p. 86-87). A Cúria possuía escreventes muito bem treinados na linguagem especifica do

Papado. Existiam regras (embora nem todos as seguissem rigidamente) derivadas de “fortes

tradições e hábitos conservadores” para guiar a escrita das missivas pontifícias. (CHENEY;

SEMPLE, 1953, p. XVI). Os termos utilizados eram, naturalmente, carregados pelos sentidos

da formulação eclesiológica do Primado Romano.

Nesse documento, o pontífice usa de termos bem diplomáticos, comuns às cartas

exortativas, para lidar com a situação das investiduras. A referência ao Apóstolo Pedro no

documento mostra que há uma aceitação do Primado Romano por parte do receptor daquela

mensagem. O fato desse primado não estar explícito nessa carta do Papa indica que havia

consenso sobre a crença acerca da herança deixada por Pedro aos bispos de Roma.

Recorremos aqui à Análise do Discurso, pois, segundo esse instrumento teórico-

metodológico, o silêncio produz sentidos, assim, era desnecessário reafirmar algo já

consolidado. (ORLANDI, 2010, p. 83).

O discurso defendia a existência do legado da Cátedra de Pedro – o trono e o ofício do

Apóstolo – que era, desde a sua morte, tomada e exercida pelo prelado romano. O princípio

11

Doravante todos os documentos contidos na edição de Ephraim Emerton (do Registrum ou das Epistolae

Collectae) serão chamados de “EMERTON, 1990” seguido da respectiva página. De maneira similar, os

documentos traduzidos por SOUZA e BARBOSA, incluindo os derivados da Patrologia Latina (PL) e da

Monumenta Germaniae Historica (MGH) receberão a referência “SOUZA; BARBOSA, 1997, número de

página”. Além desses, os documentos derivados da edição organizada por Mommsen e Morrison serão

nomeados de MOMMSEN; MORRISON.

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do Primado de Roma e da Cátedra de Pedro parecia estar consolidado no século XI. Parecia.

Embora Paul (2004, p. 221) assegure que a primazia não era nem ignorada tampouco rejeitada

no século XI e, mais, que ela se impunha como um direito bem solidificado, no trecho da

missiva papal citada acima, um dizer – e não mais um silêncio provoca uma inquietação: se o

preceito da primazia romana estava consolidado, por que o papa pede, tão encarecidamente,

pela liberdade da Igreja milanesa? O discurso poderia ser diferente, como em outras cartas em

que Gregório VII diz, como chefe da Igreja – corpo cristão, o que almeja, sem subterfúgios.

Ora os documentos causam a impressão de que havia certa firmeza no que tangia ao primado,

ora deixava transparecer que o preceito era realçado, a todo momento, para que se

materializasse. Há que se levar em conta que as imagens e discursos não correspondem

precisamente à realidade, mas a sua construção se apresenta como uma busca dessa

concretização. Não podemos desconsiderar a existência de uma lacuna entre “[...] a

concretude das condições objetivas e a representação que dela se faz”. (PESAVENTO, 1995,

p. 15).

Em documento posterior, por exemplo, quando escreve aos fiéis germânicos,

aconselhando-os a escolherem um novo rei em razão do anátema lançado sobre Henrique IV,

Gregório VII usa verbos categóricos para orientar aquele povo nas suas relações com o

monarca excomungado. A carta perde seu caráter exortativo e ganha fortes traços imperativos.

Afastai para longe dele os maus conselheiros... [...] Desejamos que Henrique

se rodeie de outros assessores, que levem mais em conta os seus interesses

do que os próprios... [...] Proibimos de modo especial, pela autoridade de

São Pedro [e aqui ele usa novamente o princípio do legado do apóstolo], que

algum de vós se atreva a absolver Henrique da excomunhão... [...]

Entretanto, se, por causa dos crimes de muitos, Henrique não se voltar para

Deus – oxalá Ele não permita isso –, que se procure, com o favor divino, um

outro governante para o reino [...]. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 51-52)

No trecho anterior a este último, apesar de o pontífice falar do amor a Deus e da

deferência – ou mesmo da veneração – a São Pedro, ele pede e conjura, parece implorar. O

teor dos dois textos e a maneira incisiva pela qual o segundo documento é registrado mostram

duas diferenças elementares. A primeira diz respeito ao tempo. Quando na carta ao povo

germânico Gregório VII mostra um discurso impositivo, ele o faz, já em momento posterior,

em meio a sua luta contra o Rei germânico, depois de tê-lo excomungado. A segunda questão

distintiva aparece tanto na perspectiva política quanto na religiosa no primeiro texto. A

maneira pela qual ele se dirige a Henrique é, naturalmente, mais diplomática. Mas, neste caso,

é possível pensarmos não somente na ausência de concretude. Em se tratando de missivas

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papais, a diplomacia é um traço comum nas cartas que fazem admoestações. A justificativa se

encontra, novamente, nas Escrituras, no evangelho de Mateus.12

Ele era chefe da Igreja e não deixava de reconhecer o poder que o Rei Henrique

representava. Na perspectiva religiosa, o Papa usou de terminologia pouco invasiva, já que o

objetivo geral da carta era mais de exortação que imposição. Neste caso, agia como pai, como

sacerdote, como um conselheiro espiritual que faz suas admoestações ao cristão. Um cristão

poderoso, mas um fiel. Por conseguinte, ao deixar transparecer um suposto “implorar”, não

elimina a certeza da existência do princípio do primado, ao menos em construção constante.

Essa ideia de processo aparece em muitos documentos quando o pontífice se afirma e tenta se

reafirmar como sucessor de Pedro. É como se fosse uma tentativa incansável de fixar essa

imagem para perpetuá-la, quem sabe.

No decurso do conflito, e diante da desobediência do Rei Henrique IV que continuava a

realizar as investiduras, Gregório VII lança sobre ele o anátema, tão temido pelos cristãos. Era

o desligamento da comunidade cristã daquele que deixara de cumprir os seus deveres como

membro do corpo cristão, da Igreja. A excomunhão abrangia muito mais que o âmbito

religioso. Era um ato que tinha consequências políticas de alto grau de relevância. O

excomungado não podia mais ser rodeado por outros cristãos. Todos aqueles que a ele deviam

fidelidade, estavam tacitamente desligados e desobrigados de tal juramento. Para um rei, os

resultados ainda eram piores. No caso específico de Henrique IV que precisava do apoio dos

príncipes germânicos, isso era visível. Havia muitos príncipes que apoiavam o Papa e não

queriam se indispor com ele. O conflito se acirrou com a sentença do papa depondo o Rei da

Germânia. A autoridade de quem produz o documento é significativa, o que se percebe pela

reação dos príncipes. Henrique é obrigado por eles a se penitenciar e a pedir perdão a

Gregório para manter seus acordos políticos. Voltaremos mais tarde em análise mais

aprofundada sobre a penitência de Henrique IV, já que, neste momento, interessa-nos

especialmente a representação do Primado romano.

O mais interessante no documento, para este capítulo, é a retomada constante dos

princípios que justificam o poder papal. A imagem da Igreja Romana, a Igreja de Pedro, e do

Papa como sucessor do Apóstolo é o recurso de legitimação daquele poder, naquele momento.

12

“Se acontecer que teu irmão peque, vai ter com ele e faze-lhe tuas admoestações a sós. Se ele te ouvir, terás

ganho teu irmão. Se não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas pessoas para que toda questão seja resolvida

sob a palavra de duas ou três testemunhas. Se ele recusar ouvi-las, dize-o à Igreja, e se ele recusar ouvir a própria

Igreja, seja para ti como o pagão e o coletor de impostos. Em verdade eu vo-lo declaro: tudo o que ligardes na

terra, será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu”. (MATEUS 18, 15-18.

BIBLIA, 1995).

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Mais uma vez, o discurso de sucessão e a representação da instituição como primaz parecem

consolidados. O início do documento de excomunhão é quase uma oração a São Pedro:

Oh, bem-aventurado Pedro, príncipe dos Apóstolos, nós te pedimos, inclina

os teus piedosos ouvidos para nós e escuta-me, a mim que sou teu servo. Tu

me nutriste desde a infância e, até hoje, me livraste da mão dos iníquos que

me odeiam e odiarão, por causa da fidelidade que te guardo. Tu és minha

testemunha, bem como a minha Senhora, a Santa Mãe de Deus, e ainda o

bem-aventurado Paulo, teu irmão, entre todos os santos, que foi tua Santa

Igreja Romana que me levou, contra a minha vontade, à sua chefia.

(SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 50; EMERTON, 1990, p. 90-91) (Grifos

nossos).

Na sequência, o Papa continua dizendo da sua ascensão à Sé de Pedro e da sua crença

em que era de desejo do Apóstolo que todo o povo cristão lhe obedecesse em razão do seu

caráter de vigário daquele a quem Cristo confiou a sua Igreja. E chamando para si o poder de

ligare e solvere (ligar e desligar), que caracteriza a sucessão apostólica, excomunga o Rei. O

Papa acredita ter recebido seu poder das mãos do próprio Deus. Sem intermediários.

Por tua graça [de Pedro], Deus me deu o poder de ligar e desligar no céu e na

terra. Apoiando-me nesta verdade, para honra e defesa da tua Igreja e em

nome de Deus onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, por meio do teu poder

e autoridade, retiro do rei Henrique, filho do Imperador Henrique, o poder

sobre todo o reino da Germânia e da Itália, porque ele ergueu-se contra a tua

Igreja com inaudita soberba, e liberto todos os cristãos do juramento de

fidelidade que lhe tiverem feito ou que venham a fazer e os proíbo de o

servirem como rei. [...] Assim, por ti [por Pedro] o liguei pelo vínculo do

anátema e, confiando em ti, assim o ligo, para que os povos possam ver e

reconhecer que tu és Pedro e que sobre esta pedra o Filho de Deus vivo

construiu a sua Igreja e que as portas do Inferno não prevalecerão sobre

ela. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 50; EMERTON, 1990, p. 90-91).

(Grifos nossos).

É visível a marca do interdiscurso neste documento pontifício e em todos os textos

produzidos pela Cúria Papal. A base é puramente bíblica. Os trechos das Escrituras são

utilizados livremente como se o que os escreventes da Sé de Pedro dissessem já não houvesse

sido dito antes. A chancelaria pontifícia de então possuía práticas de escrita muito antigas que

realçavam, repetiam, confirmavam a origem da instituição eclesiástica e os papéis de cada um

no corpo da Igreja. Orlandi delineia melhor essas relações do dito com o já-dito, do discurso e

da memória:

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A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em

relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso.

Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar,

independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber

discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pre-

construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de

palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o

sujeito significa em uma situação discursiva dada. (ORLANDI, 2010, p. 31).

No texto do Papa acima, mais uma vez, ele afirma e reafirma o poder a partir de texto

bíblico (Mateus 16, 18-19) do qual falaremos mais tarde. O princípio do primado, de fato, se

mostra em construção constante. E assim seguem os outros documentos. O rosto da Igreja

Romana no século XI era o da Igreja de Pedro – era a Igreja deixada pelo próprio Cristo sob a

guarda do apóstolo venturoso. Era o reflexo da própria cidade de Deus. Sendo assim, todas as

igrejas, dos outros apóstolos, deviam a Roma se unir. Era a vontade do próprio Filho de Deus.

Em carta a Hermann, bispo de Metz, as referências ao Primado Romano, à Cathedra Petri, à

comissão petrina compreendida na concessão do poder de atar e desatar, aparecem pelo

menos três vezes, além de outras imagens da Igreja. Em uma das vezes, é como se pudessem

ser ouvidos os rumores do conflito de poderes nos clamores de Gregório:

Porventura estão os reis excluídos, ou não fazem parte das ovelhas que o

Filho de Deus confiou ao bem-aventurado Pedro? Quem, pergunto eu, se

julga fora dessa universalidade do poder de ligar e desligar, conferido a S.

Pedro? [...] No entanto, isso não proporcionará nada de bom à sua mísera

liberdade, pois se recusa orgulhosamente a admitir o poder concedido

divinamente a S. Pedro e, entregando-se ao pecado da soberba, se nega a

suportá-lo, será obrigado a sofrê-lo muito mais duramente, por causa da sua

condenação no dia do Juízo. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 57;

EMERTON, 1990, p. 166-175).

No que diz respeito à propagação dessa imagem da Igreja, bem como do Papa, é

importante lembrar que não era só por parte do pontífice que vinham as referências à

representação da instituição como a Igreja de Cristo que a delegou a Pedro cujo sucessor era o

bispo de Roma. Havia também manifestações decorrentes do poder temporal que

corroboravam, mesmo quando contestavam o poder de Gregório VII, com os discursos

construídos na perspectiva eclesiástica. Embora muitos deles tenham promovido

transformações políticas, suas intenções nem sempre foram dessa natureza. Havia, como

percebeu Souza e Barbosa (1997, p. 9), certa relação interdisciplinar que conjugava valores de

percepções diversas como da teologia, da filosofia, da história e do direito, de maneira que

nenhuma teoria, em circunstâncias normais, sobrepunha a outra.

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No que tange à presença dessa imagem da Igreja no discurso do poder temporal, é

possível percebê-la em documento do próprio Henrique IV. Isso ocorreu quando se reuniu

com outros bispos germânicos para depor o Pontífice. O problema para Henrique não era a

dúvida de que o trono de Pedro estava em Roma. Também não parece duvidar que o bispo

romano fosse o legítimo chefe da Igreja, o sucessor daquele a quem Cristo delegou a sua

Igreja.

Henrique, rei, não por usurpação, mas pela piedosa disposição divina, a

Hildebrando, não já apostólico, mas falso monge. Por causa da desordem

que provocaste, mereceste esta saudação, pois aboliste a ordem na Igreja,

fazendo-a mergulhar na confusão e na desonra e não compartilhar da benção,

mas da maldição. [...] Sem dúvida alguma, foi pela astúcia execrada pela

vida monástica que ascendeste ao Papado, galgando os seguintes degraus:

obtiveste dinheiro, pelo dinheiro os favores; por meio destes a espada, e

graças a esta a Sé da Paz. [...] O bem-aventurado Pedro, legítimo Papa,

ensinou igualmente: temei a Deus, honrai o rei. Tu, porém, que não temes a

Deus, transgrediste a sua lei em mim personificada. [...] Por isso, foste

condenado por aquele anátema, pelos nossos bispos e pelo nosso julgamento;

portanto, desce da Sé Apostólica que usurpaste. Suba ao trono do bem-

aventurado Pedro uma outra pessoa que não obscureça a religião com a

violência, mas que ensine a verdadeira doutrina pregada pelo Príncipe dos

Apóstolos. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 48-49) (Grifos nossos).

A disputa entre os dois chefes era sustentada por argumentos semelhantes. As verdades

de cada um sendo expostas como se fossem únicas. Faz pensar em Veyne quando ele afirma

que “[...] as relações entre verdades são relações de forças”. (VEYNE, 1984, p. 53)

Isoladamente essa frase caberia em várias situações. No texto do Veyne, ele trata questões

relacionadas ao real e ao mitológico, sobre a inexistência dos deuses ou a crença neles. Aqui,

a representação da instituição como primaz, a deixada por Cristo, a Igreja de Pedro, não é

questionada pelo poder secular. O que se pode perceber pela fonte é que há verdades sobre

quem transgrediu a lei que, de certa maneira, para determinado grupo social seria a correta ou

era conveniente pensar e agir como se o fosse. Eram relações de poder, de prestígio, de força,

entre a Igreja e o Estado.13

As fontes relacionadas ao Rei germânico são em muito menor quantidade se

comparadas às provenientes de Gregório VII ou de seus partidários reformistas. Isso se dá em

razão de a maior parte dos documentos relativos a seu reino ter sido escrita no contexto do

Conflito das Investiduras. E, portanto, seus autores, em sua maioria, apoiavam a Reforma bem

13

Em tempo, é importante salientar que o termo “Estado” aqui dito e repetido em outros momentos apenas quer

significar “poder temporal”. Com esse sentido, o termo é usado frequentemente por vários estudiosos do assunto,

como, por exemplo, os autores já citados neste trabalho. Sobre a construção da acepção de Estado na Idade

Média, ver GENET, 2006, p. 397-409.

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como o próprio Papa. (ROBINSON, 2004, p. 1). Embora não seja grande o número de

documentos provenientes de Henrique IV ou de sua chancelaria real, para este trabalho temos

o suficiente para perceber, por meio dessa carta (citada acima) e de algumas das quarenta

cartas do Rei, organizadas e traduzidas por Morrison e Mommsen (2000), que a não aceitação

de Gregório por parte do Rei germânico residia em questões visivelmente políticas. Mas

também havia o problema com a pessoa do Papa, com o indivíduo, não com a sua função ou

ofício. Diante das propostas de transformação nas questões relacionadas às investiduras e de

outras que colocava o poder temporal sob o jugo da instituição eclesiástica, Henrique IV

reivindicava a conservação de um “direito”: a manutenção do clero sob o jugo temporal. As

razões políticas eram fortes para isso. A relação de suserania entre o rei e os bispos por ele

investidos é um exemplo disso. Para Henrique, a possibilidade de investir significava muito

mais que conceder uma dignidade eclesiástica: constituía o fortalecimento da sua autoridade

real por meio de direitos ligados ao costume.14

Este ponto será mais aprofundado quando

tratarmos das representações do poder secular na perspectiva do império.

Diante dessas representações que se mostravam, de certa maneira, fortalecidas no século

XI, no contexto reformador da Questão das Investiduras, é importante destacar alguns pontos

sobre a construção dessa imagem da Igreja Romana. Um dos primeiros registros de que se

tem conhecimento sobre a defesa da antiguidade e do caráter de preponderância da Igreja de

Roma pode ser notado em Irineu, bispo de Lyon, em 180 d. C., aproximadamente. O prelado

foi quem primeiro trabalhou, em seu texto Adversus Haereses, com o preceito de principalitas

romana. Para ele, todas as Igrejas deveriam seguir o estabelecido pela Igreja de Roma de cuja

antiguidade ninguém duvidava. Além disso, Irineu defendia a herança apostólica pelos bispos.

E Roma, nesse caso, possuía essa herança como as outras Igrejas. No entanto, todos os

cristãos deveriam estar atrelados ao principado maior que era o romano. (RIBEIRO, 1995, p.

46). Para Barraclough (1972, p. 17-18), tanto Irineu quanto Tertuliano – importante teólogo

da parte latina do ocidente – objetivava estabelecer o domínio episcopal e não a autoridade

pontifícia. Mas assevera que os dois realçavam a importância de Roma. Em Tertuliano, a

precedência de Roma era devida aos apóstolos São Pedro, São João e São Paulo. Para esse

teólogo, Pedro deveria ser destacado em razão da tradição ligada à Bíblia e, por isso, foi

Tertuliano que, precedendo ao bispo Hipona, Santo Agostinho, interpretou a passagem de

Mateus que elege Pedro o primeiro entre os apóstolos de Jesus Cristo. Seguindo essa tradição,

14

Conferir ARAUJO, Vinícius Cesar Dreger de. Honor Imperii: a legitimidade política e militar no reinado de

Friedrich I Barbarossa. Muito bom trabalho em que trata, nos capítulos I e II, das relações entre os reis

germânicos e o clero de seu reino, além de analisar a teocracia imperial.

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o próprio Jesus teria reconhecido em Pedro o alicerce, a pedra basilar de sua Igreja que seria

mais forte que o poder dos infernos. Além disso, Cristo teria concedido ao Apóstolo as chaves

do Reino dos céus e o poder de atar e desatar. Além de as relíquias dos Apóstolos Pedro e

Paulo supostamente se encontrarem na Cidade Eterna, há a passagem bíblica que sustenta a

acepção tradicional. Ela está em Mateus 16, 18 – 19:

[...] Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e a Potência da

morte não terá força contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus; tudo

o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra

será desligado nos céus.” (BÍBLIA, 1995).15

Nesse sentido, a construção do discurso do primado de Pedro está ligada diretamente à

perspectiva de que Roma é a herança do apóstolo Pedro. A confiança na sucessão apostólica,

a partir de Pedro, foi fundamentando o poder do prelado romano no Ocidente. A questão

relacionada ao espaço é importante ser enfatizada porque as Igrejas tinham tradição de

sucessão dos apóstolos e a valorização de Pedro e Paulo era considerável. No Oriente,

estavam Antioquia, Corinto e Éfeso. Havia também Tessalônica, Esmirna e Jerusalém. Além

dessas, também Alexandria, um pouco mais tarde, tendo Marcos como seu fundador

reivindicava seu caráter apostólico. (BARRACLOUGH, 1972, p. 17) No Ocidente, havia

apenas Roma que era, por tradição, a Igreja subordinada à autoridade petrina. E é nesse ponto

que existe um elo entre os discursos: do primado romano e da cátedra de Pedro. Eles remetem

à formação dos princípios de governo e de poder político que deram suporte aos pontificados

medievais, posteriormente.

Em carta de Gregório VII aos reis de Castela e Leão pedindo apoio para a Igreja romana

(19/03/1074)16

, o Papa parafraseia o texto bíblico ao se dirigir aos monarcas ibéricos:

Possam vocês, como os outros reinos do oeste e do norte, aceitar a ordem e o

ritual da Igreja Romana – não aqueles de Toledo, nem quaisquer outros, mas

da Igreja que foi fundada por Pedro e por Paulo sobre uma sólida rocha por meio de Cristo e consagrada em sangue – contra a qual os portões do

15

É interessante a nota do tradutor sobre a expressão “Potência da morte”: ela significa as portas do Hades –

habitação dos mortos que vem do hebraico Sheol. Seguindo essa interpretação, o Hades não poderá reter na

morte eterna nenhum daqueles que integrarem à comunidade por Jesus reunida. (Conf. BÍBLIA, 1995, p. 1.890 –

1.891). 16

Todas as datas que aparecem referentes às cartas de Gregório VII são derivadas da tradução de Emerton

(1990). Em situação contrária, daremos o devido crédito.

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Inferno, que é língua dos heréticos, jamais prevalecerão. (EMERTON,

1990, p. 29)17

(Grifos Nossos).

Era, portanto, a concessão feita por Cristo a Pedro, a base que sustentava a cátedra do

Apóstolo. Era, segundo Ullmann (1983, p. 37), a comissão petrina, um dos princípios de

poder da Igreja na Idade Média. Se a Igreja de Roma era a Igreja de Pedro, ela era também a

Igreja congregada por Cristo porque foi o próprio Jesus que o disse. A crença nisso é que

tornava Roma ainda mais importante, além da tradição histórica de antiga capital do Império

Romano. E foi esta ideia que se defendeu durante a construção da instituição do primado

romano: de que a cadeira do bispo de Roma teria sido, primeiramente, a cátedra de São Pedro.

No entanto, há que se ressaltar que o fortalecimento dessa instituição não ocorreu

imediatamente. Sua construção durou séculos.

Voltando a linha de pensamento sobre a construção da ideia do primado romano e de

seu estabelecimento que partiu de Irineu, é válido perpetrar uma menção a São Cipriano. No

fio condutor traçado por Daniel Valle Ribeiro, é possível perceber que, em São Cipriano

(século III), as questões do primado romano e da cátedra de Pedro caminhavam

contiguamente. Mais uma vez, um discurso sustentado pelo outro. Nota-se isso, segundo

Ribeiro, quando São Cipriano, em conflito com Estevão I – bispo de Roma – troca cartas com

Firmiliano de Cesareia. De acordo com a missiva deste último, Estevão I alegava ser o

sucessor de Pedro e ocupar sua cadeira. Apesar de sua altercação com o bispo de Roma, São

Cipriano não nega a primazia de Roma e afirma até que “[...] a investidura de Pedro por

Cristo constituía o pilar da unidade da Igreja”. (RIBEIRO, 1995, p. 46). Esse bispo

desenvolveu o conceito de Primatus Petri, elaborando também a expressão Cathedra Petri

que, no entanto, foi tomada por seu oponente Estevão I (254-257). Essa expressão se tornou o

17

Essa questão da aceitação do Rito Romano pelos ibéricos foi um problema que a Igreja Romana, em sua busca

pela unidade e pela universalização, enfrentou durante muitos anos. No papado de Alexandre II, por exemplo, há

registros de envio de legados para tentar uniformizar o rito na região da Espanha. Naquele mesmo pontificado,

há referências de bispos ibéricos que foram a Roma, falar com o papa, para apresentar e defender o rito regional,

buscando sua aprovação. Aquele povo não parecia estar disposto a renunciar ao Rito Moçárabe com o qual já

estavam habituados. Naturalmente, a implementação de mudanças que implicam transformações no cotidiano

das pessoas enfrenta resistências. Portanto, a questão ainda estava em voga durante o papado de Gregório VII.

Mais sobre o assunto, conferir TELLENBACH, 2000, p. 197-199. Há também outro documento que trata a

reivindicação da soberania da Igreja Romana sobre a região ibérica de 30 de abril de 1073, produzido por

Gregório VII ou por sua chancelaria. Conferir em EMERTON, 1990, p. Não trabalharemos com ícones

(fotografias e figuras), mas, só a título de curiosidade, pode ser facilmente encontrada na internet uma imagem

datada de 1086 que corresponde ao mapa-múndi do Beato do Burgo de Osma (região ibérica). Na figura, a

representação do apóstolo Tiago (de Compostela) aparece em destaque em relação aos outros discípulos. Grosso

modo, isso é um considerável indicador de que, ainda no final do século XI, a questão com a Igreja ibérica ainda

não havia sido completamente resolvida. Quanto à análise mais aprofundada no referido mapa, e de outros do

período, conferir o belo texto de Thiago José Borges, intitulado Do texto ao traçado iconográfico: as

representações das Sortes Apostolorum nos mapas-múndi dos Beatos (séculos X-XIII), resultado de dissertação

defendida na Universidade de Lisboa, em 2010.

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“[...] fundamento dos direitos ao primado por parte da Igreja de Roma”. (BARRACLOUGH,

1972, p. 20). A Cathedra Petri compreende, dessa forma, uma formulação eclesiológica que

serviu de suporte para a afirmação da Igreja Romana. A ela, muitas imagens da instituição

foram somadas, no processo de consolidação.

A questão é que, com Constantino, a Igreja deixou de ser uma instituição à margem do

século18

e com Teodósio se tornou a religião oficial do poder dominante19

. No entanto, não

demorou tanto para que os interesses seculares que a tiraram da marginalidade viessem a

sucumbir junto com o Império Romano. Não obstante a “queda”20

do poder político de Roma,

a instituição religiosa se manteve e ganhou alguma liberdade da influência temporal, mas ao

mesmo tempo teve que buscar consórcios para se apoiar. Com essa suposta independência e

com a crescente ênfase no discurso do Primado Romano, a Igreja pode ampliar o seu poder

sobre as outras igrejas e propagar mais o discurso de que ela era a autoridade em matéria de

fé. (RIBEIRO, 1995, p. 47).

Na fronteira entre o religioso, o político e o jurídico, é possível observar como esse

discurso estava ligado ao direito romano. A instituição eclesiástica, em seus objetivos

múltiplos, se estruturou sob o modelo do Império Romano. Como se o papa, correlato ao

imperador, fosse o grande chefe temporal. A Igreja se assemelhava ao velho império,

inclusive na maneira como se pretendia universal. E isso estava claro na aplicação do

princípio da delegação de Cristo a Pedro. O poder de atar e desatar pode ser elucidado a partir

do direito romano e relaciona-se com o potestas que significa poder e, no caso do papa,

concedia a ele o direito de julgar. (RIBEIRO, 1998, p. 94). Pode-se identificar, a partir de uma

análise desse poder de ligare e solvere, dois significativos fundamentos jurídicos: o preceito

do automatismo e a perspectiva de imutabilidade do pontificado medieval. (ULLMANN,

1983, p. 40).

No primeiro princípio, observa-se que a ordem de Cristo era precisa e sem rodeios. A

ação de atar no céu causava um efeito imprescindível e automático à ligação realizada na

terra. A mesma coisa ocorreria com o ato de solvere. Ninguém, nem o mais alto tribunal de

justiça, poderia interferir, em qualquer aspecto, na decisão proveniente de Pedro no que diz

respeito ao ligar e ao desligar. Ullmann chama atenção para o ponto decisivo desse preceito:

18

Édito de Milão (313). 19

Édito de Tessalônica (380). 20

Não entraremos no mérito da questão, mas é válido dizer que a expressão “queda”, talvez, não seja a mais

adequada para designar o enfraquecimento do Império Romano no Ocidente e a transferência da autoridade

imperial para o Oriente. Por isso, usaremos o termo entre aspas.

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“[...] o ponto chave estava na decisão terrena: o que acontecia no mundo celestial era sua

consequência lógica”. (ULLMANN, 1983, p. 40).

O segundo preceito, o que trata do caráter imutável do papado, abrange todas as coisas e

todas as pessoas em um sentido bem amplo. O discurso era que essa abrangência repousava

sobre tudo, sem restrições. Nenhuma coisa (ou nenhuma pessoa) estava fora do alcance do

poder de Pedro, pois quando Cristo proferiu aquelas palavras no ato de fundação da sua Igreja

não escolheu um cristão específico, mas sim todos: reis, príncipes, servos, padres, bispos.

Todos os cristãos estavam incluídos. (ULLMANN, 1983, p. 40). Neste caso, pode-se observar

a força do discurso do poder de atar e desatar. Século após século, papa após papa, tijolo a

tijolo. Dependendo sempre das circunstâncias em que se encontravam e dos interesses em

questão, cada bispo romano ia fortalecendo esse discurso, sedimentando a representação da

instituição romana como a Igreja deixada por Cristo, a única, a universal, a que abrangia todas

as outras, a que professava a verdadeira fé.

Há mais de um milênio que ocorreu essa série de fenômenos que levaram à

consolidação da imagem da Igreja como a deixada por Cristo. E, olhando à distância, o

processo parece mais claro. No entanto, é essencial que não se caia no determinismo ao

afirmar que tudo tenha acontecido naturalmente, como se todos os bispos romanos tivessem

um plano de ação com aquele escopo ao assumir o episcopado da Cidade Eterna. Parece

óbvio, mas é salutar observar que cada vez que um bispo romano recorria ao princípio do

primado, o seu objetivo era único: lidar com uma situação específica do seu momento.

Nesse sentido, quando Dâmaso I (366 – 384) inaugurou o termo apostolica sedes, ele o

fez por questões relacionadas ao crescimento de Constantinopla e às aspirações da Igreja do

Oriente de ter as mesmas prerrogativas da romana, já que aquela cidade estava em ascensão

política em detrimento da capital ocidental do Império. Depois do concílio de Constantinopla

de 38121

, convocado pelo imperador que tinha objetivos políticos e no qual estiveram

presentes somente bispos orientais, reuniu-se um novo sínodo no ocidente. Na reunião de 382,

o bispo romano reafirmou sua precedência sobre os outros bispados, lembrando que seu poder

não sucedia de decisões humanas, mas sim do próprio Cristo que o havia concedido a Pedro

de quem era sucessor. (RIBEIRO, 1995, p. 52)

Outro exemplo do uso desse discurso é o caso de Leão Magno (440 – 461). Embora

Dâmaso tenha tido grande importância para o desenvolvimento dos princípios pontificais de

governo, foi Leão I (Magno) que fomentou o fortalecimento dos preceitos ligados

21

De acordo com esse Concílio chamado por Teodósio, o bispo da capital oriental do Império teria “lugar

imediato ao bispo de Roma porque Constantinopla era a ‘Nova Roma’.” (RIBEIRO, 1995, p. 52.)

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especialmente à Comissão Petrina. O seu episcopado coincidiu com o declínio do Império no

ocidente. Leão I se tornou conhecido como um dos bispos que, mais na prática que na teoria,

persistiu enfaticamente com a ideia do primado. O problema enfrentado pelo Papa Leão era de

perspectiva doutrinária. Ao confrontar um bispo da região da Gália que reivindicava a

independência de sua igreja, Leão I teve o apoio do poder temporal para reafirmar a

supremacia da Igreja de Roma. Consoante aos estudos de Ribeiro, para resolver esse conflito,

o imperador Valentiano interferiu e por meio de um ato escrito reconheceu o Primado de

Roma. O autor chama a atenção para as críticas em razão da interferência secular. No entanto,

reconhece que o documento corresponde a um dos pioneiros no que tange à legislação

doutrinária da primazia romana bem como do seu bispo. Corresponde, para Ribeiro, à

formalização do âmbito jurídico do bispo de Roma. (RIBEIRO, 1995, p. 55-58). A

intervenção de Valentiano está expressa, principalmente, na frase: “[...] o que sancionar, ou

vier a sancionar, a autoridade da sé apostólica terá força de lei”. (BARRACLOUGH, 1972, p.

26).

É em Leão Magno que se vê uma elaboração da monarquia pontifícia (monarquia de

São Pedro) na época, favorecida pela “queda” do Império. Esse bispo continuou a defender a

ideia de Principatus já aplicada por Bonifácio I havia mais de duas décadas. Bonifácio havia

prenunciado a acepção da primazia romana ao insistir na afirmação de “[...] a Igreja é, em

relação a todas as Igrejas do mundo, o que a cabeça é para os membros”. (BARRACLOUGH,

1972, p. 28). A expressão Principatus era usada no direito romano para designar o poder

supremo dos imperadores. Na Igreja, o seu uso caracterizava a acepção monárquica do

pontífice que era considerado o sucessor de Pedro. É interessante lembrar que no direito

romano, o herdeiro se confunde com o que faleceu e que deixou o poder para o sucessor. Não

há diferença, no âmbito jurídico, entre o que deixa de herança o poder e o que o recebe.

(ULLMANN, 1983, p. 41-42). Nessa perspectiva, Leão I caracterizou o papa como herdeiro

de Pedro e com isso afirmou que os poderes recebidos pelo Apóstolo, na acepção jurídica do

Principatus, eram tacitamente transferidos para o legatário. As elaborações de Leão I sobre a

representação de São Pedro pelo papa foram muitas vezes reivindicadas pelos seus sucessores

– pelos outros sucessores e representantes de Pedro. Em síntese, conforme Ribeiro,

Apesar de não ter sido o primeiro a invocar a sucessão de Pedro, nenhum

papa antes dele o fez com tanta energia. A ideia de ser o bispo de Roma

herdeiro de São Pedro já havia sido expressa por Sirício (384 – 399), mas é

aprofundada por Leão Magno, que a vê como o efetivo fundamento do

primado papal. Como herdeiro de São Pedro, o papa assume suas funções,

seus plenos poderes e seus privilégios. Observa-se em Leão I a insistência no

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fundamento dogmático do primado: além de sucessor de São Pedro, afirma

sua íntima união com o apóstolo de que ocupa o lugar. Sempre ancorado na

exegese (Mt 16, 18 – 19), reconhece a dignidade de todos os bispos, mas

lembra a diferença de poder existente entre os apóstolos. Admite a unidade

na dignidade, não na posição (ordo), de vez que os apóstolos tinham a

mesma honra, mas não a mesma potestas. Nessa semelhança de honra existe

uma distinção de poder. Ao elaborar uma concepção monárquica em que o

papa é o legítimo sucessor de Pedro – cuius vice fungimur – Leão Magno

traça com firmeza os contornos do poder pontifício. Não se esquece,

contudo, de suas obrigações de pastor, de sua sollicitudo, que, por sua

qualidade, estende-se a toda a Igreja. O primado fundamenta-se, portanto, na

reunião da sollicitudo e potestas, dois atributos que se firmam nos três

primeiros séculos da história do papado. (RIBEIRO, 1995, p. 55).

É importante enfatizar que esse discurso perpassa os séculos da história da Igreja que

tenta ser flexível ou fazer os mais diversos acordos para não capitular como o Império do

ocidente o fez. Como todo discurso, houve quem o aprovasse, mas houve também os que o

contestaram. E não é difícil de imaginar que essa influência romana tenha crescido mais no

ocidente que no oriente. Na verdade, quando ocorreu o grande cisma bem mais tarde, no

século XI, o processo de separação já havia começado há muito: desde os tempos de tentativa

de implantação do Primado Romano.

Por fim, antes que nos voltemos ao século XI para identificarmos outras imagens da

instituição eclesiástica em apreço, é importante que passemos, ao menos de maneira breve, ao

século VIII, aproximadamente, quando aparece a falsa Doação de Constantino. A criação do

documento, como de outros falsos da época com finalidades variadas, tinha o objetivo de

justificar ou mesmo de provar o poder do pontífice Romano. Há autores que identificam dois

motivos para a concepção desse documento. Em primeiro lugar, há a questão de justificação

da ruptura entre o pontificado romano e o Império Bizantino. De outro lado, há também a

tentativa de provar aos francos que o bispo de Roma era legalmente autorizado a lhes oferecer

alguns territórios bizantinos na Itália em razão de seus acordos. Conforme Southern (1997, p.

76-77), independente de qual tenha sido o real motivo de sua invenção, a Doação de

Constantino mostra como era visto o poder papal no final do século VIII.

O documento já não fala da Santa Sé ou Sé de São Pedro somente na perspectiva da fé

ou da justificativa religiosa. A fonte traz referências materiais do discurso do primado. Por

meio da doação, Constantino teria concedido territórios, o palácio de Latrão e privilégios ao

então Papa Silvestre. Além disso, concedia o direito de o pontífice usar uma tiara que

lembrasse a mesma dignidade do Imperador. O Imperador teria ainda transferido sua sede

para Bizâncio por reconhecer a incompatibilidade da coexistência de dois imperadores em

uma só cidade que era Roma. Segundo o documento, “[...] não é justo que o imperador terreno

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reine onde o imperador celeste estabeleceu o principado do sacerdócio e a cabeça da religião

cristã”. (PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p. 126). Pela Doação, é possível perceber que o

discurso do Primado buscava, reiteradamente, um suporte material para sua consolidação.

Visava ao estabelecimento da legitimidade do poder do bispo de Roma. A prova material – a

herança territorial – o falso trazia. E ela seria usada constantemente, mesmo sendo conhecido

o caráter ímprobo do documento. Esse documento é reconhecidamente um dos maiores

marcos das pretensões imperiais da Igreja Romana.

Dessa forma, quando os papas do século XI tentaram justificar suas ações em razão do

poder que herdaram de Pedro, já encontraram precedentes. Já contavam com argumentos

anteriormente elaborados e defendidos. Os conflitos no período eram de outra natureza. No

caso de Gregório VII e Henrique IV, o conflito residiu na luta pela legitimidade de investir,

pela liberdade da Igreja com relação à influência secular e, sobretudo, pela soberania do

pontífice. Se era legítimo ao rei ou ao papa investir bispos, não nos cabe julgar. Muitas

conclusões mirabolantes sobre isso chegam ao cúmulo da especulação. Isso não é,

definitivamente, nosso intento.

Além da representação da Igreja de Roma como a Sé de São Pedro, muitas outras

imagens da Igreja foram propagadas. Todas elas complementares à noção da Cathedra Petri.

A amada, a cidade, a Barca de Pedro, o Corpo de Cristo, a pomba, o firmamento, entre outras,

compreendem uma lista proveniente de uma enciclopédia22

, organizada no século XII:

Allegoriae in universam sacram Scripturam. A relação de nomes traz oitenta representações

simbólicas da instituição, todas derivadas da Bíblia, presentes no Velho e no Novo

Testamento. Não é preciso fazer um longo estudo para perceber que muitas dessas alegorias

são usadas por analogia. No entanto, para Robinson (1988, p. 252), muitas dessas imagens

representam mais que metáforas. No seu entendimento, algumas delas são conceitos

eclesiológicos inteiramente desenvolvidos, de amplo poder e grande complexidade. Dessa

maneira, há quatro alegorias que, para o autor, marcaram o âmbito eclesiológico do período

que compreende do século VIII e XII (750 – 1150), e que serviram de base para a disputa em

questão. Foram elas: as imagens do Corpo de Cristo, da Esposa, da Mãe e da Barca de Pedro.

22

Embora, Robinson afirme que o documento seja de autoria desconhecida, há uma edição impressa, pelo menos

com o mesmo título, na página http://www.documentacatholicaomnia.eu/02m/0788-

0856,_Rabanus_Maurus,_Allegoriae_In_Universam_Sacram_Scripturam,_MLT.pdf, que atribui o texto ao beato

Rabanus Maurus. Sem utilizá-lo como fonte, nós o acessamos em 08 de novembro de 2012.

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1.1.1. Corpus Christi: à imagem daquele que a criou

Concomitante à construção dessas imagens da Igreja, nascem representações de mundo.

A exemplo disso, temos a maneira pela qual a Igreja se apresentava: era como um grande

corpo do qual todos os cristãos faziam parte. A exceção a isso, como o próprio Gregório VII

determinou em sua vigésima sexta proposição dos Dictatus Papae, era: “Não deve ser

considerado católico quem não está em comunhão com a Igreja Romana”. (SOUZA;

BARBOSA, 1997, p. 48) Tanto clérigos quanto leigos, bispos ou duques, papas ou

imperadores, todos compunham o grande corpo que era a sociedade cristã medieval

representada pela Ecclesia romana. Como Corpo de Cristo, a Igreja representava uma

perspectiva individual, de todos em um, de maneira indivisa, que remetia à unidade de todas

as igrejas em uma só – a Igreja de Roma. (ROBINSON, 1988, p. 252). Nesse sentido, os

cristãos, para que se tornassem parte dela, precisavam guardar fidelidade a seus preceitos.

O adágio de origem patrística – de Santo Ambrósio, especificamente – “[...] o

Imperador está na Igreja e não acima da Igreja” (PACAUT, 1989, p. 18), além de remeter o

pesquisador ao estudo das relações de poder entre o Regnum e o Sacerdotium, faz com que o

estudioso também pense a Ecclesia como corpo. Nesse caso, o chefe secular, como todos os

cristãos, seria membro desse organismo.

No século XI, no contexto da Reforma, essa imagem da Igreja também aparece nas

fontes, notadamente as originadas na própria instituição eclesiástica. A exemplo disso, em

carta ao bispo Hermann de Metz, ao realizar um longo desabafo acerca de seu conflito com o

Rei Germânico, Gregório VII descreve o modelo de cristão feito rei:

Numa palavra, todo bom cristão pode mais corretamente ser denominado

rei do que os maus príncipes23

, pois estes, ao buscarem os seus próprios

interesses e não as coisas de Deus, são inimigos de si próprios e ainda

oprimem tiranicamente os semelhantes, enquanto aqueles, ao procurarem a

glória de Deus, se autogovernam com severidade e constituem o Corpo de

Cristo, Rei verdadeiro, e, ao assim procederem, reinarão eternamente

juntamente com o Supremo Imperador. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 58).

(Grifos nossos).

23

Aqui Gregório parece contestar, ao menos sutilmente, o princípio de hereditariedade real, de descendência

pelo sangue. Isso nos faz voltar rapidamente a uma frase do Adalbéron: “não se obtém a realeza por direito

hereditário”. Bloch lembra, além desse posicionamento do bispo de Laon, a de Abbon: “Conhecemos três

espécies de eleições gerais: a do rei ou do imperador, a do bispo e a do abade.” Bloch interpreta essas colocações

a partir de uma análise circunstanciada: “Essa última expressão deve ser tida como a mais significativa entre

todas: o clero, habituado a considerar a eleição a única fonte canônica do poder episcopal ou abacial, estava

muitíssimo tentado a nela ver também a mais louvável origem do poder político supremo”. Todas essas citações

foram extraídas de BLOCH, 1993, p. 83-84. Sobre o tema de eleição dos reis germânicos, falaremos disso mais

tarde.

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Desde o período carolíngio, podem ser observados documentos oficiais que fazem

alusão ao Corpo de Cristo. Por exemplo, o apelo era notadamente político quando uma guerra

civil ameaçava o reino de Luís, o Piedoso. Na perspectiva teológica, no mesmo período, a

expressão vinha com uma acepção dúplice: o Corpus Christi tomado pelos cristãos no ato de

comunhão e também significando a Igreja do Filho de Deus como um conjunto de fiéis

ligados pelo papel dos sacramentos provenientes do sacerdócio. (ROBINSON, 1988, p. 253)

Essa acepção de Igreja possui suporte em Paulo, em 1 Coríntios 10,17: “o pão que partimos

não é uma comunhão com o corpo de Cristo? Visto haver um só pão, todos nós somos um só

corpo; porque todos participamos desse pão único”. (BÍBLIA, 1995) Desse modo, todos os

cristãos que participassem da eucaristia e que comungassem com a Igreja Romana fariam

parte dela.

Essa imagem de Igreja como Corpo de Cristo na tradição carolíngia era baseada em um

corpus mysticum. Já nos séculos XI e XII, a representação era baseada na acepção paulina

trazida por 1 Coríntios 12, 12 – 27. (ROBINSON, 1988, p. 253) Nessa passagem, o Apóstolo

faz uma reflexão acerca do corpo e de seus membros comparados a Cristo. Para tanto, Paulo

fala do sacramento do batismo por meio do qual os membros são unidos em um único

Espírito. Independente de suas diferenças, todos os membros fazem parte do corpo e cada um

possui a sua importância. O corpo não pode ser feito de um membro, pois assim ficaria

limitado. Ele não pode ser somente olho, tampouco somente ouvido. E todos os membros,

mesmo que queiram, não podem rejeitar um ao outro, pois o corpo precisa do conjunto e

todos devem ter um comum cuidado uns com os outros, mesmos com os aparentemente

fracos. (BÍBLIA, 1995).

Apesar do espírito fraterno que essa ponderação de São Paulo inspira, pensá-la no

contexto da Reforma e, sobretudo, na conjuntura do conflito pelas investiduras, é alimentar

instigantes ideias acerca das relações entre o Papado e o Império. É evidente, que os

reformadores (e Gregório VII, é bom lembrar, era um deles) procuravam evidenciar o grande

valor do Sacerdotium no Corpo de Cristo, a partir dessa imagem.

No decurso do Conflito das Investiduras, de acordo com Robinson (1988, p. 253-254),

tanto os partidários do Pontífice quanto os favoráveis ao Rei germânico disputavam ou

mesmo defendiam sua maneira de construir o Corpo de Cristo. De um lado, na defesa do

poder temporal, acreditava-se que a autoridade real é que representava a cabeça ou era ela de

fato. Na Ortodoxa defensio imperialis, ainda segundo Robinson, aparece a descrição do

regnum como a cabeça da Igreja Santa. Já o sacerdotium é descrito como o coração da

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instituição ou mesmo o estômago. Nessa acepção, explica-se que as pessoas seriam

governadas por estes órgãos – os sacerdotes – quando o assunto fosse relacionado ao espírito.

De outro lado, os partidários clericais, notadamente das propostas do programa de

Gregório VII, acreditavam ser o Sacerdotium o caput (cabeça) da Igreja. Como exemplo

disso, Robinson cita Honorius Augustodunensis (século XII) que argumentava sobre essa

percepção: “[...] os olhos são os professores, isto é, os apóstolos; as orelhas são os obedientes,

isto é, os monges; as narinas são os discretos, isto é, os mestres; a boca, aqueles que falam

boas palavras, ou seja, os padres”. (Apud ROBINSON, 1988, p. 254). Na perspectiva

reformista e da doutrina gregoriana, a imagem da instituição eclesiástica romana como a

cabeça ligava-se ao objetivo disciplinador e coercitivo do projeto sobre toda a comunidade

Ecclesiae.

1.1.2. Esposa: uma visita ao Cântico dos Cânticos

A imagem de Sponsa foi bastante disseminada desde os séculos VIII e IX. Como todas

as imagens da Igreja, a representação de esposa ou de noiva (no dia em que se casa) estava

amparada pelas Escrituras Sagradas. O Cântico dos Cânticos (Ct) atribuído ao Rei Salomão dá

a maior parte desse suporte. Numa perspectiva teológica, segundo Duarte, é em Orígenes que

se encontra a exegese mais utilizada pela Igreja sobre essa representação. A interpretação da

alegoria24

pode ser percebida tanto no Velho Testamento como no Novo. Para o autor, “[...] a

união conjugal de Javé com Israel, transpondo para o NT, a união de Cristo com a Igreja.

Mas, além desse eclesial, Orígenes vê também, na esposa, a alma fiel criando o tema para o

casamento místico”. (DUARTE, 2009, p. 40-41) O sentido da união entre Cristo e a Igreja foi

o que atravessou a Idade Média no discurso da instituição eclesiástica.

Alcuíno foi, no Império Carolíngio, quem trouxe para aquele período a concepção de

esposa para a Igreja e do noivo que aparece no Ct como o próprio Cristo. Esse teórico de

Carlos Magno usou também outras significações para o termo. Muitas vezes, a instituição foi

apresentada como noiva de Cristo, mas também apareceu como a esposa do Imperador

Carolíngio. No entanto, o uso mais consagrado no tempo de Carlos Magno foi a representação

do bispo como esposo (sponsus) de sua igreja. Essa última acepção tornou-se conhecida desde

o século IV a partir do estudo de I Timóteo, 3, 2 em que o bispo é descrito no âmbito

apostólico como o “marido de uma só esposa”. (ROBINSON, 1988, p. 257-258). 24

Alegoria é tomada aqui como imagem.

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É relevante observar como essas acepções aparecem em objetos que estão ligados ao

simbolismo da união. No caso da concepção de esposa, o objeto que remete a esse casamento

é o anel usado pelo bispo. É a aliança entre o prelado e a Igreja. Essa significação do bispo

como sponsus aparece fortemente no decurso da Reforma do século XI. São Bernardo, no

século XII, realizou nova análise sobre o tema. Para o abade de Clairvaux, Cristo era o

verdadeiro noivo. Em seu entendimento, a partir do Ct, o bispo – incluindo, especialmente, o

de Roma – era privilegiado mesmo não sendo o noivo. A prerrogativa procedia da sua relação

com aquele que tinha delegado o poder a Pedro. O prelado era o amicus sponsi (amigo do

esposo) a quem Cristo havia concedido a honra de bem cuidar de sua esposa. Esse aspecto

perpassa a crítica sobre a questão da supremacia pontifícia, já que os seguidores da doutrina

gregoriana não deixaram clara a sua maneira de ver essa representação da esposa relacionada

à preeminência papal. (ROBINSON, 1988, p. 258-259).

Na luta dos reformadores, o cardeal Humberto de Silvacandida escreveu acerca da

simbologia que envolve o báculo e o anel para os bispos e para o ato de investir. Os báculos

estavam ligados à representação de ação pastoral dos epíscopos. Eram instrumentos materiais

por meio dos quais os bispos iriam conduzir os cristãos ao caminho da justiça e da retidão.

Eram também as ferramentas que os prelados tinham para intimidarem os que eram

desobedientes com ultimatos e mesmo com penalidades. Humberto também falava do

instrumento de aliança – o anel. Para o cardeal, esse objeto, além de corresponder ao selo dos

mistérios celestes, dizia respeito a sinal especial relacionado à sabedoria divina a qual os

bispos (pastores) deveriam espalhar entre aqueles considerados perfeitos. Os imperfeitos não

seriam contemplados e poderia se evitar a propagação da divina sapiência entre eles em razão

de ela estar selada. O prelado de Silvacandida ainda pediu que se difundisse de maneira

incansável “a fé do Esposo à Esposa, que é a Igreja”. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 39-40).

O período em que Humberto de Silvacandida escreve é bem crítico no que tange a luta

dos reformistas contra os simoníacos.25

O uso de todos os argumentos era importante para

explicar sua luta contra a influência secular nos assuntos internos da Igreja. E a

fundamentação do anel e do báculo como símbolos de autoridade, de aliança, de casamento

entre Cristo e sua Igreja, era usada largamente. A argumentação era sólida, mas nem sempre

conseguia convencer aqueles que faziam dos interesses materiais um pilar mais vigoroso que

a promessa de vida eterna. Desse modo, é complexo dizer que, na Idade Média, a Igreja

subjugava todos os interesses, todos os âmbitos. Os conflitos de interesses estavam sempre

presentes. Quando se percebe nesse discurso a constante tentativa de impor argumentos 25

Teremos um tópico específico sobre a simonia.

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religiosos, percebe-se também uma resistência por parte dos cristãos. A sociedade cristã é

formada por seres humanos que tanto estão ligados ao sagrado por suas construções culturais

de crença como estão fortemente atrelados ao profano – representado por suas experiências

materiais, notadamente. Daí a necessidade de reafirmar a autoridade, de apresentar

convincentes argumentos, de legitimar papéis e poderes.

1.1.3. Mater et Navis Petri: uma mãe que acolhe, um barco que leva a Deus

De todas as imagens da Igreja, talvez, as que mais representem o seu escopo maior de

universalização e de unidade sejam as representações de Mãe e de Barca de Pedro. Se a

questão ainda é presente, hoje, no século XXI, a ênfase era maior ainda, há mil anos, quando

– embora os interesses mundanos também tivessem sua força – a fé em Cristo movia guerras e

tratados de paz de maneira ainda mais enfática.

Essa imagem de barca, como várias outras imagens da Igreja que subsistiram ao tempo,

é milenar. Na Idade Média, e especialmente no contexto da Reforma no século XI, essa

representação aparece assiduamente. Os suportes bíblicos são aqueles em que Jesus Cristo se

encontra a bordo de um barco. Essas passagens podem ser encontradas nos quatro

evangelistas – Mateus 8, 23-2726

, Marcos 4, 35-40 e 6, 45-52, Lucas 8, 22-25 e João 6, 16-

2127

e 21, 1-1328

.

26

“Ele subiu ao barco, e seus discípulos o seguiram. Eis que houve no mar uma grande tempestade, a ponto de o

barco ser coberto pelas ondas. Ele, contudo, dormia. Eles se aproximaram e o despertaram, dizendo: ‘Senhor,

socorro! Estamos perecendo’. Ele lhes disse: ‘Por que estais amedrontados, homens de pouca fé?’ Então, pondo-

se de pé, ele ameaçou os ventos e o mar, e fez-se uma grande bonança. Os homens maravilharam-se e diziam:

‘De que qualidade é este, para que até os ventos e o mar lhe obedeçam?!’” (BÍBLIA, 1995). Conferir também

Marcos 4, 35-40 e Lucas 8, 22-25. 27

“Ao anoitecer, os seus discípulos desceram até o mar. Eles subiram num barco e se dirigiram a Cafarnaum, na

outra margem. Já havia escurecido, e Jesus ainda não se juntara a eles. Um forte vento soprava, e o mar estava

encapelado. Eles tinham remado cerca de vinte e cinco estádios [cerca de 5 km], quando viram Jesus, andando

sobre o mar e se aproximando do barco. Então ficaram tomados de medo, mas Jesus lhes disse: ‘Sou eu, não

tenhais medo!’ Eles quiseram recolhê-lo ao barco, mas imediatamente o barco aportou no lugar para onde iam.”

(BÍBLIA, 1995). Conferir também Marcos 6, 45-52.

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Observando essas imagens a partir das passagens bíblicas, o caráter religioso parece

estar bem exaltado para uma compreensão muito apurada de fé cristã. No entanto, há

diferentes interpretações entre o período carolíngio e o período reformista do século XI sobre

essa questão. O problema era: quem seria o timoneiro – gubernator – dessa barca? Muitos

autores identificavam a figura do rei como o condutor da barca. Contudo, a figura do bispo,

muitas vezes, aparecia como aquele que governava o timão da embarcação. Do Império

Carolíngio, há documentos em que a figura do timoneiro da navis Ecclesiae era a de Cristo

mesmo, tal qual aparece nos textos bíblicos. No entanto, no mesmo período, mais

especificamente sob o governo de Carlos Magno, os Libri Carolini trouxeram a figura do

imperador como o gubernator da barca. Com o declínio do poder carolíngio, essa

representação passou a ser mais ligada à figura dos bispos. Isso coincidiu com a crescente

influência dos prelados na liderança da comunidade cristã. Entre os reformadores, a imagem

da barca passou a ser enfatizada com a figura de Pedro no timão. (ROBINSON, 1988, p. 255-

256).

No período do conflito entre Gregório VII e Henrique IV, o bispo Anselmo II, de

Lucca, que era favorável ao projeto gregoriano, comparou a querela a uma tempestade

referindo-se ao fenômeno do mar da Galileia trazido por Mateus, 8, 24. (ROBINSON, 1988,

p. 255-256). O referido versículo traz: “Eis que houve no mar uma grande tempestade, a

ponto de o barco ser coberto pelas ondas”. (BÍBLIA, 1995). De acordo com o prelado, Pedro,

que estava no barco, superou o medo das ondas e dos ventos fortes. Desse mesmo modo,

quem estiver dentro do grande barco vencerá. Ao contrário disso, os que não estiverem a

bordo sofrerão grandes desventuras na vida. Em Anselmo de Lucca, quem não está em

concordância com a Igreja Romana não é católico. (ROBINSON, 1988, p. 257). Dessa forma,

é importante, mais uma vez, ressaltar que todas as imagens apresentadas pela instituição eram

28

“Depois disso, Jesus se manifestou de novo aos discípulos à beira do mar de Tiberíades. Eis como as coisas

sucederam: Simão Pedro, Tomé a quem chamam de Dídimo, Natanael de Caná da Galileia, os filhos de Zebedeu

e dois outros discípulos se achavam juntos, Simão Pedro lhe disse: ‘Eu vou pescar’. Eles lhe disseram: ‘Nós

vamos contigo’. Saíram e subiram ao barco, mas naquela noite não pegaram nada. Quando já era de manhã,

Jesus estava de pé na praia, mas os discípulos não sabiam que era ele. Ele lhes disse: ‘Moços, não tendes um

pouco de peixe?’- ‘Não’, responderam-lhe eles. Ele lhes disse: ‘Lançai a rede do lado direito do barco e

achareis’. Eles lançaram a rede e houve tanto peixe que não podiam mais recolhê-la. O discípulo que Jesus

amava disse então a Pedro: ‘É o Senhor!’Apenas ouviu que era o senhor, Simão Pedro vestiu uma roupa, pois

estava nu, e se lançou ao mar. Os outros discípulos voltaram ao barco, puxando a rede cheia de peixes: na

realidade, eles não estavam muito longe da praia, cerca de duzentos côvados [menos de 100 m]. Quando

saltaram em terra, viram brasas acesas, com peixe e pão em cima. Jesus lhes disse: ‘Vamos, trazei esses peixes

que acabais de pegar’. Simão Pedro subiu de novo no barco e puxou para a terra a rede que estava cheia com

cento e cinquenta e três grandes peixes, e, embora eles fossem tantos, a rede não se rompeu. Jesus lhes disse:

‘Vinde comer’. Nenhum dos discípulos ousava perguntar-lhe: ‘Quem és tu?’; eles bem sabiam que era o Senhor.

Então Jesus vem, toma o pão e lhe dá; ele fez o mesmo com o peixe. Esta foi a terceira vez que Jesus se

manifestou aos discípulos desde que ressurgira dentre os mortos”. (BÍBLIA, 1995).

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convergentes com o projeto de reforma eclesiástica e, notadamente, com a doutrina

gregoriana. No caso desta última, essa acepção de barca de Pedro e também de Mãe converge

com a proposta de universalidade de Gregório VII que objetivava não só reformar a

instituição, mas também a sociedade cristã como um todo. Tudo isso sob a égide da infalível

Ecclesia que, como afirmava o Dictatus Papae, “[...] segundo testemunha a Escritura, nunca

errou e jamais errará”, cujo gubernator, o papa, era o único que podia “usar a insígnia

imperial”. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 47-48)

Por fim, a imagem de Mãe pode e deve ser lembrada, mesmo que brevemente. O sentido

de unidade está tão claro nesta representação como o esteve na imagem de barca de Pedro. Se

todos os cristãos são filhos da mesma mãe – a Igreja – todos, inclusive os reis, devem

respeitá-la e lhe obedecer como bons filhos. Essa representação parece ser a mais comum

entre as muitas possuídas pela Igreja. Nos documentos de Gregório VII, o termo Mãe, para

caracterizar a instituição, pode ser observado inúmeras vezes. Ao se dirigir ao povo

germânico, em razão da excomunhão de Henrique IV, o Pontífice explicou o anátema

afirmando que não agiu contra o rei instigado por interesses terrenos, mas sim “[...] levado

apenas por causa do zelo da Santa Sé e por nossa Mãe comum, a Igreja [...]. (SOUZA;

BARBOSA, 1997, p. 51). Os atos do Pontífice não se desligavam da luta secular contra a

ingerência laica, mas seus argumentos, de maneira geral, se pautavam em bases espirituais.

Isso porque a proposta teocrática de Gregório tinha como objetivo açambarcar o poder

espiritual bem como o temporal.

Nesse sentido, Arquillière (1955, p. 23) analisa o pontificado de Gregório VII e a sua

doutrina reformista nas relações com o poder temporal. Em seu entendimento, o programa

gregoriano foi uma das maiores tentativas de “absorção do direito natural do Estado”, pelo

direito eclesiástico. Observa ainda que o direito secular precede à Igreja e que nasceu de

necessidades primitivas da natureza humana, autônomo e senhor de si. Essa análise trazida

por Arquillière está ligada à acepção conhecida como Agostinismo Político. Sobre esse

preceito, convém voltarmos a ele quando trabalharmos, no segundo capítulo, o Conflito das

Investiduras e as representações que os dois contendores – Gregório VII e Henrique IV –

tentaram construir a partir da disputa das investiduras. Poderíamos considerar a luta pelo

poder de investir como uma batalha de representações? É que o tentaremos ver ao longo deste

estudo. Antes disso, terminemos a abordagem das representações das duas instituições que

aqui nos interessam: a Igreja e o Império.

Retomando a representação de Mater em Gregório VII, ela aparece mais vezes em

outros documentos, como é o caso da sua carta ao bispo de Metz (15/03/1081). Na missiva, o

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Papa lembrava que o título de Mãe universal houvera sido concedido à Igreja Romana por

meio de um decreto celeste. Além disso, afirmava que os Santos Padres e vários concílios

acolheram e ratificaram o título. Dizia ainda que, em razão do merecido epíteto, as decisões

da instituição, inclusive judiciais, haviam sido e deveriam continuar sendo obedecidas. Todos

os casos deveriam ser enviados “[...] para a Igreja de Roma, Mãe e cabeça, pois das suas

sentenças não há apelação, e não podem as mesmas, nem devem, ser revistas e revogadas por

ninguém”. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 53-54). Dessa forma, a imagem ganha o sentido

de controle em todos os âmbitos, incluindo o jurídico. Pode-se perceber então, mais uma vez,

o discurso acerca do poder de julgar – potestas – do papa. A Igreja era a mãe que devia ser

obedecida. O termo obediência e outros similares são comuns nos documentos pontifícios.

Nessa carta a Hermann de Metz, o papa Gregório usa essa palavra em muitos de seus

argumentos e também para justificar suas atitudes.

Finalmente, é válido mencionar que a percepção de Mãe não é uma criação reformista.

Essa acepção aparece em textos tanto patrísticos quanto carolíngios. Em ambos, há a

referência à instituição de maneira similar à Virgem Maria no que se refere à castidade. A

Igreja era considerada tanto para os Santos Padres quanto para os teólogos carolíngios como

uma Mãe casta e fértil. Em Gregório VII, como se viu, houve uma reinterpretação dessa

representação maternal que passou a significar controle, especialmente, domínio disciplinar

sobre todas as igrejas que compunham o universo cristão. Depois de Gregório VII, essa

imagem permaneceu, mas foi se ressignificando. Em São Bernardo, um dos maiores clássicos

sobre as questões relativas às imagens da Igreja e do papa, da representação de maternidade

foi eliminada a perspectiva de domínio e inserida a acepção de uma mãe cheia de

benevolência. Dessa forma, consoante às ideias do abade de Clairvaux, a Igreja Romana seria

apenas a Mãe e não a soberana de todas as igrejas cristãs. (ROBINSON, 1988, p. 259-260).

As imagens da Igreja no século XI são múltiplas, mas convergem para um sentido

único: em direção à unidade e a universalização da instituição sob o seu gubernator –

sucessor de São Pedro – o papa. Dessa forma, as representações da Igreja possuíam uma

finalidade prática de elaborar uma realidade de que todos os cristãos participassem

comumente. Sendo assim, todas as igrejas e seus respectivos bispos, todo o clero, por fim,

toda a sociedade cristã, incluindo reis e imperadores, devia à Igreja romana obediência e

respeito como a uma Mãe.

Essa acepção maternal da Igreja, se comparada com a atuação de Constantino na

concessão de liberdade ao culto cristão e na particular proteção aos seguidores do

cristianismo, apresenta-se a nós como uma inversão de valores. Em Constantino, o império

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reconhece, de maneira expressa,29

o direito dos cristãos de exercerem de maneira livre sua

religião. Além disso, a atuação de Teodósio deve ser incluída em nossa, talvez, tosca

comparação quando ele transforma o cristianismo em religião oficial do Império Romano. Em

que consistiria a dita inversão? Se pensarmos no sentido de Mater como aquela que dá a luz, a

Igreja quando se coloca como Mãe pode significar que ela é a força motriz, aquela que

concebe e cria e, neste caso, pode governar o Império. Em Constantino e Teodósio, a

instituição eclesiástica parecia estar sob a proteção dos imperadores. Na representação de Mãe

dos cristãos, ela aparece como a detentora da autoridade para governar e proteger as cabeças

coroadas. De protegida, torna-se protetora. De governada, torna-se governante. De súdita,

torna-se autoridade. De ente criado, torna-se ente criador quando unge o rei e o faz imperador.

A representação de Mãe assim se faz perfeita.

A Igreja não era uma mãe comum, pois sua maternidade derivava de uma manifestação

de vontade divina que se revelou a Pedro. E foi desse Apóstolo que emergiu outras

representações da Ecclesia romana: a Navis Petri, a primaz, a Igreja de Pedro, o lugar onde se

encontrava a Cátedra Petrina. São imagens que dizem muito sobre as pretensões de domínio

da instituição. Entretanto, mesmo quando não o dizem ou pretendem não fazê-lo, o não-dito

significa, faz sentido no discurso. (ORLANDI, 2010, p. 82).

Dessa forma, o objetivo de construção de uma sociedade plenamente cristã, em que o

poder secular se misturasse ao poder espiritual sob a proteção e o domínio da Igreja na pessoa

do pontífice, mostrava-se, ora de maneira tênue, ora de modo enfático no discurso. E assim,

nessa representação de uma instituição única de poder, era quase imperceptível a fronteira

entre o religioso e o político, entre a Civitas coelestis e a Civitas terrena. Tudo isso sob o

argumento fundamental da delegação de poder de Cristo a Pedro e deste último aos pontífices

romanos. Além disso, é possível perceber que na disputa das investiduras a questão era maior

que a busca pela reforma da igreja.

29

A liberdade religiosa foi concedida a todos os súditos, mas os cristãos foram citados expressamente: “Eu,

Constantino Augusto, e eu também, Licínio Augusto, reunidos felizmente em Milão para tratar de todos os

problemas que se relacionam com a segurança e o bem público, cremos ser o nosso dever tratar junto com outros

assuntos, que merecem a nossa atenção para o bem da maioria, tratar também daqueles assuntos nos quais se

funda o respeito à divindade, a fim de conceder tanto aos cristãos quanto aos demais a faculdade de seguirem

livremente a religião que cada um desejar, de maneira que toda a classe de divindade que habita a morada celeste

seja propícia a nós e a todos os que estão sob a nossa autoridade”. (PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p. 27). (Grifos

nossos)

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1.1.4. O papa: o sucessor de Pedro

A história do papado é pouco mais jovem que a história da Igreja. Isso em razão do

nascimento da própria instituição que se constituiu inicialmente em várias igrejas. A evolução

do papado caminha em concomitância com o princípio de primazia romana e da Cathedra

Petri. Esse preceito deriva da base central da instituição do papado: o princípio de sua origem

divina. A sua fundação não vem de outrem senão do Altíssimo. A transformação do chefe da

Igreja de Pedro – a romana – em bispo universal foi tão demorada quanto o processo de

maturação do preceito do primado romano. Aliás, não há mesmo como desconectar uma coisa

da outra. E é dessa regra de precedência oriunda da comissão petrina (MATEUS 16, 18-19)

que decorrem outros princípios de poder que também eram usados para legitimar o poder

pontifício. É relevante, antes de tudo, lembrar que o termo papa apenas começou a ser usado

como título do prelado romano mais tarde. Barraclough (1972, p. 10) afirma ter sido no século

VI.

Todos os outros princípios de poder que surgiram ao longo da história do papado eram

muito importantes para a instituição pontifícia. Contudo, eles eram considerados preceitos

subsidiários, originados daquele basilar que houvera fundado a Igreja. A vontade divina e a

participação do Apóstolo Pedro compreendiam esse princípio fundador. A concessão petrina

(Tu es Petrus...) possui sentido duplo, pois ao mesmo tempo que funda a Igreja como corpo

de fiéis composto de eclesiásticos e de leigos, estabelece a autoridade sobre esse mesmo

corpus. Nessa perspectiva, destaca o ato de direito que constitui um indivíduo membro do

corpus Ecclesiae: o batismo. Esse sacramento “era considerado como um ato eminentemente

jurídico através do qual, e só por ele, se assegurava o caráter de membro da Igreja. Em virtude

do batismo, o homem fazia juridicamente parte da totalidade corporativa [...]. (ULLMANN,

1983, p. 37-38). Em suma, essa ação jurídica do batismo transformava o indivíduo batizado

em homem cristão e, portanto, com o dever de obedecer à Igreja e ao seu governo com ela

instituído.

A Epistola Clementis corresponde a outro pilar do poder papal. De acordo com o teor

dessa missiva, o primado romano não poderia ser contestado já que a Igreja romana era a

Igreja de Pedro e o próprio Apóstolo havia concedido ao papa Clemente I a autoridade sobre

ela. Era a Igreja que Cristo havia delegado a Pedro que ele concedia ao bispo de Roma. A

famosa herança petrina poderia causar inúmeras controvérsias em razão do questionamento de

quem seria então o sucessor de Pedro. O documento de Clemente I assegura a legitimidade do

bispo de Roma como o sucessor legítimo de São Pedro.

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A argumentação que defende a aspiração de Cristo de construir um governo contínuo

não limita o poder de ligare et solvere ao apóstolo Pedro. Se a Igreja constituía um corpo

jurídico capaz de governar não há problemas em dizer que seus sucessores herdaram o seu

poder. Dessa forma, quaisquer pessoas que fizessem parte da Igreja estariam sujeitas à

autoridade que ligava e desligava. Considerando o aspecto jurídico da instituição cristã, na

perspectiva dos homens medievais, especialmente dos prelados, Cristo mesmo teria previsto,

de maneira subentendida, a sucessão de Pedro. Assim sendo, a Comissão Petrina tinha um

sentido além do eclesiológico: Pedro, portador dos poderes advindos de Cristo, poderia

nomear o seu legatário. Essa nomeação feita pelo apóstolo seria “a prova” que faria do bispo

de Roma o sucessor e legítimo portador dos poderes transmitidos por Cristo. Não havia

nenhum texto com evidência apostólica que fizesse menção a transmissão dos poderes. Nem

mesmo a Bíblia fazia alguma alusão a ela. (ULLMANN, 1983, p. 46).

No entanto, apareceu uma pretensa carta da virada do século II para o III

aproximadamente, que trazia o texto contendo a tão buscada disposição: a Epistola Clementis.

Teria sido o documento escrito pelo Papa Clemente I a São Jaime revelando o que teria dito

ao povo romano o Apóstolo Pedro antes de morrer. Estava então construído o testamento de

São Pedro: a delegação dos poderes diante do povo romano. O texto assim afirmava: “Eu dou

a Clemente a autoridade para atar e desatar, de maneira que o que ele julgue conveniente

decidir sobre a terra seja aprovado no céu, já que atará o que deva ser atado e desatará o que

deva ser desatado.” (ULLMANN, 1983, p. 46-47).

Desse modo, seria a Epistola Clementis a prova material que justificaria o primado

Romano ou uma convincente representação da origem do poder do bispo romano. Todavia,

Ullmann ressalta alguns obstáculos que apareceram quanto à legitimidade do documento. A

indagação provinha da sabida existência de testemunhos acerca da existência de Lino e Cleto

– clérigos que coexistiram na época de São Pedro. Havia informações de que eles teriam sido

os primeiros sucessores de Pedro. Registros sobre Lino apareceram tanto em São Paulo

quanto em Irineu, posteriormente. Se a concessão de Pedro era contemporânea a Lino e Cleto

há que se pensar em um problema de ordem e de jurisdição para compreender a função de

cada um em caso de legitimidade daquele documento. Sendo assim, Pedro seria o Papa, já

que era apóstolo (com a função jurisdicional) enquanto Lino e Cleto seriam bispos de Roma

(sem poder de jurisdição, somente sacramental). Assim, a função de primeiro papa sucessor

caberia, de fato, a Clemente I escolhido pelo próprio Apóstolo. A representação construída em

torno da concessão de Pedro a Clemente compreende a transmissão dos poderes tanto

jurisdicionais quanto episcopais àquele prelado. Ullmann assevera que o problema com a

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carta legitimadora continuou porque ela pode ter sido deturpada, aproximadamente no século

IV, em sua tradução por Rufino da Aquileia famoso por seu hábito de ampliar o texto

traduzido. Desse modo, a tradução para o latim de maneira descomedida deixa transparecer

um documento pouco original ou mesmo reconstruído. (ULLMANN, 1983, p. 47-48). Sobre

esse assunto, Southern (1997, p. 77) assegura que São Pedro consagrou Lino e Cleto como

seus sucessores em 54 d. C. Esse autor nem cita a possível coexistência de Clemente I quando

analisa essa questão.

Os instrumentos de legitimação do papa, sua imagem de sucessor foram, dessa forma,

sendo construídos a partir de elementos de representação como foi o caso da Epistola

Clementis. Entretanto, ressaltamos que, segundo a tradição, o apóstolo Pedro morreu em 64,

em Roma – quando Nero reinava no Império Romano – no século I d.C. Clemente I sequer

tinha nascido quando São Pedro morreu. Dessa forma, o documento produzido entre o final

do século II e início do III correspondia a mais um mecanismo construído com o escopo de

legitimação do bispo romano como primaz.

A finalidade de todas essas ferramentas de representação era agregar todos os cristãos

juntos em uma só fé e sob um só governo. Em consonância com os prelados medievais

defensores da Ecclesiae e do seu desenvolvimento como organismo jurisdicional e religioso, a

comunidade cristã – o rebanho de Cristo – precisava de um pastor, de um governo que por

vontade divina reinasse, como disse Nicolau I, no século IX: Nos divinitus constituti sumus

principes super omnem terram, id est, super universam ecclesiam.30

(Apud ULLMANN,

1983. p. 56).

Se considerarmos agora todos estes elementos em seu conjunto, não nos será

muito difícil compreender que significado tinha para os papas medievais sua

própria monarquia. A Igreja que lhes havia sido confiada tinha que ser

governada, e como consequência dos poderes excepcionais e singulares

contidos na faculdade de atar e desatar, a forma de governo adotada era a

monárquica. Este princípio da monarquia papal se derivava, primeiramente,

da Bíblia e, em segundo lugar, do modelo que proporcionava a constituição

romana. A monarquia papal ou o universale regimen, como era também

conhecida, era concebida em termos completamente jurídicos e relacionados

com a direção, ou seja, com o governo da comunidade cristã. Sendo que esta

comunidade, a Igreja, possuía um fim ou um objetivo definido, tinha que ser

orientada para ele. (ULLMANN, 1983, p. 56).

Ao se fazer uma conexão entre os princípios resultantes da Comissão Petrina e da

Epistola Clementis, há que se lembrar da identificação dos poderes petrino-papais com os do

30

“Nós por vontade divina constituídos sumos príncipes sobre toda a terra, bem como sobre toda a Igreja

universal”. (Tradução nossa).

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próprio Cristo – trata-se de outro fundamento: a plenitudo potestatis (plenitude de poder). A

partir da ideia do primado romano, não se podia separar ou diferenciar os poderes de São

Pedro e os de outro papa. A origem desse mecanismo de representação de poder pode ser

encontrada ao relacioná-lo diretamente com o Direito Romano. Conforme Ullmann (1983, p.

43), nem todos os pontífices experimentavam com a mesma magnitude o peso do legado

petrino sob sua responsabilidade. A plenitude de poder compunha uma herança identificada

com os poderes de Pedro, que não podiam ser alterados (atenuados ou majorados) nem

mesmo pelo papa. E era exatamente por esse legado que o papa podia se considerar como um

ponto de interseção entre a terra e o céu. Essa era a representação do pontífice derivada da

plenitudo potestatis.

Apesar de ser um importante fundamento do poder papal e de ser percebida em alguns

pontificados medievais, como no de Gregório VII, por alguns de seus traços, o termo

plenitudo potestatis passou a ser utilizado somente no século XIII, de acordo com alguns

estudiosos. No entanto, para Bertelloni (1995, p. 119-120), o sentido desse princípio começou

a existir muito antes disso. Ele entende a Doação de Constantino como uma justificativa da

plenitude de poder papal.

Southern (1970, p.162) reconhece os princípios que sustentavam o pode papal, mas para

esse autor, a existência desses preceitos era maior no plano ideológico que de fato. Antes de

Gregório VII, a tentativa de libertar a Igreja do poder temporal já havia acontecido, segundo

Southern, mas os chefes temporais depois que se tornavam imperadores ignoravam qualquer

possibilidade de submissão ao bispo de Roma. Esse autor acrescenta ainda que, o crescimento

do poder de fato do pontífice, promovido pelo Império do Ocidente, era falho, porque ao

coroar um imperador, o papa criava um adversário político. Na prática, a coroação do

imperador pelo pontífice não era, nem remotamente, sinônimo de sua submissão ao sucessor

de São Pedro. E isso, poderemos perceber, a partir da construção das representações de

império que veremos adiante.

Todos esses princípios estiveram a serviço da construção da imagem pontifícia como

daquele que medeia as relações entre o céu e a terra, entre as duas cidades, o Vigário de

Pedro, mais tarde (no século XII, com Inocêncio III) o Vigário de Cristo. Várias eram as

representações pontifícias, especialmente se pensarmos as relações desenvolvidas no contexto

reformista do século XI. Na hierarquia, até os anos 50 daquele século, o papa tinha um oficio

de primaz, mas não deveria intervir nas questões diretas das paróquias ou bispados. A

perspectiva centralizada de Igreja, de maneira rígida, que começou a se estabelecer na

segunda metade do século XI não existia. O papa romano tinha um primado ligado à honra e

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seu domínio sobre a doutrina era irrefutável. É provável que por esse motivo tivesse sob sua

autoridade a jurisdição da instância superior. PAUL (2004, p. 221) organiza essa pirâmide

imaginária de instâncias jurisdicionais partindo da base composta pelos bispos. Sua função era

de juízes ordinários nas questões de doutrina de disciplina relacionadas ao clero e aos fiéis sob

sua jurisdição. Depois deles, logo acima, vinham os arcebispos que deveriam solucionar as

demandas que diziam respeito aos bispos. Dependendo da ação, poderia ser ouvido um

concílio provincial. E, por fim, em última instância encontrava-se o pontífice romano.

Em Gregório VII, a representação de sua autoridade sobre todos os bispados,

arcebispados e instâncias julgadas inferiores aparece de modo direto no epíteto usado “bispo e

servo daqueles que servem a Deus”, ou “servo dos servos de Deus”, como, por exemplo, na

sua primeira carta depois de sua consagração como papa (EMERTON, 1990, p. 10). Dessa

maneira, com os papas que sobrevieram a partir da primeira metade do século XI,

notadamente com Gregório VII, houve uma ruptura na antiga liberdade das autoridades

eclesiásticas regionais. A representação pontifícia de “bispo dos bispos” – o maior entre os

outros – e a prática disso não agradou muito aos que viram cerceado o seu poder, o que gerou

vários conflitos com esses bispos. Um exemplo disso foi a reivindicação originada do

arcebispo de Mainz, Siegfried, quanto à interferência de Gregório VII em demandas regionais

entre os bispos de Praga e Olmütz. A reclamação do prelado residia na ação do Papa e do

duque da Bohemia sobre a questão sem que as instâncias locais fossem consultadas ou

participassem da resolução como faziam dentro dos procedimentos jurídicos costumeiros.

(PAUL, 2004, p. 222). Em resposta ao arcebispo de Mainz, Gregório VII refutou o prelado

assegurando que o problema entre os dois bispos (de Praga e de Olmütz) já era conhecido por

Siegfried e que ele não havia tomado atitude alguma. Além disso, o Papa o repreendeu pelo

protesto lembrando-o de que a Sé Católica tinha o poder inclusive de tirar dele o arcebispado:

Como é evidente que seus conselheiros nem conhecem, nem fazem caso dos

direitos da autoridade apostólica, nós o convidamos a examinar conosco as

tradições e os decretos dos santos padres, então, reconhecer a dimensão de

sua presunção, então poderá perceber suas faltas por negligências e por

audácia. [...] Portanto, de um lado a negligência com suas obrigações e de

outro sua arrogância com a Sé Apostólica muito despertaram a nossa

indignação. Contudo, usamos da leniência apostólica e o prevenimos com

afetuosa calma a não se arriscar em tais procedimentos irregulares e

imprudentes. Você sabe que as decisões apostólicas não podem ser

revertidas, nem por você, nem por qualquer patriarca ou primaz. Você não

deve atribuir a si quaisquer direitos da Santa Igreja Romana, nem atentar

contra ela, porque sem sua infinita clemência, você bem sabe, não poderia

nem se manter no lugar em que se encontra. (EMERTON, 1990, p. 26)

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A despeito da representação de servo, ela possui significados múltiplos e nos remete às

Escrituras Sagradas quando a lição de Cristo é que todos que se pretendem grandes devem

estar a serviço. Se ele era mestre e servia aos que o seguiam como seu senhor (João 13, 12-

17), então os que se pretendiam mestres deveriam também servir. Em Marcos 10, 43-45, esse

sentido do servir como algo de natureza superior aparece de maneira mais nítida: “[...] se

alguém quer ser grande dentre vós, seja vosso servo, e se alguém quer ser o primeiro entre

vós, seja o escravo de todos. Pois o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas para

servir e dar a vida em resgate pela multidão”. (BÍBLIA, 1995). Na carta de deposição de

Henrique IV, Gregório VII parece tentar construir essa imagem desse servo que doa a sua

vida, resignadamente, ao serviço da comunidade cristã e da Igreja de Cristo.

[...] foi tua [de Pedro] Santa Igreja Romana que me levou, contra a minha

vontade, à sua chefia; eu nunca pensei que fosse um ato de usurpação

ascender a tua sede, e desejei muito mais terminar a minha existência a

peregrinar de um lado para o outro do que arrebatar o teu lugar através de

meios seculares por amor à glória terrena. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p.

50).

A condição de servo dos servos de Deus fazia do papa um ser de humildade que

buscava imitar as ações de Cristo. Ele não ocupava o trono de Pedro porque queria, mas

porque fora compelido pela situação, e o fizera por amor à Igreja e por temor a Deus. Essa

imagem é bastante condizente com sua função de sacerdote, mas também atende a aspectos

políticos. Ao trazer logo no cabeçalho de suas cartas uma referência ao serviço e à humildade

de servir, era uma maneira cortês de começar o assunto. A saudação era carregada de

diplomacia, que é naturalmente ligada à política. Ao falar em política, fazemo-lo pensando

que a construção dessas imagens as molda como mecanismos que favorecem as relações

públicas do papa, e os escreventes papais sabiam usar com maestria esses termos, como

vimos.

Sucessor de Pedro, herdeiro do poder de atar e desatar, servo de Deus, pastor que

conduz o rebanho de Cristo rumo à salvação, foram imagens construídas para o bispo romano,

o sumo pontífice ou outros inúmeros codinomes que o papa recebeu. E todas essas alcunhas

não foram exclusivas dos papas do século XI, tampouco de Gregório VII. Sobretudo a partir

de Leão I, com o fortalecimento dos princípios de primazia derivados da Comissão Petrina,

essas representações foram sendo construídas e consolidadas.

No entanto, há um ponto característico em Gregório VII que o difere dos outros papas,

notadamente daqueles ligados à tradição primitiva da Idade Média. Essa tradição defendia a

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figura de um papa que não devia consentir renovação alguma na Igreja. Gregório VII não

atendia a esse perfil em razão de sua representação como pontífice legislador (ROBINSON,

2006, p. 387). Essa imagem é apresentada na sétima proposição dos Dictatus Papae

(voltaremos a esse documento com uma análise mais acurada). A disposição asseverava que

“Só a ele [ao Papa] é lícito promulgar novas leis, de acordo com as necessidades do momento,

reunir novas congregações, converter um canonicato em abadia e vice-versa, dividir um

bispado rico e unir vários que sejam pobres”. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 47). Para

Robinson (2006, p. 387), essa imagem de Gregório VII como pontífice que pode legislar é

apresentada pelos pesquisadores modernos como “um ponto decisivo na história do direito da

Europa Ocidental”. A possibilidade do papa sancionar leis é só um dos pontos que realçam

sua singularidade.

No que tange às representações dos pontífices de maneira geral, há que se lembrar que

no século XI, os papas estavam muito distantes daqueles remotos prelados cuja natureza era

unicamente voltada para os aspectos espirituais. O intenso envolvimento político, bem como o

controle sobre domínios territoriais, desde o século VIII (MACEDO, 2007, p. 21-43),

eliminava a exclusividade religiosa do caráter do poder pontifício.

Essencial ter consciência de que, embora esses princípios de poder sejam apresentados

como se fossem uma sucessão de processos que favoreceram sua consolidação, cada

fundamento do poder pontifício, cada representação, derivou de um momento específico e de

uma situação particular. Ignorar as interferências de várias espécies ocorridas nesse processo

seria marchar a passos largos no caminho do determinismo. Barraclough (1972, p. 11) chama

firmemente nossa atenção para esta questão: “foi somente no século XI que uma geração

impulsionada por ideais hierocráticos os viu como elos de uma cadeia contínua descendo até

São Pedro”. Ele se refere aqui aos reformistas do período, entre eles, Gregório VII.

1.2. Representações de Império, de Rei e de Imperador

As representações do poder temporal na Idade Média nasceram e se desenvolveram a

partir de uma grande transformação da imagem do imperador da Roma antiga. Os

imperadores romanos influenciados, possivelmente, pela doutrina do Apóstolo Paulo,

passaram a se considerar soberanos “pela graça de Deus” em vez de perpetuarem suas

ambições de serem eles mesmos divindades. Esse reconhecimento de que não eram deuses,

mas sim recebedores do poder por vontade divina, foi fundamental para pavimentar as

relações com o poder espiritual representado pela Igreja cristã. Os imperadores romanos, ao

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reconhecerem que seu poder provinha de uma graça divina, na forma de um dom – beneficium

– abriam precedentes para as posteriores doutrinas que buscavam legitimar a imagem do Papa

como mediador entre Deus e a humanidade nos seus campos múltiplos. (ULLMANN, 1983,

61.).

Dessa forma, a representação do poder temporal que predominou durante a Idade Média

foi a Rex Dei Gratia (Rei pela graça de Deus). A partir do desenvolvimento dessa acepção é

que se realça a realeza sagrada. As ideias emergentes desse conceito remetem-nos a outros

relacionados às concepções de poder ascendente e descente, respectivamente. Esses preceitos

aproximam, em razão da sua relação com aspectos jurídicos, a história e o direito. Entender

princípios de poder na Idade Média exige lembrar a enorme influência do direito31

na esfera

pública da história medieval. Isso é possível observar na efetivação do governo, já que o

direito era o meio pelo qual o poder era exercido. (ULLMANN, 1983, 23). Governar

passando por cima de um direito alheio, se o trono fosse por direito de outrem, significava

usurpação.

Então, voltemos à concepção ascendente de poder para compreendermos essa busca

pelo poder originário. Em Ullmann (1983, p. 24-28), a concepção emergente ou ascendente

designa o poder que origina no povo (populus). Nesse caso, toda autoridade do governo

emerge da base da pirâmide. O povo outorga o poder a alguém para representá-lo, apenas por

eficácia prática. Assim o poder de criar o direito e de regrar a vida da comunidade cabe a esse

governante responsável perante o povo.

Por outro lado, em contraposição a essa concepção ascendente, Ullmann (1983, p. 24-

28) destaca a concepção descendente de poder e de direito. Aqui, a autoridade de governo e a

competência para a jurisdição se originam de um poder supremo e emanam de cima para

baixo. Usando também uma pirâmide para representar essa acepção, o autor assevera que

qualquer poder que resida na base não constitui um poder originário, mas sim derivado do

“topo”. Nesse caso, a imagem suprema do órgão do qual provem o poder descendente é o

próprio Deus. Nesse entendimento, diferente da concepção ascendente, “a ideia de

31

Para os historiadores, tratar de questões acerca do direito compreende uma situação muitas vezes complexa.

Cautela é necessário para falar em direito quer estabelecido por lei escrita quer ligado ao costume. Em se

tratando do período em estudo neste trabalho como um todo, pensemos no direito também a partir do costume.

“O costume reporta-se sempre a práticas anteriores dos pais, dos ancestrais, dos predecessores, no mesmo lugar

da comunidade, e não aos ordenamentos de uma lei estabelecida em qualquer outra parte. É isso que o torna

obrigatório, imperativo. O império do costume nos séculos XI e XII tende no primeiro instante a desaparecer

gradualmente de uma estrutura legal antiga, dessa esfera autônoma do poder público e da justiça que os

Carolíngios tinham acreditado restaurar. Mas apoiando-se na influência dos ancestrais, ele revela também o lugar

central dos laços de parentesco e de solidariedade no funcionamento social, reativando sem dúvida certas

tendências observadas principalmente no mundo romano da Antiguidade Tardia bem como nos reinos bárbaros

da Alta Idade Média”. (CHIFFOLEAU, 2006, p. 341).

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representação não surge deste quadro conceitual, e sim de um poder derivado ou delegado na

forma de um ofício específico concedido pela divindade”. (ULLMANN, 1983, p. 24).

No processo de mudança da concepção ascendente romana, esta perdeu o seu lugar para

o principado e este para o império.32

Com o estabelecimento da doutrina cristã, ganha espaço

a concepção descendente de poder na Idade Média, de forma mais expressiva no império

Bizantino e de maneira semelhante em meio aos germânicos.33

Aos poucos o caráter sacro da

realeza germânica foi se fortalecendo. Na verdade, a representação de dois poderes que se

caracterizavam pela acepção descendente se fortaleceu nesse período: o poder do rei (Rex Dei

Gratia) e o poder do papa (sucessor de São Pedro). Para isso Ullmann (1983, p. 26) chama a

atenção: a diferença entre o “rei pela graça de Deus” e o papa é de extrema relevância para se

compreender as relações dos dois poderes. O primeiro recebia o poder em razão de favor

divino. Diferentemente, o segundo, o papa, não recebia o dito favor de Deus. A questão vai

além disso: o papa teria recebido como herança o ofício e todos os poderes que o Filho de

Deus, o próprio Cristo tinha concedido ao seu apóstolo Pedro.

Ao que parece, a realeza sagrada que o medievo viu crescer no decorrer dos séculos

desenvolveu-se, de certa maneira, à sombra do ofício papal. Pelo menos foi o que se tentou

construir ao longo do desenvolvimento do cristianismo e do primado papal: um papado com o

rosto de império, com termos jurídicos romanos, com projetos de universalização.

Neste trabalho, importa-nos entender, sobremaneira, o império germânico nas suas

relações com o papado no século XI. E isso nos leva a fazer diversas perguntas como: o que

era o império até século XI? Quais eram as representações sobre as quais se apoiava aquela

instituição no período da reforma eclesiástica? Que representações o império utilizava para

justificar sua legitimidade? E, por fim, como a Igreja via o Império no contexto da reforma e

que representações daquele poder eram apresentadas pela instituição eclesiástica? Para

alcançarmos as respostas a essas questões, havemos que compreender, inicialmente, a maneira

como o império se significava e como esse sentido foi construído até o século XI. A

construção do conceito de realeza sagrada na Germânia mencionado anteriormente possuía

caracteres especiais e isso precisa ser levado em conta.

32

Ullmann (1983, p. 25) lembra do poder ascendente na República Romana em que, segundo ele, residia a forma

pura dessa concepção, já que os cidadãos outorgavam o poder aos magistrados. Neste caso, os cidadãos

compreendiam a base piramidal da qual emanava o poder que os constituía “órgão supremo”. Nessa acepção, os

magistrados estavam a serviço dos cidadãos. Essa perspectiva, chamada de populista por Ullmann, foi

substituída pelo principado em que os papéis se modificaram: os magistrados tomaram o lugar e o papel dos

cidadãos. Nessa nova estrutura hierárquica o ápice era ocupado pelo imperador. 33

Ullmann (1983, p. 26) afirma que houve entre os povos germânicos essa mesma transição da concepção

ascendente de governo para a descendente. No entanto, ele assegura que a acepção ascendente para aquele povo

era mais exceção do que regra.

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Além disso, é preciso que nos atentemos também ao caráter peculiar da Germânia nas

suas relações com a Igreja desde a divisão do Império Carolíngio pelo Tratado de Verdun em

843. As relações de poder variavam de acordo com o modo de governar. Em Henrique I

temos, por exemplo, o rei como primus inter pares e com sua legitimidade baseada na

supremacia militar. Já em Oto I, sem desvalorizar a supremacia militar, houve uma retomada

da legitimação do poder real por vias religiosas. Adiante, Henrique II iniciou e Conrado II

desenvolveu uma monarquia teocrática. Em Henrique III temos o apogeu da realeza

teocrática, seguido do filho Henrique IV que se apoiava na Bíblia e em construções

elaboradas pelos Padres da Igreja na busca pela legitimidade do seu poder. O filho da

imperatriz Inês, o último monarca mencionado, foi aquele que enfrentou a batalha das

investiduras contra o Papa Gregório VII no último quartel do século XI. (ARAÚJO, 2011, p.

16-50).

Em que pese às afirmações de Ullmann sobre a construção do sentido de império,

voltemos nossa atenção às tais peculiaridades germânicas. O sentido de realeza para aqueles

povos só pode ser explicitado de maneira mais eficaz a partir da influência cristã, já que antes

do cristianismo há uma ausência de textos escritos. O que se pode ter são apenas alguns

lampejos de como as acepções de governo eram tidas entre os germânicos. Não obstante, eles

“são suficientes para assegurar-nos que a concepção de realeza entre os germânicos, como

entre todos os povos no mesmo estágio de civilização, estava impregnada de caráter

religioso”. (BLOCH, 1993, p. 70). Tirados de famílias nobres específicas, os soberanos eram

vistos como pessoas sagradas ou no mínimo derivados de seres divinos. Entre os godos, por

exemplo, os monarcas eram considerados semideuses. No entanto, com a propagação da

doutrina cristã a antiga compreensão de realeza sagrada começou a cair por terra. Como

afirma Bloch (1993, p. 73), o suporte que a realeza germânica possuía, o “paganismo

nacional”, perdeu-se. Apesar disso, não se pode afirmar que a crença no caráter divino tenha

desaparecido imediatamente, pois há alguns sinais nos textos eclesiásticos os quais

possibilitam o entendimento de que, mesmo tendo sido interrompida no âmbito oficial,

permanecia na “consciência popular”.

[...] se nos ativermos, às aparências oficiais, até o século VIII os reis francos

ou ingleses eram apenas cristãos como os outros e, se assim se pode dizer,

puros leigos. Nenhuma cerimônia eclesiástica consagrava a elevação ao

trono, cujas solenidades, aliás, eram regradas apenas por um costume

bastante variável. Nenhuma impressão religiosa particular vinha marcar a

fronte do soberano. (BLOCH, 1993, p. 73-74).

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A implantação do império no período Carolíngio foi uma tentativa de retomada do

modelo romano (renovatio imperii romani), mas nos moldes cristãos. O Império era

representado pelo soberano Carlos Magno cujo poder compreendia não só assuntos seculares

como também religiosos. Le Goff (2005, p. 45) assegura que o restabelecimento do império

foi mais por alvitre papal que real. Carlos Magno almejava a expansão, mas não lhe era de

bom grado a submissão à consagração religiosa. Suas conquistas militares o legitimavam.

Mesmo assim, no Natal de 800, o Pontífice Leão III corou o rei carolíngio.

Carlos Magno garantiu a organização do império e contribuiu de maneira contumaz para

o crescimento da Igreja. Considerava-se o Defensor Ecclesiae e em toda sua assombrosa série

de conquistas contribuiu para a expansão do Cristianismo no Ocidente. A concepção de

império ambrosiana Imperator enim intra Ecclesiam, non supra Ecclesiam est (O Imperador

está na Igreja e não acima da Igreja) (PACAUT, 1989, p. 18), não é adequada para definir o

termo no período de Carlos Magno. O império não se submetia à Igreja. Diferente disso, a

instituição temporal interferia nos negócios internos da instituição eclesiástica. O imperador

convocava sínodos, escolhia e investia bispos, preocupava-se com a moralidade do clero.

Entre todas essas atribuições, incluía-se também a correta maneira de se proclamar os

princípios religiosos. Essa intromissão, no entendimento de Luscombe (1988, p. 166)

caracterizava a monarquia carolíngia como teocrática.

Outro ponto importante sobre o sentido de império no século IX, pensando também os

reinos a partir da divisão do Império Carolíngio, trata-se do preceito que diz que o processo de

dominação sobre os reinos vizinhos era a maneira como se formava um império. Consoante

aos estudos de Luscombe (1988, p.165), quando os reis passavam a controlar outros povos ou

reinos adjacentes, a tendência era que fossem aclamados imperadores em razão da sua

“hegemonia supranacional”. Desse modo, o império não era visto necessariamente por

características universais ou romanas, mas, não raro, como um governo sobre vários povos.

Isso não significa que o modelo do Império Romano não fosse também evocado. No entanto,

muitos soberanos usavam o termo (império), no século X, por exemplo, como um reforço

supranacional, honroso, cheio de glória, para os seus respectivos reinos.

No que tange àquela natureza sagrada da realeza, surge outra questão que é o caráter

sacerdotal. No entendimento de Luscombe:

A imagem carolíngia de reino era moldada pelos modelos do Antigo

Testamento de reis sagrados como Davi e Salomão ou Melquisedeque que

eram tanto reis quanto sacerdotes. [...] Por volta do século X, tanto na

Germânia quanto na França, um rei tomava seu ofício por meio de ritos que

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eram semelhantes àqueles usados para fazer bispos. O Reino se tornou um

typus Christi e imitava o sacerdócio como também imitava a antiguidade e

Bizâncio. [...] Para a pergunta se o rei era um laico ou um clérigo, a resposta

frequentemente era que ele era um clérigo. (LUSCOMBE, 1988, p. 167).

Em Kantorowicz, na obra Os dois corpos do Rei, podemos observar mais claramente

essa perspectiva de realeza com caráter sagrado. Não é adequado afirmar que todos os reis

que sucederam o Império Carolíngio desde a sua divisão até Henrique IV faziam-se

representar usando imagens religiosas. Por isso é que escolhemos alguns reis germânicos que

antecederam aquele da Controvérsia das Investiduras para esta análise. Cada um construía sua

imagem da maneira que lhe parecia mais apropriado, de acordo com as relações que

estabelecia com seus pares e súditos.

Um notório exemplo disso é o caso do rei Henrique I da Germânia, no século X. O

soberano saxão estabeleceu relações políticas de não superioridade com os outros nobres

numa perspectiva de primus inter paris. Dessa maneira, buscou impedir que o título real o

colocasse em uma distância vertical dos outros nobres. Araújo (2011, p. 30) defende que,

além da perspectiva diplomática, a recusa do rei das prerrogativas que cabiam à sua realeza

(ser coroado por um religioso e ter uma capela palatina – como Chancelaria Real) pode estar

ligada à vontade do soberano de não alimentar possíveis interpretações que o ligassem a um

caráter sagrado do ofício que o fizesse superior. O autor mostra também outro lado da

questão: a rejeição do soberano saxão em relação à coroação por um bispo talvez residisse no

fato de se acreditar que apenas a instituição e a afirmação da sua realeza seria o suficiente.

Araújo faz essa análise a partir do que Bloch (1993) explicita acerca do caráter

taumaturgo dos reis. Essa representação de rei sagrado aparece a partir da unção do soberano

que se eleva sobre os demais (não ungidos). Além disso, há também a perspectiva hierocrática

que pode ter sido o motivo de o rei não aceitar a coroação. Sobre o caráter sagrado da unção e

sua implicação, Bloch ensina também que

o óleo santo elevava os soberanos a muito acima da multidão; eles não

partilhavam com os sacerdotes e com os bispos esse privilégio? Entretanto

havia o reverso da medalha. No decorrer da cerimônia, por um momento o

oficiante que ministrava a unção parecia superior ao monarca que

devotamente a recebia; dali em diante, podia-se pensar que seria necessário

um sacerdote para fazer um rei – sinal evidente da preeminência do

espiritual sobre o secular. [...] Provavelmente, o medo de uma interpretação

desse tipo foi o que, no século seguinte, levou o rei Henrique I da Alemanha

a ser o único, entre todos os monarcas de seu tempo e de sua estirpe, a

recusar a unção e a coroa que o arcebispo de Mainz lhe propunha e a reinar

(como lhe reprova pela boca do apóstolo S. Pedro o autor de uma vida de

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santo) “sem a benção dos pontífices”. O novo rito era uma faca de dois

gumes. (BLOCH, 1993, p. 78-79).

Dessa maneira, como rei buscou se estabelecer inicialmente sem se sobrepor aos

duques, e pela maneira como deles se aproximou, é possível que “a preferência de Heinrich

[Henrique] tenha mais a ver com o tradicionalismo carolíngio, já que os Carolíngios da

Frância Oriental do século IX não foram ungidos”. (ARAÚJO, 2011, p. 30-31). Independente

de qual tenha sido o motivo de sua declinação, foi por meio do seu exército, de eleição e,

sobretudo, das grandes conquistas militares que aquele rei adquiriu legitimidade para o seu

reinado.34

O que se pode afirmar disso é que os possíveis motivos não são contraditórios –

especialmente os ligados ao âmbito diplomático e ao hierocrático – e podem ter coexistido na

decisão real.

Outro modelo de legitimação foi retomado com o Império Otoniano, esse, por meios

religiosos, sem desprezar a importância do aspecto militar. Em 936, Oto foi nomeado pelo

próprio pai e ratificado como soberano por meio de uma eleição, posteriormente. Um desejo

era patente: outra renovatio imperii. É provável que em razão desse anseio de restauração do

império, similar ao que fizeram os Carolíngios, é que o instrumento de legitimação

compreendia elementos e práticas ligados ao âmbito religioso. Esse era o surgimento de uma

série de imperadores que usariam o sagrado como ferramenta principal de legitimação do

poder por pelo menos dois séculos.

Oto I ascendeu determinado a solidificar o seu poder e a sua supremacia. Não hesitou

em aplicar os preceitos oriundos do Império Carolíngio. Procurou restaurar as antigas relações

com a Igreja e garantir direitos do Pontífice sobre patrimônios da instituição eclesiástica, mas

conservou para si o direito de interferência em assuntos eclesiásticos internos. Sua política

expansionista prosseguiu com a anexação de terras conquistadas à Germânia – o Reino da

Itália, por exemplo. Seguindo as ideias herdadas do pai, Oto não desmereceu o poder dos

duques. No entanto, desde então, aqueles nobres dependeriam do monarca. Seus títulos

poderiam ser concedidos ou retirados pelo soberano. Seu caráter de “príncipes hereditários

das tribos” (ARAÚJO, 2011, p. 37) foi suprimido por esse ato imperial.

Após subjugar grande parte da aristocracia alemã e vencer a batalha contra os húngaros,

Oto I deixa-se coroar pelo Papa João XII, em 962, em Roma. Esse papa não era muito

34

A tese de Araújo (2011) traz uma análise aprofundada da legitimação real (ou mesmo imperial) pelas vias

militares. O autor revela que, a partir de Oto I, com o desenvolvimento da monarquia imperial que possuía

características visivelmente teocráticas esse modelo de legitimação, só se tornou novamente possível entre os

germânicos depois da Controvérsia das Investiduras. Araújo (2011, p. 35) enfatizou, nessa perspectiva, o período

de governo de Frederico Barbarossa.

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respeitado por suas atitudes pouco honrosas e logo que percebeu isso, Oto o depôs. Lopez

(1965, p. 116) assevera que “[...] fez-se coroar imperador por um papa sem princípios e, mais

tarde, achando-o pouco seguro, não hesitou em nomear outro (simples leigo na véspera) que

os seus partidários logo proclamaram o melhor”.

Uma ruptura pode ser notada nesse soberano em relação ao império do seu pai: a unção.

De acordo com Bloch, (1993) o óleo santo imposto pelas mãos do pontífice romano o fazia

diferente do resto do povo. O ritual o fazia superior aos seus súditos. O caráter de ungido fazia

do Imperador “Rei pela graça e Deus” o que lhe garantia legitimidade. Mas é possível

perceber também que a interpretação do monarca ao se relacionar com a Igreja na Germânia

se distancia do que pregou Hincmar de Reims acerca da superioridade daquele que impõe o

óleo sobre aquele que é ungido.

Nesse sentido, é possível observar que diante de suas atitudes em relação aos nobres,

Oto enfrentou muitas revoltas contra alguns duques cujo poder era notável. Em confronto com

os próprios filhos e com os magiares, Oto se viu em meio a uma crise. Importa-nos aqui o

resultado dessa crise: uma grande aproximação entre a Igreja e o Império. Oto começou a

utilizar as investiduras para nomear eclesiásticos que, naturalmente, se estabeleceriam como

bispos ou abades sob o controle imperial. Esses clérigos eram selecionados entre aqueles que

já houvessem servido na chancelaria real formando assim um entourage de sua confiança.

(ARAÚJO, 2001, p. 38) Essa prática já havia sido usada por outros monarcas. O ato do

imperador era apenas uma imitação do que faziam alguns soberanos francos anteriores a ele.

Aliás, essa não foi a única cópia que o primeiro imperador dos Otônidas fez. A renovatio

imperii é um exemplo disso.

Não obstante reconheça a inexistência de um sistema institucionalizado bem

consolidado no que diz respeito à cooperação entre a Igreja e o poder temporal, Araújo (2011,

38) diz que em vários reinos, e mais especificamente na Germânia, havia uma significativa

colaboração entres os chefes temporais e os bispos. Para caracterizar esse sistema, o autor traz

o sentido de Reichskirchensystem, ressaltando que a expressão não é verdadeira, de modo

pleno. O termo pode ser definido como um

Método de governo empregado pelos imperadores germânicos entre os

séculos X e XII, no qual os monarcas intervinham na escolha dos bispos e

abades como forma de manter o controle sobre as terras e os direitos ligados

a estas terras, como forma de contrabalançar o poder dos príncipes leigos.

(ARAÚJO, 2011, 38).

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A análise sobre esse “sistema de Igreja imperial” aparece em Reuter (2006) para quem

os bispos se constituíam instrumentos de governo da realeza, pois prestavam grandes serviços

aos seus soberanos que os recompensava por isso. (REUTER, 2006, p. 337). As diferenças

entre os bispos integrantes do Reichskirchensystem e os prelados de outras regiões do

Ocidente estavam presentes na maneira pela qual aqueles reinos haviam se organizado e que

vinham se desenvolvendo, mas não na política real. Um exemplo disso corresponde às

concessões régias sobre direitos sobre moeda e mercado na Germânia. Segundo Reuter, na

França, “privilégios reais concedendo esses direitos eram raros depois do reinado de Carlos, o

Calvo [século IX], todavia os bispos e abades frequentemente exerciam-nos [...]”. (REUTER,

2006, p. 346)

As sucessões de Oto I contribuíram para o estreitamento dessas relações entre os

poderes secular e espiritual. Um de seus sucessores, seu neto, Oto III, teve grande influência

bizantina por parte materna, na sua formação e no seu governo. Em 998, estabeleceu-se em

Roma proclamando uma Renovatio Imperii Romanorum. A restauração foi anunciado em

forma de bula “em que, de um lado figura a cabeça de Carlos Magno e, de outro, uma figura

feminina com lança e escudo, a Aurea Roma”. (LE GOFF, 2005, p. 52). Com a Igreja, Oto III

teve uma boa aproximação com o Papa Silvestre II – o aquitânio Gerberto d’Aurillac35

– que

o apoiava na sua proposta de renovação do Império Romano. Contudo, o sonho do Imperador

e a sabedoria do Papa não foram o bastante para alcançarem o intento de ambos: a renovação

feita por meio da autoridade moral e não pela força.

De todos os pontos relacionados ao governo de Oto III, o que mais nos interessa em

relação à representação de império foi sua rejeição ao caráter imperial da Igreja inaugurado

pela Doação de Constantino. Para ele, a Ecclesia estava submetida ao seu Império. Quanto ao

que a falsa doação trazia de patrimônio para o pontífice, e sentindo-se senhor da Igreja e de

Roma, Oto transmitiu novamente a Cidade eterna ao bispo de Roma, seu amigo, Silvestre II.

Consoante aos estudos de Folz (Apud ARAÚJO, 2011, p. 45), ao conceder novamente Roma à

35

Segundo Pedrero-Sánchez, Gerberto d’Aurillac “[...] de origem humilde, foi enviado do mosteiro beneditino

de Aurillac para Vich, na Catalunha, onde entrou em contato com a ciência árabe. Seu encontro em Roma com o

imperador Oto (970) foi decisivo, por Gerberto iria passar grande parte de sua vida na órbita do Império

Germânico. Por volta de 972 foi escolar em Reims, onde ficaria lecionando por muitos anos, ocupando a Sé

como arcebispo em 989. Em 997 trocou a França pela corte de Oto III, que o acolheu como um velho partidário

da família imperial e não tardou em conseguir sua nomeação para o arcebispado de Ravena. Posteriormente, foi

eleito papa, sendo o primeiro francês a assumir o cargo. É considerado o mentor de Oto III para o projeto de uma

Cristandade unida – Sacro Império Romano-Germânico. Além de eminente estadista, Gerberto foi um erudito e

um sábio, prestigiando a Igreja perante a Europa oriental. Os métodos de ensino por ele utilizados foram

extremamente originais, criando instrumentos e figuras. Ampliou o âmbito de estudo da Lógica e levou a

Matemática a uma nova posição entre as ciências da época. Seu espírito aberto e sua preocupação intelectual

converteram-no em devoto colecionador de manuscritos antigos.” (PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000. p. 292-293).

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autoridade pontifícia, o Imperador fazia do Papa seu beneficiário, apresentando uma posição

hierárquica clara de submissão do prelado a ele. Neste caso, para Folz, o pontifício não seria

mais que “um auxiliar encarregado da Fé”. Por coincidência, quando Oto III morreu em um

conflito ocorrido em Roma, pouco depois Silvestre II também veio a falecer. Mas com eles

não morreu o Império Otoniano. O primo de Oto, Henrique o sucedeu. Este é que foi o último

dos Otônidas.

Henrique II (1002-1024) utilizou largamente das boas relações com a Igreja para se

firmar como rei. Diferente do seu antecessor, não tinha pretensões de universalização do

império. Seu objetivo não era a restauração do Império Romano, mas sim do Reino Franco

(Renovatio regni Francorum). Por todo seu apoio à Igreja, inclusive a movimentos de

renovação da vida nos mosteiros, foi considerado um rei pio. Entre os mosteiros que ajudou a

reformar, principalmente privando-os da opulência em que viviam, estavam os claustros

reformados de Fulda, Reichenau, Corvey e Prum. (BARRACLOUGH, 1972, p. 80). Para

Araújo (2011, p. 45-46), esse apoio à reforma era um serviço ao império e não à Igreja,

propriamente. A partir da organização dos mosteiros, o rei Henrique II pôde instituir um

aparelho imperial com escopos governamentais. O autor considera que, assim, esse rei

conseguiu de fato estabelecer o domínio imperial sobre a instituição eclesiástica germânica

transformando-a em “extensão da corte régia”. Dessa forma, possuía um instrumento de

domínio eficaz que o manteve no poder até o início da dinastia dos Sálios.

Conrado II (1024-1039) seguiu com esse projeto de realeza de caráter sagrado. No

entanto, o auge da realeza se deu com seu filho o imperador Henrique III (1039-1056). Esse

soberano esteve imerso no processo de reformas que começara naquele século. Era de

interesse real que se moralizasse a vida clerical. Outro objetivo, em especial do imperador, era

evitar que os partidos, formados pela a aristocracia laica romana, sempre envolvidos em

conflitos e em rivalidades, alcançassem a Sé de Pedro.

Desse modo, o movimento reformista do período e os interesses eclesiásticos não se

confrontavam de maneira cruenta com os poderes do imperador. Ao contrário, Henrique III,

acreditando que Deus lhe havia confiado uma missão, era um suporte para os reformistas que

também não negavam os direitos do rei sobre a instituição eclesiástica. Esses direitos já

faziam parte não só do hábito,36

mas também estavam estabelecidos na lei canônica usada

naquela época. (BARRACLOUGH, 1972, p. 81). Com Henrique III, vê-se mais claramente o

sistema de Igreja Imperial estabelecido.

36

Melve (2007) traz uma aprofundada análise sobre os argumentos de legitimidade dos direitos régios, inclusive

sobre as investiduras. Entre esses argumentos, aquele do hábito recebeu importância significativa.

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No entanto, o modelo de império pregado por muitos escritores eclesiásticos no decurso

da história da Igreja, em que o poder espiritual se sobrepõe ao temporal não ocorreu com esse

imperador. Tampouco a teoria gelasiana dos dois gládios foi aí aplicada. Henrique era o

supremo imperador sobre a Germânia e sobre toda a sua Igreja. Ele era o império. E é

provável que o fosse mais na prática que no discurso. Seu envolvimento era tão obstinado na

proposta de moralização clerical que acabou por depor o papa Gregório VI. A deposição desse

papa exemplifica tanto o processo de reforma moral como o poder do imperador sobre a

Igreja.

As preocupações morais de Henrique e daqueles que participavam do programa de

reformas foi considerado por Tellebanch (2000, p. 143) como um zelo talvez exagerado. O

imperador havia, de fato, concedido favores eclesiásticos, mas conforme relatos de Wipo

(Apud TELLEBANCH, 2000, p. 143), ele nunca havia recebido nada por isso. O autor

acredita que esse zelo afetou os reformadores e o soberano de tal maneira que se tornou uma

tendência na Germânia. Assessorado por clérigos procedentes de Cluny, o filho de Conrado II

levou seu projeto até as últimas consequências. Quando depôs Gregório VI que houvera sido

acusado de simonia, tomou para si a título de patricius. (BARRACLOUGH, 1972, p. 83). E

foi com essa dignidade, que o imperador pôde vigiar as eleições pontifícias daí para frente. O

cuidado maior era para que o prelado escolhido fosse partidário da proposta da reforma

moralizadora.

O zelo reputado a Henrique sobre a reforma da Igreja e a sua alcunha citada por Wipo

(MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 23) de “senhor dos senhores” (além de outra, “cabeça

da Igreja”) fazia daquele rei um monarca marcado por uma legitimidade política e religiosa.

Ao depor papas e garantir as eleições dos sucessores dos destituídos, Henrique III não se

colocava sob aquele que o ungira. Ao contrário, na sua representação de Imperador, o poder

do chefe secular era proveniente de Deus e isso o fazia legítimo. Foi como “propagador da fé

ortodoxa” e como “cabeça da Igreja” que, ao lado do Papa Leão IX, presidiu o Concílio

reformista de Mainz (1049) e compareceu ao Concílio de Constance (também naquele ano)

em que subiu ao altar junto àquele pontífice para anunciar uma absolvição geral. Além disso,

por meio de sua espada, o Imperador promoveu as sedes da Igreja na região de Constance,

enriquecendo-as e as fortalecendo. Em razão de tudo isso, percebemos que há em Henrique a

crença na preeminência universal e no caráter sagrado do ofício do imperador. A frase

conferida a ele resume bem isso: “Eu fui ungido similarmente [aos clérigos] com o santo óleo,

e o poder de governar diante de todos os outros me foi dado”. (MORRISON, 2000, p. 23). A

supremacia universal de Henrique não se resumia à submissão dos cristãos comuns, mas

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também do pontífice. Ele agia não só como cabeça da Igreja, mas mais ainda: como cabeça da

Cristandade.

Neste caso, a partir da análise realizada por Kantorowicz (1998) dos tratados do

Anônimo Normando (1100), podemos pensar o papel de Henrique em relação à Igreja como

um governante que exerceu o seu poder e o seu ofício como se fosse um secundus post

dominum caeli.37

Assim, consideremos a seguinte passagem dos estudos do Anônimo:

O poder do rei é o poder de Deus. Esse poder, especificamente, é de Deus,

por natureza, e do rei, pela graça. Donde, o rei, também, é Deus e Cristo,

mas pela graça; e o que quer que ele faça, ele o faz não simplesmente como

homem, mas como alguém que se tornou Deus e Cristo pela graça.

(KANTOROWICZ, 1998, p. 52).

Essa acepção leva-nos à teoria da gemina persona que identifica na

pessoa do rei duas naturezas distintas ligadas uma ao espiritual e outra à secular. Nesse

entendimento, o ser rei agrega o ser homem e o ser soberano pela graça de Deus.

(KANTOROWICZ, 1998, p. 50). De tal modo, a teologia política era a maneira que os

homens daquela época possuíam para caracterizar instituições como Igreja e Império. O

âmbito da liturgia permeava tanto o secular quanto o espiritual. Por isso é que fizemos

questão de chamar a atenção no início deste trabalho para a acepção de poder secular a que

nos ateríamos aqui. As relações de poder e as definições de império estavam permeadas pelo

caráter sagrado. Mas como todas as regras, houve as exceções de legitimidade, como já

vimos, pela supremacia militar.

Não passamos por cima da advertência de Kantorowicz (1998, 57-58) quanto às

asseverações do clérigo normando não encontrarem ressonância no âmbito temporal

tampouco no espiritual. Pelo menos não no seu tempo. As ideias do Anônimo procederam de

uma época que já havia passado. Formam uma síntese de um modelo que supervalorizava o

poder temporal. Como existiram outras muitas que tentaram exaltar a supremacia eclesiástica.

O modelo de realeza centrada em Cristo fora o baluarte do império dos Otônidas (Oto II, por

exemplo, no Frontispício dos Evangelhos em Aachen, numa perspectiva cristocêntrica) e

também dos Sálios (Henrique III, outro exemplo), além de outras dinastias (da Inglaterra, por

exemplo). O Anônimo Normando, contemporâneo dos problemas decorrentes da questão com

as investiduras, era, claramente, um partidário da supremacia do poder temporal e de um rei

que era mais que o portador do gládio secular, era um rei-sacerdote.

37

Também pode ser o imperador, neste caso, designado de alter post Christum (o outro depois de Cristo).

(KANTOROWICZ, 1998, p. 341).

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Ao morrer em 1056, Henrique III deixou menor o herdeiro de sua coroa. Durante o

período da menoridade de Henrique IV, o programa reformador caminhou sem auxílio do

imperador. Dessa maneira, as propostas e as representações de Ecclesia que antes haviam sido

pregadas por alguns prelados de superioridade do espiritual sobre o temporal começaram a

transparecer nos ideais de alguns reformadores. Este foi o caso do monge Hildebrando, o

futuro papa Gregório VII, que se tornaria um arquirrival do Rei Henrique IV, como veremos

mais tarde.

A fase que Henrique IV tomou posse do seu trono foi complexa para o jovem rei. Os

problemas temporais na Saxônia e as reformas no âmbito eclesiástico eram questões com as

quais ele devia lidar com cautela. Evitar um conflito com os reformadores, que durante sua

menoridade haviam ganhado mais espaço na luta a favor da liberdade da Igreja, não parecia

tarefa simples. Para pensar o sentido de império nesse período utilizaremos mais das próprias

cartas do soberano e ao mesmo tempo analisaremos as representações do próprio rei.

De modo geral, as cartas de Henrique IV mostram justificativas de poder a partir do

caráter religioso. No entanto, em razão dos conflitos que enfrentou durante seu governo, não

se pode comparar a força da legitimidade religiosa do seu reinado com o do seu pai que esteve

no topo do que se pode chamar de realeza teocrática ou de uma teocracia imperial bem

fundamentada. Não obstante, o discurso do chefe temporal apresenta sua crença no seu poder

como originado de Deus, sendo ele, dessa forma, “Rei pela graça de Deus”.

A análise pode ser feita a partir de sua correspondência. No cabeçalho38

de todas as suas

cartas, na parte reservada à intitulatio, Henrique se denomina “Rei”, em seguida manifesta sua

devoção com o título “pela Graça de Deus”. Essa representação de si é ratificada e enfatizada

em carta ao Papa Gregório VII em que o acusa de provocar conflitos na Igreja e o convoca a

deixar o trono de São Pedro. Essa ênfase na construção de uma imagem que represente o rei

como um agraciado e ungido divino, em detrimento de alguém que não considera legítimo,

aparece já no início da mensagem: “Henrique, Rei não por usurpação, mas pela piedosa

ordenação de Deus, a Hildebrando, não mais Papa, mas falso monge”. (MOMMSEN;

38

Mommsen e Morrison (2000, p. 138-139 e 167) colocam uma importante nota sobre os cabeçalhos das cartas

emitidas por reis ou chanceleres. Segundo os estudiosos “o primeiro elemento de cartas e cartas de privilégio

medievais era normalmente o que os estudantes de diplomacia chamam de “protocolo”, a forma clássica que

consiste em cinco partes. A primeira delas é a invocatio, ou o apelo à autoridade divina com as palavras ‘Em

nome da Santa e Indivisível Trindade’ ou alguma expressão similar. Ocasionalmente, como na décima nona carta

de Henrique IV [refere-se às cartas traduzidas no livro desses autores], por um monograma representando o

nome de ‘Cristo’ [☧leia-se “chi-rho” – são as duas primeiras letras do nome de Cristo em grego: ]. A

invocatio é seguida pela intitulatio (o nome e o título do remetente) e a fórmula de devoção que estabelece que o

remetente deve sua posição à graça divina. Finalmente, há a inscriptio, ou o nome e o título do destinatário, e

também a salutatio ou a fórmula de cumprimento [saudação]”.

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MORRISON, 2000, p. 150). Como na maioria dos textos daquele rei, é possível perceber,

muitas vezes, referências indiretas e, às vezes, diretas a textos bíblicos para justificar seus

propósitos. No trecho em destaque aparecem aspectos da concepção paulina sobre a

constituição das autoridades. A exemplo disso, na Carta aos Romanos 13, 1-2 (BÍBLIA,

1995), o Apóstolo exorta a todos que se deixem submeter às autoridades porque são elas

estabelecidas por Deus. Ainda, adverte que a desobediência e a revolta contra os agraciados

pela autoridade divina o fazem contra “a ordem querida por Deus” e que, portanto, serão

condenados pelas suas ações.

Esse poder reivindicado por Henrique confronta o poder espiritual tomado pelo

pontífice. Na perspectiva reformista do Cardeal Humberto de Silvacandida, “um poder laico

legítimo é como um peito e dois braços para obedecer e defender a Igreja” e os reis seriam

“simples agentes do poder espiritual”. (PAUL, 2004, p. 224.). Posicionamentos divergentes e

maneiras diferentes de representação do poder temporal certamente deram ensejo ao conflito

que se arrastou por quase meio século entre o Reino e o Sacerdócio.

Durante o período da reforma, bem como no decurso da Questão das Investiduras, o que

pretendiam os reformistas era muito mais que colocar o poder temporal sob o jugo do

espiritual. O objetivo maior foi, no entendimento de Bloch (1993, p. 111) eliminar a velha

confusão entre os dois poderes. Dessa forma, a luta pela manutenção da legitimação religiosa

pelo poder temporal e o anseio por parte dos reformadores de dessacralizar o poder dos reis

marcaram a reforma no século XI. Paul (2004, p. 227-228) assegura que esse anseio da

reforma pela dessacralização do poder de reis e imperadores apresenta-se de maneira bem

contraditória, pois, se o objetivo dos reformadores – e Gregório VII foi um dos mais ferrenhos

– era tornar o mundo santo, a tentativa de tirar o caráter sagrado do Império era incoerente.

As representações construídas sobre Henrique IV o apresentam como um homem

seguro das coisas nas quais acreditava. Apresentam-no, sobretudo, como um homem

religioso, devoto, e que não tinha dúvidas quanto à legitimidade religiosa do seu poder. No

âmbito concreto da religiosidade, esse soberano era um sufragâneo do mosteiro de

Echternach. Algumas traduções de documentos contemporâneos a ele o caracterizam de “Rei

Católico e Pontifício”, outros de “Rei Católico e Pacífico”. Muitos partidários do império a

ele se referiram como “Sua Beatitude” (o seu ferrenho defensor, Pedro Crasso), ou,

comparando-o a Abraão, “o amigo de Deus”, ou mesmo relacionando-o a Cristo, “minha

esperança”. Além da participação dos salmos penitenciais cantados, Henrique é também

lembrado pelo seu gosto por relíquias sagradas, tal como seu avô, Conrado II. A lança de São

Mauricio ou um prego que acreditava ser da cruz de Cristo, essas relíquias o acompanhavam

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em suas batalhas, como foi quando venceu os Saxões em 1075. Morrison (2000, p. 24-25)

também assegura que para o soberano esses objetos guardavam significado como símbolos

sagrados e temporais.

Morrison resume a perspectiva de império de Henrique IV quando analisa a Laudes de

Ivrea:

A chamada “Laudes de Ivrea”, cantada em 1090 em aclamação ao antipapa

de Henrique, Clemente, e ao próprio Henrique, pode ilustrar a posição do

Imperador. Começaram com a tríplice repetição de Christus vincit, Christus

regnat, Christus imperat, uma referencia ao Governante Divino que, na

teologia política medieval, era a origem de todos os poderes, e,

segundamente por inferência, um reconhecimento daqueles poderes.

Continuaram com a oração e a aclamação. “Ouvi, O Cristo! Vida a

Clemente, bispo da primeira sé e papa universal”. Depois de mais oração,

“Ouvi, O Cristo! Vida e vitoria a Henrique, Imperador Augusto, coroado por

Deus, magno e pacífico”. (MORRISON, 2000, p. 25).

A perspectiva de poder espiritual expressa nessa Laudes está longe de ser convergente

com os planos daquele papa que se supunha portador do direito de destituir imperadores

(Gregório VII). O termo usado para designar Clemente como prelado da “primeira sé” não lhe

conferia o mesmo poder que fosse outorgado ao que fosse chamado de bispo da “Santa e

Apostólica Sé” ou mesmo da “Sé Romana”. Esse ponto é essencial para se identificar o

modelo de império ansiado por Henrique IV. No entendimento de Morrison (2000, p. 25), o

que foi proferido na Laudes procedera de um antigo cânone do decreto do Concílio de

Cartago realizado no final do século IV (398) segundo o qual não poderia ser conferida ao

prelado da primeira sé a alcunha de “príncipe dos padres” ou mesmo o epíteto “Supremo

Padre” (Sumo Pontífice). A designação era única, sem adereços: Clemente era chamado de

“bispo da primeira sé”.

Outro ponto abordado pelo autor (MORRISON, 2000, p. 26) se refere à ausência de

alusão à origem do poder do antipapa Clemente. O questionamento surge porque os prelados,

de maneira geral, justificam seu poder como derivado de Deus. Ser bispo é ser escolhido por

Deus para conduzir o seu rebanho, como um pastor de ovelhas faz. No entanto, a Laudes não

menciona nada que designe a origem divina do poder de Clemente. Essa constatação nos faz

observar a posição confortável que Henrique IV buscava se colocar. Sua autoridade temporal

provinha de Deus e o próprio soberano se denominava como “Rei pela graça de Deus” e,

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posteriormente, “Pela graça de Deus, Imperador dos Romanos e Augusto” ou mesmo, com

mais frequência, “Pela graça de Deus, Imperador Augusto dos Romanos”.39

Ao analisar a atitude de Henrique IV ante seu antipapa podemos até pensar de novo no

Anônimo Normando sobre o caráter do bispo como gemina persona. O prelado possui

características sagradas, mas elas não superam as reservadas ao rei. As imagens que ambos

representam são de Cristo e do próprio Deus. Nesta perspectiva, Cristo é o grande Sacerdote –

o prelado é seu sacerdote. Deus, o Supremo Rei – o soberano terreno é seu rei. Dessa forma,

as constitutivas de cada cargo o fazem de natureza inferior ou superior. O sacerdote, inferior,

estaria ligado ao humano. O rei, superior, era marcado pela sua “deidade”. Sendo assim, o

bispo tem o papel de mediador “inter regem et oves sibi creditas” (entre o rei e as ovelhas que

lhe foram confiadas). Para Jaime de Viterbo, “Cristo Rei é mais dignificado e superior ao

Cristo Sacerdote”. (KANTOROWICZ, 1998, p. 55 e 329).

É, pois, possível compreender a legitimidade do império a partir da construção de

diversas imagens do soberano temporal como um eleito divino e deste em suas relações com a

Igreja, especialmente, com a instituição eclesiástica que compreendia abadias, monastérios,

bispados que integravam o sistema da monarquia imperial. Henrique IV administrava a Igreja

germânica e ele não foi o primeiro a fazer isso. Era mais que um costume da sua família, do

seu pai Henrique III, do seu avô Conrado II. Essa relação de supremacia do poder temporal

sobre o espiritual era bem mais antiga que a dinastia dos Sálios. A busca pela legitimação do

seu poder por vias religiosas segue o mesmo caminho. A representação de Henrique IV foi

construída não só a partir do seu papel de rei guerreiro que enfrenta e vence conflitos militares

para se legitimar. Ele era mais que isso. A imagem que pintou de si era de um Vicarius Dei.

Todas essas construções, as imagens e as representações, além de serem mecanismos de

legitimação compreendiam uma estrutura que suportava as relações públicas do Rei e, depois,

do Imperador Henrique.

A imagem de rei profundamente ligado ao sagrado, construída e utilizada para

representar Henrique IV, aparece na elegia escrita após sua morte por um biógrafo anônimo.

Trata-se da Vita Heinrici IV imperatoris (A vida do Imperador Henrique IV). Em que pese o

39

Simples mudança no modo de escrever o cabeçalho das cartas ou mera coincidência, quando Henrique se torna

Imperador, o protocolo muda um pouco a ordem. A princípio, a intitulatio “Rei” vinha antes da expressão de

devoção “pela graça de Deus”. Com sua coroação como imperador, a parte caracteristicamente religiosa passa a

vir antes do título ou posição do soberano: “Henrique, pela graça de Deus Imperador Augusto dos Romanos. Isso

pode ser observado em quase todas as cartas a que temos acesso, exceto na de número 39 o que os estudiosos

que as traduziram (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 190) explicam, em nota, que é comum faltar o protocolo

em alguns desses manuscritos e que só possível observá-lo somente na Coleção Wolfenbüttel e no Codex

Udalrici.

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caráter laudatório da obra, o texto apresenta as características que faziam de um rei um rex

iustus.

Vossa razão para se angustiar, ó vós, pobres, é de fato a maior, por terdes

sido feitos pobres e agora sozinhos, quando perdestes aquele que confortou a

vossa pobreza. Ele vos alimentou, ele vos lavou com suas próprias mãos, ele

cobriu vossa nudez.40

Lázaro não se deitou diante de sua porta, mas [se

sentou] diante de sua mesa; ele não esperou por migalhas41

, mas por iguarias

régias. [...] Ele oprimiu os opressores dos pobres. (MOMMSEN;

MORRISON, 2000, p. 103 e 105).

Essa perspectiva textual pretende a legitimação da realeza de Henrique e a ilegalidade

do anti-rei que o autor descreve nos textos seguintes. A presença do interdiscurso pode ser

observada tanto de trechos bíblicos quanto de outros textos antigos. Henrique havia sido, para

o biógrafo, o protetor do reino, da Igreja e, principalmente, dos pobres. Ao descrever a morte

do rei, assevera que os grandes perdedores foram aqueles mais castigados pela pobreza.

Dessa maneira, o ponto de convergência entre as representações da Igreja e do Império

naquele período deitavam suas bases no sagrado. Papa e Rei, o poder espiritual e o poder

secular no medievo não podem ser compreendidos sobre bases longínquas do seu contexto

marcadamente religioso. Diante dessa constatação, pensemos na opinião de Sêneca que

afirmava que “o saber é um patrimônio comum”, e, receando o perigo da parolagem,

consideremos tenha sido legítima a fala de um historiador,42

referindo-se ao intelectual da

Roma antiga, dizendo que “na Idade Média, o conhecimento de Deus era patrimônio comum”.

40

Interdiscurso: referência, segundo, Mommsen e Morrison (2000, p. 103) ao texto de Sulpicius Severus, A vida

de São Martin. 41

Outro momento de intertextualidade: refere-se ao texto do evangelho de Lucas 16, 20: “havia também um

mendigo, por nome Lázaro, que estava deitado à porta do rico. Ele avidamente desejava matar a fome com as

migalhas que caíam da mesa do rico...”. (BÍBLIA, 1995). 42

Do qual não possuímos identificação. Nós o ouvimos em mesa de comunicações de um desses congressos de

História (ANPUH/SP, 2012).

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CAPÍTULO 2

NON EST POTESTAS NISI A DEO43

O processo de institucionalização da Igreja no Império Romano caracterizado por lutas

e perseguições, inicialmente, e depois pela oficialização da religião sucedida por concessões e

troca de favores foram fundamentais para a construção da face que ela apresentou na Idade

Média.

Desde o início, São Paulo (Romanos 13, 1-7) já aconselhava sobre como deveriam ser

as relações dos fiéis com seus superiores, bem como ressaltava qual era o papel do príncipe na

sociedade. Admoestava a obediência às autoridades que tinham o papel de fazer a justiça e,

por portar a espada, de castigar quem praticasse o mal. O soberano tinha esse poder porque o

recebera de Deus mesmo para fomentar o bem e obstruir os caminhos do mal. (BÍBLIA,

1995). Arquillière chama essa perspectiva paulina de “concepção ministerial do poder secular.

A autoridade do príncipe se impõe ao respeito e à obediência, porque ela é o instrumento de

Deus para promover o bem e refrear o mal. Esta é sua razão de ser”. (ARQUILLIÈRE, 1955,

p. 93). Para Ribeiro (1995, p. 10), essa percepção decorre de um princípio “providencialista

do poder” segundo o qual o poder é provido por Deus. Neste caso, os fundamentos que

apoiam a política dentro da doutrina cristã apostólica asseguram a desvinculação entre os

poderes espirituais e temporais. Estabelecendo que os fiéis devem se manter subordinados à

autoridade estabelecida por Deus e o poder do Estado deve contribuir para a realização da

obra celestial.

2.1 Algumas teorias das relações de poder entre Império e Papado

Dessas relações entre o poder temporal e o poder espiritual, resultaram algumas teorias

acerca de como deveria ser a ligação entre as duas esferas. Grande parte dessas doutrinas

derivou de pensadores cristãos, muitas vezes bispos da Igreja. As proposições de não-

intervenção, de colaboração ou mesmo de sobreposição de um poder em relação ao outro

marcaram, ao longo da Idade Média, as práticas dos homens daquele tempo. É provável que

dentre as certezas que tinham, que talvez não fossem muitas, concordavam em que reis e

43

Romanos 13, 1: “[...] não há autoridade a não ser por Deus e as que existem são estabelecidas por ele”.

((BÍBLIA, 1995). (Grifo nosso).

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bispos possuíam um papel no projeto de construção da sociedade cristã rumo à

universalização da Igreja deixada por Cristo.

As primeiras manifestações da Igreja contra as intromissões imperiais nos seus

interesses internos ocorreram ainda no século IV – era a teoria da não-intervenção. Ossius de

Córdoba (ou Ósio de Córdova) (Apud MACEDO, 2007, p. 27) dirigiu-se ao Imperador

Romano, manifestando-se contra sua intervenção nas questões da Igreja. No mesmo período,

outros epíscopos também aderiram a essa busca pela não-intervenção do soberano temporal,

como Lúcifer de Cagliari, Hilário de Poitiers e, notadamente, Santo Ambrósio de Milão. Este

último, além de pregar a Libertas Ecclesiae, defendia a separação dos dois poderes e ainda,

lembrava ao Imperador que, por ser cristão, ele era submisso à instituição e, portanto, devia-se

juntar a ela para a busca do bem da coletividade. (RIBEIRO, 1998, p. 13-15).

Há que se observar essa perspectiva ambrosiana de liberdade da Igreja quando foi

retomada no século XI. Quando os reformadores reivindicaram a emancipação da instituição

religiosa da interferência real, retomaram os princípios já pregados pelo Padre da Igreja –

Santo Ambrósio. Pensar essa separação nos remete novamente ao processo de dessacralização

do poder temporal. Paul (2004, p. 228) afirma que no anseio reformista, a liberdade da Igreja

implicava a sucessão do mundo sacralizado por um mundo dessacralizado em que as

atividades profanas e as coisas religiosas restariam divididas. Como dissemos anteriormente,

na perspectiva ambrosiana de o imperador estar dentro da Igreja, a Libertas Ecclesiae não

parece excluir o Império das suas relações, mas sim colocá-lo sob sua jurisdição como se a

instituição religiosa formasse um corpo do qual o representante do poder temporal era apenas

um membro. Uma importante parte, mas, mesmo assim, uma parte.

Outra teoria apareceu, no século V, sobre a ligação entre os dois poderes: a relação de

colaboração. O grande nome que defendeu essa doutrina foi também quem deixou clara a

separação dos poderes temporal e espiritual: Agostinho de Hipona. Para ele, o soberano

deveria ocupar-se das coisas relacionadas à matéria e a Igreja das coisas do espírito. Baseado

em Santo Ambrósio, Santo Agostinho organizou essas ideias considerando a situação política

em que se encontrava o Império Romano – fraco e decadente. Ribeiro assim analisa a

perspectiva agostiniana sobre as relações de poder:

O autor de A Cidade de Deus (De civitate Dei) distingue, porém,

nitidamente os dois poderes, que diferem em seu objeto: o Estado ocupa-se

dos interesses materiais e a Igreja dos interesses espirituais; em sua natureza:

uma é física, a outra é moral; em seus meios de ação: o Estado recorre à

espada para impor e defender sua autoridade, a Igreja exerce a sua

autoridade pela caridade; em seus fins e destinos: o Estado é temporário,

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desaparece, ao passo que a Igreja é eterna. Não obstante, existirem

diferenças entre as duas sociedades, ambas são feitas de homens e para o

bem do homem. Entre os dois poderes existe, por vezes, concordância na

preocupação quanto ao bem comum. Isso legitima a colaboração do Estado.

De sua parte, a Igreja empresta ao Estado seu ensinamento moral, suas

preces e impõe aos seus fiéis a obrigação de obediência. Cabe ao Estado

assegurar à Igreja paz, proteção e ajuda. Essa colaboração não implica perda

da preeminência do espiritual, isto é, da Igreja, de vez que os fins desta são

superiores aos do Estado. Tal preeminência, por outro lado, não significa

necessariamente uma teocracia. Mesmo porque, à época de Santo Agostinho,

o papado não era suficientemente forte para sobrepor-se ao Estado. O

pensamento político de Santo Agostinho terá poderosa influência na Idade

Média. (RIBEIRO, 1998, p. 19).

Convém aqui, antes de prosseguir com as doutrinas acerca das relações de poder entre

as representações espirituais e as terrenas, lembrar alguns pontos essenciais sobre o bispo de

Hipona, cujas ideias influenciaram – junto a ideais de outros – a construção de uma teologia

política que fundamentou essa acepção de poder espiritual, distinto do secular e carregado de

características peculiares. Os ideais agostinianos surgiram em meio à histórica crise do

Império Romano. Dentre suas grandes obras destaca-se a Cidade de Deus. Foram anos de

escrita (413 – 427) e, portanto, por meio de todos os vinte e dois livros que compõem a obra é

possível perceber a mudança de pensamento do autor ou, talvez, seu amadurecimento sobre

diversos pontos na esfera filosófica e também na esfera política, especialmente na sua relação

com os estudos de Platão e com o Império Romano, respectivamente. Antes da escrita da

Cidade de Deus e coincidindo com o Édito de Tessalônica (final do século IV) por meio do

qual Teodósio impõe oficialmente o cristianismo, Agostinho aceita a ideia de que o império

era o instrumento da providência divina para estabelecer a religião cristã no mundo. Havia

certo consenso de que aquela era uma era cristã por excelência, já que o poder que antes

perseguia a Igreja fazia dela, então, a religião oficial do Império. Havia entre os cristãos,

compartilhada por Agostinho, uma visão eufórica de um império cristão que se realizava sob

os olhos. Posteriormente, no início do século V, com as calamidades sofridas pelo Império em

razão das invasões bárbaras, Agostinho escreve a Cidade de Deus para contra-atacar os

pagãos, confortar e dar esperança aos cristãos. A obra marca também uma mudança nas ideias

agostinianas: o bispo de Hipona não mais sustentava sua ideia sobre o Império Romano como

instrumento de Deus para estabelecer a sua Igreja, como o fizera na época de Teodósio.

Tampouco era o Império obstáculo para a realização do plano divino, pois, na perspectiva

religiosa, ele era neutro, de acordo com Agostinho. (MARKUS, 1988, p. 99-100).

Ao elaborar a teoria das duas cidades, Agostinho realçou o caráter indeterminado da

sociedade humana na perspectiva da cidade de Deus e da cidade terrena cuja realidade é

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marcada pelo abstrato. As cidades dos santos e dos injustos ou dos orgulhosos e dos humildes,

respectivamente, foram tratadas pelo bispo de Hipona. Sua formulação mais explícita das

duas cidades aparece quando Agostinho as compara a dois tipos de amor:

Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado

ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si

próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus,

porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória a

Deus, testemunha de sua consciência. Aquela ensoberbece-se em sua glória e

esta diz a seu Deus: ‘Sois minha glória e quem me exalta a cabeça’. Naquela,

seus príncipes e as nações avassaladas veem-se sob o jugo da concupiscência

de domínio; nesta, servem em mútua caridade, os governantes,

aconselhando, e os súditos, obedecendo. (SANTO AGOSTINHO, 1990, p.

169).

Dessa maneira, ficam caracterizadas as duas cidades: o amor individual que deixa de

lado o divino – cidade terrestre;44 o amor que coloca Deus sobre o sentimento a si mesmo –

cidade celeste. Agostinho refere-se também à “paz terrestre” que se liga à satisfação das

necessidades materiais, à segurança em relação aos ataques exógenos e da boa ordem das

relações sociais – tudo isso representa valores dos cidadãos tanto de uma como de outra

cidade. A “paz terrestre” é uma preocupação de todos. No entanto, há diferentes motivos

pelos quais ela é importante. Para os membros da cidade celeste componentes da sociedade, a

paz terrestre será colocada em relação ao “gozo da paz eterna”. Para Agostinho, a cidade

celeste a tudo transcendia. (MARKUS, 1988, p. 103).

No pensamento agostiniano, somente existe um estado cuja justiça é verdadeira: a

cidade celeste. Não há como encontrar essa justiça em uma comunidade que não teve como

fundador o próprio Cristo. Portanto, o fim maior da política do homem é o estabelecimento da

paz, mesmo que esta seja uma paz derivada da cidade terrena. Pois até mesmo ela conserva

alguma relação com a bondade divina. Sendo assim, os justos devem preservá-la, mesmo que

não a valorizem em absoluto. Agostinho não declinava da política humana totalmente, mas

44

É, deveras, muito relevante lembrar que Santo Agostinho trabalha o sentido de tempo na maioria das suas

obras e notadamente nesta parte sobre as duas cidades. Neste estudo, importa-nos ao menos realçar a

significância da perspectiva agostiniana no que diz respeito à divisão das duas esferas, espiritual e temporal.

Quando o bispo de Hipona separa o temporal do espiritual, ele o faz caracterizando o primeiro como passageiro

(tempo finito) e o segundo como eterno (tempo infinito). Dessa forma, quando se significa o poder temporal na

Idade Média, toma-se o sentido agostiniano de que o poder terreno está ligado a uma percepção de tempo não

eterna. No próprio sentido de “temporal” e de “secular”, podemos perceber essa clara relação com o tempo. Sem

nos atermos às minúcias dos estudos agostinianos, que merece um estudo mais aprofundado em outro trabalho,

se tomarmos o sentido latino de ambos os termos (temporal e secular) podemos entender essa significação:

“tempus – tempo; temporalis – temporal, temporário”; “temporalitas – espaço de tempo limitado, estação”;

“saeculum – século, geração, longo período de duração indeterminada [mas não eterna], reinado, poder,

império”. (TORRINHA, 1945, p. 763 e 862).

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via o bem do homem morando na cidade celeste e não na terrena. “Não é na cidade humana

que o bem de nossas almas está em jogo. Os sucessores de Agostinho herdaram sua visão de

única cidade verdadeira, como paradigma dominante no pensamento sobre a política desta

vida”. (BRETT, 2008, p. 329-330)

Nos primeiros textos agostinianos, é possível perceber a influência platônica na

maneira de perceber ou interpretar o cristianismo. Inspirado em Ambrósio (santo) e em textos

platônicos que circulavam entre estudiosos neoplatônicos milaneses, Agostinho não pensava a

sociedade como um objeto basilar de seu interesse. Contudo, quando a tomava como objeto

de reflexão, observava-a como um “elemento da ordem total” que perpassava todo o universo.

Nessa acepção, o bispo de Hipona estava em consonância com a tradição do pensamento

platônico. Neste caso, a sociedade compunha uma “hierarquia ordenada do mundo”. Tal

ordem era o que conduzia a humanidade a Deus. A ordem social se aloja na ordem cósmica.

“A ordem da sociedade terrestre é o reflexo de uma ordem superior, inteligível, e faz parte dos

meios pelos quais esta ordem é introduzida nos negócios humanos”. (MARKUS, 1988, p.

104).

Em determinada fase de seus escritos, Agostinho compara o reino de Cristo que, como

aparece em João 18, 36, “não é deste mundo”, ao mundo inteligível das ideias de Platão. Essa

influência greco-romana parece minguar mais tarde. Isso se dá, de acordo com Markus (1988,

p. 104-105), em razão da percepção por aquele Padre da Igreja da existência de uma

gigantesca fenda que separava os discursos platônicos e bíblico. Markus nota ainda que o

conflito entre as duas perspectivas surgira antes mesmo de Agostinho repudiar sua velha

crença na autodeterminação humana, já por volta de 400, em sua obra Confissões.

Por fim, interessa-nos ainda pensar nas acepções agostinianas sobre as relações entre a

Igreja e o mundo, o saeculum, já que ele tanto refletiu acerca da instituição a que servia. No

entendimento de Markus (1988, p. 107-108), Agostinho elaborou sua acepção de Igreja ao

mesmo tempo em que enfrentava o conflito com o Donatismo. Para os seguidores desse

movimento cismático, a Igreja composta por um grupo de fiéis, era imaculada e, portanto,

santa. Consideravam os católicos seguidores de uma Igreja voltada para a apostasia. A Igreja

dos católicos era, para os donatistas, comprometida com as autoridades laicas e dependente do

seu apoio. Agostinho não se afastava dessa perspectiva. E é em consonância com um autor

donatista (Tyconius) que o bispo de Hipona estabelece algumas de suas teorias. Na verdade,

Agostinho toma emprestado algumas dessas ideias de Tyconius que passam a compor seus

estudos eclesiológicos e sua teoria sobre as duas cidades. O preceito agostiniano principal que

fora legado por Tyconius dizia respeito à composição da comunidade concreta dos cristãos.

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Tratava-se de um corpo misto formado por um lado por homens santos e por outro por

homens maus.

Apesar de as duas cidades só poderem ser separadas no âmbito escatológico, a Igreja

podia ser designada como a cidade de Deus e, como observa Markus (1988, p. 108), “não

somente à maneira retórica pela qual o império romano podia ser identificado à cidade

terrestre. [...] A Igreja é a cidade de Deus aqui e agora em um sentido que nenhum Estado

nem qualquer grupo é a cidade terrestre”.

Também consoante com os donatistas, Agostinho recusa a acepção de império como

uma instituição sagrada. Além disso, concorda com a ideia de santidade da Ecclesia. Todavia,

as ideias agostinianas tomam direção contrária às percepções dos donatistas quando recusa

um dualismo entre o mundano, o profano e o sagrado como se se tratasse de dois domínios

diferentes, encerrados no seu próprio meio sociológico. Para Agostinho não há limites bem

definidos entre a Igreja e o mundo. A batalha entre a santidade e o pecado perpassa o coração

de toda comunidade humana, inclusive da Igreja. (MARKUS, 1988, p. 108-109).

Mas se havia uma cidade verdadeira – e essa era uma das heranças clássicas no

pensamento de Agostinho – haveria também uma maneira de se tornar seu cidadão. O bispo

de Hipona, considerado o último filósofo do mundo antigo e o primeiro do medieval, trazia

consigo as perspectivas antigas de uma cidade verdadeira – lugar único para o alcance da

plena realização humana. A diferença entre Agostinho e seus predecessores reside na maneira

pela qual compreendem essa cidade verdadeira e por que meios se consegue nela a cidadania.

Consoante às ideias agostinianas, somente a graça permite a aquisição da cidadania e, além

disso, o homem só é completamente humano na cidade de Deus. (BRETT, 2008, p. 329.)

As ideias de Agostinho perpassaram vários séculos e outras teorias de poder se

agregaram a elas. A maioria ditando maneiras de relacionamento entre o poder temporal e o

poder espiritual. No século XI, considerando o processo reformador e as propostas de

Gregório VII, as relações de poder no discurso daquela época estavam bem definidas para os

reformistas: a Igreja não deveria se submeter ao Regno de acordo com os argumentos tanto

históricos quanto bíblicos. Portanto, nenhum chefe temporal podia investir bispos. Não lhe era

legítimo.

Nesse sentido, não foi aleatoriamente que voltamos em Agostinho para começarmos a

entender a Igreja e as suas relações com o poder secular no século XI. A construção da cultura

política medieval deve muito às formulações de representação do mundo específicas da

sociedade cristã em concomitante ascensão. As representações do âmbito celeste tratadas por

Agostinho são de grande relevância para se compreender as imagens que foram elaboradas ao

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longo dos séculos para designar a Igreja e tudo o que ela representava. Entender a reforma da

instituição que ganhou grande força no século XI e adentrou o século XII é compreender

também essas marcas deixadas por Agostinho e por tantos outros, como se verá, na história

eclesiológica, bem como nas relações entre a instituição cristã que representava o poder

espiritual e o império que correspondia ao poder temporal.

Outro prelado romano que defendeu a doutrina da colaboração entre os poderes foi Leão

Magno. Ele foi o primeiro papa a tomar para si o antigo título de origem pagã, antes usado

pelos imperadores do Velho Império, de Pontifex Maximus. (BARRACLOUGH, 1972, p.30).

Colocava a importância da cooperação entre Igreja e Estado de maneira que o poder espiritual

estivesse em primeiro lugar e que o soberano temporal teria como dever precípuo o auxílio à

Sé Apostólica. Um ponto importante aqui em Leão I, segundo Gaudemet (Apud RIBEIRO,

1998, p. 19-20), é que esse entendimento promove a intervenção temporal no âmbito interno

da Igreja, mas somente quando solicitado. Neste caso, esse pontífice de meados do século V,

como Gregório VII no longínquo século XI, pensava a nomeação dos epíscopos, a

administração do patrimônio da Igreja, bem como outros assuntos relacionados à fé como

matéria exclusiva do corpo eclesiástico e, portanto, não caberia ao Imperador intervir.

Com o declínio do Império Romano em 476, aliás, para sermos mais precisos, com a

transferência da autoridade imperial para Constantinopla, a sede romana passou a ser ocupada

pela autoridade episcopal. A Igreja era a única instituição organizada da época que, além de

possuir bens, era respeitada pelo prestígio que tinha obtido durante seus primeiros séculos de

existência, principalmente pela sua doutrina. Na linha de Leão I, a instituição continuou a

defender a independência Ecclesiae com a colaboração do poder temporal e, por diversas

vezes, viu esse poder interferindo em seus assuntos internos. (RIBEIRO, 1995, p. 21).

A teoria da distinção entre as coisas do Estado e os assuntos da Igreja tornou-se mais

definida com acepção dos dois gládios de Gelásio na última década do século V. O papado de

Gelásio se deu em um momento crítico da chegada dos germânicos ao esfacelado Império

Romano. Segundo Souza, os líderes desses povos haviam dominado várias regiões do

Ocidente, inclusive partes da Itália. Clóvis, rei franco na Gália, Teodorico, seguidor do

Arianismo e líder ostrogodo na Península Itálica, os Vândalos no Noroeste da África e os

Visigodos que se instalaram na Península Ibérica. Era necessária a aceitação desses “novos

reis” pelos imperadores para que eles o reconhecessem como soberano de todos, de acordo

com a tradição romana. (SOUZA, 1995, p. 80-81).

A acepção gelasiana, caracterizada pelo dualismo do Estado e da Igreja, com ambos

poderes com jurisdições independentes, foi o grande legado da Antiguidade para o Medievo.

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De acordo com essa teoria, o mundo é perfeitamente governado pelo papa e pelo rei que

receberam seu poder diretamente de Deus. Na perspectiva religiosa, os reis são filhos da

Igreja e, portanto, devem submissão a ela. No entanto, no que diz respeito aos assuntos

políticos e temporais, os papas devem se subordinar aos reis, de maneira que os dois poderes

trabalhem em colaboração para a grande obra de Deus. (PACAUT, 1989, p. 20). Em seu

documento mais importante, o Papa Gelásio assim afirmava ao imperador:

Há dois organismos, Augusto Imperador, pelos quais este mundo é

soberanamente governado: a autoridade sagrada dos pontífices [auctoritas

sacrata] e o poder real [potestas]. Mas o poder dos padres é bem mais

pesado porque eles deverão, no Juízo final, prestar contas ao Senhor dos reis.

(PACAUT, 1989, p. 20).

Mais uma vez a posição do papa no que tange às relações entre a Igreja e o poder

temporal decorrem das conjunturas. O ocidente enfrentava as invasões bárbaras e, ao

enfrentar o Imperador Anastácio, Gelásio estava sob a guarida de Teodorico, rei dos Godos

que então dominavam a Itália. (BARRACLOUGH, 1972, p. 33). Embora não tenha sido

definitiva e forte o suficiente para concretizar a independência Ecclesiae do poder do Estado,

a carta-documento produzida pelo Papa Gelásio I (492-496) foi inspiração às pretensões de

teocracia de alguns papas dos primeiros séculos do segundo milênio como Gregório VII e,

posteriormente, Inocêncio III, bem como às aspirações anacrônicas de Bonifácio VIII.

Independente de teorias sobre os poderes, a instituição eclesiástica em sua relação com o

Estado era, de certa maneira equilibrada, na virada para o século VI. (RIBEIRO, 1998, p. 25).

A importância da doutrina gelasiana aparece no referido documento escrito a Anastácio

e requer certa ênfase já que influenciou as relações de poder na Idade Média. Para Souza, do

documento resultam alguma teses que são basilares para o pensamento político medieval:

a) O Papa possui a auctoritas; o imperador e os Reis detêm a potestas. b) O

primeiro, juntamente com os demais ministros eclesiásticos, é responsável

pela salvação de todos os seres humanos, de modo que sua missão é de

natureza espiritual e transcendente. É da competência dos demais propiciar-

lhes o bem-estar de seus súditos neste mundo. c) A missão dos sacerdotes –

e, por extensão, de seu líder – é mais importante do que a desempenhada

pelos senhores do mundo, de modo que, por conseguinte, a posição ocupada

pelos primeiros é mais relevante do que a dos segundos. d) As esferas de

atuação próprias do espiritual e do temporal são distintas entre si. (SOUZA;

BARBOSA, 1997, p. 16).

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Com o apoio temporal, a Igreja superou a grave crise com a heresia ariana e se

fortaleceu. No entanto, outros problemas vieram em razão do envolvimento do Estado em

questões de doutrina, e também obstáculos referentes aos excessos decorridos da riqueza

material que agradava muitos bispos o que foi até censurado por São Jerônimo. Com o Estado

organizado enfraquecido, a edificação de igrejas distorceu o mapa do desfalecido Império

Romano no Ocidente. A Igreja estava onde as instituições temporais não tinham a capacidade

de estar. Era ela a grande legatária do Antigo Império. (RIBEIRO, 1998, p. 25-26).

Falar sobre a trajetória da Igreja durante quase toda a Idade Média numa perspectiva

histórica e teórico-metodológica, de maneira breve, é tarefa praticamente irrealizável já que o

período é, deveras, longo e vários foram os episódios que juntos formaram a história da

Instituição. Não obstante, neste trabalho, é necessário que se faça lembrar, ao menos, alguns

acontecimentos que fizeram parte do processo de formação dos princípios papais de governo.

Um desses momentos que não se pode deixar de ressaltar trata-se da cristianização

concomitante à sacralização do poder político, entre os séculos VI e X. Os maiores nomes que

teorizaram e que, de certa forma, tentaram concretizar a sacralização do poder da realeza

foram Gregório Magno e Isidoro de Sevilha.

Gregório Magno, cujo pontificado deu-se entre 590 – 604, na maioria das vezes, é visto

mais como um papa medieval e um soberano do que propriamente como um bispo de Roma.

Sua atitude à frente da Igreja mostra a força desse pontífice diante dos soberanos temporais,

bem como sua concepção de poder tanto espiritual quanto temporal. Gregório era leal às

práticas do Império – para muitos era até subserviente ao Imperador. Sustentado pela

concepção antiga, ele conferia ao bispo de Roma a responsabilidade pela doutrina e a função

de depositário da fé. O primado ou reforço da prerrogativa papal por esse prelado era

considerado salutar para a manutenção da unidade da Igreja ameaçada pelos conflitos com o

Oriente e pelas invasões bárbaras. (PACAUT, 1989, p. 25-27).

Seguidor da acepção de Leão I no que diz respeito à primazia pontifícia, Gregório

Magno se voltou contra o Imperador Maurício (582 – 602), por meio de uma carta, quando o

bispo de Constantinopla se intitulou o “patriarca ecumênico”. Para Pacaut (1989, p. 26), o

referido bispo45

quis dizer que, por Bizâncio ser a capital do Império, sua competência era

universal. No entanto, a carta de 595 reivindicava a universalidade somente para Cristo que a

confiou a Pedro de quem o bispo de Roma era o sucessor.

45

Para Ribeiro o nome desse epíscopo é João com a alcunha de “o Jejuador”. Pacaut não cita seu nome. Conferir

RIBEIRO, no capítulo sobre “A sacralização do poder temporal: Gregório Magno e Isidoro de Sevilha” (1995, p.

96.)

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O sentimento injurioso do Pontífice em relação ao prelado de Constantinopla dava-se

em razão do sentido dual de universalidade para esse mundo que era a Igreja e o Imperador.

Nesse caso, possuindo a Igreja esse predicado, ninguém – nem mesmo um patriarca – poderia

atribuir a si mesmo esse direito. Ao reivindicar e reafirmar a concepção do primado papal na

tentativa de invalidar o anseio constantinopolitano, Gregório Magno enfatizava a soberania

universal no plano espiritual e que séculos depois seria reclamada por outros papas o que

causaria muitos conflitos entre o Império e o Sacerdócio. (RIBEIRO, 1998, p. 30).

No que diz respeito designadamente à realeza cristã, Gregório Magno inaugurou uma

nova concepção de poder. O conflito com o imperador não significava que o papa não tivesse

respeito por ele, mas sim que ele fosse seu colaborador na tarefa da Igreja de salvar o mundo.

Aqui esse pontífice retoma da doutrina de Gelásio I sobre o dualismo de poderes e a

colaboração entre eles. O que há de novo na acepção gregoriana é a ideia de serviço que ele

inaugura. Segundo Reydellet (Apud RIBEIRO, 1995, p. 96-100), o conceito de poder equivale

ao da missão, não se trata de um predicado pessoal, mas um privilégio que deve ser exercido

em prol do coletivo. Essa era a função da realeza cristã: servir, junto com a Igreja, para que a

coletividade alcançasse a salvação eterna. Ribeiro destaca que

Os reinos nascentes [especialmente os bárbaros], cristianizados e ortodoxos,

estão igualmente associados à missão da Igreja. Marc Reydellet é lúcido ao

observar que o Império perde sua especificidade, já que funda sua

legitimidade na História. A noção de serviço que o cristianismo confere ao

poder transfere a pessoas muito do peso da instituição política e acaba por

anular a idéia de missão providencial. Imperador e reis têm agora tarefa

comum em benefício dos súditos. Esse ministerium Dei faz do Estado um

instrumento de salvação. Fique claro, porém: Gregório não pretendia

submeter os príncipes à sua autoridade. Em outros termos: respeita a

jurisdição monárquica. Ao atribuir um grau de sacralidade ao poder civil,

tem em vista a concepção de uma ordem cristã do mundo. Nesse sentido,

não restringe a dinâmica do Estado, como tende, aliás, a fazer quando de seu

choque com o Império. (RIBEIRO, 1995, p. 101-102). (Grifos nossos)

Isidoro de Sevilha (560-636) foi outro grande teórico das relações de poder entre Igreja

e Estado na Alta Idade Média e sua influência contribuiu para o processo de sacralização do

poder político no Ocidente Medieval. Grande erudito espanhol, o bispo produziu obras que

deram a Sevilha considerável desenvolvimento intelectual. Era a favor do investimento na

educação do clero e criticava duramente a maneira brutal pela qual se tentava converter

judeus à fé cristã na Espanha. Almejava o progresso dos visigodos na região ibérica e deixava

claro em suas obras sua aversão aos francos. Seus escritos foram enormemente valorizados

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por estudiosos irlandeses do século VII e influenciaram a Igreja no Período Carolíngio.

(LOYN, 1997, p. 505).

Isidoro presidiu o IV Concílio de Toledo que ocorreu em 633. Nesse concílio, foi

estabelecido que o poder real teria como base a unção que sacralizaria o poder dos reis. Em

contrapartida, o ungido deveria ser cristão em todas as suas ações de acordo com a “disciplina

da religião”. (RUCQUOI, 1995, p. 42).46

Ribeiro (1998, p. 34-36) o denomina “grande mestre

da teologia política da Alta Idade Média”. O autor considera que esse bispo esclareceu melhor

a concepção gregoriana, pois partiu de dados concretos com relação aos problemas de

sucessão na Espanha visigótica. Para ele,

o pensamento político de Isidoro repousa no princípio de que a realeza está a

serviço da Igreja. A monarquia não aparece como uma imitação fraudulenta

do império, porém como uma instituição a serviço da causa cristã, segundo a

vontade de Deus. A Igreja assume o princípio da universalidade do Império,

em virtude da nova concepção do mundo. No entanto, ao contrário da ideia

original de Império, que é, por definição, unitária e totalitária, a Igreja

admite pluralidade: sustenta a unidade da realeza de Cristo, mas, sendo

universal, compõe-se de múltiplas células. [...] Para Isidoro a realeza deve

ser, antes de tudo, uma realeza em si mesma; o verdadeiro rei sabe dominar

seus instintos e resistir a si próprio. [...] O grande problema que se coloca a

Isidoro é o de saber o caminho a tomar depois da conversão de Recaredo.

Em outros termos: qual o significado da realeza em uma sociedade cristã?

[...] O grande perigo era ver o soberano visigodo tentar submeter a Igreja, a

exemplo dos Imperadores. (RIBEIRO, 1998, p. 34-36).

Assim, podemos dizer que Isidoro de Sevilha foi um bispo aliado à monarquia no

sentido de sua legitimação e do concomitante reforço do episcopado. Além dessa perspectiva,

outras teorias decorrentes dessas anteriores foram sendo elaboradas no desenvolvimento das

relações entre Igreja e Império. Com o processo de sacralização do poder temporal, a

perspectiva da realeza sagrada foi aperfeiçoada e muitas vezes reivindicada pelos chefes

temporais. Em razão disso houve também alguns teóricos que defenderam teorias de

sobreposição do poder temporal sobre espiritual de maneira tão ferrenha quanto àqueles que

defendiam a posição inversa.

Carlos Magno, por exemplo, é um modelo pragmático de sobreposição do secular ao

espiritual. No plano religioso, ele se designava como o defensor da fé, o soberano da Igreja.

Alcuíno descreveu a maneira como Carlos Magno se denominava. Ele era, do seu ponto de

46

A autora fala ainda que a simpatia pelos Visigodos aparece nos concílios posteriores quando se estabelece a

sucessão do trono que deveria ser feita a escolha por “designação dos magnates do povo e dos bispos”. Além

disso, determinou-se que o candidato à sucessão real deveria ter origem visigótica afastando os não-queridos da

possibilidade de governo naquela região. (RUCQUOI, 1995. p. 42).

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vista, aquele que teria recebido de Cristo sua Igreja para dirigi-la e salvá-la. Carlos via-se

mais poderoso, mais sábio e mais digno da realeza, que o pontífice romano e que o imperador

de Bizâncio. (BARRACLOUGH, 1972, p. 51-52). Essa compreensão de Carlos Magno de

superioridade imperial o fez, inicialmente, rejeitar a coroação pelo Papa Leão III – embora

depois ele tenha se deixado coroar, no final de 800. O próprio Alcuíno, teórico do período,

considerava o imperador Carlos Magno o senhor da instituição religiosa e isso pode ser

observado quando a ele escreveu: “possa o chefe da Igreja ser sabiamente governado por ti e

possas tu ser governado pela mão direita do Todo-Poderoso”. (Apud BARRACLOUGH,

1972, p. 58).

Para a mudança desse quadro, o processo de conversão de muitos povos ao cristianismo

muito favoreceu a construção de uma doutrina que colocava o poder espiritual sobreposto ao

temporal. A Cristandade era unida pela fé em Cristo e pela crença na herança transmitida pelo

Filho de Deus a São Pedro e deste para o pontífice romano. Dessa maneira, unidas a

princípios de poder que justificavam o poder papal foi que as propostas reformistas do século

XI começaram a tomar espaço na sociedade cristã ocidental. A fé em Cristo e na sucessão do

Apóstolo Pedro justificava a crença na chefia do papa sobre toda a Cristandade. Desse modo,

as teorias que sustentavam a superioridade do pontífice em relação ao rei confrontaram

aquelas que defendiam o contrário. Assim, no século XI, essas teorias que defendiam o poder

espiritual ganharam mais espaço e, no contexto reformista, especialmente no pontificado do

Gregório VII, algumas delas ganharam força de maneira que deixaram o campo teórico e

caminharam a largos passos para aplicação no campo material. Os teóricos do poder espiritual

do século XI estavam entre os reformistas desde antes do grande conflito pelas investiduras. A

muitos deles, já fizemos referência ao tratarmos as representações tanto da Igreja quanto do

Império como foi o caso de Humberto de Silvacandida e do próprio Gregório VII.

Embora já tenhamos feito breve referência ao Cardeal Humberto, voltemos uma vez

mais na sua concepção acerca das relações entre os dois poderes. O prelado deixa claro em

sua obra as posições que cada um, rei e papa, deve ocupar: a um cabem as coisas do mundo e

a outro as coisas do espírito, respectivamente. Para tanto, ele representa a Igreja como a alma

e o Império como o corpo. Essas representações alicerçaram as ideias de sobreposição do

poder espiritual sobre o temporal que sucederam. (PAUL, 2004, p. 224). Nessa medida, a

compreensão de Humberto sobre os dois poderes apresenta traços do neoplatonismo atrelado

ao cristianismo que marcou a construção do pensamento filosófico e político em parte da

Idade Média.

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Nessa perspectiva, Humberto valorizou a alma – o âmbito espiritual – de maneira mais

enfática que o corpo – matéria, influenciado pela acepção neoplatônica. Essa filosofia, embora

estivesse presente na construção da base para a fé cristã, possuía aspectos contraditórios,

considerados arriscados. Apesar das acepções imanentistas e panteístas ligadas ao

neoplatonismo – contrárias ao cristianismo – essa filosofia foi essencial para a consolidação

de preceitos acerca da existência de “realidades espirituais”. Desse modo, como não havia,

por muito tempo, um suporte teórico e intelectual eficaz que estabelecesse a Igreja no âmbito

da cultura, as concepções neoplatônicas serviram de base para a elaboração dessa teologia

cristã católica. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 20-21).

Nas palavras do próprio Humberto, a Igreja é comparada ao sol e o Império à lua. Há o

que ilumina e o que é iluminado. Tal como a alma e o corpo – a importância de um se

sobrepõe a do outro.

Entre outras coisas absurdas com que os sicofantes, como se fossem

caçadores de pássaros, apanham os incautos, cita-se a exaltação do poder

terreno, particularmente do imperial e do real [...], enaltecendo-o com

frequência acima da autoridade sacerdotal, como se a lua fosse superior ao

sol [...] e minimizando a dignidade da igreja [...]. Qualquer pessoa que deseje

comparar ambas as dignidades de modo irrepreensível pode corretamente

dizer que, na nossa época, a Igreja é semelhante à alma e o reino ao corpo, e

cada um exige e presta auxílio ao outro. [Deixa transparecer a teoria de

colaboração]. No entanto, do mesmo modo que a alma é mais importante do

que o corpo e o dirige, assim também a dignidade sacerdotal supera a real,

isto é, a dignidade celeste precede a terrena. [...] Ademais, no interior da

Igreja não seria necessário o poder secular, se o mesmo não tivesse de impor

pela força o que o sacerdote não consegue fazer através da pregação da

Palavra [mais uma vez a teoria da colaboração]. (SOUZA; BARBOSA,

1997, p. 41).

Essa valorização do espiritual em detrimento do material – ou mesmo essa visão

negativa neoplatônica da matéria – era visível em Humberto, bem como nas propostas

reformistas do século XI. A Igreja como representante do espírito era, dessa maneira, superior

ao Império. Esse foi o suporte da reforma e das propostas de Gregório VII. O problema dessas

concepções é maior na prática que na teoria. Muitos conflitos delas emanaram. Entre eles, o

Conflito das Investiduras.

Em Gregório VII, verificamos sua concordância com o pensamento de Humberto,

especialmente no que tange à superioridade do Sacerdócio em relação ao Reino, condizente à

proposta reformista. No entanto, o Papa supera as acepções do Cardeal de Silvacandida ao

prosseguir com o modelo de reforma transformando-o em um projeto teocrático. Nos

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documentos produzidos pelo Papa, verificamos que no início do seu pontificado, suas ações

eram convergentes com a doutrina de colaboração entre os dois poderes. A partir do conflito

com o rei germânico, essa perspectiva muda, de maneira contundente, para a acepção de

superioridade do poder espiritual sobre o espiritual para além do campo religioso, abrangendo

assim também a esfera política, quando, por exemplo, reivindica para si o direito de depor

imperadores ou a exclusividade de usar a insígnia imperial.

No decurso do século XII, houve uma evolução do pensamento teocrático e

hierocrático. Na primeira metade daquele século, tanto Hugo da Escola de São Vítor quanto

Bernardo, abade de Clairvaux, deram continuidade às acepções teocráticas iniciadas por

Gregório VII. Embora o objetivo de ambos fosse avesso ao político. Mesmo sem pretensões

marcadamente políticas, Hugo teve suas formulações eclesiológicas interpretadas de maneira

hierocrática quando fez referência à concepção paulina de Corpo Místico de Cristo. Essa

noção sustenta o primado da unidade (em crer e obedecer) que, por sua, vez teve decisiva

contribuição acerca da cabeça da Christianitas. No entendimento de Souza e Barbosa (1997,

p. 65), a noção de plenitudo potestatis papal encontrou sustentação na tese desenvolvida por

Hugo.

Já em Bernardo, a formulação começada com Gelásio I sobre os dois gládios é

retomada, sem a perspectiva de confronto entre Regnum et Sacerdotium. No entanto, também

os seus textos foram utilizados para sustentar a hierocracia. Ao tratar nomeadamente o poder

pontifício num ponto de vista de administração interna da instituição eclesiástica, sua tese foi

entendida como se se referisse, numa perspectiva puramente política, ao “exercício do

supremo poder político do Sumo Pontífice sobre a Cristandade”. (SOUZA; BARBOSA, 1997,

p. 69). Depois de Gregório VII, o contexto era propício para o desenvolvimento de ideias que

fortalecessem o poder dos papas sobre a sociedade de maneira ampla. As teses que

apareceram no início do século XII, mesmo quando não pretenderam, foram entendidas de

maneira conveniente à evolução hierocrática.

2.2 E por falar em Reforma

A ideia de que a Igreja possuía autoridade para fundamentar o poder secular, assim

entendidos os poderes da realeza e do império, deu origem à teocracia que começou a se

consolidar no século XI, com Gregório VII. No entanto, a reforma que se iniciara no século

XI significou mais que essa perspectiva teocrática. A busca era por uma transformação na

sociedade cristã ocidental em seus mais diferentes aspectos e âmbitos. Guerreiros? Monges?

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Bispos? Cardeais? Quais eram os homens – propositalmente com flexão de número, pensando

a obra reunida por Le Goff (1989) que traz o termo, embora com alguns questionamentos, em

ambos os números: singular e plural – que compuseram essa reforma ou mesmo que

assistiram as essas transformações que tiveram lugar a partir do ano mil?

A referência a homem ou a homens medievais faz lembrar as palavras do prelado de

Laon – Adalbéron – quando ressaltou a concepção tripartida (ou tripartite, como preferem

alguns estudiosos) da sociedade cristã daquele período. O velho47

bispo trouxe em seu Poème

au Roi Robert a acepção de trifuncionalidade social segundo a qual a comunidade cristã era

composta por três distintas classificações de homem: aqueles que oravam (oratores), os que

guerreavam (belatores) e, por último, aqueles que trabalhavam (laboratores).

A casa de Deus é, portanto, tripla, ela que parece una. Aqui, há os que oram,

outros que combatem e outros que trabalham. Os três estão juntos e não se

separam: por isso a obra de dois repousa sobre o ofício de um só, cada um,

de sua vez, traz a todos o alívio. Essa relação é, então, simples. Tanto que,

prevalecida esta lei, o mundo goza de paz. (ADALBÉRON, 1979, p. 23)

Fosse ele um guerreiro, um monge ou servo, o homem medieval era um ser humano,

sobretudo, crente. Os negócios da vida e da morte eram resolvidos com pelo menos alguma

fundamentação no sobrenatural. Essa tripartição do bispo de Laon não significa ignorar os

diversos homens que nela não incluiu – como, por exemplo, artistas, intelectuais, citadinos,

mercadores, marginais – e mulheres! – e que aparecem em Le Goff (1989). O que ele faz é

ressaltar os componentes do tripé basilar daquela sociedade naquele período. No entanto, de

certa maneira, essa concepção terminou por realçar um número considerável de excluídos que

não compreendiam um dos três papéis.

Independente do motivo que levou Adalbéron a escrever o satírico poema, a partir da

acepção da trifuncionalidade, o modo de produção feudal se justificou, como se pode ver em

literatura variada. No entanto, aqui, o que importa é que essa teoria galgou, na prática, espaço

no contexto da reforma. No entendimento de Duby (1982), o bispo reconhecia os negócios e

acordos que uniam papado e mosteiros ligados diretamente à Sé Romana no confronto com o

poder temporal e com os bispos que queriam manter seu poder sobre aqueles monastérios.

47

Era, aproximadamente, 1025 e Adalbéron era bispo em Laon desde 977. Morreu em 1030. Muitos autores –

Duby (1982, p. 167) e Pacaut (1989, p. 44), por exemplo – usam esse termo para enfatizar a idade avançada do

eclesiástico.

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Celebremos, uma vez mais, a lucidez do velho prelado. Ele percebia

claramente que, para levar a bom termo a reforma da Igreja – cujo fulgurante

progresso não atingiria apenas a instituição eclesiástica, mas também o

conjunto social – Roma e Cluny, o papa e os mosteiros isentos [da jurisdição

episcopal], haviam se coligado contra a realeza e os bispos. (DUBY, 1982, p.

167)

Ponto importante desse princípio de reforma é a relação de dependência dos mosteiros

aos bispos ou arcebispos regionais. Um dos marcos que delinearam o começo da luta contra o

poder temporal se ligava à crescente busca dos monastérios pela sua emancipação do domínio

dos prelados que administravam os bispados e arcebispados nos quais estavam localizados os

cenóbios. O estabelecimento de uma dependência direta à Sé Apostólica os livraria da

interferência laica inclusive no que dizia respeito à escolha do abade. Especialmente, sobre a

isenção de Cluny, Villoslada aponta a imunidade dos mosteiros cluniacenses, tanto diante dos

senhores temporais, quanto dos bispados. A vinculação a Roma era direta, sem

intermediários. Segundo esse autor, há registros, a partir do século XI, em documentos

relativos ao censo anual, que tratavam sobre tributação, domínios e direitos pontifícios sobre

propriedades, bem como sobre instituições sob sua proteção. Isso era um sinal da isenção dos

mosteiros, da sua liberdade alcançada em relação aos nobres e aos bispos locais.

(VILLOSLADA, 1953. p. 189). Isso também pode significar o fortalecimento do poder do

bispo de Roma naquele período em que se reivindicava a Libertas Ecclesiae.

Na perspectiva reformista, não é sábio, ou mesmo prudente, classificar Adalbéron como

um reformador comparando-o àqueles que se destacaram depois de 1050, ao Cardeal

Humberto, por exemplo, ou a outro de vinte ou trinta anos depois. Embora suas aspirações

perpassassem propostas de transformação na Igreja, o problema pelo qual ele passava era de

natureza diversa daqueles que enfrentariam os clérigos na Francia Orientalis no decurso do

século XI. Sua percepção de realeza também era diferente. Ao escrever ao rei Roberto como a

um igual, o bispo defendia, no entendimento de Pacaut (1989, p. 45-46), a existência de uma

só legitimidade: a do rei. No entanto, esse poder tinha por base a lei divina que concedia ao

imperador (ou ao rei) a sabedoria para governar a sociedade segundo a lei humana. Essa

concepção que atrelava a lei divina à lei terrestre também concedia aos bispos o direito de

autoridade. Na verdade, Adalbéron imaginava como ideal a sociedade que existira entre os

Carolíngios. Sua teoria de trifuncionalidade baseava-se na crença de que a sociedade celeste

era assim também organizada.

Dessa maneira, pensar nos homens que compuseram a reforma ou a ela assistiram é

pensar, sobretudo, nos componentes realçados na trifuncionalidade social pelo bispo de Laon,

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notadamente os religiosos e, na perspectiva guerreira, o rei. Além disso, falar da Reforma

também nos remete a algumas dificuldades que surgem quando intentamos entendê-la de uma

maneira mais ampla. O medievalista precisa estar atento a esses problemas especialmente

quando se tratar da reforma no âmbito de aspectos religiosos em si.

Tomemos, então, a análise de Constable (2009, p. 35-37) sobre as maiores dificuldades

do estudo da reforma que, segundo ele, estão voltadas especialmente para a análise das fontes.

Ao interpretá-las, o historiador notará que, em vez de apresentar as suas próprias necessidades

e os anseios de seu tempo, o escritor do medievo, sobretudo os reformadores escritores,

apresenta ideais ligados ao modo de vida da comunidade cristã dos primeiros tempos da era

cristã. Ele tem dificuldade de deixar claras as suas aspirações pessoais. Isso dificulta

compreender, de maneira profunda, a natureza da reforma. Além dessa questão há também

outros três problemas enfrentados por quem se aventura no caminho do entendimento da

reforma dos séculos XI e XII.

A primeira dificuldade, na esteira de Constable, está atrelada à autoria das fontes: os

escritores eram em sua maioria eclesiásticos e grande parte deles estava envolvida com o

processo reformista, de alguma maneira. Os documentos, em geral, eram escritos para leitores

ou ouvintes específicos: eram sermões, textos com conselhos espirituais, exortações, entre

outros. Em segundo lugar, muitos textos não são originalmente de quem dizem que são. No

século XII, por exemplo, vários documentos apareceram como se fossem de autoria de Santo

Agostinho, de Santo Anselmo, ou mesmo de São Bernardo de Clairvaux. Essa questão

dificulta compreender as correntes espirituais que influenciavam os escritores. Na maioria das

vezes, os autores de tratados espirituais partilhavam suas ideias com outros e seus ideais

estavam mais ligados a uma tendência comum aos outros do que a uma percepção particular

da noção de espiritualidade.

Considerando a facilidade de pessoas e ideias transporem limites territoriais é

aconselhável que não se classifique ou determine uma fonte de qualquer ideia particular ou

ação voltada para a espiritualidade. É mais razoável reconhecer o obstáculo de se realizar isso.

Por fim, o terceiro problema que compreende a dificuldade de se estabelecer a natureza da

reforma, também ligado às fontes, remete ao tempo de elaboração dos documentos. Grande

parte dos documentos foi escrita em período posterior ao acontecido e os escritores, muitas

vezes, anotaram o que esperavam do evento – o que poderia ou o que deveria ter ocorrido em

sua opinião – mas não o que realmente havia sucedido. Se houvesse situações que não

estivessem de acordo com o propósito do autor, elas eram omitidas. Para Constable (2009, p.

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37), a melhor parte nesses documentos “falsos” é que a partir deles se podem identificar

algumas esperanças bem como alguns temores de quem os escreveu.

Em que pese as dificuldades com as fontes, peculiares aos medievalistas, caminhemos

para o programa da reforma que perpassou o século XI e alcançou algumas décadas do século

XII e que recebeu o nome de “Reforma Gregoriana” por causa do Papa Gregório VII, cujas

propostas e ações marcaram a história da Igreja na Idade Média bem como as relações entre a

instituição eclesiástica e o poder temporal. Sendo assim, afinal, quais eram os anseios dos

reformadores naquele período? Já falamos no primeiro capítulo, de maneira breve, sobre a

luta contra a tutela laica sobre os negócios internos da Igreja, sobre a simonia e também sobre

a busca pela moralização do clero. Voltemos a falar sobre isso, agora de maneira mais

detalhada.

A metódica divisão estabelecida por Giles Constable (2009, p. 4) facilita a compreensão

do processo em apreço. Para o autor de The Reformation of Twelfth Century, a reforma que

perpassou quase dois séculos do início do segundo milênio pode ser entendida em suas quatro

fases: a) de 1040 a 1070 – busca pela moralização do clero; b) de 1070 a 1100 – luta pela

Libertas Ecclesiae do controle temporal; c) de 1100 a 1130 – considerada uma fase de

transição que marca o fim do conflito pelas investiduras e crescente ênfase no monasticismo e

d) de 1130 a 1160 – intensa preocupação com a natureza da vida religiosa e com a reforma

particular de cada membro da Cristandade. Para este trabalho, interessa as três primeiras

fases, até o fim do Conflito das Investiduras, já que, como temos feito desde o início,

objetivamos compreender o período pelos olhos – embora não exclusivamente – de Gregório

VII e de Henrique IV por meio de alguns documentos de sua autoria ou de sua chancelaria, o

que é mais provável.

2.2.1 Contra o nicolaísmo e pela moralização do clero

As propostas voltadas para transformação pessoal dos clérigos estavam ligadas

principalmente à moral. O clérigo medieval nos séculos XI e XII, especialmente os membros

do baixo clero, ainda mantinha laços muito fortes com o mundo laico no que tange à

sexualidade e ao dinheiro.48

O nicolaísmo – ou a quebra da promessa de celibato, o casamento

48

Isso não significa que era uma característica exclusiva do baixo clero. Tellenbach (2000, p. 161) fala do

problema moral em todos os graus. Lopez (1965, p. 59) assegura que os nicolaístas (casados ou amasiados)

tentavam abonar sua condição por meio da “explicação de que seus magros proventos seriam insuficientes sem o

concurso de uma dona de casa”. Mas Lopez também fala dos amores dos bispos e das perversões sexuais que

foram muito propagadas pelos reformadores quando combatiam a incontinência clerical.

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ou o concubinato de eclesiásticos – sempre esteve no rol das ações não recomendadas aos

membros do clero. No entanto, a prática era outra até o século XI. Era comum que clérigos se

mantivessem em situação de amasiados ou casados. “A continência [é] uma virtude muito rara

reservada à elite clerical, uma vez que a maior parte dos clérigos seculares vivem em

concubinato, quando não são abertamente casados”. (ROSSIAUD, 2006, p. 483-484). Esse

era um dos problemas morais que os reformadores ferrenhamente combatiam.

No sínodo de 1019 (Goslar), já haviam tratado acerca da herança de igrejas para filhos

de padres casados – os filhos de clérigos com mulheres livres deveriam perder a sua

liberdade. Em 1022 (Pavia), outro sínodo discutiu o assunto. Desta vez, reforçou-se a

proibição do casamento de eclesiásticos, mas o que se enfatizou foi a questão dos filhos de

clérigos que realmente deveriam perder sua liberdade. A reação contra esses descendentes de

eclesiásticos naqueles primeiros decênios do segundo milênio relacionava-se a questão de

terras que afetava as propriedades da Igreja. A tentativa dos padres de deixar terras para seus

filhos e, principalmente, de transformar as sedes em que atuavam em “igrejas clericalmente

hereditárias” provocou tal reação. (TELLENBACH, 2000, p. 163).

Essa questão tomou um novo rumo com o decreto de Nicolau II de 1059. O documento

que resultou do sínodo ocorrido em Roma daquele ano enfatizou a mudança, do ponto de vista

da reforma sobre o nicolaísmo, que já havia começado no pontificado anterior, com Leão IX.

A condenação da prática do não celibato (nicolaísmo) saiu do campo unicamente moral para o

campo do direito. (IOGNA-PRAT, 2006, p. 311). A legislação canônica aprovada naquele

sínodo trouxe a posição do programa reformista sobre o tema do celibato, entre outros, e a

clara determinação sobre o procedimento dos cristãos ante um padre nicolaísta.

(TELLENBACH, 2000 p. 165). Assim reza o cânone acerca do assunto:

Que ninguém assista à Missa de um sacerdote do qual se sabe com certeza

que mantém uma concubina, ou vive com uma mulher qualquer. Por esse

motivo, este santo sínodo decretou, sob pena de excomunhão, o seguinte: o

sacerdote, diácono ou subdiácono que, depois da constituição relativa à

castidade clerical, promulgada pelo nosso santíssimo predecessor, o Papa

Leão, de feliz memória, tome ou tenha concubina, se não a deixar, da parte

de Deus Onipotente e pela autoridade dos bem-aventurados Pedro e Paulo,

Apóstolos, ordenamos e nos opomos a que celebre Missa, ou cante o

Evangelho, ou leia a Epístola, ou sequer tome parte no presbitério dos

ofícios divinos em companhia dos que observam a mencionada constituição,

ou receba algo da Igreja até que o sentenciemos, com a ajuda de Deus, sobre

esta questão. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 44).49

49

É relevante lembrar que o decreto pontifício, do modo como foi feito, abolia os direitos imperiais sobre as

eleições papais estabelecidos no Privilegium Ottonianum, quase cem anos antes. Conferir Araújo, 2011, p. 42.

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Outro ponto importante é que à época de Nicolau II, os nicolaístas (assim como os

simoníacos) passavam as ser comparados a heréticos. Nesse sentido, o termo heresia passou a

ser lugar comum no discurso contemporâneo à reforma. Por isso, urge retomar o conceito que

foi constituído concomitante ao cristianismo. As heresias foram tomadas e registradas tanto

por Santo Agostinho quanto por Isidoro de Sevilha. A lista delas foi sendo ampliada com o

passar dos tempos na Idade Média. O sentido etimológico de heresia tem origem grega e

designava “ação de pegar”. Além desse significado, há também o derivado do campo das

metáforas que é “escolha, preferência, visão particular e discordante”. Ser herege é mais que

estar no erro, é nele persistir – esse era o conceito do homem herético para Isidoro de Sevilha.

(ZERNER, 2006, p. 503). No programa reformista, vários documentos revelam a heresia da

concubinagem e aquela da simonia. O termo foi muitas vezes usado para indicar os obstáculos

sobre os quais os reformadores estabeleceram seu programa renovador. Em carta a Rodolfo da

Suábia e Berthold da Caríntia, de 11 de janeiro de 1075, o papa reformista Gregório VII

criticava a desobediência dos prelados e reivindicava que fossem cumpridas as regras contra o

nicolaísmo e a simonia “mesmo que fosse pela força”:

Os arcebispos e bispos de sua propriedade estão bem conscientes [...] que os

cânones sagrados proíbem que aqueles nomeados para qualquer grau ou

função nas ordens sagradas por meio da heresia simoníaca, por meio de

dinheiro, tenham direito de administrar qualquer ofício na Santa Igreja.

Proíbem também que aqueles que são condenados por fornicação celebrem

missa ou sirvam no altar das ordens inferiores. Essas regras, [...] até o

presente momento, os bispos, com raras exceções, têm recusado a lhes

obedecer. Não têm feito nenhum esforço para proibir ou punir essas práticas

execráveis, nem de refletir que de acordo com as Escrituras “a rebelião é

como o pecado da feitiçaria e a desobediência, como a idolatria”.

(EMERTON, 1990, p. 63).

Assim, nessa proposta de um novo modo de vida dos clérigos em que o sexo passa a

ser uma proibição excludente que substitui a recomendação de celibato, é possível observar a

estruturação social por uma nova ordem que se estabelecia com a reforma. Tomando como

parâmetro a perspectiva do movimento reformista, a noção de ordem está relacionada à

concepção hierárquica em que no ápice se presentifica o sucessor de São Pedro, o papa, como

“único superior”. A ordem, nesse sentido, se liga também à divisão das duas esferas da

sociedade: a espiritual e a temporal, cada uma com seu papel, cada uma com sua função.

Dessa maneira, o compromisso do clérigo com a vida eclesiástica tende a afastá-lo das ações

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comuns aos laicos criando laços espirituais e não carnais – ou sanguíneos, ou matrimoniais –

de parentesco com os cristãos. (IOGNA-PRAT, 2006, p. 311 e 318).

Essa noção de parentesco espiritual está intimamente ligada àquela representação da

Igreja como Corpus Christi de que falamos no primeiro capítulo. Anita Guerreau-Jalabert

(2006, p. 329), numa análise antropológica, assegura o vínculo da concepção de parentesco

espiritual com a de religião e de direito. Para tanto, identifica alguns aspectos característicos

da acepção. Em primeiro lugar, a autora ressalta a noção de Igreja e Cristandade formadas a

partir do conjunto de cristãos irmanados pelo batismo o que os faz filhos de Deus e da

instituição eclesiástica. O sacramento dá corpo ao sagrado e une os cristãos pelo espírito. Nas

palavras da própria pesquisadora,

a organização do grupo sacralizado dos clérigos, Igreja no sentido restrito, de

acordo com o princípio do parentesco espiritual: excluídos da aliança

matrimonial, os clérigos deixam sua parentela, mas eles se reproduzem e

reproduzem a instituição através dos ritos fundamentais – batismo,

eucaristia, ordenação – pensados como rito de geração e agregação pelo

espírito. (GUERREAU-JALABERT, 2006, p. 329).

Por último Guerreau-Jalabert (2006, p. 330) destaca os modos de estrutura social

citando como exemplo as paróquias. Lembra ainda que no século XII, as representações de

aristocracia eram de uma confraria marcada pela perspectiva espiritual. Obras literárias como

a sobre o rei Artur e sua Távola bem como a famigerada busca pelo Santo Graal legitimavam

essa concepção. Todas essas questões e aspectos estavam na ordem do que Iogna-Prat (2006-

b, p. 364) denomina de uma construção de uma Cristandade bipartida entre os que casaram e

aqueles que optaram pela vida celibatária.

Dessa maneira, essas acepções e propostas de mudanças convergiam também com o

propósito de construir um clero caracterizado pela vocação para o ofício, um corpo de

eclesiásticos que seguissem exemplos bíblicos – e que fossem como tais – de temor a Deus,

de amor à Igreja, de desligamento dos bens materiais e de castidade. Os textos da época

propagavam a relevância de valorizar uma vida de pobreza, de integridade, de retidão, de

perfeição, de pureza, de simplicidade e de atenção rigorosa à regra. O intento maior era ao

menos tentar imitar Cristo, era a vida apostólica. A busca era, sobretudo, por retomar os

modelos de vida religiosa da Igreja primitiva. (CONSTABLE, 2008, p. 125). Várias

passagens bíblicas foram usadas para justificar e dar suporte a esse discurso. O texto de 2

Coríntios 3, 17 era uma dessas passagens: “Pois o Senhor é o Espírito, e onde está o espírito

do Senhor aí está a liberdade”. (BÍBLIA, 1995). Alguns textos de Mateus sustentavam o

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discurso da necessidade de renovação da vida pessoal a partir dos modelos de abnegação e de

amor maior a Cristo. Mateus 16, 24 é um exemplo: “Se alguém quer vir em meu seguimento,

renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.” (BÍBLIA, 1995). E mais, em Mateus 19, 21:

“Jesus lhe disse: ‘se queres ser perfeito, vai, vende o que possuis, dá-o aos pobres, e terás um

tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me”. (BÍBLIA, 1995).

Esse modelo de vida separava os laicos dos clérigos e era coerente com a aspiração

reformista de divisão entre os negócios da Igreja e os do século. No entanto, é crucial atentar

para o fato de que, embora estivessem entre os propósitos do programa reformista a busca

pela moralização do clero e a luta contra a simonia, entre vários objetivos, a sociedade cristã e

os consagrados à vida clerical não eram marcados pela completa degeneração. Nesse sentido,

vale lembrar a afirmação do estudioso Philibert Schmitz sobre a época pós-Carolíngia: “é

como se a partir de então o mundo tivesse perdido toda a moralidade”. (Apud

TELLENBACH, 2000, p. 161). Esse é um exemplo da historiografia que defende a ideia de

que imediatamente antes da reforma do século XI houve um período carregado de

degeneração o que impulsionou a intensa reação reformista. Essa concepção é complexa, pois

se baseia em noções modernas de moral. (TELLEBANCH, 2000, p. 161-162).

Mais tarde, no último quartel do século XI, Gregório VII acirrou a luta contra os

nicolaístas. A insistência pontifícia no celibato resultou em oposições locais. De acordo com

Lampert (Apud TELLEBANCH, 2000, p. 165), clérigos resistiram indignados com a maneira

incisiva com a qual o Pontífice tratava o assunto. Os opositores de Gregório, neste caso,

reivindicavam o direito de praticarem o que já estava presente na Bíblia em 1Coríntios 7, 9:

“mas se eles não podem viver na continência, que se casem; pois é melhor casar-se do que

ficar ardendo”. (BÍBLIA, 1995).

Desde as admoestações paulinas, aspectos que tratam a moral dos eclesiásticos sempre

estiveram em pauta na história da Igreja. Com Carlos Magno, por exemplo, os clérigos que

fugiam da disciplina sentiram o peso do controle do imperador. (LOPEZ, 1965, p. 158). O que

terminantemente não podemos é pensar que somente os aspectos ligados às fraquezas

humanas ou às noções de pecado foram suficientes para impulsionar o movimento de reforma

naquele período. A continência é um aspecto valorizado desde o início da Igreja católica. O

projeto de moralização estava presente, deveras, no programa, mas o plano de reformas

abrangia mais que isso: era a “correta ordem do mundo” cristão que estava em questão.

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2.2.2 Contra a simonia, pelas investiduras eclesiásticas e pela Libertas Ecclesiae

Além do problema dos casamentos ou concubinatos de clérigos, a questão da simonia,

como já mencionamos, preocupava os reformadores. Aliás, o fim da venda e da compra de

cargos eclesiásticos talvez tenha sido um dos propósitos mais defendidos por aqueles que

almejavam a restauração e a renovação da Igreja no século XI. A questão era mais séria, pois

o ato não era só cometido em relação ao cargo vendido e comprado em si, mas dizia respeito a

tudo que derivava dessa transação, especialmente os ritos sacramentais. Tellenbach apresenta

uma noção que consideramos mais completa de simonia:

A noção original e essencial de simonia implica dar e receber dinheiro ou

presentes por benefícios espirituais, particularmente para concessão de

sacramentos: batismo, confirmação e o crisma dado pelo bispo para realizá-

la, penitência, extrema unção, sepultamento, a ordenação de padres e bispos

em particular, a consagração de igrejas e cemitérios, a conferência do pálio

que dava direito ao seu possuidor de receber a consagração episcopal e todos

os tipos de bênçãos. (TELLEBANCH, 2000, p. 167).

A simonia sempre foi condenada, mas sua prática não era incomum. Os reformadores

lutaram contra esse mal durante todo o século XI sem que a vitória fosse definitivamente

alcançada. Registros mais contundentes sobre o confronto com a considerada heresia

simoníaca aparecem desde o pontificado de Leão IX. Aliado ao Imperador Henrique III, o

pontífice lançou bases para o prosseguimento da luta contra aqueles que recebiam seus cargos

eclesiásticos depois de comprá-los. No sínodo de Reims de 1049, algumas determinações

papais já apresentavam claramente o ideal da luta reformista de separar os negócios espirituais

dos temporais e a condenação da simonia:

1 – que ninguém seja elevado ao governo de uma igreja sem ter sido

primeiramente eleito pelo clero e pelo povo. 2 – que ninguém compre ou

venda as ordens sagradas ou os ofícios eclesiásticos ou igrejas; e se algum

clérigo comprou algo, que o restitua ao seu bispo e faça a penitência devida.

3 – Que nenhum leigo exerça qualquer ofício eclesiástico ou receba alguma

igreja, e que os bispos não consintam que tais fatos aconteçam. [...] 5 – Que

ninguém solicite qualquer pagamento por haver ministrado o Batismo,

celebrado a Eucaristia, ou por ter visitado os enfermos ou por celebrar

exéquias. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 38)

Para o Cardeal de Silvacandida, a causa principal da simonia era a investidura laica

(JEDIN, 1992, p. 468-478). E é esse o ponto de convergência ente a heresia simoníaca e a

ingerência laica nos negócios internos da Igreja. Se a luta dos reformadores residia na

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separação entre as coisas espirituais e temporais, a ação laica de investir um clérigo era

contraditória. Mas quem era caracterizado como simoníaco? O leigo que nomeava clérigos? O

bispo que vendia cargos eclesiásticos a leigos indignos? Quais eram as características que

marcavam o simoníaco? Como anteriormente mencionamos, o ato de investir implicava

poder. E, no contexto reformista, aquele leigo que usava do expediente da investidura para

subordinar um clérigo era também considerado simoníaco. Aliás, grande parte das referências

ao tema, registrados nas fontes do período, são relacionados às investiduras. E isso se tornou

um dos principais pontos de conflito entre a Igreja e o laicado, considerando o significado que

a propriedade eclesiástica possuía tanto para os clérigos quanto para os leigos.

Tanto eclesiásticos quanto laicos encontravam nas igrejas uma das principais formas de

propriedade de onde provinham muitas prerrogativas e privilégios. O dono da igreja (leigo ou

eclesiástico) obtinha benefícios derivados de pagamentos realizados pelos clérigos a ele

subordinados (dízimos e oferendas, por exemplo). Há registros, segundo Tellenbach (2000, p.

169-170), que deixam entender que existiu certa taxa por meio da qual o clérigo saldava sua

nomeação ao dono da igreja. Embora possa ter ocorrido abusos, o autor sugere que isso não

pode ser generalizado. Já que era costume, por exemplo, oferecer presentes ao dono do

mosteiro ou ao príncipe que conferiu a abadia, o bispado, ao eclesiástico.

Ademais, a questão da venalidade, como já mencionamos, além de compreender um

sério problema moral, estava intimamente ligada a uma terceira dificuldade50

na visão

reformadora: a ingerência temporal nos negócios internos da Igreja. Os bispos se tornavam

dependentes dos príncipes que os investiam e além de cumprir seu papel na missão religiosa e

evangelizadora, deviam administrar a justiça e as propriedades que compreendiam o seu

bispado e, por fim, dirigir seus vassalos. O bispo era o senhor direto das terras da Igreja e,

muitas vezes, estava envolvido com o governo, com o rei (a quem jurava fidelidade se por ele

tivesse sido investido), aconselhando e proporcionando auxílio, principalmente, em situações

belicosas. E nesse caso, tal como um vassalo laico, o bispo deveria prestar assistência ao

soberano durante as guerras, aprovisionando militarmente os exércitos régios. Dessa forma,

um bispo, naquele tempo, não podia se esquivar das práticas do mundo temporal, pois possuía

uma posição nas relações estabelecidas com o laicado. O prelado era um homem a serviço de

Deus, mas que, em razão da posse das propriedades eclesiásticas, deveria também agir como

um senhor feudal. De acordo com Paul (2004, p. 219), “a imbricação dos bispados na ordem

50

A primeira, como vimos, compreendia a questão moral e a luta contra os padres nicolaístas, a segunda, a

simonia que, por sua vez, além de ser moralmente condenada, ligava-se também ao controle temporal sobre a

Igreja.

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política é tal que não é sempre fácil de saber onde está o limite entre o lícito e o simoníaco”.

O grande problema dessas relações originava-se, ou se tornava mais complexo, quando o rei

promovia um prelado – vendendo-lhe uma ascensão hierárquica – que era moralmente

inaceitável pela sociedade da época ou incapaz de cumprir as funções precípuas de um bispo.

Sendo assim, o ato normalmente era considerado simoníaco.

A simonia é tratada, hoje em dia, numa análise mais econômica e ela é atualmente

caracterizada como marca de uma abissal corrupção. Para os homens do século XI, a simonia

correspondia, sobretudo, a um pecado. Tratava-se do pecado51

da heresia simoníaca. E por

falar na percepção da simonia como uma heresia e, portanto, como um pecado, as pessoas

eram conscientes dessa perspectiva. As fontes nos fornecem pistas da consciência das pessoas

quanto à prática da simonia e os problemas dela provenientes. Como exemplo, tomamos

emprestado, uma vez mais, a referência de Tellenbach (2000, p. 170): Bento VIII (1017)

consentiu com o projeto de estabelecer um bispado em Besalú e ficou instituído que os bispos

deviam ser consagrados pelo bispo romano. Depois do ato consagratório, aquele que houvesse

recebido a consagração deveria dar uma libra de ouro ao pontífice. Perspicaz e conhecedor do

sentido de simonia (isso no início do século XI, quando os espíritos reformistas ainda não

estavam tão acirrados), Bento VIII justificou a cobrança da tal porção dourada asseverando

que não a receberia pela consagração, mas pela obediência a ele devida.52

Tellenbach (2000,

p. 170) conclui que “as pessoas sabiam como evitar a conexão entre presentes e

consagrações” que tornasse o ato uma simonia.

Essa perspectiva está em harmonia com o sentido de simonia advindo de Gregório

Magno, alguns séculos antes, quando designou o ato de vender a ordenação sacerdotal a um

bispo. Paul (2004, p. 218-221) lembra que, além dessa acepção, o termo também era utilizado

para caracterizar o uso do dinheiro na concessão de ordens de diferentes graus, ou para

ascensão na estrutura hierárquica, sem excluir o sentido de simonia como a administração de

sacramentos em troca de pagamento. No combate aos simoníacos e aos não celibatários, para

os adeptos da Reforma, aqueles que não se desligavam da simonia não só eram comparados a

51

A vida do homem medieval era grandemente marcada pelo que o pecado representa. Todos os excessos o

faziam pecador. Desde o pecado original até os sete pecados capitais, o sentimento de ser pecador estava

presente nas ações daquele homem, tanto na perspectiva coletiva quanto no âmbito individual. Todos os cristãos

compunham uma fraternidade de pecadores que estavam subordinados a um Deus que podia punir, mas que, por

misericórdia, poderia perdoar. Era mais um laço que unia os homens daquela época além da condição de cristão

e filho de Deus: a condição de pecador. Nesse sentido, é bastante profícuo o estudo de Carla Casagrande e de

Silvana Vecchio (2006, p. 337-351) publicado na forma do verbete PECADO no Dicionário Temático do

Ocidente Medieval organizado e coordenado pelo Le Goff e pelo Schmitt. É essencial relacionar a noção de

pecado com as acepções de penitência e de remissão, especialmente porque é a partir do século XI, segundo

aquelas autoras, que o debate sobre esse tema (penitência) começa a se fortalecer. 52

Non pro consecratione, sed pro debita oboedientia. (Apud TELLENBACH, 2000, p. 170).

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adúlteros como o eram de fato. Em Gregório VII, especificamente, tanto Cristo como os

bispos eram considerados esposos. Em consonância com os reformistas, o pontífice

caracterizava aqueles praticantes da simonia como alguém que desrespeitava a dignidade da

Igreja representando o papel de esposa. Tratavam-na, quando compravam cargos

eclesiásticos, como se ela fosse uma prostituta. (ROBINSON, 1988, p. 258).

Podemos estabelecer, na esteira de Paul, um paralelo entre dois reformadores que

legaram alguns registros sobre o sentido do programa reformista e a maneira como aqueles

homens esperavam transformar a Igreja. Humberto da Silvacandida e Pedro Damião possuíam

concepções convergentes no projeto de mudanças, mas divergiam no tema que compreendia a

validade dos sacramentos que fossem ministrados por simoníacos. Para Humberto, não era

possível vender, tampouco comprar o Espírito Santo. Portanto, numa ação simoníaca de

consagrar não existia transferência de poderes sagrados. Dessa forma, o ato do bispo

simoníaco restava sem qualquer valor e por isso deveria ser refeito. Qualquer ato que

implicasse o sagrado, neste ponto se inseria, inclusive, e principalmente, os sacramentos:

batismo, confirmação, ordenação, todos deveriam ser novamente ministrados. (PAUL, 2004,

p. 220).

Com opinião divergente, o reformador Pedro Damião assegurava que não eram os

clérigos os reais consagradores. Na verdade, quem consagrava era o próprio Cristo – “o

verdadeiro consagrador” e, portanto, sua graça era infinita, não era passível de limitações. Os

clérigos possuíam uma função unicamente mediadora no ato de consagração. Sendo assim,

não havia motivo para invalidar ou refazer um sacramento administrado por um padre

indigno. No entanto, Damião defendia a submissão de penitência aqueles que houvessem

recebido ordem – de maneira gratuita – proveniente de um prelado simoníaco. (PAUL, 2004,

p. 220).

Assim, a questão da simonia, implicando problema moral e obstáculo político, deveria

ser extirpada para que o programa reformista alcançasse seu escopo maior – a liberdade da

Igreja e a sua renovação, bem como a reformatio da sociedade como um todo. Os papas

reformadores, desde 1047, estabeleceram determinadas penalidades para aqueles ligados a

atos simoníacos. O papa Clemente II (1047) determinou quarenta dias de penitência.

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Posteriormente, Leão IX53

considerou a possibilidade de cassar as ordenações advindas de

atos de simonia. Nicolau II (1060), mais por clemência que por direito, reconheceu como

válidas as ordenações realizadas por prelados simoníacos desde que não houvessem sido

vendidas. Em Gregório VII, não houve uma determinação expressa de tratamento com

igualdade dos atos de simonia. Para esse papa, as ações provenientes de prelados que haviam

rompido as relações com a Sé Romana deveriam ser analisadas caso a caso. Cada demanda

recebia uma solução apropriada à sua especificidade. (PAUL, 2004, p. 220). Há registros que

apresentam uma manifestação de Gregório VII sobre como o bispo Rainald de Como54

deveria agir diante de um caso específico de ordenações realizadas por simoníacos, desde que

tivessem agido por ignorância e com gratuidade. A regra a ser seguida era:

aqueles que tiverem sido promovidos a qualquer grau por simoníacos antes

do Papado de Nicolau II sem suborno, e constando que eles têm levado uma

vida sem culpa, deve ser confirmado pela imposição das mãos e conservadas

suas ordens e a execução de seus serviços.(EMERTON, 1990, p. 143).

A alusão a Nicolau II não foi aleatória. Atrelada ao projeto de Libertas Ecclesiae, a luta

contra as investiduras laicas prosseguiu durante todo o século XI. O grande passo inicial dado

pelos reformistas na luta pela libertas Ecclesiae foi a determinação das eleições pontifícias

pelos cardeais a partir do decreto In Nomine Domini do Papa Nicolau II em 1059. Embora em

1057, o papa Estevão IX – Frederico da Lorena – tenha sido eleito pelos clérigos e pelos

romanos, com sua morte no ano seguinte, os nobres de Roma voltaram a querer intervir nas

novas eleições pontifícias.55

Naquele período, o monge Hildebrando contribuiu,

diplomaticamente, para que o prelado de Florença, Nicolau II, fosse eleito. E foi a partir desse

pontífice que a instituição começou a estabelecer instrumentos para consolidar sua

53

Mais um pouco de Leão IX: ele era um papa dotado de muitos conhecimentos e suas ações eram coerentes

com seus ideais reformistas. Na ocasião de sua designação pelo Imperador Henrique III, ele aceitou subir ao

trono de Pedro com a condição de ser primeiro eleito bispo de Roma pelo povo romano. Inovador, Leão IX não

residiu em Roma como seus predecessores e foi um pontífice que viajou muito como muitos senhores seculares

do período. Dos cinco anos de pontificado, passou menos de sete meses em Roma (Michel Parisse, citado por

Iogna-Prat (2006b, p. 367) afirma que foram sessenta e um meses de pontificado dos quais apenas nove passados

em Roma). Foi assim que ele se fez conhecer pela Cristandade. Além disso, no seu pontificado enfrentou três

problemas complexos: a reforma da Igreja (em sua época, teve o apoio do Imperador Henrique III), a luta contra

os normandos na Itália Meridional e o confronto com a Igreja grega que resultou no Cisma de 1054. (JEDIN,

1992, p. 459 – 467) Conferir também BARRACLOUGH, 1972, p. 85-86. 54

Corresponde ao nome do bispado ou região em que ele se localizava. 55

A ordem de sucessão pontifícia depois de Leão IX (1048-1054) foi a seguinte: Victor II (1054-1057), Estevão

IX (1057-1058), Bento X (1058-1059, embora não reconhecido pelos reformadores, em razão da influência da

aristocracia romana), Nicolau II (1058-1061), Honório II (1061-1072: antipapa Cadalus), Alexandre II (1061-

1073) e Gregório VII (1073-1085). Conferir JEDIN (1992), BARRACLOUGH (1972), ROBINSON (2004) e

SOUTHERN (1997).

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independência frente ao poder temporal. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 24). O decreto de

1059 foi uma dessas ferramentas.

No documento, Nicolau II condenava os simoníacos e estabelecia que, para que se

evitasse a venalidade, quando o bispo de Roma morresse, fossem convocadas eleições para

que os cardeais bispos pudessem decidir, levando em conta, posteriormente, os cardeais

sacerdotes, associados a outros clérigos bem como ao povo. ( SOUZA; BARBOSA, 1997, p.

42-43). O decreto mostra todo o empenho do papa reformista na tentativa de libertar a Igreja

da tutela nobiliárquica ou temporal. Alguns autores acreditam que o In Nomine Domini tenha

sido escrito por Humberto de Moyenmoûtier, o Cardeal de Silvacandida, que, juntamente com

Hildebrando e Frederico de Lorena – monges e intelectuais – contribuiu sobremaneira no

auxílio aos papas inseridos no processo de renovação. Humberto como grande teórico da

reforma que foi, em sua clássica obra Adversus Simoniacos, fez duras críticas à investidura

laica e sugeriu fases para a eleição do pontífice.

Para o Cardeal de Silvacandida, a primeira fase deveria ser a eleição pelo clero e por

último a “consagração pelo governo da província eclesiástica com a anuência do povo”. De

acordo com o prelado, haveria simonia quando não se obedecesse a essa ordem e era o que

então estava ocorrendo. No seu entendimento, os preceitos sagrados estavam sendo

desrespeitados. Pois a etapa que deveria ser a última estava sendo realizada em primeiro

lugar. ( SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 39). No que tange ao decreto de Nicolau II, como não

é difícil de imaginar, houve por parte dos príncipes e nobres da região da Itália e da Germânia

grande manifestação contrária ao In Nomine Domini bem como a outro decreto que o

pontífice encaminhou ao povo e aos clérigos em geral para comunicar acerca do decreto

anterior. Os interesses nobiliárquicos estavam ameaçados pelo documento pontifício. Mas o

papa Alexandre II foi eleito em 1061 conforme o decreto, mesmo a nobreza de Roma tendo

escolhido, apoiando o Rei Henrique IV da Germânia, Honório II, antigo bispo de Parma, para

ocupar o lugar de pontífice. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 25).

Diante de todas essas percepções acerca da reforma, cumpre fazer um último

questionamento: como a sociedade em geral via essa reforma e quais foram os elementos

sociais que a tornaram possível? Pensar a grande transformação que ocorreu nos séculos XI e

XII somente a partir dos ideais surgidos nos mosteiros ou na cúpula da Igreja Romana é

ignorar que a sociedade daquele período passava por uma grande revolução em vários

aspectos além do religioso e do político. As mudanças que começaram a surgir na sociedade

cristã ocidental ultrapassavam as ideias nascidas com Cluny, em 910. Embora não haja

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possibilidade de negar a influência dos famosos reformadores, que entraram para a história,

mais do que eles, a sociedade e o seu contexto demandavam reforma.

Deixar de lado essa perspectiva de acelerada metamorfose social é afirmar,

categoricamente, que as mudanças vieram de cima para baixo e isso pode ser facilmente

contestado por alguns dados. Façamos uma breve menção a isso. Uma notável mudança foi no

aspecto demográfico. A terra começou a ser utilizada e ocupada intensamente, de maneira que

até então não havia acontecido. As pessoas que habitavam o campo começaram a formar

núcleos urbanizados protegidos por grandes fortalezas sob o domínio senhorial.

Caracterizados como “encelulamento” por Fossier (1982) e como “incastellamento” por

Toubert (1973), esse adensamento demográfico no ocidente mudou as formas de

relacionamento social: “estreitou a integração comunitária, alterou formas de sociabilidade,

recompôs rotinas de convivência e de solidariedade”. (RUST; SILVA, 2009, p. 144)

As mudanças da sociedade eram também estruturais. Elas resultaram em demandas

por uma nova ordem dos preceitos e das normas que geriam as relações sociais. Princípios

que já não mais atendiam os anseios e as precisões daquela coletividade. A reordenação

deveria abranger normas comportamentais (como aquelas que se referiam à sexualidade,

inclusive clerical), a demarcação do espaço para o sagrado, entre outros. (RUST & SILVA,

2009, p. 144). Nesse sentido, a obra La Maison Dieu, de Dominique Iogna-Prat, traz, na

esteira de Toubert, uma reflexão acerca da “significação social” da Reforma da Igreja dos

séculos XI e XII:

Sob a denominação equívoca de “reforma”, designa-se a política de

“inteligente adaptação da Igreja como institutio a uma sociedade feudal bem

estruturada que ela se fixou com a finalidade de reformar o interior”. Esta

reforma – que se estende sobre aproximadamente oitenta anos, entre 1046 e

1124, com um momento propriamente “gregoriano”, do nome do papa

Gregório VII (1073-1085) – visa colocar à parte a “herança do Senhor”, quer

dizer os clérigos funcionalmente consagrados ao divino, e assegurar a

preponderância desta parte no seio de uma sociedade cristã dividida, de

modo homológico à separação da carne e do espírito, entre a ordem dos

casados e aqueles que se consagraram ao celibato. (IOGNA-PRAT, 2006b,

p. 364).

Essa perspectiva de Iogna-Prat é convergente com a historiografia nascente nos anos

7056

sobre a convencionalmente denominada Reforma Gregoriana. Abordamos essa questão,

mesmo que brevemente, porque é importante pensar, de maneira não determinista, que não

56

Inserção de elementos além dos eclesiásticos na percepção da reforma. Historiadores como Robert I. Moore,

Maureen Miller, James A. Brundage, Dominique Iogna-Prat, entre outros. Conferir o valioso artigo sobre a

historiografia do conceito de “Reforma Gregoriana” de RUST, Leandro Duarte; SILVA, Andréia Cristina Lopes

Frazão. A Reforma Gregoriana: trajetórias historiográficas de um conceito. Revista História da Historiografia,

Ouro Preto, número 03, setembro de 2009, p. 135-152.

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foram somente as questões ligadas à simonia, às práticas nicolaístas, às investiduras laicas e à

independência da Igreja que sofreram transformações no processo de renovação ocorrido nos

séculos XI e XII. Houve uma “significação social” maior, que ultrapassava os muros dos

mosteiros e o conhecimento intelectual dos reformadores do alto clero. Não podemos ver a

reforma como um processo exclusivamente clerical, mas como uma renovação que abarcou de

maneira multidimensional a sociedade cristã medieval daquele período. Desde o leigo até o

integrante da cúpula eclesiástica, desde o mais humilde servo até o príncipe, todos foram de

alguma forma parte integrante desse processo de instalação de uma nova ordem. Vale a pena

um estudo nesse sentido, pois embora exista uma vasta bibliografia disponível sobre o tema,

ainda há muito sobre isso para refletir.57

2.3 A guerra pelas investiduras: as representações do conflito construídas por papa e rei

O período de minoridade de Henrique IV (1056 – 1065) foi favorável ao

desenvolvimento das ideias reformistas. A fragilidade da regência da Imperatriz Inês –

católica e acolhedora dos ideais de reforma – possibilitou um grande avanço, em poucos anos,

do processo de emancipação da Igreja do controle temporal. Isso é o que alegam muitos

autores que estudam a reforma do século XI.58

Outra circunstância que favoreceu a

57

Os trabalhos recentemente publicados por Leandro Duarte Rust (especialmente a obra Colunas de São Pedro:

a política papal na Idade Média Central) têm promovido o que é chamado por alguns historiadores de virada na

historiografia política do medievo no que tange ao papado medieval e suas instituições. Como neste trabalho

fizemos a opção de um estudo mais sistemático dos documentos, deixamos para nossa próxima pesquisa uma

abordagem mais crítica do tema, considerando essa revisão historiográfica em curso. 58

Nascido a 11 de novembro de 1050, Henrique IV foi um herdeiro muito esperado. Henrique III já havia se

casado duas vezes e ainda não possuía um sucessor. Com a primeira esposa, Gunhild, filha de Canuto, o Grande

– rei da Dinamarca e da Inglaterra – teve uma filha, Beatriz, a qual nomeou, com oito anos de idade, abadessa de

Quedlinburg e Gandersheim. A espera pelo herdeiro continuou no segundo casamento com Inês (Agnes) de

Poitou – filha do Duque Guilherme V, o Grande, da Aquitânia e Conde de Poitou. A rainha, finalmente, deu o

tão esperado herdeiro ao rei Henrique depois de sete anos de casados. Antes, porém teve três filhas (Matilde, em

1045, Judith, em 1047 e Adelaide, em 1048). O menino recebeu o nome do avô, o primeiro rei Sálio, Conrado.

No entanto, quando foi batizado (em Colônia, pelo arcebispo Herman, na Páscoa de 1051, em 31 de março) o

homenageado foi seu bisavô, Henrique II. A princesa, descendente dos Carolíngios, Inês, mãe de Henrique, foi,

provavelmente, escolhida de modo criterioso para ser a esposa de Henrique III. Pois, um dos principais quesitos

para se tornar a esposa de um rei Sálio era, deveras, possuir aquela linhagem. Henrique III não foi o primeiro a

escolher uma princesa de sangue carolíngio para ser mãe de seu herdeiro. Seu pai também o fizera antes quando

escolhera para ele a princesa Gisela. (Posteriormente, o próprio Henrique IV teve como primeira consorte Bertha

de Turim, seguindo o padrão e os critérios dos seus antecessores). É importante ressaltar que foi o casamento

com Inês que aproximou Henrique III da reforma monacal cujas ideias vinham sendo desenvolvidas no mosteiro

de Cluny. O antecessor do pai da princesa de Poitou, Guilherme III, o Pio, foi quem fundou a abadia que se

tornou grande referência para os reformistas dos séculos XI e XII. Foi também daquele mosteiro que foi

escolhido o padrinho de Henrique IV: Hugo de Cluny. No entanto, é relevante dizer que o casamento entre Inês e

Henrique III não se arranjou em razão do seu contato com Cluny. Havia uma questão política entre o rei

germânico e a família materna de Inês na região da Borgonha. A união dos dois foi uma tentativa de aliar as

forças daquela família e do rei Sálio para assegurar o domínio sobre o reino borgonhês. (ROBINSON, 2004, p.

19-20).

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independência da instituição que muitas vezes passa despercebida pelos historiadores do

período é justamente o fato de ser uma mulher a regente do Império Romano-Germânico. A

Imperatriz Inês era, na condição de autoridade máxima do poder temporal, senhora também

da Igreja, considerando o sistema de Igreja imperial. Não é novidade que a sociedade

medieval não reservava um papel de destaque para a mulher.59

Na sua condição feminina, já

era difícil a sua atuação nos negócios temporais e na Igreja essa situação tendia ao

agravamento.

Expliquemos melhor: não havia (ainda não há) um papel de autoridade que coubesse a

mulher nos negócios da Igreja. Mesmo quando uma abadessa era nomeada, seu poder era

restrito às enclausuradas da sua abadia. Ela própria ficava sob a autoridade de um prelado. Na

estrutura hierárquica clerical não há cargos, dos quais emane poder sobre homens, que possam

ser exercidos por mulheres. A posição eclesiástica sobre a condição feminina tem suporte em

duas passagens bíblicas. Na carta pastoral I Timóteo 2,12 (atribuída a Paulo) há uma incisiva

censura: “não permito à mulher que ensine, nem que domine o homem”. A outra referência-

base está na primeira carta paulina aos Coríntios 14, 34: “as mulheres calem-se nas

assembleias60

; elas não têm permissão para falar; devem permanecer submissas, como diz a

lei”. E é nesse ponto que reside o problema da regência de Inês. Seu consorte imperial,

Henrique III, possuía uma forte relação de chefia com a Igreja germânica. Quando morre o

imperador, essa autoridade passa a contrastar com a condição feminina da Imperatriz.

Segundo Robinson (2004, p. 115-116), há registros da apreensão do reformador Cardeal

Humberto em razão da situação de governo feminino, pois as nomeações episcopais, pela

autoridade imperial, continuavam a ocorrer, a despeito da Reforma. A consequência da

nomeação de um bispo pela Imperatriz era a submissão do prelado a ela – o que era incoerente

com a estrutura eclesiástica. Para o Cardeal, em consonância com o programa reformista, se

havia problema em um rei, a quem considerava um leigo, nomear bispos, essa questão se

agravaria se essa autoridade régia estivesse concentrada nas mãos de uma mulher. Seria no

entendimento de Humberto uma “reductio ad absurdum do sistema da Igreja imperial”.

(ROBINSON, 2004, p. 115).

Por outro lado, não podemos negar o fato de que a imperatriz tenha governado em nome

do filho. E, além disso, antes de se tornar viúva era companhia constante e conselheira muito

59

Christiane Klapisch-Zuber (1989, p. 193-208) assevera que a perspectiva trifuncional da sociedade cristã não

possuía um espaço para o feminino. No entanto, ela alerta para o perigo da generalização de restringir ao espaço

doméstico a ocupação da mulher. Mas não nega que tratar do feminino naquele período exige em grande parte

das vezes tratar acerca de sexualidade e de casamento. 60

Há traduções que usam no lugar de ‘assembleias’ o termo ‘igrejas’. A tradução que utilizamos foi a (BÍBLIA

(1995) para as duas citações (Timóteo e Coríntios).

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influente de Henrique III. Há poucos registros de sua atuação política antes da morte do

marido, mas depois, a administração do império ficou sob sua tutela, não obstante as

atribuições de Victor II.61

Sua atuação no processo reformista, de acordo com as fontes, foi

muito importante. Inês foi uma intermediária entre o filho e o papa durante o Conflito das

Investiduras, como veremos.

No entanto, não nos enveredemos mais nesse tema acerca das mulheres e poder, pois as

fontes nos são escassas e não queremos cair nas perigosas redes da especulação. Vamos a um

aspecto crucial que favoreceu a evolução do poder pontifício a ponto de no século XI um papa

buscar além do poder espiritual, o poder jurisdicional no campo secular. Sobre isso,

apreciamos muito a perspicácia da abordagem de Souza (1995, p. 211-234) em texto sobre a

teocracia imperial na Alta Idade Média. A construção do sentido de Império baseado, no

âmbito temporal, no princípio da auctoritas foi essencial para o seu fortalecimento. Contudo,

o princípio de Rei pela Graça de Deus, suporte religioso que o fortaleceu, foi também aquele

que subsidiou a interpretação da acepção que sobrepunha o poder espiritual ao poder

temporal, o imperador na Igreja e não sobre ela. Se o Regnum ou o Imperium devia prestar

contas a Deus – fonte de seu poder – de todas as suas ações no campo político, “isso o

colocava sob a responsabilidade daqueles que, neste mundo, eram os intérpretes especiais da

palavra de Deus e seus representantes, a saber, os prelados e particularmente o papa”.

(SOUZA, 1995, p. 215). Mais que uma contradição ao preceito de superioridade do

Imperador, para Souza, a defesa da autoridade proveniente de Deus foi uma abertura para que

projetos hierocráticos ganhassem força na Idade Média, especialmente, a partir do século XI.

Isso estava claro no discurso reformista e também nas ações dos papas reformadores.

Quando Henrique III morreu, deixou seu herdeiro, com seis anos, e os negócios do Império

aos cuidados, não da imperatriz, mas do Papa Victor II. O pontífice assegurou a regência da

mãe e a sucessão do filho do imperador. Se por algum infortúnio, o rei-menino, Henrique IV,

viesse a morrer, o papa tinha o poder de designar o próximo. (JEDIN, 1992, p. 459-467). Essa

garantia oferecida pelo bispo romano foi essencial para que o império dos Sálios não

terminasse com a morte de Henrique III, considerando a existência constante de revoltas nos 61

Inês não foi a primeira mulher naquela época a se tornar regente. A imperatriz Teófana, mãe de Oto III

também teve que assumir esse papel. A imperatriz Otoniana, segundo Thietmar de Merseburg, apesar “da

fragilidade do sexo, guardou o governo do filho com uma vigilância masculina”. (Apud ALTHOFF, 2003, p.

40) (Grifos nossos). Ao utilizar essa última expressão, “vigilância masculina”, Thietmar nos possibilita concluir

o modo que a condição feminina era tomada naquele período: a mulher era vista como um ser carregado de

fragilidades. E quando uma delas mostrava-se forte, essa força não era creditada ao feminino, mas comparada à

robustez do homem. Mais sobre a atuação de Inês, ver ROBINSON, 2004, p. 27. Também o anônimo biógrafo

da Vita Heinrici IV imperatoris usa um termo ligado etimologicamente ao homem para caracterizar a figura de

Inês: “Inês, sereníssima Imperatriz, uma mulher de disposição varonil...” (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p.

106) (Grifo nosso).

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reinos integrantes e adjacentes. A tradição germânica de eleição do soberano continuava entre

os Sálios. Não se tratava de hereditariedade somente. Em tese, essa medida limitava o poder

régio. (SOUZA, 1995, p. 217) Era necessário que os reinos que integravam o império

aceitassem aquele que iria receber a coroa imperial. No entanto, Henrique III cuidou para que

seu filho fosse, efetivamente, seu sucessor. Em 1053, fez com Henrique IV fosse eleito seu

co-governante. Na ocasião de sua morte, o papa Victor II se precaveu para que “os magnatas

de todo o reino viessem prestar juramento ao pequeno filho [do imperador]... confirmando-o

na realeza” – é o que registra a Chronica Monasterii Casinensis. (Apud ROBINSON, 2004, p.

26). Henrique IV foi colocado no trono real em Aachen pelo papa em uma cerimônia de

inauguração de seu reinado no período entre outubro e dezembro de 1056, de acordo com os

Annales Altahenses (Apud ROBINSON, 2004, p. 26) daquele ano.

No entanto, outra questão fundamental é que, durante a menoridade de Henrique IV,

houve uma mudança de posição de cabeça da Cristandade, de Henrique III – imperador – para

Victor II – papa. Isso foi decisivo para o prosseguimento do programa de reforma, mas com

um reforço a mais na luta pela Libertas Ecclesiae.62

O discurso dos papistas do século XI

enfatizava que Henrique IV se tornara rei pelas mãos de um papa. Gregório VII e outros papas

interpretarão a sua maneira essa questão de o sucessor do império ter ficado sob a guarda de

Victor II. O fato foi visto como um impulso fortalecedor da autoridade pontifícia.63

E por falar no bispo de Roma, não há como estudar as características político-

religiosas de Henrique IV da Germânia sem ressaltar sua complexa relação com o papado,

notadamente com o papa Gregório VII – monge Hildebrando. Ele nasceu na região da

Toscana, entre 1019 e 1030. Provavelmente foi educado no mosteiro de Santa Maria. Depois

de receber as ordens menores, serviu ao papa Gregório VI (1045-1046) a quem acompanhou

quando ele fora exilado.64

Quando aquele pontífice morreu, o monge Hildebrando entrou para

um mosteiro cluniacense ou para o próprio mosteiro de Cluny. Não se pode afirmar com

62

Apesar dessa transformação fundamental, não passemos por cima de um detalhe: Victor II era um bispo

germânico, além de papa. E manteve essa condição – bispo Gebhard do Eichstätt – durante o seu papado. Talvez

pudesse ser até um príncipe germânico, um bispo e conselheiro imperial, sendo assim seu papel não poderia ser

outro se não o de garantir que o trono permanecesse com o sucessor de Henrique III. (ROBINSON, 2004, p. 27)

Ladner considera Victor II como um papa anti-reformista (“unreforming”), mas Tellenbach lembra sua valiosa

colaboração a Henrique III – considerado um dos reformadores mais contumazes. Este último autor defende que

apesar de não ter ocorrido sínodos significativos no decurso de seu papado, o programa começado por Leão IX

não foi interrompido. Assevera ainda que os reformadores trazidos para auxiliar o Papa, desde a época de Leão

IX, firmaram-se em Roma durante o papado de Victor II. Tellenbach, por fim, lembra que o papa alemão havia

apoiado, em grandes proporções, o bispo de Montes Cassino que viria a se tornar seu sucessor, Estevão IX.

(TELLENBACH, 2000, 159). 63

Mais detalhes sobre o papado de Victor II, bem como sobre a guarda do pequeno rei, conferir o capítulo sobre

a minoridade de Henrique IV em ROBINSON, 2004. 64

Ver sobre a deposição de Gregório VI no primeiro capítulo.

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certeza sobre esse tempo que ele passou entre os cluniacenses. O que se pode assegurar é que

as ideias reformistas que circulavam no mosteiro chegaram a Roma naquele período. No

papado de Leão IX, Hildebrando foi convocado para administrar a igreja de São Paulo e

permaneceu na corte eclesiástica como legado papal. (JEDIN, 1992, p. 479).

Aquele monge já participava do programa reformista quando o monge reformador

Frederico da Lorena65

subiu ao trono de Pedro com o nome de Estevão IX depois de eleito

pelo clero (02 de agosto de 1057). Este foi um dos grandes momentos da reforma no que

tange à liberdade da Igreja. A eleição do abade de Monte Cassino para o papado foi realizada

pela Igreja somente, sem o controle imperial. As ideias reformistas chegaram a Roma e não

foram bem acolhidas pela aristocracia romana (cuja influência sobre as eleições pontifícias

era, historicamente, considerável) que elegeu em 1058 o anti-papa Bento X – não aceito pelos

reformadores. Na eleição do papa seguinte, o prelado florentino que tomou o nome de

Nicolau II, Hildebrando precisou lançar mão de sua influência para evitar a intervenção e o

controle da aristocracia romana. Com o decreto In Nomine Domini, o papa seguinte,

Alexandre II (o bispo Anselmo de Lucca), foi eleito (1061) de acordo com os cânones da nova

legislação. O papado de Alexandre coincidiu com um novo momento político na Germânia: a

chegada da maioridade Henrique IV (1065). Quanto a Hildebrando, ele era naquele momento,

o homem mais influente e poderoso da administração eclesiástica da Igreja romana.

(BARRACLOUGH, 1972, p. 90-92; SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 19-25 e JEDIN, 1992, p.

479.)

O Papado e o Império começaram a ver suas relações estremecidas desde Alexandre II,

antes bispo Anselmo de Lucca. Ao atingir sua maioridade e começar a governar por si mesmo

o seu reino, Henrique IV tentou retomar a política do pai, principalmente em relação à Igreja

imperial. Não renunciou a privilégios de interferência na eleição papal, tampouco à

prerrogativa de nomear bispos. (PACAUT, 1989, p. 61). Anselmo de Lucca não era

germânico (Victor II foi o último papa, naquela época, derivado da igreja germânica e

nomeado pelo Imperador) e a aristocracia partidária do rei não o aceitava como pontífice. Não

só a nobreza germânica e a romana, mas também bispos da região da Lombardia se uniram

para eleger Cadalus do bispado de Parma (Honório II, a quem nos referimos anteriormente)

que mesmo depois de ter perdido o apoio dos prelados da Germânia persistiu na sua posição

de pontífice com o restrito suporte dos lombardos. (BARRACLOUGH, 1972, p. 92). No caso

65

Tanto Frederico da Lorena quanto Humberto Moyenmoûtier partilhava com Hildebrando os ideais reformistas.

Todos os três estavam envolvidos com o Papa em Roma. Embora, Hildebrando tenha viajado muito em nome

dos pontífices romanos.

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dos bispos germânicos, o apoio a Cadalus apresentava-se de maneira contraditória, pois desde

o início da implementação do projeto reformista, aqueles bispados, juntamente com o

Henrique III, como vimos, contribuíram com a reforma eclesiástica.

No entendimento de Robinson (2004, p. 117-119), o grande erro de Henrique IV ao

tentar retomar a política do pai no tocante às nomeações episcopais foi, sem dúvida, não se

atentar para a credibilidade dos nomeados diante do clero e do povo. A investidura de

prelados, não só como bispos, mas também como abades (de maneira impositiva),

considerados como indignos resultou em resistência por parte dos súditos, tanto clérigos

quanto leigos. Desse modo, com interesses conflituosos entre os dois poderes, espiritual e

temporal, vários episódios religiosos e civis (com relevância para os políticos) – de variadas

dimensões – deram início a um acirramento na situação de animosidade entre eles.

2.3.1 Ato I em dois atos: o divórcio e a questão da Igreja milanesa

Duas questões complicaram as relações entre Henrique IV e Roma no início nos anos

70 do século XI. O primeiro assunto, de ordem quase particular, a não ser pela razão de ser ele

um rei, correspondia a sua tentativa de divórcio da consorte Bertha de Turim. A Igreja exigiu

uma motivação plausível para permitir a separação, o que não foi apresentada por Henrique.

O segundo tema, este com consequências tanto na ordem político-civil-temporal, bem como

na espiritual-religioso-sobrenatural, foi a questão da Igreja milanesa envolvendo a nomeação

de bispos e a disputa pelo bispado daquela região. Deste último ponto, restaram implicações

em todo o período que se seguiu ao papado de Alexandre II, com fortes reflexos no Conflito

das Investiduras.

Os problemas entre Henrique e a Igreja não se resumiram às questões de disputa de

poder. Henrique IV, não há como negar, era um rei cristão. A perspectiva religiosa estava

presente em todos os aspectos de sua vida, como homem medieval, e, sobretudo, como rei,

ungido, o que lhe fez galgar uma posição superior às outras pessoas, de maneira geral.

(BLOCH, 1993, p. 78-79).

Depois de quatro anos que atingiu a maioridade e tomou posse do reino, com

dezenove anos de idade e três de casado, Henrique IV manifestou, aos príncipes germânicos

reunidos em Worms em 1069, sua intenção de se separar da esposa Bertha de Turim.

(ROBINSON, 2004, p. 109, TELLENBACH, 2000, p. 197). As questões de casamento

passavam naturalmente pela Igreja que estava presente na vida do indivíduo desde o seu

nascimento até o último suspiro. E quando o assunto dizia respeito ao rei, além da

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interferência espiritual, havia também aspectos políticos muito relevantes, já que os

casamentos régios eram mais que um sacramento matrimonial. As uniões correspondiam a

grandes acordos entre potentados, entre famílias com notável poderio regional ou local. O

casamento de Henrique, como já fizemos referência, constituía um desses ajustes – Henrique

III, antes de morrer, deixara o futuro casamento do filho encaminhado.

Na ocasião em que declarava seu intento aos príncipes, Henrique reconhecia que,

embora não possuísse qualquer acusação contra a rainha, sua consorte, queria ver-se livre

daquele vínculo. Justificava que a ele não era possível a consumação da união. Robinson

assegura que os diplomas emitidos por aquela casa real possibilitam a análise da relação do rei

com Bertha e do prestígio da rainha na corte. O casamento dos dois havia ocorrido em 1066 e

o registro dos diplomas emitidos, assiduamente, atesta a presença de Bertha – “consorte de

nosso reino e nossa esposa”. A partir dos diplomas é possível também observar que a partir de

05 de agosto de 1068, o nome da rainha esvanece de tais documentos e esse desaparecimento

permaneceu por mais de um ano. (ROBINSON, 2004, p. 109, TELLENBACH, 2000, p. 197).

No mesmo ano da manifestação de interesse do rei em se divorciar, Siegfried, o

arcebispo de Mainz, escreveu a Alexandre II inteirando o pontífice das pretensões de

Henrique IV. O prelado afirmava na missiva que já havia respondido à solicitação régia, que,

a menos que o rei desse uma razão convincente, o divórcio não poderia ocorrer. Ele teria

ainda advertido o rei que, em caso de desobediência, poderia ser desligado da comunhão com

a Igreja. Na carta, o arcebispo usa largamente a linguagem reformista e remete o caso para ser

resolvido pela autoridade papal, reconhecendo sua primazia sobre todas as igrejas.66

(Apud

ROBINSON, 2004, p. 110).

A resposta do papa foi imediata e o escolhido para representá-lo na questão demonstra

a importância dada ao assunto. Em vez de enviar uma autorização para que o Arcebispo de

Mainz resolvesse a questão, como ele mesmo pedira, Alexandre II mandou um representante.

O Cardeal Pedro Damião, bispo de Ostia, ilustre figura da reforma, foi o legado pontifício

nessa questão. (TELLENBACH, 2000, p. 197). Damião foi incisivo ao colocar a posição

papal contrária ao divórcio e o anseio de cumprir as regras do direito canônico. Advertiu

ainda que a traição à fé cristã extinguiria a possibilidade de coroação imperial. Diante da

resposta papal apresentada pelo reformador bem como das consequências que poderiam

66

Há registros de que Siegfried apoiava o rei na questão do divórcio para que ele o apoiasse em assuntos

relacionados à cobrança do dízimo na região da Turíngia. Esquivou-se de dar uma resposta negativa ao rei para

com ele não se indispor. Por outro lado, ao usar uma linguagem própria da reforma por meio da qual valorizava a

figura do papa como cabeça da Igreja, o arcebispo também o fazia para obter a guarida de Alexandre II e o apoio

do Arcediago (ou Arquidiácono) Hildebrando, o proeminente administrador da instituição eclesiástica romana.

(ROBINSON, 2004, p, 110-111)

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resultar o divórcio régio, os príncipes germânicos pressionaram Henrique a permanecer

casado com Bertha. Eles temiam uma forte reação da família da rainha que era conhecida por

ser altamente militarizada e rica. A separação poderia até resultar em uma revolta. Além do

poderio da família de Savoia-Turim, de Bertha, havia também outra questão. A mãe dela, a

Margravina Adelaide de Turim, era singularmente respeitada pelos reformadores romanos.

Essa proximidade dos parentes da rainha com os interesses romanos favoreceu,

possivelmente, a posição desconforme ao divórcio por parte do papado. O rei não viu

alternativa que permanecer casado. A pressão política dos príncipes e da Igreja o fez ceder.

Assim, a referência a Bertha voltou a aparecer nos diplomas régios a partir de 26 de outubro

de 1069. (ROBINSON, 2004, p. 111)

A derrota do rei diante de sua intenção de divórcio e o êxito do papado na negação do

pedido régio abriu precedentes para o que ocorreria mais tarde, no que tange à tentativa de

submissão do poder temporal pelo espiritual. Outros assuntos ligados à vida pessoal de

Henrique IV causaram graves embustes a ele durante décadas. De acordo com Robinson

(2004, p. 111), acusações de conduta sexual imprópria, pederastia, adultério fizeram da

imagem de Henrique a de um tirano.67

Lampert (Apud ROBINSON, 2004, p. 111), nos

Annales de 1073, assegurava que, no conflito com os saxões, a questão sexual do rei estava

em jogo.68

Os rebelados exigiam que Henrique abandonasse a vida devassa que levava com

muitas concubinas, e que vivesse com a consorte.

Essa descrição trazida por Lampert é mencionada, embora de modo um pouco

diferente, na Vita Heinrici IV imperatoris. O anônimo, escritor da biografia do rei, fala da

imagem do rei para os saxões, no contexto da guerra contra a Saxônia. Descreve como essas

67

Neste caso, o termo tirano era usado na perspectiva trazida por Isidoro de Sevilha em seu Etymologiae, no

sentido de fraco e impudico. (Apud ROBINSON, 2004, p. 113). 68

Não podemos ignorar que as terras sobre as quais Henrique governava possuíam diferentes características.

Correspondiam ao que Reuter (2006, p. 149) chamou de múltiplos reinos com fortes identidades provinciais e

costumes políticos sobre os quais nenhum governante poderia, de maneira simples, impor mudanças radicais. No

caso da Saxônia, a situação era ainda mais complexa e essencial para o reinado de Henrique IV. A questão

antecedia ao Império dos Sálios. Na tentativa de reorganização e de renovação do império, no século X, as

nobrezas saxônicas e francas se aliaram sob a liderança de um rei saxão. No entanto, em 1024, a dinastia

originada nesse rei chegou ao fim. Os Sálios que tomaram o poder, desde então, mudaram o centro para o sul. A

situação de liberdade da aristocracia local parecia comprometida. Terras antes garantidas aos saxões foram

reivindicadas pelos reis Sálios quando os seus detentores não se mostravam politicamente confiáveis. Esse

assunto foi importante para o Império dos Sálios desde o rei Conrado II. No reinado de Henrique IV, a questão

gerou um levante da aristocracia saxônica contra esse rei, isso depois de se reunirem com ele em 29 de junho de

1073 e não terem suas reivindicações atendidas. Como não possuíam nenhum membro da casa real sobre quem

se apoiassem, na luta pela sua liberdade, os saxões usaram também de outros expedientes na tentativa de

enfraquecer Henrique IV. Um desses meios foi denominar o rei de tirano, pondo em xeque sua sexualidade, sua

vida íntima. (REUTER, 2006, p. 149-150; LEYSER, 1994, 51-67; ROBINSON, 2004, 111-139). O texto de

Leyser a que nos referimos (e outros capítulos da mesma obra) oferece um estudo mais detalhado sobre a

liberdade dos saxões e sua luta no século XI a partir dos relatos de Thietmar de Merseburg e outras fontes.

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questões chegaram aos ouvidos do papa (Gregório VII, na época) de maneira aviltante, do

ponto de vista do autor.

Eles [os saxões] viram, no entanto, que o rei poderia ser atingido por

guerras, mas não abatido; afligido, mas não conquistado. Na verdade, sua

força até aquele momento fora incontestável. Para enfraquecer seus [do rei]

recursos, eles inventaram e escreveram acusações criminosas contra ele,

misturando coisas verdadeiras com falsas – a pior e maior desonra que a

odiosa e malvada malícia poderia tramar e que, se eu tivesse que escrever,

mal me causaria e o mesmo a quem lesse. Assim, eles o acusaram diante do

Pontífice Romano, Gregório, dizendo que não era conveniente que um

homem tão devasso [talvez, libertino], conhecido mais pelo crime que pelo

título, governasse; acima de tudo porque Roma não lhe havia conferido a

dignidade real; que o direito de Roma de criar reis fosse a ela devolvido; e

que o papa e Roma, de acordo com o conselho dos príncipes, deveriam

estabelecer um príncipe cuja vida e sabedoria fosse coerente com tão grande

honra. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 108)

Essas questões relacionadas à vida sexual do rei foram temas que ocuparam enviados

papais, principalmente no papado de Gregório VII, como aparece em algumas cartas.

Pensando a perspectiva reformista, de renovação do homem, de transformação social, os

interesses políticos maiores possivelmente apareciam menos no meio do povo que estas

questões ligadas à moral do rei. O que era uma eficiente maneira de influenciar a opinião

pública. No entanto, embora o assunto tenha servido de pretexto para conflitos, inclusive

como é apresentado na revolta da Saxônia, eram outros aspectos que acirravam o conflito

entre o Regnum et Sacerdotium.

O caso mais célebre que contribuiu para o agravamento das tensões entre o Império e o

Papado decorrentes das investiduras episcopais ocorreu na sucessão do bispo da Igreja

milanesa, no período da Pataria. Os Patarini – assim apelidados pelos partidários régios –

eram favoráveis à reforma eclesiástica no que dizia respeito à simonia e ao celibato clerical. O

movimento reformista da Pataria foi de tão grandes proporções que além de resultar em uma

guerra civil entre os partidários do rei e aqueles do papa, em Milão, no norte da Península

Itálica, também refletiu, consideravelmente, no Conflito das Investiduras ocorrido no papado

de Gregório VII, como já até fizemos breve menção no primeiro capítulo.

Dissemos agravamento e não surgimento porque os dois poderes – temporal e espiritual

– já vinham se chocando. Além disso, o problema com a Igreja milanesa começara muito

antes, provavelmente em 1056. Milão compreendia uma região independente e auto-suficiente

não só economicamente, mas, principalmente, no tocante a sua administração. Além disso, era

sede metropolitana no norte italiano, no âmbito eclesiástico: agregava dezoito dioceses da

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109

Lombardia. Os milaneses eram governados tanto em matéria espiritual quanto temporal por

seu arcebispo. Foi o movimento dos Patarini, motivados pelas propostas reformistas, que

deram ensejo a uma guerra civil que durou quase vinte anos. O apoio buscado em Roma foi

encontrado pelos integrantes da Pataria em meio aos reformadores. O resultado foi a reação da

nobreza milanesa contra o Papado. (COWDREY, 1968, p. 25; ROBINSON, 2004, p. 122).

A questão com a Igreja milanesa foi marcante por mais de uma razão. Em primeiro

lugar, o tema da liberdade daquela igreja começou a ganhar mais espaço nas preocupações

pontifícias no papado de Alexandre II e se arrastou por vários anos depois dele. Em segundo

lugar, houve a razão precípua que deu relevância ao caso dos Patarini: a clara perspectiva de

transição da legitimidade da nomeação episcopal. Nesses eventos, é possível observar a

tentativa de aplicação rigorosa do direito canônico nas eleições dos bispos e a confusão dessas

novas regras com os interesses temporais da aristocracia regional e local naquele período. A

busca por parte dos partidos de Milão pelo apoio régio e papal provocou e avivou

intensamente os conflitos entre os dois poderes de maneira imprevisível para os envolvidos.

(TELLENBACH, 2000, p. 180).

O problema se agravou quando o já idoso arcebispo de Milão, Guido de Velatte,

renunciou em favor de seu protegido, Godofredo, que embora nomeado pelo rei, não

conseguiu se estabelecer em razão do conflito. Por causa dessa nomeação, Alexandre II

excomungou, possivelmente em 1070, tanto Guido quanto Godofredo. Na perspectiva do

direito canônico, esse tipo de nomeação era duvidosa, questionável, e a excomunhão decorreu

disso. Tempos depois, no início de 1072 (06 de janeiro), Atto foi eleito arcebispo pelos

Patarini – naquele momento, liderados por Erlembald. A eleição de Atto teve um

procedimento diferente. Realizada na presença do Cardeal Bernardo, legado pontifício, o

processo eletivo ignorou, pela primeira vez, naquele local, o direito régio de investir o que

tornou os ânimos dos partidos locais ainda mais acirrados. Naquele mesmo dia da escolha de

Atto, o arcebispo foi coagido, de modo violento, pelos oponentes dos Patarini a renunciar.

Eram dois partidos com posições políticas antagônicas, cujos interesses foram colocados em

questão a partir da confusão de direitos sobre a nomeação episcopal. A situação piorou

quando o rei pediu e sufragâneos de Milão consagraram Godofredo em Novara.

(ROBINSON, 2004, p. 124; TELLENBACH, 2000, p. 180).

Para Robinson, não foram os opositores do movimento da Pataria que se colocaram

contra Atto. Na verdade, foram os milaneses mais conservadores que não eram favoráveis

nem a Godofredo, nem a Atto. Eles ainda reconheciam o poder do rei como seu senhor e

esperavam que isso se efetivasse. Para o autor, “a violência e a propaganda patarina falharam

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na persuasão dos milaneses a abandonarem a proteção tradicional do rei em favor de uma

relação mais próxima com o papado”. (ROBINSON, 2004, p. 124).

Ainda sobre a nomeação de Godofredo, ressaltemos que ele já havia sido rejeitado pelos

milaneses e excomungado pelo pontífice. Ao incentivar sua nomeação, o rei Henrique traçava

uma linha de confronto com o papado. A consagração do excomungado provocou a reação de

Alexandre II: no sínodo quaresmal de 1073, o papa ameaçou vários conselheiros régios de

excomunhão e é possível que tenha até lançado o anátema sobre alguns deles. Aliás, pelo

menos cinco desses prelados, há registros de que tenham sido excomungados.

(TELLENBACH, 2000, p. 180; REUTER, 2006, p. 151; ROBINSON, 2004, p. 125). O

anátema sobre os conselheiros de Henrique também correspondia a uma ameaça de

excomunhão ao próprio rei. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 141).69

A Pataria terminou com a morte de Erlembald em 05 de abril de 1075. A ausência de

intervenção régia efetiva no reino da Itália – de Conrado II, de Henrique III – pode ter

possibilitado o fortalecimento dos poderes locais o que ocasionou o conflito. Aos bispos da

região e, principalmente, ao metropolitano da Lombardia, foi delegado um poder originado da

autoridade real, o que os fortaleceu, de maneira notável, no âmbito político. (ROBINSON,

2004, p. 123-124). Podemos asseverar que a maioria dos autores que tratam sobre o Conflito

das Investiduras frequentemente faz referência à questão da Igreja milanesa. Além disso, que

esse problema com o movimento de protesto sócio-religioso70

dos Patarini mostrou

claramente a divisão de dois partidos que buscaram suporte tanto no rei quanto no papa: os

radicais, no pontífice e os conservadores, no rei. (REUTER, 2006, p. 150-151). Com certeza,

em razão das fontes, podemos afirmar que no papado de Gregório VII, o problema ainda

persistia71

.

Desse modo, é possível perceber, a partir desse fio condutor que desenvolvemos sobre

essas relações entre o campo espiritual e o poder secular, que a expansão da reforma naquela

região desgastava sobremaneira a preeminência do poder imperial germânico sobre a região

itálica. A busca pelo resgate dessa supremacia enfraquecida marcou, assim, a Controvérsia

das Investiduras entre Gregório VII e Henrique IV. Havia, no século XI, especialmente depois

69

É possível que a Imperatriz Inês tenha instigado essas excomunhões. Desde 1065, a mãe de Henrique IV vivia

em Roma. Conferir com detalhes essa suposição de Robinson, baseado em Bonizo, em ROBINSON, 2004, p.

25-26. 70

Reuter identificou nesse movimento características tanto sociais quanto religiosas, pois seu ataque à corrupção

de caráter religioso no alto clero implicava distribuição de poder entre as cidades. Dessa maneira, ameaçou as

oligarquias já existentes e que governavam as cidades e seus arredores por intermédio dos bispos que escolhiam

e investiam. (REUTER, 2006, p. 150). 71

Há uma carta de Gregório VII, de 15 de abril de 1074, que faz referência a Erlembald de Milão. (Conferir

EMERTON, 1990, p. 33-34).

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de 1065, elementos novos nas relações entre a Igreja e o Império. Por um lado, Henrique IV

toma as rédeas do Império com o advento de sua maioridade, com o forte intuito de revigorá-

lo depois do período regencial da Imperatriz Inês, considerado em declínio. De outro lado, a

instituição eclesiástica não era mais dependente economicamente do poder temporal. A

evolução do programa de reformas clericais, a aliança com os normandos com os quais

limitava ao Sul e a consolidação do controle sobre os Estados Pontifícios faziam da Igreja um

bastião material e moral. Assim, eram, o Imperium et Ecclesiae, no entendimento de Morrison

(MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 37), duas entidades políticas, que se igualaram em

força no século XI.

2.3.2 Ato II – A eleição de Gregório: “contrário a seus costumes, colocaram o controle

dos negócios em minhas mãos”72

A primeira página da grande coletânea de cartas de Gregório VII, o Registrum, traz a

nota oficial sobre sua eleição. Quando Alexandre II morreu73

, o homem da administração da

Igreja de Roma, desde 1061, Hildebrando, foi aclamado seu sucessor. A aclamação bastou. Os

direitos imperiais, reivindicados anteriormente por Henrique III que cabiam ao título de

patricius (BARRACLOUGH, 1972, p. 83), foram ignorados e, dessa forma, Henrique IV não

opinou, nesse primeiro momento, sobre a eleição pontifícia. Além disso, o decreto de 1059

que estabelecia a forma das eleições pontifícias por meio da escolha pelo colégio cardinalício

não fora adotado. De acordo com o registro oficial, no mesmo dia do sepultamento de

Alexandre II, homens e mulheres de “todas as classes”74

, em meio aos clérigos, de vários

graus da hierarquia eclesiástica, na Igreja de São Pedro, aclamaram o novo pontífice em 22 de

abril de 1073. No documento segue a descrição feita daquele que esperavam aceitar tal cargo:

Um homem de piedade, eminente por conhecer o sagrado e o profano,

famoso por seu amor à justiça e à equidade, forte na adversidade, moderado

na prosperidade, e, de acordo com as palavras do Apóstolo, de bom caráter,

de vida pura, modesto, sóbrio, casto, hospitaleiro, bom administrador de sua

própria casa, trazido e educado nos nobres costumes desde a infância no seio

da Mãe Igreja e por seus méritos engrandecido em honra do arquidiaconato a

saber, Arquidiago Hildebrando, quem escolhemos para ser e será chamado

agora e sempre, Gregório, Papa e Apostolicus. “Vocês concordam?”

72

Trecho da primeira carta de Gregório VII como papa. (EMERTON, 1990, p. 2). 73

Segundo carta de Gregório VII ao bispo Geraldo de Ostia e a Rainald (subdiácono), ambos legados pontifícios

na França, Alexandre II “entregou sua alma a Deus” em 21 de abril de 1073. Conferir documento em

EMERTON, 1990, p. 4. 74

O termo entre aspas foi traduzido do documento publicado por Emerton (1990) extraído do Registrum.

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“Concordamos!” “Vocês o desejam?” “Nós o desejamos!” “Vocês o

aprovam?” “Nós o aprovamos!” (EMERTON, 1990, p. 1)

As primeiras cartas do pontífice fazem referência à sua “eleição”. A de número 01,

datada do dia seguinte ao sepultamento de Alexandre II, por exemplo, encaminhada ao Abade

de Monte Cassino, Desidério, apresenta no protocolo a intitulatio que legitima sua autoridade:

“Gregório, Pontífice romano eleito”. (EMERTON, 1990, p. 1) Hildebrando já era muito

conhecido entre os bispos, e como reformador e conhecedor das normas implementadas no

direito canônico naquelas últimas décadas, especialmente no que se referia às eleições papais,

procurou explicar a seus pares, justificando sua aclamação de modo que ela se tornasse

legítima como se fora uma eleição.

Gregório descreveu que, logo depois da morte do seu antecessor, os negócios da Igreja

foram colocados sob seu poder pelo povo romano o que ele considerava como misericórdia

divina, já que isso não era costume. Assim, conduzindo o conselho, advertiu que só depois de

três dias de jejum e de oração e dos serviços de funeral de Alexandre II é que seria decidida a

melhor coisa a fazer sobre a escolha do novo pontífice. No entanto, quando o papa estava

sendo levado para o enterro, um grande um tumulto se formou, como se fosse um grupo de

loucos, em direção a ele (Hildebrando), pressionando-o. (EMERTON, 1990, p. 2). Na carta a

Desidério, o papa não descreve o restante do acontecimento. No entanto, mais tarde, em 1085,

o prelado de Sutri, Bonizo (ou Bonitho), contou com mais minúcias sobre aquele dia 22 de

abril. Segundo esse bispo, muitas pessoas entre eclesiásticos e leigos de ambos os sexos

gritavam: “Hildebrando Bispo!” O monge alarmou-se e quis falar às pessoas para tranquilizá-

las. No entanto, o Cardeal Hugo Cândido se antecipou para falar, inflamadamente75

, ao povo a

favor da eleição de Hildebrando, enquanto os clérigos evocavam, como era o hábito, o seu

nome: “Deus escolheu o Papa Gregório!” Depois disso, segundo a descrição de Bonizo,

Hildebrando foi levado à igreja de São Pedro ad Vincula e posto no trono pontifício contra a

sua vontade. (Apud TELLENBACH, 2000, p. 155-156).

75

Sem nenhum intento de especulação, perguntamo-nos se o discurso caloroso, ou pelo menos parte dele, do

Cardeal Hugo não foi aquele trazido no final do registro oficial sobre a aquiescência do povo romano sobre a

escolha de Gregório VII: “Vocês concordam?” “Concordamos!” “Vocês os desejam?” “Nós o desejamos!”

“Vocês o aprovam?” “Nós o aprovamos!”. (EMERTON, 1990, p. 1). Na carta aos legados da França, que

mencionamos em nota anteriormente, há referências bem amistosas ao Cardeal Hugo Cândido feitas pelo Papa

Gregório VII. Esse documento torna mais verossímil a descrição de Bonizo de Sutri. Encontramos em

Tellenbach (2000, p. 156) essa mesma observação. Quando o papa avisa aos legados sobre a morte de Alexandre

bem como sobre sua própria entronização, menciona que Hugo Candido irá lhes contar, pessoalmente, os

detalhes: “nós pensamos que ninguém melhor para dar a vocês a notícia de maneira mais confiável que nosso

amado filho, um cardeal, padre da Santa Igreja Romana, que estava presente em ambas ocasiões. [...] esse nosso

colega Hugo Cândido...”. Conferir em EMERTON, 1990, p. 4.

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A representação primeira da aclamação-eleição de Gregório VII relacionava a subida do

papa ao trono petrino como uma vontade superior da qual ele não pôde se desvencilhar. A

vontade divina, “o especial ato de graça divina” – termos usados por ele mesmo – como

representação da ascensão daquele papa, foi mais que uma justificativa, foi a via para a

legitimação do seu poder. Essa representação que liga o pontificado de Gregório VII e a

providência divina bem com a intitulatio76

que o apresenta como eleito aparecem em outras

cartas do papa, usadas no mesmo intuito de notificar (e justificar) sua eleição.77

Importante

enfatizar que é natural que um papa faça referência ao favor divino na ocasião de sua

ascensão à Sé Romana. Afinal, a Igreja existe em razão da fé em Deus, ela é o sustentáculo da

religião católica. Não é isso que nossa questão sublinha. Pensamos na ordem do discurso.

Foucault afirma que “ninguém entra na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências

ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo”. (FOUCAULT, 2011, p. 37). O que estava

disponível ao Papa naquele momento era aquele discurso. O direito canônico deveria ter sido

o instrumento utilizado na sucessão de Alexandre II, no entanto, a situação de pressão e de

tumulto, forçou uma decisão antecipada. Neste caso, em razão do uso da representação no

discurso legitimador, é plausível que digamos que o decreto de 1059 não fora aplicado.

Dessa maneira, o discurso usado por Gregório VII, aliado à representação de “graça

divina”, serviu então de instrumento de legitimação do papado. Naquele momento, todos os

propósitos de transformação da Igreja estavam em xeque. O rei Henrique ansiando pela

retomada da hegemonia imperial sobre os negócios da Igreja, os conflitos entre partidos

formados por clérigos – uns favoráveis ao rei outros ao papado – questões internas e externas

que poderiam tornar o papado vulnerável levaram Hildebrando à entronização.

No que tange a aceitação por Henrique, não há registro de que ele tenha deixado de

reconhecer Gregório como o legítimo sucessor de São Pedro no início de seu pontificado. Mas

é importante lembrar que aquele rei estava em guerra contra os saxões naquele período (aliás,

desde antes de Hildebrando ascender ao trono de Pedro). A menos que ele quisesse enfrentar

dois difíceis conflitos, aquele não era o momento de confrontar o pontífice romano. Ao

contrário, a primeira manifestação de Henrique a Gregório VII, que ocorreu naquele mesmo

ano de 1073 (agosto/setembro – EMERTON, 1990, p. 18), apresenta um rei humilde e

76

Notamos que a intitulatio muda em junho daquele ano para “Gregório, bispo, servo dos servos de Deus”.

Conferir EMERTON, 1990. 77

As cartas a Duquesa Beatriz, a Hugo de Cluny, a Manasses, arcebispo de Reims, a Swen, rei da Dinamarca, ao

Abade de Marselha e também ao arcebispo Guibert de Ravena (futuro Clemente III, antipapa), sempre pedindo

lealdade e apoio. Conferir EMERTON, 1990, p. 2-4.

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profundamente arrependido78

. A missiva é de uma sabedoria diplomática admirável. A

chancelaria régia79

usou de termos voltados exclusivamente para a acepção religiosa de vida

cristã para construir a carta do rei. A maneira pela qual se dirigiu ao pontífice possuía mais

que aspectos amigáveis. As palavras do chefe temporal demonstram um respeito e um amor,

podemos dizer, filial por aquele papa, ao chamá-lo de “[...] o mais zeloso e cuidadoso Papa,

assinalado pelos céus com a dignidade apostólica” ou ainda “meu senhor e tão amado pai”.

Continuava a dizer: “visto que, para continuar corretamente administrados em Cristo, a

realeza e o sacerdócio estão sempre em necessidade da força que Ele delega, cabendo a eles,

meu senhor e amadíssimo pai, não discordar um do outro [...], inseparavelmente ligados pelo

vínculo de Cristo”. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 141). Um discurso apropriado para

a situação delicada pela qual passava Henrique IV. Na verdade, durante os primeiros anos de

papado de Hildebrando, não era só o regnum que enfrentava crises. Segundo Barraclough

(1972, p. 93), Gregório também enfrentava alguns problemas com aliados (normandos) e

inimigos (prelados da Lombardia e algumas pessoas de Roma).

Na verdade, essa primeira carta a Gregório VII não significava, de fato, um sinal de

acolhimento da ascensão daquele então entronizado pontífice. Era uma tentativa de

administrar aquela situação, naquele momento. Embora, a aclamação daquele papa tenha,

aparentemente, transgredido o direito canônico e o decreto de 1059, naquele momento,

Henrique não reivindicou qualquer direito ou interesse na escolha do papa. Diferente disso,

fez-se representar por enviados régios, pela própria mãe, a Imperatriz Inês, e por sua tia

Beatriz da Toscana, no ato de consagração de Gregório VII. (MOMMSEN; MORRISON,

2000, p. 141). O segundo conflito que tentava evitar (o primeiro era contra os rebelados

saxões) havia começado bem antes, com o papa Alexandre II, no caso dos Patarini, na igreja

de Milão. No documento, Henrique se reconhecia culpado e infeliz, um pecador, por ter se

envolvido com simonia e por ter usurpado bens eclesiásticos. Justificava que suas atitudes

derivaram tanto dos ímpetos de sua juventude quanto da influência de maus conselheiros,

além do magno poder a ele conferido. Mas que se sentia cheio de remorso e pronto para

receber as ordens do papa e cumpri-las com zelo e respeito. Sobre a Igreja milanesa “que caiu

em erro por nossa [confessa-se responsável] culpa”, afirmava que ela sofreria as correções

canonicamente necessárias. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 141-142). Com esse

78

Partindo do próprio rei não há registros contrários a Gregório VII, em 1073, mas há fontes que trazem acerca

de uma conspiração contra o papa, liderada pelo chanceler imperial para os negócios italianos, o bispo Gregório

de Vercelli, aliado a bispos germânicos que temiam o pontificado do monge Hildebrando e por isso queriam que

Henrique invalidasse sua eleição. Contudo, não há evidência de que Henrique tenha incentivado o chanceler

italiano. (ROBINSON, 2004, p. 128). 79

Provavelmente as cartas de Henrique IV, pelo menos em sua maioria, foram escritas pela chancelaria real.

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discurso, Henrique IV tentava evitar que, logo no início do Papado de Gregório VII, houvesse

mais um problema para ele, o rei, resolver.

De 1075, há outra pequena missiva de Henrique ainda em tentativa de reconciliação80

com o papado. Na carta, pedia segredo sobre a mensagem – apenas sua mãe, suas tia e prima

poderiam saber sobre ela. O rei admitia que os nobres se beneficiavam com a discórdia entre o

Império e o Papado.81

Prometia ainda enviar outra legação após concluir sua expedição na

Saxônia.

Vossa Santidade deve saber, Padre, que desde que eu me tornei ciente de que

a maioria dos príncipes do meu reino, regozijam-se mais na nossa discórdia

que em nossa paz mútua, eu estou lhe enviando esses mensageiros

secretamente. Eu os conheço por serem homens nobres e religiosos e não

tenho nenhuma dúvida de que eles estejam unidos no desejo da bênção de

paz entre nós. Não quero que ninguém saiba desta mensagem que estou

enviando, exceto o senhor, a senhora minha mãe, minha tia Beatriz e sua

filha Matilde [ambas condessas da Toscana, as duas eram muito próximas da

Igreja, aliás, as três]. No meu retorno, com a ajuda de Deus, da expedição

saxônica, devo mandar outros enviados, os mais dignos de confiança e leais

que eu possuo, por meio dos quais, tenho que significar ao senhor todos os

meus votos e a reverência que devo a São Pedro e ao senhor. (Apud

(MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 143-144).

Até então, contando a partir a ascensão de Gregório VII, as fontes não nos permitem

dizer que Henrique IV tenha reivindicado qualquer direito no tocante à eleição pontifícia. A

situação apenas começou a se transformar quando o problema com a Saxônia deu uma trégua.

Nessa nova fase, especificamente a partir de janeiro (26) de 1076 (ROBINSON, 2004, p.128),

as cortinas se abriram para outro ato: o início do Conflito das Investiduras entre o Papa e o

Rei. Não que as investiduras já não fossem um problema entre o Regnum et Sacerdotium, ao

contrário. Mas, a questão era outra: os atores eram diferentes e o cenário também.

80

Enfatizamos a ‘reconciliação’, pois o rei ainda estava em conflito com a Saxônia e a questão da igreja de

Milão não havia sido solucionada. 81

Conferir também ROBINSON, 2004, p. 138.

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CAPÍTULO 3

PELA JUSTITIA E CONTRA A SUPERBIA: O CAMINHAR DO CONFLITO E O

CONTÍNUO DESVELAR DAS REPRESENTAÇÕES

Desde a excomunhão dos cinco conselheiros régios por Alexandre II (1061-1073),

como vimos, as relações de Henrique com o papado se mostravam abaladas. O assunto das

investiduras ressaltado por Gregório VII desde 1073, não significava, inicialmente, que o rei

não podia, de maneira alguma, nomear bispos. Hildebrando não ignorava o “sistema da Igreja

Imperial”. Apesar de o programa reformista, não havia, no início daquele papado, completa

rejeição às nomeações episcopais realizadas pelo rei. Pelo menos, os documentos de Gregório

não demonstram isso. No entanto, Henrique não havia rompido com os bispos excomungados

e nesse ponto residia o problema, ou pelo menos o estopim da controvérsia. A relação com

excomungados deixava-o em posição negativa com a Igreja. O tema aparece em algumas

cartas. Uma delas (de 24 de junho de 1073) deixa isso transparecer quando Gregório VII se

dirige as Condessas Beatriz e Matilde da Toscana incitando-as a recusar apoio aos bispos da

Lombardia e admoestando-as sobre as relações com Henrique IV. A imagem do rei

representada nessa missiva é de um soberano envolvido com o pecado da simonia, com a

deslealdade. Quanto ao rei, dizia o papa:

Como vocês [Beatriz e Matilde] sabem, de nossas cartas anteriores, é nossa

intenção enviar a ele [Henrique] homens piedosos, por cujas admoestações e

pela ajuda de Deus, nós poderemos trazê-lo de volta à lealdade a sua mãe, a

Santa Igreja de Roma e dar a ele instruções da maneira própria de assumir o

império. Mas, se ao contrário de nossas esperanças, ele se recusar em nos

ouvir, nós não podemos, nem devemos, nos desviar de nossa mãe, a Igreja

Romana, [...]. Então, que Deus nos proteja! E certamente é mais seguro para

nós resistir a ele até a morte em defesa da verdade [...]. (EMERTON, 1990,

p. 9).

O discurso do papa é bem característico de Hildebrando. O compromisso com a Igreja

e o zelo com as questões eclesiásticas compreendem a sua imagem diante da situação de

conflito. Nessa carta e na maioria dos textos escritos pelo papa, ele se mostra como até seus

próprios oponentes o reconheciam, de acordo com Lampert: de “temperamento ardente e fé

apaixonada em Deus” (Apud ROBINSON, 2004, p. 128). Além disso, há a questão da

verdade. Gregório se apresentava como seu defensor ferrenho, mesmo que para isso tivesse

que morrer. Como se ele fosse o detentor da única verdade válida.

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O rei também teve sua imagem bem desenhada nesse documento remetido às

condessas da Toscana: a representação de uma ovelha desgarrada. Só dependia dele,

Henrique IV, querer voltar para o seio da Igreja que, encabeçada pelo papa, o receberia de

braços abertos. Há também a imagem de jovem rei que precisa de instruções, de orientações

do pontífice. Isso faz lembrar a figura do rei-menino sob a tutela pontifícia de Victor II.

Outra carta (de 15 de junho de 1074) nos leva a confirmar que Henrique estivera

afastado da comunhão com a Igreja. Trata-se daquela enviada por Gregório VII a Imperatriz

Inês. Na missiva, o papa reconheceu que a soberana desempenhara um importante papel no

restabelecimento das relações entre o Império e o Papado. Sobre a nova situação do rei que

havia voltado à comunhão da instituição cristã, Gregório escreveu:

Nós sabemos por fonte confiável que a senhora trabalha muito pela paz e

pela harmonia na Igreja Universal. Que deseja, além das palavras, e se

esforça, com incansável diligência, por tudo que possa ligar o Império e o

Papado em caridade mútua. A coisa mais importante para essa unidade de

afeição que a senhora já realizou, a saber, que seu filho Rei Henrique está

restaurado à comunhão da Igreja e seu reino liberto do perigo geral.

Enquanto ele estava fora dessa comunhão, nós estávamos impedidos de

negociar com ele, por medo da vingança divina [...]. (EMERTON, 1990, p.

36).

Diante dessas duas últimas fontes e analisando a carta de agosto de 1073 enviada a

Gregório pelo rei Henrique, não há como questionar a existência do conflito entre os poderes

temporal e espiritual desde antes do papado de Hildebrando. E apesar da teatral humildade e

das promessas de obediência registradas naquele documento de 1073, o rei germânico nada

cumpriu. Ele continuou a nomear leigos indignos para vários bispados. A primeira carta que

temos de Gregório a Henrique IV datada de 07 de dezembro de 1074 (são duas da mesma

data, mas de assuntos diferentes e falaremos de cada uma a seu tempo) fazia admoestações ao

soberano germânico quanto às suas atitudes no tocante às nomeações. Gregório cobrava do rei

uma posição quanto às promessas feitas em relação à Igreja de Milão. Afirmava que se o rei

enviasse homens sábios e piedosos que mostrassem, com bons argumentos, que o decreto da

Igreja devia ser modificado, ele não hesitaria em ouvi-los. Se isso não fosse possível, então,

que o rei deixasse livre aquela igreja. Antes, porém, de tratar sobre a questão milanesa,

Gregório se dirige com cautela ao rei. O papa se mostrava satisfeito pelas notícias trazidas

pelos enviados régios e pelos prelados sobre a determinação do rei em “arrancar

completamente a heresia da simonia do seu reino e em usar todos os esforços para a cura do

mal inveterado da impudicícia clerical”. (EMERTON, 1990, p. 55-56). Mais uma vez, a

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representação do rei como membro do corpo eclesiástico, mais que isso, como filho da Igreja

sob a tutela papal, aparece na missiva de Gregório VII.

Por meio da outra carta do mesmo dia 07 de dezembro de 1074, Gregório VII dirigiu-

se ao “glorioso Rei Henrique” (EMERTON, 1990, p. 56) para tratar outro assunto: falar sobre

seus planos de cruzadas, para “empunhar armas contra os inimigos de Deus”, (EMERTON,

1990, p. 57). O papa faz questão de uma vez mais demonstrar sua afeição ao soberano

germânico. Esse documento é importante para este estudo porque nele o papa não se impunha

ao rei. Gregório escreveu a Henrique como se ele fosse seu colaborador, alguém a quem Deus

mesmo houvera confiado o poder de defender a instituição cristã. Nas palavras do pontífice, o

rei “recebeu o verdadeiro poder de um rei” e continua: “[...] você deve se curvar diante de

Cristo, rei dos reis, para a restauração e a defesa de suas [de Jesus] igrejas, lembrando as

palavras que ele disse [...]”. (EMERTON, 1990, p. 58). Na sequência Gregório toma

emprestado de I Samuel 2,30: “Eu honro aqueles que me honram e desprezo os que me

desprezam”. (BÍBLIA, 1995).

Atentemo-nos ao fato de que essas cartas bem amistosas do papa foram escritas só

depois da carta com características penitenciais de Henrique IV (1073), sobre a qual falamos,

em que o rei defendia o bom relacionamento entre o Império e o Papado e se confessava

culpado de vários pecados, inclusive de vender igrejas. Antes disso, Gregório não parecia

(pelo menos não vimos fontes que nos apresentem contradição) interessado em dar qualquer

satisfação a Henrique.

No tocante à carta sobre as cruzadas, vejamos uma percepção mais acurada das

representações que aparecem no discurso de Gregório VII. A utilização da linguagem habitual

da ordenação divina com o fim de evocar a função do rei como o imperador que viria a ser

corresponde a um dos pontos centrais. As palavras do pontífice reconhecem essa condição:

“sempre me esforçarei, com a ajuda de Deus, para preservar uma sagrada e merecida afeição

não apenas em relação a você a quem Deus colocou no cume dos negócios terrenos [...], mas

também em relação ao menor entre os cristãos”. (EMERTON, 1990, p. 57). O papa utilizou

nessa missiva expressões próprias da teoria gelasiana no que tangia as relações entre Regnum

et Sacerdotium para enfatizar a necessidade de os dois poderes cooperarem entre si. Essa

cooperação e essa relação de dependência mútua tinham no projeto cruzadista um fim

específico: a união de forças da “majestade imperial e do dócil poder da Sé Apostólica” para a

organização de uma cruzada contra os muçulmanos em Jerusalém, em defesa dos cristãos

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daquela região do oriente. (ROBINSON, 2004, p. 134).82

Gregório não pediu que Henrique

fosse com ele à expedição, mas afirmou que se fosse necessário deixaria a Igreja sob a

proteção régia: “Se for do agrado de Deus que eu vá, devo deixar a Igreja romana, abaixo de

Deus, em suas mãos para guardá-la como uma santa mãe e defendê-la com sua honra”.

(EMERTON, 1990, p. 58).

Não podemos afirmar que a imagem das relações entre o Império e Papado, a partir

das duas cartas, possa ser caracterizada pela ausência de conflito por um motivo simples: as

admoestações quanto às nomeações e quanto aos conselheiros régios eram recorrentes.

Gregório reprovava parte do entourage de Henrique. Pela análise podemos observar outro

ponto: a perspectiva teocrática pela qual Gregório é conhecido também não é aparente nesses

documentos. A ideia era de colaboração entre os dois poderes, como dissemos.

3.1 Ato III – Fase I do conflito: excommunicatio de Henrique e renúncia a Gregório

As relações começaram a se tornar conflituosas a partir do sínodo quaresmal romano de

1075 quando teria sido elaborado um decreto que proibia definitivamente as investiduras

laicas. Na verdade, o conflito entre Gregório VII e Henrique IV pode ser identificado nos

documentos a partir de 1076. Quanto ao referido decreto, não há muitas referências a ele.

Robinson (2004, p. 136-137) apenas cita o documento Liber gestorum do cronista Arnulfo de

Milão que trouxe a afirmação de que o papa havia retirado, naquele evento, todo e qualquer

direito do rei para nomear bispos e de remover de suas igrejas prelados anteriormente

investidos. Segundo Robinson, não houve outro cronista que tratasse o assunto, tampouco

documentação sinodal.83

82

Com esse mesmo propósito de arregimentar cristãos que apoiassem uma expedição à Jerusalém, Gregório VII

convocara mais pessoas além do rei. Há uma carta dirigida a Condessa Matilde, de 16 de dezembro de 1074, por

meio da qual a nobre é convidada a se juntar aos cruzados. Na missiva, o pontífice faz referência à possível ida

da Imperatriz Inês à longa viagem. Conferir o documento completo em EMERTON, 1990, p. 60-61. Essa carta é

um precioso documento para os estudiosos de gênero na Idade Média. Gregório VII não parece colocar as

mulheres em lugar inferior na hierarquia social, mas entre aqueles que podiam lutar pela salvação de todos os

cristãos. Há também, sobre esse assunto, um artigo recente e com boa análise do tema, de Leandro Rust, cuja

referência é a seguinte: RUST, Leandro Duarte. Um príncipe medieval em dores do parto (1045-1085). Revista

Mosaico, v. 4, n. 1, p. 104-117, jan./jun. de 2011. 83

As investiduras laicas já haviam sido tratadas por Leão IX (citamos parte do documento de Reims) e por

Nicolau II: “Que nenhum clérigo ou sacerdote obtenha das mãos dos leigos uma igreja, sob qualquer pretexto, ou

livremente ou em troca de dinheiro. (SOUZA: BARBOSA, 1997, p. 44). Embora Gregório VII não tenha

acusado Henrique IV por realização de nomeações episcopais, os documentos produzidos pelos seus

predecessores sobre as investiduras laicas estavam em vigor.

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Há uma carta a Henrique IV, de Gregório, de 20 de julho de 1075 que faz referências a

bispos simoníacos, em que o papa pedia ao rei que se esforçasse no projeto reformista.

Exortava Henrique, mais uma vez, a se rodear de homens piedosos e a regular os negócios da

Igreja de acordo com a ordem divina. (EMERTON, 1990, p. 80-81). Não há alusão alguma ao

possível decreto sinodal de 1075, tampouco sobre a proibição das investiduras laicas. Em

outra missiva, setembro de 1075, o papa congratulou o rei pela vitória sobre os saxões. Além

disso, asseverou ao rei a deposição e a excomunhão de alguns bispos pela heresia simoníaca.

(EMERTON, 1990, p. 83-85).

Não obstante esses outros documentos, a carta a Henrique de 8 de dezembro de 107584

é decisiva para o início do conflito. Na salutatio começa a aparecer o caráter de ultimato do

documento: “Gregório, bispo, servo dos servos de Deus, ao Rei Henrique, saudações e

bênçãos apostólicas – mas com o entendimento que ele obedeça a Sé Apostólica e se torne um

rei cristão”. (EMERTON, 1990, p. 86). O teor da carta continuou nesse tom. O papa voltou a

falar sobre os conselheiros régios, repreendeu o rei por ter nomeado três prelados italianos e o

exortou a obedecer ao edito papal. Gregório fez referências às outras manifestações escritas

de Henrique e ressaltou que as palavras de humildade, reverência e lealdade à Igreja eram

contraditórias às ações agressivas aos decretos apostólicos e canônicos. Além disso, reclamou

novamente sobre o não cumprimento das promessas feitas em relação a Milão e comparou

Henrique a Saul (I Samuel) quando este desdenhou as admoestações do profeta. Lembrou

ainda que Davi (I Samuel) foi por Deus favorecido em razão de sua humildade. (EMERTON,

1990, p. 86-90). A representação do papa nesta carta é a do Profeta Samuel ao admoestar

Saul, pela desobediência. O rei de Israel fora preterido pelo favor divino em razão de sua

infidelidade a Deus, assim também o seria Henrique se ele não ouvisse o papa.

É provável que esta última carta citada seja uma das mais importantes fontes do

Conflito das Investiduras, pois destaca ao menos os principais problemas que o papa

enfrentava em razão das ações do rei desde a sua ascensão em 1073. Além disso, corresponde

a uma ameaça de excomunhão. E a recepção da missiva por parte de Henrique, no início de

1076, foi diferente das outras: se a mensagem de Gregório era um desafio, o rei o aceitou. São

três registros da manifestação régia em que aparece a reação de Henrique contra a atitude de

Gregório VII. A impressão que as fontes passam é que todos os anos que o rei pareceu

obediente e humilde não existiram ou eram, realmente, uma dissimulação. Henrique IV

reivindica todos os seus direitos como soberano, como Rex Dei Gratia, e nega qualquer

84

Há também outra data no documento: 8 de janeiro de 1076.

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respeito a Gregório VII como pontífice. O soberano temporal que havia vencido a guerra

contra os saxões, já não possuía motivos para ponderar acerca das relações com o papado.

Ao se impor como chefe da Igreja e, portanto, cabeça da Cristandade, Gregório se

sobrepunha à autoridade régia que começou a reagir. Os registros que possuímos sobre a

reação de Henrique correspondem a uma clara afirmação de hostilidade entre papa e rei. O

soberano germânico se declarava inimigo de Gregório por motivos diversos, inclusive por

considerar o pontífice um opressor da Igreja, um adúltero85

, um usurpador do trono de Pedro.

(MOMMSEN; MORRISON, 2000, p.145-154). Nesses documentos de Henrique IV,

produzidos num sínodo convocado pelo rei em Worms, pode-se observar a tentativa de

retomar a representação régia de christomimetes em que “o rei é o personificador perfeito de

Cristo na terra”. Esse conceito está ligado às percepções de personae mixtae e personae

geminatae – a primeira relacionada aos âmbitos seculares e espirituais e a segunda

caracterizando o rei humano por natureza e divino pela graça.86

(KANTOROWICZ, 1998, p.

56). A representação que o rei tenta retomar para si é aquela do Rei-Sacerdote. E é essa a

representação que os reformistas, notadamente Gregório VII, tentavam desconstruir.

Apesar da renúncia a Gregório VII, esses documentos de Henrique IV produzidos em

1076 não indicam que o papa tenha tentado reduzir os direitos régios sobre as nomeações

episcopais. Tanto as cartas do pontífice quanto as do rei se apresentam como uma contradição

ao que escreveu o cronista Arnulfo de Milão. É provável que o sínodo quaresmal de 1075

tenha elaborado tal documento, mas a sua publicação não aconteceu. Há alguns autores que

entendem que foi emitida apenas uma ameaça ao rei germânico e que isso foi erroneamente

entendido por Arnulfo como um decreto proibidor das investiduras pelo rei. (ROBINSON,

2004, p. 136).

No entendimento de Robinson, segundo a teoria mais influente sobre o tema, pode ter

havido tal decreto, mas não para ser implantado imediatamente, mas como um plano não

imediato de ação.

Gregório não tinha intenção de colocar o decreto em imediata execução: era

um programa de ação futura, os detalhes tinham ainda que ser negociados. A

mais forte evidência para essa visão alternativa, que o sínodo de fato

promulgou uma proibição geral da investidura laica, é encontrada no fato de

que em três ocasiões durante o período de 1077-9, Gregório VII repreendeu

bispos por terem recebido investidura de seus bispados contrária ao decreto

papal.Todos os esses bispos – Gerard II de Cambrai, Huzman de Speyer,

85

Acusa Gregório de se relacionar com uma mulher casada – a Condessa Matilde, prima do rei. (MOMMSEN;

MORRISON, 2000, p. 149). 86

Conferir capítulo I a parte específica das representações de rei e de império.

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Henrique da Aquileia – tinham sido investidos de seus ofícios por Henrique

IV no período de 1075-7. Todas essas investiduras antecederam a proibição

de investidura laica pelo sínodo papal de novembro de 1078, o primeiro

decreto sobrevivente acerca das investiduras. (ROBINSON, 2004, p. 136-

137).87

(Grifos nossos).

Não obstante, Robinson afirma que a dificuldade que os historiadores enfrentam em

compreender esse provável decreto de 1075 resulta da maneira inconsistente que o próprio

papa interpretou o referido documento. A explicação mais plausível, independente de qual

tenha sido o propósito do decreto, é de que ele tenha crescido em importância na percepção

papal depois do conflito de 1076. Isso pode ser percebido a partir de 1077 quando o suposto

documento ganhou importância de proibição geral de investidura laica. Entre todas as

interpretações, há uma recente que se refere ao tal decreto como resultado dos procedimentos

do sínodo pontifício contra aqueles cinco conselheiros régios. (ROBINSON, 2004, p. 137).

No tocante aos documentos de Henrique IV de 1076, o rei reclamava da influência de

Gregório sobre a Itália, especialmente no que diz respeito à nomeação de bispos. Exigia que a

Sé Apostólica recebesse uma pessoa que fosse eleita por ele, o rei, o conselho comum de

todos os bispos, pelo clero e todo o povo da Igreja romana. Neste ponto, e só então, podemos

observar que Henrique começou a tratar a ascensão de Gregório VII como ilegítima. Além

disso, aparece, como dissemos, a ênfase na representação régia de um Rei-Sacerdote, aquele

ungido pelo próprio Deus, bem como a característica de patricius herdada do pai.

[...] Eu reuni uma assembleia geral de todos os mais ilustres homens do

reino, por reivindicação deles. Quando eles publicaram por meio de legítima

declaração (que você ouvirá da carta deles mesmos) aquelas coisas que

eles tinham antes mantido em silêncio por medo e reverência, eles tornaram

pública a ação ao final de que você não pode mais continuar na Sé

Apostólica. Já que a sentença deles pareceu justa e correta diante de Deus e

dos homens, eu também dou meu assentimento revogando toda prerrogativa

do papado que você tomou e ordenando-lhe a descer do trono da cidade cujo

patriciado é a mim devido por meio da outorga de Deus e pelo juramentado

consentimento dos romanos. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 141).

(Grifos nossos).

A carta a que Henrique faz referência corresponde ao documento elaborado pelos

bispos por ocasião do sínodo convocado pelo rei em Worms. Trata-se da renúncia dos bispos

germânicos ao Papa Gregório VII. Quando Henrique convocou os bispos a se reunirem em

87

Na carta de 22 de maio de 1077, Gregório escreve a Hugo de Die sobre a eleição de Gerard de Cambrai.

Refere-se à confissão do prelado acerca do seu desconhecimento das regras de nomeação e que Gerard afirmara

ter recebido a investidura de Henrique IV como um presente, mas que desconhecia a condição de excomungado

de Henrique. (EMERTON, 1990, p. 118).

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Worms, no início de 1076 não calculara que o poder de Gregório havia se fortalecido tanto.

Não foram todos os prelados que compareceram, apenas um terço deles foi ao concílio.

Alguns daqueles que não se apresentaram pareciam não querer mais se envolver com a

política de Henrique IV. Outros até se tornaram lideranças do partido pontifício na Germânia.

(ROBINSON, 2004, p. 145). Mesmo assim, os bispos que se reuniram em Worms

subscreveram a renúncia ao papa. Nem a manifestação de dois deles, Herman de Metz e

Adalbero de Würzburg, impediu que prosseguissem com a elaboração do documento que

tentaria levar Gregório VII a abdicar. Herman e Adalbero lembraram aos outros prelados que,

de acordo com o direito canônico, o pontífice não poderia ser acusado por seus inferiores. No

entanto, o bispo de Utrecht os silenciou argumentando que “os bispos estavam obrigados por

seu juramento de fidelidade ao rei a seguir a política real”. (ROBINSON, 2004, p. 146). Os

motivos da renúncia a Hildebrando são discorridos no documento: originaram-se desde a

ascensão, julgada incorreta, ao papado até as últimas ações do pontífice contra o poder régio.

Quando você primeiro usurpou o governo de nossa Igreja, nós soubemos

como, com sua habitual arrogância, você presumiu estabelecer uma ilícita e

nefanda empresa contra a lei humana e a divina. Pensamos, todavia, que o

início pernicioso de sua administração deveria restar despercebido em

prudente silêncio. [...] Finalmente, a chama da discórdia, que você provocou

por meio de terríveis facções na Igreja romana, você espalhou com furiosa

loucura por todas as igrejas da Itália, da Germânia, da Gália e da Espanha.

[...] Desde então não considera ninguém como bispo, salvo o homem que

suplica seu ofício de Vossa Arrogância [trocadilho com Vossa Santidade]

com a mais indigna obediência, você tem lançado em desprezível desordem

toda a força da instituição apostólica. [...] Além disso, você tem enchido a

Igreja, com o fedor do mais grave dos escândalos, levantado de sua

intimidade e coabitação com a esposa de outrem que é mais próxima à sua

casa que o necessário. [...] Desde sua ascensão foi manchado por tão grandes

perjúrios, desde então a Igreja de Deus é colocada em perigo por uma grande

e crescente tempestade de abusos nascidos de suas inovações. E desde que

você degradou sua vida e sua conduta por tal multifária infâmia, nós

declaramos que no futuro, não mais devemos observar a obediência que não

prometemos a você. E se nenhum de nós, como você tem publicamente

declarado, tem sido até agora um bispo para você, você também não será,

agora, papa para nenhum de nós. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 147-

149).

A renúncia dos bispos a Gregório VII apresenta-se como uma tentativa política de

Henrique IV e de seus conselheiros de forçar a abdicação do papa sem que o próprio rei

tivesse que se interferir pessoalmente em Roma. Isso é possível perceber porque Henrique

enviou uma carta aos romanos com uma cópia daquela que ordenava Gregório a descer do

trono de Pedro. O rei possuía a informação de que o pontífice se encontrava em situação de

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vulnerabilidade (havia sido inclusive preso por pouco tempo por um inimigo, Cencius

Stephani) e por isso conclamava os romanos a se levantarem contra ele. (MOMMSEN;

MORRISON, 2000, p. 145; ROBINSON, 2004, p. 146-147). Era uma tentativa de fazê-lo

abdicar sem que fosse deposto.

O emissário real escolhido para ir a Roma avisar a resolução de Henrique quanto à

renúncia de Gregório fora o bispo Rolando, de Treviso. Quando chegou à Sé Apostólica, o

enviado régio adentrou a igreja de São João de Latrão, onde todos os bispos romanos estavam

reunidos no evento conciliar, habitual da época de quaresma. Ao ser chamado a falar sobre os

motivos de sua presença, o bispo enviado de Henrique IV leu a sentença contra Gregório VII.

(RUST, 2011, p. 85).

A recepção de Gregório ao documento, sua reação não tardou. Naquele mesmo sínodo

quaresmal de 1076, em Roma, entre 14 e 20 de fevereiro daquele ano, o papa lançou o

anátema sobre vários bispos da Lombardia, desobedientes às leis canônicas, bem como sobre

laicos, finalizando com a excomunhão de Henrique IV, como citamos no primeiro capítulo. O

papa reclamava que não houvera outra maneira se não excomungar o rei. Em forma de oração

a São Pedro, Gregório clama o testemunho do Apóstolo para lembrar que muitas vezes ele

houvera aconselhado o soberano germânico que não o escutou, que “se recusou a obedecer

como um cristão”. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 50; EMERTON, 1990, p. 90-91).

Robinson observa que a sentença de excomunhão foi o resultado de três anos de esforço de

Gregório VII para que Henrique se afastasse dos cinco conselheiros excomungados desde a

época de Alexandre II. O autor assevera ainda que a Imperatriz Inês apoiou o papa nessa

decisão. Segundo as palavras dela mesma: “eu vejo o maior perigo ameaçar a Igreja, porque

meu filho coloca muita fé nas palavras dos tolos”. (ROBINSON, 2004, p. 149). Para o papa,

ele cumpria então sua função de cabeça da Igreja, pois para defendê-la havia empunhado a

“espada da divina justiça” – a excomunhão. (Apud EMERTON, 1990, p. XXX).

O ato de Gregório VII significava dois problemas para Henrique IV: um político e

outro religioso. Na esfera política, aqueles que haviam prestado juramento de fidelidade ao rei

foram dele desobrigados. No âmbito religioso, a excomunhão com a Igreja e com todos os

membros dela representava o distanciamento de todas as atividades relacionadas à instituição

– a não ser que fosse retirado o anátema. Pacaut, em análise ao documento de excomunhão

ressalta uma questão essencial: para Gregório, Henrique fora excomungado por ter desonrado

a Igreja, por suas iniquidades e por sua desobediência, por isso ele não podia ser honrado com

o poder de imperador. Pacaut lembra que embora no texto de Gregório a ligação ao anátema

tenha sido registrado pelo pontífice depois de retirar a autoridade política de Henrique e

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libertar os cristãos do juramento de fidelidade a ele, a perspectiva é mais importante.

(PACAUT, 1989, p. 67). A implicação política só existe em razão da sanção religiosa. Um

cristão não pode se relacionar com um excomungado. Se o rei foi desligado da Igreja, então

não possuía mais a capacidade de governar seus súditos cristãos.

Em consonância com esse texto de Gregório, é possível observar que a representação

do papa naquele momento é puramente religiosa – ele era a cabeça da Igreja. Era como se ele

não ultrapassasse a fronteira entre o religioso e o político. Se o rei era cristão, então era

membro da Igreja e por isso estava sob a tutela papal. No entanto, para Arquillière, esse ato de

Gregório marca o que ele chamou de agostinismo político.

No século XI, a velha noção de Estado, anterior à Igreja e independente de

sua esfera, se achava absorvida ou dominada pela função religiosa que os

príncipes seculares deviam eles próprios exercer no seu reino, e que se

tornou na doutrina pontifícia sua principal razão de ser. Enfim, a ideia

romana de Estado foi lentamente destruída sob a erosão do agostinismo

político. (ARQUILLIÈRE, 1955, p. 32).

Outro ponto fundamental para os historiadores do Conflito das Investiduras, é que

embora fora da lista dos documentos oficiais, os Dictatus Papae correspondiam ao resumo

mais bem definido da política administrativa de Gregório VII. Registradas pelo papa,

provavelmente em 03 ou 04 de março de 1075, as vinte e sete proposições não eram

contraditórias com as ações pontifícias nas relações com o regnum. A dificuldade dos

estudiosos em explicar o significado dos Dictatus Papae está relacionada ao caráter privado

do documento. Não compreendia uma carta, um decreto, ou qualquer documento oficial da

Igreja. No entanto, suas proposições sintetizavam bem o programa papal que foi explanando

mais tarde pelo próprio Gregório quando escreveu a Herman de Metz, especialmente a

segunda carta de 15 de março de 1081. (PAUL, 2004, p. 223; EMERTON, 1990, p. 166-175;

SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 52-61).

Nos Dictatus Papae há dispositivos com características puramente eclesiásticas, mas

também há muitas, talvez sua maioria, relacionadas ao âmbito temporal. Pacaut (1989, p. 66)

considera o documento a proclamação da teocracia pontifícia. Considerando que já tenhamos

feito referência a algumas delas anteriormente, ressaltemos as outras agora:

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1. Só a Igreja Romana foi fundada por Deus.88

2. Só o Pontífice Romano,

portanto, tem o direito de ser chamado universal. 3. Só ele pode nomear e

depor bispos. 4. Um seu emissário, mesmo que inferior em grau hierárquico,

tem precedência relativamente a todos os bispos reunidos em sínodo e pode

decretar uma sentença de deposição contra eles. 5. O Papa tem o direito de

destituir os ausentes. 6. Não se deve estar em comunhão ou permanecer na

mesma casa com aqueles que foram excomungados pelo Pontífice. 8. Só ele

pode usar a insígnia imperial. 9. Todos os príncipes devem beijar só os seus

pés. 10. O seu nome dever ser recitado em todas as igrejas. 11. O seu título é

único no mundo. 12. É-lhe lícito destituir o Imperador. 13. Também lhe é

lícito, conforme as necessidades, transferir bispos de uma sé para outra. 14.

Só ele tem o poder de ordenar que um clérigo de qualquer igreja vá para

onde lhe aprouver. 15. Aquele que é sagrado por ele pode governar qualquer

igreja, sem se subordinar a ninguém, e não pode receber de bispo algum

qualquer grau hierárquico superior. 16. Nenhum sínodo poderá ser

considerado geral se não for convocado por ele. 17. Nenhum livro ou

capítulo pode ser considerado canônico sem a sua confirmação. 18. Ninguém

pode revogar suas sentenças; só ele próprio pode fazê-lo. 19. Ninguém pode

julgá-lo. 20. Ninguém pode censurar quem apela para a Sé Apostólica. 21.

As causas de importância maior de qualquer igreja devem ser-lhe

apresentadas, para que ele as julgue. [...] 23. O Romano pontífice, escolhido

conforme a eleição canônica, será indubitavelmente santificado pelos

méritos do bem-aventurado Pedro, segundo afirma Santo Enódio, bispo de

Pavia, em consenso com muitos Santos Padres, conforme está escrito nos

decretos do Papa Símaco. 24. É lícito aos subordinados, de acordo com a sua

ordem e autorização, fazer acusações. 25. Ele pode depor e nomear bispos

sem uma reunião sinodal. [...] 27. O Pontífice pode libertar os súditos do

juramento de fidelidade feito a um monarca iníquo. (SOUZA; BARBOSA,

1997, p. 47-48)

De maneira geral, podemos perceber a direção para a qual Gregório VII objetivava

conduzir seu poder. A partir dos Dictatus Papae, as propostas parecem ter mais um caráter de

organização da sociedade e da Igreja cristã que de arregimentação de almas para conduzir ao

céu. Muitas apresentam características práticas. (BARRAGLOUGH, 1972, p. 100-101). Os

dois primeiros dispositivos marcam o caráter universal do projeto pontifício. No primeiro, a

percepção da Igreja romana como a única deixada por Deus. Cristo mesmo conferira a ela os

poderes e as prerrogativas de igreja primaz. No entendimento de Paul (2004, p. 223), a Sé

Apostólica, em razão de ter sido fundada por Cristo, agrega a universalidade da Instituição

eclesiástica. Nesse caso, a primeira proposição se liga à segunda porque os bispos das outras

igrejas, embora membros da Instituição romana,viam o seu poder ser substituído pelo poder

88

Não falaremos sobre o cisma definitivo entre a Igreja do Ocidente a do Oriente ocorrido em 1054, mas não

poderíamos ignorar outra possibilidade de interpretação desse primeiro dispositivo. Não há outras fontes que

corroborem nossa reflexão, mas se a proposição diz que “só a igreja de Roma foi fundada por Deus”, isso exclui

as outras instituições da origem divina, inclusive a oriental. Mas se houver uma confusão na tradução e

pensarmos na máxima italiana traduttore, taditore (tradutor, traidor) e a versão aproximada for “a Igreja Romana

foi fundada por Deus somente”, poderíamos concluir que, esse ponto de vista defendia que não houve influência

humana sobre a fundação da instituição.

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do papa. O poder do pontífice abarcava tudo e todos. No tocante aos bispos, há ainda a

terceira proposição. Antes da universalização e da centralização eclesiástica em Roma, os

concílios provinciais tinham poder sobre as ações dos bispos. Com Gregório VII, a terceira

proposição reflete isso, ocorre a transferência dos poderes até então atribuídos àqueles

concílios para a Sé de Pedro encabeçada pelo pontífice. A intervenção em última instância e o

apelo a Roma tomou o lugar da resolução dos problemas locais pela usual e direta jurisdição.

Entre outros dispositivos que tratam da relação com os bispos, melhor dizer, da sobreposição

do poder pontifício sobre os outros prelados, também está o décimo quarto. Ao reivindicar o

poder de transferir para onde quisesse qualquer clérigo, de qualquer bispado, Gregório tomava

para si a competência do prelado local, colocando-se no lugar dele.

As outras proposições possuem características bem definidas de influência da esfera

espiritual sobre a temporal. Há uma mistura de domínios, os limites pareciam se confundir.

Segundo os Dictatus Papae, o pontífice tanto podia liberar os súditos da fidelidade de um

senhor injusto como podia destituir imperadores. Essas disposições fugiam completamente da

alçada religiosa para a competência puramente política. Traduzia-se em jurisdição direta da Sé

Apostólica sobre todo o corpo de cristãos, ignorando o poder das outras instâncias se ela o

julgasse apropriado. Incluído nesse conjunto de membros encontrava-se também os soberanos

temporais que em razão da sua condição de batizados estavam subordinados ao chefe da

Igreja, ao papa. (ULLMANN, 1983, p. 35-37). As novas práticas inseridas no cotidiano de

relações ente o Império e o Papado enfrentam uma considerável resistência em razão das

mudanças estruturais causada pela reivindicação de poder pela Igreja de Roma. Na percepção

de Paul, a instituição eclesiástica, a Igreja Romana, “se torna uma monarquia pontifícia que

substitui uma federação de províncias eclesiásticas dirigidas pelos arcebispos ajudados pelos

concílios locais. Tal reforma provoca uma reviravolta na ordem do mundo”. (PAUL, 2004, p.

223).

Um tema agrega outro, especialmente no que tange a esse poder pontifício sintetizado

pelos Dictatus Papae. Na oitava proposição, quando dá a si mesmo o direito exclusivo de usar

a insígnia imperial, Gregório VII ressalta uma das características da teocracia pontifícia.

Lembremos que a falsa Doação de Constantino concedia atribuições e prerrogativas imperiais

ao papa. A Igreja Romana era considerada a herança concreta do Império Romano no

Ocidente. (PAUL, 2004, p. 224). Com o distintivo de imperador, com terras que sustentassem

a liberdade da Igreja diante dos interesses temporais, o domínio espiritual apresentava-se

como superior a qualquer outra esfera.

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Diante dessa breve análise dos Dictatus Papae, as afirmações dos autores sobre a

questão do possível decreto de 1075, que teria proibido as investiduras laicas, mas que não

aparecem nas cartas de Gregório tampouco nas de Henrique até 1077, permitem-nos uma

pequena reflexão. Voltemos uma vez mais na terceira proposição que afirma que só o

pontífice romano pode nomear e depor bispos. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 47). Embora,

como já afirmamos com base em Paul (2004), o documento não fosse oficial, ele existia. Ele

fora copiado nos Registrum do papa entre 03 e 04 de março de 1075. Para Gregório VII, de

acordo seu dispositivo terceiro dos Dictatus, somente o pontífice poderia nomear, investir

bispos, bem como destituí-los do ofício. As disposições do documento são categóricas,

sintéticas, precisas, como o próprio Hildebrando agia. Se o programa registrado por meio das

vinte e sete proposições não foi discutido no sínodo quaresma daquele ano, essa é outra

questão. Mas não podemos ignorar a existência desse ponto de vista do Papa quanto às

investiduras desde aquela data.

Embora acreditemos na possibilidade de os Dictatus Papae significarem o registro da

proibição das investiduras laicas em 1075 não podemos afirmá-lo por falta de suporte

documental. Estaríamos tendentes a repensar a afirmação do cronista Arnulfo de Milão e não

temos muitas bases para tanto. E pelo receio da especulação, falemos do que está ao nosso

alcance. O que é fundamental para os estudiosos do período é que o documento exprimia os

projetos de Gregório VII cujas ideias são consideradas por muitos como “ponto de referência

obrigatório” para se compreender o processo de evolução da hierocracia89

papal. (SOUZA;

BARBOSA, 1997, p. 29).

Voltando à excomunhão de Henrique IV naquele ano de 1076, quando soube da sua

condenação, o rei reagiu imediatamente. Reuniu um sínodo em Utrecht (onde se encontrava)

em 26 de março 1076, com o objetivo de depor Gregório VII. Então ficou decidido que, na

missa da Páscoa, que ocorreria no dia seguinte, um daqueles bispos (Pibo de Toul) proferiria a

sentença de deposição do pontífice por ter ousado excomungar o rei. Os bispos declinaram da

incumbência de pronunciar a deposição, alguns deixando a cidade durante a noite. Os

prelados, embora não fossem desleais ao rei, receavam ser punidos por violação ao direito

canônico ao depor o papa. O único bispo que se prontificou a anunciar a deposição de

Gregório foi Guilherme de Utrecht. A missa foi organizada com características de

manifestação litúrgica contrária ao anátema lançado pelo papa sobre Henrique. O rei encenou

89

No entendimento de Marcel Prelot, o sentido de hierocracia corresponde a “determinados homens

[especialmente o papa, cabeça da Igreja romana], consagrados a Deus pelo sacramento da Ordem, exercem sobre

os outros homens, por instituição divina, o poder mais eminente que possa [existir]”. (Apud SOUZA;

BARBOSA, 1997, p. 30).

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a crown-wearing, numa cerimônia (ritual é o que o autor usa) de poder em que o rei portava o

símbolo de seu império, enfatizando a percepção de monarca dos Otonianos e dos Sálios em

que o rei era o Vicarius Dei – vigário de Deus. (ROBINSON, 2004, p. 149-50).90

É prudente lembrar que essa imagem de rex et sacerdos ou, mais objetivamente, de

realeza sacerdotal constituía um corolário do “sistema de Igreja imperial”, do chamado

Reichskirchensystem, que vimos anteriormente. Aos soberanos Otonianos e aos Sálios era

atribuído o caráter de rei-sacerdote. Tanto Robinson (2004) quanto Reuter (2006) falam

dessas atribuições sagradas dos reis germânicos dessas dinastias. No entanto, este último, em

vez de usar o termo Vicarius Dei, usa a expressão Vicarius Christi para caracterizar o rei

quando esse aparecia de maneira esplendorosa em datas festivas da Igreja como Páscoa,

Pentecostes e Natal. Na perspectiva conceitual dos dois termos isso não nos parece ser uma

contradição, se levarmos em conta o que vimos em Kantorowicz (1998), já que Reuter se

refere aos soberanos Otonianos e Sálios de uma maneira geral, especialmente a partir de

Henrique II, e Robinson refere-se, neste caso, a Henrique IV que mais que vigário de Cristo,

representava-se como vigário de Deus. (ROBINSON, 2004, p. 149-150; REUTER, 2006, p.

327).

Ao ordenar aquele a quem não considerava papa, mas um falso monge que havia

usurpado o trono de Pedro a descer - “Eu, Henrique, Rei pela graça de Deus, junto com todos

os bispos dizemos a você: descei! Descei!” (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 108), o rei

realça a sua representação. Para Robinson (2004, p. 150), esse posicionamento de Henrique

contrasta a legitimidade do rei ordenado pela graça divina com a ilegalidade do pontífice.

Basta lembrarmos de Romanos 13,2 (a base do pensamento político dos Otônidas e dos

Sálios): “Assim aquele que se opõe à autoridade se revolta contra a ordem querida por Deus, e

os rebeldes atrairão a condenação sobre si mesmos.” (BÍBLIA: Tradução Ecumênica, 1995).

Pensando o termo – ritual – usado por Robinson para designar o crown-wearing de

Henrique, visitemos então, pois estamos tratando de rituais, uma discussão trazida por Leyser

(1994, p. 189-191). Trata-se do sentido de cerimônias e rituais naquele período. O debate gira

em torno do uso dos dois termos como sinônimos ou como possuidores de significados

diferentes. De acordo com o autor, há antropólogos sociais que usam as duas expressões –

ritual e cerimônia – sem distinguir seus sentidos, indiscriminadamente. Mas há outros desses

estudiosos que são criteriosos ao discerni-los. O ritual, muitas vezes, é definido por suas

características transformativas, por possibilitar mudanças, por possuir um elemento mágico.

90

O soberano só utilizava a coroa imperial em algumas ocasiões solenes, de acordo, geralmente, com o

calendário litúrgico (Natal, Páscoa, Pentecostes). O uso da coroa era cerimonial e não cotidiano.

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130

De outro lado, a cerimônia traduz um “dado estado de negócios, situação social ou corpo de

ideias: cerimônia é conservador”. (LEYSER, 1994, p. 190). Para o medievalista, segundo o

autor, é importante a percepção de que “os rituais são sempre cerimônias, mas nem todas as

cerimônias são rituais”. A coroação podia ser caracterizada como um ritual, por exemplo, já

que se presumia que a partir dali nascia um novo homem, enquanto a crown-wearing

correspondia apenas a uma apresentação da persona carismática régia aos seus súditos. Não

podemos, no entanto, generalizar esse conceito. Há também algumas cerimônias que

requerem funções ritualísticas. Há autores que defendem, segundo Leyser, que há apenas

cerimônia em caso de inexistência de ambiguidade ou de contradição. Também se os eventos

não são marcados por conflitos sociais ou espirituais, nestes casos não é possível caracterizar

com ritual.

Observemos que não só nas cartas, mas também nessas cerimônias e em caso de rituais,

Henrique buscava carregar de sagrado a sua imagem. Na luta contra o papa, o uso dessa

representação era basilar para o seu poder. O argumento principal de seu direito de nomear

bispos e de sua autoridade nos negócios da Igreja estava esteado pela representação de

Vicarius Dei. A descrição de Robinson (2004, p. 149-150) sobre o festival que se seguiu

depois da missa pascoal daquele ano de 1076 enfatiza essa imagem. É essencial que

observemos tanto as representações que aparecem nas cartas de Henrique quanto naquelas de

Hildebrando. Tanto um quanto o outro faz referência ao sagrado para sustentar a sua posição:

Gregório, naturalmente, chefe da Igreja deixada por Cristo – essa representação é fundamental

– clama o apoio do apóstolo Pedro quando excomunga Henrique e o rei reivindica para si a

condição de vicarius Dei para destituir o papa. Afinal, ele se acreditava sucessor daquele que

portava as chaves do céu e por isso detentor do seu poder de ligare et solvere e o outro “Rei

pela Graça de Deus”.

Recuemos um pouco até o evento de Utrecht e na preocupação de Henrique com a

opinião pública. A maneira como o rei fazia com que fosse visto demonstra a construção das

representações sua majestade, profundamente ligadas ao religioso. Era um rei guerreiro, que

apoiava seu poder nas conquistas bélicas, mas, sobretudo, no religioso, o rei agraciado por

Deus com o poder sobre os cristãos, era o vigário de Deus. Na ocasião da Páscoa de 1076, por

exemplo, quando ordenou que proclamasse a deposição de Gregório VII, Henrique apareceu

no festival da Igreja usando a coroa e sentado no trono em uma das catedrais do seu império.

Laudes régias e hinos celebravam “a majestade de Cristo e do rei, que exercia Sua [de Cristo]

autoridade sobre a terra”. (ROBINSON, 2004, p. 149). Foi em Utrecht que o rei começou a

tentar a influenciar a opinião pública contra Gregório VII na Germânia. É claro que é difícil

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131

falar do homem comum medieval, em razão das fontes. Quando tratamos de opinião pública,

estamos nos referindo aos prelados e aos eclesiásticos da hierarquia superior da Igreja – o alto

clero – além dos príncipes temporais.91

E em se tratando de Utrecht e da opinião pública, foi também naquela ocasião que teria

ocorrido o “julgamento de Deus” sobre o conflito entre o Papado e o Império. Henrique,

naquela Páscoa, buscou mostrar que, apesar do conflito com o Papa, da excomunhão e da

deposição, ainda possuía força e autoridade sobre os germânicos. A força que vinha do alto e

da fé dos cristãos. Como mencionamos anteriormente, apenas o bispo Guilherme de Utrecht

havia aceitado pronunciar a sentença de deposição contra Gregório VII. Logo depois, naquele

27 de março de 1076, a catedral daquele bispado foi completamente incendiada por um raio.

Tudo virou cinzas. Esse não foi o único acidente! Um mês depois, exatamente (27 de abril), o

bispo que havia proferido a deposição e excomunhão pontifícia, Guilherme, teve uma

repentina e dolorosa morte. As críticas públicas recaíram sobre o rei e seus conselheiros.

Muitos consideraram os dois acidentes (o incêndio da catedral provocado pelo raio e, logo em

seguida, a morte do bispo) como o resultado das ações de iniquidade de Henrique, como um

julgamento divino. (ROBINSON, 2004, p. 151).

É provável que o próprio Henrique e seu entourage tenham acreditado que os trágicos

acontecimentos de Utrecht tenham resultado da condenação papal, como um julgamento

divino. Há registros de que o rei presenteara a igreja de Santa Maria de Aachen e, logo depois,

fez uma doação à catedral de São Pedro em Utrecht. O rei admitia, de acordo com a descrição

de Bonizo de Sutri, que o incêndio da igreja-sede do bispado de Utrecht tivesse sido um

castigo por seus pecados. Mas seu projeto de derrubar Gregório VII, a quem considerava um

usurpador (tanto da cadeira de São Pedro quanto dos direitos régios), não podia ser deixado de

lado, já que sua coroa estava em perigo. O diploma em que a doação fora registrada trouxe

também os seguintes dizeres: “Sofremos que [a igreja de Utrecht] foi consumida pelo fogo,

imputando isso aos nossos pecados”. (Apud ROBINSON, 2004, 151).

Henrique convocou outro sínodo para o dia de Pentecostes, no entanto alguns príncipes

não compareceram como também não haviam aparecido no Worms. Além disso, sabedores da

excomunhão lançada pelo papa, o conflito com saxões voltou a perturbar o rei germânico.92

O

projeto reformista intensificado por Gregório e os problemas internos da Germânia resultaram

em constantes crises que marcaram de maneira intensa as décadas que se seguiram do reinado

91

Talvez seja muito preciosismo lembrar uma pequena questão, mas é fundamental estarmos conscientes de que

havia bispos que eram príncipes. Lembremo-nos de que os bispos também eram senhores seculares. 92

Mais sobre as crises na Germânia conferir LEYSER, 1994, p. 21-49.

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de Henrique IV. Aliás, as posições que o rei tomou a partir do anátema, do Conflito das

Investiduras, das situações enfrentadas em razão das relações entre Papado e Império,

causaram mudanças não só no seu reinado, mas transformou de maneira irreversível a

legitimidade da autoridade de régia da Germânia medieval. O episódio de Canossa foi o início

dessa mudança.

3.2 Ato IV – Canossa: penitência, perdão, reconciliação? O ritual de deditio de Henrique

IV

Semelhante à excomunhão de Henrique, é provável que Canossa possa ser considerado

como um dos episódios mais significativos do Conflito das Investiduras. O debate sobre a ida

de Henrique IV ao encontro de Gregório VII em busca da retirada do anátema foi um marco

na história do Império nas suas relações com a Igreja e com o Papado.

Henrique havia sido excomungado por motivos que Gregório não economizou93

em

palavras para dizê-los ao justificar o ato em carta ao povo germânico. O papa havia advertido

várias vezes o rei a se livrar dos maus conselheiros, mas Henrique permaneceu com aqueles

que já haviam sido excomungados. Além disso, Gregório percebeu também que Henrique

havia usado de má fé quando, em guerra com a Saxônia, escrevera uma carta a ele com

palavras humildes, cheias de promessas e de arrependimento. No entanto, quando saíra

vitorioso daquela batalha contra os Saxões oferecera seus sacrifícios em razão da conquista

bélica, mas em relação à Igreja, acabou “quebrando seus votos de melhora, não cumprindo

qualquer de suas promessas, recebendo pessoas excomungadas no seu conselho pessoal e

trazendo a ruína sobre as igrejas como ele havia feito antes”. (EMERTON, 1990, p. 97).

Gregório falava também da sua última tentativa de lembrar o rei de suas promessas, a sua

carta-ultimato94

que Henrique desprezou. O papa não falou da excomunhão como uma ação

política, mas como um diretor espiritual, como um pastor que precisava corrigir uma ovelha

desgarrada, como cumpridor do seu papel de levar o rei cristão ao caminho da salvação.

Gregório nomeia os motivos da excomunhão:

93

As cartas do papa Gregório costumavam ser curtas e objetivas. Contudo, há algumas que ele se delonga mais.

Apreciamos duas, especialmente: uma direcionada ao povo germânico (1076) explicando os motivos detalhados

da excomunhão de Henrique IV e a outra é a segunda carta ao bispo Herman de Metz. Conferir EMERTON,

1990, p. 96-99 e 166-175 e SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 51-61. 94

O termo “carta-ultimato” é usado por alguns historiadores. Neste estudo vimos a expressão sendo usada por

Robinson (2004, p. 143). No entanto, há controvérsias quanto à sua utilização. Melve afirma que Cowdrey

(1998) discorda da designação de “carta-ultimato” porque “o texto não prova a hostilidade de Gregório a

Henrique IV”. (MELVE, 2007, p. 192). Neste estudo, preferimos pensar que o seu uso seja adequado em razão

do desenrolar dos acontecimentos, como veremos.

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Quando, portanto, nós vimos que tínhamos chegado a um limite: a saber,

primeiro, que ele recusara cortar relações com aquele que tinham sido

excomungados pelo sacrilégio e a heresia da Simonia; segundo, porque ele

não estava disposto, eu não direi realizar, mas prometer arrependimento por

seus crimes, pela penitência que ele prestara juramento nas mãos de nossos

legados e que era fraudulenta; finalmente, porque ele ousou dividir o corpo

de Cristo, que é a unidade da Igreja – por todos esses crimes, eu digo, nós o

excomungamos pela decisão de um concílio. (EMERTON, 1990, p. 98-99).

Gregório, representando Cristo e na função de sacerdote que precisava perdoar, deixou

em aberto a possibilidade da absolvição: “e se, sob as bênçãos de Deus, ele recobrar seus

sentidos, não importa o que ele tenha conspirado contra nós, ele deverá nos encontrar sempre

prontos para recebê-lo de volta na comunhão.” (EMERTON, 1990, p. 99).

A situação de Henrique IV na Germânia com os príncipes começava a ficar ainda mais

delicada. Não era interessante, politicamente, ter um rei com o qual não se pudesse relacionar

em razão da sanção religiosa. Ainda mais que Gregório não havia lançado somente a

condenação no âmbito religioso. O papa havia também retirado o poder do rei na esfera

política, excluindo dos seus fidelis95

o dever de cumprir o juramento de fidelidade a Henrique

prestado.96

O resultado da ligação do rei pelos laços do anátema foi de grande efervescência,

segundo Reuter (2006, p. 154), e muitos daqueles que apoiaram Henrique IV em Worms,

contra Gregório VII, começaram a buscar o restabelecimento de boas relações com o papa.

Uma guerra civil se deflagrara na Germânia, e muitos bispos e príncipes se colocaram

contrários a Henrique, entre os rebelados também estavam os saxões. A situação do rei piorou

quando Gregório VII, em carta de 03 de setembro de 1076 aos fiéis germânicos, aconselhava

a eleição de um novo rei caso Henrique não se arrependesse e mudasse suas atitudes. Foi

nesse documento que Gregório primeiro se manifestou favorável à escolha de um novo rei

para a Germânia. O papa enfatizava que não se colocava “[...] contra ele [o rei] por qualquer

vaidade ou desejo vazio por coisas do mundo, mas somente pelo zelo pela Santa Sé e pela

nossa mãe comum, a Igreja [...]”. (EMERTON, 1990, p. 105-106).

Caso Henrique não se abstivesse dos “crimes” condenados pelo pontífice, Gregório

considerava que outro rei deveria ser escolhido e dado aos germânicos pela graça divina. O rei

95

Fidelis não significa aqui qualquer status servil, mas, na acepção trazida por MOMMSEN; MORRISON,

“indica um homem que prestou um juramento de ‘fidelidade’ (fidelitas) a um senhor – e, invariavelmente, por

esta razão, um fidelis era uma pessoa de alto posto na sociedade política feudal”. (MOMMSEN; MORRISON,

2000, p. 146). 96

“Retiro do Rei Henrique, [...] o poder sobre todo o reino da Germânia e da Itália, [...] liberto todos os cristãos

do juramento de fidelidade que lhe tiverem feito ou venha a fazer e os proíbo de o servirem como rei”. (SOUZA;

BARBOSA, 1997, p. 50; EMERTON, 1990, p. 91).

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a ser eleito deveria passar pelo crivo dos príncipes97

, do próprio papa98

e da Imperatriz Inês99

.

(EMERTON, 1990, p. 106-107).

Numa dieta em Tribur, em outubro daquele ano, como discorrem Souza e Barbosa

(1997, p. 34), prelados e nobres100

da Germânia que se mantinham aliados a Gregório

decidiram que se Henrique não alcance o perdão do papa e a consequente retirada do anátema

dentro de um ano, iriam pensar sobre a eleição de um substituto para o trono. Henrique

deveria obedecer às determinações de Gregório VII, caso contrário, sua situação seria

resolvida, definitivamente, na dieta que ocorreria no início de fevereiro de 1077, em

Augsburgo.

Pressionado pelos príncipes e pelo clero, Henrique foi obrigado, depois de muitos dias

de negociação, a fazer diversas concessões. Vários bispos germânicos apoiavam o rei, mas um

grande número de príncipes era partidário papal. Não só os Saxões, mas também muitos de

seus inimigos de longa data aproveitaram a oportunidade de sua debilidade política em razão

da excomunhão para enfrentá-lo. Para evitar uma sangrenta batalha, Henrique cedeu em

alguns pontos da negociação o que resultou na Promissio Oppenheimensis (Promessa de

Oppenheim). (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 154). As concessões do soberano foram

registradas no documento a ser enviado a Roma.

Na verdade, o acordo com os bispos e os príncipes germânicos resultou em três

documentos. Além da Promissio Oppenheimensis, há também um manifesto aos nobres e uma

carta a Imperatriz Inês. Esses textos revelam um soberano acuado, com sérios problemas

políticos cujas soluções – ao menos parcialmente – residiam nas mãos do poder espiritual. A

97

Refere-se ao direito tradicional dos príncipes germânicos de eleger seu soberano. Uma maneira de controlar,

em certa medida, as ações régias. (Ver ROBINSON, 2004, p. 154). 98

“(…) para que possamos confirmar sua escolha – se for necessária fazer uma escolha – e apoiar a nova ordem,

de nossa vez, [...] informe-nos o mais rápido possível quanto à pessoa, o caráter e a ocupação do candidato”.

(EMERTON, 1990, p. 106-107). 99

Diz acerca de determinado juramento prestado ante a Imperatriz, em caso da morte do filho. A morte a que o

pontífice se referia corresponde àquela espiritual em razão da excomunhão. (Ver ROBINSON, 2004, p. 154). 100

As questões que envolviam a participação dos príncipes no Conflito das Investiduras como partidários

pontifícios estavam marcadamente ligadas à situação política do contexto. O caso dos Saxões sobre o qual

falamos corresponde apenas a um exemplo. Outra situação claramente política ocorreu naquele início de 1076,

antes mesmo de Henrique se manifestar, depondo Gregório VII. Tratava-se do verdadeiro motivo que levara o

rei a Utrecht. Seu grande aliado Godofredo III, duque da Baixa Lotaríngia, havia sido assassinado em 22 de

fevereiro e os problemas de sucessão, melhor dizer, de herança precisavam ser solucionados. O problema

derivava da falta de herdeiros. Godofredo não tinha filhos e o herdeiro mais próximo era um cunhado: o Conde

Alberto III de Namur – marido da irmã mais velha do duque. Havia também Godofredo de Bouillon que era filho

da sua irmã mais nova. Tal como Henrique III, seu pai, agiu em relação à região sul da Germânia, Henrique IV

concedeu ao seu filho Conrado (naquela época com dois anos de idade) o ducado em questão (Baixa Lotaríngia).

Muitos daqueles que eram favoráveis a Godofredo de Bouillon (a quem o duque havia reconhecido como seu

herdeiro) não aceitaram a iniciativa de Henrique IV porque consideraram uma ofensa aos direitos hereditários

daquele legatário. Esse evento contribuiu para que a suposta conspiração contra o rei germânico em 1076 se

fortalecesse. (ROBINSON, 2004, p. 148).

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representação do rei aparece mais como a de alguém compelido a agir que a imagem de um

fiel arrependido, um cristão que sabia do seu pecado e que não mediria esforços para repará-

lo. A promessa de obediência compõe esse quadro representativo, mas o arrependimento nem

tanto. Ainda, Henrique não deixa de dizer ao Papa, com certa ironia, que algumas das atitudes

do pontífice também estavam causando desordem na Igreja. Destacamos trechos que

consideramos importantes dos três respectivos textos (Promissio, o manifesto e a carta a

Imperatriz):

Admoestado pelo conselho de nossos vassalos, prometo manter a devida

obediência em todas as coisas à Apostólica Sé e a vós, Papa Gregório. Devo

cuidar para corrigir com obediente reparação qualquer diminuição da honra

daquela Sé ou de sua própria honra que tenha partido de nós. [...] Também

cabe, no entanto, a Vossa Santidade não ignorardes aquelas coisas que têm

sido espalhadas sobre vós e que trazem escândalo para a Igreja. Mas depois

dessa dúvida ter também sido removida da consciência pública, é

conveniente que a tranqüilidade universal da Igreja tanto quanto a do reino

seja consolidada por meio de vossa sabedoria. (MOMMSEN; MORRISON,

2000, p. 154).

[...] Agrada-nos, em benéfico conselho, mudar nossa posição padrão e, como

nossos predecessores e antepassados, reservar em todos os aspectos a devida

obediência à mesma sacrossanta Sé e ao Senhor Papa Gregório, que é

conhecido por servir como sua cabeça. [...] Almejamos que vós também,

admoestados pelo exemplo de Nossa Serenidade, como nós, não vos recuseis

a mostrar solene [obediência]101

a São Pedro e ao seu vigário. (MOMMSEN;

MORRISON, 2000, p. 154).

[...] nós fomos finalmente dominados pela legação apostólica e pelo

conselho pela persuasão de todos os nossos vassalos [...]. Mas por causa da

boa fé que temos em vós, pedi sinceramente a Deus que nossa causa possa

receber seu tão esperado resultado. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p.

156).

Há estudos que defendem duas interpretações da Promissio. As discussões giram em

torno do significado do documento: seria ele um “tratado de paz” ou uma “capitulação

incondicional”? Para Haller (1939), a última interpretação faz mais sentido, enquanto

Brackmann (1939) defende que a Promissio compreendia um acordo de paz. Robinson, que

cita e compara os dois autores, acredita que a parte final do texto henriquiano remetia as

acusações feitas a Gregório VII no concílio convocado pelo rei e ocorrido em Worms. E se

assim tiver sido, o texto não pode ser interpretado como uma capitulação régia, mas sim uma

101

A palavra obediência foi inserida por Erdmann numa lacuna que havia. (Conferir o documento em

MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 154).

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concessão em razão da pressão dos enviados pontifícios e dos príncipes. O autor chama a

atenção para o último período do documento para justificar que também não poderia ser um

“tratado de paz”. Os legados não teriam permitido que em tal acordo constasse o tema das

acusações a Gregório. Robinson faz referência a uma versão primeira que tivera sido enviada

a Roma sem a parte final que, provavelmente, foi acrescentada depois pela chancelaria régia.

Em sua análise, o autor dá mais crédito à “capitulação incondicional”, pois era o que Henrique

e seus conselheiros poderiam fazer considerando a complexa situação em que se encontravam

naquela assembleia de outubro de 1076. (ROBINSON, 2004, p. 158).

Ao fim da assembleia de Tribur e do acordo de Oppenheim102

, Henrique concordou com

o estabelecimento de uma dieta a acontecer em Augsburgo na qual as queixas contra ele

seriam colocadas sob o julgamento pontifício. Gregório VII fora convidado a ir à dita

assembleia para arbitrar o conflito entre o rei excomungado e os príncipes. Para Robinson

(2004, p. 157), aqueles que eram favoráveis à deposição do rei viram a possibilidade da

presença de Gregório VII na dieta de fevereiro de 1077 como uma oportunidade para mostrar

ao papa a falta de dignidade do rei para ocupar tal função. Caso Henrique não fosse absolvido

diante do julgamento papal, seria o ensejo para os inimigos de Henrique eleger um novo rei.

Depois do acordo, Henrique IV foi a Speyer a fim de se preparar para o processo de

retirada do anátema. Quando percebeu que estava preso às teias daquelas relações civil-

político-religiosas, ele tentou uma retratação em razão da sentença que publicou em Worms

contra Gregório VII. Em Speyer, apareceu em público como penitente.103

(REUTER, 2006, p.

155). Despediu os conselheiros excomungados, afastou-se deles e passou os dias vivendo

como penitente. É provável que a visita mais ilustre que tenha recebido fora do seu padrinho

Hugo de Cluny.104

Há registros que Henrique tenha pedido autorização para se encontrar com

Gregório VII em Roma. O Papa, no entanto, não permitiu e reivindicou sua autoridade de

Apóstolo de Cristo, sucessor de Pedro, para ordenar que o rei deveria a ele se apresentar em

Augsburgo (1077). A situação era favorável ao Papa. Ao ser convidado para julgar a questão

entre os príncipes e o rei, Gregório VII teve a “oportunidade de demonstrar a supremacia

papal nos negócios seculares que ele havia reivindicado em suas cartas aos fiéis durante o

verão de 1076”. (ROBINSON, 2004, p. 159).

102

Os nobres hostis à causa de Henrique se reuniram em Tribur. Henrique se reuniu em Oppenheim com seus

partidários. (REUTER, 2006, p. 155). 103

Henrique já havia feito penitência em público com o objetivo de amenizar o problema de suas relações com

os conselheiros que haviam sofrido o anátema. A resposta a esse ato penitencial foi a missiva pontifícia que

mencionamos anteriormente em que Gregório VII fala sobre a empreitada cruzadista. Conferir também

REUTER, 2006, p. 153. 104

Hugo buscava a reconciliação de Henrique IV com a Sé Romana. Em razão do contato com o afilhado

excomungado, precisou pedir a absolvição de Gregório VII. (ROBINSON, 2004, p. 159).

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É possível que Henrique tenha refletido acerca das dificuldades que acarretariam a sua

espera até a dieta de Augsburgo. Ele seria julgado pelo papa sob a influência de seus

inimigos, de maneira inexorável. Seria o rei favorecido se se encontrasse com Gregório VII

antes que ele entrasse na Germânia, ainda no território italiano, para alcançar a esperada

absolvição. Assim, saiu com sua esposa Bertha e seu filho Conrado, naquela época com

apenas três anos de idade, em direção à Roma. Henrique teve que usar um caminho diferente,

mais longo que aquele usado habitualmente pelos reis germânicos, pois o mais curto

encontrava-se em terras ocupadas por inimigos da coroa.105

(ROBINSON, 2004, p. 159).

Talvez seja válida a observação do contemporâneo do rei, Lampert, de que Henrique era mau,

mas não era estúpido. Sabia que a única chance de salvar a si e a sua coroa era a de se jogar

aos pés de Gregório VII e por termo no conflito. (BAGGE, 2002, p. 281).

Não usamos da informalidade, nem do simbolismo, quando empregamos a expressão

“jogar-se aos pés”. Basta lembrar o nono dispositivo dos Dictatus Papae que afirmava que os

príncipes deveriam beijar os pés do papa. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 48). O ritual que o

rei se preparava para efetivar não compreendia uma situação simples, tampouco original.

Henrique IV não era o primeiro rei que passava por um ritual de penitência, há registros de

outros casos entre aqueles soberanos que reinaram na Germânia.

Gregório já se dirigia à Germânia quando teve notícias da chegada de Henrique. O

papa, então, buscou apoio na sua aliada Matilde, que também era prima de Henrique e que

possuía sua fortaleza na região norte dos Apeninos, em Canossa. Quando Henrique chega à

frente dos portões do castelo da margravina da Toscana, com pés descalços e hábito de

penitente, era final de janeiro de 1077. O inverno era rigoroso e, acompanhado de sua família

(esposa e filho pequeno), o rei esperou por três dias até que lhe fosse permitida a entrada para

se colocar diante do pontífice. O próprio Gregório descreve a “humilhação penitencial do rei”

quando presta contas aos príncipes germânicos:

[...] recebemos certa informação que o rei estava vindo até nós. Antes que

ele entrasse na Itália, ele nos mandou notícia que prestaria satisfação a Deus

e a São Pedro e ofereceu corrigir seu jeito de vida e continuar obediente a

nós, estabelecendo apenas que ele deveria obter de nós absolvição e a bênção

apostólica. [...] Ele veio com poucos acompanhantes à fortaleza de Canossa

onde nós estávamos ficando. Lá, três dias consecutivos, em pé diante do

portão do castelo, colocando de lado toda a insígnia real, com os pés

descalços e vestes rústicas, ele não cessou, com muitas lágrimas, de implorar

o conforto e a ajuda apostólica até que todos que estavam presentes, ou que

tinham ouvido o relato, foram movidos pela piedade e pela compaixão e

105

“Os reis germânicos usualmente viajavam ao seu reino italiano pelo caminho de Brenner, sendo a rota

Augsburgo – Verona a mais curta e a mais fácil”. (ROBINSON, 2004, p. 159).

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defenderam sua causa com preces e lágrimas. Todos admiraram de nossa

inabitual severidade, e alguns mesmo bradaram que nós estávamos

mostrando, não a seriedade da autoridade apostólica, mas sim a crueldade de

um tirano selvagem. Por fim, dominados pela sua persistência mostrada pela

penitência e a insistência de todos os presentes, nós o livramos dos laços do

anátema e o recebemos na graça da Santa Mãe Igreja, aceitando dele as

garantias descritas abaixo, confirmadas pelas assinaturas do abade de Cluny

[Hugo, padrinho de Henrique que trabalhou para que o restabelecimento das

relações acontecesse], de nossas filhas, Condessa Matilde e a Condessa

Adelaide [sogra de Henrique], e outros príncipes, bispos e leigos que

parecem estar ao nosso serviço. (EMERTON, 1990, p. 111-112).

A questão que exerce em nós exerce maior atração sobre a situação é a natureza

polissêmica da submissão do rei. Lembramo-nos da primeira vez em que lemos uma breve

descrição do evento de Canossa, em Hilário Franco Júnior, que descrevia o desfecho da

penitência de Henrique de maneira simples e direta, mas que nos deixou instigados com os

possíveis significados daquele momento e daquelas atitudes. Um rei que não se dobrava

diante de grandes hostes, mas que o fazia diante de um monge – Gregório era um. Um

religioso que se tornara cabeça da Igreja de Roma, mas um monge. Por outro lado, um papa

que afirmava não lutar pelas coisas desse mundo, mas pela fé em Deus e pela salvação dos

homens106

, mas que tinha atitudes de um grande chefe temporal. Concluía assim, Franco

Júnior:

Gregório viu-se assim diante de um impasse: retirar a excomunhão seria

praticar o perdão e privilegiar sua função sacerdotal, mas perdendo as

vantagens políticas da situação; manter a punição seria agir como estadista,

prejudicando a base de seu poder, que era espiritual. (FRANCO JÚNIOR,

2001, p. 76).

Somente tempos mais tarde, outras leituras nos possibilitaram compreender a

pluralidade de sentidos que encerrava aquele desfecho sintetizado por Franco Júnior. Canossa

significou mais que uma mera absolvição de um cristão pecador, de um rei desobediente.

Correspondeu a um dos eventos que marcaram a reforma pontifícia do século XI e com isso

intensificou o sentido do Conflito das Investiduras para as relações entre Império e Papado.

As duas instituições que mediam forças naquele período.

A mudança principal está relacionada com a natureza sagrada do rei. Desde o século

VIII, quando Pepino III fora ungido e continuou com as características teocráticas de governo 106

“Eu, um padre que sou, servo do príncipe dos Apóstolos, indo até vocês contra a vontade e a opinião dos

Romanos, confiando na misericórdia de Deus Todo-Poderoso e em sua fé católica. Estou pronto para morrer em

honra a Deus e pela salvação de suas almas, como Cristo ofereceu sua vida a nós”. (EMERTON, 1990, p. 110-

111). Esta carta é de novembro/dezembro de 1076, por meio da qual Gregório pede aos germânicos ajuda em sua

jornada sobre os Alpes quando ia se dirigir a Augsburgo.

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dos últimos soberanos carolíngios, seguidos por vários reis também na Francia Ocidentalis,

na Península Ibérica (Leão) e em Wessex, esse longo período até o século XI foi caracterizado

pela realeza cristã. Com Canossa essa era chegara ao fim. O rei que se constituía um mediator

cleri et plebis (um mediador entre o clero e o povo) e em razão de sua unção estava também

sobre eles, passava a compreender uma nova natureza. Era a de um homem leigo que, não

obstante a sua consagração, estava subordinado ao poder espiritual – tendo o clero tanto como

guia de fé quanto como autoridade judicial. Devia obediência ao papa! Parece que tanto os

chefes temporais quanto aqueles espirituais foram mais cuidadosos e, pelo menos no século

XII, não ocorreram outras deposições régias. As consequências do ocorrido em Canossa

influenciaram outros governantes para além do Império. Nas palavras do autor do texto

Contextualising Canossa, a “realeza europeia ocidental precisou ser reinventada, ser colocada

sobre novas bases jurídicas, morais e ideológicas [...]”. (REUTER, 2006, p. 148). Para

Timothy Reuter,

nenhuma das muitas deposições e tentativas de deposição dos reis naquele

século [do XIII], nem mesmo a de Frederico II em 1245, teve algo

semelhante ao impacto da deposição de Henrique IV em 1076 e sua

restauração para o ofício – ou não, conforme o caso – em Canossa em 1077.

(REUTER, 2006, p. 148-149).

Se o papa sabia ou não da ida de Henrique a Canossa é a única exceção em que os

vários relatos do episódio ocorrido na fortaleza da Condessa Matilde não coincidem com a

descrição de Gregório VII de fins de janeiro de 1077.107

Mas o encadeamento dos fatos é

coincidente nas narrativas. Alguns relatos mais sintéticos outros mais detalhados, mas nada

que altere o sentido do episódio como um todo. Primeiro ocorreram as negociações

empreendidas a favor de Henrique (por Adelaide de Turim e seu filho Hugo de Cluny,

padrinho de Henrique, a própria Condessa da Toscana, Matilde, e outros príncipes italianos

partidários do rei); em seguida, a humilhação publica de Henrique sob frio intenso e pés

descalços sobre a neve; em terceiro lugar, aconteceu, por fim, a reconciliação por escrito e a

confirmação do ato por meio de um juramento. Depois disso, Gregório garantiu a volta da

comunhão do rei com a Igreja e concluíram o ritual com um jantar festivo que ratificaria a

107

Reuter afirma que Gregório estava amedrontado e preso, refugiado no castelo da Condessa Matilde, com a

chegada de Henrique. O papa supunha se encontrar com o rei em Augsburgo em 2 de fevereiro e foi

surpreendido por ele. Quem poderia fornecer tudo que Gregório precisava para ele e seu entourage fazer a

viagem até o local da assembleia seria o próprio Henrique. Mas como o papa iria julgar uma questão em que o

rei era o “réu”, então, não era de interesse do soberano fazer o serviço de segurança pontifícia. (REUTER, 2006,

p. 164).

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harmonia e a reconciliação entre o Papado e o Império. (ROBINSON, 2004, p. 161-162;

REUTER, 2006, p. 156; LEYSER, 1994, p. 204).

Reuter, apoiado em análises arqueológicas, sugere que há possibilidade de Henrique não

ter ficado em pé na neve durante três dias completos. Talvez o rei penitente tenha somente

feito três aparições consecutivas em uma posição que o papa pudesse vê-lo e voltado para um

castelo providenciado pela prima Matilde. Os estudos arqueológicos ratificam algumas

minúcias da cena penitencial, especialmente o pátio interno em que Henrique teria ficado

entre 25 e 27 de janeiro de 1076, bem como o local da reconciliação (27 ou 28 de janeiro)

quando a entrada de Henrique foi permitida na igreja. O rei se prostrou em forma de cruz aos

pés do papa, depois foi levantado e a ele dada a comunhão pelo pontífice. (REUTER, 2006, p.

156-157).

A representação do rei penitente, submisso ao poder espiritual cuja imagem se sobrepôs

ao temporal no evento daquele dia 28 de janeiro, foi o que marcou de maneira mais drástica o

episódio de Canossa. Mas qual era o sentido produzido pela penitência, pela humilhação

pública daquele rei? A esperança de Henrique era que sua situação política se tornasse menos

complexa, já que os príncipes opositores estavam à espera de uma oportunidade para destituí-

lo. Os aspectos religiosos que pesavam sobre a questão política deveriam ser solucionados

para que sua coroa não caísse nas mãos de outro. Isso se fosse só a coroa, pois as disputas

pelo trono germânico não permitiam que a própria cabeça de Henrique IV ficasse em

segurança.

Relativo aos penitentes, a Igreja tratou o batizado pecador de diversas maneiras no curso

da história. Podemos citar desde o estabelecimento de penitência pública àqueles que

cometiam pecados e a sua entrada para a ordo poenitentium (ordem dos penitentes), com

influência sobre seus direitos ditos civis, nos séculos V e VI até a inclusão de exercícios

penitenciais no contexto privado do cristão do século VII em diante. Era habitual que os

penitentes fossem privados ou tivessem que se abster da comunhão, mas não excluídos do

corpus Ecclesiae. Quando um cristão chegava ao ápice do castigo que era a excomunhão não

era porque estava se penitenciando por um pecado cometido, mas sim pela renitência.

(REUTER, 2006, p. 157-158). Gregório não mediu palavras em explicar que, por várias cartas

e inúmeras vezes, havia admoestado Henrique a se redimir, sem sucesso. Henrique fora

excomungado porque era um pecador renitente. Por sua teimosia em permanecer na simonia e

com conselheiros excomungados, caiu ele mesmo nos laços do anátema.

Um excomungado não podia agir como penitente tampouco ocupar a função de rei. Para

Henrique se penitenciar precisava sair da condição de excomungado, porque o penitente não

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estava excluído da comunidade de fé. Além disso, a penitência que o rei já havia realizado em

Speyer, embora fosse uma tentativa de amenizar sua excomunhão, não estava de acordo com

o direito canônico, porque somente o papa poderia desligá-lo do anátema e ele não estava no

local. Em Canossa, a situação é bem complexa para os estudiosos, porque naquele período

não estavam bem distintas as questões concernentes à prática eclesiástica e ao direito

canônico sobre a penitência pública e a excomunhão. Somente no século XII é que o assunto

foi bem definido pelos canonistas. (REUTER, 2006, p. 159).

Há ainda uma questão decisiva quanto à absolvição de Henrique. De fato, Gregório VII

perdera uma oportunidade política de se impor, de sobrepor o poder espiritual sobre o

temporal, mas não o fez porque deveria agir como sacerdote. Foi assim que procedeu. Apesar

dos seus opositores chamarem atenção para o fato da tentativa de absorção do direito natural

do poder temporal por aquele papa, seu poder, como Franco Júnior (2001, p. 76) destacou, se

apoiava no campo religioso. Na prática, houve a submissão representada pela penitência. Para

Gregório houve perdão eclesiástico. Houve reconciliação, embora com relutância. O papa não

ignorava a complexa situação da coroa e não era difícil de imaginar os verdadeiros interesses

de Henrique. Tanto que quando precisou, o rei voltou a descumprir as promessas feitas ao

pontífice.

Mas a questão de que falávamos correspondia aos efeitos da retomada de Henrique à

comunhão com a Igreja. A dificuldade dos estudiosos está em definir se com a retirada da

excomunhão houve também a restauração das suas funções régias. Afinal, Gregório havia

atingido o campo político de Henrique sem rodeios, diretamente, quando afirmou: “Retiro do

Rei Henrique, [...] o poder sobre todo o reino da Germânia e da Itália [...].” (SOUZA;

BARBOSA, 1997, p. 50; EMERTON, 1990, p. 91). A dúvida relativa à restauração da realeza

emana de um certo conflito entre o juramento de Henrique em Canossa e a carta papal do final

de janeiro de 1077. A confusão no entendimento é gerada pelas informações que Gregório VII

dá sobre o conflito no sínodo romano de 1080, quando Henrique recebe nova excomunhão.

O primeiro texto começa já fazendo referência a “o juramento de Henrique, rei dos

Germânicos”. (EMERTON, 1990, p. 112). Nos textos de Gregório aos príncipes, ele faz

referência, constantemente, ao rei. Não diz que havia restaurado, mas também não negou que

Henrique houvesse restabelecido suas funções régias.108

Em 07 de março de 1080, Gregório

negou ter restituído a Henrique seu poder sobre a Germânia no ato que retirou a excomunhão

em Canossa.

108

Conferir duas cartas redigidas entre janeiro e março de 1077 em EMERTON, 1990, p. 111-113.

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E quando eu testemunhei sua humilhação e depois de ele ter feito muitas

promessas de corrigir seu jeito de vida, eu somente restituí a ele a comunhão,

mas não restabeleci seu poder real do qual eu o havia deposto no sínodo

Roman [o de 1076]. (EMERTON, 1990, p. 150).

Tanto Reuter quanto Robinson traz a discussão sobre a complexidade de se afirmar

que Henrique tenha recuperado seu poder real. (REUTER, 2006, p. 159; ROBINSON, 2004,

p. 163-164). Mas o que se pode asseverar é que o rei acreditava que havia recebido de volta

sua autoridade régia. Pois, é provável, que, quando fez a longa jornada com a rainha Bertha e

o pequeno Conrado, esperasse que a retirada da excomunhão aplacasse a exaltação dos

príncipes e do clero germânico. No entanto, talvez não imaginasse que seu ato colocaria a

figura real sob a tutela do poder espiritual.

Por fim, pensemos em mais um conceito que podemos relacionar ao episódio de

Canossa. Trata-se da deditio que correspondia a uma espécie de submissão voluntária

efetivada pelos rebeldes perante os soberanos, por volta do século X, na Germânia. Os

rebeldes se apresentavam em trajes de luto (saco, hábito de monge) e de pés descalços. Gerd

Althoff (2003, p. 78) define a deditio, para o contexto dos imperadores Otônidas, como “um

ato de submissão central para a resolução amigável de um conflito. Com a expressão-ritual

‘faça comigo segundo a tua vontade’, a parte que está se submetendo ao contrato aparece para

se colocar sem reservas nas mãos do vencedor”. Diferente da penitência, a deditio era

prestada a um soberano laico e não a um prelado. Para Reuter (2006, p. 160-161), um

observador do evento de Canossa poderia enxergar no ato de Henrique o simbolismo do ritual

de capitulação da deditio com aspectos de penitência pública. No entanto, o autor lembra que

a deditio não é um ato espontâneo, mas planejado. O ato deveria ser precedido de negociação

entre o governante e os mediadores do rebelado que objetivava a rendição incondicional. Os

mediadores deviam, sobretudo, estar seguros de que o ato seria aceito, recebido.

Além disso, Reuter lembra que “a necessidade de assegurar previamente que a

submissão seria aceita, evitaria consequências fatais, significando que os intermediários

prestavam um importante papel”. (REUTER, 2006, p. 161). Pessoas como bispos, arcebispos,

rainhas (esposas e mães), especialmente naquele período de Gregório e Henrique, ocupavam

essa função de mediadores. Assim, o autor conclui que houve mais esse motivo para se olhar

para o ritual de Henrique e compará-la a uma deditio. Mas, acrescenta que “na deditio

temporal, embora a submissão não fosse uma garantia de restauração imediata do ofício,

certamente implicaria isso; um rei que recebesse a submissão de um rebelde e logo depois

jantasse com ele, estaria em efeito anunciando a completa restituição”. (REUTER, 2006, p.

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161-162). Sendo assim, Henrique tinha razões consideráveis, se levarmos em conta os seus

costumes, para acreditar que depois da refeição festiva que tivera com o papa Gregório VII,

suas funções régias haviam sido restituídas.109

Sobre a situação de ambos, de Gregório e de Henrique, no ritual de Canossa, Reuter

conclui sobre o ritual ser uma rendição pública como parte integral de um compromisso

menos público:

Está claro que Henrique precisava de tal compromisso se ele tivesse que

resgatar qualquer coisa, de qualquer jeito, de sua realeza, mas Gregório

precisava? A resposta é indubitavelmente sim. Quando Henrique veio ao sul

no inverno de 1076/7, ele estava desesperado, mas a posição de Gregório VII

era distintamente embaraçosa também. Antes de tudo, Henrique não estava

sozinho. Ele arregimentou imediatamente na sua chegada ao norte da Itália

um substancial exército lombardo, formado por aquelas elites urbanas cujo

controle de suas cidades por meio de seus bispos estava ameaçado pelo

movimento dos Patarini que Gregório apoiava. Gregório os observou como

perigosos oponentes: ele os havia excomungado junto com Henrique IV, mas

com ainda mais fervor em 1076 e continuou a denunciá-los a uma distância

segura nos meses que seguiram Canossa. (REUTER, 2006, p. 163).

A análise continua apostando na vantagem do evento tanto para o Papado quanto para

o Império. Além disso, o autor compara o episódio a uma encenação teatral em que os

personagens sabiam bem seu papel – mediadores, penitente e aquele que absolve. Henrique

toma o papel tanto de penitente quanto de rebelde.

Canossa era a saída das dificuldades para ambos os lados. Não é, portanto,

útil falar em termos de quem ganhou ou quem perdeu. Ambos, Gregório e

Henrique estavam sujeitos a pressões políticas a curto prazo. [...] O que foi

feito em Canossa foi um acordo, todavia. Mas o acordo incorporou

elementos significativos de ritual público e esse ritual era inerentemente

ambíguo, provavelmente tinha que ser. O ritual da deditio assemelhava-se

tanto a uma submissão de penitente que é difícil dizer que estava sendo

realizada aqui, e talvez é insignificante tentar fazer a distinção. Mas os dois

rituais tinham muito em comum. De um lado, eles tencionavam expressar

contrição, e portanto teve que ser visto para ser espontâneo: contrição, se

secular ou religiosa, implica livre arbítrio, a habilidade para escolher. Por

outro lado, a espontaneidade tinha que ser planejada. [...] A auto-humilhação

de Henrique IV era real, mas foi encenada e seus participantes sabiam sua

fala. (REUTER, 2006, p. 164-165).

Diante de todas essas representações e imagens, ante esses papéis interpretados pelos

Papa e Rei e, principalmente, por meio dos documentos e dos autores que analisamos, ao que 109

Quanto à evolução do tema “penitência” e para um possível prosseguimento do estudo, é relevante analisar a

carta de Gregório VII aos bispos e aos barões da Britânia falando sobre a reforma na prática penitencial. Conferir

em EMERTON, 1990, p. 147-148.

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parece, Gregório VII não excomungou Henrique em razão das investiduras laicas. Afinal,

Gregório VII as proibiu, ao pé da letra, ou pelo menos registrou isso, somente depois do

famigerado ano de 1076. Henrique IV fora desobediente, renitente e audacioso diante das

propostas papais, e por isso sofreu o anátema que resultou em Canossa.110

Não obstante, a reconciliação na fortaleza da Condessa Matilde, Henrique continuou a

ter problemas com os príncipes. Os nobres não aceitaram a situação e, revoltosos com a forma

com que Gregório VII conduzira o assunto, realizaram a eleição de um novo rei: Rodolfo de

Rheinfelden, duque da Suábia, o que foi apoiado pelos Saxões. Perspicaz e sabedor das ações

que complicavam as relações entre o Papado e o Império, Rodolfo prometeu imediatamente

obediência à Sé Romana, bem como o respeito ao projeto de Libertas Ecclesiae e de ausência

do controle temporal sobre a escolha dos bispos. (EMERTON, 1990, p. 151; SOUZA;

BARBOSA, 1997, p. 34; ROBINSON, 2004, p. 165-180).111

No que tange à eleição desse soberano contrário a Henrique IV, Gregório se absteve

de apoiá-lo durante algum tempo (1077-1080, aproximadamente), buscando reconciliação

entre os dois lados – ente os partidos do rei e do anti-rei. Quando notou que o problema com

Henrique continuava, o papa se colocou do lado de Rodolfo considerando-o “vassalo da Santa

Sé”. (BARRACLOUGH, 1972, p. 97). Dessa maneira, a guerra civil, antes instalada em razão

do problema com Henrique, se alastrou. O rei Henrique IV voltou a desobedecer às ordens

papais e descumprir as promessas que havia feito para arregimentar aliados. De acordo com a

carta de Gregório, de 08 de março de 1080 (EMERTON, 1990, p. 149-152), o rei fora

novamente excomungado.

O texto da segunda excomunhão não se difere tanto do primeiro. A estrutura do

documento também é de uma oração elevada a São Pedro, em quem Gregório VII se apoiava

para defender e justificar sua decisão, e a São Paulo, ambos “discípulos e amantes da

verdade”. O papa reforça que foi pelos apóstolos que ele aceitara as ordens sacramentais e não

por vontade pessoal e lembra que servira a Igreja sempre, desde o papa Gregório VI. Esse

discurso é recorrente nas correspondências pontifícias, notadamente quando ele precisa se

defender de acusações contra a legitimidade do seu pontificado. No texto ele continuou a

reclamar que em razão de ter sido escolhido para carregar a “responsabilidade [ou peso] da

Igreja”, para denunciar crimes e pecados, estava sendo perseguido. Gregório ainda relatou os

motivos que o levaram a excomungar, pela segunda vez, Henrique “a quem eles chamam de

110

Conferir os documentos traduzidos em Emerton (1990), as análises de Tellenbach (2000), Robinson (2004) e

Reuter (2006). 111

Rodolfo morreu em 16 de outubro de 1080 (ROBINSON, 2004, p. 204).

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rei”: conspiração junto a muitos bispos, falsa humilhação pessoal em Canossa, desobediência,

e outros pecados contra a Igreja e contra os súditos. Além disso, proibiu os cristãos de

obedecer a Henrique como rei, de quem também havia tirado os poderes régios. O discurso do

papa se intensifica ao fim da “oração” quando exaltou o poder de Pedro a quem ele

representava e de cujos poderes ele tinha a posse. Questionava o porquê de ele poder julgar as

coisas espirituais e não o poder fazer em relação às seculares. E também: se o havia poder

para julgar os anjos que guiam os príncipes, por que não poder julgar os seus servos. Gregório

insistia, com esse trecho, na supremacia do poder espiritual sobre o temporal. (EMERTON,

1990, p. 149-152; SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 34-35)

A posição de Gregório em relação ao duque Rodolfo da Suábia também era um

agravante. De alguma maneira, o papa terminava por ser solícito com aqueles com os quais

Henrique vivia em conflito – Rodolfo e os Saxões são exemplos disso. Quando Rodolfo soube

da volta de Henrique da Itália para a Germânia refugiou-se na Saxônia – reduto de parte dos

inimigos do rei. Para os saxões, Rodolfo tornara-se seu rei, pois Henrique já não era mais

digno disso. (LEYSER, 1994, p. 70).112

A guerra civil na Germânia, por exemplo, passou a

ser vista como um problema majorado pelas posições e atitudes tomadas pelo pontífice

romano.

E as investiduras? Quais as proibições registradas sobre elas no papado de Gregório

VII? A interdição generalizada que começou a aparecer nos documentos a partir de 1077 teve

seu registro sacramentado no sínodo romano de 1078 (19 de novembro). Quando Henrique foi

excomungado pela segunda vez, já havia essa proibição sinodal expressa das investiduras.

Dessa maneira, quando ele desobedeceu e nomeou bispos em troca de apoio cometeu um

“pecado-crime”: a investidura laica associada a simonia. Tal como já falava Humberto da

Silva Cândida, décadas antes. O documento que resultou do sínodo era bem claro quanto às

proibições:

§ 3º. Considerando que sabemos que a investidura em benefícios é praticada

por leigos em muitos lugares e que, em consequência, grande confusão

surgiu na Igreja, pela qual a fé cristã está sendo pisoteada, nós ordenamos

que nenhum clérigo receba a investidura de um bispado, de uma abadia ou

de uma igreja das mãos de um imperador, ou de um rei ou de qualquer laico,

homem ou mulher. Se ele ousar a fazer isso, faça-o saber que tal investidura

é inválida de acordo com a autoridade apostólica e que ele está sujeito à

112

No documento da segunda excomunhão, Gregório também faz referência à eleição de Rodolfo da Suábia:

“Não possam Henrique e seus conselheiros nunca, enquanto eles viverem, obter vitória em qualquer batalha.

Mas que Rodolfo, a quem os germânicos escolheram para seu rei em lealdade a vós (aos apóstolos), possa ele

governar e proteger o reino dos germânicos. Admito e permito a absolvição de seus fiéis apoiadores de todos os

seus pecados e sua benção nesta e na outra vida”. (EMERTON, 1990, p.152).

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excomunhão até ele ter dado a devida satisfação. (EMERTON, 1990, p.

133).

A proibição é aberta e sem emprego de circunlóquios. A reforma eclesiástica estava no

seu auge e o projeto de Libertas Ecclesiae parecia mais perto de sua concretização. Mas não

era só a Igreja que experimentava essas mudanças endógenas ao processo reformista. Toda a

sociedade cristã estava em transformação. As relações sociais foram marcadas com o ferrete

da reforma e esta última trazia consigo os sinais das transformações da sociedade.

3.3 Ato V – A nova excomunhão de Henrique, a virada da opinião pública contra

Gregório e o fim do papa - não do conflito

O conflito entre o Império e o Papado continuou se arrastando no século XI. No

inverno de 1080, Henrique reuniu um concílio em Brixen, na Bavária: prelados germânicos e

lombardos que haviam sido excomungados pelo papa, estabeleceram, junto com o rei, nova

deposição de Gregório VII com a justificativa de prática de simonia. Escolheram, então, um

antipapa, o bispo de Ravena113

, Guibert, que tomou o nome de Clemente III114

. O papa

Gregório passou a ser visto por muitos daqueles que o apoiavam como causador de discórdia,

principalmente pela nobreza germânica. Muitos como Pedro Crasso, Benzo de Alba e Guido

Ferrara estavam entre aqueles que tomaram partido do rei e que inclusive escreveram a favor

de Henrique IV115

. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 34-37; PACAUT, 1989, p. 78-79).

O documento resultante daquele sínodo de Brixen apresenta um discurso de

legitimidade em razão das pessoas que tomavam parte dele. A reunião teria acontecido sob o

comando de Henrique IV, com a presença tanto de bispos quanto líderes do exército da Itália

e da Germânia. Os termos eclesiásticos e bíblicos continuam a aparecer por motivos fáceis de

serem compreendidos. A chancelaria real era provida de clérigos fiéis ao rei e, além disso,

obviamente por se tratar de uma deposição do chefe supremo do poder espiritual, a linguagem

113

Conferir carta de Gregório aos bispos do sul da Itália contra Gilberto de Ravena datada de 21 de julho de

1080. (EMERTON, 1990, p. 161-163. Sobre a escolha de Guibert de Ravena para o papado (antipapa, na

verdade), conferir a análise realizada por Melve (2007, p. 311-321). O autor trabalha aspectos de (i)legitimidade

daquele antipapa a partir de pontos de vistas de partidários pontifícios e de defensores régios, considerando o

direito canônico. Ver também MELVE, 2007, p. 488-493. 114

Eleito em 25 de julho de 1080; entronado em Roma em 25 de março de 1084. A coroação de Henrique IV

ocorreu poucos dias depois em 31 de março de 1084. (MELVE, 2007, p. 488). 115

Pedro Crasso, Defensio Henrici Regis (1084); Benzo de Alba, Liber ad Henricum (1085-1086) e Guido de

Ferrara, Sobre o cisma de Hildebrando (1086). Conferir sobre essas obras em Souza; Barbosa, 1997, p. 36-37.

Também há uma profícua análise do debate público da Controvérsia em Melve (2007).

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era própria à situação. De acordo com o texto, a perseguição a Gregório VII se justificava

porque ele havia galgado uma posição sobre os homens por meio de glória vazia, sem

qualquer mérito. Acusaram-no de manter falsas aparências, pois se vestia como monge e não

agia como tal. Todas as acusações, as mais diversas que aparecem no documento foram, em

sua maioria, baseadas nos textos do Novo Testamento. A questão se torna cada vez mais

intensa quando imputam a Gregório a culpa pela morte dos quatro papas que o antecederam

(não cita, mas os papas imediatamente anteriores a Hildebrando foram Victor II, Estevão IX,

Nicolau II e Alexandre II).116

(MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 157-158).

O que chama a atenção no prosseguimento do texto é a versão daqueles bispos (sempre

moderada pelo rei naquele sínodo) sobre a ascensão de Gregório VII.

E contra a vontade do papa Nicolau [parece referir-se ao Decreto de 1059],

um tumulto popular atendeu sua ação, ele [Gregório] forçou sua promoção

ao trono de São Pedro [...]. E então, na mesma noite em que os ritos funerais

do Papa Alexandre eram amorosamente realizados na basílica do Salvador

[22 de abril de 1075]117

, esse, muitas vezes mencionado inoportuno

[Gregório VII], fortificou os portões da cidade romana e as pontes, as torres

e os arcos triunfais, com destacamentos de homens armados. Quando uma

força militar se juntou, como um inimigo, ele ocupou o Palácio de Latrão. E

para que o clero não ousasse a se opor a ele, já que ninguém desejava sua

eleição, ele os amedrontou ameaçando-os com morte, com as espadas

desembainhadas de seus seguidores. Ele saltou sobre o trono recém-deixado

antes que o corpo do homem morto se estendesse na sua tumba. Mas quando

alguns do clero quiseram lembrá-lo do decreto do Papa Nicolau (que foi

promulgado com a ameaça de anátema por cento e vinte e cinco bispos e

com a aprovação desse mesmo Hildebrando e que estabeleceu que alguém se

atrevesse a se tornar papa sem o assentimento do príncipe romano, ele não

deveria ser considerado, por todos, um papa, mas um apóstata), ele negou

que soubesse da existência de um rei em qualquer lugar e asseverou que ele

podia ordenar a anulação dos decretos de seus predecessores. (MOMMSEN;

MORRISON, 2000, p. 158-159).

O texto continua apresentando um homem que destruíra a ordem eclesiástica, alguém

que apoiara um rei considerado traidor, Rodolfo da Suábia. Por todas essas características,

Gregório VII foi considerado pelo sínodo, canonicamente passível de deposição. Foi, então,

condenado e deposto. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 159).

Diante da situação em que se encontrava e com uma considerável parte da opinião

pública contrária a ele, Gregório escreveu uma longa carta ao bispo Herman de Metz 116

“Se instrumento foi veneno administrado pelas mãos de um de seus amigos íntimos, a saber, John Bracitius.

Embora tenha se arrependido tarde demais, enquanto outros mantiveram silêncio, esse ministrante da morte deu

testemunho dessas obras em meio a terríveis prantos, pressionado pela proximidade de sua morte.” (Ver mais

sobre essa acusação nos comentários de MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 158, na nota de número 68). 117

Ver também o registro oficial da ascensão de Gregório VII no já citado documento em EMERTON, 1990, p.

1.

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(15/03/1081). Era a segunda missiva que enviava àquele bispo falando sobre os motivos da

nova excomunhão de Henrique IV. O texto possibilita o estudo de teorias políticas daquele

momento, sob a ótica pontifícia, bem como o entendimento da construção de representações

que abarcavam o campo religioso e eclesiológico com forte sentido político. As percepções

políticas estabelecidas no texto dependem da compreensão acerca de estruturas e hierarquias

eclesiásticas. Já mencionamos esse documento anteriormente, e ele é imprescindível para

analisar as imagens do papa, da igreja e do rei, para aquele pontífice. Vejamos alguns trechos

da polêmica carta que retoma questões abordadas nos Dictatus Papae:

Gregório, servo dos servos de Deus, [saudação]. Tu nos pedes que te

ajudemos e de te apoiemos contra a loucura daqueles que palram com a boca

sacrílega, dizendo que a autoridade da Santa Sé Apostólica tanto não tinha o

poder de excomungar o rei Henrique, homem que não faz caso da lei cristã,

destruidor de igrejas e do Império, fautor e companheiro dos hereges, assim

como a faculdade de libertar qualquer pessoa do juramento de fidelidade que

lhe tinha sido prestado. Não nos parece necessário refutar esses pontos, visto

que na Sagrada Escritura há inúmeras e convincentes provas a tal respeito.

[...] Porventura a dignidade real, instituída por leigos, ignorantes das coisas

divinas, não está subordinada àquela que a Providência de Deus estabeleceu

para sua honra e gratuitamente ofereceu ao mundo? [...] Quem ignora que

os reis e os príncipes descendem de pessoas desconhecedoras de Deus?

Quem não sabe que se exaltam a si próprios relativamente aos

semelhantes, através do orgulho, do saque, da traição, do assassinato,

em suma, graças a toda a espécie de crimes, instigados por Lúcifer,

príncipe deste mundo? Quem desconhece que tais pessoas são cegas,

movidas pela avareza, e que são igualmente escravas do orgulho e de

uma presunção intolerável? [...] Na verdade, todos os reis e príncipes deste

mundo, que não vivam piedosamente e nas suas ações não se revelem

tementes a Deus, estão infelizmente dominados pelo jugo de Lúcifer e se

encontram numa servidão miserável. [...] Decerto não causa grande espanto

o fato de maus bispos concordarem com um rei iníquo, a quem amam,

temem e seguem por causa das honrarias que dele indignamente receberam.

Tais pessoas, ao ordenarem simoniacamente qualquer indivíduo, vendem

Deus até mesmo por um valor desprezível. [...] Fizemos referência aos reis e

imperadores que, inchados pela vanglória, não exercem o poder conforme a

vontade de Deus, mas em benefício próprio. [...] Por isso, enquanto tais

monarcas não se arrependerem de todo o coração e não largarem tudo o que

adquiriram derramando sangue, sua penitência aos olhos de Deus não

produzirá os frutos da verdadeira contrição. Convém, pois, que sejam

cautelosos e recordem sempre o que acima dissemos: desde os primórdios do

mundo, em todos os reinos da terra, na incontável multidão de reis, muito

poucos foram encontrados verdadeiramente santos. (SOUZA; BARBOSA,

1997, p. 52-61; EMERTON, 1990, p. 166-175). (Grifos nossos).

Gregório enfatiza as conseqüências morais e teológicas de uma divergência com os

princípios da eclesiologia política, segundo Melve (2007, p. 251). Para esse autor, os

opositores do papa são acusados de contrariarem a “correta ordem”, ao combinarem o

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reductio ad absurdum a uma retórica de senso comum. O papa representa-se como o portador

da verdade. Além disso, para o pontífice, os questionamentos daqueles que não entendiam a

nova excomunhão de Henrique não faziam sentido. Todavia, para Robinson (2004, p. 208),

uma das questões centrais dessa carta papal reside no “surpreendente repúdio de Gregório à

ideia de realeza sagrada”. O papa rejeitava118

a “tradicional teologia régia” que defendia que a

ordenação real era divinamente instituída.

Em outra carta emitida pelo pontífice daquele mesmo mês de março de 1081, ao bispo

Altmann de Passau e ao abade Guilherme de Hirschau, há sinais expressivos daquilo que

Gregório acreditava ser o ideal de autoridade régia: o rei cristão deveria ser um vassalo do

papa. Por ocasião da morte de Rodolfo da Suábia (a quem Gregório apoiava em meio o

conflito com Henrique), o papa esperava que o novo rei a ser escolhido fosse “humildemente

zeloso e um profícuo servo da Santa Igreja”. (EMERTON, 1990, p. 180). O rei cristão, dessa

maneira, deveria prestar um juramento de fidelidade ao papa que, segundo Gregório, deveria

ser realizado nos seguintes moldes:

De agora em diante, eu serei vassalo [fidelis] do Santo Apóstolo Pedro e do

seu vigário Gregório que agora vive. E tudo que ele me ordenar com as

palavras “por [sua] estrita obediência”, eu realizarei como serve um homem

cristão. Quanto a regulação das igrejas e terras ou rendimentos dados a São

Pedro pelos imperadores Constantino e Carlos, também todas as igrejas ou

posses concedidas à Apostólica Sé por qualquer homem ou mulher, em

qualquer tempo, e que estejam ou possam estar em meu poder, eu realizarei

acordos com o papa para que eu não incorra no risco de sacrilégio ou

exponha minha alma ao perigo. Pagarei, com a ajuda de Cristo, a Deus e a

São Pedro toda honra e serviço devidos. E no dia em que eu devo primeiro

tomar posse em sua [do papa] presença, eu fielmente darei minha mão como

seu vassalo [miles] e de São Pedro. (EMERTON, 1990, p. 180).

O monge Hildebrando já estava com a imagem bem desgastada com todos os problemas

que vinha enfrentando com o rei germânico. Não só autoridades civis, mas também muitos

bispos se colocaram contra ele em razão das suas intervenções locais e de sua exigência de

obediência a si, o bispo romano, sucessor de Pedro. Nem príncipes ou reis, nem prelados,

mantiveram-se favoráveis às ações de Gregório VII. Barraclough (1972, p. 103) afirma que

somente conseguiu que Guilherme I da Inglaterra se mantivesse em uma “paz difícil” com ele.

Diante dos acontecimentos, o velho bispo romano não pôde mais suportar a

continuidade do embate com Henrique IV. Quando o soberano temporal avançou sobre Roma

118

Conferir nossos grifos na segunda carta ao bispo de Metz.

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para se apossar do território italiano e se fazer coroar imperador (1084)119

na Cidade Eterna

pelo antipapa Clemente III, então, Gregório precisou se refugiar no Castelo de Santo Ângelo.

No entanto, Henrique teve que deixar Roma logo em seguida120

a sua coroação, pois os

normandos se aproximavam. Gregório os tinha como aliados, embora as relações com eles,

naquele momento, não estivessem em sua melhor fase. Roberto Guiscardo, líder normando,

era vassalo da Sé Apostólica,121

mas Gregório precisou “comprar uma aliança”. (EMERTON,

1990, p. 158-160, 183-186; BARRAGLOUGH, 1972, p. 97).

O papa que havia marcado uma época de transformação não só na história eclesiástica,

mas também na sociedade civil ocidental morreu no exílio, em Salerno, em 1085, 25 de maio.

Ele se encontrava quase preso: em poder daqueles que deveriam ser considerados seus

aliados. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 37; BARRACLOUGH, 1972, p. 97). As palavras

que anteciparam a morte de Gregório VII pareciam se atirar das páginas do saltério122

para a

voz cansada resvalando da boca moribunda do velho monge Hildebrando: Dilexi justitiam et

odivi iniquitatem, propterea quod morior in exsili [Amei a justiça e odiei a iniquidade, por

isso morro no exílio]. (PIRENNE, 1942, p. 139).

As palavras justitia e superbia estiveram até a morte presentes nos escritos de Gregório

VII – sempre de maneira antitética. Quando expressava essa antítese, apresentava seu anseio

pelo estabelecimento de um “reino de retidão na terra” suprimindo aquele do “orgulho, da

insolência, da audácia, o reino do anticristo”. (EMERTON, 1990, p. XXIV). Quanto ao

conceito de justitia, Emerton (1990, p. XXIV) questiona e ao mesmo tempo responde: “o que

seria essa retidão de que ele [Gregório] reivindicava ser servo? Era a vontade de Deus. Mas

como essa vontade divina deveria ser realizada?” Isso, o autor afirma que, para Hildebrando,

ocorreria por meio da Igreja estabelecida por Deus e através de sua cabeça, São Pedro e seus

sucessores. Tudo o que era favorável à Igreja Romana cabia na percepção de justitia, mas o

que fosse a ela contrário era consequência de superbia.

Quando as cortinas da vida de Gregório se fecharam, ele estava longe da Cidade Eterna

e do Palácio de Latrão. Estava afastado do palco em que interpretara o maior papel da sua

119

A primeira carta de Henrique a que tivemos acesso e por meio da qual se autodenomina imperador é do ano

de 1084. Conferir MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 165. Trata-se de uma missiva ao bispo Teodorico de

Verdun. 120

Um mês depois. Conferir MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 117. 121

Conferir os seguintes documentos: o juramento de fidelidade do Duque Roberto Guiscardo ao papa Gregório

VII, a investidura do duque pelo papa e o consentimento de Roberto Guiscardo em pagar tributos à Sé Romana

(todos de 29 de junho de 1080); carta de Gregório ao Abade Desidério tratando das negociações com Guiscardo

(maio de 1081) e outra carta do papa ao normando lembrando-o de sua dívida com São Pedro (18 de outubro de

1081). Todos esses documentos encontram-se EMERTON, 1990, p. 158-160, 183-186. 122

“Amas a justiça, detestas o mal, por isso Deus, teu Deus, te ungiu com um óleo de alegria, de preferência a

teus companheiros”. (SALMO 45(44), 8. BÍBLIA, 1995).

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vida, o de sucessor de São Pedro. Encontrava-se distante da Sé Apostólica a que dedicou sua

vida e empregou até suas derradeiras forças para libertar do controle temporal. Isso havia lhe

custado muito. Gregório morreu sem platéia e sem que o dramático conflito entre o Império e

o Papado chegasse ao fim. Somente em 1122, é que o sucessor de Henrique, seu filho

Henrique V e o papa Calisto II firmaram a Concordata de Worms colocando, talvez, não um

fim, mas estabelecendo uma trégua nos conflitos entre o Regnum et Sacerdotium.

É essencial pensar, na esteira de Leyser (1994, p. 48-49), que o século XI foi basilar

para a transformação da história do Império Romano Germânico e da Igreja por motivos que

abrangeram tanto o campo das representações quanto às situações cotidianas práticas. Embora

muitos historiadores optem pela indiferença a esses aspectos, foram dois movimentos que

provocaram a expressiva mudança no poder temporal em meio às crises na Germânia.

Podemos nomear, em primeiro lugar, a reforma papal que recusou as percepções de realeza

defendidas pelos Otônidas e, em segundo, a revolta dos saxões, antes aliados, que arruinou a

sua prática.

3.4 Finda a guerra, mas a Contenda se arrasta século XII adentro

O intervalo entre a coroação de Henrique (1084) e sua morte (1106) foi marcado por

anos de grandes conflitos. O imperador enfrentou momentos difíceis, inclusive com o próprio

filho, Henrique V. Além disso, mesmo depois da morte de Gregório VII, seus problemas com

a Igreja não haviam terminado. Os pontífices que sucederam a Gregório continuaram com o

projeto reformista e com a luta contra a simonia – que há muito era vista como uma heresia

resultante da investidura laica. Nas lides temporais, Henrique buscava justificar suas ações em

relação à Igreja e a Roma. Isso porque, embora a reputação de Gregório tivesse perdido força

em razão da segunda excomunhão do rei e essa questão ter acirrado a guerra civil na

Germânia, havia um grupo conservador muito forte favorável ao pontífice.

Em carta ao bispo Teodorico de Verdun (1084), Henrique usou de vários argumentos

de legitimação para explicar a tomada de Roma naquele ano, ocasião em que fora coroado

imperador e em que ocorrera a consagração de Clemente III. O antipapa henriquiano havia

sido eleito no Sínodo de Brixen (1080) convocado pelo imperador.

Entramos em Roma no dia de São Benedito [21 de março e se trata do ano

de 1084] [...]. Quando estávamos pensando em retornar ao território

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germânico, já sem esperança de tomar Roma, veja, os romanos enviaram

emissários, pediu-nos que entrássemos em Roma e prometeu-nos obedecer

em todos os aspectos. [...] Eles nos auxiliaram com o maior zelo; quando os

deixamos eles nos seguiram com grande triunfo e fidelidade. Em resumo,

podemos dizer, confiando em Deus, que toda Roma está em nossas mãos,

com exceção do castelo onde Hildebrando estava trancado – a saber, a casa

de Crescentius [Castelo de Santo Ângelo]. (MOMMSEN; MORRISON,

2000, p. 166).

Henrique busca, com o trecho acima, legitimar a tomada de Roma com o argumento

da aceitação dos romanos. Na sequência, outro instrumento de legitimação aparece no

discurso do soberano: a queda de Gregório VII por vontade de todos os cardeais e de todos os

romanos, a consagração de Guibert de Ravena como papa e sua própria sagração como

imperador.

Saiba que esse Hildebrando foi subjugado pelo julgamento legal de todos os

cardeais e de todo o povo romano e que Clemente foi eleito nosso papa e

exaltado à Sé Apostólica pela aclamação de todos os romanos. Saiba

também que fomos ordenados pelo Papa Clemente e, com o consentimento

de todos os romanos, fomos consagrados como imperador no Dia Santo da

Páscoa [31/03/1084], com a exultação de todo o povo romano. Quando tudo

isso terminou, com a benção de Deus e de São Pedro, retiramo-nos de Roma

[...] estamos aqui pela vontade de Deus! (MOMMSEN; MORRISON, 2000,

p. 166). (Grifos nossos).

As representações da majestade imperial aparecem na missiva, suportadas pela crença

no caráter sagrado do soberano. A propósito, esta última carta citada foi a primeira das que

tivemos acesso, e a que já fizemos referência, que traz a mudança no protocolo régio: “Rei

Henrique, pela Graça de Deus Imperador dos Romanos e Augusto”. (MOMMSEN;

MORRISON, 2000, p. 165).123

Outros documentos mostram que o imperador continuou a enfrentar os antigos

problemas das investiduras com os papas que sucederam Gregório VII. Entre eles, tanto

Urbano II (1088-1099)124

quanto Pascoal II (1099-1118) possuíam uma posição contrária às

nomeações laicas. Apesar de manter esse posicionamento quanto ao propósito reformista, não

objetivavam, como Gregório, o governo de reinos. (BARRACLOUGH, 1972, p. 106-107).

Além disso, as questões com a Saxônia continuavam. Mas Henrique buscava consórcios para

se fortalecer e enfrentar tais dificuldades. Um exemplo disso corresponde ao casamento que

123

As outras cartas que aparecem depois desta trazem a intitulatio e a formula de devoção diferentes: “Henrique,

pela graça de Deus Imperador Augusto dos Romanos”. (Conferir MOMMSEN; MORRISON, 2000). 124

Antes houve Victor III (1086-1087). Conferir BARRACLOUGH, 1972, p. 105-106.

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ele arranjou para si mesmo com uma princesa de Kiev125

, com o objetivo de criar laços

naquela região norte da Saxônia, que favorecessem sua campanha contra a “facção

gregoriana” que, apesar da morte de Gregório VII, continuava com seu projeto reformista.

(ROBINSON, 2004, p. 269). Dessa maneira, com o fim da vida do monge Hildebrando,

acabou-se a guerra entre Gregório VII e Henrique IV, mas não o conflito que se estendeu,

como dissemos, até a Concordata de Worms em 1122.

Em tempo, talvez seja válido dar relevância ao significado do período que abarcou o

pontificado de Urbano II no que tange à guerra propagandista que se deu, no tempo de

Gregório VII, entre as chancelarias pontifícia e régia. A década de 1090 foi considerada por

alguns estudiosos como uma era de transição entre os debates acalorados do decênio anterior

e as transformações que ocorreram no discurso das autoridades temporal e espiritual no

período que antecedeu a Concordata de Worms.126

Entre os indicadores dessa transição,

destaca-se a inexistência de cartas de características polêmicas da chancelaria régia, como

aquelas escritas no auge do conflito entre papa e rei (Gregório VII e Henrique IV). Tampouco

a chancelaria pontifícia produziu tantas cartas com caráter propagandístico como o fizera

durante o papado hildebrandino.127

(MELVE, 2007, p. 424).

No final do século XI, há vestígios de que Henrique buscou dar novo rumo ao seu

reinado. Sua aceitação entre os súditos diminuíra. No que tange à Sé Romana, Urbano II havia

conseguido restabelecer as boas relações entre o papado e várias casas reais do Ocidente.

Suportado pela cavalaria, com exceção de Henrique IV, o papa conseguira realizar em 1096, a

Primeira Cruzada. O imperador germânico aparecia como o único que colocava empecilho no

estabelecimento da paz na sociedade cristã ocidental128

. (BARRACLOUGH, 1972, p. 107).

125

O nome da nobre escolhida aparece pelo menos de três maneiras na bibliografia a que tivemos acesso:

Robinson (2004, p. 269) assegura que, em sua terra, a princesa tinha o nome de Eupraxia. Na Germânia, ela era

conhecida como Adelaide. No entanto, Mommsen; Morrison (2000, p. 170) registraram em sua tradução inglesa

o nome Praxedis, apesar da origem russa da princesa. 126

Período coincidente com os pontificados de Pascoal II e Calisto II, contando como ponto final a Concordata e

não o fim do pontificado deste último papa (1099 – 1122). 127

Melve afirma que estudiosos apenas têm considerado três documentos, originados da chancelaria pontifícia,

com atributos polêmicos: “a correspondência ao rei Ladislau de 1096, a carta ao bispo Gebhard de Constância e

aquela a Lucius, prepósito [dirigente] de São Iuventius de Pávia, sobre simonia”. Conferir a análise de outros

indicadores em MELVE, 2007, p. 424. 128

Mais uma vez, os polemistas utilizaram do discurso da tirania para piorar a imagem de Henrique IV ante seus

súditos e aliados. Além dessa questão ligada às relações com o papado, os opositores do imperador se

aproveitaram da controversa relação conjugal com a imperatriz Adelaide (Eupraxia ou Praxedis). O problema

familiar datou de 1094, quando a mulher com quem havia ficado casado por quase cinco anos uniu-se com seus

adversários. Isso foi usado largamente pela propaganda oposicionista. Não havia preocupação com a verdade do

que era contado. A posição de Adelaide foi tomada como uma deserção e as histórias sobre o assunto foram

disseminadas de maneira ampla. A imperatriz havia desertado em razão das condições em que se encontrava sob

a tirania de Henrique. O imperador desconfiava da fidelidade da esposa e, portanto, a trazia prisioneira em seu

entourage. De acordo com Robinson, há evidências da ausência daquela imperatriz nos documentos imperiais. O

nome de Bertha de Turim (primeira esposa de Henrique) havia sido mais presente, inclusive nos diplomas

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Antes, esse predicado havia sido atribuído a Gregório VII, notadamente quando a guerra civil

alastrou-se pela Germânia com intensas influências da controvérsia entre o reino e o papado.

Diante de uma abstrusa situação dentro do próprio reino e com seu filho Henrique V que se

rebelara contra ele em razão desses conflitos, Henrique tentou entrar em acordo com a Sé

Apostólica. Várias cartas do imperador mostram essa tentativa, a partir de 1100, depois da

morte de Clemente III (08/09/1100). O imperador asseverava que a “Sé Romana deve ser

organizada e um método usado para remodelar a unidade eclesiástica”, que, até aquele

momento, encontrava-se separada. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 175-176).

Depois desta última carta, quase todas as que se seguiram fazem referência à tentativa

de restabelecer a paz com a Igreja e com o papado. Henrique almejava “trabalhar de todos os

modos pela reparação dos negócios eclesiásticos que (ai de mim! [Ou] meu Deus!) haviam

sido arruinados na nossa [sua] época por causa de nossos [seus] pecados.”129

Nesta missiva, o

imperador também considerava a possibilidade de ir a Jerusalém assim que a paz com o

papado fosse instituída. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 177). O uso desse discurso de

ir à Terra Santa para, talvez, confirmar a paz entre o império e o papado era bem atual para

aquele contexto. Como já mencionamos em outro momento, havia alguns anos que o tema

sobre as cruzadas estava presente nos assuntos ligados ao rei, ao papa e à cavalaria. Citamos

até duas cartas de Gregório VII que tinham como objeto o plano gregoriano de livrar os

cristãos orientais dos “assassinos pagãos”. (EMERTON, 1990, p. 56-58, 60-61). Esta carta de

Henrique que analisamos agora é de 1102 e lembremos que a Primeira Cruzada – encabeçada

não por um rei, mas pelo papa Urbano II que comandou um grande número de nobres

cavaleiros ao Oriente – já havia ocorrido e ele, o imperador, não participara.

O discurso de Henrique sobre seu anseio de promover a unidade da Igreja aparece

desde então em todas as cartas do imperador que analisamos. Entre 1100 e 1106 – ano de sua

morte – várias missivas foram emitidas para bispos (1103, 1105), ao Abade de Cluny (Hugo)

imperiais. Robinson deduz que “sua quase total invisibilidade sugere que ela logo perdeu ou talvez nunca tenha

ganhado a confiança do imperador, o que pode ter sido uma das considerações que induziram sua fuga”. A

condessa Matilde a ajudara fugir, por meio de uma “pequena força” enviada a Verona, onde se encontrava.

Quando se viu liberta e protegida em meio aos adversários de Henrique, a imperatriz relatou todas as sevícias

que sofrera. De acordo com a crônica de Bernold, citada por Robinson, Adelaide “reclamou que ela havia sofrido

muitos inauditos atos impuros de fornicação que levaria até seus inimigos a perdoá-la de sua fuga (do marido) e

moveria todos os católicos à compaixão por suas grandes injúrias”. Ela teria declarado isso no sínodo de

Constance e no concílio de Piacenza, chegando a levar suas reclamações ao papa Urbano II. Para Robinson, os

estudiosos modernos nunca levaram a sério essas declarações da imperatriz, em razão de conhecerem a

propaganda daquele século (XI) que utilizava de ficções para convencer seu público, sem prestar atenção no que

era fato ou não. O nome de Eupraxia desaparece logo das fontes ocidentais, mas aparece nas russas com

referências à vida religiosa tomada pela imperatriz, em Kiev, depois da morte de Henrique IV. Ela morreu no

verão de 1109 (10 de julho). (ROBINSON, 2004, p. 289-291). 129

Carta ao Abade Hugo de Cluny em que Henrique “declara sua vontade de restaurar a ordem da Igreja e curar

o cisma que ele mesmo havia causado”. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p.176-178).

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(1102, 1106), ao rei da França (Felipe I) (1106), ao filho Henrique V (1106) e ao próprio papa

Pascoal II (1105). Em todos esses documentos há alguma referência ao desejo de retornar ao

seio da Igreja. O contexto de conflitos, especialmente com o filho que havia se rebelado em

1104 corresponde a um dos motivos dessa tentativa de pacificação com o papado. Henrique V

havia se aliado ao partido do papa que retirou dele a excomunhão por ter se relacionado com o

pai excomungado. Depois de retirado o anátema recaído sobre ele, o filho de Henrique IV se

recusava a se relacionar com o pai. O imperador tentou se reaproximar do filho, enviando

emissários (os arcebispos de Colônia e de Trier, bem como seu genro, o Duque Frederico, da

Suábia) para fazer, a todo custo, a reconciliação. A tentativa foi mal sucedida: Henrique V se

negava lidar com o imperador excomungado. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 180-181;

ROBINSON, 2004, p. 325).

Assim sendo, o insucesso na reconciliação com o filho levou Henrique a escrever a

Pascoal II buscando restaurar as boas relações com o papado. O imperador reclamava dos

papas anteriores e de Henrique V que havia se rebelado contra ele:

Com Deus como nossa testemunha, nós sinceramente desejamos tal

reconciliação mesmo nos dias passados, mas quando a extrema aspereza

daqueles que estavam na Igreja romana [Gregório VII e Urbano II] ficou

conhecida, não nos pareceu conveniente ou adequado vir ter com eles com

esse propósito. Na verdade, eles pareciam nos perseguir mais com ódio e

indignação que com zelo e justiça. [...] Agora também nosso filho, quem

amamos com tão grande afeição que o exaltamos ao trono de nosso reino, foi

infectado por esse mesmo veneno e se rebelou contra nós por conselho de

alguns dos mais pérfidos traidores que aderiram a ele. [...] Nós lhe enviamos

esse mensageiro, portanto, com nossa legação por conselho e sugestão de

nossos príncipes, aqueles homens religiosos que o amam. Por meio dele,

almejamos descobrir se deseja se juntar a nós e nós a você em amor e

amizade, com todo respeito à honra da realeza e do império, e de sua

completa dignidade [...]. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 180-182).

A última frase nos faz notar que Henrique buscava, como ele mesmo falou, “paz e

harmonia” com o papado, mas sem abrir mão dos seus antigos direitos de nomear os bispos. A

“honra da realeza e do império” deveria ser mantida. Pascoal negou o pedido de Henrique.

Em 1106, em cartas ao Abade de Cluny, seu padrinho Hugo, continuava a falar sobre a

negociação da reconciliação com o papa. Das últimas cartas do imperador: nas destinadas a

Hugo de Cluny, Henrique pedia ajuda; nas outras, inclusive a remetida a Felipe I, pode-se

perceber uma guerra propagandista contra o reinado de Henrique V. (ROBINSON, 2004,

p.333-341). Se Henrique fosse Saul, Gregório VII seria Samuel. Mas se aquele imperador dos

romanos fosse Davi, como muitos de seus partidários consideravam, Henrique V seria

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Absalão. (ROBINSON, 2004, p. 347). No entanto, há uma grande diferença: na história

veterotestamentária, o filho rebelado de Davi morreu antes dele. (Conferir 2SAMUEL 18, 1-

17).

Henrique adoeceu e morreu em pouco tempo, em 07 de agosto de 1106, em meio ao

conflito com o filho e sem receber o perdão do pontífice. Seu último desejo de ser enterrado

na Catedral de Speyer junto a seu pai, Henrique III, só foi realizado anos mais tarde (07 de

agosto de 1111). (ROBINSON, 2004, p. 343). No entanto o conflito entre o Império com o

Papado se arrastou com Henrique V (1106-1125) e Pascoal II. O papa resolveu o problema

das investiduras com o soberano capetíngio, Felipe I, na França, em 1107. Mas, com o

herdeiro germânico, desde que havia tomado o lugar do pai, estabelecer um acordo e por

termo nessa controvérsia não parecia tarefa fácil.

A primeira tentativa de Pascoal II de estabelecer um acordo com Henrique V foi em

1111 e ele não se efetivou. Houve um tratado que papa e rei fizeram naquele ano por meio do

qual ambos faziam concessões: para a obtenção da coroa de imperador, Henrique deveria

renunciar ao “direito” de investir; de outro lado, o papa se comprometia a obrigar os

investidos anteriormente a devolver as possessões materiais (regalia) sob pena de serem

excomungados. O acordo não foi adiante em razão da desaprovação dos bispos que se

recusaram a abdicar de seus feudos. Dessa maneira, como Pascoal II não pode cumprir o

recém-tratado, Henrique V não renunciou às investiduras. Por esse motivo, o papa não coroou

o rei germânico e acabou sendo sequestrado, preso com os prelados que o acompanhavam. O

papado ficou enfraquecido em razão da situação do cativeiro do pontífice (entre fevereiro e

abril de 1111). O bispo romano foi compelido a fazer novo acordo que favorecia Henrique

(incluindo sua coroação imperial) em troca da libertação de Pascoal e dos cardeais. O resgate

papal custou caro à Sé Romana: o conflito entre partidos se ampliou consideravelmente.

(ARAÚJO, 2011, p. 74-75).

Foi somente pela Concordada de Worms, em 1122 (23 de setembro) que os direitos de

investir foram (re)definidos. Seguem os textos, sendo que o primeiro constituiu a promessa de

Henrique entregue aos emissários pontifícios – os mesmos cardeais que efetivaram, em nome

de Calisto II, o pacto (segundo documento) entre o Sacerdócio e o Império. (RUST, 2011, p.

316-318). Vejamos os termos dos documentos.

Privilegium Imperatoris (Henrique V) Em nome da santa e indivisível

Trindade, Eu, Henrique, pela graça de Deus, augusto imperador dos

romanos, pelo amor de Deus e da Santa Igreja Romana e de nosso papa

Calixto e pela salvação de minha alma, cedo a Deus e a seus santos

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apóstolos Pedro e Paulo e à Santa Igreja Católica toda a investidura com anel

e báculo e concedo que em todas as igrejas existentes no meu reino e no meu

império realizem-se eleições canônicas e consagrações livres. Restituo à

mesma Santa Igreja Romana as possessões e os privilégios do bem-

aventurado Pedro que lhe foram arrebatadas desde o começo dessa

controvérsia até hoje, já no tempo do meu pai, já no meu que eu possua, e

proporcionarei fielmente minha ajuda para que sejam restituídas as que ainda

não foram. Devolverei igualmente, de acordo com o conselho dos príncipes e

a justiça, as possessões de todas as demais igrejas e dos príncipes ou dos

clérigos ou leigos perdidas nesta guerra e que estão em minhas mãos; para

as que não estão, proporcionarei meu auxílio para que sejam restituídas. E

asseguro uma sincera paz a nosso papa Calixto e a Santa Igreja Romana e a

todos os que são ou foram de seu partido. Fielmente darei minha ajuda

quando a Santa Igreja a reclamar e renderei a ela a devida justiça.

(PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p. 132) (Grifos nossos).

Privilegium Pontificis (Calixto II) Eu, Calixto, bispo, servo dos servos de

Deus, concedo a ti, querido filho Henrique, pela graça de Deus, augusto

imperador dos romanos, que tenham lugar em sua presença, sem simonia e

sem nenhuma violência, as eleições de bispos e de abades da Germânia que

incumbem ao reino; e que se surgir qualquer causa de discórdia entre as

partes segundo o conselho e o parecer do metropolitano e dos eleitores, dês

teu conselho e ajuda à parte mais justa. O eleito receba de ti as regalia por

meio do cetro e em razão disso realize o que a justiça te deve. Quem seja

consagrado nas restantes regiões do Império, pelo contrário, receba de ti as

regalia no espaço de seis meses por meio do cetro e por este cumpra,

segundo a justiça, seus deveres ante ti, guardando todas as prerrogativas

reconhecidas à Igreja Romana. Segundo o dever de meu ofício, ajudar-te-ei

no que de mim depender nas coisas em que me reclames ajuda. Asseguro-te

uma paz sincera a ti e a todos os que foram do teu partido durante esta

discórdia. (PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p. 132) (Grifos nossos).

Ambas as partes fizeram concessões, abdicaram de direitos que acreditavam pertencer

à sua autoridade ou ao que ela representava. Souza conclui que o acordo pôs fim no conflito e

livrou a Igreja “definitivamente do cesaropapismo130

germânico”. Além disso, houve ainda,

na visão do autor, um fortalecimento da autoridade papal no que diz respeito à política e um

crescimento do “prestígio moral” dos pontífices. Por último, Souza afirma que foi também

consequência do Conflito das Investiduras o enfraquecimento do poder dos “dignitários

eclesiásticos e senhores feudais germânicos” que “perderam a anterior parcela considerável da

influência político-social que exerciam sobre o território imperial”. (SOUZA; BARBOSA,

1997, p. 37-38). Os termos do acordo talvez tenham dado uma trégua no Conflito das

Investiduras, mas não se pode assegurar o seu fim categórico, definitivo. As concessões que

Papado e Império tiveram que fazer demonstravam a fragilidade do ajuste. Foram anos de

130

Grosso modo, cesaropapismo corresponde à teoria que diz sobre as pretensões imperiais de dominação sobre

soberanos temporais e também sobre o pontífice romano. Conf. RIBEIRO, 1998, p. 93.

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desencontros entre os poderes temporal e espiritual e não era possível modificar práticas tão

frequentes para ambas autoridades com aquele pacto. A questão envolvia as práticas do

soberano com a Igreja imperial durante muito tempo.

Por meio do documento elaborado em Worms, o imperador renunciava à nomeação pelo

báculo e pelo anel. Lembremo-nos que a simbologia desses dois signos para o prelado que os

recebia – representavam o papel pastoral dos bispos. Eram ferramentas usadas para a

condução das ovelhas de Deus ao caminho reto e justo, rumo ao céu. Outra questão

estabelecida entre imperador e papa concerniu ao processo eleitoral dos prelados daquele

reino. A partir de então, os bispos e abades deveriam ser eleitos sem que fossem maculados

com a “heresia simoníaca” e sem o uso de práticas violentas. Esse direito de investir as

autoridades eclesiásticas germânicas passava a ser papal, no entanto deveria ser realizada a

nomeação na presença do soberano imperial. Tanto bispos (depois de eleitos pelos clérigos

locais) quanto abades (após serem escolhidos pelos monges de seu respectivo mosteiro)

deveriam ser, então, ratificados pelo pontífice romano. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 37).

Depois de investidos pelo papa, os prelados receberiam, a partir do pacto de Worms, a

regalia131

através do toque pelo cetro do imperador ou por aquele a quem ele houvesse

delegado a função. Robinson (2008, p. 298-299) afirma que um dos corolários desse acordo

foi que a “Concordata de Worms abandonou o princípio gregoriano de que a regalia era parte

da propriedade eclesiástica pertencente ‘perpetuamente a Cristo’ e admitiu o caráter feudal da

regalia.” Para o autor, o papa Calisto II (1119-1124) havia aproveitado a oportunidade para

um tratado pacífico e para efetivar o fim do Conflito das Investiduras no momento em que o

imperador Henrique V se encontrava fraco politicamente na Germânia. No entanto, o

estabelecimento da paz entre os dois poderes não significou a efetivação dos planos

reformistas que deram ensejo à dita controvérsia. O sentido dessa trégua concerniu apenas na

extinção da cerimônia em que o rei ou imperador investia os prelados por meio do anel e do

báculo. Essa investidura agora era um direito pontifício.

Em análise mais recente, Leandro Rust efetua uma revisão dessa historiografia que

realça o caráter definitivo da Concordata de Worms ou, como ele prefere chamar, do Pactum

Calixtinum. Para o autor, os textos resultantes do acordo deixaram “numerosas arestas ainda

131

A regalia correspondia aos direitos temporais de um rei concedidos a um prelado no momento da investidura.

A recepção desses privilégios materiais dava ao bispo favorecido o caráter de fidelis (mencionamos o sentido

deste termo anteriormente) daquele soberano que fez a concessão. Uma definição mais precisa de regalia

aparece em contraposição ao termo ecclesiastica, na tentativa de Pascoal II de efetivar um acordo com Henrique

V em 1111, citada por Robinson (2008). Na verdade, a significação dos dois termos aparece na distinção dois

tipos de propriedade eclesiástica que pertenciam ou que não pertenciam ao reino: “Regalia eram cidades,

ducados, marcas, condados [...] pertencentes ao reino’. Ecclesiastica eram as doações e possessões hereditárias

que manifestamente não pertenciam ao reino. (ROBINSON, 2008, p. 297).

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para aparar”. Rust sinaliza, por exemplo, para o fato de a concordata silenciar acerca de um

dos principais motivos do conflito entre o Papado e o Império: a questão atinente à natureza

sagrada ou laica da realeza. Além disso, considera que o pacto não foi mais do que “uma

acomodação criada por ensinamentos práticos” em vez de “solução jurídica” do conflito.

(RUST, 2011, p. 318-319). O estudioso caracterizou o acordo dos cardeais representantes de

Calisto II e o rei Henrique V assim:

Era um ajuste entre permissões e renúncias toleráveis: o pontífice entregava

a um “poder laico” parcelas substanciais de obediência episcopal e

monástica; a coroa imperial, por sua vez, abdicava ao “direito hereditário” de

dispor da transmissão do anel e báculo pastorais. Apostar nesse jogo de

concessões para pôr um fim nos desentendimentos acerca das investiduras

era uma constante132

nas ações de poder pontifício há quase duas décadas.

(RUST, 2011, p. 319).

Além da relação de parentesco entre Calisto II133

e Henrique V que, certamente,

favoreceu as, não menos difíceis por isso, negociações entre os dois poderes, Rust (2011, p.

321) realça um ponto notável naquele contexto: o papado havia estabelecido alianças com os

poderes regionais o que facilitou a efetivação da concordata. Esses pactos regionais

colaboraram consideravelmente para o enfraquecimento da “reivindicação imperial de um

‘direito hereditário’ às investiduras”. Nessa perspectiva, para o autor, a Concordata de Worms

teve como consequência um fechamento do conjunto de compromissos firmados com os

soberanos locais nos assuntos atinentes à administração do poder eclesiástico. Além disso,

deu novo norte à política pontifícia:

Segundo a historiografia [...], eles estavam livres para depositar maior ênfase

sobre os assuntos internos da hierarquia eclesiástica, como a formação dos

sacerdotes, o entrosamento com os poderes laicos, a amplitude das isenções

monásticas, os fundamentos teológicos das práticas sacramentais e de certas

controvérsias doutrinárias. Além disso, o pacto teria realinhado as

concepções acerca das relações entre o regnum e o sacerdotium, não mais

antagonistas, mas aliados. (RUST, 2011, p. p. 321).

132

Quando se refere a essa constância nas concessões pontifícias, Leandro Rust o faz destacando alguns acordos,

cada um em situação específica, com o normando Henrique I (da Inglaterra), o capeto Felipe I (da França) e o

húngaro Coloman (Dalmácia, Croácia e Eslovênia) – todos eles no período pontifical de Pascoal II. Esses ajustes

feriam decretos de Gregório VII e Urbano referentes às investiduras. Conferir em detalhes a análise em RUST,

2011, p. 319-321. 133

Em que pese esse parentesco, o arcebispo Guy de Vienne (antes de se tornar o papa Calisto II) já havia

entrado em conflito com Henrique V. O prelado havia organizado um sínodo (1112) na região sul francesa em

que declarou excomungado o rei. Isso se deu por ocasião do sequestro de Pascoal (fevereiro a abril de 1111) e

pela coroação imperial forçada de Henrique. Na ocasião, o papa de então ratificou a decisão do arcebispo.

(ARAÚJO, 2011, p.75-76).

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Desse modo, o Pactum Calixtinum também teria resultado em um problema

significativo para a Igreja no início dos anos 30 do século XII: um longo cisma interno. Entre

1939 e 1972, houve pesquisadores que deram importância primária ou secundária ao acordo

de 1122 para a divisão ocorrida entre os cardeais em 1130. O conflito teria se dado entre

aqueles cardeais integrados à cúpula romana pelos papas Urbano II e Pascoal II e aqueles que

ascenderam com Guy de Vienne (Calisto II) e depois com Honório II. Os primeiros eram

antigos cardeais que compunham uma ala conservadora e defendiam as acepções hierocráticas

da autoridade eclesiástica defendidas por Gregório VII e, portanto, contrários ao acordo de

Worms. Os outros eram aqueles do novo cardinalato que “viam na aproximação com o

império um meio para reformas mais amplas da organização eclesial”.134

Essa visão de Hans-

W. Klewitz (1939), trazida por Rust, serviu de base para os historiadores que seguiram

estudando o tema no decurso do século XX. Talvez um dos poucos pesquisadores que tenham

reduzido a significância da Concordata de Worms para valorizar conflitos políticos locais

tenha sido Pier Palumbo (1942) cujas ideias foram retomadas bem mais tarde. Posteriormente,

Schmale (1960 e seguintes) não só realça como amplifica a análise de Klewitz. O acréscimo

introduzido por Schmale relacionava a fenda no cardinalato a questões ligadas a diferentes

acepções de espiritualidade. Nessa percepção, o problema residiria na diferença entre as

ordens religiosas reformadoras: as decadentes seguidoras da regra beneditina ortodoxa como

os mosteiros de Monte Cassino e de Cluny contra as ordens reformadoras em clara ascensão

como, por exemplo, aquelas de Císter e da Cartuxa. Dessa maneira, a rachadura cardinalesca

de 1130 “tratou-se da manifestação institucional de uma colisão de grandes correntes

reformadoras”, sem ignorar os problemas políticos locais que, posteriormente voltaram a

ganhar tanta importância que acabaram por suplantar a relevância do acordo de 1122. (RUST,

2011, p. 321-324).

Na perspectiva imperial, pela análise de Araújo, depois da Controvérsia das

Investiduras, a coroa saiu debilitada135

buscando meios de se legitimar ou – talvez seja melhor

dizer – de “uma nova legitimidade”. O acordo de Worms havia solapado o

Reichskirchensystem – o “sistema da igreja imperial” – que serviu de coluna para as cabeças

coroadas do Império dos Otonianos e também dos Sálios. Não era mais legítimo ao rei (ou ao

134

O motivo imediato do conflito foi a eleição papal que provocou um cisma. De um lado, foi escolhido (pelas

bases cardinalícias mais jovens) Inocêncio II e de outro o eleito (pelos prelados mais antigos, ligados às

percepções gregorianas) foi Anacleto II. Conferir RUST, 2011 e também ARAÚJO, 2011, 84-85. 135

A exemplo desse enfraquecimento da coroa imperial, podemos perceber no mesmo texto de Araújo as

eleições reais que sucederam, imediatamente, a Henrique V (morreu doente em 23/05/1125). Antes de Frederico

Barbarossa, os príncipes germânicos escolheram à vontade, ao menos duas vezes (Lotário III e Conrado III),

aquele que melhor lhes representariam, sem dar relevo a prosseguimentos dinásticos. Conferir mais detalhes

ARAÚJO, 2011, p. 80 e seguintes.

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imperador), pela Concordata de 1122, exercer o controle sem intermediários sobre os prelados

(episcopais e abaciais) no que concernisse às perspectivas espirituais e de sacramento. Seu

domínio a partir de então seria indireto, segundo Araújo, por meio de “laços feudais presentes

nas bases da Concordata”. Dessa maneira, o elo entre rei e bispos correspondia apenas às

regalia que faziam dos prelados, por meio da homenagem pronunciada em ato solene ao rei,

príncipes eclesiásticos. (ARAÚJO, 2011, p. 77-79).

Ainda colocando na balança os resultados da Controvérsia das Investiduras, convém-

nos a lembrança de mais uma expressiva conclusão: as transformações no sentido de esfera

pública, a partir da análise de Leidulf Melve (2007, p. 644). Em seu Inventing the public

esphere, o autor lembra o cunho elitista da esfera pública na Idade Média, com ênfase, em sua

obra, para o período da Controvérsia das Investiduras. Esse tipo de elitismo se originava na

atuação da Igreja que monopolizava a Língua Latina numa época que os vernáculos ainda não

tinham emergido. Entre as várias consequências políticas internas e externas à Igreja, houve

também consideráveis modificações nas bases da esfera pública durante o conflito entre o

Regnum et Sacerdotium.

Para corroborar essa afirmação dessas mutações estruturais, Melve (2007, p. 644-659)

analisa vários indicadores136

da existência da “lógica do debate público” – conceito primordial

para se formar a esfera pública, diz respeito à forma pela qual “o debate público se justifica no

fundamento de sua importância funcional” – durante todo o debate acerca das investiduras

entre os partidários régios ou pontifícios. É por meio dessa “lógica” que o autor explica a

transformação de aspectos significativos do discurso. Das fases do conflito consideradas pelo

autor (1030-1073, 1073-1099 e 1099-1122), houve uma evolução de uma esfera pública “não-

institucionalizada e elitista” dependente das polêmicas oficiais para uma mais

institucionalizada e independente da propaganda (pontifícia ou régia). Melve destaca que a

abordagem discursiva sobre o problema das investiduras durante o período caminhou do

aspecto demonstrativo àquele argumentativo. Esclareçamos e pontuemos utilizando alguns

dados de uma tabela organizada por Melve (2007, p. 641):

Entre 1050 e 1085: abordagem discursiva demonstrativa: estabelecimento da visão

ortodoxa da reforma sobre as investiduras. Possui características assimétricas porque é

apresentada de maneira unilateral tendo como expoentes Humberto da Silvacandida e

Gregório VII;

136

Na verdade, foram cinco os indicadores examinados, minuciosamente, por Melve (2007). Neste estudo apenas

deles falaremos em linhas gerais. Vale à pena conferir o texto completo.

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Entre 1085 e 1100: abordagem polêmica: elaboração pelo papado da visão ortodoxa e

contestação régia da visão ortodoxa. Nesta fase de características simétricas, houve

certo equilíbrio entre os discursos pró-rei e a favor do papado. Do lado régio,

destacou-se Guido de Ferrara, enquanto o lado antagonista foi defendido por Deusdetit

e Ivo de Chartres;

Entre 1100 e 1111: nova fase polêmica para a abordagem discursiva. De característica,

novamente, assimétrica. Desta vez, a balança pendeu para o lado régio que elaborava

sua própria posição sobre as investiduras. Os defensores régios que fundamentaram

essa abordagem foram: Sigebert de Gembloux, Hugo de Fleury, o Anônimo Normando

e o texto De Investitura episcoporum.

Por fim, entre 1111 e 1122, há duas fases da abordagem discursiva sobre as

investiduras – ambas argumentativas. A primeira, simétrica (com a De Orthodoxa

defensio Imperialis, a favor do rei e Bruno de Segni e Placidus de Nonantula, como

defensores pontifícios), destaca-se pela elaboração papal da visão ortodoxa valendo-se

do ponto de vista régio. A última fase, a abordagem volta a ser assimétrica porque se

caracteriza pela elaboração papal da visão ortodoxa, com destaque para o texto

Disputatio, para Geoffrey de Vendôme e Hesso de Reims.

Além disso, também há a percepção de opinião pública e de debate público que foi se

alterando, mudanças observadas por Melve nas introduções dos textos da época. No decorrer

do conflito, os escritores (os polemistas) começaram a demonstrar a maneira pela qual se

viam como intelectuais e sua própria visão de opinião pública. Vale lembrar que ao longo do

conflito, notadamente durante o pontificado de Gregório VII, as chancelarias tanto do rei

quanto do papa usaram da propaganda de modo espantoso para defender seus interesses

partidários. Inicialmente, os escritores eram dependentes dessa escrita oficial o que mudou no

curso da Controvérsia. Na última fase, em vez de se esperar por polêmicas oficiais, ocorreu a

afloração daquelas extra-oficiais – consequência da independência das propagandas das

chancelarias. Além disso, a arguição em público foi forçadamente desenvolvida pela

necessidade demandada pelo debate. Esses aspectos contribuíram para o amadurecimento da

política medieval137

e, na perspectiva intelectual, para a Renascença do século XII. (Melve,

2007, p. 644-646 e 659).

137

Essa questão sobre a “maturidade política da Idade Média” é do Bloch, citado por Melve (2007, p. 659).

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163

3.5 Volta às representações

No que tange às representações de rei e de império na Germânia, apesar da tentativa de

seguir as políticas do pai, Henrique V não se elevou em razão da valorização do caráter

sagrado real. Os reis imediatamente posteriores também não o fizeram. Ao menos não

reivindicaram a natureza sacralizada do rei da mesma forma que Henrique IV e seus

antecessores. O processo eleitoral pelo qual ascenderam valorizava sobremaneira os interesses

da nobreza germânica e a sua eleição era o fundamento de sua legitimidade. A representação

de “Rei pela graça de Deus” não aparece naquele momento tão enfática como o fora com

Henrique IV e, especialmente, com o sacratíssimo caráter real de Henrique III. Para Araújo

(2011, p. 88), a eleição do sucessor imediato de Henrique V, Lotário III, deixa clara a

complexidade que envolvia o assunto ligado à legitimação do poder real germânico. Ao

escolher um príncipe com um poderio relativamente mais fraco, os eleitores principescos da

Germânia pareciam buscar a legitimação régia pelo preceito valorizado na escolha de

Henrique I de primus inter pares. Neste caso, o que legitimava o poder do coroado era o

consentimento dos seus iguais.

Apesar disso, não podemos ignorar a Vita Heinrici IV imperatoris que foi escrita após

a morte, como uma elegia ao filho de Henrique III. Em que pese os problemas apresentados

pela análise do texto, especialmente seu caráter notadamente apologético, a que já fizemos

alguma menção, a perspectiva de realeza deita sobre o preceito para o qual “o rei é a cabeça

da Igreja”. (MOMMSEN; MORRISON, 2000, p. 101-137). Se no período imediatamente

posterior a Henrique IV, a cabeça coroada da Germânia não reivindicaram de maneira incisiva

a legitimação de seu poder baseado nessa acepção sacralizada, ao menos os registros

nostálgicos, se assim podemos dizer, a trazem. Concernente ao conflito entre Gregório VII e

Henrique IV e também na tentativa de legitimar a imagem do rei com características

realçadamente sacerdotais, Guido de Osnabrück já havia escrito que “o rei deve ser colocado

à parte da multidão de leigos; pois, ungido pelo óleo consagrado, ele participa do ministério

sacerdotal” (Apud BLOCH, 1993, p. 150). O texto desse apologista do império foi escrito na

metade da década de 80 do século XI138

anterior a outro trabalho laudatório ao império,

aquele do Anônimo de York.

Reavivando a memória acerca das representações registradas por aquele Anônimo

(considerado normando) também posteriormente, por volta do ano 1100, que, como

138

O tratado de Guido de Osnabrück foi intitulado De controvérsia inter Hildebrandum et Heinricum

imperatorem). (BLOCH, 1993, p. 150).

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164

igualmente já mencionamos, a partir da teoria da natureza dual de Cristo caracterizava o rei

como “personificador perfeito de Cristo na terra”. (KANTOROWICZ, 1998, p. 56-57). Com a

Controvérsia das Investiduras e o desenvolvimento da Reforma, já não era mais possível

aquele modelo de rei-sacerdote que o Anônimo defendia. Não havia mais espaço para essa

representação de maneira plena, pois o arquétipo de poder secular estava então cada vez mais

longe do caráter sacralizado – embora não possamos dizer que estivesse eliminado do

cotidiano das pessoas.

A distância se revela quando comparada àquela realeza sagrada dos Otônidas e dos

Sálios até Henrique IV. Talvez o possível objetivo dos reformistas de extinguir “a confusão

entre o secular e o espiritual” (BLOCH, 1993, p. 111) tenha sido alcançado. Talvez o tenham

alcançado, ao menos parcialmente. Isso porque não podemos afirmar de maneira categórica a

dessacralização da imagem do rei, pois na prática habitual – mais que nos autores que se

dedicavam a defender essa acepção de realeza sagrada, em favor da legitimação dos reis e dos

imperadores – essa ideia não se esvaiu completamente. Vejamos as conclusões de Bloch:

Mesmo em terra imperial, parece que após o término da dinastia sália o

caráter sacerdotal dos príncipes temporais não era mais tão ruidosamente

afirmado pelos partidários do regnum. A Concordata de Worms, abolindo a

investidura pelo báculo e pelo anel, mas reservando para o soberano uma

influência muito grande na eleição dos prelados alemães, proporcionara aos

gregorianos satisfações que eram, sobretudo, teóricas; do mesmo modo, as

polêmicas dos gregorianos obtiveram pelo menos esse resultado de impor

uma surdina às declarações de princípio de seus adversários. Aqui e ali, a

velha noção consegue ainda exprimir-se. Para justificar o juramento de

fidelidade que os bispos prestavam ao imperador (juramento contrário à

regra que proíbe os clérigos de ligar-se dessa maneira a um leigo), pode-se,

escreve por volta de 1158 o ilustre canonista Rufin, “ou responder que o

costume autoriza mais de uma coisa que os cânones não permitem, ou dizer

que o imperador, consagrado pela unção sagrada, não é de forma alguma um

leigo”. Mas há uma grande distância entre esse argumento achando,

apresentado de passagem, como se perdido numa vasta summa jurídica, e as

retumbantes polêmicas das épocas precedentes. (BLOCH, 1993, p. 152).

É bem verdade que não queremos decretar, em nenhuma hipótese, a morte dessas

representações, pois elas não se acabam de maneira definitiva como acontece com a matéria

palpável (estaríamos sendo redundantes?). O próprio Bloch (1993, p. 188) chamou-nos a

atenção para o fato de apesar das iniciativas antagônicas a essas representações, os súditos não

deixaram definitivamente de ver seus reis como portadores de características especiais. A

figura do soberano temporal nunca deixou de ser vista como diferente dos homens comuns.

Outras novas representações foram construídas e passaram a coexistir com as antigas –

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165

mesmo que uma fosse mais débil e a outra mais vigorosa – “considerando não haver prática

ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas

quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é deles”. (CHARTIER, 1991, p.

177).

De outro lado, e de um período semelhante ao do Anônimo Normando, não foi a mesma

percepção de realeza aquela explicitada por Honorius Augustodunensis,139

por volta de 1123.

Para ele, não havia possibilidade de se pensar o rei como sacerdote. Primeiramente, o rei não

havia recebido o sacramento da ordem, depois possui mulher e empunhava uma espada. Eis,

então, os três principais motivos que para Honorius impediam um rei de possuir as

características sagradas tal qual um clérigo. Mas esse autor possuía pontos de vistas com

argumentos bem mais claros que os outros homens de sua época. A fenda que dividia leigos e

clérigos compreendiam uma estremadura de fácil confusão. Mesmo que os soberanos não se

considerassem completamente clericais, tanto reis quanto aqueles a eles subordinados viam a

realeza como sagrada quase tanto ou mesmo tanto quanto o clero. (BLOCH, 1993, p. 149).

Em tempo, Honorius Augustodunensis era partidário das ideias ditas “gregorianas”. E,

portanto, talvez seja possível tomá-lo como exemplo da maneira pela qual os reformadores

seguidores, ou, talvez melhor, defensores das ideias de Gregório VII viam os reis.

No que concerne às representações da Igreja não se desvaneceram com o advento do

século XII, tampouco com o fim da Controvérsia das Investiduras. Ao contrário, como

dissemos, algumas imagens da instituição eclesiástica que foram construídas ao longo de

séculos foram reafirmadas, confirmadas, fortalecidas por outros teóricos da Igreja no século

XII. A representação de Mãe, por exemplo, foi realçada com uma tonalidade mais marcada

pelo cuidado com a moral e pela busca da santidade. (RUST, 2011, p. 304-311).

Por intermédio de São Bernardo (1091-1153), em carta (Epístola 244) ao rei Conrado

(1146), dos romanos, que a representação de corpo permanece com uma representação bem

mais consolidada. Entre outros aspectos, pode-se observar isso também no âmbito das

relações entre o poder temporal e o espiritual. Nesse caso, o rei também fazia parte do corpus

cristão:

Nunca se uniram e completaram o reino e o sacerdócio tão doce, amigável e

estreitamente como na pessoa do Senhor, o qual foi feito, segundo a carne de

ambas as tribos (Levi e Judá), Sumo sacerdote e Rei. E não só isso, mas as

misturou e as confederou no seu “corpo”, e o povo cristão, do qual é cabeça

[...] Portanto, o que Deus uniu, não o separe o homem, mas o que

139

Não se sabe precisar quem ele era exatamente. Esse correspondia a seu nome em latim. (BLOCH, 1993, p.

149).

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166

determinou a autoridade divina procure pô-lo em prática a autoridade

humana e unam-se os ânimos na sua instituição. (PEDRERO-SÁNCHEZ,

2000, p. 134).

São Bernardo influenciou sobremaneira o fortalecimento das ideias teocráticas que

perpassaram os séculos seguintes, apesar de se referir aos assuntos internos da Ecclesia. A

igreja (a Sé Apostólica) mais que uma Mãe benevolente era representada por aquela que

possuía a função de estabelecer no mundo a ordem querida por Deus. Roma era a cabeça da

Cristandade e opor-se a ela era ser avesso ao próprio Criador. Para o abade cisterciense, “a

plenitude do poder sobre todas as igrejas do mundo foi conferida à Sé Apostólica por um

privilégio especial. Quem resiste a esse poder resiste à ordem de Deus.” (PEDRERO-

SÁNCHEZ, 2000, p. 133). Esse ponto de vista de valorização da Sé Romana e, por

conseguinte, do ofício do papa, de certa maneira, contribuiu para a consolidação da figura

pontifícia como representante de Deus, como Vigário de Cristo na terra. (ver também

ROBINSON, 1988, p. 260). Eis um trecho da obra de Bernardo de Claraval:

[...] Quem és tu? Tu és o grande Sacerdote, o Sumo Pontífice. Tu és o

primeiro dentre os bispos, o herdeiro dos Apóstolos. Tu te comparas a

Abel no primado, a Noé no governo da arca, a Abraão no patriarcado, a

Melquisedeque no sacerdócio, a Aarão na dignidade, a Moisés na

autoridade, a Samuel por tua função de juiz, a Pedro no poder, a Cristo na

unção. [...] Tu és o único pastor, não apenas de todas as ovelhas, mas de

todos os pastores. Perguntais como posso comprovar? Mediante as palavras

do Senhor: “Pedro, se tu me amas, apascenta as minhas ovelhas”. [...]

Onde Ele não fez nenhuma exclusão, nada se exclui. [...] É por isso que a

cada um dos outros Apóstolos foi dada em partilha uma nação particular,

pois eles conheciam o sinal. E, enfim, Tiago, que era uma das colunas da

Igreja, se contentou com Jerusalém, deixando a Pedro a universalidade.

[...] Enquanto o poder dos outros pastores se confina a determinados limites,

o teu se estende igualmente sobre eles.140

(SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 91-

92). (Grifos nossos).

A representação do papa como sucessor de Pedro reivindicada pela formulação

eclesiológica da Cathedra Petri singrou a história da Igreja e chegou ao século XII com a

mesma ênfase inicial. Bernardo não só usou a terminologia recorrente à época concernente à

primazia do bispo de Roma (decorrente de Mateus 16 18-19) como acrescentou outro trecho

bíblico (João 21, 16-17) que também era muito conhecido da Cúria Pontifícia: “Apascenta as

minhas ovelhas”. Como era característico nos documentos produzidos por eclesiásticos

140

Parte da obra dirigida ao Papa Eugênio III (1145-1153) – De consideratione ad Eugenium Papam. O texto

buscava o reconhecimento pontifício do direito dos príncipes temporais de atuarem como juízes em altercações

ocorridas no âmbito de sua esfera de poder. (Ver mais em SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 69.)

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167

(fossem eles cenobitas ou não), mais uma vez podemos observar o interdiscurso a partir das

Sagradas Escrituras.

O documento anterior traz palavras que marcam a função, o papel do papa diante da

sociedade cristã. Ele era o “governo”, o “patriarca”, o “sacerdote”, aquele que era “digno”,

cheio de “autoridade” e “juiz”. O papa, então, foi comparado ao próprio Cristo em razão de

ter sido ungido. Era o pontífice aquele que deveria cuidar do redil de Cristo e conduzir suas

ovelhas ao caminho da salvação. Essa era a representação do pontífice romano, cabeça da

Igreja deixada pelo Salvador, na esteira do abade de Claraval.

Do mesmo modo, fizemos referência a Hugo de São Victor (1096-1141) que contribuiu

para enfatizar a representação da Igreja como corpo e do papa como cabeça desse corpo.

Embora fizesse referência a própria estrutura interna (incluindo os leigos que também dela

faziam parte) da instituição, suas ideias igualmente sustentaram projetos teocráticos

posteriores. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 65). Considerando os posicionamentos

pontifícios acerca das relações entre os poderes espiritual e temporal naqueles anos que

precederam a Hugo, não é difícil de pensar o contexto de sua escrita como propício para uma

interpretação dos seus escritos favorável à Igreja e, sobretudo, ao governo papal. Vejamos um

trecho de seu De Sacramentis fidei (Os Mistérios da Fé):

[...] A Santa Igreja é o Corpo de Cristo, vivificada por um só Espírito, unida

e santificada por uma só fé. Os cristãos são os membros deste Corpo e todos,

embora sejam muitos, constituem um único corpo em virtude de serem

animados por uma só fé e um único Espírito. [...] Esta universalidade de

pessoas compreende duas ordens, a dos leigos e a dos clérigos, como se

fossem os dois lados de um mesmo corpo. Os leigos, à esquerda, constituem

o lado esquerdo do Corpo de Cristo e são os que servem às necessidade da

vida presente. Os clérigos, pelo contrário, incumbidos da vida espiritual,

formam a parte direita do Corpo de Cristo. Este, portanto, que é a Igreja

Universal, consta de ambas as partes. [...] O rei é a cabeça do poder terreno;

o Sumo Pontífice, do poder espiritual. [...] Na medida em que a vida

espiritual é mais digna do que a terrena, e o espírito superior ao corpo, assim

também o poder espiritual precede em honra e dignidade o secular. Além

disso, o primeiro tem o dever de ensinar e o direito de julgar o segundo, se

este não for bom. Todavia, o poder espiritual, estabelecido exclusivamente

por Deus, ainda que erre, só poderá vir a ser julgado por Ele mesmo,

conforme está escrito, de modo que o poder espiritual pode julgar tudo, mas

não deve ser julgado por ninguém. (SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 89-90).

(Grifos nossos).

Para além dos sentidos do texto que conduzem para uma interpretação teocrática do

governo pontifício e do papel da Igreja entre clérigos e leigos, pensemos a perspectiva da

representação da instituição eclesiástica, em Hugo de São Victor, como corpo. Os termos que

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denotam princípios de unicidade, de universalidade, de totalidade, de conjunto – “todos”,

“único”, “uma só”, “universal”- compreendem a percepção da Igreja como Corpus Christi

que fora construída ao longo dos séculos e que continuaram a persistir no século XII adentro.

Dessa maneira, as representações que contribuíam para a consolidação da percepção da Igreja

como única e universal não perderam seu peso durante o século que sobreveio à Controvérsia

das Investiduras.

Diante desse quadro de análise de representações de Igreja e de Império no contexto

da Controvérsia das Investiduras, é fundamental que pensemos que as imagens delas

decorrentes são componentes indispensáveis para o ordenamento social e político. (ver

também CHARTIER, 1991, p.186). As representações que se referem à Igreja e ao Império

ultrapassam essas instituições. Se considerarmos a sociedade cristã medieval como um corpo

unido e ordenado, como pensou o abade de Claraval, o que podemos observar são

representações de mundo emergentes ao longo daquele período. A importância dessas

construções no período posterior não declinou. Embora as cortinas da Controvérsia das

Investiduras tenham sido cerradas pelo frágil acordo entre o Papado e o Império, novos atores

entraram no palco para a mise en scéne (encenação) da batalha de representações entre os dois

poderes. E na coxia dessa história, ainda há muito que não pudemos e, talvez, nem poderemos

desvendar tampouco compreender.

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169

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Representações de Império, de Igreja, de Papa, de Rei. Representações de instituições

poderosas no medievo. Sem ignorar as lacunas, fomos onde os documentos nos deram a

liberdade para ir. Contudo, não podemos asseverar que o caminho usado não possa ser, de

outra maneira, percorrido. As considerações que agora se fazem necessárias compreenderão

mais um balanço do estudo do objeto que delimitamos – o Conflito das Investiduras e as

representações da Igreja e do Império – que, propriamente, o estabelecimento de um caráter

conclusivo ao assunto. Ao contrário, este estudo sistemático dos documentos originados

naquele contexto da Controvérsia das Investiduras corresponde apenas a alguns passos de um

longo caminhar no terreno das relações entre os poderes temporal e espiritual na Idade Média.

Não caminhamos, com certeza, para um ponto final. Não só porque o anseio por um novo

início não nos permite, mas também porque esta pesquisa nos propõe novos desafios.

As relações entre Igreja e Império, no século XI e início do XII, foram marcadamente

influenciadas pelo contexto reformista. As propostas de transformação na instituição

eclesiástica e a pretensão de estabelecimento da “ordem correta do mundo” atingiram não só a

Igreja, mas também a sociedade como um todo. A necessidade de emancipação da Igreja da

ingerência temporal, bem como a luta dos reformadores pela moralização clerical afetaram as

relações das duas instituições. A Controvérsia das Investiduras resultou desse conflito de

poderes. De um lado, o Império reivindicava seus “direitos” sobre a Igreja imperial e de outro

a Sé Apostólica reclamava a sua legitimidade exclusiva de resolver seus assuntos internos,

especialmente no que tangia às nomeações episcopais – as famigeradas investiduras.

Na verdade, o conflito que se distingue em meio à disputa pelas investiduras parece

ser mais amplo. Refere-se a uma batalha de representações. Duas instituições – Igreja e

Império – que buscavam no sagrado os pilares de sua legitimidade. Mãe, Corpo de Cristo,

Esposa, Barca de Pedro, eram imagens, construídas a partir da formulação eclesiológica do

primado romano, que foram largamente utilizadas na busca pela unidade e universalização da

Igreja no Ocidente medieval. Representações que também deram origem a imagens que

caracterizaram o soberano espiritual, o papa. A primazia da Ecclesia romana refletiu na figura

do pontífice que reivindicou a sucessão de Pedro e o poder que dessa representação emanava.

De seu turno, o Império também se apresentava de maneira sacralizada quando sua

cabeça (o rei ou o imperador) reivindicava o seu caráter sagrado pela representação Rex Dei

Gratia. O soberano temporal se considerava ungido, como Cristo. Seu poder, dessa maneira,

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originava-se no divino e sua função no mundo era de um Rei-Sacerdote. Era o rei de gemina

persona, com naturezas diversas, temporal e espiritual.

As representações que foram enfatizadas nos séculos XI e XII, no contexto da

Controvérsia das Investiduras, podem ser analisadas como representações de mundo que

emergiram ao longo dos séculos. Compreenderam uma construção de acepções de mundo

dentro de uma perspectiva teológico-política. Dois poderes com significativa influência na

sociedade ocidental disputavam entre si a posição de cabeça daquele corpo político e social.

Em Gregório VII e Henrique IV, as duas instituições se chocaram por intentarem a

absorção do direito uma da outra. No entanto, se considerarmos a Concordata de Worms e as

cessões que ambos, papa (Calisto II) e imperador (Henrique V) tiveram que fazer não houve

vitórias práticas significativas para os dois lados. Contudo, se analisarmos a tentativa dos

eclesiásticos partidários da reforma de dessacralizar o poder temporal, podemos dizer que

houve um resultado positivo para os reformadores. A legitimidade do rei germânico depois de

Henrique IV estava longe de ser alicerçada pelo seu caráter de Rex Dei Gratia. Entretanto,

essa representação também não pode ser considerada como extinta, já que é complexo dizer

que os reis começaram, em um badalar de sinos, a ser considerados pessoas comuns, do

mesmo patamar que os seus subordinados. Uma representação não muda assim. Outras são

construídas e mesmo quando colidentes coexistem com as erigidas anteriormente.

O balanço da análise dos documentos pontifícios no que se refere à Controvérsia das

Investiduras oferece-nos um panorama de como o papa Gregório VII conduziu sua batalha

contra o rei Henrique IV. Sua atitude diante do rei germânico nos leva ao texto bíblico.

Gregório parece ter seguido, ele mesmo, as exortações do evangelho de Mateus 18, 15-18,

relativas às recomendações quanto à correção fraterna141

. Na passagem bíblica, além da

maneira de corrigir o irmão, o texto apresenta novamente o poder das chaves. Desta vez, no

entanto, não parece restringir somente a um clérigo, mas confere a todo cristão, o poder de

atar e desatar.

Nesse sentido, de acordo com as missivas pontifícias, Gregório VII tentara, desde o

início do seu papado, estabelecer a relação mencionada no texto bíblico. Aliás, essa era uma

prática do papado. As admoestações precediam a imposição de qualquer ato coercitivo. No

caso de Henrique IV também foi assim: admoestações e mais admoestações, por fim a

141

“Se acontecer que teu irmão peque, vai ter com ele e faze-lhe tuas admoestações a sós. Se ele te ouvir, terás

ganho teu irmão. Se não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas pessoas para que toda questão seja resolvida

sob a palavra de duas ou três testemunhas. Se ele recusar ouvi-las, dize-o à Igreja, e se ele recusar ouvir a própria

Igreja, seja para ti como o pagão e o coletor de impostos. Em verdade eu vo-lo declaro: tudo o que ligardes na

terra, será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu”. (MATEUS 18, 15-18.

BIBLIA:Tradução Ecumênica, 1995).

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excomunhão, pela “permanência no pecado”. Sendo assim, se considerássemos apenas a

imagem de pastor do papa, a história terminaria aqui: com um papa, o pastor, cuidando do

redil de Cristo, lutando por uma ovelha desgarrada. Contudo, a Análise do discurso nos

permitiu perceber mais que o exercício da função pastoral do pretenso sucessor de Pedro. Ali

residiu uma luta política, uma disputa pela cabeça, não somente da Igreja, mas da sociedade

como um todo. E, nesse caso, é menos complexo perceber esse conflito político nas cartas

régias que permitem que os aspectos temporais saltem aos olhos do leitor, mesmo em meio a

um discurso religioso.

E é assim que vimos tais representações – tanto do Império quanto da Igreja –

marcadas por começos e transformações, porque construídas sem possibilidade efetiva de

ruína. Novos sentidos, novos rumos, mas não um fim. As mudanças sócio-políticas que

trespassaram a sociedade medieval do Ocidente no curso do século XI e início do século XII

significaram mais que mutações na maneira de a Igreja se organizar como instituição religiosa

e de se enxergar como agregadora do corpo social e político. Os olhos que se abriram naquele

período foram também para a reforma eclesiástica e foi essa transformação que buscamos

compreender neste parcimonioso trabalho. Sua frugalidade reside na ausência de uma análise

mais acurada das bases sociais, econômicas e políticas da reforma daqueles séculos.

Ao fim desta pesquisa é que pudemos entender que aquelas mudanças abarcaram muito

mais que a reforma da Igreja, no anseio pela liberdade em relação ao poder laico, na busca

pelo fim da simonia ou pelo definitivo estabelecimento do celibato clerical. Fomos frugais e

fizemos nosso trabalho de pouca monta no que concerne à reforma que teve sua origem em

terreno um pouco mais distante da alta cúpula da Igreja Romana, àquela que trata das relações

do homem com o solo, com o outro, com as novas formas de se viver em sociedade.

Esbanjamos, talvez indecorosamente, do conceito canonizado142

desde o início do

século XX por Augustin Fliche – Reforma, com letra maiúscula – como se não pudéssemos

destrinchar aquele período de outra maneira se não por essa via. Consideramos esse como o

nosso imperdoável pecado pelo que, com certeza, deitará sobre nós a condenação, mas talvez

não um interdito, por completo, ou mesmo a excomunhão. Isso por dois motivos: primeiro

porque já não mais reina sobre nós a ignorância das transformações no uso do conceito

“Reforma” na historiografia medieval atual. Compreendemos que novos estudos sobre o

142

“No momento mesmo em que foram canonizados podem estes textos alterar os fatos, ainda que a linguagem

permaneça a mesma. Eles têm que a partir da mesma linguagem, realizar um procedimento de acomodação da

realidade à mesma linguagem. O que significa dizer que a cada nova situação está sempre submetida à

necessidade imperiosa de subsumir-se à mesma linguagem, ao mesmo conjunto ortodoxo de conceitos e

categorias”. (KOSELLECK, 1992, p. 145). (Ver também RUST, 2011).

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172

século XI chamam-nos a atenção para o estudo do papado além da Reforma.143

. Em segundo

lugar, porque não deixamos de impender nosso compromisso de um estudo sistemático de

documentos relativos à Controvérsia das Investiduras buscando compreender as

representações de Igreja e Império naquele período, a partir do conflito entre o Regnum et

Sacerdotium.

143

Dois capítulos de obra de Leandro Duarte Rust (2011), que tivemos acesso recentemente, se dedicam ao tema

“O Papado além de Roma e da Reforma”.

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