CHIAPPIN; LEISTER. O Racionalismo Neoclássico de Poincaré e Duhem

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103 Trans/Form/Ação, Marília, v. 34, n. 2, p. 103-134, 2011 Uma reconstrução racional do racionalismo neoclássico UMA RECONSTRUÇÃO RACIONAL DO PROGRAMA DE PESQUISA DO RACIONALISMO NEOCLÁSSICO: OS SUBPROGRAMAS DO CONVENCIONALISMO/ PRAGMATISMO (POINCARÉ) E DO REALISMO ESTRUTURAL CONVERGENTE (DUHEM) José Raimundo Novaes Chiappin 1 Ana Carolina Leister 2 RESUMO: o objetivo deste artigo é proporcionar uma reconstrução racional do programa de pesquisa do racionalismo neoclássico como um substituto para o programa do racionalismo clássico. O programa do racionalismo neoclássico se desenvolve pela elaboração de uma nova concepção de ciência que a demarque da metafísica, com a definição da ciência como representação em lugar de explicação. Esse programa é constituído de três subprogramas: o convencionalismo/pragmatismo de Poincaré, o realismo convergentista de Duhem e o empirismo lógico. PALAVRAS-CHAVE: Convencionalismo. Realismo estrutural convergente. Racionalismo neoclássico. O objetivo deste artigo é uma reconstrução racional do programa de pesquisa (LAKATOS, 1984) do racionalismo neoclássico como um substituto para o programa do racionalismo clássico (CHIAPPIN, 1996; CHIAPPIN; LEISTER, 2009). O programa racionalista neoclássico tem como principal objetivo a elaboração de uma nova concepção de ciência, particularmente de física, que se contraponha à concepção metafísica do programa do racionalismo clássico. Isso exige alterações axiológicas, epistemológicas, ontológicas, metodológicas e, principalmente, uma mudança na natureza do conhecimento, que passa de conhecimento com certeza para conhecimento hipotético. O programa 1 Prof. Dr. (Associado) Departamento de Economia/FEA – USP. Ph.D pela University of Pittsburgh em Filosofia. Doutor em Física pela USP. Doutor em Economia pela USP. Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Departamento de Economia-FGVSP. Graduada, Mestre e Doutora em Filosofia-USP. Graduada em Psicologia – PUC. Graduanda em Direito – USP. Pós-Doutoranda - Departamento de Economia – USP.

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    Uma reconstruo racional do racionalismo neoclssico

    UMA RECONSTRUO RACIONAL DO PROGRAMA DE PESQUISA DO RACIONALISMO NEOCLSSICO:

    OS SUBPROGRAMAS DO CONVENCIONALISMO/PRAGMATISMO (POINCAR) E DO REALISMO ESTRUTURAL

    CONVERGENTE (DUHEM)

    Jos Raimundo Novaes Chiappin1

    Ana Carolina Leister2

    RESUMO: o objetivo deste artigo proporcionar uma reconstruo racional do programa de pesquisa do racionalismo neoclssico como um substituto para o programa do racionalismo clssico. O programa do racionalismo neoclssico se desenvolve pela elaborao de uma nova concepo de cincia que a demarque da metafsica, com a de nio da cincia como representao em lugar de explicao. Esse programa constitudo de trs subprogramas: o convencionalismo/pragmatismo de Poincar, o realismo convergentista de Duhem e o empirismo lgico.

    PALAVRAS-CHAVE: Convencionalismo. Realismo estrutural convergente. Racionalismo neoclssico.

    O objetivo deste artigo uma reconstruo racional do programa de pesquisa (LAKATOS, 1984) do racionalismo neoclssico como um substituto para o programa do racionalismo clssico (CHIAPPIN, 1996; CHIAPPIN; LEISTER, 2009). O programa racionalista neoclssico tem como principal objetivo a elaborao de uma nova concepo de cincia, particularmente de fsica, que se contraponha concepo metafsica do programa do racionalismo clssico. Isso exige alteraes axiolgicas, epistemolgicas, ontolgicas, metodolgicas e, principalmente, uma mudana na natureza do conhecimento, que passa de conhecimento com certeza para conhecimento hipottico. O programa

    1 Prof. Dr. (Associado) Departamento de Economia/FEA USP. Ph.D pela University of Pittsburgh em Filoso a. Doutor em Fsica pela USP. Doutor em Economia pela USP. Endereo eletrnico: [email protected].

    2 Departamento de Economia-FGVSP. Graduada, Mestre e Doutora em Filoso a-USP. Graduada em Psicologia PUC. Graduanda em Direito USP. Ps-Doutoranda - Departamento de Economia USP.

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    neoclssico pode ser decomposto em trs subprogramas segundo suas estratgias de contraposio concepo metafsica: o subprograma do convencionalismo/pragmatismo de Poincar; o subprograma da teoria normativa da dinmica das teorias cient cas com convergncia para a verdade de Duhem; e o subprograma do positivismo lgico.

    O primeiro subprograma, elaborado por Poincar, consiste na construo de uma concepo de cincia que se articula em torno de um modelo de escolha racional com incerteza subjetiva. Esse modelo rejeita o princpio da unidade lgica da cincia (PUL) e defende o princpio da subdeterminao da teoria pelos dados empricos (PSTD) (POINCAR, 1891). Esse princpio, por sua vez, rejeita a ideia de que o mtodo experimental proporciona decises conclusivas e, portanto, rejeita o estatuto cognitivo da cincia, reduzindo seu valor a um valor puramente instrumental. Com isso, ele projeta uma concepo da cincia com caracterstica convencionalista/pragmatista, em que a escolha de teorias se articula em torno de critrios com tons subjetivos (POINCAR, 1891; 1901; 1902)

    O segundo subprograma, elaborado por Duhem, consiste na construo de uma concepo de cincia que rejeita, por um lado, a concepo metafsica e, por outro, a concepo pragmatista de Poincar, sustentada na crena num modelo metodolgico de escolha racional com certeza quanto s decises pela falsidade, contrrio possibilidade de um modelo com certeza pela verdade, como queriam os metafsicos clssicos. Duhem assume compromissos extralgicos para elaborar uma teoria normativa da cincia, uma teoria dinmica do crescimento cient co, que tem no seu ncleo de racionalidade a adeso ao princpio da unidade lgica da cincia e ao pressuposto da existncia de uma teoria transcendental da fsica com caractersticas de um realismo estrutural. Assim, a concepo de Duhem gura como termo mdio entre a concepo metafsica e a convencionalista/pragmatista (CHIAPPIN, 1989, Captulo 3), e, pretende encontrar critrios objetivos, ainda que metodolgicos, na escolha de teorias.

    O terceiro subprograma, o positivismo lgico, faz uso do modelo de escolha racional com incerteza objetiva (con rmao), com caractersticas empiristas.

    Este artigo trata apenas dos dois primeiros subprogramas: o subprograma do racionalismo neoclssico elaborado por Poincar e o subprograma do racionalismo neoclssico de Duhem. Se, por um lado, este ltimo se prope, com Poincar, recolocar em novas bases epistemolgicas e metodolgicas a concepo da teoria fsica, demarcando-a da concepo metafsica do racionalismo clssico (CHIAPPIN, 1996; CHIAPPIN; LEISTER, 2009), por outro lado, procura tambm evitar o radicalismo da proposta de Poincar, que rejeita, com seu pragmatismo e ceticismo, um estatuto cognitivo para a cincia e a reduz a um

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    valor puramente instrumental, assentado nos novos instrumentos emergentes da cincia, que enfatizam indeterminaes e incertezas inerentes s teorias fsicas, que ele mesmo desenvolveu e esto relacionados, principalmente, com a natureza da mecnica analtica, com seus in nitos modelos de massas e velocidades para uma mesma relao quantitativa (POINCAR, 1901), e com os sistemas dinmicos da teoria do caos (RUELLE, 1993).

    I O PROGRAMA DO RACIONALISMO CLSSICO

    Inicialmente, pretende-se fazer uma panormica dos principais traos do programa do racionalismo clssico, uma vez que o programa racionalista neoclssico pretende substitu-lo. Se, por um lado, o racionalismo neoclssico critica e rejeita muito dos principais pressupostos do racionalismo clssico, por outro lado, ele mantm alguns de seus postulados, entre os quais o de ser caracterizado por um conceito de racionalidade criterial no sentido de uma racionalidade operacionalizada por meio de regras e critrios.

    O programa do racionalismo clssico desenvolveu-se em torno da construo do conceito de racionalidade como um mtodo de escolha racional com certeza (CHIAPPIN, 1996, CHIAPPIN; LEISTER, 2009). Esse mtodo pretendia possibilitar decises acerca do valor de verdade das proposies de modo conclusivo, a partir de uma base do conhecimento formada de proposies verdadeiras estabelecidas com certeza. O modelo de organizao do conhecimento do racionalismo clssico a geometria. O mtodo de escolha racional espelhou-se nos mtodos de prova da geometria e da lgebra e, em particular, no mtodo de prova por reduo ao absurdo.

    A concepo de racionalidade como um processo de deciso, presente no programa racionalista, foi formulada pela primeira vez por Descartes, para quem [...] son entendement montre sa volont le choix quil faut faire (DESCARTES, 1963, tomo I, p. 79). Tal racionalidade denominada criterial, devido exigncia do uso de um mtodo como conjunto de regras e critrios para sua aplicao (DESCARTES, 1963, tomo I, p. 90-99). Em sntese, o programa racionalista de ne que a racionalidade um processo de tomada de decises conduzido por meio de um mtodo como um conjunto de regras e critrios. O programa racionalista criterial pode ser decomposto em trs subprogramas: racionalista clssico (CHIAPPIN, 1996; CHIAPPIN; LEISTER, 2009), neoclssico e crtico (CHIAPPIN, 2008). O programa racionalista envolve tambm trs modelos de escolha racional como ideia nuclear: o modelo de escolha com certeza, o modelo de escolha com incerteza objetiva e o modelo de escolha com incerteza subjetiva (CHIAPPIN, 1996).

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    Esses modelos tm como pressuposto a deciso ou escolha quanto a uma unidade epistmica. A unidade epistmica a forma de organizao do conhecimento, como a proposio, a teoria, o modelo, o programa de pesquisa, o paradigma etc. Outros pressupostos so, por exemplo, aqueles de um mtodo para construo das unidades epistmicas e de uma forma de representao do conhecimento atribuda unidade epistmica. Nesse caso, a mesma informao material pode, por exemplo, em fsica, ser representada por meio da lgebra, por matriz, por vetores, por grupos etc. Essas representaes tm tido um papel heurstico fundamental, no desenvolvimento da cincia, ainda a ser devidamente avaliado. O programa racionalista comporta mtodos heursticos e um mtodo de escolha de unidades epistmicas com algum critrio de performance.

    O modelo de escolha racional que de ne o conceito de racionalidade um procedimento governado por um mtodo capaz de proporcionar decises com respeito ao valor de verdade das unidades epistmicas bem estabelecidas. Esse modelo consiste, de modo abstrato e ideal, da maximizao ou minimizao de uma funo que se encontra submetida a restries. Os exemplos mais bem acabados desse modelo so: o modelo da mnima ao da fsica (LANCZOS, 1970), o modelo do utilitarismo de Bentham (CHIAPPIN; LEISTER, 2007), o modelo de escolha racional da microeconomia (VARIAN, 2006) e o modelo da termodinmica de Gibbs, com suas funes de energia e entropia e os princpios de minimizao e maximizao (CALLEN, 1985). Contudo, a origem desses modelos est na geometria: no caso de Descartes, trata-se do problema da gura com a maior rea para um dado permetro (DESCARTES, 1963, tomo I, regra I, p. 72), da sua teoria do arco-ris e do problema do prisma com o ngulo mnimo (DESCARTES, 1963, tomo I, p. 749-761)3.

    O subprograma do racionalismo clssico tem como objetivo epistemolgico central a investigao das condies de possibilidade do conhecimento (CHIAPPIN, 1989; 1996; 2009) e como objetivo cient co a construo da concepo metafsica da mecnica. Sua principal tese ontolgica que a natureza extenso (matria) e movimento. Suas principais teses epistemolgicas so que a natureza do conhecimento a certeza e que o sujeito tem faculdades que lhe permitem ter acesso direto verdade das proposies. uma epistemologia com sujeito. O racionalismo clssico pressupe tambm que o modelo de organizao do conhecimento a geometria, na forma de um conjunto de proposies organizadas num sistema axiomtico, constitudo por uma base com um nmero mnimo de conceitos primitivos e proposies verdadeiras conhecidas como certas e que satisfaz o princpio da unidade lgica. O racionalismo clssico

    3 O modelo geomtrico ser aplicado na poltica por Hobbes, que busca, na gura do Leviat, a maximizao do poder poltico.

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    professa tambm a crena na existncia de uma base ltima do conhecimento formada de proposies verdadeiras conhecidas como certas e de um mtodo, de nido como um conjunto de regras, que o modelo de escolha racional com decises conclusivas a respeito da verdade e da falsidade das proposies.

    A aplicao do princpio da unidade lgica, seguindo o modelo geomtrico de organizao do conhecimento, consiste em assumir que a teoria era organizada num todo fortemente conectado e consistente, e tambm que essa unidade da teoria fsica era realizada pela mecnica. Essa aplicao do princpio da unidade lgica por meio da mecnica consiste na construo ontolgica de um mundo formado de matria, corpsculos em movimento segundo os princpios da conservao da quantidade do movimento, da lei da inrcia e da lei dos choques. Isso signi cou a imposio metafsica de que toda explicao legtima dos fenmenos naturais tivesse que ser uma explicao mecanicista. Essas explicaes eram elaboradas por meio da construo de modelos mecnicos formados de massas em movimento. O mtodo de construo de modelos mecnicos consistia em fazer uso de massas invisveis em movimento como explicaes dos fenmenos naturais. Esse mtodo se desenvolveu de modo semelhante quele da geometria, tanto em seu aspecto analtico quanto sinttico.

    A unidade epistmica do programa do racionalismo clssico no a teoria, mas os conceitos e as proposies. As proposies so consideradas verdadeiras ou falsas. As teorias da verdade so aquelas da correspondncia e da consistncia. Ainda que faa uso sistemtico do princpio da unidade lgica, decorrente do modelo geomtrico, a abordagem analtica privilegia os princpios da separabilidade e da testabilidade isolada das proposies (CHIAPPIN, 1989). Com esses recursos, o objetivo do mtodo de escolha decidir de modo conclusivo o valor de verdade de uma dada proposio (como, por exemplo, a lei da refrao) por meio da construo, com ajuda de modelos mecnicos, de uma prova, a partir dos princpios da mecnica (DESCARTES, 1963, tomo I, p. 658-677). O modelo de escolha deve permitir decidir se a lei pertence ou no ao sistema de conhecimento caracterizado pela base do conhecimento. A integrao de uma lei emprica na teoria fsica que a transformaria num conhecimento certo, desde que no estivesse envolvido o uso de hipteses como vnculos intermedirios. Nesse caso, no haveria conhecimento certo, mas certeza moral, de carter prtico. Contudo, tem-se nessa situao apenas um conhecimento provisrio.

    No caso da teoria fsica, a aplicao desse mtodo de escolha racional com deciso conclusiva pela verdade e pela falsidade leva interpretao de que o mtodo experimental realiza uma experincia crucial. o caso do mtodo de prova por reduo ao absurdo, que possibilita decidir de maneira conclusiva tanto pela verdade quanto pela falsidade das proposies cient cas. O modelo desse

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    mtodo de escolha o Experimentum Crucis. A aplicao desse mtodo em fsica se expressou na ideia de que se estava diante de um Experimentum Crucis como utilizado por Newton, em sua teoria das cores (NEWTON, 1672; SILVA, 1996; 2003). Newton tinha a inteno de usar a experincia dos prismas para mostrar que as cores no eram criadas, mas separadas da cor branca pelos diferentes graus de refrangibilidade (SILVA, 2003). A origem dessa concepo de experimento crucial aparece pela primeira vez, em Bacon, com o nome de instncias cruciais (BACON, seo XXXVI, 1984).

    A metafsica de Descartes, construda nas Meditaes (DESCARTES, 1967, tomo II) como base do conhecimento um exemplo bem acabado dessa imagem da construo tpica da concepo metafsica da cincia, para a qual a natureza do conhecimento a certeza. O mtodo da dvida desempenha nas Meditaes o papel do mtodo heurstico, como mtodo analtico, e do mtodo de reduo ao absurdo, para a construo da base do conhecimento de sua concepo metafsica formado de proposies verdadeiras conhecidas como certas.

    O mtodo analtico (DESCARTES, 1967, tomo II, p. 581) um mtodo de construo da base formada dessas proposies verdadeiras conhecidas como certas. Essas proposies, nas Meditaes, so, por exemplo, Eu sou, Eu existo, Eu sou uma coisa que pensa, O esprito mais fcil de conhecer que o corpo, Deus existe, Deus veraz etc. (DESCARTES, 1967, tomo II, p. 414-454). Na elaborao dessas verdades (proposies) opera o mtodo de escolha, que o mtodo analtico, que possibilita aceitar e rejeitar novas proposies. Ele constri a prova da existncia de Deus e de que ele veraz e, concomitantemente, como um experimento crucial, seguindo o modelo do mtodo de reduo ao absurdo, rejeita a proposio de que existe um Gnio Maligno que aparece como hiptese, na primeira meditao. O elemento central dessa concepo da cincia a construo de um sujeito transcendental equipado epistemologicamente para conhecer diretamente as essncias do mundo, estabelecidas como mecnicas, que so matria (extenso) e movimento. Esse o modo de construir a base do conhecimento formado de proposies verdadeiras conhecidas como certas.

    O subprograma do racionalismo clssico formado hipoteticamente por uma sequncia de quatro teorias do conhecimento: a teoria cartesiana, a teoria lockeana, a teoria humeana e a teoria kantiana (CHIAPPIN, 1996; 2009). Essas teorias partilham do ncleo do programa com as principais teses ontolgicas, epistemolgicas e axiolgicas, tais como: (i) a construo de uma concepo autnoma da cincia independente, por um lado, da religio e, por outro, do ceticismo; (ii) a ideia de que o conhecimento certo e o mtodo necessrio para alcanar a verdade (DESCARTES, 1963, tomo I, p. 80, 90), ou seja, a rejeio

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    de toda possibilidade de se reconhecer o hipottico como conhecimento e a probabilidade como instrumento epistmico.

    Contudo, o subprograma de pesquisa racionalista clssico veri cou ser degenerativo em seus aspectos epistemolgico e cient co. A restrio de que o conhecimento certo teve que ser abandonada, em favor da ideia de que o conhecimento hipottico e a imposio da mecnica como unidade da cincia tambm teve de ser abandonada, devido emergncia de novos domnios da fsica, como termodinmica e eletromagnetismo. Com isso, o programa perde sua capacidade de resolver problemas no interior de um quadro terico extremamente restritivo, que exige que suas proposies sejam verdadeiras e conhecidas como certas e que toda explicao seja mecnica. O programa racionalista clssico se viu cerceado em sua pretenso de consolidar seu propsito de transformar em cincia, pelo mtodo, diversas reas do conhecimento, tais como a metafsica, a moral, a fsica, a medicina. medida que o progresso cient co avanou, observou-se o oposto daquele propsito, ou seja, o encolhimento sistemtico dos domnios do racionalismo clssico como conhecimento certo, at que fosse reduzido a um conjunto vazio em decorrncia do veredicto de que no h conhecimento certo, nem mtodo que o produza, mas apenas conhecimento hipottico, e de que as teorias sofrem ascenso e queda, em suas pretenses de proporcionar um conhecimento verdadeiro da natureza do mundo.

    A degenerao do programa decorreu inicialmente em virtude das anlises epistemolgicas de Locke sobre o pressuposto cartesiano de que o conhecimento conhecimento certo. Na teoria do conhecimento de Descartes, a metafsica, a fsica, a moral, a mecnica e a medicina deveriam ser estabelecidas como conhecimento certo (DESCARTES, 1971, tomo III), como expressa sua metfora da rvore do conhecimento. A anlise de Descartes elimina do campo da cincia todas aquelas disciplinas que no so passveis de construo como conhecimento certo, por meio do mtodo, exceto a moral. A concepo de Locke recorre tese epistemolgica do empirismo segundo a qual todo conhecimento provm dos sentidos e distino entre essncia nominal e essncia real. (LOCKE, [1973]). Ele chega concluso de que as leis da fsica no preenchem as exigncias do conhecimento certo, assim como a metafsica, a medicina e a mecnica. Suas leis no podem ser consideradas proposies universais e necessrias, pois o conhecimento das essncias reais inacessvel aos mtodos racionais empricos (CHIAPPIN; LEISTER, 2009).

    De acordo com Locke, apenas a moral conhecimento certo, uma vez que, como a geometria, nela h uma coincidncia entre essncia nominal e real por construo de seus objetos (LOCKE, 1973). Por de nio, a construo de um objeto geomtrico captura tanto sua essncia nominal quanto sua essncia real,

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    como acontece com a de nio de tringulo. A moral segue esse procedimento de construo de conceitos e proposies.

    Hume conduz essa anlise aos seus limites, fazendo uma distino ainda mais clara e operacional entre proposies sintticas e analticas (HUME, 1973). As proposies analticas tm seu valor de verdade obtido a partir da anlise da estrutura formal da proposio e no se referem ao mundo real. Elas no so proposies de conhecimento, mas proposies auxiliares para a explicitao e esclarecimento das de nies e termos envolvidos no discurso. J o valor de verdade das proposies sintticas depende da experincia emprica, todavia, no h como garantir a verdade das proposies universais e, portanto, das leis cient cas, com base na experincia, que pode gerar apenas proposies particulares. Segue-se, pela mesma razo, que a moral, por conter proposies sintticas, no pode ser conhecimento certo. Em lugar do conhecimento que objeto de certeza, Hume4 a rma que temos crenas, proposies de natureza hipottica, acerca dos fenmenos, que o que pode ser gerado pelo mtodo experimental.

    A teoria kantiana uma tentativa de amparar a proposta de Descartes, de conhecimento como conhecimento certo, porm, desenvolvida a partir da crtica de Hume, com a construo dos juzos sintticos a priori. Contudo, a proposta kantiana no se sustenta, ainda que desta vez no mais por causa de argumentaes epistemolgicas, mas do desenvolvimento cient co. A concepo kantiana do juzo sinttico a priori no pde sobreviver ao desenvolvimento posterior da cincia. Esse desenvolvimento mostrou com sistematicidade a refutao e a rejeio de teorias que tinham sido consideradas anteriormente verdadeiras e foram substitudas por outras. Exemplos dessas teorias refutadas pela experincia so: a substituio da teoria do calrico pela teoria mecnica do calor e a emergncia da autonomia da teoria eletromagntica e da termodinmica relativamente mecnica, estabelecendo de nitivamente a ideia de que as teorias ou leis cient cas so conjuntos de hipteses e no sistemas de proposies verdadeiras, e de que, aparentemente, esto sujeitas a movimentos alternados de ascenso e queda.

    O desenvolvimento da anlise lgica do mtodo cient co revelou, alm do carter hipottico das proposies cient cas, que no era possvel a tese clssica da separabilidade e testabilidade isolada das hipteses. O prprio Kant j a rmara que no h dados brutos, mas dados interpretados, e que o mtodo de teste no conclusivo quanto ao valor de verdade das proposies. O desenvolvimento cient co na matemtica trouxe novas geometrias, como a geometria riemanniana, que so corpos axiomticos consistentes com postulados completamente diferentes e mesmos opostos queles da geometria euclidiana.

    4 HUME, 1980, p. 96.

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    No s o espao fsico da concepo kantiana (KANT, 1974) aquele da geometria euclidiana, no entanto, ela tomada como paradigma da cienti cidade, uma vez que fornece exemplares das proposies consideradas juzos sintticos a priori, que so opostos queles da geometria de Riemann.

    O prprio desenvolvimento da mecnica fez evoluir seus instrumentos, transformando-os em linguagens. As representaes de Lagrange e Hamilton (DUGAS, 1988; LANCZOS, 1970) so transformadas, com seus espaos arti ciais, em recursos de soluo de problemas, revelando-se mais adequadas para organizar domnios da cincia e prescindindo cada vez mais de consideraes sobre a natureza da matria. O principal desses instrumentos o mtodo analtico de construo da mecnica com o princpio da ao mnima. A natureza do mtodo analtico permitiu reduzir os princpios da mecnica de Newton a um nico princpio, praticamente matemtico, o da ao mnima, e gerar diferentes representaes da mecnica, dependendo do tipo de variveis com que se pretende lidar, de nindo ou um espao de con gurao ou um espao de fase.

    O mesmo desenvolvimento mostrou a emergncia de domnios que se pretendem autnomos, como a termodinmica e o eletromagnetismo, porque resistem a serem reduzidos a explicaes mecnicas. Evidenciou ainda sucessivas refutaes e rejeies de teorias fsicas e suas substituies por outras, tais como o caso da teoria do calrico substituda pela teoria mecnica do calor. Os estudos de Maxwell sobre o eletromagnetismo revelaram uma nova legitimidade da cincia com sua aplicao da abordagem mecnica analtica ao eletromagnetismo em substituio abordagem sinttica, prescindindo, portanto, da construo de modelos concretos constitudos por massas em movimento. Essa exigncia dava origem a modelos bizarros, no cumprimento da aplicao do princpio da unidade lgica por meio das explicaes mecnicas, segundo o qual todo fenmeno deveria ser mecnico.

    A emergncia da abordagem analtica da mecnica com a construo da mecnica analtica e sua obteno a partir de um nico princpio de natureza quase puramente matemtica, como o princpio da mnima ao, assim como de reas autnomas, como a da termodinmica e do eletromagnetismo, criaram uma atmosfera na qual se tornou imperativa uma re exo sobre os fundamentos dessa nova fsica. A mecnica analtica substituiu o mtodo sinttico de construir a explicao mecnica com modelos concretos mecnicos, por conseguinte, formados de matria em movimento, e dotou a mecnica de instrumentos heursticos poderosos, entre os quais, como mencionado, as representaes diferentes do mesmo fenmeno, que so a mecnica lagrangeana e a hamiltoniana, e os sistemas dinmicos com hipersensibilidade de suas condies iniciais. A termodinmica e o eletromagnetismo emergiram como disciplinas autnomas,

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    sustentadas sobre seus prprios postulados e conceitos, no se submetendo s exigncias de exibirem explicaes por meio de modelos mecnicos.

    Tais representaes da mecnica foram interpretadas por Duhem como uma linguagem e no como uma mecnica com a respectiva ontologia, que, portanto, poderiam ser utilizadas para organizar outras reas da fsica, as quais estariam totalmente desvinculadas de uma ontologia mecnica. Os exemplos so dados pelo prprio Maxwell, com o eletromagnetismo que ele constri em termos da representao lagrangeana, mas dissocia da construo de modelos mecnicos como havia feito anteriormente em suas primeiras tentativas de construir um eletromagnetismo, e por Gibbs, com a termodinmica que construda em termos axiomticos, com base na funo energia e do princpio de minimizao. Samuelson vai usar o mesmo instrumental da termodinmica de Gibbs, para organizar formalmente a microeconomia. Graas representao lagrangeana, a microeconomia uma termodinmica.

    A epistemologia, a ontologia, a axiologia e a metodologia do racionalismo clssico (CHIAPPIN; LEISTER, 2009) precisavam ser substitudas por uma nova teoria da cincia que trouxesse outra concepo de cincia mais ajustada a esses novos contornos do conhecimento cient co e sua legitimidade. Nesse contexto, Maxwell, Boltzmann, Duhem e Poincar (e Pareto, na economia) vo construir o programa de pesquisa do racionalismo neoclssico para substituir o racionalismo clssico. Neste artigo, focalizamos a construo do racionalismo neoclssico conforme os subprogramas de Duhem e Poincar.

    O objetivo do programa do racionalismo neoclssico construir uma concepo de cincia que a demarque da concepo metafsica da cincia e rejeite de nitivamente a ideia da possibilidade do acesso direto ao conhecimento certo. Tanto Poincar como Duhem, mas principalmente Duhem, buscam reavaliar criticamente a proposta do racionalismo clssico e desenvolver uma nova teoria da cincia, com uma nova ontologia, epistemologia, axiologia e metodologia, para descrever a natureza da teoria fsica e do seu progresso, tendo como ponto de partida o carter hipottico-dedutivo da pesquisa cient ca. Em oposio concepo clssica, Duhem observa:

    As teorias fsicas no progridem como as teorias matemticas, pela contnua introduo de novas proposies, de nitivamente demonstradas, que se unem a proposies j reconhecidas como certas. (DUHEM, 1895a, p. 27).

    Contudo, como veremos, se Duhem e Poincar partilham do mesmo objetivo de construir uma de nio de teoria fsica, de modo a demarc-la da metafsica, Duhem no partilha da concepo convencionalista/pragmatista de

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    Uma reconstruo racional do racionalismo neoclssico

    Poincar, esforando-se em desenvolver estratgias ontolgicas, epistemolgicas, axiolgicas e metodolgicas para sua concepo de fsica que o demarquem da concepo do convencionalismo/pragmatismo de Poincar.

    II O PROGRAMA DO RACIONALISMO NEOCLSSICO: O SUBPROGRAMA CONVENCIONALISTA/PRAGMATISTA DE POINCAR

    Poincar desenvolve uma concepo de teoria fsica com o objetivo de demarc-la da concepo metafsica da cincia segundo o racionalismo clssico. Essa concepo partilhada por Duhem em sua oposio concepo metafsica. Pressupomos aqui que ambos desenvolvem um programa de pesquisa neoclssico sobre a natureza, a estrutura e o objeto da teoria fsica que tem em comum sua oposio concepo metafsica da cincia. No entanto, devido s profundas peculiaridades e diferenas entre eles, podemos considerar que eles constroem dois subprogramas do programa de pesquisa neoclssico: o subprograma neoclssico convencionalista/pragmatista de Poincar e o subprograma do realismo estrutural de Duhem. Para ambos, o objetivo demarcar a teoria fsica da metafsica, e para esse m eles constroem a fsica terica com o objetivo de sistematizao e organizao das leis empricas.

    No intuito de demarcar a teoria fsica da concepo metafsica, Poincar apresenta a seguinte de nio de teoria fsica:

    O objetivo da teoria matemtica no nos revelar a natureza real das coisas; esta seria uma exigncia irrealizvel. Seu nico objetivo consiste em coordenar as leis fsicas com as quais a experincia nos familiariza [...]. (POINCAR, 1952, p. 211)

    Essa de nio, como a de Duhem, se ope de nio dos clssicos, de acordo com os quais a teoria fsica tem por objetivo proporcionar explicaes dos fenmenos naturais, entendendo por explicaes a indicao das causas reais das coisas.

    Para Poincar, a ideia relevante est relacionada coordenao das leis fsicas. Essa coordenao pode ser efetivada por algum princpio matemtico ou fsico, cujo nico propsito introduzir ordem e classi cao nas leis da fsica. Ele tem o objetivo de produzir uma organizao entre elas. No h pretenses ontolgicas de capturar as causas reais da produo dessas leis. Com essa de nio, Poincar procura operacionalizar a demarcao da concepo metafsica por meio de um procedimento de controle como aquele de um mtodo de construo da teoria fsica que evite o apelo s causas reais e se sirva apenas de princpios matemticos organizadores, ordenadores, coordenadores ou classi cadores das leis empricas.

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    Nessa proposta de de nio de teoria fsica associada a um mtodo de construo, Poincar se limita a dois recursos metodolgicos: a anlise puramente lgica do mtodo cient co e o mtodo experimental. Segundo Poincar, no h necessidade de apelar para qualquer outro instrumento de anlise, a m de entender e estudar a natureza da teoria fsica.

    A de nio da teoria fsica o ponto de partida de Poincar para desenvolver uma imagem da fsica em oposio metafsica. Tal proposta de de nio e sua restrio aos dois recursos metodolgicos se desenvolvem numa forma bastante radical de concepo da teoria fsica com contornos de um pronunciado ceticismo/relativismo. Poincar leva sua anlise lgica da teorizao cient ca (em particular, a abordagem mecnica de Maxwell da teoria eletromagntica) e a anlise do mtodo experimental ao seu m natural (VICAIRE, 1893, p. 476), que o princpio da subdeterminao da teoria pelos dados. Esse princpio apela, em sua forma mais radical, ao uso legtimo de teorias incompatveis para descrever o mesmo conjunto de leis. Ele rejeita, por conseguinte, um dos componentes da racionalidade clssica, o princpio da unidade lgica.

    A partir de sua anlise dos fundamentos da explicao mecnica, como dada por Maxwell em sua construo do eletromagnetismo com os recursos da mecnica analtica de Lagrange, Poincar formula explicitamente, na seguinte passagem, o ncleo de seu programa metodolgico para construir a teoria fsica:

    No devemos nos orgulhar de evitar toda contradio. Mas devemos tomar partido. Duas teorias contraditrias, com efeito, contanto que no as misturemos, e nem busquemos a essncia das coisas, podem ambas ser instrumentos teis de pesquisa. Talvez a leitura de Maxwell fosse menos sugestiva se ela no tivesse aberto tantos caminhos novos, divergentes. (DUHEM, 1974, p. 91; POINCAR, 1901, p. vi).

    Denomino esse pronunciamento de Poincar a regra da subdeterminao. Poincar argumenta a favor dessa abordagem, com sua anlise da mecnica analtica de Lagrange, em termos heursticos e histricos (POINCAR, 1901, introduo). Essa regra da subdeterminao estabelece que a fsica pode usar teorias distintas e incompatveis (DUHEM, 1974, p. 330), sendo isso um corolrio de uma tese mais forte, formulada por Poincar, que nomeio de princpio da subdeterminao da teoria pelos dados (PSTD).

    A deciso de Poincar de aplicar o princpio da subdeterminao da teoria pelos dados (PSTD), em teoria fsica, rompe com um dos princpios do racionalismo clssico que o princpio da unidade lgica (PUL), o qual aparece, como menciona Duhem na passagem abaixo, como seu princpio supremo:

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    Entre um nmero de teses postuladas [autorizadas somente por razes estranhas fsica], encontra-se a seguinte: a teoria fsica deve tentar representar todo grupo de leis naturais atravs de um nico sistema, cujas partes so logicamente compatveis entre si. (DUHEM, 1974, p. 293).

    O princpio generalizado da subdeterminao (diferente da subdeterminao dos modelos mecnicos), tal como aplicado na fsica como um todo, explicitamente formulado por Pareto com base no trabalho de Poincar, tendo profundas consequncias metodolgicas para a imagem da fsica e mesmo da cincia, com respeito aos racionalistas clssicos. Com efeito, Pareto a rma:

    Os mesmos fatos podem ser explicados por uma in nidade de teorias, igualmente verdadeiras, porque todas reproduzem os fatos a serem explicados. neste sentido que Poincar pde dizer que do fato mesmo de que um fenmeno admite uma explicao mecnica, ele admite uma in nidade delas [...] (PARETO, 1909, p. 31-36, apud LATSIS, 1976, p. 9 grifos nossos).

    A adoo do princpio da subdeterminao da teoria pelos dados, no interior da concepo de Poincar, tem trs fontes principais: (1) os estudos de Poincar acerca da geometria e da matemtica (uma interpretao discutida por Grnbaum, 1968, p. 106-122, e Giedymin, 1982); (2) a anlise crtica de Poincar sobre os fundamentos da mecnica e do mtodo mecanicista, baseada nos trabalhos de Maxwell sobre a teoria do eletromagnetismo; e (3) os sistemas dinmicos com hipersensibilidade s condies iniciais, que ele mesmo desenvolveu.

    Uma das consequncias importantes desse exame crtico da abordagem da mecnica analtica que, se tivermos um modelo mecnico, teremos um nmero in nito deles, que exatamente o que diz Pareto (POINCAR, 1901, introduo).

    Entretanto, qual a razo para essa a rmao? A razo est em que a mecnica lagrangeana mostrou a possibilidade de gerar in nitos modelos mecnicos para uma mesma base emprica, empregando a hiptese dos mecanismos invisveis de massas ocultas em movimento. Tal hiptese gera indeterminao, uma vez que as massas (mi) e movimentos (velocidade; qi) usadas pela abordagem analtica so indeterminadas e arbitrrias. Esses conceitos funcionam como parmetros de equaes que devem ser ajustadas aos fenmenos explicados. As indeterminaes das hipteses de mecanismos de massas invisveis em movimento proporcionam ao programa mecanicista os recursos para aplicar uma estratgia de subdeterminao da teoria pelos dados. o que faz Poincar, em sua anlise dos assim chamados experimentos cruciais: os experimentos de Wiener (POINCAR 1891, p. 325-329) e de Gouy (POINCAR, 1894, p. 226).

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    As indeterminaes introduzidas por essa hiptese so a origem do princpio da subdeterminao. Elas permitem a Poincar a rmar que, se h um modelo mecnico, h uma in nidade deles (POINCAR ,1901, introduo). Esse enunciado o leva a declarar seu compromisso com a regra da subdeterminao (POINCAR 1901, introduo). O uso metodolgico de indeterminaes complica a aplicao do princpio da testabilidade emprica do racionalismo clssico, que a rma a separabilidade e a testabilidade das hipteses. No se pode aplicar efetivamente esse princpio empirista, quando a teoria fsica contm naturalmente os meios para evit-lo, que so os estratagemas mencionados acima.

    Poincar faz extenso uso desses estratagemas de subdeterminao. Por exemplo, ele os emprega em sua anlise do experimento de Wiener, formulado para decidir entre as teorias da luz de Neumann e de Fresnel, bem como em seu exame do experimento de Gouy, para decidir entre a teoria eletromagntica da luz e a teoria elstica da matria.

    Em meados do sculo XIX, aqueles que buscavam um mtodo de construo de teorias fsicas similar ao do mtodo mecanicista, como Poincar, substituram a concepo metafsica da cincia pela pragmatista/convencionalista. Assim, o princpio da subdeterminao da teoria pelos dados tornou-se o principal elemento metodolgico de demarcao da concepo metafsica. Nenhum modelo mecnico poderia ter pretenses de corresponder natureza real do mundo, j que se poderia multiplicar a construo de outros modelos que se ajustam mesma base emprica que deveriam representar.

    Em sua anlise histrico-crtica do mecanicismo, Duhem considera a indeterminao inerente aplicao da abordagem analtica da mecnica como a principal razo para a falta de falseabilidade das teorias mecanicistas (DUHEM 1974, p. 281; 1980, p. 97-98) e para a ausncia de um mtodo regular para construir essa forma de explicao mecnica, o que torna sua formulao puramente conjectural (DUHEM, 1980, p. 79). A indeterminao das hipteses de massas ocultas em movimento proporciona a Poincar estratgias para evitar refutaes cruciais. Ele faz do princpio da subdeterminao da teoria pelos dados (PSTD) um elemento efetivo de sua metodologia. Duhem declara (aps citar Heaviside, Cohn e Hertz, que adotam esse mesmo ponto de vista) que o mtodo de Poincar, de construo de teorias fsicas atravs da regra da subdeterminao, portanto com o uso de combinaes de massas invisveis em movimento, de nido em oposio concepo racionalista clssica (unidade lgica, sistemas axiomticos bem construdos etc.). Ele a rma:

    Mais formalmente que Hertz, Poincar proclamou o direito da fsica matemtica de abalar o domnio de uma lgica demasiadamente rigorosa e de romper a conexo que unia suas diversas teorias umas s outras. (DUHEM, 1974, p. 91)

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    Essa deciso de Poincar interpretada de modo similar por alguns de seus contemporneos, tais como E. Vicaire. Segundo este:

    No apenas na obra citada com freqncia [Poincar 1901], ele [Poincar] admite que as diversas teorias propostas para explicar os fenmenos ticos pelas vibraes de um meio elstico so igualmente plausveis, mas ele parece abandonar como utpico e antiquado o princpio dos antigos tericos da fsica segundo o qual nenhum surgimento de contradio tolerado, e julgado necessrio que as diversas partes sejam logicamente vinculadas umas s outras e que o nmero de hipteses distintas seja reduzido ao mnimo. (VICAIRE, 1893, p. 476; grifos nossos).

    Contudo, a radicalizao de Poincar no acaba com a adoo do princpio da subdeterminao com respeito estrutura da teoria fsica do racionalismo clssico. Ele rompe tambm, devido sua adoo do princpio da subdeterminao em substituio ao princpio da unidade lgica (PUL), com a ideia do mtodo experimental como um mtodo de prova para encontrar o valor de verdade das proposies cient cas. Segundo Poincar, no h experimentos cruciais que possam decidir entre teorias fsicas rivais. O mtodo experimental no pode decidir de modo conclusivo nem pela verdade, nem pela falsidade. Dessa maneira, Poincar questiona qualquer e ccia do modelo de escolha racional de teorias fsicas. Temos aqui um ceticismo acerca do mtodo experimental como modelo de escolha racional conclusiva entre teorias fsicas rivais ou proposies rivais. A rejeio de um modelo de escolha racional com certeza tanto pela verdade quanto pela falsidade, como queriam os clssicos, resulta da aplicao sistemtica, por parte de Poincar, dessa estratgia metodolgica de subdeterminao da teoria pelos dados (POINCAR, 1891, p. 326; QUINN, 1969, p. 398).

    Como consequncia, a escolha das teorias depende de outras caractersticas, alm do mtodo experimental, como critrios de consistncia, de ordem, de beleza etc. Desse modo, Poincar rejeita a possibilidade dos experimentos cruciais para escolher entre teorias e hipteses alternativas, e torna no testveis empiricamente tanto as teorias fsicas e algumas de suas hipteses, como as leis fsicas fundamentais. Isto , elas se tornam convenes. E sua escolha est mais prxima do modelo de escolha com incerteza subjetiva, ou seja, depende de certos valores do pesquisador. Esses dois aspectos contrrios viso clssica e ao princpio da unidade lgica e ao mtodo experimental como mtodo de prova, esto intimamente vinculados e formam um ncleo duro da racionalidade neoclssica.

    Os gemetras, franceses em sua maior parte, que fundaram a fsica matemtica, viam nas teorias que constituam esta cincia a explicao racional, a razo de ser metafsica das leis descobertas pelos experimentadores; desde ento, estas teorias, eles as queriam logicamente encadeadas. Esta maneira de compreender

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    o papel das teorias da fsica matemtica tende, hoje, a ser abandonada. (DUHEM, 1893b, p. 364).

    Entretanto, o pragmatismo/convencionalismo mantm outras teses empiristas dos racionalistas clssicos, tais como o princpio de que todo conhecimento emprico e, principalmente, o princpio da separabilidade e testabilidade de hipteses isoladas.

    As outras teses da concepo pragmatista/empirista so: (1) as teorias so apenas um meio de classi cao, sendo usadas como instrumentos para pesquisa (a fsica terica possui somente um valor tcnico e utilitrio) (DUHEM, 1974, p. 330); (2) a fsica pode, por conseguinte, empregar simultaneamente teorias distintas e incompatveis; (3) a lgica e o mtodo emprico so os nicos meios legtimos para examinar criticamente as teorias fsicas; e (4) no h outras verdades em fsica alm dos fatos experimentais.

    Como veremos, Duhem vai questionar a aceitao de todas essas teses, por parte do convencionalismo/pragmatismo.

    A consequncia lgica e metodolgica da adeso ao princpio da subdeterminao da teoria pelos dados, com a rejeio da unidade lgica, e da adeso ideia de que o mtodo experimental no um mtodo de prova capaz de construir um Experimentum Crucis, como tambm queriam os clssicos, que as teorias fsicas s podem ter um valor prtico e instrumental, e no um valor objetivo, de conhecimento. Como pensar num valor objetivo, quando se admite metodologicamente a utilizao de hipteses contraditrias no interior da teoria fsica, tal como autorizada pelo princpio da subdeterminao da teoria pelos dados? Eis o valor da teoria fsica para os convencionalistas/pragmatistas: valor prtico e instrumental (DUHEM, 1974, p. 330).

    Segundo Duhem o pragmatismo de Poincar, proveniente de Maxwell, necessariamente um desdobramento consistente de sua adeso anlise lgica da cincia e ao mtodo experimental como os nicos instrumentos legtimos de abordagem da cincia, recusando qualquer considerao extralgica. Essa concepo pragmatista de que as teorias fsicas so receitas pode ser traduzida nas seguintes palavras:

    O pragmatismo contemporneo a rmou que as teorias fsicas no possuem um valor como conhecimento, que a funo delas inteiramente utilitria, e que elas so, em ltima anlise, apenas receitas convenientes que nos permitem agir com sucesso sobre o mundo externo. (DUHEM, 1974, p. 314).

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    Duhem considera a anlise de Poincar acerca da concepo clssica demasiadamente radical e, ao mesmo tempo, muito pouco crtica, uma vez que Poincar emprega, no interior da mesma metodologia, princpios empiristas tais como o princpio da separabilidade e testabilidade isolada de hipteses, a tese da separao entre teoria e observao, o uso do mtodo indutivista e princpios de natureza antiempirista, alguns j analisados, tais como a tese da no testabilidade emprica de certas leis (convenes), a ideia de que o mtodo experimental no um mtodo de prova e o princpio da subdeterminao da teoria pelos dados.

    Outra crtica de Duhem a Poincar, em sua anlise da teoria da fsica, que este emprega elementos metodolgicos mais prprios cincia natural para avaliar a teoria fsica como fsica matemtica, por exemplo, o princpio da testabilidade isolada de hipteses e o mtodo indutivo. Para Duhem, esses elementos metodolgicos so inadequados para a teoria fsica como fsica matemtica j que a natureza da teoria fsica como fsica matemtica envolve uma interpretao terica que torna invivel a adoo do mtodo indutivo como o princpio da separabilidade e testabilidade isolada de hipteses.

    Esse elemento novo importante e no levado em conta por Poincar que os fatos empricos so teoricamente impregnados (DUHEM, 1974, p. 322). Segue-se que no h separao entre teoria e base emprica, pois todos so expressos por proposies. A distino est no contedo emprico. Dessa forma, segundo Duhem, no h fatos brutos. Isso exige que se pense a fsica matemtica como um sistema interconectado de conceitos, leis e fatos impregnados de teorias. Poincar no reconhece, no entanto, esse aspecto da fsica matemtica (DUHEM, 1974, p. 149). H, sim, na perspectiva de Poincar, distines entre as proposies no sentido que algumas so convenes, portanto, irrefutveis por de nio, e as demais, proposies empricas. Ele apenas combina caractersticas prprias a cincias distintas, tais como as cincias naturais e a matemtica.

    Esse elemento novo tem outras consequncias, fazendo da teoria fsica, como fsica matemtica, no entender de Duhem, algo mais do que a mera combinao de cincia experimental e matemtica. Assim, por exemplo, ela no pode ser considerada como uma soma de proposies, mas como um sistema interconectado de proposies que no podem ser separadas e isoladas, para serem testadas uma por uma. Ela tem sua natureza associada ao princpio da unidade lgica, ou seja, da necessidade de consistncia e coerncia interna do sistema de conceitos e proposies. A consequncia dessa interpretao de que a testabilidade da teoria quanto ao sistema como um todo e, portanto, no cabe mais a concepo clssica do mtodo de testabilidade de proposies separadas e avaliadas isoladamente.

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    Ao contrrio dessa posio, Poincar opta, como mencionado anteriormente, por aplicar a regra da subdeterminao em teoria fsica, segundo a qual, se h um dado modelo formando a representao de amplo conjunto de fatos, ento h in nitos modelos que so capazes de proporcionar outras representaes para o mesmo conjunto de dados. Esse argumento da subdeterminao da teoria pelos dados empricos serve para rejeitar o mtodo experimental como mtodo de prova, conduzindo formulao das teorias fsicas como formadas de convenes e reduzindo a teoria fsica a apenas um valor instrumental sem valor objetivo. A consequncia desse compromisso com o princpio da subdeterminao tem como resultado transformar Poincar naquele que originou a concepo convencionalista/pragmatista na Frana. Duhem a rma:

    E no so esses prefcios retumbantes acerca dos trabalhos de Maxwell, feitos pelo distinto professor Poincar da Sorbonne, aqueles que deram origem na Frana crtica pragmatista da fsica, contra a qual M. Rey hoje protesta? (DUHEM, 1974, p. 319).

    Como mencionado anteriormente, essa crtica pragmatista vista por Duhem como uma nova fonte de ceticismo (neoceticismo) (DUHEM, 1900b, p. 251). Como Duhem detecta que h uma forte tendncia geral da concepo moderna de teoria fsica, na direo de uma viso convencionalista/empirista, e entende que esta se baseia em anlises epistemolgicas e metodolgicas inadequadas da natureza da teoria fsica como fsica matemtica, se ele se prope, por um lado, combater ao lado de Poincar a concepo metafsica das explicaes causais, por outro, e, principalmente, ele almeja, fundamentalmente, procurar evitar que essa demarcao da metafsica se transforme numa abordagem convencionalista/pragmatista da cincia, como quer Poincar.

    A concepo pragmatista/empirista na Frana, com Poincar, tem origem na viso inglesa do mecanicismo, com Maxwell, que rejeita a construo de teorias fsicas em conformidade com os valores racionalistas, de tradio francesa, tal como o princpio da unidade lgica, exigindo apenas a adequao emprica das teorias (POINCAR, 1901). Essa proposta argumenta a favor de se ater a uma anlise lgica da teorizao cient ca, que, associada ao mtodo emprico, deve proteger a cincia da metafsica e de outras interferncias especulativas. Mas, por outro lado, no se preocupa com a organizao racional da teoria, com seu sistema axiomtico, em particular, com o princpio da unidade lgica, muito caro concepo racionalista da cincia.

    Para essa concepo pragmatista, a crtica puramente lgica da cincia e a abordagem empirista, com o mtodo experimental, so su cientes para garantir a autonomia do domnio cient co, libertando-o dos estreitos vnculos metafsicos.

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    No entender de Duhem, o resultado dessa oposio radical metafsica uma concepo de cincia que possui fortes implicaes cticas. Denomino, seguindo Abel Rey (REY, 1904, p. 722), tais implicaes de neoceticismo, para distingui-las do ceticismo resultante da combinao de metafsica com fsica. Este ltimo gera o pessimismo histrico. A concepo racionalista da cincia de Duhem tem como importante preocupao evitar esses dois tipos de ceticismo.

    De acordo com Duhem, contudo, existe um con ito ou uma tenso entre a metodologia instrumental de Poincar e seu instinto natural, como um fsico que reconhece a importncia da aplicao do princpio da unidade lgica e atribui um valor objetivo teoria fsica. Duhem salienta tal ambivalncia no trabalho de Poincar com as seguintes palavras:

    O escrutnio lgico que ele desenvolveu com impiedoso rigor levou Henri Poincar a um beco com a seguinte concluso bastante pragmtica: a fsica terica apenas uma coleo de prescries. Contra esta proposio, ele empreendeu um tipo de revoluo, tendo proclamando, com veemncia, que a teoria fsica nos proporcionou algo distinto de um mero conhecimento de fatos, e que ela nos levou a descobrir as relaes reais das coisas umas com as outras. (DUHEM, 1974, p. 328).

    Essa tenso re ete o fato de que Poincar no dispe de um sistema apropriado de valores epistemolgicos, ns e normas metodolgicas, como tambm de princpios para dar conta racionalmente do processo da teorizao cient ca. Como resultado dessa ausncia de recursos de anlise, veri ca-se claramente um carter arti cial da unidade entre os valores objetivo e prtico da teoria fsica proposta pelo pragmatismo (DUHEM,1974, p. 328). No h consistncia entre os seus recursos metodolgicos que levam ao valor prtico da teoria fsica e seu instinto e intuio que pedem uma organizao unitria da fsica, e mesmo um valor objetivo.

    Finalmente, pode-se interpretar o pragmatismo como uma mudana epistemolgica ad hoc com relao viso empirista/indutivista da fsica, ao invs de consider-lo como uma reformulao prpria do mtodo cient co, mais compatvel com uma fsica verdadeiramente matemtica, uma vez que a concepo pragmatista/convencionalista contempornea incorpora a viso do empirismo clssico e uma srie de suas teses, exceto por certas inovaes, tais como a rejeio de experimentos cruciais e a introduo de convenes na fsica terica.

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    III O SUBPROGRAMA NEOCLSSICO DO REALISMO CONVERGENTISTA ESTRUTURAL DE DUHEM

    A teoria da cincia de Duhem, concebida como uma loso a sistemtica, conceitualmente bem articulada, contrasta nitidamente com o mtodo no-sistemtico do pragmatismo/empirismo empregado na anlise crtica das teorias cient cas. A abordagem no-sistemtica, fragmentada, do procedimento metodolgico de Poincar a raiz da crtica duhemiana das inconsistncias e do carter ilgico da pesquisa pragmatista/positivista na cincia.

    Em resumo, Duhem alega que a concepo pragmatista/empirista da teoria fsica (a) no dispe da maquinaria metodolgica articulada e necessria para proporcionar uma soluo racional do problema da combinao dos valores prtico e objetivo da teoria fsica, e em particular para descrever o progresso racional e contnuo da cincia. Ela possui uma metodologia inadequada e exageradamente simpli cada e fragmentada, para elaborar uma descrio racional da fsica, com o agravante de ser uma metodologia (tendo rejeitado, de modo no crtico, a metafsica) que se encontra reduzida a uma crtica puramente lgica da cincia. justamente esse mtodo incompleto, no-sistemtico, fragmentado e gradativo de abordagem da teorizao cient ca que se revela insu ciente para proporcionar uma descrio racional dos problemas fundamentais de uma teoria da cincia. Alm disso, (b) essa concepo, a partir da aplicao do princpio da subdeterminao da teoria pelos dados (PSTD), gera o ceticismo.

    A principal estratgia de Duhem para se opor a essa concepo convencionalista/pragmatista a formulao de uma teoria da dinmica do crescimento do conhecimento, na busca da realizao de uma teoria ideal que representa uma classi cao natural das leis fsicas. A concepo de teoria fsica dessa teoria dinmica concebida como uma alternativa intermediria (middle way) a uma concepo metafsica (no sentido de fundamento) e a uma concepo pragmatista/indutivista/empirista da teoria fsica e de seu crescimento.

    Duhem desenvolve sua re exo, contrariamente ao modo de re exo dos convencionalistas/pragmatistas, sobre a teoria fsica como um sistema de objetivos, teses, valores, normas e padres que transcendem a lgica e o mtodo emprico, para construir meios racionais e objetivos que permitam a apreciao e a avaliao crtica da teoria fsica.

    A metodologia da demarcao de Duhem com respeito concepo metafsica da cincia, no sentido fundacionalista de Descartes, segue a estratgia de rede nir a noo de teoria fsica como fsica matemtica, retirando dela os objetivos de busca pelas causa reais do fenmenos e atendo-se ideia da

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    introduo de ordem e classi cao entre as leis empricas. Duhem explica da seguinte forma sua proposta para a natureza da teoria fsica:

    [A teoria fsica] um sistema de proposies matemticas, deduzidas de um pequeno nmero de princpios que buscam representar, de maneira to simples, completa e exata quanto possvel, um conjunto de leis experimentais. (DUHEM,1974, p. 19).

    Essa de nio de teoria fsica como um sistema que tem por objeto a representao das leis empricas se baseia na ideia de representao como uma relao simblica entre conceitos fsicos e propriedades fsicas e no uso da lgebra como a linguagem apropriada para expressar e manipular tais smbolos. Essa de nio salienta o carter representacional, e no o explicativo (tal como proposto pelo mecanicismo), como a propriedade essencial da teoria cient ca. Ela ressalta que a teoria fsica busca a classi cao e a organizao das leis empricas, e no explicaes causais. J a concepo metafsica de ne que a natureza da fsica terica proporciona semelhantes explicaes. Desse modo, o distanciamento de Duhem da tradio metafsica estabelecido j na de nio da teoria fsica.

    A metodologia de Duhem desenvolve um mtodo para construir a teoria fsica a partir dessa de nio: o mtodo abstrato (DUHEM, 1974, p.78). Esse mtodo substitui o mtodo sinttico de construo de modelos mecnicos de Descartes e os estratagemas dos modelos de massas invisveis em movimento de Poincar, aproximando-se do mtodo para construo de teorias fsicas, como o da termodinmica.

    Quatro pontos devem ser observados. (1) O fato de que o carter mesmo da teoria fsica a representao signi ca que esta um sistema de smbolos lingusticos e que no h qualquer relao de natureza entre o signo e as coisas signi cadas. (2) A linguagem prpria para representar as propriedades fsicas a matemtica e a linguagem matemtica apropriada a lgebra. (3) A natureza da teoria fsica como representao uma consequncia automtica de uma anlise lgica estrita da mesma. (4) O mtodo para construir semelhante de nio de teoria fsica proporciona um tipo de de nio operacional. Esse aspecto, embora no tenha sido notado, fundamental para a de nio de teoria fsica. Tal de nio no se pretende nem especulativa nem vaga, mas funcional e operacional, isto , derivada de um conjunto de regras espec cas e determinadas, designadas para produzir teorias fsicas particulares, de maneira efetiva (DUHEM, 1974, p.20). Esse aspecto operacional supostamente oferece os meios para evitar a introduo de indeterminaes e modelos mecnicos em fsica e tambm para demarc-la da metafsica.

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    A operacionalizao da demarcao com relao metafsica realizada pelo procedimento de como construir teorias fsicas. O meio para evitar a metafsica o controle na construo da teoria fsica. Esse mtodo consiste em (i) uma teoria da formao de conceitos; (ii) critrios para escolher os conceitos primitivos; (iii) critrios e restries metodolgicas para a seleo das hipteses das teorias; (iv) a adoo da anlise lgica que um dos dois componentes do mtodo histrico-crtico de Duhem como o instrumento analtico apropriado, junto com a teoria da mensurao, a m de construir a fsica terica como representao e no explicao.

    A teoria da formao dos conceitos estabelece as exigncias que os conceitos devem satisfazer, para serem aceitos como conceitos da fsica terica. O instrumento metodolgico fundamental dessa teoria da formao dos conceitos a teoria da mensurao. Esse instrumento garantir a condio de que a fsica terica deve ser uma teoria matemtica. Ele garantir as condies para aceitar em fsica terica, conceitos capazes de serem associados com nmeros. Este seu importante instrumento metodolgico para minimizar as indeterminaes na teoria fsica. Apenas de nies e conceitos bem estabelecidos devem ser usados em teorias fsicas. O que vem a ser de nies e conceitos bem estabelecidos deve ser decidido com a ajuda de (a) uma teoria da mensurao; (b) critrios para escolher conceitos primitivos (guias metodolgicos para a seleo de conceitos primitivos); (c) critrios e restries metodolgicas para a seleo de pressuposies/hipteses bsicas.

    A aplicao consistente e rigorosa desse mtodo abstrato deve fazer da fsica terica um sistema verdadeiramente racional, como enfatiza Duhem: [...] a physical theory will then be a system of logically linked propositions and not an incoherent series of mechanical or algebraic models (DUHEM, 1974, p. 107).

    Se, por um lado, o mtodo abstrato operacionaliza a demarcao entre fsica e metafsica, no se pode esquecer, por outro lado, que a concepo de Duhem oposta concepo pragmatista/empirista. Essa oposio tambm expressa claramente em sua teoria da formao dos conceitos. Sua viso dos termos tericos em fsica terica, da relao entre teoria e experimento, do problema das teorias equivalentes e do problema da escolha de hipteses marca claramente sua diferena da concepo pragmatista/empirista.

    Para ele, esses assuntos vo alm de uma anlise puramente lgica da fsica terica. E precisamente esse aspecto expresso implicitamente em algumas de suas teses epistemolgicas, ontolgicas e axiolgicas que o diferencia de seus contemporneos, em particular de Poincar e mesmo de Mach, que est comprometido com uma concepo pragmatista/empirista mais radical. Pode-

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    Uma reconstruo racional do racionalismo neoclssico

    se ver igualmente que sua teoria da formao de conceitos mais prxima das concepes mais recentes de Carnap e Hempel sobre o assunto, enquanto os pragmatistas/empiristas so mais prximos das primeiras concepes destes.

    Uma concluso imediata dessa demarcao que agora h incomensurabilidade entre a teoria fsica e a metafsica (DUHEM, 1893a), por haver incomensurabilidade entre as proposies pertencentes primeira e aquelas pertencentes segunda. Como Duhem a rma,

    [...] no pode haver acordo ou desacordo entre uma proposio acerca de uma realidade objetiva e outra proposio que no possui qualquer relevncia objetiva. Sempre que as pessoas citam um princpio da fsica terica em defesa de uma doutrina metafsica ou de um dogma religioso, cometem um engano, pois atribuem a este princpio um signi cado que no lhe prprio, uma relevncia que no lhe pertence. (DUHEM, 1974, p. 287).

    O segundo ponto da de nio que a interpretao padro da proposta de Duhem compreende esta ltima como o paradigma de uma concepo convencionalista/instrumentalista/pragmatista (CARTWRIGHT, 1983, p. 76-77, 87-99; VAN FRAASSEN, 1980, p. 2, 34-36, 86; GIEDYMIN 1982). Com respeito a essa de nio de teoria fsica, Mary Hesse a rma que [...] a de nio mesma de Duhem de teoria fsica, apresentada no incio do livro, a quintessncia do instrumentalismo (HESSE 1980, p. 208). John Worrall tambm tece os mesmos comentrios a respeito dessa de nio, bem como da de Poincar: Tanto Duhem como Poincar eram de nitivamente instrumentalistas nos meus termos (WORRALL, 1982, p. 203)5.

    No h, contudo, qualquer surpresa a propsito dessa interpretao instrumentalista/convencionalista da de nio apresentada por Duhem da natureza da teoria fsica: tal de nio no diferente daquelas formuladas por seus contemporneos pragmatistas, a exemplo de Mach e Poincar, como vimos acima (MACH, 1960, p. 586-595; 1986; POINCAR, 1952; 1902), ou Le Roy (LE ROY, 1899, p. 526-534). A nal, o objetivo deles o mesmo: demarcar-se da metafsica.

    Consequentemente, com relao estratgia para realizar o objetivo de demarcar a teoria fsica da concepo metafsica, Duhem toma partido com a maioria de seus contemporneos que se opem abordagem metafsica da teoria fsica. As concepes de Duhem e de Poincar acerca do objetivo da teoria fsica so subdeterminadas com respeito tarefa de demarcar fsica e metafsica. Ambas as concepes de nem a natureza da teoria fsica, de modo a realizar semelhante demarcao.

    5 Worrall reavalia, entretanto, a interpretao instrumentalista que Popper apresenta de Duhem.

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    Nossa tese se ope radicalmente interpretao-padro de Duhem como um instrumentalista/convencionalista. A comparao de Duhem com Poincar, a de nio de teoria fsica de Duhem e sua inteno de demarcar esta ltima da metafsica no autorizam a concluso de que ele desenvolve tambm uma concepo convencionalista/pragmatista/instrumentalista da cincia. Ao contrrio, a principal preocupao da teoria da cincia de Duhem exatamente evitar esta ltima concepo da cincia.

    em virtude, segundo nossa hiptese, de sua teoria da cincia que Duhem se separa de outros tericos da cincia, particularmente dos convencionalistas/pragmatistas. Sem o conjunto de compromissos expressos por tal teoria, a racionalidade da empresa cient ca seria reduzida s meras intuies do fsico enquanto fsico e a descrio racional do progresso cient co tornar-se-ia impossvel. O progresso cient co pareceria ento um acidente. Por essa razo, atravs da reconstruo e anlise do signi cado desses compromissos, que pretendemos reconstruir em sua teoria da cincia, que Duhem busca uma concepo los ca incompatvel com uma interpretao instrumentalista/convencionalista da teoria fsica. Sua concepo de teoria fsica no apenas diferente da interpretao usual que a reduz concepo pragmatista/convencionalista, mas se desenvolve fundamentalmente em oposio a essa escola e, em particular (de acordo com o prprio Duhem), contra a viso pragmatista de Poincar.

    No intuito de demarcar-se dos convencionalistas/pragmatistas, Duhem desenvolve um conjunto de teses ontolgicas, epistemolgicas e axiolgicas que formam uma moldura metafsica que estabelece as condies e restries para elaborar sua teoria da dinmica do desenvolvimento cient co contnuo e racional. Duhem rejeita a ideia do sujeito transcendental do racionalismo clssico, que estava equipado epistemologicamente para ter acesso direto s essncias do mundo. Ele substitui o sujeito transcendental por um sujeito falvel submetido tese empirista do conhecimento. Todavia, se, por um lado, ele rejeita o sujeito transcendental do conhecimento e, portanto a possibilidade do acesso direto ao conhecimento certo, por outro lado, Duhem formula uma tese ontolgica que a rma a existncia de uma teoria transcendental, uma teoria ideal, que descreveria uma classi cao natural das leis da fsica.

    Esses dois componentes de sua estrutura metafsica formam o ponto de partida do conhecimento conhecimento hipottico, pois o sujeito falvel e o ponto de chegada a teoria ideal que representa uma classi cao natural das leis da fsica. Como ir de um estado de conhecimento (hipottico) a outro (conhecimento certo)? Por meio de uma trajetria que se realiza no tempo e que deve ser traada e conduzida pela teoria da dinmica do crescimento cient co. Assim, a teoria da dinmica uma teoria normativa capaz de elaborar comandos

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    e regras metodolgicas com a nalidade de conduzir os cientistas, na elaborao das teorias cient cas, realizao da teoria ideal. Esses traos gerais da ideia de Duhem de como transformar as teorias cient cas, como conhecimento hipottico, em conhecimento certo, a qual se daria com a realizao da teoria ideal, so elaborados por um cientista que, tendo pleno conhecimento do estado de conhecimento da poca, utiliza os novos modelos cient cos para explor-los heuristicamente, no forjamento de instrumentos capazes de resolver problemas de ordem epistemolgica.

    O problema que se coloca quanto possibilidade do conhecimento objetivo e certo, dado que o indivduo falvel. Duhem constri essa soluo quanto possibilidade do conhecimento certo a partir do conhecimento hipottico (compatvel com a ideia de que o sujeito do conhecimento falvel) mediante a teoria dinmica do crescimento cient co. A soluo encontrar uma trajetria do desenvolvimento cient co que evolua para um estado do conhecimento representado pela teoria ideal. O modelo dessa proposta so as solues de equaes diferenciais, entre elas a soluo de equilbrio, e as solues como trajetrias que evoluem para essa soluo de equilbrio. No caso de Duhem, essa proposta de uma teoria dinmica uma proposta normativa. A sua teoria dever propor a trajetria a seguir e dever criar regras e comandos, a m de determinar a conduta dos cientistas na busca do que ele entende por teoria ideal como classi cao natural das leis empricas.

    O segundo elemento dessa teoria o compromisso com a tese racionalista de que o princpio fundamental da teoria fsica o princpio da unidade lgica (PUL). Esse compromisso racionalista um componente fundamental, na elaborao da teoria dinmica. Com esse compromisso, ele quer evitar as indeterminaes que so introduzidas pela adoo do princpio da subdeterminao da teoria pelos dados. Dessa forma, Duhem escolhe, entre os dois princpios, aquele que aumenta a possibilidade do sucesso da teoria dinmica na realizao do seu m, que a teoria ideal. O princpio da unidade lgica um princpio do racionalismo clssico e pertence ao ncleo duro da racionalidade.

    Um aspecto importante do racionalismo neoclssico que sua construo est claramente associada cincia do sculo XIX, que no mais comportava os pressupostos do racionalismo clssico e exigia uma reformulao de suas bases epistemolgicas, axiolgicas e ontolgicas. Por essa razo, atribumos complexidade da cincia do sculo XIX o aparecimento de duas concepes epistemolgicas da teoria fsica in uenciadas pela interpretao que deram a essa complexidade: a concepo de Duhem e a de Poincar.

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    A emergncia de vrias reas autnomas da fsica, como termodinmica e eletromagnetismo, colocaram em xeque a capacidade uni cadora da mecnica interpretada como construo de modelos mecnicos. A ascenso e queda de teorias, como, por exemplo, a teoria do calrico, colocaram em questionamento o sujeito transcendental e sua capacidade de acesso s essncias e elegeram o sujeito falvel com acesso direto s observaes empricas como seu princpio epistemolgico (CHIAPPIN, 1989). As di culdades de interpretao dos testes experimentais, por exemplo, sobre a teoria da luz, colocaram em questo as teses epistemolgicas clssicas do mtodo experimental.

    Poincar manteve o princpio da separabilidade e testabilidade isolada das hipteses e introduziu estratagemas convencionalistas que consistem na construo de modelos de massas invisveis e movimentos, para mostrar a impossibilidade de se usar o mtodo experimental como mtodo de prova. Poincar rejeitou, desse modo, a possibilidade de que a experincia decida conclusivamente pelo valor de verdade das hipteses.

    Duhem rejeitou esses dois princpios clssicos. Todavia, ele substituiu o primeiro pela tese D, que a rma que apenas a teoria fsica como um todo pode ser passvel de teste e no suas hipteses. Ele presumiu que o mtodo experimental no pode decidir conclusivamente pela verdade da teoria, mas pode decidir conclusivamente por sua refutao. A razo dessa separao metodolgica que, na interpretao de Duhem, o processo de teste envolve duas teorias e a natureza. Ele introduz, por conseguinte, um sistema complexo para analisar o processo de teste que pressupe dois momentos metodolgicos: de um lado, refutao e rejeio, e, do outro, um mtodo de escolha racional com elementos extralgicos para operar essa dicotomia metodolgica e selecionar a melhor teoria. Alm disso, Duhem introduziu o princpio de que no existem fatos brutos, mas fatos impregnados de teoria. Portanto, no h uma separao entre base emprica e teoria. Duhem extrai da natureza da fsica terica como estrutura representacional essa ideia dos fatos impregnados de teorias:

    Um experimento em fsica a observao precisa dos fenmenos acompanhada por uma interpretao dos mesmos; esta interpretao substitui os dados concretos realmente obtidos atravs da observao por representaes abstratas e simblicas que lhes correspondem em virtude das teorias admitidas pelo observador. (DUHEM, 1974, p. 174).

    Porm, o mais extraordinrio dessa conexo entre cincia e loso a vem da emergncia de novos instrumentos matemticos e das diferentes interpretaes que foram atribudas a eles por esses dois excepcionais cientistas e tambm

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    Uma reconstruo racional do racionalismo neoclssico

    lsofos. Talvez sejam essas interpretaes que deram origem s diferentes concepes da teoria fsica desenvolvidas por esses autores.

    No nal do sculo, emergiram novos sistemas que apresentaram a propriedade da dependncia hipersensvel das condies iniciais. Essa sensibilidade s condies iniciais torna a previsibilidade do futuro muito difcil. Trajetrias que tm suas origens muito prximas podem afastar-se completamente, ao evoluir no tempo. Pequenas causas produzem grandes efeitos. Hadamard foi um matemtico que, no nal do sculo XIX, inventou um desses sistemas que tinha essa propriedade. O fsico David Ruele assim se refere a essa inveno:

    O sistema considerado por Hadamard uma espcie de bilhar retorcido, em que a superfcie plana da mesa substituda por uma superfcie de curvatura negativa. Ele se interessa pelo movimento de um ponto ligado superfcie sobre a qual esse ponto se desloca sem atrito. O bilhar de Hadamard , portanto, o que chamamos em termos tcnicos, o uxo geodsico sobre uma superfcie de curvatura negativa. Esse uxo geodsico muito fcil de se analisar matematicamente, o que permitiu Hadamard provasse o teorema da dependncia hipersensvel das condies iniciais. (RUELE, 1993).

    Poincar estava ciente de que certos sistemas possuam tais propriedades, uma vez que ele mesmo foi quem descobriu essas propriedades em alguns sistemas e tornou-se o inventor dos sistemas dinmicos. Ele explora essa estranha propriedade do sistema de ser ao mesmo tempo determinado, pois regulado por equao, e imprevisvel. Outra maneira de expressar isso era o sistema determinstico, no qual o acaso era possvel. Assim o autor se expressa:

    Uma causa muito pequena, que nos escapa, determina um efeito considervel que no podemos deixar de ver, e, ento, dizemos que esse efeito se deve ao acaso (POINCAR, 1908, captulo 4).

    Como Poincar criou a teoria dos sistemas dinmicos, ele certamente teve a possibilidade de encontrar sistemas com vrios estados de equilbrio, nos quais no se poderia prever quais seriam as trajetrias escolhidas, devido s condies iniciais de hipersensibilidade, nem para qual estado de equilbrio elas acabariam indo. O sistema comporta determinismo e imprevisibilidade.

    Esse fator de indeterminao proveniente das caractersticas dos sistemas dinmicos caticos e a indeterminao trazida pela mecnica analtica (se podemos construir um modelo mecnico, podemos construir in nitos, para a mesma base emprica) oferecem fortes subsdios para a escolha de Poincar de uma concepo convencionalista/pragmatista sustentada metodologicamente pelo princpio da subdeterminao da teoria pelos dados e pela crena de que no h experimentos

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    conclusivos em fsica. A implicao epistemolgica disso que a teoria fsica s possui um valor prtico e instrumental, sem qualquer adeso a um valor de conhecimento. Poincar pondera com mais fora os resultados da teoria fsica do que seus princpios los cos e, ao contrrio, elabora os princpios los cos a partir de sua prtica cient ca.

    Nesse contexto, Poincar aceita a pluralidade das diversas reas da fsica, como eletromagnetismo, mecnica e termodinmica, inclusive valorizando-a em seu aspecto heurstico, a ponto de dizer que no se furtaria a utilizar teorias contraditrias, conforme o princpio da subdeterminao da teoria pelos dados, desde que o uso das mesmas facilitasse o entendimento das propriedades fsicas dos fenmenos. Nesse sentido, essa concepo de cincia convencionalista/pragmatista, nos seus contornos epistemolgicos, ontolgicos, axiolgicos e metodolgicos, bastante consistente com o desenvolvimento trazido por Poincar com seus estudos sobre a teoria dos sistemas dinmicos, em particular da teoria do caos, que envolve determinismo com imprevisibilidade.

    Duhem, ao contrrio, parece estar comprometido com um ncleo duro de valores e princpios que so capazes de moldar as caractersticas de seu fazer cient co e da elaborao de sua imagem da cincia. Em particular, seu compromisso racionalista parece ser hierarquicamente um princpio constitucional de sua concepo de teoria fsica. Esse compromisso racional operacionaliza-se pela adeso ao princpio da unidade lgica e pela construo de critrios e regras para proporcionar decises.

    Nessa moldura de princpios e valores, ele constri uma teoria normativa do desenvolvimento cient co. Trata-se de uma teoria normativa, pois ela tem pretenses de orientar o comportamento dos cientistas, dizendo como construir uma teoria fsica com objetivos de representao das leis fsicas Esse carter normativo da teoria da cincia de Duhem (CHIAPPIN, 1989) ca bem claro quanto ao uso de sistemas dinmicos em fsica e aos novos instrumentos matemticos de Hadamard, que so os uxos geodsicos.

    O princpio da racionalidade to forte que, em nome dele, Duhem rejeita o trabalho de Hadamard, por acreditar que se trata de um instrumento intil em fsica, uma vez que, embora se trate de um sistema determinstico, ele no permite a previsibilidade. Em fsica, somente poderemos utilizar instrumentos que gozam, por exemplo, da propriedade da continuidade, no sentido de que as equaes levam de vizinhanas em vizinhanas. E esse no o caso da teoria dos sistemas dinmicos caticos, os quais tm a propriedade de serem hipersensveis s condies iniciais.

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    Uma reconstruo racional do racionalismo neoclssico

    Para evitar esse tipo de indeterminao e fugir das consequncias epistemolgicas da concepo de Poincar, Duhem formula as seguintes condies que um instrumento matemtico deve obedecer, para ser aplicado em fsica: (1) ele deve provar que uma proposio derivada permanea aproximadamente exata, quando a primeira apenas aproximadamente verdadeira; e (2) ele deve mostrar que o domnio dessas duas aproximaes delimitado. necessrio xar o limite de erro admitido no resultado, quando o grau de preciso dos mtodos de medio dos dados conhecido, bem como o erro provvel que pode ser aceito, quando desejamos conhecer o resultado no interior de um grau de nido de aproximao (DUHEM, 1974, p. 143).

    Duhem cita as geodsicas de superfcies de curvatura negativa de Hadamard, com mltiplas conexes e in nitas concavidades, como um exemplo de instrumento matemtico a ser evitado (DUHEM, 1974, p. 139). possvel haver uma situao na qual tenhamos teorias distintas construdas logicamente, que concordem com os mesmos resultados empricos. Nesse caso, tal como Poincar, deve-se trat-las como equivalentes? De modo algum, a rma Duhem. Como vimos, ele situa a racionalidade das decises para alm de uma simples adequao emprica e lgica.

    O desdobramento desse racionalismo de Duhem, comprometido com o princpio da unidade lgica, defender a uni cao da fsica, agora no mais pela mecnica com suas indeterminaes, mas pela termodinmica, que , para ele, o paradigma de uma teoria fsica matemtica representacionista. A termodinmica de Duhem a termodinmica de Gibbs (DUHEM, 1886), com suas funes e representaes da energia e entropia e seus princpios associados de mnimo e de mximo. E, principalmente, a possibilidade, por meio de um algoritmo, de construir essas funes a partir das leis empricas da termodinmica, construo na qual tem papel decisivo a relao Duhem-Gibbs (CALLEN, 1985).

    CHIAPPIN; J. R. N.; LEISTER; A. C. A rational reconstruction of the research program of neoclassical rationalism: the subprogrammes of conventionalism/pragmatism (Poincar) and of convergent structural realism (Duhem). Trans/Form/Ao, Marlia, v. 34, n.2, p. 103-134, 2011.

    ABSTRACT: The aim of this article to propose a rational reconstruction of a research program of the neoclassical rationalism as a replacement for the program of the classical rationalism. The neoclassical program has as his main objective the construction of a new conception of science

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    CHIAPPIN; J. R. N.; LEISTER; A. C.

    as representation instead of explanation. It is made of three subprograms: the conventionalism/pragmatism of Poincar, the structural realism of Duhem and the logical empirism.

    KEYWORDS: Conventionalism. Convergent Realism. Neoclassical rationalism.

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    Recebido em: 7 de janeiro de 2011

    Aprovado em: 2 de maro de 2011