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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA FACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA
GUILHERME DE OLIVEIRA ALONSO
A COLABORAÇÃO PREMIADA E OS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL
CURITIBA
2018
6
GUILHERME DE OLIVEIRA ALONSO
A COLABORAÇÃO PREMIADA E OS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito no Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba. Orientador: Prof. Dr. Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini.
CURITIBA 2018
7
GUILHERME DE OLIVEIRA ALONSO
A COLABORAÇÃO PREMIADA E OS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito no Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba. Banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
__________________________________________ Prof. Dr. Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini __________________________________________ Prof. Dr. Fábio André Guaragni __________________________________________Prof. Dr. Rodrigo Sánchez Rios _________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Fernando Moro __________________________________________Prof. Dr. René Ariel Dotti
Curitiba, 29 de junho de 2018.
8
RESUMO
Pelo presente trabalho, pretende-se analisar em que medida a colaboração premiada, tanto em sua previsão legal (sob a égide da Lei nº 12.850/2013), quanto em sua interpretação prática e jurisprudencial, pode ter transformado os fundamentos constitucionais do processo penal no Brasil. Para tanto, serão apresentados: a) a estrutura principiológica do processo penal brasileiro anterior ao referido diploma; b) os fundamentos autorizadores da colaboração premiada, sob as perspectivas da política criminal, da teoria da pena, da criminalidade empresarial e do processo penal (mais especificamente, da justiça penal negocial); c) o modelo de colaboração premiada estabelecido pela lei de organizações criminosas (natureza jurídica, cabimento, legitimidade e procedimento); e d) as mudanças individualizadas que podem ser percebidas da aplicação teórica e prática do instituto, analisando-se a doutrina e a jurisprudência para apresentar conclusões sobre eventuais alterações conceituais dos princípios que regem o processo penal. Dessa forma, pretende-se comparar os dogmas do processo penal pré-colaboração premiada com a sua leitura após a ampla adoção do referido instrumento. Palavras-chave: processo penal, colaboração premiada, princípios constitucionais do processo, direito penal premial, justiça penal negocial.
9
ABSTRACT
The purpose of this paper is to analyze how judicial collaboration, both in its legal prediction (under the aegis of Law nº. 12.850 / 2013) and in its practical and judicial interpretation, may have transformed the constitutional principles of the criminal process in Brazil. To do so, the following will be presented: a) the principiological structure of the Brazilian criminal procedure prior to said diploma; (b) the authorizing grounds for the judicial collaboration, from the perspective of the criminal policy, of the theory of punishment, of corporate crime and of criminal proceedings (more specifically criminal bargaining); c) the judicial collaboration model established by the law of criminal organizations (legal nature, suitability, legitimacy and procedure); and d) the individualized changes that can be perceived from the practical application of the institute, analyzing the doctrine and jurisprudence to present conclusions on possible conceptual changes of the principles that govern the criminal process. In this way, we intend to compare the dogmas of the pre-collaboration criminal process with its reading after the wide adoption of this instrument. Key words: criminal proceedings, judicial collaboration, constitutional principles of the process, premiary criminal law, criminal bargaining.
10
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13
1 O PARADIGMA DO PROCESSO PENAL PRÉ-COLABORAÇÃO PREMIADA ... 17
1.1 O FUNDAMENTO EXISTENCIAL DO PROCESSO PENAL ........................... 17
1.2 AS BASES ESTRUTURAIS DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO .............. 19
1.3 O PRINCÍPIO NULLA POENA SINE JUDICIO ................................................ 26
1.4 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL .................................................................. 32
1.4.1 O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL ............................................... 41
1.5 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA ........................................... 43
1.6 OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA ................... 48
1.7 OS PRINCÍPIOS DA OBRIGATORIEDADE E DA INDISPONIBILIDADE DA
AÇÃO PENAL PÚBLICA ........................................................................................ 53
2. OS FUNDAMENTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA COLABORAÇÃO
PREMIADA ............................................................................................................... 60
2.1 A COLABORAÇÃO PREMIADA E A DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL .......... 60
2.1.1 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA
CRIMINAL ........................................................................................................... 60
2.1.2 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO CAUSA DE REDUÇÃO OU
EXCLUSÃO DA PENA........................................................................................ 64
2.1.2.1 AS TEORIAS ABSOLUTAS ................................................................ 67
2.1.2.2 AS TEORIAS RELATIVAS ................................................................. 70
2.1.2.3 TEORIAS MISTAS OU UNIFICADAS ................................................. 76
2.1.3 A REPARAÇÃO DO DANO COMO TERCEIRA VIA DO DIREITO PENAL
............................................................................................................................ 76
2.3 A CRIMINALIDADE EMPRESARIAL E SUA COMPLEXIDADE PROBATÓRIA
............................................................................................................................... 79
2.4 A JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL ....................................................................... 91
2.4.1 A JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA94
2.4.2 A JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL NA ITÁLIA ............................................ 100
3 A COLABORAÇÃO PREMIADA DA LEI Nº 12.850/2013 ................................... 106
3.1 AS CONVENÇÕES DE PALERMO E MÉRIDA ............................................. 106
3.2 A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ANTECEDENTE ........................................... 109
3.2.1 A LEI Nº 8.072, DE 25 DE JULHO DE 1990 ............................................ 110
3.2.2 A LEI Nº 9.034, DE 3 DE MAIO DE 1995 ................................................ 111
3.2.3 A LEI Nº 9.080, DE 19 DE JULHO DE 1995 ............................................ 112
11
3.2.4 A LEI Nº 9.613, DE 3 DE MARÇO DE 1998 ............................................ 113
3.2.5 A LEI Nº 9.807, DE 13 DE JULHO DE 1999 ............................................ 114
3.2.6 A LEI Nº 12.683, DE 8 DE JULHO DE 2012 ............................................ 118
3.3 A ESTRUTURA LEGAL ................................................................................. 119
3.4 A NATUREZA JURÍDICA ............................................................................... 124
3.4.1 ASPECTO ETIMOLÓGICO ..................................................................... 125
3.4.2 NATUREZA PROCESSUAL PENAL: MEIO DE OBTENÇÃO E FONTE DE
PROVA ............................................................................................................. 125
3.4.3 NATUREZA PENAL: SISTEMA DE BENEFÍCIOS PENAIS .................... 128
3.4.4 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO INSTRUMENTO DE DEFESA .. 129
3.4.5 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO ATO NEGOCIAL COMPOSTO 131
3.5 OS SUJEITOS DA COLABORAÇÃO ............................................................. 132
3.5.1 O PAPEL DO COLABORADOR NO PROCESSO ................................... 132
3.5.2 OS LIMITES DE ATUAÇÃO DO ADVOGADO ........................................ 134
3.5.3 A LEGITIMIDADE CONCORRENTE DA POLÍCIA .................................. 136
3.6 PROCEDIMENTO .......................................................................................... 144
3.6.1 A NEGOCIAÇÃO ..................................................................................... 145
3.6.2 A PROPOSTA E A CELEBRAÇÃO DO ACORDO .................................. 147
3.6.3 A HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL ................................................................ 150
3.6.4 O JUÍZO DE EFICÁCIA ........................................................................... 154
3.6.4.1 A SENTENÇA ................................................................................... 155
3.6.4.2 A EFICÁCIA E A EFETIVIDADE DO ACORDO ................................ 155
3.6.5 A RESCISÃO DO ACORDO .................................................................... 157
3.7 O SISTEMA DE BENEFÍCIOS E OBRIGAÇÕES........................................... 160
3.7.1 A AMPLITUDE DOS BENEFÍCIOS E OBRIGAÇÕES ............................. 161
3.7.2 O MOMENTO DE CONCESSÃO DOS BENEFÍCIOS ............................. 165
4 O PROCESSO PENAL BRASILEIRO PÓS-COLABORAÇÃO ........................... 168
4.1 AS POSSÍVEIS TENSÕES PRINCIPIOLÓGICAS A PARTIR DE ACORDOS
REALIZADOS ...................................................................................................... 168
4.1.1 OS CASOS ANALISADOS ...................................................................... 168
4.1.1.1 PAULO ROBERTO COSTA.............................................................. 169
4.1.1.2 DELCÍDIO DO AMARAL GOMEZ ..................................................... 171
4.1.1.3 JOÃO CERQUEIRA DE SANTANA FILHO ...................................... 171
4.1.1.4 LUIZ ANTÔNIO DE SOUZA ............................................................. 172
12
4.1.2 AS POSSÍVEIS TENSÕES DECORRENTES DAS PREVISÕES DE
CUMPRIMENTO IMEDIATO DE PENA ............................................................ 173
4.1.2.1 A CONCILIAÇÃO COM O PRINCÍPIO DO NULLA POENA SINE
JUDICIO ....................................................................................................... 175
4.1.2.2 O CONFLITO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DE
INOCÊNCIA E DA AMPLA DEFESA ............................................................ 186
4.1.3 AS POSSÍVEIS TENSÕES DECORRENTES DA FIXAÇÃO PRÉVIA DE
PENA E OUTROS BENEFÍCIOS NÃO PREVISTOS EM LEI ........................... 190
4.1.3.1 A CONCILIAÇÃO COM O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL ............. 191
4.1.3.1.1 A VINCULAÇÃO DO JUIZ AOS BENEFÍCIOS NA
HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL ..................................................................... 191
4.1.3.1.2 A IMPARCIALIDADE DO JUIZ E A HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL
................................................................................................................... 197
4.1.3.1.3 OS IMPACTOS NO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL DAS
CLÁUSULAS ESPECÍFICAS ..................................................................... 200
4.1.3.2 A CONCILIAÇÃO COM OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE,
OBRIGATORIEDADE E DA INDISPONIBILIDADE DA AÇÃO PENAL
PÚBLICA ...................................................................................................... 206
4.2 A COLABORAÇÃO COMO PROVA DA CONDENAÇÃO .............................. 216
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 225
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 234
13
INTRODUÇÃO
A colaboração premiada é, possivelmente, o mais polêmico instrumento
jurídico utilizado no processo penal brasileiro na atualidade. Sua recente e prolífera
aplicação transcendeu os limites do universo forense e passou a fazer parte de
populares e corriqueiras discussões sobre os rumos do país, o que se deve,
naturalmente, ao impacto social e político de operações de grande magnitude que
envolveram – e seguem envolvendo – figuras conhecidas do amplo público que, sob
uma perspectiva geral, passaram a se submeter, com reais riscos de
encarceramento, à justiça criminal.
A Operação Lava Jato é o principal vetor dessa mudança. No âmbito da
referida operação, inúmeros acordos de colaboração premiada foram celebrados,
revelando detalhes impressionantes sobre o funcionamento de um esquema de
cartel e corrupção envolvendo as maiores empreiteiras e os partidos políticos mais
poderosos do país. Centenas de indivíduos que, normalmente, não seriam expostos,
julgados e condenados, passaram a lidar com a realidade da prisão por fatos
extremamente graves que comprometem diariamente o funcionamento do país.
Paralelamente à Lava Jato, outras grandes operações foram deflagradas a
partir do uso reiterado da colaboração premiada, sempre com o objetivo de esmiuçar
os sórdidos detalhes de crimes cometidos em organizações criminosas comumente
instaladas na Administração Pública e envolvendo gigantescas empresas nacionais
e internacionais. A utilização do instrumento passou a se tornar não apenas uma
aparente necessidade, mas uma eficiente opção para os investigados e acusados
que, à mercê dos fatos iluminados por acordos anteriores, pouco têm a apresentar,
em termos de defesa de mérito, e precisam de alternativas capazes de ao menos
minorar as consequências dos atos criminosos desvelados.
O impacto social, com uma possível diminuição da percepção de impunidade,
não é suficiente, porém, para a aceitação irrestrita e sem maiores reflexões da
colaboração premiada. O instituto, seja sob uma perspectiva legal ou a partir de uma
observação empírica de sua utilização, merece aprofundado estudo, sobretudo
porque põe em xeque paradigmas legais e constitucionais do direito penal e,
especialmente, do processo penal pátrio. Conceitos consagrados sobre os princípios
inerentes ao tema, insculpidos ou não na Constituição, passaram a ser desafiados
pela nova dinâmica processual observada nas grandes operações acima
14
mencionadas. Some-se isso à mudança de interpretação do Supremo Tribunal
Federal sobre temas de igual repercussão (como a execução provisória da pena,
que, por ora, segue possível) e tem-se uma verdadeira revolução no sistema penal
brasileiro.
O presente trabalho, intitulado A colaboração premiada e os parâmetros
constitucionais do processo penal, desenvolve-se a partir dessa premissa. Mais
especificamente, a inspiração do estudo surgiu de pesquisa anterior na qual se
enfrentou a aparente contradição entre o princípio nulla poena sine judicio e
determinados acordos de colaboração premiada que estabeleceram,
independentemente de denúncia ou condenação criminal (sequer de 1º grau), uma
pena a ser cumprida imediatamente pelo investigado colaborador. Nesse sentido,
além de se analisar o referido princípio (que será igualmente tratado neste trabalho),
verificaram-se dois acordos de colaboração que continham exatamente essa
previsão. Ambos os colaboradores passaram a cumprir pena privativa de liberdade
(em regime semiaberto diferenciado) imediatamente após a homologação do acordo
pelo Supremo Tribunal Federal. Nessa dinâmica, criou-se uma situação de tensão
entre a garantia do art. 5º, LIV (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal”) e o exercício da autonomia da vontade pelo
colaborador.
Com maior reflexão sobre o tema, outros potenciais conflitos principiológicos
foram evidenciados a partir da prática pública da colaboração premiada. Mesmo nos
dois acordos mencionados, é possível verificar nova tensão, com o dispositivo
constitucional imediatamente anterior ao devido processo legal, qual seja a garantia
do Juiz natural (art. 5º, LIII – “ninguém será processado nem sentenciado senão pela
autoridade competente”). Afinal, ambos os colaboradores acabaram tendo sua
“pena” fixada por meio de um acordo de vontades do qual não fez parte, ao menos
em uma perspectiva material (considerando-se a homologação um ato de natureza
formal), qualquer autoridade judiciária.
Esse é o mote da delimitação do tema deste estudo, questionando-se de que
maneira – ou em que medida – a colaboração premiada, na forma como prevista em
lei e, sobretudo, nos moldes em que vem sendo aplicada em acordos homologados
no Supremo Tribunal Federal, apresenta pontos de tensão com os fundamentos
constitucionais do processo penal no Brasil.
15
O objetivo geral do trabalho, portanto, será analisar como a colaboração
premiada, tanto em sua previsão legal, quanto em sua interpretação prática e
jurisprudencial (fazendo-se a diferenciação a partir de precedentes conceituais e de
exemplos de acordos reais celebrados pela PGR e homologados pelo STF),
relaciona-se com dogmas constitucionais do processo penal (devido processo legal,
juiz natural, ampla defesa e contraditório, presunção de inocência, obrigatoriedade e
indisponibilidade da ação penal etc.). De forma específica, objetivar-se-á analisar: a)
a estrutura principiológica do processo penal brasileiro anterior à lei nº 12.850/2013;
b) os fundamentos autorizadores da colaboração premiada, sob as perspectivas da
política criminal, do direito penal e do processo penal; c) o modelo de colaboração
premiada estabelecido pela lei de organizações criminosas (natureza jurídica,
cabimento, legitimidade e procedimento); e d) as mudanças individualizadas que
podem ser percebidas da aplicação prática do instituto, com a apresentação de
conclusões sobre eventuais alterações conceituais dos princípios que regem o
processo penal.
Estruturalmente, o trabalho iniciará por um estudo dos paradigmas do
processo penal antes da difusão prática da colaboração premiada no Brasil. Nesse
sentido, serão analisados de forma individualizada os princípios que compõem – ou
compunham – a ordem constitucional do processo penal brasileiro, quais sejam os
princípios do nulla poena sine judicio, Juiz natural, Promotor natural, presunção de
inocência, contraditório e ampla defesa, obrigatoriedade e indisponibilidade da ação
penal pública. Após essa análise, serão estudados os fundamentos materiais e
processuais da colaboração premiada, com seu posicionamento sob as óticas da
política criminal, da dogmática penal e das teorias dos fins da pena, da criminalidade
empresarial e sua complexidade probatória e da justiça penal negocial (analisando-
se, nesse ponto, os modelos norte-americano e italiano).
Na terceira parte do trabalho, será dissecado o instituto da colaboração
premiada estabelecido pela Lei nº 12.850/2013, enfrentando-se sua evolução
legislativa, estrutura legal e aspectos formais de natureza jurídica, legitimidade e
procedimento na aplicação do instituto, além do sistema de prêmios estabelecido em
lei (imunidade, perdão judicial, redução de pena e benefícios na execução de pena),
que terá uma análise individualizada.
No último capítulo, serão utilizados acordos de colaboração já celebrados no
país como exemplos ilustrativos do potencial de transformação dos princípios
16
processuais penais estudados com a adoção ampla do instituto. A princípio, não se
pretende chegar a uma conclusão definitiva sobre a eventual inconstitucionalidade
da colaboração premiada ou de algumas de suas práticas. O que se busca é
demonstrar as possíveis tensões entre o formato de determinados acordos
(analisando-se, principalmente, os benefícios nesses concedidos) e os paradigmas
principiológicos tratados no primeiro capítulo, eventualmente sugerindo uma
mudança nesses conceitos.
Por fim, e considerando-se que o Mestrado em Direito Empresarial e
Cidadania tem linhas de pesquisa bem definidas que, sob uma primeira leitura,
podem ser de difícil aderência com o tema deste trabalho, faz-se necessária uma
justificativa. Embora seja visível a proximidade entre a colaboração premiada e o
Direito Penal Econômico, já que aquela tem plena e justificada utilização nesse (em
razão da similaridade estrutural e dificuldades probatórias que ocorrem tanto nos
crimes de organização criminosa, quanto nos crimes empresariais), o tema ora
tratado guarda maior proximidade com a questão da cidadania, que é outra parcela
da linha de pesquisa do Programa de Mestrado. Seja porque a função da
colaboração premiada é, naturalmente, conferir maior efetividade à justiça criminal,
seja porque este estudo atrai indispensáveis reflexões sobre o catálogo de Direitos
Fundamentais assegurados pela Constituição de 1988, que são essenciais à
justificação, ou não, desse novel instituto do sistema jurídico brasileiro.
17
1 O PARADIGMA DO PROCESSO PENAL PRÉ-COLABORAÇÃO PREMIADA
1.1 O FUNDAMENTO EXISTENCIAL DO PROCESSO PENAL
O processo penal existe simplesmente porque existe o Estado. Ou melhor: a
existência do processo se deve, em primeiro lugar, à evolução das civilizações
humanas que, “visando à continuidade da vida em sociedade, à defesa das
liberdades individuais, em suma, ao bem-estar geral (...) organizaram-se em
Estado”1. Embora não haja um consenso – e nem seja o interesse do trabalho
discuti-lo2 – sobre o surgimento do Estado, Tourinho Filho resume bem que “o certo
e recerto é que ele existe como uma realidade irreversível”3 que, após inúmeras idas
e vindas, chegou ao estágio atual, organizado, na sociedade ocidental, em órgãos
(chamados “Poderes”) que exercem suas funções básicas – legislativa,
administrativa e jurisdicional.
Os Poderes tripartidos têm funções conhecidas e que, ao menos de forma
mediata, relacionam-se com o processo penal. O legislativo tem a função de legislar,
criando leis que ditem o funcionamento da sociedade (devendo, na melhor das
hipóteses, coadunar-se com seus interesses); o executivo administra, com base
nessas leis; e o judiciário julga e aplica os mandamentos legais. Naturalmente, as
leis ditam não só sobre o funcionamento do Estado, mas sobre as limitações que se
impõem à sociedade. E o crime nada mais é que “a violação de um bem
juridicamente tutelado que afeta as condições da vida social, pelo que é imperativo
do bem comum a restauração da ordem jurídica que com o delito foi atingida”4.
Nos primórdios civilizatórios, já havia, obviamente, a ideia de transgressão de
regras, implícitas ou explícitas, de convivência humana. No entanto, como explica
Lopes Jr., ainda que houvesse uma reação a esse tipo de transgressão, não se tinha
a ideia de pena, mas a de vingança5, que com aquela não se confunde: “a vingança
1 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Volume 1. 35ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 18. 2 Já que é necessária uma profunda análise das sociedades politicamente organizadas, como os egípcios, hebreus e gregos, como bem alerta Almeida Junior (ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro. 4ª Edição. São Paulo: Freitas Bastos, 1959, p. 16). 3 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 19. 4 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Volume I. 2ª Edição. Campinas: Millenium, 2000, p. 3. 5 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 33.
18
implica liberdade, força e disposições individuais; a pena, a existência de um poder
organizado”.6
Quando o Estado “vence a atuação familiar (vingança do sangue e
composição)”7 e passa a exercer o papel de único titular do direito de punir8, surge,
como se afirmou acima, a ideia de processo, com um representante estatal (Juiz)
impondo a reprimenda (pena) ao transgressor da regra de convivência social (lei) em
busca de justiça. E mais, como sustenta Velloso, “a razão de ser do processo é a
erradicação de toda força ilegítima dentro de uma sociedade dada para manter um
estado perpétuo de paz e de respeito a normas adequadas de convivência que
todos devem acatar”9.
Em outras palavras, Marques afirma que, “para evitar a luta privada e impedir
a abdicação de direitos indisponíveis, o Estado exerce a função jurisdicional” 10 ,
incumbindo-se de restaurar o mandamento da ordem jurídica que tenha sido atingido
ou violado.
Lopes Jr. ressalta que, diferentemente do direito civil, que “se realiza todos os
dias, a todo momento, sem necessidade de ‘processo’” 11, o direito penal depende
de processo para sua efetivação: “somente depois do processo penal teremos a
possibilidade de aplicação da pena e realização plena do direito penal” 12. Como
bem ilustra Dias, o direito processual penal, conquanto autônomo, é “uma parte do
direito penal”13, formando com ele uma unidade, sem a qual não há um nem outro.
Sob a égide da lei (afastando-se aqui qualquer discussão sobre regimes
autocráticos), ao Estado não cabe agir “na conformidade de seu arbítrio, e sim,
subordinado a normas e princípios jurídicos” 14 , em postulados que “se aplicam
também ao direito de repressão e prevenção do Estado, o qual deve, por esse
motivo, ser exercido em função das regras do direito positivo”15.
Não obstante, é importante ressaltar, desde logo, que a lógica do exercício do
poder punitivo das sociedades modernas constituídas a partir da premissa acima
6 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 33. 7 Ibidem, p. 34. 8 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 3. 9 VELLOSO, Adolfo Alvarado. El garantismo Penal. Rosario: Juris, 2010, p. 10-11. Tradução livre. 10 MARQUES, op. cit., p. 9. 11 LOPES JR, op. cit., p. 34. 12 Ibidem, p. 34. 13 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Primeiro Volume. Coimbra: Coimbra, 2004, p. 23-24. 14 MARQUES, op. cit, p. 4. 15 Ibidem, p. 4.
19
delineada tradicionalmente se voltou a “garantir a segurança dos indivíduos, a
proteção da sua vida, do seu corpo, da sua liberdade e do seu patrimônio”16. Com
efeito, as regras do direito positivo às quais os Estados modernos historicamente se
submeteram tiveram objetivos bastante individualizados. Na segunda metade do
século XX, porém, a lógica mudou, com a tipificação de condutas voltadas à
prevenção de crimes de natureza supraindividual, como delitos econômicos, de
lavagem de dinheiro, contra o meio ambiente, de responsabilidade pelo produto,
tráfico de drogas, crime organizado, entre outros17.
Essa mudança de foco da atuação penal do Estado, que justifica – como será
melhor tratado adiante – a introdução de instrumentos modernos de combate à
criminalidade, como a colaboração premiada, a ação controlada e a figura
whistleblower, tem naturais reflexos na compreensão das regras fundamentais,
analisadas em uma breve perspectiva histórica e uma contextualização moderna,
que objetivam os próximos subcapítulos.
1.2 AS BASES ESTRUTURAIS DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
A parcela mais tradicional da doutrina brasileira relata que, historicamente,
houve um movimento pendular entre dois sistemas para o exercício do poder
punitivo pelo Estado, que variavam de acordo com o “predomínio da ideologia
punitiva ou libertária”18. Parte-se da premissa de que, até meados do Século XII,
vigia pelo mundo o Sistema Acusatório, em que o processo para a aplicação da
sanção penal era “essencialmente um processo de partes, no qual acusação e
defesa se contrapõem em igualdade de posições, e que apresenta um juiz
sobreposto a ambas”19. Após esse período inicial, teria havido uma migração do
processo penal para o Sistema Inquisitório, no qual as “funções de acusar, defender
e julgar encontram-se enfeixadas em uma única pessoa, que assume assim as
vestes de um juiz acusador”20.
16 DIAS, Figueiredo. O problema do Direito Penal no dealbar do terceiro milenio. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 99/2012, p. 35-50, Nov-Dez/2012. 17 ROXIN, Claus. La evolución de la política criminal, el Derecho penal y el Proceso Penal. Tradução de Carmen Gómez Rivero e María Del Carmen García Cantizano. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p. 26. 18 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 40. 19 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 95. 20 Ibidem, p. 95.
20
Lopes Jr. exemplifica a transformação a partir da instituição, no Século XIII,
do “Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, para reprimir a heresia e tudo que fosse
contrário ou que pudesse criar dúvidas acerca dos Mandamentos da Igreja
Católica”21. Não havia acusação ou qualquer espécie de publicidade, cabendo ao
Juiz-inquisidor atuar “de ofício e em segredo, assentando por escrito as declarações
das testemunhas (cujos nomes são mantidos em sigilo, para que o réu não os
descubra)” 22 e determinando a reprimenda que caberia ao acusado.
Outros autores sustentam que, antes mesmo do Tribunal da Inquisição, já
havia, a partir do Século X, o modelo inquisitório em que a Igreja fora “convertida em
poder jurisdicional” 23, de modo que a penitência religiosa tomava traços jurídicos,
sem abandonar seu caráter sacramental, como explica Amaral:
Tal obrigação de confessar, independentemente se pecado há, é a estampa da confissão como operador primordial para entender desde lá a superposição da forma sacramental e da forma judicial da penitência. A cena judicial se estabelece como estrutura da relação Homem e Deus, quase que como condição do poder temporal da Igreja. A introdução deste ‘sujeito confessante’, incitado a dizer o que se pergunta, ademais de ter podido manter unidas ambas as dimensões, teve papel indispensável na maquinaria penal, consolidando o poder punitivo e a institucionalização de sua prática judicial.24
Em razão dessa “juridicização das práticas eclesiásticas” 25 decorrente da
inquisição, teria havido um deslocamento do “peso do enfrentamento característico
dos modelos germânicos (adversariais) para a decisão (resolução do soberano
desde o estabelecimento da verdade, decidindo-se por uma sanção a partir do
apurado)” 26. Nesse contexto, a confissão teria sido elevada à condição de “peça
central da prática judicial a partir do século XII” 27 , combinando-se a natureza
sacramental com sua utilidade jurisdicional para a “solução” das controvérsias
criminais.
21 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 41. 22 Ibidem, p. 42. 23 AMARAL, Augusto Jobim do. A cultura inquisitiva na Justiça Criminal: a propósito da delação nos sistemas penais contemporâneos. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 23, nº 274, setembro/2015, p. 6. 24 Ibidem, p. 6. 25 Ibidem, p. 6. 26 Ibidem, p. 6. 27 Ibidem, p. 6.
21
Ressalva-se que, em momentos anteriores aos marcos religiosos acima
apresentados, existiram, como explica Barreiros,
modelos criminais de feição inquisitória, como é o caso do Direito Romano, tanto na sua fase primitiva, como durante o Baixo Império, ou que, mais recentemente, após a primeira guerra mundial os países governados segundo regimes autoritários não hajam implantado sistemas processuais penais caracterizados por elementos tipicamente inquisitório.28
Independentemente do exato momento em que se teria, segundo a doutrina
tradicional, estabelecido o sistema inquisitório, a característica essencial desse
modelo seria a “cumulação, nas mãos da mesma entidade, das funções de
instrução, acusação e julgamento, agindo esta sempre sob um estatuto que lhe
outorga uma nítida superioridade, relativamente ao arguido”. 29
É interessante notar que, mesmo a partir desse contexto histórico inquisitorial,
já seria possível extrair-se uma das origens de institutos como a atual colaboração
premiada brasileira. Embora a evolução do instituto até os termos atuais tenha
dependido de uma série de outros fatores que não se relacionam com a dinâmica
processual da Idade Média (o que será demonstrado no terceiro capítulo), é
interessante notar que, naquele tempo, já havia a figura do colaborador, “chamado
de pentito (arrependido)” 30, que, “com o arrependimento e a colaboração (...) recebia
um prêmio, que tinha feições temporais, a exemplo das indulgências, do
recebimento de dinheiro, da liberdade e da anistia”31.
De todo modo, é certo que, segundo a doutrina tradicional, o sistema
inquisitório teria vigido até o início do Século XIX, “momento em que a Revolução
Francesa, os novos postulados de valorização do homem e os movimentos
filosóficos que surgiram com ela repercutiram no processo penal, removendo
paulatinamente as notas características do modelo inquisitivo”32.
O sistema acusatório moderno, como bem resume Lopes Jr., caracteriza-se,
essencialmente, por:
28 BARREIROS, José António. Processo Penal. Volume 1. Coimbra: Almedina, 1981, p. 13. 29 Ibidem, p. 13. 30 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A Colaboração Premiada: um braço da Justiça Penal Negociada. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, nº 60, jun-jul/2014, p. 34. 31 BECHARA, Fábio Ramazzini. Colaboração premiada segundo o projeto de lei das organizações criminosas. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 20, nº 233, abril de 2012, p. 4. 32 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 42
22
a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; b) a iniciativa probatória deve ser das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades; c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo; d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo); e) procedimento é em regra oral (ou predominantemente); f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa); h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; i) instituição, atendendo a critérios de segurança (e social) da coisa julgada; j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.33
O referido sistema seria típico de países de Common Law34, como a Grã-
Bretanha e os Estados Unidos, nos quais
o arguido é verdadeiramente uma parte processual, em posição de igualdade com a parte acusadora, pública ou privada, que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregada do julgamento, que se encontra numa posição de franca superioridade. 35
A divisão da doutrina entre os sistemas acusatório e inquisitório, de forma
absolutamente independente, porém, é questionável. Chemim, nesse sentido,
apresenta “equívocos de compreensão histórica na construção da dicotomia dos
sistemas processuais penais em modelos ideais, ‘puros’ e antagônicos”36, indicando
que a divisão mais se relaciona com “mecânicas de manipulação discursiva”37. Em
resumo, o autor buscou a origem da “construção do antagonismo sistêmico” 38 ,
chegando à conclusão de que a doutrina do século XIX, em análise das “conflitivas e
esparsas práticas do quanto se efetivava no âmbito dos processos penais do século
XIII”39, acabou por “’esticar’ algumas categorias teóricas de um lado e ‘cortar’ fora
aquelas que atrapalhavam” 40. A partir de uma análise arbitrária das características
essenciais (porque realizada por meio de uma escolha de elementos voltada à
33 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 43. 34 BARREIROS, José Antônio. Processo Penal, 1981, p. 11. 35 Ibidem, p. 13. 36 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Atividade probatória complementar do Juiz como ampliação da efetividade do contraditório e da ampla defesa no novo Processo Penal brasileiro. 2015. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná – UFPR. Curitiba, p. 229. 37 Ibidem, p. 229. 38 Ibidem, p. 243. 39 GUIMARÃES, op. cit., p. 243. 40 Ibidem, p. 243.
23
demonstração do antagonismo), a doutrina tradicional – inclusive Barreiros, acima
citado – teria criado parâmetros engessados que separariam claramente ambos os
sistemas.
Acontece que, na análise de Chemim, a simples dicotomia nunca se mostrou
suficiente, com a doutrina que se debruçou sobre o tema apresentando profundas
dificuldades de conceituar adequadamente o que seriam os sistemas em suas
formas puras. Indo além, o autor chegou à origem da construção doutrinária que, por
repetição, passou a ser adotada como regra: o autor italiano Carmignani teria
idealizado um sistema inquisitório a partir de regras esparsas contidas nos livros dos
práticos, que, coordenadas ao seu arbítrio (e sem uma lógica temporal), indicariam
um modelo de processo41. Assim foi seguido por outros autores, como Carrara, que
também teriam chegado a conclusões semelhantes sem amparo técnico preciso, e
que acabaram servindo de base para grande parte da doutrina brasileira42.
A conclusão a que se pode chegar a partir do estudo – que foi apenas
sumariamente analisado – é a de que não é simples a assertiva de que existiram
sistemas processuais puros, havendo robustos elementos que indicam que, muito
provavelmente, sempre houve uma mescla entre elementos que se atribuem
exclusivamente a um ou outro sistema.
Não por outra razão, há ampla menção na doutrina a uma espécie de sistema
misto (“reformado ou napoleónico” 43), mais afeito à realidade brasileira, segundo o
qual “o processo penal compreende duas fases distintas e separadas: a instrução –
destinada a descobrir o crime e seus agentes – e o julgamento – no qual se procede
ao apuramento das responsabilidades do agente relativamente ao facto que haja
praticado”44.
É claro que, mesmo na modernidade, há diferenças essenciais sobre a
função do processo penal entre sistemas acusatórios adotados em diferentes países
(e, sobretudo, sob diferentes regimes políticos, sociais e econômicos). Breda
reconhece, nesse sentido, que, “o núcleo central do processo penal, ao longo dos
séculos, não foi determinado e alterado em razão de postulados e científicos, mas
41 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Atividade probatória complementar ..., 2015, p. 258-262. 42 Ibidem, p. 265. 43 BARREIROS, José Antônio. Processo Penal, 1981, p. 14. 44 Ibidem, p. 14.
24
diretamente condicionado por força do controle estatal por governos autoritários ou
democráticos”45.
Exemplifica, assim, que, em regimes autoritários modernos, como o fascismo
de Mussolini, prevalecia a ideia de que o processo buscava a verdade material e,
sobretudo, almejava alcançar a “realização da pretensão punitiva” 46 . Sob essa
lógica, não havia “destaques a limitações na atividade jurisdicional, nem alusão às
garantias individuais, de modo que a gestão da prova, nessa matriz, encontra
poucos e imprecisos obstáculos” 47 , tratando-se de processo penal inclinado à
“instrumentalização do abuso, da excessiva repressão, da intolerância política e
social”48.
Por outro lado, ressalta Breda, “a doutrina processual penal produzida em
resposta a períodos totalitários, hoje praticamente encampada de maneira irrestrita,
fornece outras respostas às indagações propostas” 49 . A finalidade do processo
deveria ser, assim, “a reconstituição de um fato tido como delituoso e imputado a
alguém, assegurando-se ao indivíduo o pleno exercício de um conjunto de garantias
contra a possibilidade da aplicação arbitrária da sanção penal”50.
É este o sistema absorvido pela Constituição Federal de 1988, que
transforma ideologicamente a estrutura do Código de Processo Penal de 194151 e se
funda, em primeiríssimo lugar, no princípio da dignidade da pessoa humana, na
qualidade de “princípio fundamental em uma sociedade livre e democrática”52, como
pontuam Bertoncini e Markovicz. Nucci, por sua vez, explica que se trata, “sem
dúvida, de um princípio regente, cuja missão é a preservação do ser humano, desde
o nascimento até a morte, conferindo-lhe autoestima e garantindo-lhe o mínimo
existencial53. Embora a dignidade humana seja fundamento da própria Constituição,
45 BREDA, Juliano. A busca da verdade no processo penal e a delação premiada. In: BITENCOURT, Cezar Roberto (coordenador). Direito Penal no Terceiro Milênio. Estudos em Homenagem ao Prof. Francisco Muñoz Conde. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 455. 46 Ibidem, p. 455. 47 Ibidem, p. 455. 48 Ibidem, p. 455-456. 49 Ibidem, p. 455-456. 50 Ibidem, p. 455-456. 51 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 19ª Edição. São Paulo: Atlas, 2015, p. 35. 52 BERTONCINI, Mateus Eduardo Siqueira Nunes; MARKOVICZ, Silvia. O princípio da dignidade da pessoa humana e a responsabilidade social das empresas privadas. Revista Jurídica – Unicuritiba, vol. 2, nº 29, Curitiba, 2012, p. 381. 53 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015. Disponível em <http://goo.gl/NRvQQv> Acesso em 12 de março de 2018.
25
há palatáveis reflexos de sua aplicação, tanto no Direito Penal, quanto no Processo
Penal.
Em relação ao direito material, parte-se da premissa de que “a existência de
tipos penais incriminadores, voltados à punição de quem violar os bens jurídicos por
ele tutelados, consagra a ideia de que o delito, quando concretizado, ofende, de
algum modo, a dignidade da pessoa humana”54. Com efeito, no Direito Penal, a
dignidade da pessoa humana tem, de plano, um papel importante na própria
delimitação e definição dos bens jurídicos por aquele tutelados.
No direito processual, a dignidade da pessoa humana assume caráter mais
voltado à pessoa do investigado/acusado. Considerando-se que “o processo penal é
constituído para servir de base ao justo procedimento de apuração da existência de
infração penal e de quem seja o seu autor” 55, o princípio regente terá um papel
fundamental na proteção do indivíduo face ao poderio do Estado na persecução. A
rigor, a dignidade da pessoa humana tem papel essencial quando o processo penal
busca “enaltecer o ser humano, resguardando a segurança pública na exata
proporção da necessidade” 56, o que é feito por meio de uma série de princípios e
garantias essenciais e específicos ao processo penal, que passa a se caracterizar,
nas palavras de Pacelli, como “um Direito de fundo constitucional”57.
Do rol constitucional, para os efeitos deste estudo – que, insiste-se, propõe-se
a analisar a eventual transformação da dinâmica constitucional com a propagação
dos acordos de colaboração premiada –, podem-se citar alguns princípios que farão
parte do escopo deste trabalho.
São eles a legalidade (art. 5º, XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o
defina, nem pena sem prévia cominação legal” 58), o devido processo legal (art. 5º,
LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal” 59), o Juiz natural (art. 5º, LIII: “ninguém será processado nem sentenciado
senão pela autoridade competente” 60 ), a presunção de inocência (art. 5º, LVII:
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
54 NUCCI, Guilherme. Princípios Constitucionais..., 2015. 55 Ibidem. 56 Ibidem. 57 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 36. 58 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: < http://goo.gl/pbMXut > Acesso em 12 de março de 2018. 59 Ibidem. 60 Ibidem.
26
condenatória” 61) a ampla defesa e o contraditório (art. 5º, LV: “aos litigantes, em
processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”62) e os
princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública.
Os princípios indicados constituem um interessante cerne estrutural do
processo penal, alguns dos quais são, para parte da doutrina, “absolutamente
inafastáveis, e por isso, fundamentais, destinados a cumprir a árdua missão de
proteção e tutela dos direitos individuais”63. Embora haja outros tantos64 que estejam
insculpidos no texto constitucional e possuam igual relevância à conceituação
principiológica do processo penal, dois motivos essenciais justificam a limitação do
escopo deste estudo: a) em primeiro lugar, este trabalho parte de pesquisas
antecedentes a respeito da potencial mudança do processo penal provocada pelos
acordos de colaboração premiada, no bojo dos quais os referidos princípios
pareceram sofrer maior impacto com a atual dinâmica do instituto (o que será
devidamente relatado adiante); b) em segundo, trata-se de pesquisa que não tem
por pretensão o estudo de todos os princípios do processo penal constitucional
brasileiro.
1.3 O PRINCÍPIO NULLA POENA SINE JUDICIO
A rigor, o processo penal é o palco para o exercício das garantias do acusado
da prática de crimes, assim como se trata do instrumento pelo qual se dá a sua
apuração. É por meio dele que o Estado poderá punir o cidadão que alegadamente
incorrer em determinada prática delitiva. Segundo Tourinho Filho,
pelo respeito à dignidade humana e à liberdade individual é que o Estado fixa a manifestação do seu poder repressivo não só em pressupostos jurídico-penais materiais (nullum crimen nulla poena sine lege), como também assegura a aplicação da lei penal ao caso concreto, de acordo com
61 BRASIL. Constituição..., 1988. 62 Ibidem. 63 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 37. 64 Conforme Nucci, por exemplo, “considera-se direito fundamental o duplo grau de jurisdição, pois inerente ao princípio da ampla defesa, com os recursos a ela ligados, além de ser preceito extraído de documentos internacionais de direitos humanos”. NUCCI, Princípios Constitucionais..., 2015.
27
as formalidades prescritas em lei, e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais (nulla poena sine judice, nulla poena sine judicio).65
De acordo com a lição do autor, há uma complementação entre o princípio da
legalidade penal (nullum crimen nulla poena sine lege – nulos o crime e a pena sem
lei prévia) e os princípios processuais nulla poena sine judice e nulla poena sine
judicio, “o que significa que as leis materiais, o processo e o órgão jurisdicional são
fatores indispensáveis nas relações jurídico-penais”66. Com efeito, a pena para o
crime imputado (direito material) somente poderá ser aplicada se for previamente
prevista em lei (princípio da reserva legal – art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal e
art. 1º, caput, do Código Penal) e se, necessariamente, for submetida aos dois
referidos princípios de natureza processual.
O nulla poena sine judice corresponde à assertiva de que “nenhuma pena
poderá ser imposta senão pelo Juiz”67, encontrando correspondência no art. 5º,
XXXV da Constituição Federal, que disciplina que “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”68. Como a liberdade “é um direito
individual, talvez até o mais importante de quantos possua o homem, e se a inflição
de uma pena lesiona tal direito, não poderá a lei, por mais importante que seja,
subtrair dos Juízes a apreciação de tal lesão”69. Nesse sentido, Almeida estabelece
que “a administração não pode, como noutros ramos de sua atividade, desenvolver-
se, em matéria penal, por coação direta sobre os imputados. Considerações
relevantes determinam-lhe agir por via jurisdicional: é o princípio da
jurisdicionalidade”70.
Já o nulla poena sine judicio, que é o princípio que norteia este subcapítulo,
traduz-se, na lição de Tourinho Filho, como a afirmação de que “nenhuma pena
poderá ser imposta ao réu senão com observância do due process of law” 71 .
Marques relaciona mais diretamente o referido princípio à garantia da reserva legal,
afirmando que limita a “atividade legislativo-penal, porque a regra da nulla poena
sine judicio impede a promulgação de leis particulares que, sob a forma de norma-
65 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2013, p. 32. 66 Ibidem, p. 32. 67 Ibidem, p. 33. 68 BRASIL. Constituição..., 1988. 69 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 33. 70 ALMEIDA, J. Canuto Mendes de. Princípios fundamentais do Processo Penal. São Paulo: RT, 1973. P. 92. 71 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 33.
28
sentença, imponham desde logo uma pena a determinada pessoa ou grupo de
pessoas”72.
De qualquer forma, o conteúdo do princípio do nulla poena sine judicio é, à
primeira vista, claro: “o Estado (...) somente poderá infligir pena ao violador da
norma penal após a comprovação de sua responsabilidade (por meio do processo) e
mediante decisão do órgão jurisdicional”73. Nesse sentido, em uma compreensão
ideal, Tourinho Filho resume de que forma se estabelece o princípio:
Assim, quando alguém comete uma infração penal, o Estado, como titular do direito de punir, impossibilitado, pelas razões expostas, de auto-executar seu direito, vai a juízo (tal qual o particular que teve seu interesse atingido pelo comportamento ilícito de outrem) por meio do órgão próprio (o Ministério Público) e deduz a sua pretensão. O Juiz, então, procura ouvir o pretenso culpado. Colhe as provas que lhe foram apresentadas por ambas as partes (Ministério Público e réu), recebe as suas razões e, após o estudo do material de cognição recolhido, procura ver se prevaleceu o interesse do Estado em punir o culpado, ou se o Juiz dirá qual dos dois tem razão. Se o Estado, aplica a sanctio juris ao culpado. Se o réu, absolve-o. Isso é processo.74
A lição do autor é precisa, à exceção de dois aspectos temporais: o réu é hoje
ouvido ao final do processo; ademais, sob a ótica do art. 156 do Código de Processo
Penal e da presunção de inocência, não cabe ao acusado provar que não agiu em
desconformidade com a lei, mas sim, a quem alegou a prática delitiva75. Para os
efeitos deste estudo, porém, a mensagem é clara: só cabe a punição – a aplicação
de sanção penal – quando o devido processo legal concluído assim determinar.
O nulla poena sine judicio relaciona-se, ademais, com o direito material
também em função da lei penal, como se verifica do art. 345 do Código Penal, que
descreve o crime de exercício arbitrário das próprias razões, que justamente se
caracteriza pela conduta de “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer
pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite”76. Ou seja, não pode um
particular (ou ente que não o Poder Judiciário) impor uma pena a um terceiro, ainda
que justa seja sua pretensão.
72 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 203. 73 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2013, p. 34. 74 Ibidem, p. 34-35. 75 Conforme, por exemplo, LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, p. 59. 76 BRASIL. Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://goo.gl/fpStT1 > Acesso em 12 de março de 2018.
29
É certo, porém, que, não obstante o aspecto categórico do princípio ora em
exame, há exceções à sua aplicação no processo penal brasileiro. A primeira – e
mais consolidada – é a transação penal. Embora parcela dominante da doutrina a
estabeleça, não como pena, mas “instituto despenalizador”77 integrante do que se
chama de processo penal consensual, o texto da lei (art. 76 da Lei nº 9.099/95)
fomenta a controvérsia quanto à natureza de pena, afirmando que, “havendo
representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não
sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação
imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta”78.
É verdade que, diferentemente das penas tradicionais, submetidas ao devido
processo legal, a celebração da transação penal não implica prisão nem consta de
certidão de antecedentes criminais (art. 76, §6º da Lei nº 9.099/95), além de se tratar
de instituto processual com esteio constitucional (art. 98, I, da Constituição).
Ademais, a natureza de pena pode ser questionada pelo fato de que o seu
descumprimento não implica consequências penitenciárias, justificando apenas o
oferecimento de denúncia e a submissão do acusado ao processo (do qual, aliás,
pode sair absolvido).
No entanto, há vigorosos opositores do instituto, como Prado, para quem “não
há devido processo legal na transação penal”79, e Reale Júnior, que sustenta que se
trata de sinal de um processo de “americanização do Direito”80 e uma “fórmula
simplificadora, com desprezo às garantias do autor do fato, impondo-lhe pena sem
processo”81 . Há outra característica na transação penal, que terá relevância no
estudo da colaboração premiada, que é o fato de que, estabelecida a pena ou
medida despenalizadora, encerra-se o processo (como será visto, há situações em
que a colaboração premiada se apresenta como uma “transação” seguida de
processo).
Além da Lei dos Juizados Especiais, algumas iniciativas normativas
pretendem estender o âmbito de aplicação da transação penal (e, por que não, o
77 Nesse sentido, BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 630. 78 BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/rmPh8N > Acesso em 12 de março de 2018. 79 PRADO, Geraldo. Transação penal. Coimbra: Almedina, 2015. 80 O autor refere o termo “americanização” em tom pejorativo, no sentido de que a importação de um instituto proveniente dos Estados Unidos da América é, necessariamente, algo negativo. 81 REALE JUNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 19.
30
âmbito de mitigação do princípio do nulla poena sine judicio). Em primeiro lugar, vale
menção ao Projeto de Lei do Senado nº 513/201382, que tem por objeto central a
reforma da Lei de Execução Penal, mas que, em seus últimos dispositivos, pretende
a alteração da Lei nº 9.099/1995, ampliando as hipótese de transação penal (para
infrações com pena máxima igual ou inferior a cinco anos) e suspensão condicional
do processo (para crimes com pena mínima igual ou inferior a três anos).
Ademais, é imprescindível a menção ao Projeto de Lei nº 8.045/2010, que
busca instituir o novo Código de Processo Penal, e que previa, no art. 283 do texto
original advindo do Senado Federal (Projeto de Lei do Senado nº156/200983), um
modelo semelhante (que se coaduna com o instituto norte-americano do plea
bargain, como também será visto adiante) de transação para crime de pena que não
ultrapasse 8 (oito) anos. Diz o dispositivo:
Art. 283. Até o início da instrução e da audiência a que se refere o art. 276, cumpridas as disposições do rito ordinário, o Ministério Público e o acusado, por seu defensor, poderão requerer a aplicação imediata de pena nos crimes cuja sanção máxima cominada não ultrapasse 8 (oito) anos. § 1º São requisitos do acordo de que trata o caput deste artigo: I – a confissão, total ou parcial, em relação aos fatos imputados na peça acusatória; II – o requerimento de que a pena privativa de liberdade seja aplicada no mínimo previsto na cominação legal, independentemente da eventual incidência de circunstâncias agravantes ou causas de aumento da pena, e sem prejuízo do disposto nos §§ 2º e 3º deste artigo; III – a expressa manifestação das partes no sentido de dispensar a produção das provas por elas indicadas.84
O texto ainda previa a possibilidade de substituição da pena privativa de
liberdade nos termos do art. 44, a suspensão condicional da pena do art. 77, ambos
do Código Penal, além de outras circunstâncias. Em 18 de abril de 2018, sobreveio
a notícia85 da apresentação de substitutivo ao texto original. Nele, segue a proposta
de transação em crimes com penas máximas inferiores a 8 (oito) anos, com algumas
alterações. Dizem os propostos artigos 297 e seguintes:
82 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 513/2013. Disponível em: <http://goo.gl/sgPYvq> Acesso em 21 de abril de 2018. 83 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 156/2009. Disponível em: <http://goo.gl/wRQGL2> Acesso em 21 de abril de 2018. 84 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 8.045/2010. Disponível em <http://goo.gl/2dxa9u> Acesso em 12 de março de 2018. 85 Disponível em: <http://goo.gl/x7k5wy> Acesso em 21 de abril de 2018.
31
Art. 297. Ressalvados os casos submetidos ao Tribunal do Júri e de violência doméstica contra a mulher, o início da audiência de instrução, cumpridas as disposições do rito ordinário, o Ministério Público e o acusado, por seu defensor, poderão requerer o julgamento antecipado de mérito e a aplicação imediata de pena nos crimes que não estejam submetidos ao procedimento sumaríssimo e cuja sanção máxima cominada não ultrapasse oito anos. §1º O Juiz não participará da transação realizada entre as partes. §2º O julgamento antecipado isentará o réu do pagamento das despesas e custas processuais. Art. 298. O termo da transação penal será apresentado por escrito e assinado pelas partes, e conterá obrigatoriamente: I – a confissão em relação aos fatos imputados na peça acusatória; II – o requerimento de que a pena seja aplicada nos termos estabelecidos entre as partes; III – a declaração expressa das partes dispensando a produção das provas por elas indicadas, se for o caso; IV – renúncia ao direito de impugnar a sentença homologatória. Art. 299. Ao homologar a transação, o juiz deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o acusado, na presença de seu defensor. Art. 300. Tendo como limite a proposta pactuada, o juiz poderá, atendido os requisitos legais: I – reconhecer circunstâncias que abrandem a pena; II – substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos; III – aplicar a suspensão condicional da pena. Art. 301. A decisão homologatória da transação tem natureza de sentença penal condenatória e produzirá todos os efeitos legais dela decorrentes. Art. 302. Não sendo a transação homologada, será ela desentranhada dos autos, ficando as partes proibidas de fazer referência aos seus termos e condições, o mesmo se aplicando ao juiz em qualquer ato decisório. Art. 303. Não havendo transação entre acusação e defesa, o processo prosseguirá na forma do rito ordinário. Art. 304. O julgamento antecipado não constitui direito público subjetivo do réu.86
Embora o conteúdo seja muito similar, o novo texto prevê maior participação
do Magistrado, que julgará o mérito do caso e poderá acolher integralmente o
requerimento das partes quanto à pena “transacionada”, reduzi-la em razão de
circunstâncias atenuantes ou causas de diminuição de pena, substitui-la por pena
restritiva de direitos ou suspendê-la.
Outra interessante iniciativa em sentido semelhante decorre da Resolução nº
181, de 7 de agosto de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, que
prevê, em seu Capítulo VII, a figura do “Acordo de Não-Persecução Criminal”87. Em
resumo, o art. 18 do texto original da resolução estabelecia a possibilidade de o
representante do Ministério Público, diante de delito cometido sem violência ou
grave ameaça à pessoa, “propor ao investigado acordo de não-persecução penal,
86 Disponível em: <http://goo.gl/yNi9gg> Acesso em 21 de abril de 2018. 87 BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Resolução 181, de 7 de agosto de 2017. Disponível em < http://goo.gl/Xop6gB > Acesso em 12 de março 2018.
32
desde que confesse formal e detalhadamente a prática do delito e indique eventuais
provas de seu cometimento”88, além de cumprir uma série de requisitos, como a
reparação do dano à vítima, a renúncia de bens e direitos “de modo a gerar
resultados práticos equivalentes aos efeitos genéricos da condenação”89 dos arts. 91
e 92 do Código Penal, entre outras.
A medida provocou reação da Associação dos Magistrados Brasileiros e do
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que ajuizaram no Supremo
Tribunal Federal ações diretas de inconstitucionalidade (nº 5790 e 5793) contra a
resolução do Conselho Nacional do Ministério Público.
Em 24 de janeiro de 2018, foi editada a Resolução nº 18390, que alterou o
dispositivo, limitando-o a crimes com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e
estabelecendo uma série de outros requisitos. De maior relevo, é importante notar o
disposto no art. 18, §§4º, 5º e 6º, que estabelece a participação do juiz no acordo.
Basicamente, o magistrado avaliará o cabimento da medida; caso entenda
negativamente, encaminhará o feito ao Procurador-Geral para que ofereça a
denúncia, complemente as investigações, reformule a proposta de acordo ou
mantenha o original, “que vinculará toda a Instituição”91.
Por fim, outra potencial exceção ao princípio nulla poena sine judicio parece
ser o tema do presente estudo, qual seja o instituto da colaboração premiada da Lei
nº 12.850/2013. No entanto, e como será melhor exposto adiante, nem toda
colaboração premiada irá funcionar como exceção (ou violação, dada a perspectiva
adotada) e, na realidade, apenas certa (mas recorrente) formulação para o referido
instituto poderá revelar essa característica. O objetivo deste trabalho será expor
ambas as situações, embasando-as a partir de exemplos reais.
1.4 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
A conceito de juiz natural poderia ser aqui definido, pura e simplesmente,
como o “direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um
88 BRASIL. Resolução nº 181..., 2017. 89 Ibidem. 90 BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Resolução nº 183, de 24 de janeiro de 2018. Disponível em: <http://goo.gl/tcJhKy> Acesso em 21 de abril de 2018. 91 Ibidem.
33
tribunal previsto como competente por lei anterior, e não ad hoc ou tido como
competente”92. Segundo Dias, a ideia do juiz natural
A tanto vincula a necessária garantia dos direitos da pessoa, ligada à ordenação da administração da justiça, à exigência de julgamentos independentes e imparciais e à confiança da comunidade naquela administração.93
Parece uma consequência lógica, com efeito, que a expressão juiz natural
deva vir acompanhada da compreensão de juiz imparcial, que é “aquele que tem
condições, objetivas e subjetivas, de proferir veredicto sem a menor inclinação por
qualquer das partes envolvidas, fazendo-o com discernimento, lucidez e razão”.94
Em outras palavras:
A parcialidade significa um estado subjetivo, emocional, um estado anímico do julgador. A imparcialidade corresponde exatamente a essa posição de terceiro que o Estado ocupa no processo, por meio do juiz, atuando como órgão supraordenado às partes ativa e passiva. Mais do que isso, exige uma posição de terzietà, um estar alheio aos interesses das partes na causa. 95
Com efeito, “o juiz não deve ser confundido com as partes, pois assume uma
posição de terceiro, contraditor, responsável, todavia, pela sua regularidade na
produção probatória processual” 96 . Ou seja, por juiz imparcial, tem-se a
compreensão de uma atuação “alinhada a um desinteresse subjetivo, decidindo com
certa apatia que lhe permita encontrar o ponto de equilíbrio justo para decidir,
levando em consideração todas as provas e argumentações que as partes
oferecem”97.
Coutinho, por outro lado, alerta que a imparcialidade do juiz se constitui em
princípio que “funciona como uma meta a ser atingida pelo juiz no exercício da
jurisdição, razão por que se buscam mecanismos capazes de garanti-la”98. Tal aviso
92 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Primeiro Volume. Coimbra: Coimbra, 2004. P. 322. 93 Ibidem, p. 322. 94 NUCCI, Guilherme. Princípios Constitucionais..., 2015. 95 CID, Daniel Del. A homologação dos acordos de colaboração premiada e o comprometimento da (justa) prestação jurisdicional. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 23, nº 276, novembro de 2015, p. 16. 96 Ibidem, p. 16. 97 Ibidem, p. 16. 98 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, ano 30, nº 30, 1998, p. 173.
34
tem razão de ser. Como bem assevera o autor, a absoluta neutralidade do julgador é
uma “máscara” em face de suas naturais ideologias e deve ser desconsiderada
como objetivo principiológico do processo penal. Afinal, o juiz, “como todos os outros
seres humanos, também é construtor da realidade em que vivemos, e não mero
aplicador de normas, exercendo atividade simplesmente recognitiva”99.
Uma melhor compreensão do princípio do juiz natural, porém, demanda uma
– breve – incursão à sua concepção e evolução histórica. A noção do juiz natural
decorre, segundo Pacelli, do Direito anglo-saxão, tendo sido “construído inicialmente
com base na ideia da vedação do tribunal de exceção” 100. De acordo com o autor,
essa função originária conectaria o princípio ao da legalidade101. Nesse sentido,
Badaró explica que, na Magna Charta de 1215102, “imposta pelos barões ao Rei
João Sem Terra (...) podem ser encontrados alguns antecedentes remotos da
garantia do juiz competente”103, consagrando “o direito de os condes e barões serem
julgados ‘apenas por seus pares’” 104. Séculos depois, em razão dos “abusos e
excessos do poder punitivo consolidados no período dos Tudors, por meio de
comissões extraordinárias” 105, a Petition of Rights, de 7 de julho de 1628106, foi
promulgada com a expressa vedação a comissões de julgamento ex post factum.
Era, segundo Badaró “o reconhecimento do direito ao juiz legal” 107, que foi depois
ratificada pelo Bill of Rights, de 1689108.
Marques, por sua vez, refere seu surgimento da “regra do direito medieval de
que ninguém podia ser julgado a não ser por seus pares”109 e, mais recentemente,
dos “primeiros textos constitucionais da Revolução” 110, em alusão que o autor faz à
Revolução Francesa. Segundo ele, o art. 4º, capítulo V, Título III da Constituição de
3 de setembro de 1791111, estabelecia, em tradução livre, que os cidadãos não
99 COUTINHO, Jacinto. Introdução aos princípios..., 1998, p. 171. 100 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 37. 101 Ibidem, p. 37. 102 Disponível em: <http://goo.gl/BFcKQV> Acesso em 22 de abril de 2018. 103 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz Natural no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 45. 104 Ibidem, p. 46. 105 Ibidem, p. 49. 106 Disponível em: <http://goo.gl/QxnXUa> Acesso em 22 de abril de 2018. 107 BADARÓ, op. cit., 2014, p. 50. 108 Disponível em: <http://goo.gl/5zVDU9> Acesso em 22 de abril de 2018. 109 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 215. 110 Ibidem, p. 214. 111 FRANÇA. Constituição de 1791. Disponível em: <http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/constitution-de-1791.5082.html> Acesso em 21 de abril de 2018.
35
poderiam ser afastados do juízo previsto em lei para que outra comissão os
julgasse.
A primeira menção constitucional à expressão juiz natural remonta, segundo o
mesmo autor, à Constituição francesa de 1814112 (art. 62 - “juges naturels” 113), a
partir da qual o princípio se estendeu a outras legislações, como a Constituição
holandesa de 1815 e o Estatuto Albertino da Itália, de 1848 (art. 71 - “Giudici
naturali” 114). Na Espanha (Constituição de 1876), a ideia do juiz natural se traduziu
em juiz competente115, enquanto que, na Alemanha, na Constituição de Weimar, a
nomenclatura adotada foi juiz legal116.
No Brasil, a garantia do juiz natural está descrita em todas as Constituições,
sempre sob a denominação “autoridade competente”117. A única exceção, segundo
Marcon, “foi a Carta Constitucional autoritária de 1937, que aceitou como válida a
instituição do Tribunal de Segurança Nacional durante o governo ditatorial de Getúlio
Vargas, no ano de 1935, criado com o objetivo inicial de julgar seus adversários
políticos”118. Na Constituição de 1988, dois incisos do art. 5º se dedicam à definição
da referida garantia: o XXXVII, que prescreve que “não haverá juízo ou tribunal de
exceção” 119 , e o LIII, que estabelece que “ninguém será processado nem
sentenciado senão pela autoridade competente”120. A interpretação de ambos os
dispositivos deve ser feita em conjunto para a conclusão de que o princípio “consiste
no direito que cada cidadão tem de saber, de antemão, a autoridade que irá
processá-lo e qual o juiz ou tribunal que irá julgá-lo, caso pratique a conduta definida
como crime no ordenamento jurídico-penal”.121
112 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 213. 113 FRANÇA. Constituição de 1814. Disponível em: <http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/charte-constitutionnelle-du-4-juin-1814.5102.html> Acesso em 21 de abril de 2018. 114 ITÁLIA. Estatuto Albertino de 1846. Disponível em: <http://storia.camera.it/norme-fondamentali-e-leggi/nf-statuto-albertino> Acesso em 21 de abril de 2018. 115 ESPANHA. Constituição de 1876. Disponível em: <http://goo.gl/TnpLbm> Acesso em 21 de abril de 2018. 116 MARQUES, op. cit, p. 214. 117 Nesse sentido, veja-se a redação da Constituição do Império (BRASIL, Constituição (1824). Constituição Politica do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro, 1824. Disponível em: <http://goo.gl/bfhFde > Acesso em 12 de março de 2018.) e a Constituição da República de 1988 (BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: <http://goo.gl/LS62B6> Acesso em 12 de março de 2018.). 118 MARCON, Adelino. O Princípio do Juiz Natural no Processo Penal. Curitiba: Juruá, 2004, p. 81. 119 BRASIL. Constituição..., 1988. 120 Ibidem. 121 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 248.
36
Pacelli refere que as “duas vertentes fundamentais” do juiz natural se
assentam “na configuração do nosso modelo constitucional republicano, em que as
funções do Poder Público e, particularmente, do Judiciário, têm distribuição extensa
e minudente”122. Essa seria a razão pela qual, diferentemente de outros países, nos
quais se deixa “para o legislador a fixação de competência jurisdicional”123, há no
Brasil a previsão constitucional da garantia, por meio da qual “se procurou – e se
fez! – estabelecer regra (art. 5º LIII) que escapasse de qualquer manipulação
política/jurídica sobre a competência”124.
Embora a Constituição brasileira não refira a expressão juiz natural (assim
agindo “exatamente para que não se alegasse não estar inserida nele a questão
referente à competência”125), sua utilização auxilia o entendimento sobre o princípio:
é natural a competência do juiz porque se estabelece “no momento da prática do
delito” 126, e não posteriormente. Isso significa que “não se podem manipular os
critérios de competência e tampouco definir posteriormente ao fato qual será o juiz
da causa” 127. Essa definição posterior (post factum) é o que caracteriza os tribunais
de exceção, que são “criados depois do fato e para julgar um fato terminado, são
tribunais que dificilmente terão imparcialidade no julgamento”128. Sobretudo porque
“haverá designação específica dos julgadores para o caso, após a ocorrência do
fato” 129, circunstância na qual “quem tem o poder de indicar os juízes terá ampla
liberdade de compor o tribunal, seja para beneficiar, seja para prejudicar o
acusado”130. Quanto a esse aspecto, pode-se afirmar que o princípio do juiz natural
protege não apenas o cidadão acusado – que deve saber de antemão quem será
seu julgador –, mas também a sociedade – que deverá ter a certeza de que os
julgamentos não serão realizados a partir de escolhas oportunas de julgadores. É o
que leciona Karam:
As regras sobre competência assentadas na Constituição Federal, ALÉM de naturalmente condicionarem e fixarem parâmetros para elaboração das
122 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 37-38. 123 Ibidem, p. 38. 124 COUTINHO. Jacinto. Introdução aos princípios..., 1998, p. 174. 125 Ibidem, p. 175. 126 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 248. 127 Ibidem, p. 248. 128 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 48. 129 Ibidem, p. 48. 130 Ibidem, p. 48.
37
demais, expressam um valor maior, visando preservar aqueles interesses mais relevantes da ordem pública no processo. Ao indicar qual o órgão ou grupo de órgãos jurisdicionais constitucionalmente competente, adquirem estas regras uma dimensão de garantia, diretamente relacionada com a fórmula fundamental do devido processo legal, funcionando como fator de legitimação do exercício daquela função e daquele poder do Estado, questão particularmente importante no âmbito do processo penal, onde se defrontam o poder de punir e o direito de liberdade.131
Tenha-se em mente, porém, que há uma diferença entre tribunais de exceção
e justiças especializadas. Badaró explica que “o que os diferencia é que tais
tribunais ou juízos especiais são criados antes da prática dos fatos que irão julgar, e
têm competência determinada por regras gerais e abstratas, com base em critérios
objetivos” 132. Com efeito, não deveria haver a criação de uma justiça especial para
apuração de fatos posteriores, mas pode haver a transferência de uma competência
para um juízo especializado sem que se extraia disso uma violação à Constituição.
De qualquer modo, é certo que a definição do juiz natural para determinada
controvérsia dependerá da aplicação das regras de competência – e este ponto é
fundamental para a discussão que se pretende conduzir sobre o tema da
colaboração premiada. Parte da doutrina assevera que a garantia do art. 5º, LIII, da
Constituição Federal estabelece que o juiz natural é aquele definido exclusivamente
pelas regras de competência constitucionais. Nesse sentido, Marques afirma que
“em nosso sistema normativo o que existe, de maneira concludente e clara, é o
princípio de que ninguém pode ser subtraído de seu ‘juiz constitucional’” 133. Com
efeito, “somente se considera juiz natural ou autoridade competente, no Direito
brasileiro, o órgão judiciário cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais”134.
O posicionamento leva a conclusões claras e simples. Seguindo o exemplo
de Badaró, “o julgamento de um crime militar pela justiça estadual viola a regra do
juiz natural, posto que o critério constitucional de competência da justiça militar não
terá sido observado” 135. Ou seja, a regra de competência a ser observada, para a
verificação da observância do princípio do juiz natural, seria apenas a constitucional
para essa parcela da doutrina.
O próprio Badaró discorda veementemente desse posicionamento:
131 KARAM, Maria Lúcia. Competência no processo penal. 4ª Edição. São Paulo: RT, 2005, p. 66. 132 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 48. 133 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 217. 134 Ibidem, p. 217. 135 BADARÓ, op. cit., p. 50.
38
Não é possível concordar com a identificação do juiz natural apenas com o juiz constitucionalmente competente, por se tratar de uma visão reduzida e fraca da garantia, na medida em que a restringe ao juiz competente segundo os critérios de competência previstos na Constituição. É sabido que as regras constitucionais não exaurem o processo de concretização da competência. Uma concepção forte e que não seja reducionista deve chegar a outro resultado, considerando que o juiz natural é aquele definido segundo todos os critérios de competência, sejam previstos na Constituição, sejam definidos em leis ordinárias e nas leis de organização judiciaria.136
Em sentido semelhante, Lopes Jr. defende que “não se pode mais
desconectar a garantia do juiz natural das regras de competência”137, devendo-se
afastar as “manipulações feitas nos critérios de competência a partir de equivocadas
analogias com o processo civil (...) permitindo que se desloquem processos da
cidade onde ocorreu o crime para outras, atendendo a duvidosos e censuráveis
critérios de maior eficiência no ‘combate ao crime”’138. Essa última afirmação guarda
íntima relação com esta pesquisa, na medida em que a colaboração premiada, não
raras vezes, envolve o deslocamento de competência (e será objetivo deste trabalho
verificar, em casos reais, como se tem feito esse deslocamento).
É verdade, sim, que a Constituição traz uma série de indispensáveis regras
de fixação de competência que definem de forma incontroversa o juiz natural. Nesse
sentido, Pacelli esclarece que o “constituinte de 1988 entendeu por bem fixar a
competência ora pelo critério de especialização quanto à matéria, ora em atenção à
relevância de determinadas funções públicas, estabelecendo assim, foros
privativos”139 nas instâncias superiores para o julgamento dos “ocupantes de cargos
públicos de alta significação no contexto político nacional” 140.
Violações aos dispositivos que preveem essa dinâmica, evidentemente,
afrontam o princípio do juiz natural, como o Supremo Tribunal Federal reconheceu
no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2797. No caso, relatado
pelo Ministro Sepúlveda Pertence, verificou-se que a Lei nº 10.628/2002, que
estendia a prerrogativa de foro a indivíduos que deixaram de ocupar cargos e
funções públicas correspondentes, atentava contra a referida garantia141.
136 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 50. 137 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 248. 138 Ibidem, p. 248. 139 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 38. 140 Ibidem, p. 38. 141 Ibidem, p. 38.
39
Com efeito, e assumindo-se a posição de que nem só a competência
constitucional faz valer a aplicação do princípio do juiz natural, vale analisar
rapidamente as regras estabelecidas na Constituição de 1988 e no Código de
Processo Penal para a fixação da competência, o que se faz com o objetivo de
desvendar adiante, na quarta parte do trabalho, o impacto que pode ter a
colaboração nessa dinâmica.
Em primeiro lugar, estabeleça-se que “um juiz ou tribunal somente pode julgar
um caso penal quando for competente em razão da matéria, pessoa e lugar”142. A
competência em razão da matéria (ratione materiae143) depende de uma prévia
definição legislativa sobre quais temas serão julgados por esse ou aquele juízo. Os
exemplos mais clássicos são, naturalmente, o que se extrai do art. 5º, XXXVII, a, da
Constituição Federal, no qual se estabelece a competência do Tribunal do Júri para
o julgamento de crimes dolosos contra a vida e os dispositivos correspondentes às
competências da Justiça Federal. Ou, ainda, os arts. 98, I, e 124, caput, da
Constituição, que estabelecem, respectivamente, a competência dos juizados
especiais para a apuração de infrações penais de menor potencial ofensivo e da
justiça militar para o processamento e julgamento dos crimes militares.
Note-se que, embora os 4 (quatro) exemplos mencionados representem
fontes constitucionais de competência sobre a matéria, a lei infraconstitucional
também pode desempenhar esse papel, conforme se verifica da competência dos
crimes eleitorais, estabelecida no Código Eleitoral (Lei nº 4.737 de 15 de julho de
1965).
A competência em razão da pessoa (ratione personae144) guarda relação
com, basicamente, eventual qualidade que o investigado/acusado possua que lhe
conceda foro especial – como é o caso da prerrogativa de função. Nesse caso,
também a Constituição estabelece que determinados agentes serão julgados por
pré-definidas esferas da jurisdição: são os foros privativos do Supremo Tribunal
Federal (art. 102, CF), do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, CF), dos Tribunais
Regionais Federais (art. 108, CF) e dos Tribunais de Justiça (art. 96, III, CF).
Segundo Marques, não se trataria “de privilégio de foro, porque a competência, no
caso, não se estabelece ‘por amor dos indivíduos’, e sim em razão ‘do caráter,
142 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 250. 143 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 38. 144 Ibidem., p. 39.
40
cargos ou funções que eles exercem’” 145 . Consigne-se, porém, que esse tema
específico (que é sujeito a amplas críticas em razão da ineficiência dos Tribunais
superiores em processar os sujeitos albergados pelo foro especial) foi recentemente
revisto para deputados federais e senadores pelo Supremo Tribunal Federal, no
julgamento da Questão de Ordem na Ação Penal nº 937, oportunidade em que se
definiu que “o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes
cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções
desempenhadas”146.
A competência territorial (ratione loci147), por sua vez, é aquela definida a
partir do local em que ocorre a infração penal. Como adverte Pacelli, tal competência
“foi delegada para a legislação (infraconstitucional)” 148. E o Código de Processo
Penal é quem disciplina as regras de fixação de competência, o que não faz, na
visão de alguns autores, com “sistemática clara e coerente”149. É que o art. 69, que
estabelece a determinação de competência jurisdicional confunde, nas palavras de
Badaró, “problemas de competência, critérios de competência, fatores de
modificação de competência, e até mesmo mecanismos de fixação concreta de
competência, elencando critérios sem nenhum rigor científico ou mesmo adequação
à organização judiciária brasileira”150.
O referido dispositivo dispõe que “determinará a competência jurisdicional: I –
o lugar da infração; II – o domicílio ou residência do réu; III – a natureza da infração;
IV – a distribuição; V – a conexão ou continência; VI – a prevenção; VII – a
prerrogativa de função”151. Evidentemente, há uma mistura, entre os incisos, de
critérios como o lugar da infração (competência territorial) com a natureza do crime
(competência material) e a prerrogativa de função (competência pessoal).
À luz da doutrina majoritária, “a violação das regras de competência para
matéria e pessoa, por ser absoluta – e por estar descrita no texto constitucional –,
não se convalida jamais (não há preclusão ou prorrogação de competência) e pode
145 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 222. 146 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Ação Penal nº 937. Relator Ministro Roberto Barroso. Julgado em 3 de maio de 2018. Disponível em: <http://goo.gl/t88evK> Acesso em 5 de junho de 2018. 147 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 38. 148 Ibidem, p. 38. 149 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 251. 150 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 236. 151 BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). Disponível em <http://goo.gl/NbqJ9c > Acesso em 12 de março de 2018.
41
ser reconhecida de ofício pelo juiz ou tribunal, em qualquer fase do processo”152. Por
sua vez, a competência territorial (em razão do lugar) tem sido compreendida como
relativa, no sentido de que deverá ser “arguida pelo réu no primeiro momento em
que falar no processo, sob pena de preclusão e prorrogação da competência do Juiz
(prorrogatio fori)”153.
Pacelli, nesse sentido, estabelece que a competência territorial sequer se
impõe como exigência do princípio do juiz natural, posição sobre a qual discorda
Lopes Jr, que sustenta que “ao compreendermos que a jurisdição é uma garantia,
não pode ela ser esvaziada com a classificação civilista de que é ‘relativa’. Ou seja,
a eficácia da garantia do juiz natural não permite que se relativize a competência em
razão do lugar” 154 . Karam também entende que, “não obstante se tratar de
competência territorial”, há hipóteses de improrrogabilidade de competência quando
não observadas regras que estabeleçam essa prorrogação de forma vinculada ao
interesse público155.
1.4.1 O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL
Ao lado do princípio do juiz natural, é importante a menção ao princípio do
promotor natural, cuja compreensão, em razão da colaboração premiada, pode ter
os mesmos desdobramentos que os daquele.
A essência do princípio é simples: trata-se da garantia “contra os chamados
promotores de encomenda, escolhidos discricionariamente pelo chefe do Ministério
Público”156, que determina o estabelecimento, por lei, do órgão do Ministério Público
vinculado aos “casos afetos à instituição”157, sem liberdade irrestrita do Procurador
Geral para nomeações discricionárias. O princípio se ampara na Constituição
Federal – art. 127, §1º158 e art. 128, §5º, I, b159 -, na Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro
152 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 250. 153 Ibidem, p. 250. 154 Ibidem, p. 250. 155 KARAM, Maria Lúcia. Competência..., 2005, p. 80. 156 MAZZILI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 8ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 74-75. 157 Ibidem, p. 75. 158 “São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional” (BRASIL, 1988). 159 “Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério
42
de 1993 – art. 1º, parágrafo único160 e art. 38, II161 – e na Lei Complementar nº 75,
de 20 de maio de 1993 – art. 4º162 e art. 17163.
De fato, há várias hipóteses legais de designação de membro do Ministério
Público para atuações específicas, como “a) na recusa do arquivamento de inquérito
policial ou inquérito civil; b) nas hipóteses excepcionais de afastamento
compulsório”164 e “c) nos casos em que tenha o próprio procurador-geral atribuições
originárias para oficiar, porque, sempre que originariamente lhe caiba agir, poderá
avocar a prática do ato ou designar quem aja por ele (delegação)” 165, dentre outras.
O que se busca evitar, porém, é que, “a pretexto de designar um membro do
Ministério Público para um ato específico, ou ainda para avocar uma manifestação a
cargo da instituição”166, o promotor legalmente vinculado ao caso seja afastado
sumariamente em detrimento de outro especialmente selecionado – que Mazzili
chama de “promotor de encomenda”.
O princípio do promotor natural implica o reconhecimento de que a garantia
da inamovibilidade dos integrantes do Ministério Público não se restringe apenas ao
cargo exercido, mas, em especial, à “proteção das funções do cargo”167. Desse
modo, segundo Mazzili, o exercício das funções do cargo somente pode ser
compulsória e excepcionalmente afastado “por ato do procurador-geral, após
autorização do Conselho Superior do Ministério Público, e desde que o afastamento
convenha ao interesse público”168.
Público, observadas, relativamente a seus membros: I – as seguintes garantias: (...) b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa” (BRASIL, 1988). 160 “São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.” (BRASIL. Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993. Institui a Lei Orgânica do Ministério Público, dispõe sobre normas gerais para a organização do Ministério Públicos e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/xD3KuJ> Acesso em 12 de março de 2018). 161 “Art. 38. Os membros do Ministério Público sujeitam-se a regime jurídico especial e têm as seguintes garantias: II - II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público” (BRASIL, 1993). 162 “São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional” (BRASIL. Lei complementar nº 75, de 20 de maio de 1993. Dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União. Disponível em <http://goo.gl/kR6Nt7> Acesso em 12 de março de 2018). 163 “Art. 17. Os membros do Ministério Público da União gozam das seguintes garantias: II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do Conselho Superior, por voto de dois terços de seus membros, assegurada ampla defesa” (BRASIL, 1993). 164 MAZZILI, Hugo Nigro. Introdução..., 2012, p. 75. 165 Ibidem, p. 75. 166 Ibidem, p. 76. 167 Ibidem, p. 77. 168 Ibidem, p. 77.
43
Não é difícil relacionar o referido princípio com a temática da colaboração
premiada. Basta que se visualize situação em que, de forma justificada, o promotor
natural de determinada causa não entenda cabível a celebração de acordo com
determinado acusado; ainda que o Procurador-Geral possa (inclusive por razões
políticas) ser favorável ao acordo, não lhe é permitida a designação de outro
representante do Ministério Público para o ato sem esteio legal.
1.5 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
O conceito de presunção de inocência169 é bastante literal: presume-se o
acusado inocente até que se concretize a formação da culpa. A origem dessa
garantia “remonta ao Direito Romano (escritos de Trajano), mas foi seriamente
atacada e até invertida na inquisição da Idade Média”170, como dispõe Lopes Jr.
Durante a época do Tribunal da Santa Inquisição, a insuficiência de provas para a
condenação não gerava um decreto absolutório, mas “uma semiprova, comportava
um juízo de semiculpabilidade e semicondenação a uma pena leve”171. Havia, com
efeito, uma “presunção de culpabilidade”, para a qual bastavam poucos elementos
indiciários para algum tipo de responsabilização criminal.
Com a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem de 1789,
consagrou-se o princípio da presunção de inocência, em primeiro lugar, no art. 9º do
referido texto, no qual se estabeleceu que “todo acusado é considerado inocente até
ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor
desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela
lei”172.
A Constituição francesa de 1791 também proclamava que todo homem será
presumido inocente até que seja declarado culpado 173 , sendo o princípio
169 Também chamada pelos Tribunais de “presunção de não-culpabilidade”, embora Reis advirta que se trata de nomenclatura que “encontra raízes no fascismo italiano, que não se conformava com a ideia de que o acusado fosse, em princípio, inocente” (REIS, Wanderlei José dos. Recente guinada na jurisprudência do STF na interpretação do princípio da presunção de inocência. Revista Jurídica - Unicuritiba, vol. 04, nº 49, Curitiba, 2017, p. 440-461). 170 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 94. 171 Ibidem, p. 94. 172 Disponível em <http://goo.gl/8LRbgi> Acesso em 12 de março de 2018. 173 FRANÇA. Constituição de 1791. Disponível em: <http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/constitution-de-1791.5082.html> Acesso em 21 de abril de 2018.
44
efetivamente espalhado pelo mundo civilizado a partir de então. No entanto, no
período compreendido entre o final do Século XIX e o início do Século XX –
sobretudo sob a égide de discursos totalitários –, a presunção de inocência foi
colocada em xeque.
Na Itália fascista, considerava-se a presunção de inocência um “estranho e
absurdo extraído do empirismo francês”174, havendo uma inversão dos argumentos
pela defesa da garantia (não por outra razão “o Código de Rocco de 1930 não
consagrou a presunção de inocência, pois era vista como um excesso de
individualismo e garantismo” 175).
A discussão permaneceu intensa até a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, da ONU, que proclamou a presunção de inocência em seu art. 11176. A
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 4 de novembro de 1950, adotou o
preceito no inciso 2º de seu art. 6º, consagrando a tendência seguida pela própria
Itália, que já o havia incluído em seu texto constitucional, dois anos antes.
Mais recentemente, o Pacto de San José da Costa Rica, de 22 de novembro
de 1969 (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), proclamou, em seu artigo
8, inciso 2, a aludida garantia judicial: “toda pessoa acusada de delito tem direito a
que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”177.
No Brasil, a presunção de inocência somente foi incluída no texto
constitucional em 1988. Nota-se que o dispositivo que a consagra, o art. 5º LVII, tem
redação afeita ao que se denomina de princípio da não-culpabilidade: “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” 178.
Parte da doutrina sequer menciona o termo “presunção” ao referir a garantia, como
Pacelli, que a refere como “princípio da inocência, ou estado ou situação jurídica de
inocência”179. Não haveria uma presunção – de inocência ou de não-culpabilidade –,
mas um status pré-constituído e mantido até o marco temporal definidor da culpa (na
Constituição, o trânsito em julgado – com a ressalva que será feita abaixo).
174 MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. Tomo 1. Barcelona: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1951, p. 252 175 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 2017, p. 95. 176 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Processo Penal, 2013, p. 90. 177 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm> Acesso em 21 de abril de 2018. 178 BRASIL, Constituição..., 1988. 179 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 48.
45
Badaró minimiza a nomenclatura, afirmando que “as expressões ‘inocente’ e
‘não-culpável’ constituem somente variantes semânticas de um idêntico
conteúdo”180, sendo “inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as ideias
– se é que isto é possível –, devendo ser reconhecida a equivalência de tais
fórmulas”181.
Mais importante, com efeito, é o seu conteúdo e os limites de sua incidência
no processo penal. Em relação ao primeiro, Lopes Jr. conclui que:
a) É um princípio fundante, em torno do qual é construído todo o processo penal liberal, estabelecendo essencialmente garantias para o imputado frente à atuação punitiva estatal
b) É um postulado que está diretamente relacionado ao tratamento do imputado durante o processo penal, segundo o qual haveria de partir-se da ideia de que ele é inocente e, portanto, deve reduzir-se ao máximo as medidas que restrinjam seus direitos durante o processo (incluindo-se, é claro, a fase pré-processual);
c) Finalmente, a presunção de inocência é uma regra diretamente referida ao juízo do fato que a sentença penal faz. É sua incidência no âmbito probatório, vinculando à exigência de que a prova completa da culpabilidade do fato é uma carga da acusação, impondo-se a absolvição do imputado se a culpabilidade não ficar suficientemente demonstrada.182
Lopes Jr. diferencia as dimensões – interna e externa ao processo – em que
tem vigência a referida garantia (a qual o autor afirma impor um “dever de
tratamento” 183 ao acusado). Na dimensão interna, a presunção de inocência deveria
implicar a imposição de responsabilidade probatória “inteiramente ao acusador (pois,
se o réu é inocente, não precisa provar nada) e que a dúvida conduziria
inexoravelmente à absolvição (in dubio pro reo)”184 . Nesse sentido, “o réu, em
nenhum momento do iter persecutório, pode sofrer restrições pessoais fundadas
exclusivamente na possibilidade de condenação”185. Com efeito, a garantia teria
também o papel de limitar a extensão às medidas cautelares pessoais (reduzindo-se
ao máximo a incidência de prisões cautelares e outras medidas de similar natureza).
Segundo Pacelli,
o estado de inocência (e não a presunção) proíbe a antecipação dos resultados finais do processo, isto é, a prisão, quando não fundada em razões
180 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 61. 181 Ibidem, p. 236. 182 LOPES JR., Aury, Direito Processual Penal, 2017, p. 96. 183 Ibidem, p. 96. 184 Ibidem, p. 96-97. 185 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de Processo Penal, 2015, p. 48.
46
de extrema necessidade, ligadas à tutela da efetividade do processo e/ou da própria realização da jurisdição penal.186
Além das prisões e outras medidas cautelares, a presunção de inocência (ou
o estado de inocência) também tem papel em outras situações do processo, como
no indiciamento, no qual “é possível reclamar-se a presença de justa causa”, na
medida em que o referido ato “impõe uma carga significativa e socialmente onerosa
à situação jurídica do inocente.”187
Esses aspectos da dimensão interna do princípio relacionam-se fortemente
com o tema da colaboração premiada, seja no que diz respeito à sua utilização
como instrumento de defesa, seja, sobretudo, quanto ao valor probatório das
declarações do acusado/investigado colaborador e à extensão da prova de
corroboração que exige a lei para condenações decorrentes de acordo. Também
guarda relação íntima com a discussão sobre as prisões cautelares que estariam, de
acordo com opositores do instituto, sendo utilizadas como forma de coerção dos
investigados/acusados para que celebrassem acordos de colaboração premiada
com o Ministério Público e a autoridade policial. Voltar-se-á a esse tema mais
adiante.
Na dimensão exterior ao processo, a presunção de inocência exigiria uma
“proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu” – neste
ponto, Lopes Jr. faz uma expressa crítica ao “bizarro espetáculo montado pelo
julgamento midiático”188, que deveria ser coibido pela “eficácia da presunção de
inocência”189.
O momento até o qual vige a presunção – ou até o qual se mantém o
investigado/acusado em estado de inocência – também é tema de absoluta
relevância e de especial atualidade. Embora o comando normativo da Constituição
seja, como se disse acima, bastante literal (ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado da sentença penal condenatória), a interpretação conferida pelos
tribunais nunca seguiu a mesma simplicidade. Badaró relembra que “embora com
duas décadas de atraso, o STF reconheceu, em 2009, julgamento do HC 84.078,
186 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de Processo Penal, 2015, p. 48. 187 Ibidem, p. 48. 188 LOPES JR., Aury, Direito Processual Penal, 2017, p. 97. 189 Ibidem, p. 97.
47
que a presunção de inocência se aplicava até que houvesse uma condenação
transitada em julgado, o que, na prática, impedia a execução provisória da pena”.190
No entanto, houve uma inversão no entendimento, no julgamento do Habeas
Corpus nº 126.292/SP pelo Supremo Tribunal Federal, que “considerou que é
possível dar início da execução da pena condenatória após a confirmação da
sentença em segundo grau” 191. Como bem relata Badaró, entendeu-se que essa
fase processual seria indicativa do encerramento da análise de fatos e provas nos
quais se assentou a culpa do acusado, e isso seria suficiente ao início da execução
penal192.
Basicamente, o STF entendeu que a conclusão da análise material do caso
penal basta para a conclusão de que o acusado não mais se encontra em um estado
de inocência, sendo que os aspectos jurídicos e “formais” do caso (os quais são
submetidos à análise dos Tribunais Superiores) não seriam, por si sós, suficientes
para evitar a execução da pena.
A decisão é polêmica e, não obstante tenha se sustentado durante
julgamentos posteriores, como na análise da liminar das Ações Declaratórias de
Constitucionalidade nº 43 e 44, ainda não parece ser definitiva, havendo decisões
monocráticas de Ministros que acompanharam o voto vencedor do HC nº
126.292/SP193 em sentido contrário a esse, como no Habeas Corpus nº 146.818,
relatado pelo Ministro Gilmar Mendes194, além do julgamento do Habeas Corpus nº
152.752, impetrado em favor do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no qual se
denegou a ordem por margem mínima (6x5). No julgamento, a Ministra Rosa Weber
(que, até então, pertencia ao quórum contrário à execução provisória) votou com a
maioria e em atenção ao princípio da colegialidade (isto é, acompanhando o
entendimento da Corte previamente estabelecido), o que deu azo a grande pressão
para o julgamento do mérito das referidas Ações Declaratórias.
190 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 61. 191 Ibidem, p. 61. 192 Ibidem, p. 61. 193 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. HC 127.483/PR. Relator Ministro Dias Toffoli. Publicado no Diário de Justiça em 4 de fevereiro de 2016. 194 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Decisão Monocrática. HC 146.818/ES. Relator Ministro Gilmar Mendes. Publicado no Diário de Justiça em 19 de setembro de 2017.
48
1.6 OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA
Não se ignora que o contraditório e a ampla defesa são dois princípios
distintos, com fundamentos e aplicações próprias. Faz-se a análise conjunta –
sucessiva, na realidade – em um mesmo subcapítulo em razão do aglutinamento
realizado pela própria Constituição de 1988, que os prevê em seu art. 5º, LV.
De antemão, pode-se afirmar que o contraditório é o elemento central que
diferencia, na lição de Fazzalari195, procedimento de processo. O primeiro, segundo
o autor, configura-se
quando se está de frente a uma série de normas, cada uma das quais reguladora de uma determinada conduta (qualificando-a como lícita ou obrigatória), mas que enunciam como condição ou incidência o cumprimento de uma atividade regulada por outra norma da série, e assim por diante, até a norma reguladora de um “ato final”196
Já o processo, pela mesma lógica, é o procedimento no âmbito do qual “os
contrapostos ‘interessados’ (aqueles que aspiram a emanação do ato final –
‘interessados’ em sentido estrito – e aqueles que queiram evitá-lo, ou seja, os
‘contra-interessados’) estejam sob o plano de simétrica paridade” 197. Com efeito, “o
‘processo’ é um procedimento do qual participam (são habilitados a participar)
aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos: em
contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar as suas
atividades”198. Com efeito, o procedimento se torna processo no momento em que se
estabelece o contraditório.
A referida garantia possui, de um lado, um conceito tradicional, como ensina
Pacelli, no sentido de ser “a garantia de participação no processo como meio de
permitir a contribuição das partes para a formação do convencimento do juiz e,
assim, para o provimento final almejado”199. Por outro lado, há também um conteúdo
moderno, relacionado ao “princípio da par conditio ou da paridade de armas, na
busca de uma efetiva igualdade processual” 200. Nesse sentido, além de se “garantir
195 FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Tradução da 8ª edição por Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006, p. 93. 196 Ibidem, p. 93. 197 Ibidem, p. 93. 198 Ibidem, p. 119. 199 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 43. 200 Ibidem p. 43.
49
o direito à informação de qualquer fato ou alegação contrária ao interesse das partes
e o direito à reação (contrariedade) a ambos” 201, ter-se-ia a garantia de que “a
oportunidade da resposta pudesse se realizar na mesma intensidade e extensão” 202.
É importante ressalvar, porém, que a expressão “paridade de armas” não é
revestida de integral aplicabilidade, considerando-se que, no processo penal, ambas
as partes (acusação e defesa) terão à sua disposição “armas” completamente
distintas. De um lado, o Ministério Público possui a titularidade ação penal pública e
o acesso a amplos instrumentos para produção da prova; por outro, a defesa dispõe
de ações próprias para o exercício de suas garantias (Habeas Corpus e revisão
criminal), e não possui o ônus da prova. Por essa razão, parece ser mais adequado
o conceito de Fazzalari de que, no processo penal, o contraditório se estabeleça
com as partes em “posições simetricamente iguais”203, com iguais oportunidades de
manifestação perante o Juízo.
De qualquer forma, a mudança do conteúdo do princípio relaciona-se com a
“mudança de concepção sobre o princípio da isonomia, com a superação da mera
igualdade formal e a busca de uma igualdade substancial”204 para equiparar os
desiguais. Badaró afirma que essa alteração transformou o juiz, e não apenas as
partes antagônicas, em destinatário do princípio do contraditório:
Houve uma dupla mudança, subjetiva e objetiva. Quanto ao seu objeto, deixou de ser o contraditório uma mera possibilidade de participação de desiguais, passando a se estimular a participação dos sujeitos em condições de desigualdade. Subjetivamente, porque a missão de igualar os desiguais é atribuída ao juiz e, assim, o contraditório não só permite a atuação das partes, como impõe a participação do julgador.205
Nucci segue caminho oposto, advertindo que “não é a expressa manifestação
contrária de uma parte, dirigida à outra, que faz valer o contraditório”206, firmando
que a legitimidade concernente ao princípio se revela com a concessão de
“oportunidade para manifestação em relação a algo, no processo, mesmo que não
201 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 43. 202 Ibidem, p. 43. 203 FAZZALARI, Elio. Instituições..., 2006, p. 124. 204 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 54. 205 Ibidem, p. 54. 206 NUCCI, Guilherme. Princípios Constitucionais..., 2015.
50
seja utilizada” 207 . Ou seja, o contraditório não teria o papel de efetividade no
processo, mas de mera garantia para o seu opcional exercício.
A posição de Badaró inclina-se para uma interpretação cogente do exercício
das garantias constitucionais, sustentando que a sua aplicação deve-se dar de modo
que os sujeitos processuais participem real e igualitariamente de todo o processo,
“assegurando a efetividade e a plenitude do contraditório”, no que o autor denomina
como “contraditório efetivo e equilibrado”208. Há importância nessa conceituação
mais elaborada em razão do valor heurístico que possui o contraditório:
O contraditório, possibilitando o funcionamento de uma estrutura dialética, que se manifesta na potencialidade de indagar e de verificar os contrários, representa um mecanismo eficiente para a busca da verdade. Mais que uma escolha de política processual, o método dialético é uma garantia epistemológica na pesquisa da verdade. As opiniões contrapostas dos litigantes ampliam os limites do conhecimento do juiz sobre os fatos relevantes para a decisão e diminuem a possibilidade de erros.209
Se é correta a afirmação de Marques de que “sem o contraditório não pode
haver devido processo legal”210, é igualmente aplicável o silogismo ao exercício da
defesa. Em se tratando o processo penal de um exercício dialético 211 , com a
acusação apresentando-se como “tese e a defesa, como a antítese” 212 , o
contraditório acaba se posicionando como corolário da ampla defesa. É o que ensina
Grinover:
(...) defesa, pois, que garante o contraditório, e que por ele se manifesta e é garantida: porque a defesa, que o garante, se faz possível graças a um de seus momentos constitutivos – a informação – e vive e se exprime por intermédio de seu segundo momento – a reação.213
Embora haja, evidentemente, uma ligação entre o contraditório e a ampla
defesa, que muitas vezes andam lado a lado, “é possível violar o contraditório, sem
207 NUCCI, Guilherme. Princípios Constitucionais..., 2015. 208 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 55. 209 Ibidem, p. 55. 210 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 87. 211 O que se afirma como regra, já que há situações em que há concordância entre as partes, como na transação penal, em casos de réus confessos que não negam os fatos imputados ou na colaboração premiada. 212 BADARÓ, op. cit., 2016, p. 57. 213 GRINOVER, Ada Pellegrini. Defesa, contraditório e par conditio na ótica do processo de estrutura cooperatória. In: GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.
51
que se lesione o direito de defesa”214, já que aquele não se refere exclusivamente a
esse. Também se deve ter em mente que a ampla defesa não tem o mesmo caráter
vinculante do contraditório. Por exemplo, ainda que o interrogatório seja um ato de
defesa garantido ao acusado – e que será exercido ao final do processo, como uma
reação a tudo que foi produzido durante a instrução –, não há mácula à ampla
defesa se o interrogado não exercer esse direito. O contraditório exige apenas que o
ato seja designado e realizado; a ampla defesa não exige, porém, que o direito seja
exercido – parece haver, portanto, oportunidade no segundo caso.
A ampla defesa, com efeito, funda-se em duas modalidades: a defesa técnica
e a defesa pessoal. Como se disse acima, a segunda é um direito do acusado e
deve, sem margem de negociação e por força do contraditório, ser ofertada ao
acusado. A primeira, porém, é absolutamente indispensável. De acordo com Lopes
Jr., “a defesa técnica supõe a assistência de uma pessoa com conhecimentos
teóricos do Direito, um profissional”215, é uma exigência para o equilíbrio funcional do
processo penal e decorre “de uma acertada presunção de hipossuficiência do sujeito
passivo”216.
Essa hipossuficiência se explica a partir da posição em que se encontra o
acusado/investigação na relação processual: desde o início da persecução, seus
antagonistas são agentes do Estado (polícia, Ministério Público e Juiz), que não
apenas detêm o aparato necessário à eventual privação de seus direitos, mas
possuem qualificação técnica para essa atuação. Sem um defensor que possa, ao
menos em tese e sob a perspectiva da técnica jurídica, representá-lo, o acusado não
terá quaisquer condições de exercer sua defesa.
Para Lopes Jr., “a defesa técnica é considerada indisponível, pois, além de
ser uma garantia do sujeito passivo, existe um interesse coletivo na correta
apuração do fato” 217 . É que a defesa técnica irá exercer um “mecanismo de
autoproteção do sistema processual penal, estabelecido para que sejam cumpridas
as regras do jogo da dialética processual e da igualdade de partes”218. Em outras
palavras, sem o obrigatório exercício da defesa profissional, que poderá averiguar a
214 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 57. 215 LOPES JR., Aury, Direito Processual Penal, 2017, p. 99. 216 Ibidem, p. 99. 217 Ibidem, p. 100. 218 Ibidem, p. 99.
52
legitimidade e legalidade do processo penal, não há a certeza da aplicação da
garantia do devido processo legal.
Além da participação processual do defensor técnico, a jurisprudência
construiu o argumento de que é impositiva a “realização efetiva dessa participação,
sob pena de nulidade”219. Nesse sentido, indica-se o julgamento do Habeas Corpus
nº 82.672/RJ, do Supremo Tribunal Federal (relatado pelo Ministro Marco Aurélio),
no qual se reconheceu a nulidade de defesa “limitada ao pedido de condenação ao
mínimo legal” 220 . Na oportunidade, o defensor público constituído não formulou
pedido absolutório e resumiu sua atuação a pleito pela fixação da pena em seu
patamar mínimo legal. O Supremo atestou que “o réu esteve indefeso”221, sendo
nulo o processo em razão da violação ao princípio da ampla defesa.
O entendimento de que se trata de nulidade absoluta, porém, restringe-se à
ausência de defesa efetiva por advogado nomeado (defensor público ou dativo). No
caso de deficiência defensiva por advogado constituído, entende-se a nulidade como
relativa, passível de demonstração de prejuízo e preclusão (conforme Súmula nº 523
da Suprema Corte). Há, porém, alguns precedentes do Supremo Tribunal Federal
que ressalvam a possibilidade de reconhecimento da nulidade também nesses
casos, como no Habeas Corpus nº 94.168/PB, relatado pelo Ministro Carlos Britto,
no qual se anulou processo de que decorreu condenação a acusado cujo defensor
privado não apresentou as alegações finais. Ainda que o acórdão faça menção ao
prejuízo (o que inclina a nulidade para o aspecto relativo), tratou-se quase de uma
presunção, sob a lógica de que, se houve a condenação, é evidente o prejuízo.
Esse ponto parece ter relevância para o estudo da colaboração premiada.
Como se trata de instituto, como será visto adiante, que envolve a confissão, a
renúncia ao direito ao silêncio e, muitas vezes, ao direito de recorrer e impetrar
habeas corpus, o reconhecimento de que deve haver, sem dúvidas, o exercício de
defesa durante o processo (não bastando pedidos de fixação de pena em seu
patamar mínimo legal) pode ser contraditório com aquela prática.
219 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 45. 220 Ibidem, p. 45. 221 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº 82.672/RJ. Relator Ministro Carlos Britto. Relator para acórdão Ministro Marco Aurélio. Data de Julgamento: 14 de outubro de 2003.
53
1.7 OS PRINCÍPIOS DA OBRIGATORIEDADE E DA INDISPONIBILIDADE DA
AÇÃO PENAL PÚBLICA
Desde logo, esclarece-se que ambos os princípios acima intitulados não
fazem, nominal e expressamente, parte do rol de garantias processuais previstas na
Constituição Federal de 1988. Trata-se de disposições que envolvem a interpretação
conjunta do princípio da legalidade 222 e dos dispositivos constitucionais que
estabelecem a legitimidade do Ministério Público como titular da ação penal pública
e as regras do Código de Processo Penal quanto à sua instauração e procedimento.
O art. 129, I, da Constituição, estabelece que é função institucional do
Ministério Público “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da
lei”223. A lei a que a Carta se refere é o Código de Processo Penal, que, no art. 24,
prescreve que “nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do
Ministério Público”.224
Da conjunção de ambos os dispositivos, extrai-se o princípio da
obrigatoriedade da ação penal pública. Trata-se de “um subprincípio, ou uma regra
constitucional, advinda da legalidade”225, que corresponde à lógica de que, cometido
crime de ação pública, deve o Estado exercer o dever de punir. Seu conteúdo, na
verdade tem uma dupla função, como explica Bechara:
a obrigatoriedade da ação penal representa um duplo corolário: garantir a universalidade do acesso à jurisdição a qualquer pessoa, no caso do Direito brasileiro por meio do Ministério Público; assegurar que o interesse público será tutelado de forma simétrica e indiscriminadamente. Essa dupla função da obrigatoriedade permite presumir que a ação penal constitui um mecanismo eficiente para a tutela do interesse ou direito violado.226
O dever de punir não se extrai apenas do princípio da obrigatoriedade, mas
também do art. 5º, do Código de Processo Penal, que estabelece que o inquérito
policial será instaurado de ofício ou a partir de requisição de autoridade judiciária e
do próprio Ministério Público, ou requerimento do ofendido/representante.
222 Porque justamente estabelece os parâmetros legais para o exercício do poder/dever do órgão oficial de acusação, conforme COUTINHO, Jacinto, Introdução aos princípios..., 1998, p. 183. 223 BRASIL. Constituição..., 1988. 224 BRASIL. Código de Processo Penal, 1941. 225 NUCCI, Guilherme. Princípios Constitucionais..., 2015. 226 BECHARA, Fábio Ramazzini. Colaboração premiada segundo o projeto de lei das organizações criminosas. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 20, nº 233, abril de 2012, p. 4.
54
Concluído o inquérito policial ou outro procedimento investigatório pré-
processual, o Ministério Público terá que se manifestar sobre o oferecimento de
denúncia. São quatro as possíveis “hipóteses legais de procedimento: a) oferece
denúncia; b) requer novas diligências para sanar falhas ou lacunas; c) requer a
extinção da punibilidade do indicado; d) requer o arquivamento”227.
De forma alguma (analisando-se o princípio sob uma perspectiva pré-
colaboração premiada – ou, ainda, pré-transação penal), poderia o titular da ação
penal agir fora dessas hipóteses. E tampouco poderia o Ministério Público agir de
ofício, deixando simplesmente de oferecer a denúncia, presentes ou não os seus
requisitos.
A ideia por trás da obrigatoriedade é, na verdade, muito simples: se há
indícios da prática de crime de ação pública, o órgão acusador não pode deixar de
oferecer a denúncia, a princípio sob nenhuma hipótese, tendo em vista o “interesse
público quanto à ocorrência de determinados crimes, lesivos a importantes bens
jurídicos tutelados”228.
Quando aqueles indícios não estão claros ao agente do Ministério Público (ou
quando há a compreensão de que não estão demonstrados), a lei processual penal
determina que o titular da ação submeta ao crivo do Poder Judiciário seu
posicionamento. É o que determina o art. 28 do Código de Processo Penal, que
estabelece que
se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferece-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.229
A rigor, a última palavra sobre o oferecimento ou o arquivamento de um
inquérito policial ou outra espécie de investigação criminal, quando houver
discordância com o Juiz, será do “chefe do Ministério Público”230, em procedimento
de “dupla triagem”231, na expressão de Marques. Assim, é certo que a titularidade da
227 NUCCI, Guilherme. Princípios Constitucionais..., 2015. 228 Ibidem. 229 BRASIL. Código de Processo Penal, 1941. 230 MARQUES, José Frederico. Elementos..., 2000, p. 380. 231 Ibidem, p. 379.
55
ação penal pública do agente do Ministério Público (ou do órgão, seguindo a
terminologia legal) não é completamente absoluta, já que pode prevalecer – frise-se,
na exceção do Código de Processo Penal – o interesse hipotético no oferecimento
de denúncia mesmo quando o promotor/procurador competente para o caso
discorde da ocorrência da infração penal. Isso não significa, porém, que essa
titularidade possa ser mitigada em outras situações, prevalecendo o integrante do
Ministério Público no pleno exercício de sua titularidade – conforme se tratou no
subtópico relativo ao princípio do promotor natural.
O princípio da obrigatoriedade tem como antagonista, de sistemas penais
estrangeiros, o princípio da oportunidade, que permite ao Ministério Público (ou à
denominação local do órgão acusatório) “julgar da conveniência ou não da
propositura da ação penal” 232 . Ambas, a obrigatoriedade e a oportunidade,
“projetam-se no mundo informando os sistemas processuais”233, cada qual de forma
correspondente ao seu respectivo ordenamento.
Historicamente – isto é, anteriormente à Constituição de 1988 e à
transformação da função do Ministério Público –, era forte a defesa dessa distinção
no país. Nesse sentido, vale menção à lição de Almeida quanto à diferença entre a
resolução de conflitos de interesses privados, relacionados ao processo civil, e
aqueles públicos, relacionados ao processo penal, a partir da qual se extrai
comparação válida entre os princípios da oportunidade e da obrigatoriedade.
Segundo o autor:
Os contrastes de interesses privados dependem, por natureza, da vontade dos particulares interessados. Estes podem, por transação explícita ou implícita, dispor do conflito, até mesmo à anulação (...). Essa faculdade, que têm os particulares, de representar o conflito de interesses em juízo da maneira que lhes convêm – inteiro, incompleto e até simulado e por colusão – corresponde ao poder que, na vida jurídica extrajudicial, sobre os próprios direitos exercem seus titulares de usá-los ou não usá-los. Chama-se poder dispositivo.234
E seguia, acerca desse poder dispositivo, quanto aos temas de natureza
pública:
232 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2013, p. 390. 233 COUTINHO, Jacinto. Introdução aos princípios...,, 1998, p. 184. 234 ALMEIDA, J. Canuto Mendes de. Princípios fundamentais do Processo Penal. São Paulo: RT, 1973. P. 46.
56
Não o possuem, porém, os que agem como órgãos de promoção do interesse de outrem: não podem transigir, nem renunciar; e, por isso mesmo, não tem, em juízo, qualquer poder dispositivo, sobre os dados da questão. São tutores de menores, curadores de interditos, representantes sem poderes especiais; e, também, os funcionários incumbidos da repressão da delinquência. 235
O mesmo autor, ainda na década de 1970, apresentava argumentos sólidos
quanto à impossibilidade de estabelecimento de poder dispositivo entre as partes no
processo penal, insistindo que “o crime é uma lesão irreparável ao interesse coletivo,
reconhecida como tal pela proibição legislativa de sua prática” 236 e que “ou a pena é
necessariamente reclamada pelo crime, para a satisfação do interesse social (...) ou
pode ser discricionariamente evitada pela transação dos particulares ou funcionários
do Estado” 237, que, dessa forma, afastariam a justificativa da própria cominação
legislativa. Conclui Almeida que, “o próprio dispositivo seria, no processo criminal, a
negação do direito criminal” 238.
Tourinho Filho, por sua vez, ensina que os princípios contrastantes da
oportunidade e da obrigatoriedade se pautam em dois aforismos que demonstram
bem a essência de cada um: enquanto a obrigatoriedade “se embasa no apotegma
nec delicta maneant impunita (os delitos não podem ficar impunes)” 239 , a
oportunidade “repousa no aforismo minima non curat praetor (o Estado não se
preocupa com as coisas mínimas)”240.
Os Estados Unidos da América são, talvez, o principal exemplo de sistema
criminal fundado no princípio da oportunidade. Não por outra razão que, mais
adiante, será analisado o instituto do plea bargaining, que é a principal forma de
resolução de controvérsias criminais naquele país e que em muito se assemelha ao
instituto da colaboração premiada brasileira.
Tourinho Filho apresenta outros exemplos de países em que vige o mesmo
princípio, cada qual com a sua peculiaridade. Na Noruega, por exemplo, “permite-se
ao Ministério Público (quando a prescrição está iminente ou há circunstâncias
235 ALMEIDA, J. Canuto Mendes de. Princípios..., 1973, p. 86. 236 Ibidem, p. 86. 237 Ibidem, p. 86. 238 Ibidem, p. 86. 239 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2013, p. 390. 240 Ibidem, p. 390.
57
particularmente atenuantes) abster-se de iniciar a ação penal”241. Em países como a
Rússia e a Alemanha, há essa previsão para crimes que não aparentam relevância
social – em uma “corporificação do princípio da insignificância”242.
Ambas as situações caracterizadoras do princípio da oportunidade nesses
países já foram ou ainda são eventualmente reconhecidas no Brasil. Quanto à
situação da Noruega, por vários anos houve o reconhecimento da prescrição
antecipada pela pena em perspectiva, em que o Ministério Público requer o
arquivamento do processo ou a decretação da extinção da punibilidade pela
iminente ou inevitável (mas sempre futura e não consolidada) prescrição pela pena
concreta prevista para o caso. Tal sistemática foi utilizada em tamanha magnitude
que, em 2010, houve a aprovação da Súmula nº 438 do Superior Tribunal de
Justiça, que veda expressamente a prática. Já as situações de insignificância
também são presentes no dia-a-dia forense.
Há uma diferença relevante entre tais ocorrências no Brasil e nos países
mencionados. Ainda que os fundamentos para o não oferecimento da denúncia ou o
arquivamento do inquérito policial sejam os mesmos, em regra (com a transação
como exceção constitucionalmente prevista) há a participação da autoridade judicial
para ratificar o entendimento do Ministério Público. Não obstante, quando não o
fizer, e indeferir o pleito para submetê-lo ao procedimento do art. 28 do Código de
Processo Penal, a decisão caberá, como se disse, ao chefe do Ministério Público.
Paralelamente ao princípio da obrigatoriedade (ou como consequência
dele243), vige no sistema penal brasileiro o princípio da indisponibilidade, segundo o
qual “pertencendo a ação penal ao Estado (salvo exceções244), segue-se que aquele
a quem se atribui seu exercício, o Ministério Público, não pode dela dispor” 245.
Tourinho Filho afirma que, ainda que sejam os titulares da ação penal e detenham o
seu exercício, os órgãos do Ministério Público não são seus donos, na medida em
que agem “em nome da sociedade que eles representam”246. Com efeito, “por não
lhes pertencer, não podem os órgãos do Ministério Público dela desistir, transigindo
ou acordando, pouco importando seja ela incondicionada ou condicionada”247. O
241 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2013, p. 391. 242 Ibidem, p. 391. 243 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 2015, p. 128. 244 Em menção que Tourinho Filho faz à ação penal privada. 245 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 389. 246 Ibidem, p. 389. 247 Ibidem, p. 389.
58
autor, porém, ressalva que “nada impede que, no direito a ser constituído” 248, o
princípio da indisponibilidade seja “amenizado” 249, como no caso da prescrição em
perspectiva ou em caso no qual toda a prova for “imprestável” 250, ressalvando como
um “avanço” 251 a instituição da transação penal252.
A conceituação do autor acerca do princípio da indisponibilidade encontra
ressonância em vários dispositivos do Código de Processo Penal, como o art. 42,
que estabelece literalmente que “o Ministério Público não poderá desistir da ação
penal”253 e o art. 576 do mesmo diploma, que prevê que “o Ministério Público não
poderá desistir de recurso que haja interposto”254. Tenha-se em mente, porém, que
não é suficiente a leitura do Código de Processo Penal como balizador do conteúdo
principiológico do sistema processual brasileiro. A uma, porque o Código é muito
anterior à Constituição e, naturalmente, não reproduz suas diretrizes; a duas, porque
“há uma ideologia que informa o Direito Brasileiro”255 que, ainda que não expressa
no texto constitucional, não pode ser, de maneira nenhuma, ignorada – e certamente
a ideologia tem um papel na dinâmica da colaboração premiada e da atual
sistemática de combate à corrupção.
De todo modo, é evidente que, mesmo sob uma leitura legalista
desatualizada, os representantes do órgão acusatório não estão vinculados a
pedidos condenatórios e o exercício de uma espécie de retratação quanto ao
conteúdo da denúncia, por meio de pedido absolutório nas alegações finais, não
configura a disposição da ação. Mas, é bom que se diga, não haveria a violação
legal ao princípio da indisponibilidade porque esse pleito não é tecnicamente
vinculante, o que se extrai da redação do art. 385 do Código de Processo Penal, que
estabelece que “o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério
Público tenha opinado pela absolvição”256.
Ressalta-se, porém, que os princípios da obrigatoriedade e da
indisponibilidade não são absolutos e, por terem seu amparo eminentemente na
248 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2013, p. 389. 249 Ibidem, p. 389. 250 Ibidem, p. 389. 251 Ibidem, 2013, p. 389. 252 A última edição da obra foi publicada em 2013 e, portanto, não tratou da colaboração premiada como uma potencial modalidade de mitigação do princípio da indisponibilidade. 253 BRASIL. Código de Processo Penal, 1941. 254 Ibidem. 255 BERTONCINI, Mateus Eduardo Siqueira Nunes. Princípios de Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 18. 256 BRASIL, op. cit., 1941.
59
legislação infraconstitucional, parecem poder ser mitigados – ou completamente
contrariados – por lei. É nesse sentido que se justifica a já mencionada transação
penal, que, por meio do art. 76 da Lei nº 9.099/95, contraria frontalmente a proibição
de transigir tradicionalmente integrante do conteúdo da indisponibilidade. É verdade
que, para funcionar dessa forma, a transação conta com um permissivo
constitucional (art. 98, I, da Constituição), que pode constituir – a depender da
interpretação, como será tratado no quarto capítulo – uma cláusula de abertura para
novos mecanismos de mitigação da obrigatoriedade/indisponibilidade ou, em leitura
mais restrita, uma exceção expressa que ratifica a regra para os demais casos.
O mesmo não parece ocorrer em relação à igualmente mencionada
Resolução nº 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público. Embora o
instituto pareça trazer um modelo de transação para uma maior variedade de crimes
que não envolvam violência ou grave ameaça, a sua criação por via administrativa
não teria o condão de suplantar os dispositivos do Código de Processo Penal
relacionados aos princípios tratados neste subcapítulo.
Sob essa ótica, também a colaboração premiada, por ser instituída por lei,
tem – ou teria – a potencialidade de contrariar ambos os princípios. Mais adiante
neste estudo, porém, será analisado de que maneira o Ministério Público, seja sob a
letra da Lei nº 12.850/2013, seja em acordos reais que podem ampliar o conteúdo
legislativo, interage com a obrigatoriedade e a indisponibilidade.
60
2. OS FUNDAMENTOS MATERIAIS E PROCESSUAIS DA COLABORAÇÃO
PREMIADA
Apresentado um breve panorama principiológico do processo penal, em uma
espécie de status quo ao momento atual, em que se verifica a implementação e
prática da colaboração premiada, passa-se a buscar seu fundamento teórico nas
ciências criminais.
Para tanto, pretende-se, de forma breve, inserir o instituto da colaboração
premiada sob as perspectivas da política criminal, da dogmática jurídico-penal
(adiantando-se, nesses pontos, um enfrentamento sobre sua natureza) e da justiça
penal negocial, buscando-se uma justificativa para sua existência e introdução no
ordenamento brasileiro.
2.1 A COLABORAÇÃO PREMIADA E A DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL
Sob a perspectiva jurídico-penal, a colaboração premiada exerce sua função
primordial como um prêmio concedido ao acusado que efetivamente colabore com a
justiça. Nesse sentido, o direito penal premial caracteriza-se pela escolha do
legislador de reduzir ou extinguir a pena do agente quando observar a redução de
sua punibilidade nos atos de confessar o crime, indicar seus comparsas e os
detalhes do funcionamento da atividade criminosa e reparar o dano causado. Os
fundamentos para tais previsões no ordenamento, porém, são deduzidos de
diversas fontes.
Neste subcapítulo, analisar-se-á a perspectiva da colaboração premiada à luz
da política-criminal e das teorias dos fins da pena. Na sequência, será feita a
avaliação do instituto a partir da ótica da justiça penal negocial.
2.1.1 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA
CRIMINAL
Sem a pretensão de exaurir o tema, pode-se sustentar, desde logo, que a
colaboração premiada tem relação íntima com a política criminal, a qual, segundo
61
Roxin, constitui “a chamada missão social do Direito Penal” 257 , que define os
“métodos adequados, em sentido social, para a luta contra o delito” 258 .
Considerando-se que, desde a década de 70, houve um “deslocamento da proteção
individual à proteção da coletividade (isto é, do conjunto da população ou de
grandes grupos da mesma)”259, os “delitos econômicos, contra o meio ambiente,
responsabilidade pelo produto, grandes riscos industriais, tecnologia genética, tráfico
de drogas e outras formas de criminalidade organizada” 260 tornaram-se o objeto
central dos novos tipos penais e da atuação dos tribunais.
Nesse cenário, como os crimes de organização criminosa (para os quais é
prevista diretamente a colaboração premiada), não raras vezes, confundem-se com
atividades de fundamental importância à sociedade (como se vê, por exemplo, na
Operação Lava Jato), não é difícil extrair a pertinência social de métodos funcionais
para o seu combate.
Na mesma linha, vale a menção a Hassemer, que observa a tendência de o
Direito Penal se orientar pelas consequências, afastando-se da exclusiva “tarefa de
perseguir o injusto criminal e compensar pela expiação do autor” 261 para “buscar o
objetivo de corrigir o autor e conter por completo a criminalidade” 262. No caso da
criminalidade organizada, há pertinência na utilização de instrumentos voltados à
eficiência da investigação – como é a colaboração premiada – com o objetivo de,
não apenas punir seus autores, mas combater, em sentido amplo, a criminalidade.
Ademais, como consigna Armenta Deu, em consideração sobre a ampliação
dos espaços de oportunidade da ação penal (em contrariedade à obrigatoriedade
acima referida), há que se considerar também a realidade de incapacidade da
administração de Justiça em cumprir seus objetivos, tornando instrumentos de
257 ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal. Tradução e introdução de Francisco Muñoz Conde. 2ª Edição. 1ª Reimpressão. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 32. Tradução livre. Do original: “la llamada misión social del Derecho Penal”. 258 Ibidem, p. 32. Tradução livre. Do original: “los métodos adecuados, en sentido social, para la lucha contra el delito”. 259 ROXIN, Claus. La evolución de la política criminal, el derecho penal y el proceso penal. Tradução de Carmen Gómez Rivero e María del Carmen García Cantizano. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p. 25. Tradução livre. Do original: “un desplazamiento desde la protección individual a la protección de la coletividad (esto es, del conjunto de la población o de grandes grupos de la misma).”. 260 Ibidem, p. 26. Tradução livre. Do original: “delitos económicos, contra el medio ambiente, responsabilidad por el producto, grandes riesgos industrials, tecnología genética, tráfico de drogas y otras formas de criminalidad organizada”. 261 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução da 2ª edição alemã, revisada e ampliada, de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 53. 262 Ibidem, p. 53.
62
natureza consensual (como é a colaboração premiada) um “mal necessário,
utilizável, portanto, quando não exista remédio melhor”263.
Hassemer, aliás, há poucos anos reconheceu como tendência de política
criminal a utilização de instrumentos processuais “desformalizados” 264 como
alternativa às “tradicionais formas de resolução dos processos” 265. Na oportunidade
reconheceu que
(...) os grandes processos criminais referentes a crimes econômicos e de drogas sequer chegam à instauração do processo principal e a um julgamento, senão encerram prematuramente através de um acordo entre grupos parciais dos necessariamente interessados e da suspensão do processo em virtude de certa colaboração do acusado. Esta práxis facilita o processo, aumenta as possibilidades de resolução e de ‘condenações’ e para isso coloca em jogo princípios fundamentais do tradicionais Direito Processual Penal. 266
Não obstante se extraia do referido texto uma espécie de alerta às
transformações de política criminal que têm ocorrido e podem vir a ocorrer na
Alemanha nos recentes anos, é inegável o reconhecimento de instituto análogo à
colaboração premiada brasileira como produto de um “clima político-criminal” 267 que
“favorece o Direito Penal como instrumento efetivo na assimilação dos modernos
problemas” 268, mas que “vige não mais como ultima, senão como prima ou até
mesmo sola ratio” 269. É importante pontuar quanto a essa ressalva do autor, porém,
que a Constituição brasileira já se utilizava expressamente do Direito Penal como
instrumento para promoção de direitos, conforme se extrai das previsões dos arts.
5º, XLII (que estabelece o racismo como crime inafiançável e imprescritível) e 225,
§3º (que prevê a criminalização, inclusive de pessoas jurídicas, por crimes ao meio
ambiente).
De qualquer forma, também no Brasil tem se reconhecido, após a
implementação legislativa e prática da colaboração premiada, sua justificativa sob a
perspectiva da política-criminal. Nesse sentido, Aires e Fernandes enfatizam que o
263 ARMENTA DEU, Teresa. Principio de oportunidad y mediación en el proceso penal. Setembro de 2016, p. 4. Disponível em <http://goo.gl/j8vgoi> Acesso em 18 de maio de 2018. Do original: “mal necesario, utilizable, por tanto, cuando no exista outro remedio mejor“. 264 HASSEMER, Winfried. Desenvolvimentos previsíveis na dogmatica do direito penal e na política criminal. Revista Eletrônica de Direito Penal e Política Criminal – UFRGS, vol. 1, nº 1, 2013. 265 Ibidem. 266 Ibidem. 267 Ibidem. 268 Ibidem. 269 Ibidem.
63
aspecto premial da conduta do colaborador exerce muito mais um “objetivo de
política criminal” 270 do que, propriamente, um reflexo do “valor moral positivo” 271.
Não se ignora, porém, que parte da doutrina é bastante avessa ao instituto,
inclusive questionando a legitimidade (e, naturalmente, a utilização em política
criminal) de o “Estado lançar mão de um estímulo à deslealdade e traição entre
parceiros, para atingir resultados que sua incompetência não lhe permite através de
meios mais ortodoxos”272. Nesse sentido, Bitencourt e Busato sustentam que
(...) ainda que seja possível afirmar ser mais positivo moralmente estar ao lado da apuração do delito do que de seu acobertamento, é, no mínimo, arriscado apostar em que tais informações, que são oriundas de uma traição, não possam ser elas mesmas traiçoeiras em seu conteúdo. Certamente aquele que é capaz de trair, delatar ou dedurar um companheiro movido exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, não terá escrúpulos em igualmente mentir, inventar, tergiversar e manipular as informações que oferece para merecer o que deseja.273
Em sentido semelhante, Zaffaroni sustenta que “a impunidade de agentes
encobertos e dos chamados ‘arrependidos’ constitui uma séria lesão à eticidade do
estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do estado de direito” 274,
sublinhando que “o estado não pode se valer de meios imorais para evitar a
impunidade” 275.
Não obstante, há defensores acerca da adequação da concessão de
benefícios ao autor do crime em troca de sua contribuição ao processo,
posicionando-se pelo afastamento do Estado da ética do criminoso e, na realidade,
entendendo que é, sim, dever moral da administração pública buscar meios mais
eficazes para a persecução de crimes complexos – naturalmente, com salvaguardas
contra o criminoso que aja de forma traiçoeira apenas para se beneficiar. É o caso,
por exemplo, de Sanctis, que dá a sua perspectiva de magistrado sobre essa
270 AIRES, Murilo Thomas; FERNANDES, Fernando Andrade. A colaboração premiada como instrumento de política criminal: a tensão em relação às garantias fundamentais do réu colaborador. Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Porto Alegre, vol. 3, n. 1, 2017, p. 264. 271 Ibidem, p. 264. 272 BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei de Organização Criminosa. Lei 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 117 273 Ibidem, p. 117. 274 ZAFFARONI, Eugenio Raul. “Crime Organizado”: uma categorização frustrada. Discursos sediciosos. Crime, Direito e Sociedade. Ano 1, nº 1, 1º semestre de 1996. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 59. 275 Ibidem, p. 59.
64
característica da colaboração premiada, tecendo comentários sobre a natureza ética
e estratégica do instituto:
O prêmio punitivo que se concede ao suspeito/acusado visa a uma eficaz busca da verdade. A delação premiada, existente no Brasil desde as Ordenações Filipinas, é ética, útil e estratégica. Ética porque atende às finalidades político-criminais e à proteção do bem jurídico (...). Útil pelo fato de permitir a descoberta precoce de crimes e seus autores ou partícipes, facilitando o trabalho de todos. Por fim, estratégica para as partes, inclusive à defesa, já que o cliente se vê beneficiado com uma pena relativizada sem o custo do processo.276
Do lado da advocacia, Bretas defende o instituto, afirmando que se vitupera “o
estigma de Iscariotes para lançar o ignominioso rótulo de ‘alcaguetes’, etiquetado
sobre os que detratam o pacto de silêncio na ‘ética do crime’” 277, mas que, na
realidade, “a julgar por esse raciocínio, comportamento ético, para quem assim
pensa, seria concordar que o acusado expiasse, sozinho, uma pena individual por
uma culpa coletiva” 278.
De qualquer forma, a essência do instituto é clara: ao fornecer informações
relevantes que permitam a persecução de outros coautores do crime – e, nos mais
recentes e notórios casos, restituir ao Estado e às vítimas dos crimes o produto do
crime (na forma de valores para reparação de danos e multas pesadíssimas) –, o
Estado opta, em razão da importância para a persecução de crimes de elevada
importância político-criminal, por conceder ao réu colaborador uma contrapartida,
que pode ser a simples redução de pena e a alteração do regime prisional, o perdão
judicial ou, na melhor das hipóteses, a imunidade processual.
2.1.2 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO CAUSA DE REDUÇÃO OU
EXCLUSÃO DA PENA
Embora se possa falar, no presente, que a colaboração premiada assume
uma função de política criminal que pretende conferir maior efetividade ao Direito
Penal e ao Processo Penal, sobretudo em razão dos crimes a ela relacionados (que,
276 SANCTIS, Fausto Martin de. Crime organizado e lavagem de dinheiro: destinação de bens apreendidos, delação premiada e responsabilidade social. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 182. 277 BRETAS, Adriano Sérgio Nunes. Apontamentos de Processo Penal. Curitiba: Sala de Aula Criminal, 2017, p. 433. 278 Ibidem, p. 433.
65
por sua dificuldade de apuração, carecem de instrumentos especiais), sua
consequência para o colaborador (consistente na concessão de prêmio em razão de
conduta positiva praticada após o início da prática delitiva) não é inédita.
Ainda no Século XIX, von Liszt apresentava a hipótese, também justificada
“por considerações de política criminal”279, de que, na desistência voluntária (ou
desistência na tentativa, na qual o agente “transpõe a linha divisória entre os actos
preparatórios impunes e o começo de execução punível” 280), a lei poderia – como o
fez à época – “construir uma ponte de ouro para a retirada do agente que já se
tornara passível de pena” 281 . Outra hipótese de utilização do prêmio penal em
tempos antigos já foi mencionada no item 1.2 deste trabalho, justamente a figura do
pentito da Idade Média, o criminoso que, arrependido e colaborativo, recebia
benefícios penais.
As figuras da desistência voluntária e do arrependimento eficaz como causas
legais de exclusão da punibilidade, como se sabe, têm previsão nos ordenamentos
modernos, constando do art. 15 do Código Penal brasileiro. Embora tais figuras não
se assemelhem, sob a lógica da conduta, à colaboração premiada (já que, naqueles
casos, não se fala em consumação do delito), podem haver paralelos de dogmática
jurídico-penal que justifiquem os benefícios que são previstos no instituto em
análise.
Muñoz Conde estabelece que “a ‘voluntariedade’ é uma determinada atitude
psíquica daquele que desiste, que, desde o ponto de vista preventivo, se considera
merecedor de impunidade” 282 . Para o autor, porém, são necessários alguns
requisitos para a exclusão da pena. “Em primeiro lugar, a desistência poderá
conduzir à impunidade se a tentativa ainda não fracassou e depende da vontade
daquele que desiste de conseguir a consumação”283; caso contrário (isto é, se a
intenção é frustrada ainda que o agente siga atuando), não caberá o benefício,
279 LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Allemão. Tradução por José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C. Editores, 1899, p. 342. 280 Ibidem, p. 342. Ortografia original. 281 Ibidem, p. 342. 282 MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal. Parte General. 8ª Edição. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010, p. 424. Tradução livre. Do original: “La ’voluntariedad’ es una determinada actitud psíquica del que desiste, que, desde el punto de vista preventivo, se considera merecedora de impunidad.” 283 Ibidem, p. 424. Tradução livre. Do original: “Em primer lugar, el desistimiento podrá conducir a la impunidad si el intento aún no ha fracasado y depende de la voluntad del que desiste conseguir la consumación.
66
configurando-se tentativa fracassada imprópria284. Ademais, a desistência deve ser,
além de possível, definitiva.
No entanto, os motivos pelos quais ela ocorre devem ser considerados:
Os motivos éticos são, desde o ponto de vista preventivo, valiosos e devem conduzir sempre a admitir a voluntariedade. Os motivos interessados, porém, devem-se valorar diferenciadamente, tendo sempre presente a finalidade preventiva, geral e especial, e não uma consideração moral ou política estranha ao Direito penal.285
Nesse sentido, “o medo abstrato da pena (o sujeito desiste porque teme a
pena que se lhe pode impor) deve ser considerado, do ponto de vista preventivo,
como um motivo que merece a impunidade” 286; já “o medo concreto da pena (o
sujeito desiste porque foi descoberto, porque será preso na saído do lugar do roubo
etc.) deve, pelo contrário, ser valorado, do ponto de vista preventivo, negativamente”
287. Outros pressupostos apresentados por Muñoz Conde para a configuração da
desistência na tentativa são a não consumação do delito, o não aproveitamento aos
coautores e a subsistência dos crimes previamente cometidos288.
Jiménez de Asúa, no que diz respeito ao conteúdo valorativo da desistência,
entendia ser a doutrina mais certa que a desistência na tentativa fosse sempre
acolhida, “ainda que provocado pelo medo da pena, pois se a pena funciona como
coação psicológica, não pode se pode deixar de afirmar que sua função é
sumamente extensa quando opera até aquele momento fugaz em que o homem
levanta o braço armado.” 289 Já Mir Puig estabelece a incidência da causa de
exclusão de pena quando ocorrer no sentido de evitar conscientemente a execução
do plano do sujeito, afastando-se, assim, a hipótese de beneficiar o indivíduo que
284 MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal..., 2010, p. 424. 285 Ibidem, p. 425. Tradução livre. Do original: “Los motivos éticos son, desde el punto de vista preventivo, valiosos y deben conducir siempre a admitir la voluntariedad. Los motivos interesados, en cambio, se deben valorar diferenciadamente, teniendo presente siempre la finalidad preventiva, general y especial, y no una consideración moral o política extrana al Derecho penal.“ 286 Ibidem, p. 425. Tradução livre. Do original: “el miedo abstracto a la pena (el sujeto desiste porque teme la pena que puede im- ponérsele), debe considerarse, desde el punto de vista preventivo, como un motivo que merece la impunidad.“ 287 Ibidem, p. 425. Tradução livre. Do original: “El miedo concreto a la pena (el sujeto desiste porque ha sido descubierto, porque va a ser detenido a la salida del lugar del robo, etc.) debe, por el contrario, ser valorado, desde el punto de vista preventivo, negativamente.“ 288 Ibidem, p. 425-426. 289 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Principios de Derecho Penal. La Ley y El Delito. 3ª Edição. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, p. 485. Tradução livre. Do original: aun tratándose del provocado por el miedo a la pena, pues si la pena obra como coacción psicológica, no puede menos de afirmarse que su función es sumamente extensa, cuando opera hasta en aquel momento fugaz en que el hombre levanta el brazo armado.”
67
“não pode realizar seu plano tal como havia decidido (sem a presença da polícia),
pelo que não desiste voluntariamente do dito plano”290.
Essa divergência parece dificultar a adequação da desistência voluntária à
justificativa jurídico-penal para a redução ou isenção de pena na colaboração
premiada. Afinal, além de ambos os institutos diferirem conceitualmente quanto à
consumação do delito, no primeiro, há relevante discussão sobre a motivação para o
ato. Se a desistência depende de uma voluntariedade positiva, no sentido de revelar
que o agente intimamente não mais quer prosseguir com a execução do delito, é
difícil a conformação do tema com a colaboração premiada (na qual o agente será
beneficiado em pena estabelecida para crime consumado e para o qual
subjetivamente esteve determinado).
Roxin, porém, traz luz à discussão, enfatizando que “a impunidade para os
casos de desistência voluntária só pode ser explicada a partir da teoria dos fins da
pena”291. É o que se passa a analisar.
2.1.2.1 AS TEORIAS ABSOLUTAS
As teorias absolutas trazem em si a ideia, pura e simples, de retribuição, “na
imposição de um mal pelo mal cometido”292. Trata-se, em apertado resumo, de
conferir-se à pena o caráter de “consequência justa e necessária do delito cometido,
entendido como uma necessidade ética, como um ‘imperativo categórico’” 293. Em
outras palavras, a retribuição “representa a imposição de um mal justo contra o mal
injusto do crime” 294.
Ainda que, em uma análise evolutiva do direito penal, a teoria retributiva da
pena seja a mais antiga, remontando à lei de talião (“olho por olho, dente por dente”
290 MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte General. 9ª Edição. Buenos Aires: Editorial B de F, 2015, p. 368. Tradução livre. Do original: “no puede realizar su plan tal como lo había decidido (sin la presencia de la policía), por lo que no desiste voluntariamene la de dicho plan”. 291 ROXIN, Claus. La evolución de la política criminal, el derecho penal y el proceso penal. Tradução de Carmen Gómez Rivero e María del Carmen García Cantizano. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p. 62. Tradução livre. Do original: “la impunidad para los casos de desistimiento voluntario solo puede explicarse a partir de la teoría de los fines de la pena”. 292 MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal..., 2010, p. 47. Tradução livre. Do original: “la imposición de un mal por el mal cometido”. 293 Ibidem, p. 47. Tradução livre. Do original: “consecuencia justa y necesaria del delito cometido, entendida como una necesidad ética, como un ‘imperativo categórico’”. 294 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal Parte Geral. Curitiba: Lumen Juris, 2006, p. 453.
68
295) e à fórmula de Sêneca (“punido, porque pecou” 296), além de ser refutada pela
doutrina moderna297, subsiste, para alguns autores a ideia de que a pena persiste
com a função de expiação ou compensação de culpabilidade 298 . Originalmente,
foram Kant299 e Hegel300 que defenderam a teoria retributiva. Nos tempos mais
recentes, é Jakobs quem se utiliza desse argumento, sustentando que a pena tem
como interesse “a estabilização da norma”301. Nesse sentido, Peñaranda Ramos
aproxima o pensamento de Jakobs ao de Hegel, ressalvando, que “o ponto de
referência na fundamentação hegeliana da pena é o conceito abstrato de Direito,
enquanto que em Jakobs esse ponto de referência vem constituído pelas condições
de subsistência da sociedade”302.
No Brasil, Santos indica uma razão elementar para a prevalência (ou, em
termos mais amenos, a permanência não absoluta) da teoria retributiva,
considerando se tratar de mandamento legal do Código Penal brasileiro, que, em
seu artigo 59, “determina ao juiz aplicar a pena conforme necessário e suficiente
para reprovação do crime”303. O objetivo central da lei penal brasileira, portanto,
seria reprovar a conduta – e não prevenir novos crimes.
Nas teorias absolutas sobre os fins da pena, esta não passa da pessoa do
acusado, e, conceitualmente, sequer poderia ter essa função. Com efeito, sob a
visão absoluta da pena, que visa exclusivamente uma retribuição (ética ou jurídica),
não há justificativa preventiva, implicando tal função “afronta à dignidade humana do
delinquente, já que este seria utilizado como instrumento para a consecução de fins
sociais”304.
295 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal..., 2006, p. 454. 296 Ibidem, p. 454. 297 Conforme ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo 1. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Tradução da 2ª Edição alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel DÍas Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. P. 84 298 SANTOS, op. cit., p. 454. 299 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução, textos adicionais e notas por Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, p. 174-180. 300 HEGEL, G.W. Friedrich. Principios de la filosofía del derecho. Tradução e prólogo de Juan Luis Vermal. 2ª Edição. Barcelona: Edhasa, 1999, p. 179-192. 301 JAKOBS, Günther. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y teoria de la imputación. Tradução por Joaquin Cuello Contreras e Jose Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1995, p. 20 302 PEÑARANDA RAMOS, Enrique. Sobre la influencia del funcionalismo y la teoría de sistemas en las actuals concepciones de la pena y del concepto de delito. Doxa, nº 23, 2000, p. 302. 303 SANTOS, op. cit., p. 455. 304 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 1 – Parte Geral. 4ª Edição. São Paulo: RT, 2004. p. 515.
69
Embora Bittar dispense as teorias absolutas como palco para a explicação do
fundamento da colaboração premiada, por se tratar a retribuição pura de uma prática
“insustentável e não científica”305 – aderindo à crítica que parte da doutrina faz, de
que a “expiação” ou a “compensação” do mal seria uma crença – e nessa medida,
constituir um ato de fé –, cabe um exercício retórico para uma hipotética
fundamentação do instituto.
Se, sob as teorias absolutas, a pena tem um papel compensatório pelos
males causados, os objetivos da colaboração premiada (identificação de corréus e
da estrutura hierárquica da organização criminosa, bem como a reparação do dano)
poderiam exercer essa função. Afinal, se, com a prática delitiva, faz-se um mal, não
é absurdo conceber-se que pode haver a restituição desse mal – ainda que
mediante benefícios – pelo fornecimento ao Estado de instrumentos para a melhor
apuração do crime, com a indicação de outros fatos (conexos ou não), criminosos e,
sobretudo, com a devolução de valores e pagamento de multas compensatórias.
Podem-se extrair – é verdade, mediante certa elasticidade argumentativa – os
fundamentos éticos e jurídicos de Kant e Hegel, respectivamente, com a adoção da
colaboração premiada.
A utilização do instituto como instrumento de expiação, por outro lado, exigiria
um maior – e talvez exagerado – esforço de fundamentação, tendo em vista que o
grau de benefícios concedidos teria que ter o condão (e não tem) de retribuir certo
“mal ao mal” causado pelo colaborador. Embora ainda se vá analisar o instituto,
propriamente dito, adianta-se que tal critério não faz parte do escopo formal da Lei
nº 12.850/2013. Ou seja, os benefícios previstos em lei não têm o propósito de
limitar exatamente o mal que será causado ao colaborador, restando essa atividade,
quase que exclusivamente, às idiossincrasias negociais do contexto de cada acordo.
Não obstante, no Código Penal brasileiro, estabelece-se, como se disse
anteriormente, que a finalidade da pena é “prevenir e reprimir as condutas ilícitas e
culpáveis” 306 , conforme se extrai da redação do art. 59. Por trás da ideia da
prevenção que orienta o sistema penal brasileiro, estão as teorias relativas da pena,
que buscam a sua utilização com os fins de prevenção geral – que consiste no
“efeito de intimidação que a ameaça de sua imposição ou a sua aplicação ou
305 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 77. 306 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal - Parte Geral. 5ª Edição. São Paulo: RT, 2013, p. 553.
70
execução concretas possam produzir no seio da comunidade” 307 – e prevenção
especial – que se entende como “o objetivo de evitar que o sujeito cometa novas
infrações” 308 , proporcionando “ao condenado, através da execução da pena,
caminhos opostos à reincidência”309. Vale analisá-las, a pretexto de identificar nelas
um fundamento para a colaboração premiada.
2.1.2.2 AS TEORIAS RELATIVAS
Ambas as teorias de prevenção – geral e especial – subdividem-se entre
negativa e positiva. A prevenção geral negativa, por exemplo, é extraída da teoria da
“coação psicológica” 310 de Feuerbach, que estabelece que a “o objetivo da
cominação da pena na lei é a intimidação de todos, como possíveis protagonistas de
lesões jurídicas”311, enquanto que “o objetivo de sua aplicação é dar fundamento
efetivo à cominação legal, dado que sem a aplicação a cominação ficaria oca (seria
ineficaz)” 312 . Como bem lembra Santos, tal teoria reproduziria o tradicional
argumento de que “não seria a gravidade da pena – ou o rigor da execução penal –,
mas a certeza (ou a probabilidade, ou o risco) da punição que desestimularia o autor
de praticar crimes”313.
Há crítica quanto à adoção da prevenção geral negativa como fundamento da
pena. Santos, por exemplo, ilustra dois argumentos contrários bastante relevantes (e
coadunados com o estudo da colaboração premiada):
Primeiro, a falta de critério limitador da pena transforma a prevenção geral negativa em verdadeiro terrorismo estatal – como indica, por exemplo, a lei de crimes hediondos, essa frustrada inovação do legislador brasileiro; segundo, a natureza exemplar da pena como prevenção geral negativa viola a dignidade humana, porque acusados reais são punidos de forma exemplar para influenciar a conduta de acusados potenciais, ou seja,
307 DOTTI, René Ariel. Curso..., 2013, p. 554. 308 Ibidem, p. 554. 309 Ibidem, p. 554. 310 FEUERBACH, Anselm v. Tratado de Derecho Penal. Tradução ao espanhol da 14ª edição alemã por Eugenio Raúl Zaffaroni e Irma Hagemeier. Buenos Aires: Hammurabi, 2007, p. 52. 311 Ibidem, p. 53. Tradução livre. Do original: “El objetivo de la conminación de la pena en la ley es la intimidación de todos, como posibles protagonistas de lesiones jurídicas.” 312 Ibidem, p. 53. Tradução livre. Do original: “El objetivo de su aplicación es el de dar fundamento efectivo a la conminación legal, dado que sin la aplicación la conminación quedaría hueca (sería ineficaz).” 313 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal..., 2006, p. 459.
71
aumenta-se injustamente o sofrimento de acusados reais para desestimular o comportamento criminoso de acusados potenciais.314
A dinâmica de realizações múltiplas de acordos de colaboração premiada (na
casa das centenas, apenas na Operação Lava Jato), somada ao rigor e efetividade
de juízos em que tramitam processos nos quais tais acordos são celebrados (como
é, por exemplo, o Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba), além da previsão de
execução da pena após o julgamento em 2º grau e o já mencionado fim da
prescrição retroativa revelam que pode surgir um impacto na criminalidade com a
utilização do instituto. Nesse sentido, Bittar já sugeria, antes da Lei nº 12.850/2013,
que a colaboração premiada poderia criar, “dentro das associações criminosas uma
determinada desconfiança, ou uma diminuição de confiança no comparsa” 315 ,
gerando “instabilidade dentro de associações criminosas, pois ronda a possibilidade
de quebra da ‘lei do silêncio, gerando o desmantelamento ou não formação do grupo
e, com isso, prevenindo delitos”316.
Sob essa sugestão, não obstantes as críticas cabíveis à teoria, o instituto
estaria fundamentado na perspectiva da prevenção geral negativa. Nesse sentido,
vale referir a lição de Beccaria, sobre as formas de oferecimento de “impunidade ao
cúmplice de um grande crime que” traia seus companheiros. Dizia o autor que
a esperança da impunidade, para o cúmplice que trai, pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo, sempre apavorado quando vê crimes cometidos sem conhecer os culpados. Esse uso mostra ainda aos cidadãos que aquele que infringe as leis, isto é, as convenções públicas, já não é fiel às convenções particulares. 317
A prevenção geral positiva, advinda do funcionalismo, estabelece, em linhas
gerais, que “a pena tem a missão de demonstrar a inviolabilidade do ordenamento
jurídico diante da comunidade jurídica e assim reforçar a confiança jurídica do
314 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal..., 2006, p. 460. 315 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada..., p. 79. 316 Ibidem, p. 79. 317 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Torrieri Guimarães. 7ª Edição. São Paulo: Martin Claret, 2012, p. 44.
72
povo”318. Segundo Roxin, “na prevenção geral positiva se podem distinguir três fins e
efeitos distintos”319, quais sejam:
o efeito de aprendizagem, motivado social-pedagogicamente; o exercício na confiança do Direito que se origina na população pela atividade da justiça penal; o efeito de confiança que surge quando o cidadão vê que o Direito se aplica; e, finalmente, o efeito de pacificação, que se produz quando a consciência jurídica geral se tranquiliza, em virtude da sanção, sobre a violação à lei, e considera solucionado o conflito com o autor.320
A partir da definição dos fins e efeitos acima reproduzida, e referindo-se mais
especificamente ao efeito da pacificação, Roxin denomina o termo “prevenção
integradora”321.
Santos salienta a posição diversa de Jakobs, que “absolutiza a função de
prevenção geral positiva” 322, na medida em que, para o autor a “missão da pena é a
manutenção da norma como modelo de orientação para os contatos sociais”323. Com
efeito, a prevenção geral positiva teria a função de exercitar a “confiança na
norma”324, necessária para que se saiba o que se espera na interação social; a
“fidelidade jurídica” 325, reconhecendo-se a pena como “efeito da contradição da
norma”; e a “aceitação das consequências respectivas, pela conexão do
comportamento criminoso com o dever de suportar a pena” 326.
A colaboração premiada pode ser fundamentada pela primeira perspectiva da
prevenção geral positiva. Afinal, a utilização do instituto para o desmantelamento de
organizações criminosas e a reparação do dano (além, é claro, das esperadas
condenações de corréus delatados e o respectivo cumprimento de pena) pode, ao
318 ROXIN, Claus. Derecho Penal..., 1997, p. 91. Tradução livre. Do original: “la pena tiene la misión de demonstrar la inviolabilidad del ordenamiento jurídico ante la comunidad jurídica y así reforzar la confiança jurídica del pueblo". 319 Ibidem, p. 91. Tradução livre. Do original: “en la prevención general positive se pueden distinguir a su vez tres fines y efectos distintos. 320 Ibidem, p. 91. Tradução livre. Do original: “el efecto de aprendizaje, motivado socialpedagógicamente; el ejercicio en la confianza del Derecho que se original en la población por la actividad de la justicia penal; el efecto de confianza que surge cuando el ciudadano ve que el Derecho se aplica; y, finalmente, el efecto de pacificación, que se produce cuando la consciencia jurídica general se tranquiliza, en virtud de la canción, sobre el quebrantamiento de la ley y considera solucionado el conflito con el autor.” 321 Ibidem, p. 92. Tradução livre. Do original: “prevención integradora”. 322 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal..., 2006, p. 461. 323 JAKOBS, Günther. Derecho Penal..., 1995, p. 14. Tradução livre. Do original: “Misión de la pena es el mantenimiento de la norma como modelo de orientación para los contatos sociales.” 324 SANTOS, op. cit., 2006, p. 461. 325 Ibidem, p. 461. 326 Ibidem, p. 461.
73
mesmo tempo, ressaltar a aplicação real da lei penal, a confiança da sociedade no
sistema “devido ao esclarecimento de delito(s) que, de outra forma, seria
impossível”327 e determinada pacificação social em razão da impressão de que os
crimes serão eventualmente investigados e os responsáveis punidos.
É o que estabelece Faraldo Cabana, em estudo sobre as circunstâncias
atenuantes do Código Penal espanhol de 1995, estabelecendo que “sob a
perspectiva da prevenção de integração ou prevenção geral positiva parece possível
e conveniente atenuar a responsabilidade do sujeito que leva a cabe um
comportamento pós-delitivo que a comunidade valore positivamente”328. A autora
enfatiza, porém, que essa atenuação de pena “só tem sentido sob a perspectiva de
prevenção geral quando a ação do sujeito, independentemente de sua eficácia,
supõe um bom exemplo ante os olhos da comunidade por seu regresso voluntário à
legalidade”329 e que, ao reparar voluntariamente o prejuízo causado à vítima (o que
é um dos objetivos da Lei nº 12.850/2013), verifica-se uma contribuição “à
reafirmação do ordenamento jurídico, manifestando, ademais, uma menor
necessidade de pena”330.
Armenta Deu, por outro lado, sustenta que, “ainda que, sob a perspectiva das
finalidades da pena, o princípio da oportunidade propicie a efetividade, ao permitir a
persecução dos delitos mais graves, suas consequências sob a perspectiva da
prevenção geral são certamente discutíveis”, na medida em que teria um “efeito
perverso sobre a credibilidade do sistema e a segurança jurídica” 331.
Sob a perspectiva de Jakobs, não se pode afirmar o mesmo, salvo melhor
juízo. É que, se a utilização da colaboração premiada se tornar uma saída fácil aos
indivíduos acusados ou investigados da prática de crime, pode não ser observado o
critério da aceitação das consequências. Afinal, se as consequências forem sempre
327 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada..., 2011, p. 83. 328 FARALDO CABANA, Patrícia. La aplicación analógica de las atenuantes de comportamiento postdelictivo (los núms. 4º y 5º en relación con el núm. 6º del artículo 21 del Código Penal de 1995). Anuario da Facultade de Dereito da Universidade da Coruña, nº 1, 1997, p. 237-259, p. 244. Tradução livre. Do original: “desde la perspectiva de la prevención de integración o prevención general positive parece posible y conveniente atenuar la responsabilidad del sujeto que lleva a cabo un comportamiento postdelictivo que la comunidad valora positivamente”. 329 Ibidem, p. 243. 330 Ibidem, p. 244. 331 ARMENTA DEU, Teresa. Principio..., 2016, p. 4. Do original: “Aunque desde la perspectiva de las finalidades de la pena, el principio de oportunidad propicia la efectividad, al permitir la persecución de los delitos más graves, sus consecuencias desde perspectivas de prevención general son ciertamente discutibles por su efecto perverso sobre la credibilidad del sistema y la seguridad jurídica”.
74
– ou potencialmente – mitigadas em razão da celebração de acordo que traga uma
série de benefícios, não se terá a impressão, no seio da sociedade, de que o
comportamento criminoso suporta o peso da reprimenda penal.
De todo modo, não se ignora que o posicionamento ora adotado para
compatibilizar a colaboração premiada com as teorias sobre a pena constitui
perspectiva bastante otimista e que dependerá, naturalmente, de sua maior
utilização para se confirmar. Embora, neste capítulo, não se tenha o objetivo de
analisar casos concretos, podem-se citar dois exemplos antagônicos dos efeitos da
colaboração sob a perspectiva da prevenção geral positiva. De um lado, tem-se a já
citada Operação Lava Jato dos acusados sem foro especial por prerrogativa de
função, conduzida pela força-tarefa do Ministério Público Federal perante a 13ª Vara
Federal de Curitiba/PR. Nesse caso, parece haver uma ampla aprovação da
sociedade com os resultados obtidos (dezenas de ações penais, centenas de presos
provisórios, além de mais de uma centena de condenados – alguns dos quais já
cumprem pena332) por meio de mais de cento e cinquenta acordos de colaboração
premiada, além da impressão de que os crimes cometidos perante aquele foro terão
o pleno rigor da lei.
Por outro, há exemplos diversos de colaborações premiadas que não surtiram
efeitos ou que, em seu bojo, revelaram pontos fracos do instituto. Cita-se o caso do
acordo celebrado pelos executivos da J&F, no qual, por um lado, houve ampla
repercussão negativa da sociedade em razão dos generosos benefícios concedidos
em face de centenas de crimes graves, e, por outro, criou-se relevante descrédito no
instituto pelo surgimento de indícios de que os fatos narrados teriam sido
apresentados em conluio com um agente do Ministério Público Federal (situação
que, aliás, deu causa à revogação dos benefícios e à prisão dos colaboradores).
Não obstante, e sem se dispensar futuras e mais aprofundadas reflexões,
parece ser plenamente possível que, sob a ótica da prevenção geral positiva,
também se possa conceber um fundamento para a colaboração premiada.
Por fim, a prevenção especial “consiste na atuação sobre a pessoa do
delinquente, para evitar que volte a delinquir no futuro”333, sendo Liszt o principal
332 Nesse sentido, vale analisar o site do Ministério Público Federal dedicado à informação dos resultados da Operação Lava Jato no Paraná. Disponível em: <http://goo.gl/hmzfu7> Acesso em 12 de março de 2018. 333 PRADO, Luiz Regis. Curso..., 2004, p. 520.
75
porta-voz da teoria334. Sua vertente negativa teria o condão de utilizar a pena como
instrumento de “seleção artificial” 335 , por meio da qual se retira, “perpétua ou
temporariamente ao delinquente que se tornou inútil à sociedade a possibilidade
material de perpetrar novos crimes”336, reduzindo-o ao “estado de inocuidade” 337. A
prevenção especial positiva, por sua vez, gira em torno da ideia de que, uma vez
punido, o agente – caso arrependido ou temente de sofrer nova punição – deixaria
de praticar novos delitos. Também se exerceria essa prevenção especial por meio
da “correção (ou de ressocialização, ou de reeducação etc.) do criminoso” 338 ,
realizada por profissionais da “ortopedia moral do estabelecimento penitenciário” 339,
na acepção crítica de Santos.
Com mais dificuldade que na prevenção geral, pode-se extrair algum
fundamento para a colaboração premiada na prevenção especial, na medida em que
o colaborador, como condição do acordo, voluntariamente se afasta da organização
criminosa da qual faz parte (muitas vezes sendo-lhe exigido o afastamento físico,
por prisão domiciliar, por exemplo) e se compromete a não voltar a delinquir, sob
pena de perda dos benefícios (em situações práticas que revelam riscos altíssimos,
como será demonstrado adiante). Alguns indivíduos podem, pela experiência da
persecução penal, compreender o acordo como uma oportunidade para “passar a
limpo” condutas previamente praticadas e se reinserir na sociedade.
Não obstante, a colaboração premiada pode ter dificuldades em cumprir as
ideias por trás das teorias de prevenção especial, como se viu no caso de um dos
colaboradores da Operação Lava Jato que cometeu vários crimes durante a vigência
de acordo previamente celebrado no caso Banestado – ambos perante o mesmo
Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR. Isso se deve ao fato de que, em
determinados tipos de crimes (como os praticados por particulares – empreiteiros,
por exemplo – junto ao Poder Público), o modelo social a ser seguido é, justamente,
o do criminoso empresarial que se vale do compadrio com agente públicos para ter
sucesso profissional. Nesse caso, certamente não se aplica a prevenção especial.
334 ROXIN, Claus. Derecho Penal..., 1997, p. 85. 335 LISZT, Franz von. Tratado...,1899, p. 100. Ortografia original. 336 Ibidem, p. 100. 337 Ibidem, p. 100. 338 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal..., 2006, p. 457. 339 Ibidem, p. 457.
76
2.1.2.3 TEORIAS MISTAS OU UNIFICADAS
Restam, ainda, as teorias mistas (ou unificadas e ecléticas), que “buscam
conciliar a exigência de retribuição jurídica da pena – mais ou menos acentuada –
com os fins de prevenção geral ou de prevenção especial”340. Santos resumo bem o
conteúdo geral dessa corrente de pensamento, que predomina no mundo ocidental:
Assim, a pena representaria (a) retribuição do injusto realizado, mediante compensação ou expiação da culpabilidade, (b) prevenção especial positiva mediante correção do autor pela ação pedagógica da execução penal, além de prevenção especial negativa como segurança social pela neutralização do autor e, finalmente, (c) prevenção geral negativa através da intimidação de criminosos potenciais pela ameaça penal e prevenção geral positiva como manutenção/reforço da confiança na ordem jurídica etc. 341
Embora haja amplo valor na discussão sobre qual o melhor caminho a ser
utilizado, não é relevante, para os fins deste estudo, analisá-la, sobretudo porque a
conjugação de retribuição e prevenção trará para o sistema que adote alguma teoria
mista os mesmos fundamentos acima analisados, em maior ou menor proporção.
Com efeito, conclui-se que, sob a perspectiva da finalidade da pena, há aparente
fundamento para a introdução e utilização da colaboração premiada no Brasil.
2.1.3 A REPARAÇÃO DO DANO COMO TERCEIRA VIA DO DIREITO PENAL
Uma outra perspectiva sobre a função da pena – ou do próprio direito penal –
que parece guardar algum tipo de consonância com o instituto da colaboração
premiada diz respeito à teoria de Roxin sobre a reparação do dano como “terceira
via”342 do Direito Penal, tratando-se resposta penal “melhor às exigências do mundo
pós-moderno”343 que as penas privativas de liberdade ou restritivas de direito.
340 PRADO, Luiz Regis. Curso..., 2004, p. 521. 341 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal..., 2006, p. 457. 342 ROXIN, Claus. Derecho Penal...,1997, p. 108. Tradução livre. Do original: “hay motivos convincentes que hablan en favor de una amplia inclusión de la reparación del daño en el Derecho Penal”. 343 AMARAL, Claudio do Prado. Despenalização pela reparação de danos – a terceira via. Leme: J.H. Mizuno, 2005, p. 157.
77
Ao analisar as funções da pena, o autor sustenta que “há motivos
convincentes que falam em favor de uma ampla inclusão da reparação do dano no
Direito Penal”344, resumindo-os da seguinte maneira:
Isso serve mais para os interesses das vítimas do que com uma penalidade de liberdade ou multa, o que muitas vezes frustra a reparação do dano pelo agressor. Pesquisas empíricas também mostraram que tanto a parte lesada quanto a comunidade concedem pouco ou nenhum valor a um castigo adicional ao autor para a reparação do dano na forma de uma composição autor-vítima, em casos de criminalidade pequena ou média. Assim, nos casos que atualmente são puníveis com uma pequena multa, a penalidade pode ser dispensada quando o dano total for reparado; e em crimes mais graves, a reparação do dano poderia, em qualquer caso, levar a uma remissão condicional da sentença ou a uma mitigação obrigatória da pena.345
Roxin, porém, não sustenta que a reparação do dano possa ser um fim de
pena. Para o autor, a referida atividade pode ser um instrumento para que se
alcance a finalidade preventiva da pena, sobretudo por ter um efeito ressocializador,
que obriga o criminoso a enfrentar as consequências de suas ações e a conhecer os
interesses da vítima que foram ofendidos por sua conduta346. Também há um efeito
de “reintegração do culpado” 347 , extraído da conciliação entre autor e vítima,
fazendo valer a já mencionada “prevenção integradora” 348, com a possibilidade de
restauração da paz jurídica quando da reparação do dano. Diz Roxin que “somente
quando o dano for reparado, a vítima e a comunidade considerarão eliminada –
muitas vezes até mesmo independentemente de uma punição – a perturbação social
causada pelo crime” 349.
Ainda que a teoria da reparação do dano como “terceira via” do Direito Penal
esteja, de certo modo, atrelada ao estudo das teorias dos fins da pena, vale a sua
344 ROXIN, op. cit., p. 108. Tradução livre. Do original: “Pues con ello se sirve más a los intereses de las victimas que con una pena privativa de liberdad o de multa, que a menudo realmente frustran una reparación del daño por el autor. Investigaciones empíricas también han demostrado que tanto el lesionado como la comunidad otorgan nulo o escaso valor a un castigo adicional del autor ante la reparación del daño en la forma de una composición autor-victima, en casos de pequeña o mediana criminalidad. De ahí que, en casos que actualmente se castigan con una pequeña pena de multa, se podría prescindir de la pena cuando se produce una reparación total del daño; y en delitos más graves la reparación del daño podría originar de todos modos una remisión condicional de la pena o una atenuación obligatoria de la pena.” 345 Ibidem, p. 109. 346 Ibidem, p. 109. 347 Ibidem, p. 109. 348 Ibidem, p. 109. 349 ROXIN, Claus. Derecho Penal...,1997, p. 109. Tradução livre. Do original: “sólo cuando se haya reparado el daño, la víctima y la comunidad considerarán eliminada – a menudo incluso independientemente de un castigo – la perturbación social originada por el delito.”
78
análise neste estudo sobre a colaboração porque, conforme se extrai do art. 4º, IV,
da Lei nº 12.850/2013, a “recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das
infrações penais praticadas pela organização criminosa”350 é um dos objetivos do
instituto. Com efeito, parece que, também sob tal análise patrimonial e vinculada à
posição da vítima, a colaboração premiada terá relevância351. Ressalva-se, porém,
que, sob a teoria de Roxin, os crimes incluídos na Lei nº 12.850/2013 não poderiam
ser substituídos pela reparação, já que tal hipótese somente seria admissível em
“crimes determinados e até um determinado grau de gravidade” 352 , conforme
enfatizado no trecho acima. A concessão de perdão judicial ou imunidade
processual enquanto benefícios previstos para a colaboração premiada não se
encaixariam, portanto, nesse perfil.
De todo modo, é possível extrair exemplos da relevância da reparação do
dano como teórico fundamento para a colaboração premiada. Na Operação Lava
Jato, por exemplo, mais de um bilhão de reais foram devolvidos à Petrobras por
força dos inúmeros acordos de colaboração premiada celebrados por ex-agentes da
estatal, políticos e operadores financeiros da organização criminosa353. Não obstante
se trate de montante inferior aos danos causados à companhia no curso das
atividades da organização criminosa (estimados em bilhões de reais), trata-se de um
valor relevante, devolvido em poucos meses e com a voluntariedade dos
colaboradores envolvidos354.
Conforme será visto nos capítulos posteriores, a dinâmica dos acordos de
colaboração celebrados no Brasil sempre terá como etapa fundamental a definição
de uma relevante multa compensatória, voltada à reparação do dano e ao
pagamento de custas processuais e multas penais. Pode-se afirmar, partindo-se
dessa premissa fática adiante explorada, que, também sob a perspectiva da
reparação do dano, a colaboração premiada apresenta-se como instrumento de
relevância e pertinência.
350 BRASIL, Lei nº 12.850..., 2013. 351 Sobretudo porque o sistema brasileiro já prevê a reparação do dano como objetivo da persecução penal, como nos artigos 387, IV, do Código de Processo Penal e 89, §1º, I da Lei nº 9.099/95, 352 ROXIN, Claus. La reparación en el sistema de los fines de la pena. In: De los delictos y de las victimas. Buenos Aires: Ad hoc, 1992, p. 151. 353 OLIVEIRA, Nielmar de. Agência Brasil. Petrobras recebe mais R$ 654 milhões da Lava Jato. 7 de dezembro de 2017. Disponível em <http://goo.gl/f9VvSm> Acesso em 12 de março de 2018. 354 Ressalte-se que, dentro dos montantes devolvidos, há valores oriundos de condenações criminais já transitadas em julgado de acusados não-colaboradores. No entanto, um grande percentual decorre de acordos celebrados, como se extrai do site do MPF dedicado à Operação Lava Jato. Disponível em http://goo.gl/hmzfu7 Acesso em 12 de março de 2018.
79
2.3 A CRIMINALIDADE EMPRESARIAL E SUA COMPLEXIDADE PROBATÓRIA
Compreendendo-se que a colaboração premiada encontra amparo nas
diferentes perspectivas do direito acima representadas, passa-se a analisá-la sob a
perspectiva especial da criminalidade empresarial. A primeira constatação que se
tem quanto a esse ramo do direito penal é a de que, assim como o instituto em
análise, trata-se de tema recente e que, em muitos aspectos, pouco se coaduna com
a disciplina tradicional das ciências criminais no Brasil.
O direito penal empresarial, em grande medida, confunde-se conceitualmente
com o Direito Penal Econômico. Embora nem todo crime econômico seja cometido
no âmbito da empresa (como, por exemplo, crimes fiscais ou ambientais praticados
por particulares fora do exercício de atividade empresarial), e nem todo crime
cometido na empresa seja de ordem econômica (por exemplo, um acidente do qual
decorra a morte de trabalhador por inobservância de regras técnicas de segurança
do trabalho), há uma grande superposição entre ambas as espécies de delito.
Knopfholz, nesse sentido, ressalta que “é indubitável que os crimes
econômicos são, em sua esmagadora maioria, empresariais”355, indicando pesquisa
realizada “na Alemanha pelo Instituto Max Planck”356 que revelou que “cerca de 80%
(oitenta por cento) dos crimes econômicos ocorrem no âmbito de pessoas
jurídicas” 357 . Daí a importância, ainda que o presente estudo não se volte
propriamente às questões dogmáticas do Direito Penal Econômico, de enfrentar
genericamente o tema. Com a compreensão da natureza dos crimes econômicos e
empresariais, poder-se-á verificar os motivos de sua complexidade probatória e,
então, extrair-se a pertinência da colaboração premiada quanto a esses delitos.
O Direito Penal Econômico surge como uma parte autônoma do Direito Penal
tradicional a partir da mesma mudança paradigmática das funções do Estado
referidas no subcapítulo 2.1 acima. Com a alteração de um modelo de Estado liberal
para o de um Estado social de intervenção econômica em busca do bem-estar da
sociedade, em um movimento que teve início a partir da crise de 1929, surgem
355 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica nos crimes econômicos. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2013, p. 135-136. 356 Ibidem, p. 136. 357 Ibidem, p. 136.
80
novos campos de atuação do Direito Penal. Se, historicamente, esse tinha a função
de tutelar as violações de bens jurídicos clássicos, todos relacionados a institutos
materiais (como a vida, integridade física e patrimônio), o Direito Penal Econômico
assumiu duas funções bastante marcantes a partir de seu surgimento.
Inicialmente, em meados do Século XX, o Direito Penal Econômico
apresentou-se como um instrumento do Estado para fazer valer sua estratégia
econômica – em outras palavras, para disciplinar a sua intervenção na economia358.
Nas últimas décadas, com a mudança do enfoque do Estado para a tutela e
promoção de direitos fundamentais coletivos e difusos, passou o Direito Penal
Econômico a exercer essa função, deixando de lado apenas a proteção de direitos
individuais do Direito Penal clássico para passar a proteger direitos
supraindividuais359.
Há, com efeito, um conteúdo político no Direito Penal Econômico, não mais se
limitando à função do Direito Penal tradicional, “de feição liberal” 360 , e tendo o
objetivo de, por meio da “criminalização de condutas na área econômica” 361 ,
“garantir um mercado transparente, honesto e seguro, voltado ao desenvolvimento
social”362. Ter-se-ia, na leitura de Dias, um Direito Penal novo e voltado à busca da
igualdade material na sociedade363.
Essa nova função do Direito Penal Econômico trouxe – e tem trazido –, nas
palavras de Dotti, “novos enigmas para os estudiosos do Direito Penal” 364 ,
sobretudo em razão da absoluta disparidade com a legislação vigente – em especial
o Código de Processo Penal, de 1941, “com facetas notadamente fascistas e
358 BARROETAVEÑA, Diego Gustavo. Derecho penal económico: delitos tributarios. Propuesta para um derecho penal tributario respetuoso de los principios y garantias penales. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 18, n. 86, set./out. 2010, p. 63. 359 GUARAGNI, Fábio André. Da tutela penal de interesses individuais aos supraindividuais: dialogando com Beccaria. In: BUSATO, Paulo César (organizador). Ler Beccaria hoje. Volume I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 52. 360 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013, p. 33. 361 Ibidem, p. 33. 362 Ibidem, p. 33. 363 DIAS, Jorge de Figueiredo. Breves considerações sobre o fundamento, o sentido e a aplicação das penas em Direito Penal Econômico. In: FARIA COSTA, José de; MARQUES DA SILVA, Marco Antonio (coordenadores). Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais – Visão Luso-Brasileira. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 71. 364 DOTTI, René Ariel. Algumas reflexões sobre o “Direito Penal dos negócios”. In: DOTTI, René Ariel; PRADO, Luiz Régis (org.). Doutrinas Essenciais – Direito Penal Econômico e da Empresa. Teoria Geral da Tutela Penal Transindividual. Volume 1. São Paulo: RT, 2011, p. 718.
81
inquisitivas”365. E é nesse aspecto que tem especial relevância – e fundamento à luz
da legislação específica – o estudo da colaboração premiada.
Inicialmente, perceba-se que o referido Código estabelece, sob à luz do
Direito Penal tradicional, as diretrizes para a responsabilização penal de um
indivíduo suspeito de ter cometido um crime. Desde o conhecimento do fato até a
prolação de sentença condenatória, há a indicação dos requisitos legais para o
reconhecimento de que alguém incorreu em uma conduta prevista no Código Penal
ou na legislação especial.
Por exemplo, o art. 4º, que trata da atividade policial civil, estabelece que “a
polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas
respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua
autoria”366. O art. 27, que prevê o acesso popular ao Ministério Público para a notícia
de infração penal, dispõe que “qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa
do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por
escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os
elementos de convicção”367. O mesmo ocorre em relação ao dispositivo que trata da
representação do ofendido (ou de seu representante legal ou procurador), que, no
§2º do art. 39, afirma que “a representação conterá todas as informações que
possam servir à apuração do fato e da autoria”368.
Quanto à ação penal, o art. 41, que trata dos requisitos da inicial acusatória,
estabelece que “a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com
todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos
quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de
testemunhas”369. Por sua vez, os incisos IV e V do art. 386 prescrevem que o “o juiz
absolverá o réu” quando estiver “provado que o réu não concorreu para a infração
penal” ou quando “não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal”370.
A leitura do Código de Processo Penal parece deixar muito claro que o
processo penal brasileiro se orienta, quando se trata de responsabilização criminal,
pela indispensabilidade de indicação e comprovação da autoria delitiva – para,
justamente, a responsabilização penal subjetiva, devidamente individualizada.
365 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013, p. 27. 366 BRASIL, Código de Processo Penal, 1941. 367 Ibidem. 368 Ibidem. 369 Ibidem. 370 BRASIL, Código de Processo Penal, 1941.
82
A adoção cega dessa conclusão, porém, ignora o fato de que, desde a
promulgação do Código de Processo, por meio do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de
outubro de 1941 (contando atualmente com mais de setenta e seis anos), as
mudanças conceituais do Direito Penal Econômico se materializaram por meio de
um amplo processo de criminalização de condutas. Houve uma “inflação
legislativa”371, na expressão de Dotti, com a absorção, pelo Direito Penal, de práticas
pouco afeitas ao regime de responsabilização subjetiva do Código de Processo
Penal.
Dotti, aliás, ao afirmar que “são inúmeras as leis que a todo momento estão
sendo impostas desordenadamente do mercado jurídico que trata dos delitos e das
penas”372, ratifica o que já vinha sendo dito por Nelson Hungria nos anos 50:
Mas o prurido legisferante no Brasil é coceira de urticária. Muda-se de lei como se muda de camisas. Reformam-se periodicamente as leis sem quê nem para quê, ou pelo só capricho de as reformar. E quase sempre para pior. Quando se anuncia a reforma de uma lei em torno de algum instituto jurídico ou fato social, tem-se a impressão de que vai ser corrigida uma falha sensível ou introduzido um critério de solução mais conforme com o estilo da vida contemporânea. Pura ilusão. E ainda bem quando tudo se limita a uma simples mão de cal nas paredes e a mudar-se o número da casa. As mais das vezes, porém, o que vem a ocorrer é o meticuloso desarranjo daquilo que estava arrumado, ou uma inadequação maior do que a anterior.373
Knopfholz lista uma série de leis que foram criadas nas últimas décadas e
que, de fato, acabaram por alterar os paradigmas de responsabilização penal na
forma como exige o Código de Processo Penal374. Como exemplo, podem-se citar
as Leis nº 7.492/86 (crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), 8.137/90 (crimes
contra a ordem tributária), 8.176/90 (crimes contra a ordem econômica), 8.666/93
(crimes de licitação) e 9.605/98 (crimes ambientais). O autor ressalta que “se
somados, são dezenas de tipos penais, dirigidos basicamente aos empresários e
371 DOTTI, René Ariel. Algumas reflexões...,, 2011, p. 718. 372 DOTTI, René Ariel. Curso..., 2012, p. 252. 373 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume VI. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 1955. P. 269. 374 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013, p. 77.
83
agentes financeiros” 375 . E segue, indicando a chamada “administrativização do
Direito Penal”376:
Com efeito, criminalizaram-se condutas até então relegadas a outras esferas do Direito ou da Administração Pública. A não anotação dolosa em Carteira de Trabalho e Previdência Social, por exemplo, é, hoje, crime punido com reclusão de 2 a 6 anos (CP, art. 297, § 3º, II e § 4º). A simples manutenção de divisas no exterior sem a declaração à autoridade competente é, igualmente, um delito autônomo, de igual apenamento (Lei 7.492/86, art. 22, parágrafo único).377
O autor também alerta, para os efeitos deste estudo, que os crimes
empresariais se tornaram objetivo ideológico dos órgãos de persecução penal. Ou
seja, além de se tratar de um ramo do Direito novo e assistemático (e, de certa
forma, pouco compatível com a ordem processual tradicional), trata-se de área de
grande foco de atuação do Estado:
No panorama apresentado, há ainda outro fator a merecer destaque: a ideologia que impregna a nova criminalidade econômica. Com efeito, a alça de mira do Estado volta-se ao criminoso de terno e gravata, ao sócio de uma empresa, ao gerente de uma instituição financeira e, até mesmo, à própria pessoa jurídica, nos casos de crimes ambientais. (...) O criminoso do colarinho branco, que era o exemplo por excelência da inexistência de estigmatização em face da omissão de meios legais de controle das atividades econômicas das chamadas altas classes, torna-se agora o objeto do Direito Penal.378
Se, por um lado, a mudança é certamente bem-vinda em um país em que a
corrupção é generalizada (gerando danos potencialmente mais graves que na
criminalidade ordinária) e no qual se tem notícia de inúmeros casos de crimes
envolvendo a atividade empresarial em conluio com agentes públicos criminosos,
por outro, há um problema procedimental bastante sério.
Como se afirmou acima, o processo penal brasileiro tem como objetivo
primário a comprovação do binômio materialidade/autoria delitivas, não devendo
haver – em tese – responsabilização criminal quando ambos os elementos não
sejam cumulativamente verificados na sentença condenatória penal. Ou seja, é
indispensável, para que se fale em responsabilidade penal – e o exercício das
375 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013, p. 77. 376 Ibidem, p. 69. 377 Ibidem, p. 77. 378 Ibidem. P. 78.
84
funções da pena acima estudados –, que tanto se tenha a prova do crime, quanto a
prova de sua autoria.
Com os crimes cometidos no âmbito da empresa, a obtenção dessa prova é
inequivocamente mais complexa. Knopfholz traz o panorama, partindo da ideia de
que, como a grande maioria dos crimes econômicos ocorre no âmbito das pessoas
jurídicas,
nestas ocorre um aparente ‘sumiço’ de responsabilidades, que se esvaem na sua complexa estrutura organizacional. Torna-se difícil identificar a autoria de um crime, diante da existência de um quadro orgânico hierarquizado nas atividades empresariais. A natureza orgânica, a descentralização na tomada de decisões e a divisão de funções entre os integrantes da sociedade dificultam (quando não impedem) uma fácil definição dos autores de tais modalidades delitivas.379
No mesmo sentido, Musacchio:
No campo da responsabilidade criminal, há problemas importantes para a determinação da responsabilidade individual quando o crime é cometido no contexto de uma empresa para as seguintes características comportamentais: delegação de funções, divisão do trabalho, complexidade dos elos causais, pluralidade de sujeitos intervenientes, tudo isso produz, em suma, uma dissociação entre quem age e quem responde criminalmente, podendo cair o peso da responsabilidade na hierarquia da organização (responsabilidade do proprietário da empresa) ou na sua base (responsabilidade dos representantes).380
Evidentemente, o problema não afeta apenas o caráter terminativo do
processo – a sentença condenatória. Há um problema prévio quanto à própria
instauração da ação penal. Afinal, o art. 41 do CPP já mencionado exige, como
requisito para o recebimento da denúncia, a descrição do fato “com todas as suas
circunstâncias” 381 , o que, evidentemente, envolve a descrição das condutas
praticadas pelo autor do crime.
379 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013, p. 135-136. 380 MUSACCHIO, Vincenzo. Derecho penal económico, criminalidade organizada y Union Europea. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 14. Nº 60. São Paulo: Mai/Jun. 2006, p. 221. Tradução livre. Do original: “En el ambito de la responsabilidad penal, se producen problemas importantes para la determinación de la responsabilidad individual cuando el delito es cometido en el contexto de una empresa por las siguientes características del comportamiento: delegación de funciones, división del trabajo, complejización de los nexos causales, pluralidade de sujeitos intervenientes, todo esto produce, en definitiva, una disosiación entre quienes actúan y quienes responden penalmente, pudiendo recaer el peso de la responsabilidad en la jerarquia de la organización (responsabilidad del titular de la empresa) o en la base de la misma (responsabilidad de los representantes).” 381 BRASIL, Código de Processo Penal, 1941.
85
A jurisprudência já pôde se manifestar quanto a essa parte do problema.
Knopfholz fez o trabalho de verificar, em pesquisa publicada em 2013, qual o
posicionamento dos Tribunais Superiores quanto à denúncia genérica nos crimes
econômicos. A partir de mais de 200 (duzentos) precedentes dos 20 (vinte) anos
anteriores à publicação, o autor constatou, quanto ao Superior Tribunal de Justiça,
que “a jurisprudência do final do último século foi marcadamente favorável à
denúncia genérica” 382. Ou seja, exceto alguns julgados em sentido oposto, a maioria
dos precedentes admitia o recebimento de denúncia que não descrevesse as
condutas praticadas pelo administrador da empresa por meio (ou no seio) da qual
foram praticados os crimes econômicos. Como paradigma, Knopfholz citou o
acórdão do Recurso em Habeas Corpus nº 906/MG, relatado pelo Ministro José
Cândido, que afirmou o seguinte:
Nos crimes societários é possível o acolhimento da denúncia, mesmo sem a definição da conduta de cada um dos participantes do delito. A instrução processual suprirá essa falha (...). Se o inquérito não foi capaz de detalhar a participação dos réus, não é de recusar-se a inicial que não conseguiu ainda elementos para tal mister. Ora, se a denúncia pode ser, em qualquer tempo, aditada, tudo leva a crer que, oportunamente, a suposta falha pode ser suprida.383
Ao longo do tempo, adverte o autor, “passou-se, no início do novo século, a
aceitá-la com a camuflagem de denúncia ‘mais ou menos’ genérica. E, a partir de
meados dos anos 2000, a maioria das decisões exige a descrição da conduta de
cada denunciado, ainda que de forma não pormenorizada.” 384 São dezenas de
decisões que orientam cada “fase” da jurisprudência do STJ quanto à denúncia
genérica. Como paradigma, para a segunda fase, pode-se citar o acórdão do
Habeas Corpus nº 39.598/SP, de relatoria do Ministro Gilson Dipp385; para a terceira,
vale a menção ao acórdão do HC nº 58.157/ES, de relatoria do Ministro Haroldo
Rodrigues386.
382 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013. P. 206. 383 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. RHC 906/MG, da 6ª Turma. Relator: Min. José Cândido. Julgado em 18.12.1990. DJ 18.2.1991. 384 KNOPFHOLZ, op. cit.. P. 206. 385 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. HC 39.598/SP, da 6 Turma. Relator: Min. Gilson Dipp. Julgado em 7.4.2005. DJ 2.5.2005. 386 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. HC 58.157/ES/SP, da 6 Turma. Relator: Min. Haroldo Rodrigues. Julgado em 18.8.2009. DJ 8.9.2009.
86
No Supremo Tribunal Federal, embora o estágio atual seja semelhante, o
caminho foi diferente. Knopfholz explica:
A análise histórica da orientação do Supremo Tribunal Federal destoa daquela do Superior Tribunal de Justiça. Tal qual neste, nos primeiros anos após o advento da Constituição da República o entendimento quase unânime era de ser possível a denúncia genérica. Após 2005, houve uma sensível alteração de posicionamento da Suprema Corte (não apenas pela alternância de Ministros, mas, igualmente, pela modificação de entendimento de alguns dos julgadores, tais como o Ministro Gilmar Mendes), repelindo-se as acusações genéricas. Atualmente, em alguns julgados, regride-se para a orientação da possibilidade de denúncia genérica e, em outros, segue-se o atual posicionamento do STJ, segundo o qual são inviáveis as denúncias desprovidas de individualização de condutas, admitindo-se, contudo, que tal individualização prescinde de exaustividade.” 387
Em suma, a primeira parte do problema, ainda que não de forma unânime,
tem sido enfrentada pelos Tribunais Superiores. Evidentemente, porém, a solução
apresentada não parece estar de acordo com as diretrizes do Código de Processo
Penal para o processamento de acusações criminais. Ao admitir a denúncia que não
descreve pormenorizadamente as condutas, ainda que se trate de avanço em
relação ao recebimento, pura e simplesmente, de denúncia genérica, os Tribunais
Superiores têm dando guarida ao conhecimento de acusações que correm o risco de
envolver indivíduos que não praticaram quaisquer condutas criminosas. Embora se
possa sustentar que a descrição não exaustiva é melhor que nenhuma descrição,
trata-se de situação distante do ideal.
A segunda parte do problema da individualização de condutas, porém, não
permite solução intermediária como a que têm adotado os Tribunais Superiores.
Afinal, ou se tem a demonstração inequívoca de autoria delitiva, ou o denunciado
deve ser absolvido. É neste ponto que ganha relevância a colaboração premiada.
Para ilustrar, veja-se a lição de Pereira:
Essa posição privilegiada, numa comparação com pessoa neutra e apartada do cometimento dos delitos, permite inevitavelmente ao colaborador processual o conhecimento interno de alguma situação objetiva, ainda que restrita, embasada em dados e elementos concretos presenciados pelo agente, os quais devem ser explicitados e detalhados já nos contatos iniciais, para permitir a avaliação desses requisitos internos de procedibilidade da colaboração. Ainda que o informante tenha tido atuação esporádica ou mínima na atividade delituosa, poderá esclarecer a natureza de sua participação e todos os detalhes concretos que lhe permitiram o
387 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013. P. 220.
87
conhecimento sobre os fatos declarados aos órgãos de persecução penal.388
Ora, se o colaborador premiado pode contribuir com a investigação porque se
encontra em posição privilegiada e tem conhecimento interno das peculiaridades
objetivas dos fatos em investigação, podendo detalhá-los às autoridades
investigantes, é possível que, da mesma forma, contribua justamente para
solucionar, nos crimes empresariais, a dificuldade relativa à responsabilização penal
subjetiva. Em tese, no caso dos crimes empresariais, a colaboração premiada
poderia funcionar, não apenas para a mais efetiva punição de crimes, mas também
como instrumento de controle do poder punitivo do Estado, afastando-se as
denúncias e condenações genéricas.
É verdade que o instituto da colaboração premiada não está descrito no
ordenamento em um diploma propriamente voltado ao combate de crimes de
natureza econômica. A lei nº 12.850/2013, nesse sentido, tem objeto pouco
relacionado, sob uma primeira e superficial análise, aos delitos cometidos no âmbito
da empresa, como se vê de sua epígrafe: “define organização criminosa e dispõe
sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais
correlatas e o procedimento criminal”389.
Não obstante, é certo que o conteúdo da lei e os objetivos relacionados à
colaboração premiada evidenciam, após uma leitura mais atenta, a íntima relação
entre o instituto da lei nº 12.850/2013 e os crimes empresariais. Em primeiro lugar,
perceba-se que o conceito de organização criminosa trazido pela lei (art. 1º, § 1º) já
contém, por si só, alguma similitude com o que se vê na criminalidade empresarial:
“considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas
estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas”390.
Dentre os resultados pretendidos com a colaboração premiada, por sua vez,
tem-se aqueles previstos no art. 4º, I e II, quais sejam: “I – a identificação dos
demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por
388 PEREIRA, Frederico Valdez. Valor probatório da colaboração processual (Delação Premiada). Revista dos Tribunais. Ano 98. Vol. 879. Janeiro/2009. 389 BRASIL. Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/RpXWAh> Acesso em 12 de março de 2018. 390 Ibidem.
88
eles praticadas” 391; e “II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de
tarefas da organização criminosa” 392.
Ainda que tais atribuições possam se destinar ao desmantelamento de uma
organização criminosa voltada a crimes comuns, como o tráfico de entorpecentes ou
a extorsão mediante sequestro, há uma superposição de tais características com
aquelas dos crimes cometidos no âmbito da empresa.
E quais seriam essas características? Para responder tal indagação, é
interessante adentrar, ainda que brevemente, à discussão dos critérios para a
definição dos crimes econômicos. Embora não seja o objetivo desta análise verificar
quais são e por que são assim definidos tais delitos, o estudo de pelo menos 3 (três)
dos 4 (quatro) critérios comumente utilizados para a definição da criminalidade
econômica fornecerá material suficiente para indicar de que maneira os crimes
empresariais enquadram-se nos objetivos da colaboração premiada.
Por esse caminho, passa-se, inicialmente, pelo critério criminológico dos
crimes econômicos de Sutherland, que cunhou a expressão dos crimes de colarinho
branco (“white collar crimes”393) e definiu que tais delitos seriam cometidos por
pessoas respeitáveis, de camada social alta, no exercício de sua atividade
profissional e valendo-se de abuso de confiança394. Embora tal critério não seja
suficiente para identificar todos os crimes econômicos justamente porque nem todo
delito econômico é cometido no âmbito da empresa ou por indivíduo de alta classe
social, trata-se de uma primeira – e válida – abordagem. De fato, a história recente
tem demonstrado que inúmeros crimes de grande repercussão – como os
combatidos por meio da Operação Lava Jato – contaram com autores que
preenchem o critério de Sutherland.
O segundo critério que auxilia a compreensão da superposição que há entre
os crimes de natureza empresarial e a colaboração premiada é, justamente, o
critério empresarial (ou “operativo-funcional”395, na denominação de Cervini). Por tal
critério, definir-se-iam os crimes econômicos a partir do local de sua prática, qual
391 BRASIL. Lei 12.850..., 2013. 392 Ibidem. 393 SUTHERLAND, Edwin H. El delito de cuello blanco. Versión completa. Buenos Aires: Bdef, 2009, p. 9. 394 CALLEGARI, André Luís. Direito Penal Econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 16. 395 CERVINI, Raúl. Derecho penal económico – concepto y bien jurídico. In: DOTTI, René Ariel; PRADO, Luiz Régis (org.). Doutrinas Essenciais – Direito Penal Econômico e da Empresa. Teoria Geral da Tutela Penal Transindividual. Volume 2. São Paulo: RT, 2011, p. 239.
89
seja o âmbito da empresa. Embora o critério não seja suficiente para a “correta
delimitação conceitual do Direito Penal Econômico”396, certamente tem valor para a
verificação que se faz neste momento. Afinal, a prática de crimes dentro da empresa
(ou em favor da empresa) traz consigo uma inerente dificuldade probatória, que
pode, de forma hipotética, ser contornada ou minorada por um instituto probatório
como a colaboração premiada.
Tal conclusão desembarca no terceiro critério utilizado para a definição dos
crimes econômicos, que é o que mais importa para a aferição da profunda
proximidade que há entre a colaboração premiada e os crimes empresariais, qual
seja o critério processual. Esse critério define a necessidade da especialização de
conhecimento para o processamento e julgamento dos crimes de natureza
econômica. E a justificativa para essa especialização, que são as dificuldades
inerentes à apuração desses delitos, é o que compatibiliza os crimes empresariais
ao instituto da colaboração premiada. Nesse sentido, vale reproduzir a lição de
Bacigalupo sobre a especialidade que se exige para a descoberta de tais delitos:
A descoberta de crimes econômicos requer técnicas especiais que são condicionadas pela estrutura particular dos fatos que são agrupados sob o título de lei criminal econômica. Não é o mesmo para descobrir o perpetrador de um homicídio que para provar a dívida fiscal de uma empresa com várias subsidiárias para estabelecer se uma ofensa fiscal foi cometida ou se seus saldos são falsos.397
Sánchez Rios sustenta que, “em virtude da complexidade dos instrumentos e
da sofisticação dos meios com que são executados” 398 , os crimes de natureza
econômica “exigem dos órgãos de persecução uma contínua especialização,
acabando por incentivar, sob os auspícios de um Direito Penal eficaz na realização
de uma máxima de combate à impunidade e da recuperação dos ativos”399, certa
396 KNOPFHOLZ, Alexandre. A denúncia genérica..., 2013, p. 40. 397 BACIGALUPO, Enrique. Órganos judiciales especializados en criminalidad económica en Europa. In: BACIGALUPO, Enrique. Curso de derecho penal económico. 2ª Edição. Madrid; Barcelona: Marcial Pons, 2005, p. 707. Tradução livre. Do original: “El descubrimiento de los delitos económicos requiere técnicas especiales que están condicionadas por la particular estructura de los hechos que se agrupan bajo la rubrica del Derecho penal económico. No es lo mismo descobrir al autor de un homicidio que comprovar la deuda fiscal de una empresa con varias filiales para establecer si se ha cometido un delito fiscal o si sus balances son falsos” 398 SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. A responsabilização criminal individual em estruturas empresariais complexas: uma análise aplicada. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 69, v. 12, 2016, p. 72. 399 Ibidem, p. 72.
90
flexibilidade dos “critérios clássicos de imputação e individualização da
responsabilidade penal” 400.
Sob uma perspectiva procedimental, as técnicas especiais podem envolver,
desde um Juízo qualificado para a apuração específica desses delitos, até
instrumentos próprios às dificuldades inerentes dos crimes de natureza empresarial.
Um desses instrumentos é certamente a colaboração premiada. Afinal, sendo os
crimes cometidos no âmbito da empresa – ou, de forma oficial, pela própria empresa
–, ter-se-á uma incrível dificuldade de aferição de autoria, tendo em vista as
características próprias dessa espécie de delito. E a colaboração premiada
certamente terá um papel relevante para o exercício dessa função.
Por fim, é importante apenas mencionar o quarto critério para a identificação
dos crimes econômicos, que é o mais importante para essa função, mas que, nesta
discussão sobre a equiparação da colaboração premiada com os crimes
empresariais, não representa papel de relevo. Trata-se do critério do bem jurídico,
definindo crimes econômicos como aqueles que protejam “o conjunto de normas
jurídicas promulgadas para a regulação de proteção, da fabricação e da distribuição
de bens econômicos”401. Ou, na lição de Martínez-Bujan Pérez:
(...) conceito amplo de crimes econômicos, caracterizado por incluir, por enquanto, infrações que violam direitos legais supraindividuais, de conteúdo econômico que, embora não afete diretamente a regulação legal da intervenção estatal na economia, transcende a dimensão patrimonial puramente individual, sejam de interesse geral de conteúdo ou - pelo menos - interesses de amplos setores ou grupos de pessoas.402
De qualquer forma, é fácil concluir, a partir das características inerentes aos
crimes empresariais e dos critérios acima apresentados que, também sob o prisma
do direito penal empresarial, o instituto em análise possui extrema pertinência.
400 SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo. A responsabilização criminal..., 2016, p. 72. 401 SALOMÃO, Heloisa Estellita. Tipicidade no direito penal econômico. In: DOTTI, René Ariel; PRADO, Luiz Régis (org.). Doutrinas Essenciais – Direito Penal Econômico e da Empresa. Teoria Geral da Tutela Penal Transindividual. Volume 2. São Paulo: RT, 2011, p. 159. 402 MARTINEZ-BUJAN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico. Parte General. 2ª Edição. Valência: Tirant lo Blanch, 2007, p. 95. Tradução livre. Do original: “(...) concepto amplio de delitos económicos, caracterizado por incluir, por lo pronto, las infracciones vulneradoras de bienes jurídicos supraindividuales, de contenido económico que, si bien no afectan diretamente a la regulación jurídica del intervencionismo estatal en la economia, transcienden la dimensión puramente patrimonial individual, trátese de intereses generales de contenido o trátese – al menos – de interesses de amplios setores o grupos de personas”.
91
2.4 A JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL
O direito penal premial não depende, mas certamente se compatibiliza com a
chamada justiça penal negocial – e essa pode se apresentar como um dos
fundamentos processuais da colaboração premiada.
O processo penal brasileiro historicamente se sustenta sobre alguns
princípios essenciais (a maioria dos quais está descrita no primeiro capítulo deste
estudo), mas trata-se, sem dúvida, de uma forma de justiça contenciosa, na qual, em
regra, o Estado formula uma acusação (por intermédio do Ministério Público) em
face de um particular e a submete à apreciação do Poder Judiciário. Há, portanto,
uma relação de conflito que será resolvida por uma sentença.
O princípio da legalidade – no sentido da obrigatoriedade já referida no
primeiro capítulo – era o que tradicionalmente regia o processo pátrio e impunha ao
órgão acusatório o oferecimento da denúncia quando diante de crime de natureza
pública. A justiça negocial, em sentido oposto, relaciona-se com o princípio da
oportunidade que, na qualidade de antagonista da obrigatoriedade, não implica o
necessário ajuizamento de demanda criminal e possibilita outras formas de solução
das controvérsias dessa natureza. Segundo Vasconcelos403, a consensualidade no
processo penal é uma manifestação do princípio da oportunidade, na medida em
que “para que se efetive a decisão tomada impõe-se que o órgão acusador deixe de
sustentar a persecução penal até seu desfecho habitual.”404
Em outras palavras, justiça penal negocial, em tese, teria a função de alterar
a relação de conflito que orienta o processo penal e buscaria fornecer “soluções
dialogadas ou consensuais no processo penal em contraposição às formas coativas
e verticalizadas de resolução dos casos criminais”405. Vasconcelos resume bem os
modelos existentes, no Brasil e no Direito comparado (alguns dos quais serão vistos
adiante), de justiça negocial ou consensual:
403 Que discute profundamente o tema em VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial. Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015. 404 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial. Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015, p. 53. 405 GIACOMOLLI, Nereu José; VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Justiça Criminal Negocial: crítica à fragilização da jurisdição penal em um cenário de expansão dos espaços de consenso no processo penal. Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica. Vol. 20, nº 3, set-dez 2015, p. 1113.
92
Desse modo, incluem-se em tal categoria, por exemplo, os institutos da barganha, da transação penal, da suspensão condicional do processo brasileiro e português, os procedimentos abreviados latino-americanos, a plea bargaining estadunidense, o absprachen alemão, o patteggiamento italiano, os procedimentos por decreto ou monitórios, entre diversos outros.406
No Brasil, o fundamento constitucional da justiça penal negocial está no já
mencionado art. 98, I, da Constituição Federal, que prevê expressamente a
possibilidade de conciliação e transação nas infrações de menor potencial ofensivo
no âmbito dos Juizados Especiais Criminais.
Atualmente – ou até a discussão sobre a colaboração premiada –, a lei dos
Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95) seria a que possuiria um “microssistema”407
negocial, prevendo 4 (quatro) institutos despenalizadores que cumprem essa função,
quais sejam a composição civil, a necessidade de representação do ofendido nos
crimes de lesão corporal leve e culposa, a transação penal e a suspensão
condicional do processo408, que funcionariam como instrumentos do exercício dessa
justiça penal negocial. Com efeito,
a ação penal, segundo o Direito brasileiro, não é o único instrumento por meio do qual um direito violado é tutelado, tanto que na transação penal ou mesmo no acordo civil com efeitos penais tem-se uma fórmula de tutela alternativa, fundada nas vontades da parte.409
A composição civil, prevista no art. 74, parágrafo único da Lei nº 9.099/95,
envolve uma audiência preliminar, na qual as partes poderão se conciliar quanto aos
fatos em discussão. Em se tratando de crime de ação penal privada ou pública
condicionada à representação, “o acordo homologado acarreta renúncia ao direito
de queixa e representação” 410 . A representação do ofendido, enquanto medida
despenalizadora, é, na realidade, uma ampliação do rol dos crimes que se sujeitam
à representação, incluindo-se a lesão corporal leve e a culposa, conforme o art. 88
da Lei nº 9.099/95 – trata-se, portanto, não de um instrumento negocial introduzido
406 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha..., 2015, p. 56. 407 GIACOMOLLI, Nereu, op. cit., 2015, p. 1113. 408 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 630. 409 BECHARA, Fábio Ramazzini. Colaboração premiada segundo..., 2012, p. 5. 410 BRASIL. Lei nº 9.099, 1995.
93
pela Lei dos Juizados Especiais, mas de uma ampliação de um conceito
previamente existente.
A transação penal, por sua vez, corporifica a possibilidade de celebração de
acordo entre a parte e o Ministério Público para a aplicação direta de restrição de
direitos para crimes de menor potencial ofensivo (com penas de até dois anos),
como consta do art. 76 da Lei nº 9.099/95, enquanto que a suspensão condicional
do processo traduz a possibilidade de sobrestamento do feito, após o oferecimento
de denúncia, por prazo de dois a quatro anos, quando cumpridos os requisitos do
art. 89 da Lei nº 9.099/95.
Como se vê, a justiça penal negocial brasileira é – ou vinha sendo até a
colaboração premiada – um conjunto de poucas medidas processuais voltadas à
conciliação e à negociação no âmbito dos Juizados Especiais Criminais. O número
de crimes e contravenções abrangidos pelas hipóteses negociais da Lei nº 9.099/95
(todos aqueles com pena mínima inferior a um ano de prisão), porém, torna inegável
o fato de que a justiça negocial brasileira tem ampla aplicabilidade prática.
Embora haja ampla discussão acerca de seu efetivo caráter negocial411 e sua
conformação constitucional, o que será mais detalhadamente analisado no quarto
capítulo deste estudo – com enfoque na colaboração premiada, é verdade –, é certo
que há uma correspondência entre tais institutos “despenalizadores” e seu
permissivo constitucional, já que é literal a previsão da transação no texto da
Constituição de 1988 (havendo, em contrapartida, um conflito com a sistemática do
Código de Processo Penal, que, por ser anterior à Constituição, não foi atualizada
para essa dinâmica consensual).
Há, porém, uma tendência de expansão dessa justiça no Brasil412, que se faz
justamente por meio da colaboração premiada e outros institutos e previsões
legislativas relacionadas, como os já citados “Acordo de Não-Persecução Criminal”,
instituído pela Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público e
a ampliação da transação penal para crimes mais graves, conforme previsto no
Projeto de Lei nº 8.045/2010. Sob essa perspectiva, portanto, parece ser evidente
411 Como advertem VASCONCELLOS (Barganha..., 2015, p. 57) e PRADO (Transação Penal, 2015, p. 283). 412 Conforme LOPES JR, Aury; ROSA, Alexandre de Morais. Com delação premiada e pena negociada, Direito Penal também é lavado a jato. Conjur, 24 de julho de 2015. Disponível em <http://goo.gl/cACxRe> Acesso em 12 de março de 2018.
94
que a justiça negocial funciona como um fundamento, que se pode chamar
“processual”, para a colaboração premiada.
A discussão teórica sobre a justiça penal negocial será retomada no quarto
capítulo, quando se voltará a tratar da transação e da suspensão condicional do
processo à luz da Constituição, oportunidade em que se confrontarão os princípios
do primeiro capítulo com o instituto da colaboração premiada. Não obstante, é
importante notar que esses três institutos de “transformação do processo penal em
instrumento eficaz de concretização do poder punitivo estatal”413 assimilam-se, de
forma bastante evidente, ao instituto norte-americano no plea bargain e ao
pentitismo italiano (ou patteggiamento), que serão sucessivamente analisados a
seguir.
2.4.1 A JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
Embora inserido em um sistema processual caracterizado pela “ampla
discricionariedade de atuação do representante do Ministério Público
(prosecutor)”414, que exerce efetivamente uma função de “dono do processo” e pode
dele dispor – o que é entendido por autores como Paschoal como um “absoluto
arbítrio com relação à ação penal” 415 , em conflito com os princípios da
obrigatoriedade e indisponibilidade acima estudados –, o plea bargain é a principal
fonte dessa espécie de mecanismos de solução consensual de conflitos penais.
Marques resume bem como é o processo penal, em geral, nos Estados
Unidos da América (considerando-se que cada um dos cinquenta Estados norte-
americanos possui, para os crimes de sua competência, suas peculiaridades
processuais). Os crimes mais graves (felonies), que são punidos com penas
superiores a um ano de prisão, são processados sob uma acusação formal
denominada indictment. As contravenções e crimes com penas inferiores são
processados por meio de peça chamada information416. Ramos acrescenta, ainda, a
queixa (complaint) às formas de instauração de persecução penal, resumindo-a
413 GIACOMOLLI, Nereu, Justiça Criminal Negocial..., 2015, p. 1110. 414 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha..., 2015, p. 60. 415 PASCHOAL, Janaína Conceição. Breves Apontamentos Relativos ao Instituto do ‘Plea Bargaining’ no Direito Norte-Americano. Revista do Curso de Direito do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – UniFMU, ano XV, nº 23, 2001, p. 115. 416 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto, A colaboração premiada..., 2014, p. 35.
95
como um mero “pedido ao tribunal para que determine a prisão de alguém pela
prática de crime”, frisando que “geralmente, é utilizada para iniciar a persecução,
mas não é suficiente para iniciar a fase de adjudicação”.417
De todo modo, no caso do indictment, a acusação é submetida a um júri
(Grand Jury) para uma espécie de juízo prelibatório. Caso se entenda pelo
prosseguimento da acusação, há uma audiência prévia de julgamento, chamada de
arraignment418 “na qual o acusado será indagado acerca da sua culpa ou inocência
(plea of guilty or not guilty)”419. Há uma terceira manifestação que cabe ao acusado,
“não contestar as imputações (nolo contendere)” 420 , prevista em “metade dos
estados e na jurisdição federal” 421 e por meio da qual “o acusado não contesta as
acusações, mas também não reconhece sua culpabilidade”422. Segundo Marques, é
naquele “momento que se fala da plea bargaining” 423. No caso dos crimes de menor
punição, o processo dispensa o juízo de admissibilidade perante o júri, que é
realizado por magistrado, sendo a dinâmica do plea bargaining a mesma.
Esclarece-se que, embora tenha vigência no direito norte-americano o
princípio da oportunidade (apenas se obrigando o Promotor perante seu
eleitorado424 ou o agente político que o nomeou, de acordo com cada Estado), não
se ignora naquele país o devido processo legal, em sua tradução literal do due
process of law. Há uma diferença marcante, porém, para o nosso sistema. Essa
primeira oportunidade de falar que tem o acusado, quando deverá se posicionar
como culpado ou inocente (guilty ou not guilty) é o momento em que se atende ao
due process of law: quando o denunciado se posiciona quanto à sua culpa, para
assumi-la ou não, abre-se a oportunidade para que ele exija o cumprimento de seu
direito a um justo julgamento425. Caso se apresente como inocente, terá o direito ao
julgamento; caso contrário, poderá ser punido de imediato, “sem o processo de
averiguação judicial dos fatos”426.
417 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de Processo Penal norte-americano. São Paulo: RT, 2006, p. 187. 418 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha..., 2015, p. 62. 419 MARQUES, op. cit., p. 35. 420 VASCONCELLOS, op. cit., p. 62. 421 Ibidem, p. 62. 422 Ibidem, p. 62. 423 MARQUES, op. cit., 2014, p. 36. 424 PASCHOAL, Janaína Conceição. Breves Apontamentos..., 2001, p. 115. 425 VASCONCELLOS, op. cit., p. 61-62. 426 Ibidem, p. 62.
96
Esse ponto é fundamental porque, como lembra Paschoal, os acordos de plea
bargaining dependem da “expressa assunção de culpa por parte do acusado”427, a
partir da qual identifica-se a renúncia do direito ao julgamento.
Sob uma leitura mais simplista, pareceria a forma mais adequada de se
conduzir um sistema processual penal: aquele que se diz inocente pode ser
submetido a um julgamento (e nele deverá ter seu direito de defesa integralmente
observado); quem, desde logo, considera-se culpado, deve livrar o Estado (e a si
próprio) dos custos inerentes à condução de um processo fadado à condenação
criminal.
No entanto, a realidade do processo penal dos Estados Unidos da América é
extremamente mais complexa. É que a cultura judicial daquele país envolve a
celebração de acordos de barganha como regra, havendo a indicação de que, desde
o século XIX, um percentual muito baixo (inferior a dez por cento) é levado a
julgamento428.
Tratando-se de um sistema desde sempre orientado a celebrar acordos e não
submeter acusados a julgamento, não é exagero afirmar a existência de uma cultura
de seus operadores para que induzam seus participantes a agirem dessa forma. E
isso parecer ocorrer nos Estados Unidos. Um grande exemplo disso é o estudo
realizado por Heumann no sistema processual do Estado de Connecticut nos anos
70, por meio do qual identificou que o volume de causas e a cultura dos promotores,
juízes e advogados levavam os acusados a aceitar o acordo mesmo quando talvez
tivessem base para um veredito absolutório. Segundo o que o autor identificou,
constatou-se a existência de um risco para os acusados em geral de que, caso não
colaborassem com a Corte e fossem condenados, suas penas poderiam ser
consideravelmente mais altas429.
Os riscos, naquele estudo, não se limitavam aos acusados. Também
advogados e promotores acabavam por se sujeitar à celebração de acordos por
“sanções” informais que acabariam por ser impostas pelo próprio sistema,
independentemente do mérito da causa. Aos advogados que insistiam em conduzir o
processo de forma combativa (por meio de petições denominadas motions), sem o
427 PASCHOAL, op. cit., p. 115 428 Nesse sentido, HEUMANN verificou que, entre 1880 e 1954, no Estado norte-americano de Connecticut teve uma media de 8,7% de casos levados a julgamento (HEUMANN, Milton. Plea Bargaining. The Experiences of Prosecutores, Judges, and Defense Attorneys. Chicago: University of Chicago Press, 1975 [reimpressão de 25 de maio de 2017], p. 28). 429 Ibidem, p. 73.
97
intuito previamente deliberado de transacionar, não eram incomuns reprimendas
pessoais caracterizadas pela falta de abertura dos promotores para negociações
futuras ou uma má-fama perante os juízes. Aos promotores, havia sempre o risco de
que, em razão do grande volume de processos, da pouca estrutura que tinham e das
peculiaridades de cada caso, não conseguissem produzir as provas para um
julgamento bem-sucedido. Esse risco ensejava o oferecimento, às vezes nos
momentos anteriores ao julgamento, de acordos bastante generosos (cabendo ao
experiente advogado o estabelecimento do momento em que aceitaria a proposta).
O seguinte excerto ilustra bem a dinâmica da Corte estudada:
Quando os promotores atribuem uma moção a esta categoria, eles estão inclinados a enfatizar as sanções que possuem e a enfatizar que a defesa deve tomar o acordo, ou então. Se, no entanto, a moção ou o julgamento são considerados sérios, então os promotores reconhecem que podem ter problemas para provar o caso, e eles estão inclinados a "adoçar" suas ofertas e enfatizar seus poderes para recompensar o réu cooperativo. 430
Perceba-se, portanto, que a dinâmica do processo penal norte-americano, ao
menos pelo que se extrai do percuciente estudo do Estado de Connecticut, não é tão
simples quanto guilty (culpado) ou not guilty (inocente) parece indicar. Nem sempre
ao inocente é aconselhado o julgamento por seu advogado e nem sempre ao
culpado é, desde logo, apresentado um acordo, bom ou ruim. Mais importante, nem
sempre depende da culpa do acusado o procedimento da negociação. As
peculiaridades dos agentes, o volume de causas, o perfil do acusado e a conduta de
seu advogado acabam adotando um papel relevante na compatibilização da causa
com a barganha.
Exemplos mais recentes dessa dinâmica estranha ao modelo processual
brasileiro podem ser extraídos das mídias populares. O caso de Kalief Browder é um
deles. Trata-se de um estudante de ensino médio do Estado de Nova Iorque que, a
partir de 2010, permaneceu encarcerado por três anos – boa parte desse tempo em
solitária – no presídio de Rikers Island/NY, um dos mais violentos do pais. Browder
era acusado de roubar uma mochila e se negou, em inúmeras oportunidades, a
celebrar um acordo com o promotor – ele simplesmente não aceitava assumir uma
430 HEUMANN, Milton. Plea Bargaining…, 1975, p. 74. Tradução livre. No original: “When prosecutors assign a motion to this category, they are inclined to stress the sanctions they possess and to emphasize that the defense should take the deal, or else. If, however, the motion or trial is perceived as serious, then the prosecutors recognize that they may have trouble proving the case, and they are inclined to ‘sweeten’ their offers and emphasize their powers to reward the cooperative defendant.”
98
culpa que não era, a princípio, sua. Como sua família não pôde inicialmente pagar
sua fiança (tendo ele recebido sanções disciplinares ao longo de seu duro período
no cárcere que impediram a liberdade provisória), o caso somente foi encerrado
quando o Promotor desistiu de promover a ação, após inúmeras audiências, por não
mais encontrar a vítima do suposto crime. Browder sofreu sérios danos psicológicos
que o levaram ao suicídio dois anos depois, em 2015.431
Independentemente dos problemas apontados, a discussão do plea bargain
depende da renúncia do acusado ao seu direito ao julgamento. Nesse momento,
“nenhuma outra diligência é adotada com o objetivo de confirmar a sua culpa”432,
sem a oitiva de testemunhas ou a produção de provas periciais, mantendo a
confissão, em alusão que Paschoal faz à Inquisição, como a “rainha das provas”433.
O acusado será condenado a partir do estabelecimento da sua responsabilidade
criminal pessoal e o processo definitivamente encerrado. Ramos, porém, insiste que
se trata de um direito do acusado reconhecer-se como culpado434 – assim como é
seu direito submeter-se a um julgamento.
A assunção da culpa, com a declaração de guilty ao questionamento do juiz
na audiência de arraignment, pode-se dar a partir de três formas distintas, como
bem explica Vasconcellos:
Nesse diapasão, constumam-se apontar três formas básicas em que tal ato pode se caracterizar: 1) voluntária ou não influenciada é a situação em que o réu opta por reconhecer sua culpa diante do lastro probatório amplamente desfavorável, por remorso ou ao não encontrar vantagem nenhuma em negá-la, ou seja, não há qualquer influência direta ou indireta de outros atores processuais; 2) estruturalmente induzida ou ‘unilateral’ se dá quando a lei estabelece uma pena mais severa para quem insiste no julgamento ou porque há o costume de ocorrer um tratamento mais leniente de promotores e juízes àqueles que o renunciam, ainda que não acordado formalmente; e, 3) negociada é aquela em que as tratativas se dão de modo explícito, visando à renúncia do processo, abordando o delito ou a pena a ser imposta, é a plea bargaining em essência.435
A negociação entre o acusado e o Promotor, como bem pontua Marques,
pauta-se em “ampla discricionariedade, permitindo-lhe negociar a pena (sentence
431 TIME: The Kalief Browder Story. Criação por Julia Willoughby-Nason. Dirigido por Jenner Furst. Bronx, Cidade de Nova Iorque, Estado de Nova Iorque. Distribuído por Viacom Entertainment Group. Série documental de seis episódios de quarenta e cinco minutos exibida na internet pela Netflix. Disponibilizada em 1º de março de 2017. Acesso em 25 de julho de 2017. 432 PASCHOAL, Janaína Conceição. Breves Apontamentos..., 2001, p. 117. 433 Ibidem, p. 117. 434 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso..., 2006, p. 188. 435 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha..., 2015, p 63-64.
99
bargaining) ou a própria imputação (charge bargaining)” 436. No primeiro caso, há um
acordo para que o promotor sugira ao Juiz que aplique uma “pena mais branda do
que a que sugeriria se o réu escolhesse ser julgado”437. No segundo, pode haver a
própria desistência do processo em troca da declaração de culpa ou a substituição
da imputação para uma infração menos grave, à qual se comine pena mais branda.
Nesse caso, restabelecida a imputação, limitar-se-á o juiz, já formada a culpa, a
aplicar a pena correspondente ao que se estabeleceu no acordo.
A regra, nos Estados Unidos, é a ampla discricionariedade do Promotor, que,
em geral, verá o acordo ser homologado pelo juiz. Já se verificaram, no entanto,
situações em que o que fora acordado acabou não sendo observado no pedido da
acusação em razão da troca do promotor antes da prolação da sentença. No caso
concreto (Santobello v. New York), como ilustra Hendler, a Suprema Corte dos
Estados Unidos não aceitou o pedido de pena máxima do novo acusador e
determinou a devolução do caso à origem, para que, ou o Tribunal reconhecesse o
benefício acordado, ou o réu retirasse sua declaração de culpa, ou, por fim, um novo
juiz estabelecesse a pena438.
Há, naturalmente, hipóteses em que o poder judiciário poderá exercer um
controle sobre os acordos firmados entre as partes e verificar se atendem a
“requisitos mínimos de ética profissional” 439 (embora Ramos reconheça que, na
prática, “o pedido de barganha é inteiramente dominado pelas partes” 440). Como
ressalta Paschoal, porém, as “primeiras decisões que, na década de 70,
definitivamente declararam o instituto do ‘plea bargaining’ constitucional (...)
consignaram que o acordo entre réu e acusação é válido desde que inteligente e
voluntário” 441 . A rigor, um acordo poderá ser rejeitado quando o acusado for
indevidamente coagido (ressaltando-se que certa medida de coação é “inerente à
justiça negociada, diante da inevitável ameaça de uma punição mais severa se
houver recusa e exercício do direito ao julgamento”442) ou quando não tiver plena
consciência das condições e consequências da celebração da plea bargaining.
436 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A colaboração premiada..., 2014, p. 36. 437 PASCHOAL, Janaína Conceição. Breves Apontamentos..., 2001, p. 118. 438 HENDLER, Edmundo S. Derecho Penal y Procesal Penal de los Estados Unidos. Buenos Aires: Ad Hoc, 2006. P. 199. 439 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso..., 2006, p. 188. 440 Ibidem, p. 188. 441 PASCHOAL, op. cit. , 2001, p. 121. 442 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha..., 2015, p. 91.
100
Quanto ao segundo ponto, cabe uma observação extremamente importante
de Paschoal: embora a “inteligência” seja requisito de validade para a homologação
do acordo, a acusação não está obrigada a fornecer à defesa todas as informações
que estejam sob sua posse e que possam ser favoráveis ao acusado (no que se
denomina disclosure). Tal conduta é obrigatória durante o julgamento, mas, no caso
da barganha, há renúncia ao direito ao julgamento, de modo que não se exige do
acusador o fornecimento de elementos de prova ao acusado443.
Com efeito, é plenamente possível que seja celebrado um acordo sem que o
acusado tenha conhecimento de que elementos de prova colhidos pela acusação
poderiam lhe beneficiar durante o julgamento. Paschoal, em razão disso, aponta que
a dinâmica de negociação, em toda sua amplitude, também permite o “blefe”444. De
qualquer forma, a interpretação que se dá aos requisitos de homologação é pacífica
no sentido de que o acusado deve ter conhecimento “das acusações, ou seja, da
natureza das imputações a ele responsabilizadas, além do esclarecimento de quais
fatos precisam ser provados para autorizar um veredito condenatório”445. Ademais,
precisa compreender “as consequências da barganha, especialmente da pena a ser
imposta e dos seus possíveis reflexos”446, assim como os direitos que são objeto de
renúncia com a celebração do acordo.
Mais adiante, após a análise da Lei nº 12.850/2013 (no próximo capítulo),
será traçado um breve paralelo entre os institutos do plea bargaining e da
colaboração premiada. Antes, porém, é relevante analisar o modelo de colaboração
da Itália, o pentitismo.
2.4.2 A JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL NA ITÁLIA
A compreensão do plea bargaining seria suficiente para uma análise da
colaboração premiada à luz do Direito comparado. Afinal, a impressão geral que se
tem é a de que o Processo Penal brasileiro tem sofrido um processo de
443 PASCHOAL, Janaína Conceição. Breves Apontamentos..., 2001, p. 121. 444 Ibidem, p. 121. 445 VASCONCELLOS, op. cit., p 93. 446 Ibidem, p. 93.
101
americanização, na expressão que Barroso 447 utiliza para tratar do direito
constitucional e que Reale Junior, como já dito acima, indica quanto à transação
penal. No entanto, é importante analisar o modelo italiano da justiça negocial,
justamente em razão da similaridade entre os sistemas penais e processuais dos
respectivos países e dos contextos em que passaram a ser utilizados.
A colaboração premiada na Itália foi adotada mais recentemente que nos
Estados Unidos e teve por objetivo central o desmantelamento da máfia, que, a
partir do final dos anos sessenta, deu causa a uma efetiva guerra com a sociedade,
com a profusão de atos de terrorismo e extorsão mediante sequestro448 que criaram
“uma sensação de desconfiança nas instituições democráticas” 449. Ainda que, em
um primeiro momento, algumas estratégias diversas à colaboração tivessem sido
implementadas, como a “criação de órgãos investigativos especializados (...), a
utilização de ‘processo investigativo’” 450 e o “aumento das sanções para delitos
cometidos por organizações criminosas” 451, tornou-se
claro para os operadores do setor que o ataque às organizações só seria eficaz com o rompimento do vínculo associativo através de normas especiais que, por um lado, agravassem as sanções dos autores dos crimes e, por outro, possibilitassem a concessão de atenuante a quem, dissociando-se dos cúmplices, ajudasse as autoridades a evitarem consequências dos crimes, ou colaborasse na elucidação dos fatos, ou na identificação dos demais agentes.452
O combate à criminalidade organizada em torno de máfias se deu, na
expressão de Bittar, em um “regime duplo binário”453, que envolvia, de um lado, o
endurecimento das penas já existentes e a criação de novos crimes específicos, e,
de outro, o estabelecimento de benefícios para aqueles que resolvessem colaborar.
Uma série de leis foi criada, entre os anos 70 e 90, para o combate à criminalidade
organizada mediante, entre outros fatores, mecanismos premiais aos réus
colaboradores - por exemplo, a Lei nº 497, de 14 de outubro de 1974, que criou
uma atenuante para o partícipe de crime de extorsão mediante sequestro que
447 BARROSO, Luís Roberto. A americanização do direito constitucional e seus paradoxos: teoria e jurisprudência constitucional no mundo contemporâneo. Revista Interesse Público – IP. Belo Horizonte, ano 12, nº 59, jan./fev/ 2010. 448 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada..., 2010, p. 14. 449 Ibidem, p. 14. 450 Ibidem, p. 14. 451 Ibidem, p. 15. 452 Ibidem, p. 15. 453 Ibidem, p. 15.
102
auxiliasse a vítima a ser libertada454; a Decreto-lei nº 625, de 15 de dezembro de
1979, que criou uma substituição de pena para o colaborador em crimes cometidos
com “finalidade de terrorismo ou de eversão da ordem democrática” 455 ; a Lei
Rognoni-La Torre instituiu o crime de associação mafiosa no art. 416-bis do Código
Penal Italiano456; e as Leis nº 82, de 14 de março de 1991457, e 203, de julho de
1991 458 , que criaram uma série de benefícios, tanto penais (com relevantes
reduções459) e penitenciários (com medidas alternativas à prisão460, inclusive após a
condenação), quanto de proteção pessoal, dentre várias outras.
Criou-se, assim, o chamado pentitismo, por meio do qual se buscava contra-
golpear a “omertà”, que é o código de silêncio que impera entre os integrantes das
organizações criminosas mafiosas461. O nome do mecanismo deriva do fato de que
o colaborador italiano passa a ser chamado de pentito, termo análogo à
denominação dada ao arrependido que colaborava com a Inquisição.
O uso do pentitismo se deu, em especial, no “maxiprocesso”462 instaurado em
1986 e que visava a apuração de crimes cometidos pela máfia Siciliana (Cosa
Nostra)463. Encabeçado pelos Juízes instrutores Giovanni Falcone e Paolo Borsellino
(que acabaram, assim como outros agentes públicos, assassinados por mafiosos em
decorrência da investigação), o grande processo contou com um ilustre colaborador,
454 ITÁLIA. Legge 14 ottobre 1974, nº 497. Disponível em: <http://goo.gl/P41KXR> Acesso em 1º de maio de 2018. 455 ITÁLIA. Decreto-legge 15 dicembre 1979, nº 625. Disponível em: <http://goo.gl/iaD4Fp> Acesso em 1º de maio de 2018. 456 ITÁLIA. Legge 13 settembre 1982, nº 646. Disponível em: <http://goo.gl/xqPsVu> Acesso em 1º de maio de 2018. 457 ITÁLIA. Legge 15 marzo 1991, nº 82. Disponível em: <http://goo.gl/teYJnh> Acesso em 1º de maio de 2018. 458 ITÁLIA. Legge 12 Iuglio 1991, nº 203. Disponível em: <http://goo.gl/W33jBC> Acesso em 1º de maio de 2018. 459 Como assevera Musco: “La atenuación de la pena es bastante relevante: la pena de cadena perpetua es sustituida por la reclusión de doce a veinte años y las otras penas se rebajan de un terceio a la mitad.” (MUSCO, Enzo. Los colaboradores de la justicia entre el pentitismo y la calumnia: problemas y perspectivas. Revista Penal, Valencia, nº 2, p. 35-47, jul. 1998. Disponível em: <http://201.23.85.222/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=23380>. Acesso em 12 de março de 2018. 460 Musco exemplifica: “el acogimiento a preba bajo el control del servicio social, así como las autorizaciones y la detención domiciliaria. A todos aquellos que colaboran con la justicia – incluso si la colaboración se presta después de la condena – pueden concedérseles los beneficios penitenciarios, de otro modo prohibidos por el artículo 4 bis, apartado 1, parte primera, del ordenamiento penal.” (Ibidem, p. 37) 461 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto, A colaboração premiada..., 2014, p. 37. 462 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada..., 2010, p. 17. 463 CHEMIM, Rodrigo. Mãos Limpas e Lava Jato. A corrupção se olha no espelho. Um guia comparativo das duas maiores investigações de crimes de corrupção sistêmica na Itália e no Brasil. Porto Alegre: CDG, 2017. P. 52.
103
o “chefão mafioso Tommaso Buscetta”464, que havia sido capturado no Brasil em
1982 e, posteriormente, extraditado à Itália. Centenas de réus envolvidos com a
máfia foram julgados e condenados em razão das provas obtidas por aquela (e
outras) colaborações.
Alguns anos depois, em 1992 – já em curso o que Musco chama de “um
sistema orgânico de incentivos para a colaboração e a proteção para os
colaboradores e seus familiares em risco”465, foi instaurada a chamada Operação
Mãos-Limpas (Mani Pulite), sob a liderança do Procurador da República Antonio Di
Pietro, que apurou esquema de corrupção massivo, envolvendo políticos, partidos
políticos e petroleiras (em dinâmica similar à verificada na Operação Lava Jato,
como é profundamente analisado no estudo de Chemim466) e também obteve grande
êxito em relação às condenações.
Em 2001, como explica Bittar, o regime de colaboração premiada da Itália foi
profundamente reformado, visando a corrigir “alguns aspectos críticos e distorções
que a práxis demonstrava na aplicação das normas referentes aos colaboradores da
justiça e, ainda, para se adequar ao princípio do ‘justo processo’”467, o que foi feito
por meio das Leis nº 45, de 13 de fevereiro de, e 63, de 1º de março daquele ano.
As alterações promovidas que mais importam, salvo melhor juízo, para o presente
estudo são as seguintes: a) “para garantir a transparência na gestão dos
colaboradores”468, criou-se o chamado “verballe illustrativo", que é basicamente o
termo formal (“resumo verbal e documentação integral mediante registro fonográfico
ou audiovisual”469 ) que encerra o âmbito de declarações do colaborador e que
deverá ser levado ao contraditório – utilizado para evitar as mudanças de versões do
pentito que não estivesse satisfeito com os benefícios obtidos; b) a limitação ao
direito ao silêncio nos debates em juízo, permitindo-se ao colaborador que apenas
se calasse quanto a fatos que também o implicassem; c) “distinção (e
independência) entre o momento tutório (medidas de proteção concedidas pela
Administração) e os momentos premiais (atenuantes da pena e benefícios
464 CHEMIM, Rodrigo. Mãos Limpas..., 2017, p. 52. 465 MUSCO, Enzo, Los colaboradores..., 1998, p. 36. Tradução livre. Do original: “un sistema orgánico de incentivos para la colaboración y la protección para los colaboradores y sus familiares de riesgo”. 466 CHEMIM, op. cit., 2017. 467 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada..., 2010, p. 20. 468 Ibidem, p. 21. 469 Ibidem, p. 21.
104
penitenciários concedidos pelo juiz)” 470 , para que apenas o colaborador preso
pudesse “gozar antecipadamente dos benefícios penitenciários (se condenado) e de
um tratamento cautelar de favor (se ainda acusado ou condenado com a sentença
não definitiva)”471. Quanto a esse último aspecto, os benefícios de alteração da
situação prisional passaram a somente ser concedidos, ou quando o colaborador já
tivesse cumprido “um certo período da pena”472 (em caso de réu condenado), ou
“quando o juiz verifica que não subsiste atual ligação entre o colaborador e a
criminalidade mafiosa ou terrorista” (em caso de custodia cautelar)473.
O modelo italiano de justiça negocial, porém, não é imune a severas críticas.
Davigo, que foi um dos procuradores da força-tarefa da Operação Mãos-Limpas e
hoje é presidente da seção criminal da Corte Suprema de Cassação italiana,
compara o instituto da delação premiada italiana com o modelo do plea bargaining
norte-americano, evidenciando notáveis diferenças práticas entre ambos. Segundo o
autor, no sistema dos Estados Unidos da América, que é “’realmente’ acusatório”474,
a declaração de culpa pelo autor do fato traz uma segurança do cumprimento da
pena que não existe na Itália. Nesse país, há um conflito entre os julgamentos
decorrentes de barganha e as garantias constitucionais que asseguram que “contra
os julgamentos e contra as disposições restritivas da liberdade pessoal, o recurso ao
Supremo Tribunal é sempre admitido”475. Com isso, cria-se um risco de prescrição
mediante uma negociação que remova “o máximo possível o dia em que a sentença
será executada”476.
Em suas conclusões, Davigo afirma que “os países anglo-saxões, pelos quais
somos inspirados, são caracterizados por fortes veias calvinistas, mais sensíveis à
expiação do que ao perdão, portanto, países com ética rigorosa e aparato judicial
intransigente” 477. Na Itália, porém, por se tratar de um país de “tradição católica,
470 BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada..., 2010, p. 23. 471 Ibidem, p. 24. 472 Ibidem, p. 24. 473 Ibidem, p. 25. 474 DAVIGO, Piercamillo; SISTI, Leo. Processo All’Italiana. Bari: Editori Laterza, 2015 (edição digital). Tradução livre. Do original: “Torniamo agli Stati Uniti, dove il processo è ‘veramente` acusatório.” 475 Ibidem. Tradução livre. Do original: “contro le sentenze e contro I provvedimenti limitativi della libertà personale è sempre ammesso il ricorso por Cassazione”. 476 Ibidem. Tradução livre. Do original: “il più possible il giorno in cui la sentenza sarà eseguita”. 477 Ibidem. Tradução livre. Do original: “I paese anglosassoni, ai quali ci si è inspirati, sono caratterizzati da forti venature calviniste, più sensibili all’espiazione che al perdono, quindi paesi con etiche rigorose e apparato giudiziario intransigente”.
105
mas secularizado” 478 com efeitos devastadores, criou-se sistema de “indulgência
plenária” 479, que permite anistias, mas dispensa o arrependimento, causando “uma
justiça muitas vezes branda” 480. Enquanto, nos Estados Unidos, o indivíduo que
aceita a barganha, que sabe que pode ser condenado pelo Juiz e considera
conveniente aproveitar de imediato as vantagens, não teria interesse em perder
tempo, na Itália, ocorreria exatamente o oposto, com a realidade da prescrição
sempre presente481.
Por fim, Davigo considera que “um processo acusatório é incompatível com o
processo criminal obrigatório, o que implica que o juiz controla a atividade do
Ministério Público e deve compensar sua inação”482. Por outro lado, acrescenta o
autor, “a ação criminal discricionária implica que o costume público impede que
aqueles que são investidos de responsabilidades públicas usem essa discrição de
maneira não-imparcial”483.
Como alertou Chemim em seu estudo comparativo entre as operações Lava
Jato e Mãos Limpas, há comparativos (bons e ruins) entre os sistemas brasileiro e
italiano que não podem ser ignorados. Possivelmente, a consideração final de
Davigo seja indicativa de um problema que também se possa verificar no Brasil – e
que será estudado adiante.
478 DAVIGO, Piercamillo. Processo All’Italiana, 2015. Tradução livre. Do original: “tradizione cattolica, ma secolarizzato”. 479 Ibidem. Tradução livre. Do original: “indulgenza plenaria”. 480 Ibidem. Tradução livre. Do original: “una giustizia molto spesso blanda”. 481 Ibidem.. 482 Ibidem. Tradução livre. Do original: “un processo accusatorio è incompatibile con l’azione penale obbligatoria, la quale comport ache il giudice controlli l’attività del PM e debba supplier alla sua inerzia.”. 483 Ibidem. Tradução livre. Do original: “l’azione penale discrezionale implica che il constume pubblico impedisca a chi è investito di responsabilità politiche un uso di tale discrezionalità in modo non imparziale”.
106
3 A COLABORAÇÃO PREMIADA DA LEI Nº 12.850/2013
Compreendidos a estrutura principiológica pré-colaboração premiada (no que
diz respeito aos princípios que serão analisados na dinâmica posterior) e os
fundamentos que a sustentam nas múltiplas áreas relacionadas, passa-se ao estudo
do instituto, propriamente dito. Inicialmente, é necessária uma análise de sua origem
no sistema penal e processual penal brasileiro; na sequência, será aprofundado o
estudo da colaboração premiada sob a égide da Lei nº 12.850/2013.
3.1 AS CONVENÇÕES DE PALERMO E MÉRIDA
A Lei nº 12.850/2013 não se apresenta como um marco inovador de política
criminal na regulamentação da colaboração premiada. Trata-se, na verdade, de
diploma aprovado “quase dez anos após a ratificação pelo Brasil da Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional”484, como bem lembra
Bechara. A referida convenção internacional (também denominada Convenção de
Palermo, que é a cidade na qual foi inicialmente assinada) foi adotada pela
Assembleia Geral da ONU em Nova Iorque de 15 de novembro de 2000 e entrou em
vigor internacional em 29 de setembro de 2003.
No Brasil, foi promulgada por meio do Decreto nº 5.015, de 12 de março de
2004485 , e prevê, em seu artigo 26, uma série de “medidas para intensificar a
cooperação com as autoridades competentes para a aplicação da lei”486, dentre as
quais as seguintes merecem transcrição:
1. Cada Estado Parte tomará as medidas adequadas para encorajar as pessoas que participem ou tenham participado em grupos criminosos organizados: a) A fornecerem informações úteis às autoridades competentes para efeitos de investigação e produção de provas, nomeadamente i) A identidade, natureza, composição, estrutura, localização ou atividades dos grupos criminosos organizados;
484 BECHARA, Fábio Ramazzini. Colaboração processual: legalidade e valor probatório. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 23, nº 269, abril/2015, p. 6. 485 BRASIL. Decreto nº 5.015, de 12 de marco de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Disponível em <http://goo.gl/rd2DCo> Acesso em 12 de março de 2018. 486 Ibidem.
107
ii) As conexões, inclusive conexões internacionais, com outros grupos criminosos organizados; iii) As infrações que os grupos criminosos organizados praticaram ou poderão vir a praticar; b) A prestarem ajuda efetiva e concreta às autoridades competentes, susceptível de contribuir para privar os grupos criminosos organizados dos seus recursos ou do produto do crime. 2. Cada Estado Parte poderá considerar a possibilidade, nos casos pertinentes, de reduzir a pena de que é passível um argüido que coopere de forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma infração prevista na presente Convenção. 3. Cada Estado Parte poderá considerar a possibilidade, em conformidade com os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico interno, de conceder imunidade a uma pessoa que coopere de forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma infração prevista na presente Convenção.487
Formalmente internalizada pelo Brasil, as disposições da Convenção de
Palermo tornaram-se integrantes do direito pátrio, com evidentes reflexos no Direito
Processual Penal brasileiro.
Outro diploma internacional relevante para a compreensão da introdução da
colaboração premiada no Brasil é a Convenção das Nações Unidas contra a
Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de
2003 e aberta para assinatura a todos os Estados entre 9 e 11 de dezembro de 2003
na cidade de Mérida, México (não por outro motivo sendo chamada de Convenção
de Mérida). O Brasil aderiu à Convenção no primeiro dia de abertura, tendo-a
ratificado em 15 de junho de 2005, por meio do Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro
de 2006 (pouco após sua entrada em vigor internacional, em 14 de dezembro de
2005)488.
No texto da referida convenção, há a previsão, no artigo 33, da “Proteção aos
denunciantes”489, estabelecendo-se que
Cada Estado Parte considerará a possibilidade de incorporar em seu ordenamento jurídico interno medidas apropriadas para proporcionar proteção contra todo trato injusto às pessoas que denunciem ante as autoridades competentes, de boa-fé e com motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados com os delitos qualificados de acordo com a presente Convenção.490
487 BRASIL. Decreto nº 5.015..., 2004. 488 BRASIL. Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003. Disponível em <http://goo.gl/JgTpo2 > Acesso em 12 de março de 2018. 489 Ibidem. 490 Ibidem, 2006.
108
Claramente, percebe-se a literalidade da Convenção quanto ao incentivo que
faz do uso de instrumentos de persecução penal que envolvem a participação de
investigados e réus colaboradores. É nesse cenário em que se insere a colaboração
premiada instituída pela Lei nº 12.850/2013.
O referido diploma, além de se amoldar (como será adiante detalhado) ao
disposto na convenção, também trouxe regulação ajustada “ao padrão de
conformidade reconhecido pela Associação Internacional de Direito Penal, por
ocasião do Colóquio Preparatório do XVIII Congresso Internacional de Direito Penal,
realizado em Pula, na Croácia, de 6 a 9 de novembro de 2008”491. Tais padrões,
segundo Bechara, deveriam atender a “exigências de duas ordens: legalidade e
presteza ou utilidade” 492 . Quanto à primeira, três condições deveriam ser
observadas: a reserva legal em sentido estrito (a colaboração deve estar prevista em
lei), a subsidiariedade (“a colaboração deverá ser empregada na ausência de outros
meios legais menos restritivos” 493) e a proporcionalidade (“a colaboração somente
deverá ser utilizada nos crimes graves e deverá ser proporcional ao objetivo
perseguido494”).
Diferentemente das previsões legislativas anteriores do instituto (desde suas
vertentes mais singelas, com as simples reduções de pena da Lei nº 9.034/95, até
as mais elaboradas, como os acordos oriundos da Lei nº 9.807/99), Bechara
sustenta que “a Lei 12.850 regulou o instituto da colaboração processual de forma
detalhada e coerente com as garantias do processo justo” 495, o que teria feito por
três vertentes: a) em primeiro lugar, o instituto estaria corretamente qualificado como
um “meio de obtenção de prova e não um meio de prova”496; b) em segundo, a lei
teria assegurado “transparência no ato aos interessados” 497, impondo “o controle
jurisdicional posterior e não simultâneo ao acordo, e, principalmente, exigindo a
491 BECHARA, Fábio Ramazzini. Colaboração processual..., 2015, p. 7. 492 Ibidem, p. 7. 493 Ibidem, p. 7. 494 Ibidem, p. 7. 495 Ibidem, p. 7. 496 Ibidem, p. 7. 497 Ibidem, p. 7.
109
assistência do colaborador por defensor” 498; c) por fim, “assegurou ao colaborador a
possibilidade da retratação, de modo a respeitar sua autodefesa”499.
Bechara sustentou, em 2015 (logo, antes da profusão de acordos
celebrados), que
No que se refere às exigências de proporcionalidade no emprego da medida, tem-se que a Lei 12.850/2013 se qualifica como seletiva e criteriosa. É seletiva na medida em que a sua incidência abrange tão somente o tipo penal do crime de organização criminosa e infrações penais correlatas, cuja gravidade e potencial de lesividade dispensam maiores comentários a respeito. É igualmente criteriosa a lei, uma vez que além de estabelecer as hipóteses de cabimento, define claramente quem tem legitimidade, o procedimento e o momento processual cabível. Em suma
não há a banalização e o uso indiscriminado da medida. 500
Tais assertivas são bastante otimistas para um instituto tão questionado como
é a colaboração premiada da Lei nº 12.850/2013, mas justificam-se, é verdade, pelo
descompasso entre sua apresentação pelo autor e a prática forense do instituto –
que é, justamente, o objetivo deste estudo. Com efeito, passa-se a analisar a
evolução legislativa da colaboração premiada no Brasil, após a adoção das
convenções de Palermo e Mérida, até que se adentre à própria lei que titula este
capítulo.
3.2 A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA ANTECEDENTE
A colaboração, enquanto instrumento prático não previsto em lei, esteve
presente na história brasileira em momentos notórios: desde as Ordenações
Filipinas501, passando pela formulada por Joaquim Silvério dos Reis em detrimento
de Joaquim José da Silva Xavier, que acabou enforcado e esquartejado em 21 de
abril de 1792, até os expedientes usuais de obtenção de provas do Regime Militar
de 1964-1985.
Após a redemocratização, porém, alguns anos foram necessários ao
desenvolvimento do que hoje é a colaboração premiada da Lei nº 12.850/2013, que
498 BECHARA, Fábio Ramazzini. Colaboração processual..., 2015, p. 7. 499 Ibidem, p. 7. 500 Ibidem, p. 7. 501 BRASIL. Código Philippino, ou, Ordenações e leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado d’El-Rey D. Philippe I. 1870. Disponível em: <http://goo.gl/j8vnMS> Acesso em 22 de abril de 2018.
110
foi especialmente influenciada pelas Convenções de Palermo e Mérida acima
mencionadas.
Não obstante, é certo que a ideia do direito penal premial (que é o gênero do
qual a colaboração premiada é espécie) há muito está inserida no ordenamento
brasileiro. Como exemplo, podem-se citar os artigos 15, 16 e 65, III, d, do Código
Penal, que preveem benefícios penais para os agentes que, de forma voluntária,
contribuem com a Justiça, seja durante a execução do crime (nos casos da
desistência voluntária e do arrependimento eficaz), seja após (no caso do
arrependimento posterior e da confissão espontânea). Em todas as situações do
Código Penal, há a previsão de um benefício para o agente que facilita a apuração
de crimes, em um aceno ao que atualmente se pode formalizar por meio de um
acordo.
Instrumentos mais afeitos ao que hoje se tem como colaboração premiada, na
forma de simples causa especial de diminuição de pena, porém, passaram a ser
introduzidos muito posteriormente à edição dos Códigos Penal e de Processo Penal
dos anos quarenta do século passado.
3.2.1 A LEI Nº 8.072, DE 25 DE JULHO DE 1990
Antes de um movimento de política criminal de combate à criminalidade
organizada, a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 trouxe, em seu artigo 7º, a
introdução do artigo 159, §4º do Código Penal para que, no crime de extorsão
mediante sequestro, quando o delito fosse “cometido por quadrilha ou bando, o co-
autor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua
pena reduzida de um a dois terços”502. Também previu a lei, em seu artigo 8º,
parágrafo único, que, “o participante e o associado que denunciar à autoridade o
bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de
um a dois terços”503.
502 BRASIL. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em <http://goo.gl/MfA8jm > Acesso em 12 de março de 2018. A inovação no Código Penal foi posteriormente alterada textualmente pela Lei nº 9.269, de 2 de abril de 1996, que estabeleceu o benefício nos seguintes termos: “se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços” (BRASIL. Lei nº 9.269, de 2 de abril de 1996. Dá nova redação ao § 4° do art. 159 do Código Penal. Disponível em <http://goo.gl/zzstEJ > Acesso em 12 de março de 2018.) 503 BRASIL. Lei nº 8.072..., 1990.
111
Cordeiro faz duas considerações precisas sobre o instituto: a) em primeiro
lugar, sustenta que “já se vê nessa primeira norma de retorno brasileiro ao instituto
da delação a possibilidade deste ato não somente pelo participante (autor ou
partícipe), como também de seu associado, termo que se compreende como a
indicar colaboradores diversos, antes ou após o crime”504; b) ademais, afirma que “a
generalidade do termo denunciar à autoridade faz compreender como destinatária
das informações tanto a autoridade policial como a judiciaria”505, assim como o
Ministério Público. Como requisito para o benefício do artigo 8º, o autor esclarece
que “não faz a lei exigências de espontaneidade ou voluntariedade, o que não afasta
a lógica desta, pois a delação pressionada não possui valor jurídico”506, e que “o
resultado de desmantelamento da quadrilha é exigido para incidência do favor
legal”507. Quanto, porém, ao benefício inserido no artigo 159, a lei não fez essa
exigência, já que “previu como resultado necessário que as notícias do sequestro
trazidas pelo confidente facilitassem a libertação do sequestrado”508.
3.2.2 A LEI Nº 9.034, DE 3 DE MAIO DE 1995
Na sequência, a primeira lei especial que tratou de métodos especiais de
prevenção e repressão de crimes praticados por organização criminosa (antes que
se tivesse, é verdade, um adequado conceito de organização criminosa – tanto que
a própria lei apenas referia, inicialmente, “crime resultante de ações de quadrilha ou
bando”509) foi a de nº 9.034, de 3 de maio de 1995. O artigo 6º da referida lei previa
que “nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um
a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento
de infrações penais e sua autoria” 510 , em um verdadeiro ensaio a outro dos
benefícios aplicáveis ao colaborador processual reconhecido pela Lei nº
12.850/2013 (que, aliás, revogou a Lei nº 9.034/1995).
504 CORDEIRO, Néfi. Delação premiada na legislação brasileira. Revista da AJURIS, v. 37, n. 117, marco/2010. Disponível em <http://goo.gl/dpRVDM> Acesso em 12 de março de 2018. 505 Ibidem. 506 Ibidem. 507 Ibidem. 508 Ibidem. 509 BRASIL. Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995. Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Disponível em <http://goo.gl/Jpc7Ut> Acesso em 12 de março de 2018. 510 Ibidem.
112
Cordeiro ressalta a indicação da “espontaneidade da delação”, a qual
tecnicamente indicaria a “sincera conduta, sponte própria realizada, assim
diferenciando-se da voluntariedade, onde o ato pode acontecer por provocação de
terceiros, mas sempre decorrerá das opções do agente, que não as tem impedidas
por coação”511. Acontece que, assim como na circunstância atenuante da confissão
espontânea, “doutrina e jurisprudência têm admitido como suficiente sua
voluntariedade” 512. Com efeito, a causa de diminuição de pena da Lei nº 9.034/95
deveria ser “regulada pela regra da utilidade do ato e não pela conduta do
agente”513, importando “se a colaboração atingiu o resultado exigido”514, qual seja o
esclarecimento de infrações penais e sua autoria.
3.2.3 A LEI Nº 9.080, DE 19 DE JULHO DE 1995
No mesmo ano da Lei nº 9.034/95, foi promulgada a Lei nº 9.080, de 19 de
julho de 1995515, que alterou as Leis nº 7.492/86 (que define os crimes contra o
Sistema Financeiro Nacional) e 8.137/90 (que define os crimes contra a ordem
tributária, econômica e contra as relações de consumo) para que se fizesse constar,
respectivamente, em seus artigos 25, § 2º, e 16, parágrafo único, a previsão de que,
nos crimes previstos nas referidas leis, “cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-
autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial
ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços”516.
Por revelação entende-se, segundo Cordeiro, não a compreensão de “noticiar fatos
desconhecidos, mas sim (...) como sinônimo de explicitar, noticiar toda a trama do
crime financeiro ou tributário”517.
Diferentemente do que ocorreu nas leis anteriores, as alterações promovidas
pela Lei nº 9.080/95 não exigiram “como resultado de eficácia consequências no
511 CORDEIRO, Néfi. Delação premiada..., 2010. 512 Ibidem. 513 Ibidem. 514 Ibidem. 515 BRASIL, Lei nº 9.080, de 19 de julho de 1995. Acrescenta dispositivos às Leis nºs 7.492, de 16 de junho de 1986, e 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Disponível em <http://goo.gl/RRxaeZ > Acesso em 12 de março de 2018. 516 BRASIL. Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986. Define os crimes Disponível em <http://goo.gl/Tgys65 > Acesso em 12 de março de 2018; e BRASIL. Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/kYhyhC > Acesso em 12 de março de 2018. 517 CORDEIRO, op. cit., 2010.
113
mundo dos fatos”518, como o desmantelamento da quadrilha ou a libertação do
sequestrado. Não obstante, exigiu-se, no texto legal, a “revelação de toda a
trama”519, não cabendo o benefício para aquele que “informa tudo o que sabe, mas
que é insuficiente à demonstração da completa cadeia de fatos e agentes envolvidos
no crime tributário ou financeiro”520.
3.2.4 A LEI Nº 9.613, DE 3 DE MARÇO DE 1998
A Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, que “dispõe sobre os crimes de
‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores”521, trouxe, em seu artigo 1º, §5º,
a previsão de redução de um a dois terços da pena, a ser cumprida em regime
aberto, “podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por
pena restritiva de direitos” 522 , se o “autor, coautor ou partícipe colaborar
espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à
apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização de bens direitos ou
valores objeto do crime”523.
Na Lei de Lavagem, inovou-se em relação à legislação anterior, com a
previsão (não nominada) do perdão judicial, do cumprimento de regime aberto,
independentemente da pena cominada, e da substituição da pena privativa de
liberdade por restritiva de direitos. Como leciona Cordeiro, “o resultado exigido é
alternativamente a apuração das infrações penais e sua autoria, ou a localização do
patrimônio do crime de lavagem de capitais”524, cabendo o benefício não apenas ao
delator (como aquele que indica a autoria de terceiros), como também ao réu
confesso que aponta, de forma eficaz, a localização dos bens. Cordeiro ressalta,
ainda, que “pode a delação ser parcial e até tendenciosa na escolha dos fatos
revelados”525, desde que efetivamente indique “novos caminhos”526 que levem às
autoridades à completa apuração dos fatos.
518 CORDEIRO, Néfi. Delação premiada..., 2010. 519 Ibidem. 520 Ibidem. 521 BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/qp37jw > Acesso em 12 de março de 2018. 522 Ibidem. 523 Ibidem. 524 CORDEIRO, op. cit., 2010. 525 Ibidem.
114
Ainda que a Lei nº 9.613/98 tivesse incrementado o regime de benefícios aos
réus colaboradores, é de se perceber que, ao contrário do que ocorre com a
colaboração premiada celebrada por meio de um acordo, nas previsões legais acima
referidas, o benefício exercia uma função bem definida na dosimetria da pena: trata-
se de uma confissão espontânea (com ou sem a indicação da autoria de terceiros)
que, ao contrário da circunstância atenuante do artigo 65, III, d, do Código Penal,
funciona como causa especial de redução de pena – incidindo sobre a dosimetria de
forma mais impactante. Nos casos acima apresentados, a colaboração somente
seria reconhecida na sentença e após a sua condenação – sem que a lei fornecesse
qualquer margem para discussão da aplicação do benefício em outros momentos do
processo. Mais recentemente, a Lei de Drogas (Lei nº 11.343, de 23 de agosto de
2006527) passou a prever benefício semelhante, com a expressa menção à sua
aplicação em caso de condenação.
3.2.5 A LEI Nº 9.807, DE 13 DE JULHO DE 1999
A Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999528, por sua vez, foi o primeiro diploma
nacional que fundamentou a colaboração mediante acordo formal entre as partes
para a obtenção de prova, com a previsão legal do benefício do perdão judicial para
o acusado que prestasse informações efetivas e voluntárias para a investigação e o
processo criminal. O capítulo II da mencionada lei trouxe duas hipóteses de
aplicação de benefícios aos agora chamados “réus colaboradores”529: a) o artigo 13
prevê a possibilidade (“poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes” 530) de
concessão de perdão judicial e extinção de punibilidade do acusado primário que
colabore efetiva e voluntariamente com a investigação e, necessária e
526 CORDEIRO, Néfi. Delação premiada..., 2010. 527 BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/ve6rCZ > Acesso em 12 de março de 2018. 528 BRASIL. Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999. Estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal. Disponível em <http:// goo.gl/dqB5pz> Acesso em 12 de março de 2018. 529 Ibidem. 530 Ibidem.
115
alternativamente, identifique os demais coautores e partícipes do crime, localize a
vítima com a sua integridade física preservada ou recupere o produto do crime; b)
por sua vez, o artigo 14 prevê a obrigatória redução de pena (“terá pena reduzida de
um a dois terços”531), na sentença condenatória, para o colaborador voluntário – sem
menção aqui à efetividade da colaboração.
Ou seja, de acordo com o texto legal, quando houvesse colaboração
voluntária e efetiva, com os resultados previstos nos incisos do artigo 13, caberia ao
juiz a concessão do benefício máximo do perdão judicial; quando a colaboração não
fosse necessariamente efetiva, não levasse à localização de vítima com a
integridade física preservada ou quando o juiz não entendesse pela pertinência da
extinção da punibilidade (já que, no artigo anterior, há a expressão “poderá”),
deveria haver a aplicação da causa especial de diminuição de pena.
Cordeiro segue posicionamento diverso, entendendo que a redução de pena
também dependerá de resultados efetivos (embora a lei não preveja tal requisito),
incidindo o disposto no artigo 14 apenas quando a vítima não for localizada com sua
integridade preservada ou quando o produto do crime não é integralmente
recuperado (porque consumido ou perdido) 532 . Para o autor “a escolha entre o
perdão judicial e a minorante (de um a dois terços) é definida pela lei, que rejeita o
favor maior quando não se trate de agente primário, ou quando desfavoráveis
circunstâncias do agente (...) ou do crime (...) ou quando a vítima seja salva viva,
mas com a integridade física atingida”533. Embora a interpretação seja válida e siga a
lógica dos demais diplomas que trataram do benefício aos colaboradores, discorda-
se em razão da opção legislativa de afastar o requisito da efetividade no artigo 14.
O diploma ainda traz, em seu bojo, a previsão de medidas de proteção ao
colaborador encarcerado, como a custódia cautelar em dependência separada dos
demais presos (artigo 15, §1º) e a aplicação de “medidas especiais que
proporcionem a segurança do colaborador em relação aos demais apenados”534
(artigo 15, §3º).
A rigor, a Lei nº 9.807/1999 não previa a possibilidade de celebração de um
acordo formal entre acusação e defesa para a colaboração do acusado ou
investigado, com a previsão textual dos benefícios que poderiam vir a ser aplicados.
531 BRASIL. Lei nº 9.807...,1999. 532 CORDEIRO, Néfi. Delação premiada..., 2010. 533 Ibidem. 534 BRASIL, op. cit.,1999.
116
Mas o fato de se submeter a possibilidade de concessão do benefício ao magistrado
“a requerimento das partes”535 e a omissão da lei quanto ao momento de concessão
do perdão judicial (não havendo menção no texto legal à sua aplicação
necessariamente na sentença) deram ensejo à prática forense que foi
posteriormente, com a Lei nº 12.850/2013, formalmente estabelecida.
Com efeito, a partir desse diploma, alguns Juízes passaram a homologar
acordos de colaboração celebrados entre o Ministério Público e os acusados, em
moldes semelhantes ao que se verifica atualmente. Aras reconhece que, a partir da
Lei nº 9.807/1999, inaugurou-se, em 2003, uma “praxe”536 no Ministério Público
Federal do Paraná de realizar “acordos de delação inteiramente clausulados”537, no
que foi seguido por todo o Brasil. Ainda que tenha frisado que se tratava de atividade
criticada, o autor assevera a admissão da atividade pelo “direito pretoriano”, seja
incidentalmente (como, por exemplo, pelo STF, na Ação Penal 470 538 ) ou
diretamente (no TRF-4, na Correição Parcial nº 2009.04.00.035046-4/PR539). Não
obstante, as formalidades ainda eram absolutamente cinzentas.
O Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba (ainda identificada como 2ª Vara
Federal Criminal de Curitiba) foi um dos pioneiros na utilização da colaboração
processual em grandes operações da Polícia Federal e do MPF, como no rumoroso
Caso Banestado. Em sua obra, o Juiz Sérgio Moro consignou a discricionariedade
verificada na aplicação da Lei nº 9.807/99 e a falta de critérios legais para a
utilização do instrumento contratual do acordo – sem, porém, deixar de defender a
resolução prática dos conflitos e questionamentos procedimentais quanto à sua
celebração:
A concessão de tais benefícios é indissociável da realização de certo juízo discricionário quanto à oportunidade e à conveniência da colaboração. Ilustrativamente, não se vislumbra interesse da Justiça na realização de acordo de colaboração com o chefe do grupo criminoso, mesmo que este se disponha a identificar todos os seus comandados, o que preencheria, em tese, a hipótese do art. 13, I, da Lei n. 9.807/99. Da mesma forma, não se vislumbra motivo para a concessão do benefício a um criminoso, mesmo
535 BRASIL. Lei nº 9.807...,1999. 536 ARAS, Vladimir. A investigação criminal na nova lei de lavagem de dinheiro. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 20, nº 237, agosto/2012, p. 6. 537 Ibidem, p. 6. 538 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal nº 470. Questão de Ordem nº 3. Relator Ministro Joaquim Barbosa. Julgado em 23 de outubro de 2008. 539 BRASIL. Rio Grande do Sul. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Correição Parcial nº 2009.04.00.035046-4/PR. Relator Desembargador Federal Néfi Cordeiro. Julgado em 3 de setembro de 2009.
117
quando este tenha revelado a localização do produto do crime, o que preencheria a hipótese do art. 13, I, da Lei n. 9.807/99, se essa descoberta se mostrasse inevitável no curso da investigação, ou seja, se ocorresse mesmo sem a colaboração, ainda que levasse um pouco mais de tempo.540
Evidentemente, o posicionamento do autor e Magistrado encontrava extrema
resistência na doutrina e na advocacia, sobretudo diante de situações práticas que
claramente afetavam o exercício de defesa. Exemplos eram os reinterrogatórios
realizados após a secreta (para a defesa) celebração do acordo, nos quais o corréu
colaborador, ainda falando formalmente como um acusado comum, confessava os
crimes e delatava os codenunciados. Sua palavra era tomada como elemento de
prova e os delatados eram condenados. Moro refutava as críticas, sob o argumento
de que “somente quem tem conhecimento sobre a atividade criminal, com condições
de providenciar informações ou provas relevantes são, em geral, os próprios
criminosos”541.
Outro problema da dinâmica informal adotada com a celebração dos acordos
extraía-se da falta de um standard procedimental. Além do Juízo da 13ª Vara
Federal de Curitiba, a 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, regida pelo então Juiz
Federal Fausto Martin De Sanctis, também fez uso recorrente da colaboração
premiada. A forma de celebração dos acordos era bastante distinta, como o próprio
magistrado explica, à luz do procedimento adotado nos Estados Unidos da América:
Quando um plea agreement contempla a dispensa de acusações ou o comprometimento de não investigar determinado fato, o juiz somente o aceitará se as acusações que remanescerem corresponderem adequadamente à seriedade do comportamento ilícito e se a aceitação do acordo não enfraquecer os propósitos da sentença ou for em direção oposta às diretrizes definidas para esta última. (...) Tal entendimento foi adotado pela 6ª Vara Federal Criminal paulista, antes mesmo de tomar conhecimento do modelo americano, pois entendeu-se que não se pode, no momento da prolação de sentença, limitar a independência judicial que confere ao magistrado poderes para melhor avaliar todos os elementos probatórios a fim de entregar a tutela jurisdicional mais adequada no caso concreto.542
Ao contrário da dinâmica verificada em Curitiba, na qual era firmado “um
verdadeiro contrato com o increpante”543, transferindo ao colaborador, na opinião de
540 MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 110-111. 541 Ibidem, p. 110-111. 542 SANCTIS, Fausto Martin de. Crime organizado..., 2015, p. 203. 543 Ibidem, p. 196.
118
Sanctis, “o poder de decidir o que vai falar, até onde pode ir com a delação já no
início”544, o referido magistrado realizava uma audiência sigilosa com o Ministério
Público Federal e o acusado “para demonstrarem o que desejam com a delação”545.
Com efeito, o juízo não homologava um acordo, mas “o procedimento para os fins
almejados, saindo o delator com o compromisso de revelar os fatos e outros
eventuais existentes”546, e não apenas com os benefícios almejados.
Independentemente de quem adotava um modelo mais correto e adequado
ao devido processo legal (havendo possíveis críticas a ambos: de um lado, havia,
nos acordos de Curitiba, possíveis violações ao direito de defesa – que ainda se
verificam no modelo atual; de outro, em São Paulo, havia um possível descompasso
com a imparcialidade do Juiz, que se imiscuía na prova antes da fase do
contraditório), é certo que a Lei nº 9.807/99 permitiu a obtenção de efetivos
resultados com os acordos nela previsto, como ocorreu no Caso Banestado, em
Curitiba 547 . No entanto, as incertezas quanto à legalidade dos procedimentos
adotados tornaram evidente a necessidade de uma melhor disciplina do instituto.
3.2.6 A LEI Nº 12.683, DE 8 DE JULHO DE 2012
Antes da promulgação da Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013548, outro
diploma trouxe inovações ao direito premial brasileiro. Trata-se da Lei nº 12.683, de
8 de julho de 2012, que alterou o regime de benefícios ao acusado colaborador
trazido pela Lei nº 9.613/1998 acima analisada. Basicamente, como observa Aras, o
legislador promoveu uma “disciplina tímida” 549 ao que o autor denominava
544 SANCTIS, Fausto Martin de. Crime organizado..., 2015, p. 203. 545 Ibidem, p. 204. 546 Ibidem, p. 204. 547 Cabe comentar que, em São Paulo, a Operação Castelo de Areia, inicialmente conduzida perante o Juízo da 6ª Vara Federal Criminal, foi anulada em razão de ilicitude de provas. Conforme se reconheceu, houve a utilização de uma denúncia anônima – que, na verdade, foi apresentada paralelamente a uma colaboração em andamento e em relação à qual não se pretendia a publicidade – para embasar quebras de sigilo telefônico e de dados. HAIDAR, Rodrigo. STJ decide que operação Castelo de Areia foi ilegal. Consultor Jurídico. 5 de abril de 2011. Disponível em <http://goo.gl/buQnnm> Acesso em 12 de março de 2018. 548 BRASIL. Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Disponível em <http://goo.gl/RpXWAh> Acesso em 12 de março de 2018. 549 ARAS, Vladimir. A investigação criminal..., 2012, p. 6.
119
“colaboração criminal processual”550, enfatizando que, embora a proposta inicial do
Senado fosse “mais ousada”551, com “uma disciplina específica para a delação, um
modus faciendi”552, houve uma clara evolução. Como observa, a nova lei trouxe a
possibilidade de “realização de delação premiada a qualquer tempo”553, inclusive
“após a decisão condenatória recorrível” 554 tanto para a lavagem de dinheiro, quanto
para os crimes antecedentes.
A partir da somatória de evoluções legislativas ao direito penal e processual
premial brasileiro, chega-se à lei que se passa a analisar. Para fins didáticos, far-se-
á, no próximo tópico, um apanhado geral da Lei nº 12.850/2013. Na sequência, será
dissecado o atual modelo de colaboração premiada.
3.3 A ESTRUTURA LEGAL
A Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013 tem por objeto a definição do
conceito de organização criminosa, “dispõe sobre a investigação criminal, os meios
de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal”555,
além de alterar o Código Penal e revogar a já mencionada Lei nº 9.034, de 3 de
maio de 1995.
No primeiro dispositivo do diploma, apresenta-se o seu conteúdo e define-se
o conceito de organização criminosa (§1º - associação de quatro ou mais pessoas
de forma “estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda
que informalmente”, cujo objetivo é “obter, direta ou indiretamente, vantagem de
qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais” com penas máximas
superiores a quatro anos, ou que possuam “caráter transnacional” 556 ), com a
indicação de figuras equiparadas em que a lei também se aplica (§2º, I e II - crimes
previstos em tratados e convenções internacionais, “quando iniciada a execução no
País”557; e organizações terroristas).
550 ARAS, Vladimir. A investigação criminal..., 2012, p. 6. 551 Ibidem, p. 6. 552 Ibidem, p. 6. 553 Ibidem, p. 6. 554 Ibidem, p. 6. 555 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 556 Ibidem. 557 Ibidem.
120
O artigo 2º traz o crime específico de promoção, constituição, financiamento
ou integração de organização criminosa, a hipótese equiparada (§1º - para aquele
que impedir ou embaraçar investigação de crime relacionado àquela), a
circunstância agravante para quem “exerce o comando” da organização (§3º) e as
causas de aumento de pena (§2º uso de arma de fogo; §4º, I - participação de
criança ou adolescente; §4º, II - concurso de funcionário público; §4º, III - destino
estrangeiro dos produtos dos crimes; §4º, IV – conexão com outras organizações
criminosas; §4º, V – transnacionalidade da organização). Nos §§5º e 6º do artigo 2º
são previstas consequências cautelares (afastamento do cargo) e penais (perda do
cargo, função, emprego ou mandato eletivo e interdição por oito anos) para
funcionários públicos. No §7º, é prevista a instauração de inquérito policial em caso
de “indícios de participação de policial nos crimes de que trata esta lei”558.
O Capítulo II da Lei nº 12.850/2013 trata da investigação e dos meios de
obtenção da prova. O artigo 3º lista os 8 (oito) meios tratados na lei, quais sejam: I –
a colaboração premiada; II – a captação ambiental de sinais eletromagnéticos,
ópticos ou acústicos; III – a ação controlada; IV – o acesso a registros telefônicos e
telemáticos, bem como a dados cadastrais em bancos de dados e informações
eleitorais ou comerciais; V – interceptação telefônica; VI – quebra de sigilos
financeiro, bancário e fiscal (os dois últimos com a indicação: “nos termos da
legislação específica” 559 ); VII – infiltração de policiais na investigação; e VIII –
cooperação entre instituições e órgãos públicos de todas as esferas para a obtenção
de provas e informações para a instrução criminal.
Finalmente, o artigo 4º passa a tratar da colaboração premiada, propriamente
dita. Os demais meios de obtenção de prova introduzidos pela Lei nº 12.850/2013
são abordados nos arts. 8 a 17 e não farão parte do presente estudo.
O caput e os 5 (cinco) incisos do referido dispositivo trazem as regras gerais
de benefícios e resultados esperados com a colaboração premiada, em redação
semelhante ao que se teria com a junção dos artigos 13 e 14 da Lei nº 9.807/99:
Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e
558 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 559 Ibidem.
121
voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.560
Algumas diferenças são notáveis, todavia: a) a lei mais recente não prevê a
possibilidade de o juiz conceder os benefícios de ofício; b) há a previsão, porém, de
substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (nos moldes do
que previu, inicialmente, a Lei nº 9.613/98); c) não há limite mínimo de redução de
pena (ao contrário do terço de todas as leis que trouxeram o benefício
anteriormente); d) 2 (dois) novos resultados permitem a concessão de benefícios (a
revelação da estrutura hierárquica e divisão de tarefas da organização e a
prevenção de novos crimes).
O §1º do artigo 4º da Lei nº 12.850/2013 prevê que a concessão dos
benefícios (ao contrário do parágrafo único do artigo 13 da Lei nº 9.807/99, que
falava apenas do perdão judicial) “levará em conta a personalidade do colaborador,
a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e
a eficácia da colaboração”561.
No §2º, há a previsão de que, “a qualquer tempo” 562, o Ministério Público e
delegado de polícia (com manifestação do parquet) poderão pleitear a concessão de
perdão judicial ao colaborador, “ainda que esse benefício não tenha sido previsto na
proposta inicial”563. Notam-se, a partir desse dispositivo, duas inovações legais: a)
em primeiro lugar, a concessão do benefício máximo poderá ser pleiteada em
qualquer momento (embora a Lei nº 9.807/99 não proibisse tal prática, não havia a
previsão expressa); b) em segundo, há a primeira menção a uma forma de contrato
entre as partes com a indicação de “proposta inicial”.
560 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 561 Ibidem. 562 Ibidem. 563 Ibidem.
122
Os §§3º e 4º trazem dois benefícios processuais ao colaborador, quais sejam
a suspensão, até o cumprimento das medidas da colaboração, do prazo para o
oferecimento da denúncia ou do processo, por 6 (seis) meses, prorrogáveis pelo
mesmo período, com a respectiva suspensão do prazo prescricional, e a figura da
imunidade processual, consistente no não oferecimento de denúncia ao colaborador
que “I – não for o líder da organização criminosa; II – for o primeiro a prestar efetiva
colaboração nos termos deste artigo” 564.
Outra inovação premial é a previsão – e aparente limitação, como será visto
no tópico referente ao sistema de benefícios – do §5º, que estabelece a
possibilidade de redução de pena já fixada, até a metade, ou a progressão de
regime, “ainda que ausentes os requisitos objetivos”565 do Código Penal.
A partir do §6º, a Lei nº 12.850/2013 passa a tratar expressamente da figura
do acordo de colaboração premiada. Nesse dispositivo, estabelece-se que o juiz
“não participará das negociações realizadas entre as partes” 566, limitando-se essas
ao delegado de polícia (com parecer do Ministério Público), o investigado e o
defensor, ou ao Ministério Público com o acusado e seu advogado. Pela redação
legal, há uma diferenciação entre a parte “pública” do acordo a partir do momento
em que será negociado: se durante a investigação, caberia à polícia; se durante o
processo, ao Ministério Público. No tópico referente à legitimidade, será
devidamente enfrentado o tema, sobretudo no que diz respeito à controvérsia judicial
instalada quanto à participação da autoridade policial na negociação.
No parágrafo seguinte, prevê-se a fase de homologação do acordo, com a
indicação de que, “realizado o acordo na forma do §6º” 567 , será o termo,
acompanhado das declarações e de cópia da investigação, encaminhado ao juiz
para a homologação. Nessa fase, conforme estabelece o dispositivo, o magistrado
competente deverá atestar a “regularidade, legalidade e voluntariedade” 568 do
acordo, cabendo-lhe ouvir o colaborador em conjunto com seu defensor “para este
fim”569. A disciplina da homologação também será tratada em tópico próprio, tendo
em vista que as interpretações possíveis ao âmbito de análise do julgador podem
trazer repercussões ao devido processo legal (por exemplo: se a análise de
564 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 565 Ibidem. 566 Ibidem. 567 Ibidem. 568 Ibidem. 569 Ibidem.
123
legalidade se estende ao conteúdo do acordo, ter-se-á o contato do magistrado com
a potencial prova apresentada pelo colaborador antes da fase da instrução, o que
poderia afetar sua imparcialidade).
O §8º do artigo 4º prevê a possibilidade de recusa de homologação à
proposta que não atender aos requisitos legais e de adequação, pelo juiz, ao caso
concreto. Os desdobramentos dessa previsão também serão devidamente
analisados no subcapítulo referente à homologação.
O §9º trata da possibilidade de o colaborador ser ouvido, acompanhado de
seu advogado, pelo Ministério Público ou pela autoridade policial após a
homologação do acordo, enquanto que os §§12 e 13 tratam da possibilidade de sua
oitiva, seja beneficiado ou não pelo perdão judicial, perante o juízo, “a requerimento
das partes ou por iniciativa da autoridade policial”570, o que será registrado, “sempre
que possível”571, por meios ou recursos de gravação para maior fidelidade. Ademais,
o §15 prevê, em quase uma redundância, que o colaborador deverá estar assistido
de seu defensor em absolutamente todos os atos de “negociação, confirmação e
execução da colaboração”572.
No §10, prevê-se a prerrogativa das partes de se retratarem da proposta de
acordo, situação em que “as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador
não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor”573. Sobre tema similar,
no §16, há a previsão de que “nenhuma sentença condenatória será proferida com
fundamento apenas nas declarações do agente colaborador”574. O tema do valor
probatório da colaboração será melhor analisado no próximo capítulo (sob o enfoque
da presunção de inocência), tendo o referido dispositivo considerável importância
em razão da expressão “exclusivamente”. Afinal, se ninguém pode ser condenado
exclusivamente nas palavras do colaborador, qual seria a importância – ou garantia
– do disposto no §10?
No §11, a lei prevê que a sentença apreciará os termos do acordo de
colaboração previamente homologado e sua eficácia – o que será igualmente
analisado no subcapítulo correspondente, bem como no referente ao sistema de
benefícios.
570 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 571 Ibidem. 572 Ibidem. 573 Ibidem. 574 Ibidem.
124
Por fim (e sem a observância da ordem numérica, já que alguns dos
parágrafos foram analisados logo acima), quanto ao artigo 4º, o §14 prevê a
renúncia ao direito ao silêncio nos depoimentos que prestar, o que deverá sempre
ser feito junto ao seu defensor, estabelecendo-se o “compromisso legal de dizer a
verdade”575. Nesse sentido, a lei prevê, em seu artigo 19, uma figura específica do
crime de falso testemunho para o colaborador que “imputar falsamente, sob pretexto
de colaboração com a Justiça” 576, a prática de crime por pessoa que sabe ser
inocente ou revelar informações falsas sobre a estrutura da organização criminosa.
O artigo 5º da Lei nº 12.850/2013 prevê os direitos do colaborador, dentre os
quais, para os efeitos deste estudo, vale a menção ao inciso VI, que descreve a
prerrogativa de “cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus
ou condenados”577, enquanto que o artigo 6º trata das formalidades do termo de
acordo da colaboração premiada. Por fim, o art. 7º trata do procedimento de
distribuição do pedido de homologação do acordo (que é sigiloso), do prazo para a
decisão do juiz competente (quarenta e oito horas), da limitação de acesso dos
autos (Juiz, autoridade policial e Ministério Público) e da revogação do sigilo
(quando do recebimento da denúncia).
Essa é a dinâmica legal da Lei nº 12.850/2013. A seguir, passa-se a analisar,
individualmente, cada um dos temas relacionados aos dispositivos acima
mencionados.
3.4 A NATUREZA JURÍDICA
É imperiosa, para o adequado estudo do instituto da colaboração premiada, a
definição de sua natureza jurídica. A uma, porque tal tarefa auxiliará a compreensão
sobre seus objetivos, procedimento e eficácia (afinal, entendendo-se o que significa,
poder-se-á concluir do que é capaz); a duas, porque a lei traz um conceito pronto,
que pode não ser tão claro quanto uma simples leitura do texto legal faz parecer.
O primeiro aspecto a ser abordado é o etimológico, relativo à expressão
“colaboração premiada”. Na sequência, será abordada a questão relativa à natureza
jurídica do instituto, sob suas perspectivas processual penal e penal.
575 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 576 Ibidem. 577 Ibidem.
125
3.4.1 ASPECTO ETIMOLÓGICO
De antemão, pode-se afirmar que dois aspectos etimológicos da lei são
importantes nesta análise. Em primeiro lugar, formalizou-se a nomenclatura
“colaboração premiada”, em substituição à mais simplória e estigmatizada “delação
premiada”. Não que a segunda esteja errada; a “delação” é uma espécie do gênero
“colaboração”, que poderá ocorrer com o colaborador indicando outros autores do
fato (o que a doutrina também denomina “chamamento de corréu”578), mas não se
trata de um requisito (em tese, o réu poderá se beneficiar caso simplesmente
confesse o crime e, por exemplo, forneça elementos que possibilitem a recuperação
dos valores desviados 579 ). Marques ressalta, também, que há uma importância
ideológica no afastamento da expressão delação premiada do imaginário popular:
É importante ressaltar que a expressão ‘delação premiada’ não é usual na legislação, sendo, portanto, uma construção doutrinaria que traz, em si, uma carga pejorativa quando se equipara o delator com o traidor, figura estigmatizada no imaginário popular. Observa-se, portanto, um aspecto ideológico e proposital no uso terminológico sobre o tema: arrependido (traz a ideia de mudança de caráter e estilo de vida), colaborador da justiça (imagina-se alguém desinteressado ou até mesmo interessado em obter vantagens em troca de colaboração com a justiça) e delator (busca-se compará-lo à figura do traidor).580
A definição inequívoca da terminologia legal, portanto, parece também buscar
encerrar um debate de natureza moral que envolve o instituto, para afastar a carga
negativa contida na expressão “delação” e adotar termo de conotação técnica e, por
assim dizer, positiva ao processo penal.
3.4.2 NATUREZA PROCESSUAL PENAL: MEIO DE OBTENÇÃO E FONTE DE
PROVA
O outro aspecto importante é que a lei expressamente definiu a colaboração
premiada como um “meio de obtenção de prova”, e não um “meio de prova”. Há uma
diferença relevante entre os termos, como explica Badaró:
578 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 454. 579 Ou, como exemplifica Pinto (PINTO, Ronaldo Batista. A colaboração premiada da Lei nº 12.850/2013. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 56, v. 10, 2013, p. 24-29, p. 25), “se em decorrência dela se salvaguardou a integridade da vítima”. 580 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A colaboração premiada..., 2014, p. 40.
126
Enquanto os meios de prova são aptos a servir, diretamente, ao convencimento do juiz sobre uma veracidade ou não de uma afirmação (p. ex., o depoimento de uma testemunha, ou o teor de uma escritura pública), os meios de obtenção de provas (p.ex. uma busca e apreensão) são instrumentos para a colheita de elementos ou fontes de provas, estes sim, aptos a convencer o julgador (p.ex.: um extrato bancário [documento] encontrado em uma busca e apreensão domiciliar). Ou seja, enquanto o meio de prova se presta ao convencimento direto do julgador, os meios de obtenção de provas somente indiretamente, e dependendo do resultado de sua realização, poderão servir à reconstrução da história dos fatos.581
No mesmo sentido, Bottini afirma que diferencia o meio da prova, no sentido
de que “a prova é capaz de sustentar uma acusação ou uma condenação. O meio é
apenas um instrumento para que as autoridades possam alcançar provas
efetivas”582.
Embora os autores estejam absolutamente corretos quanto à diferenciação
realizada, afirmar, simplesmente, que a colaboração premiada é um meio de
obtenção de prova é insuficiente, sobretudo porque “não há consenso doutrinário”583.
Em tese, e sob a perspectiva legal, trata-se de uma assertiva precisa, na medida em
que equipara a colaboração a outros meios de obtenção de prova, como as
interceptações telefônicas e as quebras de sigilo bancário ou fiscal, que também são
“instrumentos para a colheita de fontes ou elementos de prova”584.
Na prática, porém, há dois níveis em que se deve analisar a expressão legal:
a colaboração será meio de obtenção de prova (um caminho para a sua produção)
quando observada no momento da celebração do acordo e de sua homologação;
por outro lado, os produtos imediatos desse acordo homologado – quais sejam as
declarações e documentos apresentados pelo colaborador – serão meios ou fontes
de prova, na medida em que se incluem nessa categoria as pessoas ou coisas por
meio das quais se obtém a prova, como as testemunhas585.
Essa diferenciação é fundamental pelo fato de que a generalização da
expressão “meio de obtenção de prova” poderia levar a crer que nada que advenha
de um acordo possa ser utilizado como prova no processo, já que apenas os meios
581 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 270. 582 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Os limites da delação premiada. Disponível em: <http://goo.gl/ub55wf>. Acesso em: 12 de março de 2018. 583 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A colaboração premiada..., 2014, p. 41. 584 BADARÓ, op. cit., p. 389. 585 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013.
127
de prova “são os instrumentos com os quais se leva ao processo um elemento útil
para a decisão”586. Badaró ressalta a importância na diferenciação entre meios e
fontes de prova, na medida em que, no processo penal acusatório, “o juiz não pode
ser um investigador de fontes de prova”587, mas alguém para quem essas fontes são
introduzidas no processo. Com efeito, a sentença somente pode se amparar nos
meios de prova, que “com exceção das provas pré-constituídas (por exemplo, os
documentos) (...), deverão ser produzidos em contraditório judicial, na presença das
partes e do juiz”588.
Na colaboração premiada, parece ser claro que o acordo formal subscrito pelo
colaborador e Ministério Público terá a natureza de meio de obtenção de prova.
Trata-se, afinal, de um instrumento formal por meio do qual serão colhidas fontes
(como testemunhas indicadas pelo colaborador e informações sobre bens e valores
relacionados à atividade criminosa) e meios de prova (a palavra dessas
testemunhas, quando ouvidas em juízo, e os próprios bens e valores obtidos a partir
da indicação do acordo).
E é nesse sentido que o Supremo Tribunal Federal se posicionou, quando do
julgamento do Habeas Corpus nº 127.483/PR, relatado pelo Ministro Dias Toffoli, em
posicionamento unânime do Plenário, publicado em 4 de fevereiro de 2015.
Na oportunidade, embora se tenha reconhecido que “a homologação não
representa juízo de valor sobre as declarações eventualmente já prestadas pelo
colaborador à autoridade judicial ou ao Ministério Público” 589 , deixou-se
expressamente estabelecido que o depoimento do colaborador poderá, sim,
constituir-se como meio de prova. Com efeito, a simples celebração do acordo entre
o Ministério Público e o acusado e a sua posterior homologação pelo Poder
Judiciário não formalizam a prova – exatamente como ocorre com o pedido de
quebra de sigilo ou interceptação que são apenas deferidos pelo juízo, em
momentos nos quais apenas se instituem os meios para a obtenção da eventual
prova. No entanto, quando o colaborador é ouvido em juízo, sob a regência do
acordo, suas palavras se traduzem em meios de prova que poderão ser utilizados
586 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal..., 2016, p. 386. 587 Ibidem, p. 386. 588 Ibidem, p. 386. 589 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Plenário. HC 127483/PR. Relator Ministro Dias Toffoli. DJ 4.2.2016.
128
em eventual decreto condenatório (ainda que haja ressalvas quanto à extensão
dessa utilização).
Dessa forma, não é certo afirmar, única e exclusivamente, que a colaboração
premiada, sob uma análise ampla, é um mero meio de obtenção de prova
(sobretudo se com o objetivo de refutar a utilização de seus resultados como
elemento de condenação criminal). O instituto tem essa natureza quando analisado
em tese, mas seus produtos – notadamente as palavras do colaborador – são meios
ou fontes de prova.
3.4.3 NATUREZA PENAL: SISTEMA DE BENEFÍCIOS PENAIS
Como se trata de um instituto processual, mas também de natureza penal
(incluindo-se o aspecto de execução penal ou penitenciário), a natureza jurídica da
colaboração premiada deve ser analisada sob ambos os aspectos. Vencida a
análise processual, a aferição do aspecto penal parece estar melhor relacionada
com o sistema de benefícios penais concessíveis ao colaborador. Nesse sentido,
sob essa dependência, a colaboração poderá ter natureza de causa de extinção da
punibilidade (em caso de perdão judicial, nos termos do art. 107, IX, do Código
Penal), causa especial de diminuição de pena, causa de fixação de regime mais
benéfico ou causa de substituição da pena por restritiva de direitos (todas as
modalidades fundamentadas pela previsão de benefícios do art. 4º, caput, da Lei nº
12.850/2013)590.
Embora se trate de classificação relativamente óbvia, há repercussões
técnicas na delimitação da natureza jurídica do aspecto penal da colaboração
premiada. Afinal, como defende Estellita:
Estabelecida a natureza jurídica de direito material da delação premiada em nosso direito positivo (causa de diminuição da pena ou de concessão de perdão judicial), dela decorre logicamente que somente pode ser aplicada na sentença condenatória como momento final de um devido processo legal, após exauriente análise probatória.591
590 MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A colaboração premiada..., 2014, p. 40. 591 ESTELLITA, Heloisa. A delação premiada para a identificação dos demais coautores ou partícipes: algumas reflexões à luz do devido processo legal. Boletim do IBCCRIM. Ano 17, nº 202, setembro/2009. P. 2.
129
Esse tema será devidamente analisado no subcapítulo referente ao sistema
de benefícios e obrigações. Desde logo, porém, verifica-se a importância na
delimitação da natureza jurídica de um instituto como a colaboração premiada.
3.4.4 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO INSTRUMENTO DE DEFESA
Tendo a colaboração premiada a natureza penal de causa de extinção de
punibilidade e redução de pena como acima delineado, não se pode ignorar que se
trata de instituto que pode funcionar também como instrumento defensivo. Oliveira
desenvolveu o tema em sua tese de doutorado, enfatizando que, embora o instituto
necessite de “regras mais claras”592 e represente “profunda e dramática mudança
para o Direito Penal e Processual Penal” 593, sua utilização torna “possível construir
uma ponte entre dois importantes temas constitucionais e que não podem continuar
num eterno embate” 594 , em referência que faz às garantias fundamentais do
acusado e à segurança pública. Em igual sentido, Bretas sustenta que o defensor
que rejeita, de antemão, a utilização da colaboração premiada como instrumento de
defesa “já entra no ‘jogo processual’ em desvantagem, porque dá a largada sem
uma importante arma defensiva” 595.
A proliferação das colaborações premiadas no Brasil, sobretudo após a
deflagração da Operação Lava Jato, é um relevante indício dessa natureza
defensiva. É bem verdade que a referida operação, embora extremamente massiva
e prolífera, não é a primeira grande atuação da polícia e do Ministério Público no
combate à corrupção. No entanto, alguns fatores contribuíram para o contexto atual,
a partir do qual se evidencia que o uso da colaboração premiada assumiu
importantíssimo papel na definição da estratégia adotada pelos investigados e
acusados.
Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que, em 2010, houve uma relevante
alteração legislativa no regime da prescrição da pretensão punitiva. A Lei nº 12.234,
592 OLIVEIRA, Marlus Heriberto Arns de. A colaboração premiada como legítimo instrument de defesa na seara do Direito Penal Econômico. 2016. Tese (Doutorado em Direito Econômico e Socioambiental) – Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, p. 152. 593 Ibidem, p. 152. 594 Ibidem, p. 152. 595 BRETAS, Adriano Sérgio Nunes. Apontamentos de Processo Penal. Curitiba: Sala de Aula Criminal, 2017. p. 433.
130
de 5 de maio daquele ano, alterou o art. 110, §1º do Código Penal, estabelecendo
que “a prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a
acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não
podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou
queixa” 596 . Com isso, extinguiu-se, para os crimes praticados após a lei, a
possibilidade de prescrição retroativa, contada da data do fato.
Some-se essa circunstância ao fato de que, a partir de 2016, o Supremo
Tribunal Federal passou a admitir a execução provisória da pena e chega-se a um
cenário em que o indivíduo que se vê acusado a partir de elementos robustos
apresentados pelo Ministério Público não mais pode se valer do tempo para extinguir
sua punibilidade.
No caso da Operação Lava Jato, a situação tornou-se ainda mais dramática
para os acusados, que, naquele caso, tiveram igualmente limitadas suas esperanças
de um futuro reconhecimento de nulidades no processo. É que, no julgamento do
Habeas Corpus nº 127.483597, realizado em fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal
Federal afastou qualquer irregularidade com a utilização da colaboração premiada
nos processos relacionados à operação, de modo que se antecipou uma futura
discussão que pudesse eventualmente alimentar a perspectiva de uma anulação do
processo.
Sem as possibilidades de reconhecimento da prescrição para os fatos
posteriores a 2010 e de declaração de nulidade do processo, não restou alternativa
a dezenas de acusados daquele feito que não a celebração de acordo de
colaboração.
Com a proliferação dos acordos e o reiterado reconhecimento de sua
legalidade por inúmeros outros tribunais, a lógica provavelmente seguirá em relação
a processos futuros. Assim, em se tratando de investigação ou acusação embasada
em elementos sólidos que dificilmente serão impugnados pelo exercício da defesa
técnica, apresenta-se a colaboração premiada como instrumento útil e eficaz ao
investigado/acusado para evitar uma condenação criminal pesada, que lhe imponha
longa privação de liberdade.
596 BRASIL. Lei nº 12.234, de 5 de maio de 2010. Altera os arts. 109 e 110 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12234.htm> Acesso em 22 de abril de 2018. 597 BRASIL. Habeas Corpus 127.483/PR, 2016.
131
3.4.5 A COLABORAÇÃO PREMIADA COMO ATO NEGOCIAL COMPOSTO
Também cabe uma classificação da colaboração premiada sob a perspectiva
do ato administrativo. Considerando-se que o Ministério Público (e a autoridade
policial) e o Poder Judiciário atuam em nome da Administração quando da
negociação, celebração e homologação de acordo de colaboração, trata-se de uma
“intervenção da vontade administrativa” 598 , realizada por meio de um “ato
negocial” 599 . Segundo Mello, o ato negocial é aquele “em que a vontade
administrativa é, de direito, preordenada à obtenção de um resultado jurídico, sendo
ela que cria imediatamente os efeitos jurídicos, embora dentro dos quadros
legais”600.
Como ensina Carvalho Filho, porém, “a vontade administrativa pode
exteriorizar-se de forma una ou múltipla” 601 , sendo chamados de atos simples
aqueles que emanam “da vontade de um só órgão ou agente administrativo”602 e
complexos ou compostos aqueles que reclamam “a intervenção da vontade de mais
de um órgão ou agente administrativo” 603. No caso da colaboração premiada, não
basta a vontade de um só agente administrativo, já que, após celebrado com o
Ministério Público, o acordo deve ser homologado pelo Poder Judiciário. Não se
trata, portanto, de ato simples. Dentre as demais modalidades, parece que o
conceito que melhor se aplica é o relacionado ao ato composto.
Explica-se: no ato complexo, a “vontade final da Administração exige a
intervenção de agentes ou órgãos diversos, havendo certa autonomia, ou conteúdo
próprio em cada uma das manifestações” 604 ; no ato composto, embora haja
múltiplos agentes, não há “vontades autônomas”605, mas um conteúdo próprio que é
acrescido de vontades “meramente instrumentais, porque se limitam à verificação de
legitimidade do ato”606.
598 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23ª Edição. São Paulo: Atlas, 2015, p. 132. 599 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 416. 600 Ibidem, p. 416. 601 CARVALHO FILHO, op. cit., p. 132. 602 Ibidem, p. 132. 603 Ibidem, p. 132. O autor reconhece que a subdivisão entre atos complexos e compostos não é pacífica na doutrina. Neste estudo, porém, é oportuna a classificação adotada na referida obra. 604 Ibidem, p. 132. 605 Ibidem, p. 132. 606 Ibidem, p. 132.
132
Na colaboração premiada, a vontade da Administração é uma só: celebrar um
acordo que prevê benefícios penais, processuais e de execução penal com o
colaborador da justiça que cumprir os requisitos legais. Ao celebrar o acordo, o
Ministério Público manifesta o conteúdo dessa vontade, que não é revisto pelo
Poder Judiciário, a quem cabe, única e exclusivamente, verificar se a composição
atende aos ditames previstos em lei para a homologação, a qual, por sua vez, não
se reveste de discricionariedade.
3.5 OS SUJEITOS DA COLABORAÇÃO
A princípio, o texto expresso da Lei nº 12.850/2013 não traz questionamentos
sobre as partes envolvidas na colaboração premiada. Sob a perspectiva negocial,
tem-se, de um lado, a figura do colaborador e seu advogado (que deve sempre
acompanhá-lo, em todos os atos relacionados ao acordo); do outro, o delegado de
polícia e/ou o Ministério Público. Sob a perspectiva judicial, naturalmente, tem-se o
Juiz que decide sobre a homologação do acordo e sobre a concessão dos
benefícios legais.
Neste subcapítulo, porém, analisar-se-ão dois aspectos bastante relevantes
sobre o instituto, quais sejam: a) a natureza do colaborador no processo (o que é
relevantíssimo para a definição do valor probatório de suas declarações); e b) a
legitimidade concorrente do Ministério Público e da polícia, na medida em que há um
profundo questionamento doutrinário e jurisprudencial sobre a possibilidade de a
autoridade policial celebrar acordo.
3.5.1 O PAPEL DO COLABORADOR NO PROCESSO
Como se afirmou logo acima, a delação – ou chamamento de corréu – é uma
das hipóteses para a configuração da colaboração premiada, que dependerá da
confissão e de outras atividades previstas em lei (como a recuperação de valores, a
prevenção de outros crimes ou a localização da vítima, no caso de extorsão
mediante sequestro). É claro, porém, que a identificação de coautores e a revelação
da estrutura hierárquica da organização criminosa, o que se dará, invariavelmente,
133
pela atribuição de fatos criminoso a terceiros, é a atividade que merece maior
atenção.
A uma, porque, diferentemente dos demais resultados esperados pela
colaboração, descritos no artigo 4º da Lei nº 12.850/2013, a delação nem sempre
envolverá atributos aferíveis objetivamente (como seria com a devolução de valores,
a prevenção de novos crimes e a localização física de vítima); a duas, porque, a
partir das palavras do colaborador, novos e presumidamente inocentes indivíduos
passarão a ser escrutinizados, submetendo-se às naturais agruras de uma
investigação e de um eventual processo criminal.
Nesse sentido, é importante definir qual a função desempenhada pelo
colaborador no âmbito da investigação e da ação penal. Há quem sustente, como
menciona Vasconcellos, que se trataria de uma “natureza dúplice” 607 , com o
colaborador atuando como um réu confesso quanto aos fatos que lhe digam respeito
e, paralelamente, como testemunha a respeito dos corréus608. Por outro lado, o
próprio autor refuta essa posição, ao lado de Pereira, que afirma ser “incorreto
estender o tratamento jurídico do testemunho, da confissão, ou de qualquer outro
meio de prova a esse tipo de declaração, sem prévias cautelas”609.
Badaró, por sua vez, defende que o colaborador é “uma testemunha que não
presta o compromisso de dizer a verdade (art. 203) e não poderia cometer o crime
de falso testemunho (CP, art. 342)”610, não podendo ser igualmente contraditado.
Embora o §14 do artigo 4º da Lei nº 12.850/2013 estabeleça que o colaborador
“estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade” 611 , a equiparação do
colaborador à testemunha não compromissada ou ao informante é interessante.
Em primeiro lugar, porque o compromisso com a verdade é requisito de
validade para o seu acordo, mas não afasta o seu interesse na causa612, já que o
teor de suas declarações estará vinculado, em certa medida, com o benefício que
607 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2017, p. 64. 608 É o caso de GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 9ª Edição. São Paulo: RT, 2006. P. 181: “O co-réu, embora parte, pode também ser testemunha de crime praticado por outro acusado, quando o Código determina a unidade de processo (art. 79 do CPP).” 609 PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada - Legitimidade e Procedimento - Aspectos Controvertidos do Instituto da Colaboração Premiada de Coautor de Delitos como Instrumento de Enfrentamento do Crime Organizado. 3ª Edição. Curitiba: Juruá, 2016, p. 187. 610 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 2016, p. 454. 611 BRASIL, Lei nº 12.850..., 2013. 612 VASCONCELLOS, op. cit., p. 67.
134
lhe será concedido. Ademais, há um crime específico para o descumprimento do
referido compromisso com o acordo, inserido no art. 19, que estabelece uma figura
especial de “falso testemunho” ao colaborador que imputa falsamente crime a
terceiro, a pretexto de colaborar com a justiça.
É certo, não obstante, que há tantas similaridades quanto divergências na
inclusão do colaborador na categoria de informante. De um lado, ambos são
interessados na causa; do outro, um assume o compromisso com a verdade, ainda
que não sob as mesmas condições que uma testemunha compromissada. Diante
disso, e evidenciando-se tal cenário, a melhor solução parece ser a inclusão da
figura de colaborador, pura e simplesmente, como sujeito autônomo do processo,
reconhecendo-se seu interesse na causa ao mesmo tempo em que se lhe exige o
compromisso com a verdade. Caso o restante das provas ratifique seus termos
pessoais produzidos em Juízo, tratar-se-á de um colaborador em dia com seu
acordo; caso contrário, certamente se lhe revogarão os benefícios, devolvendo-o à
condição de réu, pura e simplesmente.
3.5.2 OS LIMITES DE ATUAÇÃO DO ADVOGADO
Embora seja certo que a participação do advogado em todos os atos
relacionados à colaboração premiada se trate de imposição legal (art. 4º, § 15 da Lei
nº 12.850/2013), cabem alguns questionamentos quando há patrocínio múltiplo em
uma mesma causa ou quando o próprio colaborador é advogado. Trata-se de
problemas recentemente enfrentados por Sánchez Rios e Farias, que, de antemão,
confirmam a “ausência de definições de como deve se dar a conduta do advogado
criminalista”613 e enfatizam a necessidade de maior discussão sobre o tema.
A respeito da atuação do mesmo advogado em face de mais de um
colaborador, em um mesmo caso, os autores afirmam se tratar de situação
“absolutamente insustentável, tendo em vista o evidente conflito de interesses entre
dois delatores” 614, inclusive com vedação do Código de Ética e Disciplina da Ordem
dos Advogados do Brasil. Conforme seguem, “ainda que se argumente pela
inexistência de prejuízo caso os depoimentos resultem compatíveis entre si, sempre
613 SÁNCHEZ RIOS, Rodrigo; FARIAS, Renata Amaral. O instituto da colaboração premiada no sistema legal brasileiro e sua receptividade como meio de defesa. IBCCRIM (artigo aceito para publicação), 2018, p. 16. 614 Ibidem, p. 17.
135
haverá a imputação de culpa recíproca capaz de impossibilitar o patrocínio de
ambos os acusados pelo mesmo profissional”615.
Ademais, os autores sugerem que, no patrocínio simultâneo, o advogado
pode se ver em meio a contradições entre as declarações, que o colocariam
“posição difícil, pois tem o dever de advertir seus clientes sobre as possíveis
consequências decorrentes dos depoimentos diversos, mas não pode violar o dever
de sigilo” 616 e tampouco orientá-los a uma narrativa consistente, “sob pena de
participação no crime do art. 19 da Lei 12.850/2013” 617. A preocupação tem razão
de ser, já que ao advogado não caberá apenas o acompanhamento das
negociações, mas a orientação sobre a conduta a ser tomada pelo seu cliente para o
atendimento de suas obrigações contratuais com o Ministério Público. Caso as
declarações de um dos colaboradores indique um equívoco ou falsidade nos termos
do outro, pode-se cogitar situação de conflito de interesses a que se refere o art. 20
do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil.
A mesma impossibilidade de atuação, segundo Sánchez Rios e Farias, seria
verificada no patrocínio simultâneo de um colaborador e um não-colaborador por ele
delatado. Afinal, o sucesso na defesa de um possivelmente envolveria o fracasso na
do outro618. Por fim, os autores tratam de duas situações – que já se verificaram na
prática – em que o colaborador é advogado e rompe seu dever de sigilo com clientes
em razão do acordo. Na primeira, em que sua atuação se resumiria a fornecer
informações da organização criminosa que tenha integrado, Sánchez Rios e Farias
admitem a colaboração mediante o uso de “informações privilegiadas obtidas no
exercício da advocacia (...) desde que possuam relação estreita com os fatos” 619.
Caso, porém, a colaboração se volte a fatos não relacionados, entendem os
autores que “as informações obtidas por meio da defesa de clientes que não se
relacionam de nenhuma maneira com o fato objeto da investigação devem estar
protegidas pelo sigilo profissional (art. 35 e 36, CED)” 620. Ainda que o próprio estudo
sugira a necessidade de melhor aprofundamento do tema, parecem acertados os
posicionamentos, que buscam conciliar os deveres éticos da advocacia com os
objetivos da colaboração premiada.
615 SÁNCHEZ Rios, Rodrigo, FARIAS, Renata Amaral. O instituto da colaboração..., 2018, p. 17. 616 Ibidem, p. 17. 617 Ibidem, p. 17. 618 Ibidem, p. 18. 619 Ibidem, p. 20. 620 Ibidem, p. 21.
136
3.5.3 A LEGITIMIDADE CONCORRENTE DA POLÍCIA
No subcapítulo referente à dinâmica legal da colaboração, mencionou-se em
diversos momentos a figura da autoridade policial como parte legal da colaboração
premiada. Em vários dispositivos, como os §§ 2º, 6º e 9º, o delegado de polícia é
citado como participante ativo das negociações, oitivas e pedidos relacionados ao
colaborador, a partir do que seria de se presumir como clara sua legitimidade para
atuação junto ao instituto.
Entretanto, a natureza jurídica e a forma como se desenvolveram os
principais acordos do país (como na Operação Lava Jato, por exemplo), com a
previsão de benefícios engessados para a fixação e cumprimento antecipado de
pena, ou suspensão de processos conexos por prazos não previstos em lei
(cláusulas que serão bastante analisadas mais adiante), trouxeram questionamentos
válidos à atuação da polícia.
É que, se o acordo de colaboração pode ser entendido como um instrumento
de produção de prova (judicial) e palco de disposição, pelo Ministério Público, de sua
pretensão punitiva (entendendo-se o parquet, não apenas como titular, mas como
dono da ação), tem-se sistema que escapa das limitações institucionais da polícia.
Afinal, atuando apenas no âmbito investigativo, o delegado de polícia não tem
qualquer dizer sobre os desdobramentos processuais e penais do caso, não lhe
cabendo, a priori, autoridade sobre a pena a ser fixada e a suspensão de processos,
dentre outras possibilidades.
Em outras palavras: caso se entenda o acordo como instrumento de
possibilidades ilimitadas no que diz respeito à aplicação de benefícios (como a
limitação prévia da pena a ser fixada) em troca de colaboração processual, cria-se
um modelo de negociação incompatível com a atividade policial. Diante disso, e para
se evitar que haja dois tipos de acordo (um estabelecido pela polícia, com as
limitações que lhe recaem; outro, pelo Ministério Público, com infindáveis
possibilidades), fala-se na ilegitimidade do delegado de polícia para celebrá-los.
Bitencourt e Busato, nesse sentido, afirmam haver “inconstitucionalidade
flagrante” 621 na previsão da atuação da polícia do §2º do art. 4º da Lei nº
12.850/2013, “na medida em que, sendo a ‘colaboração premiada’ um meio de prova
621 BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei..., 2014, p. 122.
137
– diga-se, prova processual –, converte o delegado de polícia em sujeito
processual”622. Para os autores, em sendo a colaboração (ou seus frutos) meio de
prova, a polícia estaria agindo na instrução judicial “mesmo à revelia do órgão
acusador”623. Filipetto e Rocha, por sua vez, levantam outra relevante insurgência:
Outro ponto merece destaque: a prova produzida pela Polícia Judiciária não se dirige ao Magistrado e sim ao Ministério Público. Não há como ultrapassar a vontade daquele que tem a função de deliberar sobre a prova, apontar os caminhos de apuração e mensurá-la a fim de averiguar se ela possui substrato probatório mínimo a ensejar a condenação. Não há como desconsiderar a opinião daquele que, exercendo o controle da atividade policial em relação à produção probatória, necessita ter sua opinio delicti formada. Trata-se de medida que contradiz a própria essência do Ministério Público.624
Os autores, na continuidade de sua justificativa para a ilegitimidade da polícia,
confirmam que, além do aspecto probatório indicado igualmente por Bitencourt e
Busato, há a perspectiva da “atenuação da obrigatoriedade da ação penal”625. Com
efeito, assim como na transação penal, em que o Ministério Público tem titularidade
exclusiva para propor benefícios que prejudicam a ação, o mesmo deveria ocorrer
na colaboração premiada – a qual, para os autores, possuiria a mesma
característica.
Em sentido oposto, Costa defende a participação da polícia na propositura do
acordo, enfatizando “uma tendência de potencialização da fase investigativa
processual, que exige um acompanhamento mais próximo das partes processuais
(Ministério Público, defesa e juiz) sobre o inquérito policial”626. Segundo o autor, a
legitimidade da polícia seria “importantíssima do ponto de vista da eficiência do
instituto”627, podendo a autoridade policial agir em situações de emergência, nas
quais eventual demora do Ministério Público pudesse “comprometer o resultado
positivo que se quer alcançar” 628.
O posicionamento de Costa, porém, não é absoluto, na medida em que se
alinha ao entendimento majoritário de que o Ministério Público deverá ratificar,
622 BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei..., 2014, p. 122. 623 Ibidem, p. 123. 624 FILIPETTO, Rogério; ROCHA, Luísa Carolina Vasconcelos Chagas. Colaboração Premiada – contornos segundo o sistema acusatório. Belo Horizonte: Editora D’Plácito, 2017. P. 151. 625 Ibidem, p. 152. 626 COSTA, Leonardo Dantas. Delação Premiada. Curitiba: Juruá Editora, 2017. P. 115. 627 Ibidem, p. 115. 628 Ibidem, p. 115.
138
“necessariamente”629, os termos do acordo proposto pela autoridade policial. Nesse
sentido, a polícia teria a função de instrumentalizar, sob uma análise prática, a
colaboração premiada, que dependeria do aval do Ministério Público para ser
submetida ao Poder Judiciário.
O entendimento é encabeçado por Pereira, que sustenta que, embora a lei
preveja a atuação da polícia nos parágrafos do artigo 4º, esses devem ser
analisados em conjunto com o caput, que estabelece que os benefícios poderão ser
concedidos pelo Juiz “a requerimento das partes” 630 , limitando a legitimidade à
acusação e defesa. Assim, não haveria inconstitucionalidade, mas seria “irrefutável
concluir que, na prática, a autoridade policial somente poderá iniciar tratativas
direcionadas a verificar o interesse na colaboração e, em seguida, representar ao
membro do MP para que conduza à formalização do acordo”631.
Discorda-se de Pereira quanto à interpretação desdobrada da redação do
caput. Ao mencionar o requerimento das partes, o texto legal não faz menção a um
pedido conjunto de concessão de benefícios que seja feito pela defesa e Ministério
Público. A partir da interpretação literal do dispositivo, não se pode afastar a
possibilidade de que, celebrado acordo proposto pelo delegado de polícia, apenas a
defesa, em Juízo, requeira a concessão dos benefícios.
Quanto à doutrina integralmente favorável à legitimidade da autoridade
policial, tem-se o posicionamento de Anselmo, que sustenta que, na qualidade de
presidente da investigação (segundo ele, “o momento mais propício para que a
colaboração premiada ocorra e para que os fatos possam ser completamente
esclarecidos”632 ), “nada mais coerente que o mesmo detenha legitimidade para
celebrar acordos” 633). O autor traz outro argumento extremamente razoável para
permitir a atuação policial na colaboração premiada, qual seja a legitimidade que se
confere para a representação “por todas as outras medidas cautelares, tais como a
interceptação telefônica, busca e apreensão, quebra de sigilo bancário”634. De fato,
em sendo o acordo formalizado um meio de obtenção de prova, não há razão para
629 COSTA, Leonardo Dantas. Delação Premiada..., 2017, p. 115. 630 BRASIL, Lei nº 12.850..., 2013. 631 PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada..., 2016, p. 132. 632 ANSELMO, Márcio Adriano. Colaboração Premiada. O novo paradigma do processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Mallet, 2016, p. 84. 633 Ibidem, p. 84. 634 Ibidem, P. 84.
139
diferenciá-lo, quanto à legitimidade, de outros instrumentos de mesma natureza, o
que traz força ao posicionamento de Anselmo.
Vasconcelos, por sua vez, ainda que se alinhe ao entendimento de Pereira de
que “o texto é claro ao condicionar a atuação policial à posterior ‘manifestação do
Ministério Público’, de modo a autorizar somente a realização de negociações
preliminares entre defesa e autoridade policial” 635 , aventa “como solução
excepcional a possibilidade de sua proposição pelo Delegado de Polícia” 636 na
hipótese de negativa ilegítima do Ministério Público em propor o acordo.
O autor assim se posiciona por entender que a celebração do acordo de
colaboração premiada é direito subjetivo do acusado e que, “se presentes seus
pressupostos e requisitos no caso concreto”637, seria obrigatória a celebração do
acordo. Assim, negando-se o Ministério Público à revelia desses pressupostos e
requisitos, poderia a autoridade policial fazê-lo. Ressalta, porém, o autor que “essa
não parece ser a melhor solução a tal problemática situação, mas, por certo, pode
ser um meio de redução de danos pela injustificada recusa do promotor”638.
Esse último entendimento busca delimitar um “caminho do meio” para a
solução do conflito. Segundo o autor, o acordo que seja proposto pela autoridade
policial preferencialmente deve ser albergado pelo Ministério Público. Não o
fazendo, e entendendo a autoridade policial e a defesa pelo seu cabimento, caberia
ao Juízo analisá-lo e homologá-lo.
É difícil a adoção desse posicionamento, na medida em que coloca a
autoridade policial com um poder fiscalizador – que não possui – da atividade do
Ministério Público. Embora seja certo que o inquérito policial é um momento
extremamente oportuno para a celebração de um acordo, o rol de benefícios
previstos em lei tem lugar apenas no curso da ação e da execução penal. Assim,
ainda que pudesse alienar, no acordo, a participação do titular da ação penal, a
autoridade policial não teria participação em seu curso, não tendo qualquer dizer
sobre a efetividade da colaboração e a derradeira concessão de benefícios.
Ademais, a indicação de que a celebração do acordo seria um direito subjetivo do
635 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 92. 636 Ibidem, p. 92. 637 Ibidem, p. 92. No mesmo sentido: BRETAS, Adriano Sérgio Nunes. Apontamentos..., 2017, p. 436. 638 Ibidem, p. 93.
140
acusado parece ser incompatível com a própria ideia de acordo, que pressupõe uma
recíproca manifestação de vontade das partes639.
Cabe, aliás, um parêntesis na análise da legitimidade da autoridade policial.
Antes de se apresentar um posicionamento sobre o tema, é interessante voltar muito
rapidamente à compreensão do que é a polícia e qual a função etimológica e
histórica do Delegado de Polícia – que seria, segundo a lei, um dos legitimados a
celebrar o acordo. Chemim explica que o termo “polícia” sempre esteve ligado ao
poder do Estado, seja com a genérica “ideia de governar”640, dos gregos, ou de
arrecadação de tributos, da Idade Média, seja com a função mais moderna de
manter a ordem e a segurança, “em caso de ameaça à ordem da coletividade”641. O
Poder de Polícia, propriamente dito, é, portanto, o poder do Estado de “manutenção
da ordem pública, a fim de que se possa viver harmoniosamente em sociedade,
atuando de forma preventiva e repressiva no combate aos desvios de conduta dos
cidadãos” 642.
No Brasil, seguindo a lição de Chemim, a evolução da polícia seguiu uma
série de sucessivos, mas não lineares, passos. Durante a vigência das Ordenações
Afonsinas, em Portugal, a polícia andava ao lado da magistratura como “longa
manus do Rei de Portugal”643. Quando das Ordenações Manuelinas, na colonização,
o poder de polícia recaía aos “governadores das cidades”644. A partir do século XVII,
passou a ser vinculado aos Juízes, com delegações de funções diversas
(“quadrilheiros” e “vintaneiros”, por exemplo, atuando como a autoridade policial de
hoje645). No Código de Processo Criminal do Império, de 1832, estabeleceu-se que o
chefe de polícia seria um juiz de direito646, sendo que, na reforma de 1841, passou-
639 Conforme Mendonça: “Por sua vez, embora a colaboração, na perspectiva defensiva, seja um meio de defesa, não há um direito subjetivo do imputado ao acordo de colaboração premiada. Isso porque, somente se o MP concordar que se trata de um meio de obtenção de prova eficiente e veraz, é que o acusado terá direito a firmar o acordo.” MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis na colaboração premiada: entre a legalidade e a autonomia da vontade. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Colaboração Premiada. São Paulo: RT, 2017, p. 61. 640 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Controle Externo da Atividade Policial pelo Ministério Público. Curitiba: Juruá, 2002, p. 22. 641 Ibidem, p. 23. 642 Ibidem, p. 24. 643 Ibidem, p. 24. 644 Ibidem, p. 24. 645 Ibidem, p. 25. 646 BRASIL. Lei de 29 de novembro de 1832. Promulga o Codigo do Processo Criminal de primeira instancia com disposição provisoria ácerca da administração da Justiça Civil. Disponível em <http://goo.gl/z7sZE5> Acesso em 28 de abril de 2018.
141
se a prever a figura dos delegados e subdelegados do chefe de polícia (que era
escolhido entre os desembargadores e juízes)647.
Foram inúmeras as alterações legislativas até o presente momento, que
acabaram por separar a autoridade policial do Poder Judiciário (e dividi-la entre
funções distintas). No entanto, Chemim ainda observava, em 2002, a manutenção
desse padrão vinculado do “delegado do poder de polícia do Juiz” com as figuras
dos “delegados ‘calças-curtas’” 648 (o que também se observa com resquícios dessa
vinculação com algumas funções que remanescem ao Delegado, como a concessão
de fiança e o auto de prisão em flagrante, por exemplo).
Com efeito, observa-se que a autoridade policial, enquanto instituição, nunca
teve uma função autônoma que pudesse cumprir, em teoria, o que se ora discute
quanto à colaboração. Atualmente, sua função é a de órgão de apoio do Ministério
Público na investigação, ainda que não haja a “delegação” legal nos moldes
históricos da função.
Sob essa perspectiva da função policial, mais corretos parecem ser o
entendimento de Pereira (quanto à compreensão da expressão “manifestação do
Ministério Público” do art. 4º, §§2º e 6º da Lei nº 12.850/2013 como anuência ou
aval) e a percepção eminentemente procedimental dos momentos em que se podem
realizar os acordos e os atores que deles participam 649 . Ou seja: a autoridade
policial, desde que com o aval do Ministério Público, poderia celebrá-lo durante o
inquérito policial; durante a ação penal e a fase de execução, a legitimidade seria
exclusiva do órgão acusatório.
A solução, por ora, foi estabelecida no Supremo Tribunal Federal, no
julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.508, proposta pela
Procuradoria Geral da República para o reconhecimento da inconstitucionalidade da
previsão legal de atuação da autoridade policial na celebração dos acordos, que
647 BRASIL. Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841. Reformando o Codigo de Processo Criminal. Disponível em: <http://goo.gl/kqYR4K> Acesso em 28 de abril de 2018. 648 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Controle Externo..., 2002, p. 34. 649 Também nesse sentido, Didier Jr. e Bonfim prescrevem que o fato de o delegado ser “titular de poderes (situações jurídicas ativas) relativos à investigação e colheita de provas quanto à autoria e materialidade do delito” não seria suficiente para transformá-lo em “legitimado para propor a demanda penal”. Com efeito, segundo o autor “ele apenas terá capacidade negocial – desde que complementada pela participação do Ministério Público – justamente tendo como fim a investigação. DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada (Lei nº 12.850/2013): Natureza Jurídica e Controle da Validade por Demanda Autônoma – um Diálogo com o Direito Processual Civil. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, nº 62, out./dez. 2016, p. 32.
142
reconheceu a legitimidade da autoridade policial para propor o acordo650, ainda que
mediante certo esvaziamento de seu objeto.
O Ministro Marco Aurélio, relator da ação, votou pela sua improcedência,
afirmando que, em sendo a colaboração premiada um meio de obtenção de provas,
seria paradoxal retirar da autoridade policial a legitimidade para celebrá-la, já que
atua exclusivamente na sua produção durante a investigação. Em sentido
semelhante, o Ministro Alexandre de Moraes ressalvou apenas a possibilidade de a
autoridade policial propor a concessão de perdão judicial, na medida em que tal
tema prejudicaria o exercício da ação penal, que não lhe caberia (o que, por si só, é
questionável – já que o perdão poderia ser concedido ao final da ação penal651).
Da mesma forma, o Ministro Roberto Barroso excepcionou apenas a
possibilidade de concessão de imunidade (como, aliás, a própria lei já faz). A
Ministra Rosa Weber e o Ministro Luiz Fux deram parcial procedência à ação para
exigir a ratificação do acordo pelo Ministério Público. Por sua vez, o Ministro Edson
Fachin votou por afastar a legitimidade da autoridade policial, mas asseverou a
possibilidade de a autoridade policial atuar durante as negociações, pré-validando
elementos fornecidos e orientando o investigado quanto aos efeitos da futura e
eventual colaboração. Por fim, o Ministro Dias Toffoli defendeu a realização de
acordo pela autoridade policial, afastando-lhe, porém, a competência para negociar
penas ou regimes de cumprimento.
O último voto é sintomático do primeiro problema apresentado neste
subcapítulo. Na realidade, a discussão sobre a legitimidade depende de uma
definição sobre a extensão do acordo. Sendo a lei textualmente seguida (conforme
será bem delineado no subcapítulo relacionado às cláusulas dos acordos), nenhum
benefício seria garantido aos colaboradores, cabendo ao Juiz, identificando os
resultados da colaboração, defini-los. Assim sendo, o acordo não funcionaria além
de uma espécie de carta de intenções entre as partes, na qual o Ministério Público
(e, a depender do entendimento, a autoridade policial) sugeriria ao Magistrado os
benefícios que entendesse razoáveis caso cumpridas as obrigações estabelecidas
no acordo.
650 O acórdão não foi publicado até a data de conclusão deste trabalho. 651 Considerando-se que o voto não foi publicado até o presente momento, é possível que haja inconsistências na reprodução midiática do julgamento.
143
Se a concessão de benefícios dependesse da verificação judicial, após a
instrução probatória, de que os termos do acordo foram cumpridos, não haveria
qualquer óbice à celebração de idênticos acordos, seja pela autoridade policial
(desde que durante o inquérito policial), seja pelo Ministério Público. Afinal, estar-se-
ia formalizando um compromisso de colaborar do investigado/acusado com uma
previsão de concessão de benefícios que dependeria da efetividade futura da
colaboração. Nesse sentido, seria irrelevante quem fosse o representante do Estado
na negociação (a depender de seu momento, frise-se), já que caberia ao Juiz, em
uma análise do acordo ao final do processo, a sua resolução. Nesse aspecto, aliás,
seria aparentemente dispensável a própria celebração de um acordo, já que a lei
não exige a formalidade para a concessão de benefícios ao réu colaborador.
O grande percalço para esse entendimento, porém, é o fato de que a prática
forense tem conferido aos acordos um alcance infinitamente maior, com o
estabelecimento de benefícios certos e praticamente inquestionáveis quando da
sentença condenatória (e muitas vezes cumpridos de imediato, a partir da decisão
de homologação). Nesse cenário, realmente não parece ser razoável que a
autoridade policial tenha autonomia absoluta, na medida em que se fixam penas e
regimes de cumprimento (antes, inclusive, do oferecimento de denúncia), e sempre
com a expectativa de que tais previsões serão invariavelmente cumpridas caso o
colaborador não viole gravemente suas obrigações contratuais. Tais previsões não
fazem parte, de forma alguma, da atribuição da autoridade policial.
Com efeito, a questão da legitimidade, em que pese resolvida pelo Supremo,
depende mais de uma delimitação da extensão dos benefícios e do momento de
concessão (o que será objeto de estudo nos próximos capítulos) do que
propriamente da leitura do texto legal. Por ora – e verificando-se como tem se
desenvolvido a prática –, este trabalho se posiciona conforme acima delineado, no
sentido de que o acordo poderá negociado pela autoridade policial exclusivamente
no inquérito policial, desde que com o aval do Ministério Público.
Sob tal enfoque, parece que se garante a titularidade do Ministério Público na
ação penal e no âmbito da execução, assim como se observa a leitura fria da lei,
segundo a qual teriam razão os defensores da legitimidade da autoridade policial, e
não apenas porque o legislador assim previu, mas porque a natureza do instituto
permite essa compreensão, assim como o faz com outras medidas cautelares que
visam a obtenção de prova.
144
3.6 PROCEDIMENTO
No subcapítulo 3.3, este trabalho apresentou, em linhas gerais, a estrutura
legal da colaboração premiada estabelecida na Lei nº 12.850/2013, com um resumo
de todos os seus dispositivos. Neste subcapítulo, busca-se enfrentar os meandros
do procedimento para a negociação, celebração e homologação, bem como dos
desdobramentos para o reconhecimento da efetividade do acordo. Como se poderá
ver, alguns desses temas não tÊm propriamente um lastro legal, na medida em que
aquele diploma não traz todos os detalhes do procedimento. Outros tópicos deste
subcapítulo irão aprofundar assuntos já genericamente tratados, sempre com a
pretensão de não ser repetitivo.
De antemão, esclarece-se que, além do próprio texto legal e da doutrina
especializada, lançar-se-á mão do Manual de Colaboração Premiada da Estratégia
Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA)652, que é o
guia de procedimento adotado pelo referido instituto, o qual, por sua vez, é vinculado
ao Ministério da Justiça e tem como integrantes várias unidades estaduais do
Ministério Público (inclusive do Paraná), a Polícia Federal e o Ministério Público
Federal, entre outros. A amplitude de adoção do referido manual torna seguro
afirmar que se trata, em tese, do modelo que poderia estar sendo utilizado na prática
forense atual.
Além do referido Manual, far-se-á menção à Orientação Conjunta nº 1, de 23
de maio de 2018, das 2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão – Combate à
Corrupção, do Ministério Público Federal. Trata-se de documento firmado após a
celebração dos acordos que serão analisados neste estudo (e de toda a discussão
doutrinária e jurisprudencial que será enfrentada), mas que condensa, como
orientação para o futuro da colaboração premiada, “as boas práticas desenvolvidas
nos acordos anteriormente firmados pelo Ministério Público Federal”653, em uma
espécie de manual prático desenvolvido a partir da experiência prévia do referido
órgão e com o objetivo de divulgar os parâmetros atualmente exigidos quanto ao
instituto.
652 BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA). Manual – Colaboração Premiada. Janeiro de 2014. Disponível em <http:// goo.gl/9iY7fV> Acesso em 12 de março de 2018. 653 BRASIL. Ministério Público Federal. Orientação Conjunta nº 1/2018. 23 de maio de 2018. Disponível em: <http://goo.gl/i9Mieq> Acesso em 29 de maio de 2018.
145
3.6.1 A NEGOCIAÇÃO
A fase de negociação da colaboração premiada não faz parte do arcabouço
de dispositivos da Lei nº 12.850/2013. Como já se afirmou anteriormente, a primeira
menção ao acordo se dá no §6º do artigo 4º daquele diploma, mas apenas contém a
afirmação de que “o juiz não participará das negociações realizadas entre as partes
para a formalização do acordo”, o que não fornece nenhuma pista sobre como se
dará essa fase.
O Manual da ENCCLA, por sua vez, prescreve uma atuação ativa das
autoridades, recomendando que “os órgãos responsáveis pela investigação,
presentes os requisitos de admissibilidade, busquem a cooperação de pessoas
suspeitas de envolvimento nos fatos investigados e proponham a colaboração,
expondo as vantagens, independentemente da iniciativa do agente”654. O último
trecho dessa sentença, porém, deixa aberta a possibilidade de o agente, investigado
ou já acusado, apresentar-se com a intenção de colaborar.
Quanto ao primeiro contato, portanto, não parece haver muitas dúvidas. Tanto
a autoridade policial e o Ministério Público, quanto o próprio agente podem propor a
colaboração. Frise-se, porém, que a proposição dos órgãos públicos jamais pode
funcionar como coação e deve ser feita, ainda que em um momento preliminar, por
intermédio do defensor.
O grande questionamento, porém, gira em torno da discricionariedade do
primeiro contato dos investigadores e da sua admissibilidade quando feito pela
parte. Como se trata de um instrumento negocial e que, portanto, exige a
participação mútua e voluntária de investigado/acusado e agente público, não é
certa a definição sobre quando, e em quais condições será proposta a colaboração
pela polícia ou Ministério Público, ou aceita (e mesmo considerada) a sugestão do
investigado/acusado. O próprio Manual da ENCCLA prescreve que “a autoridade
policial e o Ministério Público não são obrigados a propor ou aceitar a oferta de
colaboração quando julgarem, pela circunstância do caso, que ela não é
necessária”655.
654 BRASIL, Orientação Conjunta..., 2018, p. 2. 655 BRASIL, Manual – Colaboração..., 2014, p. 3.
146
O estudo do plea bargaining norte-americano traz uma resposta para essa
dúvida656: o carrot and stick approach (em tradução literal, a abordagem da cenoura
e do bastão657). Considerando-se que a maioria dos casos dos Estados Unidos da
América são resolvidos por meio de acordo, não é do interesse – em geral – do
Ministério Público que os casos sigam para julgamento (conforme se abordou no
segundo capítulo). Assim, propõem-se os acordos sobre a lógica do carrot and stick:
caso o acusado aceite o acordo, recebe a cenoura; caso contrário, submete-se ao
bastão – havendo aqui a presunção de que, como não há interesse em julgamento,
o rigor será excessivo quando o acusado for intransigente com a barganha. É o que
explicam Hass, Moloney e Chambliss:
(...) pesquisa mostra que as pessoas que vão ao julgamento, ao invés de aceitar um acordo de barganha, são suscetíveis a receber uma punição mais severa. Isso ocorre porque os promotores costumam reduzir os pleitos em um acordo de barganha, mas não têm incentivo para fazê-lo no julgamento. Assim, os promotores costumam utilizar a negociação de barganha como uma cenoura e uma vara: pegue a barganha, obtenha a linda cenoura; escolha ir para o julgamento e pegue a vara. 658
Lippke explica que, na dinâmica dos Estados Unidos, não é incomum que os
defensores que exercem seu direito ao julgamento e perdem têm que lidar com
sentenças que mais refletem o ânimo do Ministério Público e do Poder Judiciário do
que a seriedade do caso659 . Daí a situação de inocentes tendo que aceitar os
acordos, como também se ilustrou no segundo capítulo deste trabalho. Mas é bom
que se consigne que a abordagem também pode ser explorada por um bom
advogado que saiba que os elementos de convicção contra seu cliente, ainda que
culpado, são frágeis: aproximando-se do julgamento, no qual terá maior chance de
êxito, o advogado poderá propor um acordo extremamente mais benéfico e o
656 Havendo outras, como a Análise Econômica do Direito e a Teoria dos Jogos, como bem analisado em FONSECA, C. B. G. et al. A Colaboração Premiada Compensa? Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisa/CONLEG/Senado, agosto/2015. Disponível em <http://goo.gl/dknzMt> Acesso em 12 de março de 2018. 657 Aqui, no sentido violento, como uma vara ou um porrete (embora, neste último caso, a tradução adequada seria club). 658 HASS, Aida Y.; MOLONEY, Chris; CHAMBLISS, William J. Criminology: Connecting Theory, Research and Practice. 2ª Edição. Routledge, 2017. P. 204. Tradução livre, do original: (...) research shows that people who go to trial, rather than accepting a plea deal, are more likely do receive a harsher punishment. This is because prosecutors usually reduce charges in a plea deal, but have no incentive to do so at trial. Thus, prosecutors often utilize the plea bargain like a carrot and stick: take the plea, get the nice carrot; choose to go to trial, and get the stick. 659 LIPPKE, Richard L. The Ethics of Plea Bargaining. Oxford: Oxford University Press, 2011. P. 5.
147
Ministério Público estará mais inclinado a aceitá-lo – sob pena de, nessa condição,
ser ele quem sofre as consequências do bastão.
Embora se possa extrair certa perversão da abordagem, há como transpô-la
para o universo da colaboração premiada, sobretudo no momento atual, em que é
foco do poder público o combate à criminalidade organizada e à corrupção (sendo
comuns grandes operações, processos rápidos e sentenças pesadas). Determinado
investigado/acusado que se perceba em uma investigação na qual possa ser preso
(ou na qual já esteja) ou em um processo do qual fatalmente sairá condenado a
altas penas, pode propor uma colaboração, inclusive sujeitando-se a benefícios
brandos mediante obrigações severas. Por outro lado, o Ministério Público poderá
propor um excelente acordo para um indivíduo que se suspeite ser um elemento
chave da organização criminosa, mas sobre quem não se tenha muitos elementos
indiciários à disposição. A negociação envolve a busca pela melhor alternativa à
realização de um acordo (ou BATNA – Best alternative to a Negotiated Agreement,
na expressão norte-americana660), no sentido, conforme Mendonça, de que “quanto
pior é a alternativa fora do acordo – maior a chance de um acordo”661.
Quanto mais elementos dispuser sobre um investigado, menor será a
“cenoura” oferecida pelo Ministério Público ou autoridade policial (ou menor será seu
interesse); quanto mais difícil de alcançar ou importante o investigado, menor será o
“bastão” que se lhe oferecerá e maior o benefício. Não se trata de uma operação
matemática precisa e o caráter negocial da relação estabelecida nesse momento
trará sempre incerteza sobre como se deverá proceder – o que, aliás, é causa
justificada (mas não necessariamente correta) de críticas ao instituto.
3.6.2 A PROPOSTA E A CELEBRAÇÃO DO ACORDO
Havendo interesse entre as partes envolvidas (o que certamente será
precedido do fornecimento, ainda que informal, das potenciais informações que
serão apresentadas na colaboração), a negociação progredirá para a celebração.
Esclarece-se, aliás, que a colaboração poderá ocorrer a qualquer tempo, seja antes,
660 FISCHER, Roger; URY, William; PATTON, Bruce. Getting to Yes – Negotiating na agreement without giving in. 2ª Edição. Random House Business Books, 1991, p. 51. 661 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 60. O autor acrescenta que “A lógica é do ‘ganha-ganha’ (win-win), em que as duas partes devem lograr alcançar seus objetivos e acomodar seus interesses por meio de acordo” (Ibidem, p. 62).
148
durante ou após o processo criminal662. Considerando-se que a lei prevê benefícios
específicos após a sentença (conforme artigo 4º, §5º, da Lei nº 12.850/2013), é
possível, nesse caso, a redução da pena até a metade ou a progressão do regime
para condenações transitadas em julgado. Como bem estabelece o caput do artigo
4º, o instituto tem a função de obter os resultados dos incisos I a V. Sendo essa
obtenção possível a partir de um acordo celebrado com indivíduo condenado, não
há óbice para a celebração do acordo.
O manual da ENCCLA traz uma série de recomendações sobre como será o
procedimento para a celebração, assinatura e encaminhamento do acordo ao Poder
Judiciário para homologação. Em primeiro lugar, estabelece que o colaborador, em
conjunto com seu defensor, deve ser informado de seu direito constitucional ao
silêncio e do fato de que, ao celebrar o acordo, estará renunciando-o e assumindo o
compromisso legal de dizer a verdade estabelecido no artigo 4º, §14, da Lei nº
12.850/2013. Os potenciais benefícios devem ser apresentados, com a condição de
que as informações prestadas sejam “completas, verdadeiras e úteis”663.
Ciente dessas condições, o manual recomenda que se instaure um
procedimento sigiloso no qual o acordo tomará forma 664 . É possível, nesse
momento, que o Ministério Público e/ou a autoridade policial e o
investigado/acusado assinem um termo de compromisso (ou confidencialidade) para
que as informações prestadas no referido procedimento não sejam posteriormente
utilizadas em caso de não concordância com a futura proposta de acordo665. Isso
permite que o potencial colaborador forneça informações preliminares sem o risco
de que, ciente de tais fatos, a autoridade pública faça uso delas e não lhe proponha
um acordo condizente666. Tal dinâmica foi reconhecida como uma “boa prática” na
Orientação Conjunta nº 1/2018, na qual se acrescentou a necessidade de
662 COSTA, Leonardo Dantas. Delação Premiada, 2017, p. 141. Quanto a esse ponto, parece se tratar de fundamento para afastar o argumento de que a colaboração não poderia ser utilizada em caso de presos preventivos. Se o réu condenado definitivamente pode celebrar o acordo, não parece haver motivo para que não o pudesse fazer enquanto preso provisoriamente. 663 BRASIL, Manual – Colaboração..., 2014, p. 3. 664 Possivelmente, na forma de um “pré-acordo, em que o acusador pede amostras ao delator das informações”, conforme VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 178. 665 Conforme Vasconcellos (Ibidem, p. 178), com a ressalva do autor de que não há previsão legal para esse compromisso, de modo que dever haver “extrema cautela” por parte do colaborador em tal momento. 666 O que não se confunde com a previsão do artigo 4º §10, que prevê a retratação das partes e a impossibilidade de uso das provas autoincriminatórias exclusivamente em desfavor do acusado. Nesse caso, cabe a discussão de que essas provas poderiam ser utilizadas em desfavor de terceiros, mas não contra o colaborador retratado.
149
comunicação, tanto da instauração quanto do arquivamento do procedimento
sigiloso, a uma das Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público, “para
acompanhamento e registros estatísticos”667.
No bojo do procedimento sigiloso, o investigado/acusado fornecerá os
elementos de prova que pretende apresentar em Juízo, bem como as informações
que pretende narrar. Entendendo pela pertinência da colaboração, o Ministério
Público ou a autoridade policial formulará a proposta de acordo. Aceita a proposta, o
investigado/acusado apresentará a narrativa sobre os fatos que objetivam o
acordo 668 . Naturalmente, o futuro e eventual colaborador poderá apresentar
informações sobre acontecimentos que não são diretamente relacionados a uma
existente investigação ou ação penal – o que poderá ter relevância na balança dos
benefícios que lhe serão ofertados.
As diferentes narrativas têm sido divididas no que a prática tem chamado de
anexos 669 (como ocorre na colaboração italiana, no instrumento do verballe
ilustrativo já mencionado). Basicamente, cada anexo tratará de um determinado fato
ou de um determinado grupo de pessoas e a separação tem o objetivo de preservar
o conteúdo da colaboração quando do desdobramento das investigações quanto ao
que fora apresentado670. Adotou-se essa sistemática para se evitar o que ocorreu na
já mencionada Operação Castelo de Areia, na qual se utilizou de delação anônima
para a decretação de medidas cautelares quando, na realidade, as informações
haviam sido colhidas em colaboração premiada. Como não havia separação dos
fatos narrados por colaborador em anexos, apresentar os fatos para a investigação
em que se decretaram as cautelares implicaria expor as demais informações
prestadas pelo colaborador (o que poderia prejudicar o restante da investigação).
Daí a malfadada opção pela denúncia anônima que deu causa à anulação de todo o
processo.
A formalização dos anexos deverá ser inicialmente feita por escrito e
acompanhará o termo de acordo que será encaminhado para homologação. Para
atender ao disposto no artigo 6º da Lei nº 12.850/2013, o referido documento deverá
667 BRASIL, Orientação Conjunta nº 1/2018..., 2018, p. 2. 668 Segundo Vasconcellos, “as partes deverão apresentar de modo objetivo, mas não integral, a descrição dos fatos apresentados pelo delator e as potenciais colaborações que podem advir à persecução penal” (VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 181). 669 ANSELMO, Márcio Adriano. Colaboração Premiada..., 2016, p. 119. 670 No mesmo sentido, reconheceu a Orientação Conjunta nº 1/2018 – BRASIL, 2018, p. 4.
150
conter o relato da colaboração e seus possíveis resultados671, as condições da
proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia, a declaração de aceitação
do colaborador e seu defensor, as assinaturas e a especificação das medidas de
proteção eventualmente necessárias.
Como, porém, o artigo 4º, §13, da mesma lei, prevê que, “sempre que
possível, o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de
gravação”672, parece ser recomendável que os anexos sejam ao menos lidos pelo
colaborador em mídia audiovisual, registrando-se de forma fidedigna sua narrativa.
Até o encaminhamento da proposta para a homologação – compreendido o
período de negociação das obrigações e benefícios, bem como a colheita dos
elementos indiciários e declarações do colaborador –, pode haver a retratação pelas
partes, conforme estabelece o artigo 4º §10 da Lei nº 12.850/2013. Segundo Didier
Jr. e Bonfim, quando o legislador vinculou a possibilidade de retratação ao termo
“proposta”, estabeleceu-se que a retratação de que trata o referido dispositivo
somente abrange a “exteriorização unilateral do proponente, e não o negócio jurídico
contratual já formado e, ainda mais, homologado” 673. Com efeito – aderindo-se, aqui,
a esse posicionamento, que também foi firmado na Orientação Conjunta nº 1/2018
do Ministério Público Federal –, a confecção final do acordo com seus elementos
materiais seria o último momento em que se admitiria a retratação, após o qual deve
ser remetido para homologação.
3.6.3 A HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL
O artigo 4º, §6º, da Lei nº 12.850/2013 disciplina a homologação judicial do
acordo de colaboração premiada. O dispositivo estabelece que o termo da
colaboração, acompanhado das declarações do colaborador e cópia da
investigação, será encaminhado para que o juiz verifique sua regularidade,
legalidade e voluntariedade. Quanto ao último aspecto, a lei repete o requisito do
caput (“daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente”), enfatizando a
referida característica do acordo. Ao final, o §7º prevê a possibilidade de o
671 A Orientação Conjunta nº 1/2018 estabelece que os anexos deverão conter a descrição dos fatos delitivos, duração e locais de ocorrência, identificação dos envolvidos, meios de execução, produtos e/ou proveito do crime, potenciais testemunhas e outras provas de corroboração e a indicação da estimativa do dano. 672 BRASIL, Lei nº 12.850..., 2013. 673 DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada..., 2016, p. 42.
151
magistrado ouvir o colaborador, justamente para se assegurar que se trata de
colaboração efetivamente voluntária.
A maioria da doutrina entende que o juízo de homologação guarda relação
apenas com “a tarefa de fiscalização sobre a observância das formalidades e da
legitimidade do acordo, no sentido de verificar se foram atendidos, numa primeira
análise, os pressupostos legais e observados os direitos e garantias dos
arrependidos”674. Com efeito, além de verificar se a colaboração é voluntária, o juiz
deverá realizar o “controle das cláusulas previstas no termo do acordo”675, em um
juízo preliminar de conformação legal dos benefícios e obrigações que são
formalmente estabelecidos.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal segue esse caminho, tratando
a homologação como “provimento interlocutório, que não julga o mérito da pretensão
acusatória, mas sim resolve uma questão incidente”676, em um exame externo do ato
e por meio do qual o juiz permanece na periferia do ato das partes. Segundo o
Supremo, durante tal decisão, o magistrado (que será o Relator em casos de
competência de Tribunal677) não pode emitir “nenhum juízo de valor a respeito das
declarações eventualmente já prestadas pelo colaborador à autoridade policial ou ao
Ministério Público, tampouco confere o signo da idoneidade a seus depoimentos
posteriores”678.
O posicionamento parece adequado ao que se propõe, pelo texto legal, a
colaboração premiada. Afinal, trata-se de um meio de obtenção de prova (que, logo,
não constitui em si a prova, que deve ser produzida no contraditório), que poderá
(como diz o caput do artigo 4º) produzir benefícios ao colaborador caso efetivo. Sob
essas condições, nada mais natural que, em um primeiro momento, o juiz nem
sequer se preocupe com o objeto da colaboração, já que sua preocupação material
se dará quando do momento de concessão dos benefícios.
O problema desse entendimento, que será explorado no último capítulo,
remonta os casos em que, pelo juízo de homologação, já se aplicam os benefícios
acordados (ainda que em caráter precário ou igualmente preliminar) ou são
preestabelecidas as penas que serão aplicadas. Nesses casos, como será visto
674 PEREIRA, Frederico Valdez. Delação premiada..., 2016, p. 153. 675 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 187. 676 BRASIL. Habeas Corpus 127.483/PR, 2016. 677 Conforme BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Petição nº 7074. Relator Ministro Edson Fachin. Publicado no Diário de Justiça Eletrônico de 3 de maio de 2018 678 Ibidem.
152
adiante, talvez haja um problema quanto à interpretação que se pode dar ao
requisito da legalidade (já que, para conceder benefícios imediatos ou garantir a
aplicação de uma pena, o magistrado talvez tenha que verificar quais resultados se
esperam, pelo conteúdo apresentado, do acordo) e, em decorrência, qual o impacto
que pode haver aos princípios do devido processo legal, obrigatoriedade e
indisponibilidade, juiz natural e imparcialidade do julgador (que poderá, a depender
do caso – e há casos concretos em que isso se verifica –, tomar conhecimento de
elementos indiciários e formar seu convencimento, ao menos quanto ao colaborador,
antes do oferecimento de denúncia).
Por ora, porém (e porque talvez a problemática acima apresentada não seja
representativa de um problema legal, mas da utilização prática do instituto), vale
considerar que o juízo de homologação não deve tecer qualquer consideração
material sobre aquilo que apresenta o colaborador em suas declarações, apenas
focando em aspectos procedimentais da negociação (se o defensor esteve presente
em todos os atos ou se o colaborador foi informado dos benefícios e obrigações
vinculadas, por exemplo) e da celebração (se as cláusulas correspondem às
previsões legais – também se tornará a tratar desse tema no quarto capítulo).
O §8º do artigo 4º prevê que o juiz poderá recusar a homologação de acordo
que não atender aos requisitos legais ou adequá-la ao caso concreto. Tal proposição
gerou polêmica entre os críticos do instituto, como Bitencourt e Busato, que
sustentam ser “realmente absurdo”679 que a lei, por um lado, proíba a participação
do juiz nas negociações, mas, por outro, permita a interferência “no teor do que foi
pactuado” 680. Por outro lado, Pinto sustenta que não seria plausível tal crítica em
razão do fato de que “cabe ao Magistrado a última palavra, já que a ele é dado
recusar a proposta” 681 . Os primeiros autores parecem ter razão, mas apenas
assumindo-se a interpretação de que o juiz poderia alterar questões valorativas das
cláusulas, como os benefícios ofertados e as obrigações estabelecidas. No entanto,
tal situação não parece ser a regra.
Em suma, como têm observado os autores com publicações mais recentes
(esclarecendo-se que Bitencourt e Busato publicaram seu trabalho poucos meses
após a promulgação da lei), a adequação a que se refere a lei guarda mais relação
679 BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei..., 2014, p. 132. 680 Ibidem, p. 132. 681 PINTO, Ronaldo Batista. A colaboração premiada..., 2013, p. 28.
153
com a anulação de cláusulas flagrantemente ilegais (“como renúncias
inconstitucionais ou obrigações abusivas”682) ou a abertura de prazo para que as
partes reformem previsões fundamentadamente rejeitadas pelo magistrado (o qual,
frise-se, também exerce o controle do princípio da obrigatoriedade, verificando se o
acordo está conforme as previsões legais).
Nesse sentido, vale menção à decisão do Juízo da 5ª Vara Federal de Mato
Grosso, que, nos autos nº 11109.2017.4.01.3600683, deixou de homologar acordo
que previa benefício e obrigação ilegais. No caso, o colaborador havia sido
condenado à pena de 14 (quatorze) anos de reclusão e tinha pendente contra si
uma ação penal prestes a ser sentenciada. No acordo, estabeleceu-se a redução
total da pena (somando-se ambas as ações) em dois terços, com o limite máximo de
6 (seis) anos, cumprindo-se 1 (um) ano e 9 (nove) meses em regime semiaberto.
Na oportunidade, o Juiz consignou que a lei limita a redução, após a
condenação, em até a metade da pena aplicada, mas garantiu ao colaborador que o
cumprimento da pena deveria seguir os limites de progressão da Lei de Execução
Penal, e não um valor previamente definido e superior ao montante de um sexto da
pena. Ao invés de simplesmente alterar o acordo (o que até não seria desarrazoado,
já que tais cláusulas poderiam ser tidas como manifestamente ilegais), o Juiz
oportunizou às partes a sua adequação em vinte dias. Com as alterações feitas
(redução da metade da pena, sem limites de progressão), o acordo foi prontamente
homologado.
O manual da ENCCLA prevê que “a decisão negativa de homologação
sempre desafiará recurso tanto pelo Ministério Público quanto pela defesa”. A lei,
porém, não estabelece tal possibilidade e tampouco o recurso cabível. Em razão da
natureza da colaboração premiada e da decisão não-homologatória (que tem caráter
interlocutório), a lógica do Código de Processo Penal indicaria o cabimento de
Recurso em Sentido Estrito. No entanto, como o rol do artigo 581 é taxativo,
segundo o atual entendimento doutrinário e jurisprudencial, tal possibilidade
somente surgiria em caso de recusa pela declaração de incompetência do juízo684.
Caso a negativa tenha outro fundamento, duas possibilidades surgem. A uma, como
682 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 188. 683 BRASIL. Mato Grosso. 5ª Vara Federal de Mato Grosso. Autos nº 11109.2017.4.01.3600. Juiz Jefferson Schneider. Decisão disponibilizada em 31 de agosto de 2017. 684 VERÍSSIMO, Carla. Principais questões sobre a competência para a homologação do acordo de colaboração premiada. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Colaboração Premiada. São Paulo: RT, 2017, p. 117.
154
defende Vasconcellos, caberia correição parcial 685 ; a duas, em se tratando de
decisão definitiva proferida por juiz singular em caso não previsto naquele
dispositivo, caberia apelação, conforme artigo 593, II, do Código de Processo
Penal686. Também se poderia considerar, se não homologado o acordo celebrado na
fase do inquérito (sem o oferecimento de denúncia e instauração de ação penal,
mas apenas de procedimento sigiloso para homologação do acordo), a impetração
de mandado de segurança.
Parte da doutrina ainda sustenta que “a homologação do acordo também
deveria ser impugnável, especialmente pelos corréus que possam ser prejudicados
pela concessão dos benefícios em troca das declarações incriminatórias” 687 . O
Supremo Tribunal Federal, porém, rechaçou essa possibilidade no julgamento do
Habeas Corpus nº 127.483, sustentando que “por se tratar de um negócio jurídico
processual personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser
impugnado por coautores ou partícipes”688. A única exceção, por ora, parece ser a
impugnação por terceiros quanto à incompetência do Juízo que homologou o
acordo, conforme acórdão do Habeas Corpus nº 151.605/PR, de relatoria do
Ministro Gilmar Mendes689.
3.6.4 O JUÍZO DE EFICÁCIA
Após estabelecer que o juiz poderá conceder os benefícios se o colaborador
tiver atuado efetivamente com a investigação, a Lei nº 12.850/2013 prevê, no §11 do
artigo 4º que “a sentença apreciará os termos do acordo homologado e sua
eficácia” 690 . Sob a perspectiva legal, portanto, é ao final do processo que o
magistrado irá se voltar ao acordo de colaboração e analisar sua eficácia (em termos
de obrigações e compromissos do colaborador).
Alguns problemas se extraem dessa leitura: a) em primeiro lugar, a qual
sentença se refere o dispositivo (considerando-se que o acordo pode ser celebrado
após a condenação)?; b) em segundo, como será feita a verificação da eficácia?
685 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 187. 686 Nesse sentido: VERÍSSIMO, Carla. Principais questões..., 2017, p. 116. 687 VASCONCELLOS, op. cit., p. 187. 688 BRASIL, Habeas Corpus nº 127.483, 2016. 689 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 2ª Turma. Habeas Corpus nº 151605/PR. Relator Ministro Gilmar Mendes. Julgado em 20 de março de 2018. Ata de julgamento publicada no Diário de Justiça Eletrônico em 3 de abril de 2018. 690 BRASIL, Lei nº 12.850..., 2013.
155
3.6.4.1 A SENTENÇA
Em relação ao primeiro questionamento, apenas uma resposta é –
aparentemente – simples: caso a colaboração seja celebrada antes da sentença
condenatória da ação penal vinculada (seja no inquérito, seja no seu curso), é nela
que se deve analisar a sua eficácia. Caso o colaborador já tenha sido condenado em
outra ação penal e o acordo celebrado em novo processo, a sentença desse
aproveitará à daquela (se, naturalmente, englobada no mesmo instrumento).
Situação curiosa ocorre, porém, no caso de colaboração posterior à condenação
(inclusive após o trânsito em julgado) e cujos elementos de prova decorrentes sejam
utilizados em novos processos dos quais o colaborador não seja parte. Nesse caso,
não haverá nova sentença que possa cumprir a tarefa do §11.
Caso se trate de colaboração posterior à sentença, o manual da ENCCLA
indica que tal análise se dará pelo “Tribunal a quem competir o julgamento do
recurso ou pelo Juízo das Execuções Penais”691.
Curiosamente, Jesus sugeria em 2005 (portanto, vários anos antes da lei e da
prática atuais) que, no caso de colaboração premiada celebrada após o trânsito em
julgado, a análise da eficácia ocorresse mediante revisão criminal692. Segundo o
autor, admitindo o art. 621, III do Código de Processo Penal a “rescisão da coisa
julgada no crime” a partir da “descoberta de nova prova de ‘inocência do condenado
ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial de pena’” 693,
seria sustentável tal instrumento processual.
3.6.4.2 A EFICÁCIA E A EFETIVIDADE DO ACORDO
Como se disse logo acima, dois dispositivos da Lei nº 12.850/2013
condicionam a concessão de benefícios à efetividade e à eficácia da colaboração,
respectivamente. Evidentemente, há diferenças entre ambas – e talvez seja esse um
691 BRASIL, Manual – Colaboração..., 2014. 692 JESUS, Damásio de. Estágio atual da delação premiada no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 854, 4 de novembro de 2005. Disponível em <http://goo.gl/21hTF> Acesso em 12 de março de 2018. 693 Ibidem.
156
tópico de pouca clareza do texto legal. Azevedo tenta diferenciá-las, posicionando-
se quanto ao requisito para a concessão do benefício:
O requisito da efetividade da colaboração não se confunde, portanto, com sua eficácia, dado ou condição prevista na parte final do dispositivo. Para a concessão do perdão judicial, deve a colaboração ser voluntária, efetiva e deve de algum modo ser eficaz, a produzir ao menos um dos efeitos desejados que empolgaram o acusado a colaborar. Vale dizer, deve dela ter resultado ou a identificação dos co-autores ou partícipes, ou a localização da vítima ou a recuperação total ou parcial do produto do crime. A eficácia, destarte, coloca-se como resultado posterior que independe da natureza da colaboração.694
Por sua vez, Costa agrega o conceito de eficiência (no sentido de “aptidão do
meio pelo qual se quer atingir certo resultado”695) à matemática da colaboração,
sustentando que é “obrigação do colaborador realizar uma colaboração eficiente e
eficaz, porém não necessariamente efetiva” 696. Para ele, a colaboração apenas
exigiria do colaborador, sob a perspectiva da eficiência, “uma participação positiva e
ativa (...) a fim de assegurar, por suas atitudes, a utilidade da colaboração” 697. Com
efeito, se “demonstrar interesse e apoio aos órgãos de investigação, revelando todos
os fatos dos quais tenha ciência”698, cumpriria esse requisito.
Acontece que, como inclusive observa Costa, a lei exige a verificação da
eficácia e da eficiência como requisitos para o sucesso do acordo. A primeira seria a
verificação de que o colaborador cumpriu aquilo que se propôs no acordo. Ou seja,
se foi acordado que iria revelar a estrutura hierárquica da organização criminosa e
identificar os corréus, mas apenas cumpriu o segundo objetivo, sua colaboração não
seria eficaz699.
Quanto à efetividade, entendida como o resultado penal da colaboração (isto
é, a condenação dos corréus mediante meios de prova oriundos do acordo, entre
outros), o autor entende não se tratar de um requisito válido, na medida em que
“foge às obrigações do colaborador” 700 . Vasconcellos segue a mesma linha,
afirmando que “a aferição da efetividade não pode depender da obtenção da
694 AZEVEDO, Davi Teixeira de. A colaboração premiada num direito ético. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 7, nº 83, outubro de 1999, p. 6. 695 COSTA, Leonardo Dantas. Delação Premiada, 2017, p. 134. 696 Ibidem, p. 134. 697 Ibidem, p. 134. 698 Ibidem, p. 134. 699 Ibidem, p. 134. 700 Ibidem, p. 134.
157
condenação ou prisão de corréu, da apreensão total do produto do crime ou da real
utilização das informações prestadas pelo colaborador às autoridades policiais na
investigação ou pelo julgador na sentença condenatória”701.
É adequado esse posicionamento, que já foi reconhecido pelo Supremo
Tribunal Federal, quando do julgamento do Habeas Corpus nº 127.483, no qual
afirmou que “a aplicação da sanção premial nele prevista dependerá do efetivo
cumprimento pelo colaborador das obrigações por ele assumidas” 702 , com a
produção dos resultados previstos no caput do artigo 4º. Como o precedente fala na
obtenção de resultados “para a investigação”, pode-se concluir que não se exige do
colaborador que de suas palavras e provas decorrentes advenha a condenação.
O tema é polêmico e se tornará a falar do assunto, no capítulo seguinte,
quando da análise dos princípios elencados no primeiro capítulo sob a perspectiva
pós-colaboração premiada.
3.6.5 A RESCISÃO DO ACORDO
No subcapítulo referente à proposta do acordo de colaboração, sustentou-se
que a retratação a que se refere o art. 4º, §10 da Lei nº 12.850/2013 seria
temporalmente limitada ao momento da assinatura do acordo e sua consequente
remessa para homologação. A partir disso, indagam-se as possibilidades de ruptura
do acordo após a homologação, na medida em que a lei nada dispõe sobre essa
fase posterior e extintiva da colaboração premiada.
Conforme observa Vasconcellos, a disciplina da rescisão – mais
especificamente, os motivos para tal conduta – é costumeiramente tratada nos
próprios acordos, onde se tem estabelecido “um procedimento específico para o
caso de rescisão do acordo”703. No corpo do acordo, além das causas pactuadas de
rescisão, deve-se estabelecer a forma como se procederá à apuração daquelas, em
geral com a imposição de notificação das partes e a realização de audiência de
justificação704. A determinação final caberá ao Juiz da causa, já que, como salienta
Rosa, “a rescisão não pode decorrer da vontade unilateral, devendo-se apurar a
701 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 204. 702 BRASIL, Habeas Corpus nº 127.483, 2016. 703 VASCONCELLOS, op. cit., p. 252. 704 Ibidem, p. 252.
158
efetiva violação dos termos pactuados”705. Segundo o Ministério Público Federal, a
apuração pode ser feita mediante a instauração de procedimento administrativo
paralelo, “quando necessário coletar novas evidências sobre as causas de
rescisão”706, ou por “provocação direta do juízo, quando a causa de rescisão for
constatada sem a necessidade de novos dados ou evidências” 707.
A dinâmica da rescisão está em plena discussão sobretudo em razão do
pedido formulado pela Procuradoria-Geral da República, nos autos da Petição nº
7003, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, pelo desfazimento dos acordos
celebrados com os colaboradores da JBS, em rumoroso caso recente. Embora
vários meios de comunicação tenham noticiado que os acordos já foram rescindidos
pelo Ministério Público Federal708, o que se tem é um pedido para que a Suprema
Corte verifique e efetivamente dê fim aos referidos instrumentos. A competência
para fazê-lo nesses casos, porém, parece não ser mais apenas do Ministro Relator
que homologou os acordos, mas do colegiado, “garantido o devido processo legal,
porque refoge aos limites da mera homologação, diante do conteúdo decisório da
configuração da violação contratual e suas consequências”709.
Rosa ainda sugere, em alusão que faz ao próprio acordo dos executivos da
JBS, que pode ser cabível, a depender do caso, sua renegociação caso seja
descumprida alguma cláusula que não justifique a rescisão. Segundo ele, “a partir da
boa-fé objetiva e do dever de cooperação, eventual erro ou falta de informações
corroboradas de pequena parcela do conteúdo delatado, pode significar a
deslealdade do Estado, via resolução do termo do acordo”710. Caso se constate que
o acordo foi descumprido por blefe711 do colaborador, que “vendeu” uma informação
que nunca teve, seria adequada a rescisão. No entanto, “se o delator ‘abre o saco
de informações’ contra 1500 delatados e obtém resultado positivo em 1400, viola a
705 ROSA, Alexandre Morais da. Para entender a delação premiada pela teoria dos jogos. Florianópolis: EModara, 2018, p. 329. 706 BRASIL. Orientação Conjunta nº 1/2018..., 2018, p. 12. 707 Ibidem, p. 12. 708 Nesse sentido: <https://www.conjur.com.br/2017-set-14/delacao-executivos-jbs-foi-rescindida-informa-pgr-supremo> e <https://g1.globo.com/politica/noticia/pgr-rescinde-acordos-de-delacao-de-wesley-batista-e-francisco-de-assis-e-silva.ghtml> Acesso em 19 de maio de 2018. 709 LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Delação não pode ser rescindida unilateralmente por capricho do Estado. Consultor Jurídico. 6 de outubro de 2017. Disponível em: <http://goo.gl/dD7MpJ> Acesso em 19 de maio de 2018. Em igual sentido: ROSA, op. cit., p. 330. 710 ROSA, op. cit., p. 332. 711 Ibidem, p. 333.
159
boa-fé rescindir por ausência de corroboração”712. Outro caminho possível para a
preservação do acordo é extraído da Orientação Conjunta nº 1/2018, do Ministério
Público Federal, que recomenda a “inserção de cláusula com previsão de sanções
ao colaborador que omitir informações pontuais, quanto a um elemento probatório
ou a agentes diversos, circunstância que pode não ensejar, por si só, a rescisão do
acordo”713.
De qualquer forma, reconhecida judicialmente a rescisão do acordo, resta o
questionamento sobre a validade das provas produzidas e seu uso em face do ex-
colaborador. O texto legal, quanto à retratação da proposta, estabelece que as
“provas autoincriminatórias apresentadas não poderão ser utilizadas exclusivamente
em seu desfavor”714. Admitindo-se a previsão também para a hipótese de rescisão,
três interpretações possíveis são apresentadas por Vasconcellos715: a) na primeira,
as provas apresentadas não poderiam ser as únicas para a condenação do ex-
colaborador; b) na segunda, apenas a confissão não teria valor, podendo as demais
provas ser introduzidas no processo para valoração judicial; c) na terceira, os
elementos do acordo somente poderiam ser utilizados em face de corréus e
partícipes.
Para o autor, a terceira hipótese seria a mais adequada, até porque “como
pressuposto do acordo (para verificação de sua adequação/idoneidade, necessidade
e proporcionalidade) e como requisito para sua validade (adequação/exatidão), é
preciso que já existam elementos independentes e prévios ao acordo”716 contra o ex-
colaborador, de modo que o afastamento dos elementos por ele apresentados (e
apenas contra si) não impediriam sua persecução e eventual condenação.
Pensa-se, porém – e em perspectiva preliminar, já que o tema merece melhor
reflexão –, que não é esse o conteúdo do art. 4º, §10, da Lei nº 12.850/2013. Sob a
leitura da lei, os elementos apresentados pelo colaborador não podem ser
exclusivos de sua condenação, no sentido de necessitarem de corroboração
externa, mas não parece ter sido opção do legislador que fossem integralmente
descartados. Evidentemente, com a rescisão do acordo, rescinde-se, também, a
renúncia do direito à não-autoincriminação (art. 4º, §14), de modo que a confissão
712 ROSA, Alexandre Morais da. Para entender a delação..., 2018, p. 333. 713 BRASIL. Orientação Conjunta nº 1/2018..., 2018, p. 12-13. 714 BRASIL. Lei nº 12.850…, 2013. 715 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 253. 716 Ibidem, p. 254.
160
perde valor nesse cenário. No entanto, eventuais elementos de prova material que
tenham sido apresentados poderiam vir a ser utilizados em seu desfavor, desde que
acompanhados de outras provas judiciais no mesmo sentido.
Certamente, os Tribunais irão definir o definitivo posicionamento sobre o
tema. Até o presente momento, no entanto, o que se tem é a afirmação concreta de
que, revogado o acordo, os elementos de prova poderão ser utilizados contra
terceiros717.
3.7 O SISTEMA DE BENEFÍCIOS E OBRIGAÇÕES
No subcapítulo 3.3, já se apresentaram, de forma genérica, os prêmios e
obrigações previstos na lei. Seguindo o que se afirmou, e de uma forma mais
organizada, podem se dividir os primeiros em benefícios processuais, penais e de
execução penal (ou penitenciários), que podem ser aplicados cumulativamente718.
Os processuais são aqueles descritos no artigo 4º, §§3º e 4º, que preveem a
suspensão do prazo para oferecimento de denúncia por até 12 (doze) meses e a
imunidade processual para o colaborador que não for o líder da organização
criminosa e for o primeiro a prestar a colaboração. Os penais estão contidos no
caput do artigo 4º e em seu §5º e correspondem ao perdão judicial, à redução de
pena em até dois terços (se até a sentença) e até a metade (se após a sentença) e à
substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Por fim, os
benefícios de execução penal estão previstos no §5º do artigo 4º e no artigo 5º, VI
da Lei nº 12.850/2013, quais sejam a progressão de regime ainda que ausentes os
requisitos objetivos para tanto e o cumprimento de pena em estabelecimento penal
diverso daquele em que estarão os demais corréus ou condenados.
717 Conforme BRASIL. Habeas Corpus nº 127.483, 2016 e BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 3.983. Relator Ministro Teori Zavascki. Acórdão publicado em Diário de Justiça Eletrônico em 10 de outubro de 2016. 718 Nesse sentido, Mendonça exemplifica que “pode ser a concessão de imunidade em relação a parte dos fatos, concedendo-se os benefícios previstos para os demais fatos restantes. Imagine-se uma situação em que o colaborador faz acordo de colaboração premiada sobre fatos em que havia investigação e, ainda, narra diversos outros fatos para os quais não havia sequer linha investigativa. Se o MP pode conferir imunidade para todos os fatos, não há vedação para que confira imunidade para parte dos fatos, desde que preenchidos os requisitos para a concessão da imunidade (...).” MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 76.
161
Por sua vez, as obrigações ao colaborador estão contidas no caput do artigo
4º e envolvem os resultados dos incisos (que dependerão de cada caso e não são
necessariamente cumulativos), nos §§ 9º e 12, que estabelecem a sua
disponibilidade para ser ouvido (tanto na investigação quanto em juízo, a
requerimento das partes ou da autoridade judicial) e no §14, que prevê a renúncia
ao direito ao silêncio e a sujeição ao compromisso legal de dizer a verdade.
A rigor, portanto, essas são as previsões legais. O colaborador pode receber
esse número de benefícios desde que sua colaboração obtenha os resultados do
caput, ele se mantenha disponível à investigação e ao processo e não falte com a
verdade em Juízo.
A simplicidade dessa afirmação, porém, é incapaz de representar a
complexidade dos acordos de colaboração que têm sido celebrados em território
nacional. Nas duas pontas – benefícios e obrigações –, há inúmeros exemplos de
inovações forenses em cláusulas reais de acordos e várias discussões sobre as
circunstâncias em que os benefícios serão concedidos. Embora o próximo capítulo
vá se debruçar sobre a realidade da colaboração premiada, ilustrando algumas
dessas situações e indicando de que maneira se poderia extrair ao menos uma
mudança na estrutura principiológica do processo penal brasileiro (e, talvez, a
ilegalidade de algumas práticas), neste tópico, pretende-se apresentar o problema e
enfrentar algumas das discussões mais abstratas sobre o sistema de benefícios e
obrigações da Lei nº 12.850/2013.
3.7.1 A AMPLITUDE DOS BENEFÍCIOS E OBRIGAÇÕES
Vasconcellos observa, que, “nos acordos firmados no âmbito da Operação
Lava Jato, percebe-se o total afastamento das previsões normativas acerca dos
benefícios possíveis ao colaborador” 719 . Segundo o autor, “a prática tem se
caracterizado pela determinação quase exata das punições a serem aplicadas, em
regimes e progressões totalmente estranhos ao ordenamento jurídico brasileiro”720.
Por exemplo, tornou-se comum na referida operação (na qual muitos dos
colaboradores são réus de múltiplas ações penais) o estabelecimento de um “teto”
penal, o qual, após atingido, determina a suspensão dos demais processos por
719 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 150. 720 Ibidem, p. 150.
162
longos prazos. Após esses prazos, a punibilidade será extinta. Da mesma forma,
muitos desses mesmos acordos, que estabelecem um “teto” geralmente alto (vinte
ou trinta anos de reclusão), preveem o cumprimento da pena em condições
absolutamente desconexas numericamente721.
Nesse sentido, não é incomum que, seguindo o exemplo mencionado por
Vasconcellos722, uma pena máxima de 20 (vinte) anos seja cumprida em prazos
muito menores, com 2 (dois) ano e 3 (três) meses em regime fechado e 9 (nove)
meses em regime semiaberto, “o que caracteriza uma fração de 85% de diminuição,
extrapolando o máximo previsto na legislação de dois terços”723.
O cumprimento, por sua vez, também é heterodoxo. Criou-se a figura do
regime diferenciado, que, na realidade, corresponde a uma prisão domiciliar que
pode ser mais ou menos rígida (no caso do regime fechado diferenciado, tem-se
uma efetiva reclusão domiciliar, sem direito a saídas; no caso do semiaberto, o
colaborador pode sair para trabalhar, ficando eventualmente monitorado por
tornozeleira eletrônica724; no aberto, algumas pequenas restrições são impostas à
rotina diária, como o comparecimento periódico em juízo e a necessidade de
autorização judicial para viagens). Alguns acordos podem ser extremamente
detalhados, com várias concessões sobre a forma de cumprimento, “como datas
previstas de saídas de residência, lista de visitantes autorizados, hipóteses de
exceções emergenciais etc.”725.
O referido autor afirma que tais cláusulas constituem um “sistema
completamente ilegal, em total violação às disposições normativas do ordenamento
brasileiro”726, indicando que “a falta de limites à colaboração premiada desvirtua
completamente as premissas do processo penal, possibilitando indevidas brechas
para abusos e arbitrariedades”727.
O posicionamento era corroborado pela orientação da ENCCLA (que compôs,
justamente, o manual das instituições que participam da colaboração premiada), que
dispôs expressamente que “não devem ser homologados acordos que tragam
721 Em prática que foi referendada, em 23 de maio de 2018, pela Orientação Conjunta nº 1/2018, do Ministério Público Federal. BRASIL, 2018, p. 10. 722 Ibidem, p. 151. 723 Ibidem, p. 151. 724 Conforme BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 5ª Turma. Agravo em Recurso Especial nº 1.012.561/PR. Relator Ministro Felix Fischer. Publicado em 11 de abril de 2017. 725 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 152. 726 Ibidem, p. 152. 727 Ibidem, p. 153.
163
predefinido o quanto de redução de pena a ser aplicado” 728 . A justificativa da
Estratégia era bastante razoável, considerando que “devido ao valor da confissão
(...), o colaborador pode vir a ser absolvido” 729. Ressalva-se, porém, que o Ministério
Público Federal, na Orientação Conjunta nº 1/2018, seguiu sentido contrário à
ENCCLA, admitindo tais previsões como “boas práticas” da colaboração premiada.
Com elevado esforço argumentativo e analógico, porém, talvez se possa
ressalvar a aplicação de regime diferenciado doméstico, ainda que não com todas
as particularidades que são observadas na prática. É que, quando a Lei nº
12.850/2013 permite, no §5º do artigo 4º, a progressão de regime ainda que
ausentes os requisitos objetivos, poder-se-ia argumentar que estaria autorizada a
aplicação da prisão domiciliar do artigo 317 do Código de Processo Penal mediante
monitoração eletrônica, conforme autoriza o artigo 146-B, IV, da Lei de Execução
Penal. Embora não seja propriamente um regime de cumprimento de pena (o que, a
rigor, afastaria a taxatividade legal da permissão), os defensores do benefício
poderiam sugerir que nada mais se estaria fazendo que não aplicar tais disposições
a um caso que não preenche os requisitos legais (quais sejam a idade superior a
oitenta anos, a debilitação de saúde, os cuidados de menor de seis anos, a gestação
e a condição de responsável por filho menor de doze anos).
Por outro lado, no sentido da possibilidade de concessão de tais benefícios
penais extremamente generosos, caberia o argumento utilizado pelo Juízo da 5ª
Vara Federal de Mato Grosso, no procedimento antes mencionado. Ainda que
tivesse, naquele caso, recusado a homologação de acordo que estabelecia “teto”
penal, justamente porque o Ministério Público não teria atribuição de fixar pena
(especialmente após a sentença), o Magistrado afirmou que o órgão acusatório
“pode negociar por ocasião da celebração do acordo a pretensão acusatória (ius ut
procedatur), isto é, o que está compreendido dentro de seu âmbito de atribuição
constitucional”730.
Em se entendendo que o Ministério Público não é apenas o titular da ação
penal, no sentido de ser a instituição constitucionalmente compelida a promover o
processo, mas, por assim dizer, o “dono” da pretensão punitiva – como é nos
Estados Unidos da América, como já se viu –, não seria absurda a ilimitada
728 BRASIL. Manual – Colaboração..., 2014, p. 9. 729 Ibidem, p. 9. 730 BRASIL. Autos nº 11109.2017.4.01.3600, 2017, p. 5.
164
amplitude na concessão dos benefícios. Embora não se concorde integralmente com
esse posicionamento, voltar-se-á a esse tema quando da análise, no último capítulo,
sobre os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal.
Outros benefícios não previstos em lei têm sido igualmente aplicados aos
casos reais de colaboração premiada, como a extensão de benefícios a familiares, a
devolução de valores e outras vantagens patrimoniais (como a redução da multa),
bem como a ampliação do acordo para outros Juízos e esferas do direito. Em razão
da limitação do escopo deste estudo, apenas o último será melhor analisado no
quarto capítulo, quando da verificação do potencial conflito dessa aplicação prática
com o princípio do Juiz natural.
Quanto às obrigações que se impõe aos acusados, também há um relevante
acervo de previsões não estabelecidas na Lei nº 12.850/2013. Além da
disponibilidade para comparecer ao processo, o compromisso com a verdade e a
renúncia ao direito ao silêncio731, há cláusulas que vedam a interposição de recursos
(em geral, permitindo a impugnação apenas quanto a aspectos do acordo que não
forem observados) e determinam a renúncia a Habeas Corpus previamente
impetrados732. Em uma oportunidade, o Supremo Tribunal Federal já pôde anular
uma cláusula dessa natureza, sob a afirmação de que “as cláusulas do acordo não
podem servir como renúncia, prévia e definitiva, ao pleno exercício de direitos
fundamentais”733. No entanto, o alto número de acordos celebrados em todo o país e
a impossibilidade de impugnação, pelos corréus, da decisão de homologação, torna
difícil o reconhecimento da ilegalidade de tais previsões se o Juízo competente
aquiesce a tal possibilidade.
Essa conclusão é indicativa de uma circunstância essencial da dinâmica de
fixação de benefícios e obrigações nos acordos que parece ser deixada de lado
pelos principais críticos do instituto: o interesse do colaborador. Ao renunciar a
vários direitos e garantias constitucionais, o investigado/acusado exige, para si, uma
série de vantagens sem as quais não celebraria a colaboração. Da mesma forma,
talvez a Operação Lava Jato, por exemplo, não se tornasse o maior caso penal
731 O que também é considerado ilegal por alguns autores, como BITENCOURT, 2014, p. 134. Em sentido favorável à previsão: QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012. P. 258. 732 Além de outras previsões expressas na Orientação Conjunta nº 1/2018, tais como o valor mínimo de reparação do dano e sua destinação, obrigações de governança corporativa e compliance etc. 733 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet. 5.244. Relator Ministro Teori Zavascki. Julgado em 19 de fevereiro de 2014, p. 117 apud VASCONCELLOS, 2017, p. 162,
165
envolvendo corrupção da história do país se o Ministério Público não lançasse mão
de benefícios amplos e não previstos em lei acima exemplificados (o que, é
inegável, configura um conflito – também possivelmente moral – com as atribuições
naturais de um agente ministerial734). Sem os primeiros acordos celebrados sob tais
termos, provavelmente não se chegaria a outros acordos melhor inseridos no âmago
criminoso de uma grande organização criminosa como a que envolveu as maiores
empreiteiras do país, a Petrobras e a alta cúpula do Governo Federal.
Não há, evidentemente, respostas simples para esses problemas: de um
lado, busca-se a proteção dos direitos do colaborador (que deles abriu mão
voluntariamente quando aderiu ao acordo proposto) e dos corréus delatados (que
não têm o direito de impugnar essa dinâmica e são diretamente impactados com o
conteúdo das colaborações); do outro, busca-se uma eficiência do sistema criminal
brasileiro, com a apuração de crimes gravíssimos e que presumidamente não seriam
descobertos de outra forma. Este trabalho, porém, não se propõe a sugerir tais
respostas; seu objetivo central é demonstrar, com base em exemplos ilustrativos, em
que medida a colaboração premiada pode ter transformado a compreensão de
princípios e garantias que, antes, compunham a fundação do processo penal
brasileiro.
3.7.2 O MOMENTO DE CONCESSÃO DOS BENEFÍCIOS
O último aspecto que se pretende analisar neste capítulo – o qual terá
profunda relevância no desenvolvimento do próximo tópico – diz respeito ao
momento em que os benefícios previstos nos acordos podem vir a ser concedidos
ao colaborador, se apenas ao final do processo do qual o colaborador é réu ou já a
partir da homologação judicial.
A leitura fria da lei não parece abrir muitas brechas quanto ao tema (o que
deveria, por si só, afastar a própria relevância deste subcapítulo). É que, desde o
caput do artigo 4º da Lei nº 12.850/2013, tem-se a clara mensagem de que “o juiz
poderá, a requerimento das partes” 735 , conceder os benefícios ali previstos ao
colaborador “que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e
734 E também do Juiz, que, como afirma Azevedo, incorre em um “desvio lógico do magistério punitivo” quando deixa de “punir uma conduta que preenche todos os requisites legais de punição”. AZEVEDO, Davi Teixeira de. A colaboração premiada..., 1999, p. 6. 735 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013.
166
com o processo criminal” 736 , se alcançados algum dos resultados dos incisos
seguintes. Na sequência, o §6º afasta a participação do juiz nas negociações do
acordo e o §7º estabelece que, na homologação, o magistrado fará um juízo
prelibatório, verificando a regularidade, legalidade e voluntariedade do instrumento.
Por fim, o §11 estabelece que a sentença analisará os termos do acordo e sua
eficácia.
Ora, apelando-se à lógica, se o juiz poderá aplicar benefícios apenas se o
investigado/réu colaborar com a investigação e, cumulativamente, com o processo, é
evidente que o caput estabelece o final da ação como o momento adequado.
Ademais, como a lei não abre brechas para que o juiz participe das negociações e
determina uma homologação meramente formal, não há qualquer admissão para
que o conteúdo do acordo seja por ele analisado antes do final do processo – que é
onde estará o único ato processual previsto na lei (a sentença) em que os termos do
acordo e sua eficácia serão analisados.
O manual da ENCCLA prevê a indispensabilidade de devido processo legal
para a concessão dos benefícios. Em outro trecho que vale menção, o documento
estabelece taxativamente que
ainda que possam advir reflexos favoráveis à situação do colaborador, conforme sua disposição em colaborar, a aplicação do instituto, que decorre de sentença condenatória, impõe obediência ao devido processo legal, de cognição exauriente, própria das sentenças de mérito proferidas ao final da instrução.737
A doutrina, por sua vez, segue a mesma linha. Pinto, por exemplo, entende
como exigível que qualquer consequência de natureza penal ao colaborador
advenha de uma sentença, evitando-se “qualquer amesquinhamento na função
primordial do Poder Judiciário”738 e preservando-se “os princípios da ampla defesa e
do contraditório, pois há, sim, um processo a anteceder a sentença” 739. Em igual
sentido, Vasconcellos sustenta que é “no sentenciamento” 740 que “será analisada a
736 BRASIL. Lei nº 12.850..., 2013. 737 BRASIL. Manual – Colaboração..., 2014. 738 PINTO, Ronaldo Batista. A colaboração premiada..., 2013, p. 28. 739 Ibidem, p. 28. 740 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 199.
167
efetividade da colaboração prestada, com o objetivo de determinar os benefícios que
serão concedidos em concreto ao delator”741.
A discussão doutrinária que se segue quanto ao tema, porém, geralmente
foge das maiores particularidades sobre outro momento em que serão concedidos
os benefícios (com a ressalva do prêmio da imunidade processual), passando-se a
tratar da vinculação do magistrado aos termos do acordo proposto, na já
mencionada discussão sobre o direito subjetivo do colaborador.
No entanto, Vasconcellos alerta que “tem-se notícia de acordos de
colaboração premiada contendo cláusulas que determinam o início do cumprimento
das penas neles fixadas logo após a homologação judicial”742. Nesses casos, como
se verá adiante, há toda uma nova dinâmica para a colaboração premiada, com a
homologação funcionando como uma decisão que antecipa os efeitos do acordo,
aplicando-os de imediato – como em uma efetiva transação penal.
É a partir desses casos que seguirá o presente trabalho. Como será visto no
capítulo seguinte, com a admissão de tal sistema sumário de concessão de prêmios
ao colaborador, surgem vários problemas com o status quo do processo penal
brasileiro, impactando uma série de princípios que antes eram considerados regras
imutáveis do sistema.
741 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Colaboração Premiada..., 2017, p. 199. 742 Ibidem, p. 173.
168
4 O PROCESSO PENAL BRASILEIRO PÓS-COLABORAÇÃO
Após a incursão ao instituto da colaboração premiada da Lei nº 12.850/2013,
passa-se a uma análise prática do instituto e dos potenciais conflitos com os
princípios endereçados no primeiro capítulo que se podem extrair de acordos
realizados em território nacional. Além da análise de acordos reais, que abrangerá
os primeiros tópicos deste último capítulo (envolvendo a análise dos impactos de
algumas práticas da colaboração premiada com os princípios nulla poena sine
judicio, presunção de inocência, juiz natural, ampla defesa, obrigatoriedade e
indisponibilidade da ação penal), pretende-se analisar, no último subcapítulo, a
posição da jurisprudência quanto ao uso da colaboração premiada como prova de
condenação, para cotejá-la aos tradicionais conceitos dos princípios do contraditório
e da presunção de inocência.
4.1 AS POSSÍVEIS TENSÕES PRINCIPIOLÓGICAS A PARTIR DE ACORDOS
REALIZADOS
Neste primeiro subcapítulo, apresentar-se-ão os casos reais que serão
analisados neste estudo, detalhados a partir das cláusulas dos acordos que abrem a
possibilidade de discussão quanto aos conceitos tradicionais dos princípios
analisados no primeiro capítulo. Em primeiro lugar, far-se-á uma explicação
metodológica dos casos analisados, justificando-se a escolha de cada acordo. Na
sequência, serão descritas as possíveis tensões encontradas entre determinadas
cláusulas desses acordos e cada princípio.
4.1.1 OS CASOS ANALISADOS
Foram escolhidos três acordos de colaboração subscritos pela Procuradoria
Geral da República e homologados pelo Supremo Tribunal Federal para a indicação
das possíveis tensões existentes com a dinâmica tradicional do processo penal. Os
três – que envolvem os Srs. Paulo Roberto Costa743, Delcídio do Amaral Gomez744
743 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição 5209. Relator Ministro Teori Zavascki. 27 de agosto de 2014. Disponível em: <http://goo.gl/rgErdQ> Acesso em 6 de maio de 2018.
169
e João Cerqueira de Santana Filho 745 – são oriundos da Operação Lava Jato.
Justifica-se a escolha pelo fato de que, em busca de outros acordos celebrados no
âmbito da referida operação, verificou-se uma sistemática semelhante em boa parte
deles, de modo que, por terem sido firmados pelo Procurador Geral da República e
homologados por Ministros do Supremo Tribunal Federal, pode-se presumir que as
formalidades ali constantes são referenciais.
Também será analisado, sob uma perspectiva comparativa, acordo celebrado
pelo Ministério Público do Estado do Paraná, no âmbito da Operação Publicano
(relativo ao Sr. Luiz Antônio de Souza746). Embora sejam descritas as características
de todos os acordos adiante, justifica-se a escolha em razão da diametral diferença
entre as cláusulas do acordo homologado perante a 3ª Vara Criminal de
Londrina/PR em relação àqueles apresentados perante a Suprema Corte. Com
efeito, tal acordo (assim como ocorreu com o acordo da Operação Ararath já
mencionado nos capítulos anteriores747) servirá como antagonista na análise dos
princípios.
4.1.1.1 PAULO ROBERTO COSTA
O acordo do ex-Diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa foi celebrado com a
força-tarefa da Lava Jato, sendo subscrito por uma série de Procuradores Regionais
da República e Procuradores da República. O objeto do acordo são as investigações
e processos criminais no âmbito da Operação Lava Jato, envolvendo crimes de
corrupção, peculato, lavagem de dinheiro oriundo de crimes contra a administração
pública, organização criminosa e obstrução de justiça. Trata-se, ademais, do
primeiro grande acordo celebrado na referida operação, sendo responsável pela
deflagração de inúmeras novas fases da investigação.
Na Cláusula 5ª, referente à proposta do Ministério Público, propuseram-se os
seguintes benefícios: a) “prisão domiciliar de 1 (um) ano, com tornozeleira eletrônica
744 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição nº 5952. Relator Ministro Teori Zavascki. 11 de fevereiro de 2016. Disponível em <http://goo.gl/kXX3je > Acesso em 6 de maio de 2018. 745 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição nº 6890. Relator Ministro Edson Fachin. Distribuição em 24 de março de 2017. Disponível em: <http://goo.gl/La9UoJ> Acesso em 6 de maio de 2018. 746 BRASIL. Paraná. Londrina. 3ª Vara Criminal de Londrina. Autos de Ação Penal nº 0011011-70.2017.8.16.0014. Processo eletrônico. Movimento 4785.4. 2017. Disponível em: <http://goo.gl/Yp9GKv> Acesso em 6 de maio de 2018. 747 BRASIL. Mato Grosso. 5ª Vara Federal de Mato Grosso. Autos nº 11109.2017.4.01.3600. Juiz Jefferson Schneider. Decisão disponibilizada no Diário de Justiça em 31 de agosto de 2017.
170
(...) sem detração do prazo de prisão preventiva cumprido”748; b) após o prazo, e
“existindo sentença condenatória transitada em julgado, o cumprimento de parte da
pena privativa de liberdade imposta em regime semiaberto, em período de zero a
dois anos, a ser definido pelo Juízo tomando em consideração o grau de efetividade
da colaboração” 749; c) após esse período máximo de dois anos, o restante da pena
seria (e, ao que consta, está sendo) cumprido em regime aberto. O acordo ainda
prevê a possibilidade de regressão para regime fechado ou semiaberto, nos termos
do art. 33 do Código Penal, em caso de descumprimento do acordo e nos demais
casos previstos em lei.
O Ministério Público ainda se propôs a promover o arquivamento de “fatos
novos em relação ao acusado trazidos pelo colaborador em relação aos quais não
exista, na data do acordo, nenhuma linha de investigação em qualquer juízo ou
instância” 750. Além disso, o acordo prevê a “suspensão de processos instaurados, e
do respectivo prazo prescricional, por 10 (dez) anos, em todos os casos em desfavor
do colaborador” 751 no momento em que “atingida a pena unificada de 20 anos
resultante de condenações transitadas em julgado” 752. Tal suspensão poderia ser
antecipada, segundo “avaliação exclusiva” 753 do Ministério Público.
Após a suspensão acima mencionada, o acordo previu que, “sem a quebra do
acordo que venha a acarretar sua rescisão” 754, o Ministério Público pleitearia a
fluência do prazo prescricional até a extinção da punibilidade, deixando de oferecer
denúncia em investigações então existentes.
Por fim (para o que interessa ao presente estudo), o acordo ainda prevê que
o Ministério Público pleiteará que a prisão domiciliar com tornozeleira seja a forma
de execução da custodia cautelar até o trânsito em julgado das ações penais em
desfavor do colaborador e que corresponda, quando do término dos processos, “ao
modo de início de execução da pena” 755.
748 BRASIL. Petição nº 5209..., 2014, p. 21. Acordo de Paulo Roberto Costa. 749 Ibidem, p. 21. 750 Ibidem, p. 21. 751 Ibidem, p. 21. 752 Ibidem, p. 21. 753 Ibidem, p. 22. 754 Ibidem, p. 22. 755 Ibidem, p. 23.
171
4.1.1.2 DELCÍDIO DO AMARAL GOMEZ
O acordo do ex-Senador da República Delcídio do Amaral teve por objeto as
investigações da Operação Lava Jato que já tramitavam, à época, nas subseções
judiciárias de Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo, abrangendo “todos os crimes
compreendidos no escopo do complexo investigatório denominado Caso Lava Jato
ou de feitos e procedimentos dele desmembrados, não obstante conexos, que
tenham sido praticados pelo colaborador até a data de sua assinatura” 756.
No capítulo referente aos benefícios (Cláusula 12ª), foram oferecidos os
seguintes: a) substituição da medida cautelar de privação de liberdade para regime
semiaberto domiciliar, pelo prazo de um ano e seis meses, contados da
homologação do acordo, com condições específicas descritas; b) privação de
liberdade pelo período de um ano, em regime aberto domiciliar (recolhimento
noturno, das vinte e três horas às sete horas do dia seguinte), com condições
específicas descritas; c) após, prestação de serviços à comunidade de sete horas
semanais, por seis meses.
O acordo ainda previu, para o período posterior ao trânsito em julgado de
sentença penal condenatória, o limite máximo de quinze anos de reclusão, “com a
suspensão dos demais feitos e procedimentos criminais na fase em que se
encontrem quando atingido esse limite”757. Na Cláusula 20ª, estabeleceu-se que as
penas a serem cumpridas em razão do trânsito em julgado de sentença penal
condenatória corresponderiam às condições ao montante de privação de liberdade
imposta com a homologação acima descrito.
4.1.1.3 JOÃO CERQUEIRA DE SANTANA FILHO
No acordo celebrado entre a Procuradoria Geral da República e João
Cerqueira de Santana Filho 758 , que tinha como “objeto todos os fatos ilícitos
praticados pelo colaborador até a data de assinatura”759 do termo, propuseram-se as
seguintes condições: a) cumprimento de pena privativa de liberdade, “cumprida
756 BRASIL. Petição nº 5952..., 2016, p. 11. Acordo de Delcídio do Amaral. 757 Ibidem, p. 13. 758 Publicitário responsável por campanhas eleitorais de inúmeros políticos brasileiros, investigado e denunciado em ações penais no âmbito da Operação Lava Jato. 759 BRASIL. Petição nº 6890..., 2017. Acordo de João Santana.
172
imediatamente após a homologação do presente acordo, de forma progressiva” 760,
em regime fechado, pelo prazo de cento e sessenta dias, contado o tempo de prisão
cautelar então cumprido; b) um ano e seis meses de reclusão, em regime fechado
domiciliar, não podendo se ausentar de sua residência sem autorização do Juízo de
execução ou do Ministério Público Federal; c) um ano e seis meses de reclusão, em
regime semiaberto diferenciado, permitindo-se a saída em dias úteis, das seis às 22
vinte e duas horas; d) um ano de reclusão em regime aberto diferenciado, com
recolhimento domiciliar nos fins de semana e feriados (em todas as previsões, há a
indicação de condições específicas a serem observadas).
Embora o acordo não faça menção a ações penais individualizadas, sua
cláusula 5ª prevê que, “atingida ou superada a pena de 15 (quinze) anos, o MPF
proporá a suspensão das ações penais em desfavor do colaborador” 761 , assim
como, com fundamento no art. 4º, § 3º da Lei nº 12.850/2013, “a suspensão dos
respectivos prazos prescricionais pelo lapso temporal de 10 (dez) anos” 762, após o
qual serão retomados até a extinção da punibilidade.
4.1.1.4 LUIZ ANTÔNIO DE SOUZA
No acordo celebrado entre o Ministério Público do Estado do Paraná e Luiz
Antônio se Souza763, tem-se situação bastante distinta. Após a celebração inicial, o
acordo foi rescindido por violação de termos expressos do contrato. Na sequência,
em março de 2017 (após a condenação do acusado na primeira das ações penais
relacionadas), foi formulado termo aditivo ao acordo, prevendo os seguintes
benefícios penais: a) compromisso do Ministério Público de “pedir o perdão judicial
do colaborador e de seus familiares”764, exceto na ação em que já fora condenado;
b) concordância do Ministério Público com a redução da pena imposta em ação
penal anterior, com o compromisso de “manifestar-se, favoravelmente, junto aos
Tribunais competentes, com o pleito de redução da pena imposta na razão de 2/3,
conforme artigo 4º, caput, da Lei 12.850/2013” 765; c) em caso de não redução,
compromisso de reiteração, pelo Ministério Público, de apresentação do termo
760 BRASIL. Petição nº 6890, 2017. Acordo de João Santana, p. 19. 761 Ibidem, p. 19. 762 Ibidem, p. 22. 763 Denunciado no âmbito da Operação Publicano, que tramita na 3ª Vara Criminal de Londrina. 764 BRASIL. Ação Penal nº 0011011..., 2017. Acordo de Luiz Antônio de Souza. 765 Ibidem, p. 10.
173
aditivo junto à Vara de Execuções Penais de Londrina/PR; d) concordância do
Ministério Público para que, na progressão do regime da pena já imposta, “o regime
subsequente” 766 ao regime inicial previsto na lei “seja semiaberto diferenciado,
consistente em prisão domiciliar, com utilização de monitoramento eletrônico”,
seguido de “custódia diferenciada, nas mesmas condições, ausente a monitoração
eletrônica” 767.
4.1.2 AS POSSÍVEIS TENSÕES DECORRENTES DAS PREVISÕES DE
CUMPRIMENTO IMEDIATO DE PENA
Quanto aos três primeiros acordos, o primeiro aspecto que chama à atenção
– mas que, de maneira nenhuma, configura uma exceção nas colaborações
premiadas celebradas no âmbito da Lava Jato – relaciona-se com as previsões de
cumprimento da pena previamente estabelecida a partir do ato da homologação
judicial. Com algumas particularidades entre si (por exemplo, o acordo de Paulo
Roberto Costa exclui a detração do tempo de prisão preventiva já cumprida), os três
acordos seguem uma dinâmica similar: na negociação, Ministério Público e defesa
concordaram com a prévia fixação de uma pena e seu respectivo regime, sem
qualquer relação com as penas individualizadas de cada ação penal a que
respondem os colaboradores.
Nos acordos de Paulo Roberto Costa e Delcídio do Amaral, há uma mínima
delimitação do objeto (fatos relacionados à Operação Lava Jato); no de João
Santana, não há essa previsão (são incluídos no acordo todos os crimes narrados,
sem uma categorização). De qualquer forma, a dinâmica é idêntica: é prevista uma
pena, a ser cumprida imediatamente, e previamente dividida temporalmente por
cada regime de cumprimento. A forma de cumprimento também é pré-estabelecida,
com o primeiro acordo (Paulo Roberto Costa) tratando de regimes tradicionais
acordados (penas em regime aberto e semiaberto) e os demais tratando dos
chamados regimes diferenciados (basicamente, uma prisão domiciliar com restrições
variáveis quanto às saídas).
Os prazos estabelecidos nos respectivos regimes são, ao que parece,
imutáveis, no sentido de que, independentemente das penas impostas, o tempo de
766 BRASIL. Ação Penal nº 0011011..., 2017, p. 10. Acordo de Luiz Antônio de Souza. 767 Ibidem, p. 10.
174
cumprimento será resumido àqueles períodos. Há, por outro lado, uma previsão
temporal máxima, esta sim relacionada às penas concretas impostas, mas que é
mencionada como limitadora da persecução penal (no sentido de que, estabelecidas
penas até certo montante, os demais processos e investigações ficarão suspensos
por prazo determinado, após o qual se aguardará o transcurso da prescrição).
Com efeito, a leitura dos acordos deixa claro que, quando da celebração, o
colaborador sabe exatamente o tempo de pena que cumprirá caso não viole suas
obrigações contratuais. Também é evidente o desejado descompasso entre a pena
a ser cumprida e as penas que seriam, invariavelmente, impostas nas sentenças
penais condenatórias, revelando que tais acordos trazem extrema segurança aos
colaboradores de que, cumprindo seus lados nos acordos, terão integral controle
sobre a sanção que lhes caberá.
Por sua vez, o acordo de Luiz Antônio de Souza não traz previsão da mesma
natureza. Independentemente dos motivos negociais que podem tê-lo coibido de
obter tal benefício (sabendo-se, de antemão, que o colaborador perdeu um acordo
inicial em razão de descumprimento de suas obrigações e, certamente sem o
mesmo poder de barganha, não conseguiu benefícios mais amplos), seu acordo
envolve uma condenação prévia e o posicionamento apenas solícito do Ministério
Público de que, ao final dos processos a que ainda responde, pleiteará seu perdão
judicial e a redução da pena já fixada. Nos casos ainda não sentenciados, é possível
que seja integralmente afastada qualquer sanção pelo Juízo da causa. Não
obstante, no momento da homologação, não há certeza absoluta de que, mesmo
colaborando com as investigações conforme manda o acordo, será beneficiado ao
máximo.
A diferença entre os três primeiros acordos e o último traz uma série de
questionamentos quanto ao aspecto do cumprimento imediato da pena e à fixação
prévia dessa reprimenda. Em primeiro lugar, questiona-se qual a natureza dessa
pena e como se conciliar tal situação com o princípio do nulla poena sine judicio; em
segundo, pode-se questionar a dinâmica da previsão com os princípios da
presunção de inocência e da ampla defesa. Além desses questionamentos, vale
discutir, pura e simplesmente, a legalidade de tais previsões. Afinal, como se viu
acima, não há dispositivo na Lei nº 12.850/2013 que suporte a substituição integral
da pena de imediato, com cumprimento sem o devido processo legal. Essa análise,
porém, será feita de forma abrangente mais adiante, quando da análise dos
175
impactos da prática da colaboração nos princípios da obrigatoriedade e da
indisponibilidade da ação penal (oportunidade em que outras cláusulas não previstas
em lei serão analisadas).
4.1.2.1 A CONCILIAÇÃO COM O PRINCÍPIO DO NULLA POENA SINE JUDICIO
Como se viu no primeiro capítulo, o princípio do nulla poena sine judicio é
aquele que prevê que nenhuma pena poderá ser imposta ao acusado sem a
observância do devido processo legal. Ao seu lado, há o princípio do nulla poena
sine judice, que estabelece que nenhuma pena será aplicada senão pelo Juiz.
Sob uma primeira vista, quando o acordo prevê o cumprimento imediato de
uma “pena” 768 , com restrições de liberdade que serão, observado o acordo,
absorvidas como a futura condenação penal, tem-se situação em que o colaborador
cumpre uma pena estabelecida exclusivamente com o Ministério Público,
participando o Magistrado apenas do ato da homologação judicial. Assim, se não é o
Juiz o responsável pela fixação e aplicação da pena, após devido processo legal no
qual as garantias do acusado são plenamente exercidas (notadamente, seu
exercício de defesa, contraditório e eventual duplo grau de jurisdição), ter-se-ia um
claro conflito com o princípio do nulla poena sine judicio, já que ao acusado seria
“imposta pena” pelo órgão acusatório.
A conclusão é, todavia, bastante simplista. É que, como a lei e os próprios
acordos preveem uma série de obrigações ao colaborador que serão, de forma
indiscutível (ainda que futuramente), submetidas ao crivo do Poder Judiciário
(conforme art. 4º, §11 da Lei nº 12.850/2013), não se pode afirmar que a pena
cumprida de imediato será, de fato, definitiva. Também não parece ser possível
afirmar, com segurança, que a segregação de liberdade decorrente da homologação
judicial configura, propriamente, uma pena.
Não é difícil a comparação entre a dinâmica dos três acordos oriundos da
Operação Lava Jato e os benefícios da transação penal e da suspensão condicional
do processo. Seja na colaboração, seja nos dois institutos de crimes de menor
(transação) e médio potencial ofensivo (no caso da suspensão), há uma aplicação
imediata de “pena”, a ser cumprida sem um respectivo decreto prisional por
768 As aspas são intencionais, na medida em que a discussão que se seguirá envolverá também a discussão sobre a natureza de pena de todas as sanções analisadas.
176
Magistrado e após sentença de mérito, com a existência (ao menos potencialmente
nos casos da Lei nº 9.099/95) de um processo à parte. Há, nos três casos, uma
espécie de acordo com o Ministério Público que impõe de imediato o cumprimento
de alguma restrição de direitos (na colaboração, há uma privação também de
liberdade).
Ainda que haja diferenças significativas quanto ao procedimento e magnitude
das sanções previstas, há similaridades que não merecem ser dispensadas. A
discussão sobre a violação ao nulla poena sine judicio, aliás, já ocorreu quando da
promulgação da Lei dos Juizados Especiais. Na época, diversos juristas se
manifestaram quanto ao instituto da transação penal e da potencial violação ao
princípio em tela. Reale Júnior, por exemplo, sustentava que o instituto estabelecia
uma “pena sem processo”, violando o devido processo legal, a presunção de
inocência, “realizando-se um juízo antecipado de culpabilidade, com lesão ao
princípio nulla poena sine judicio, informador do processo penal”769. Para o autor, a
transação consagraria “uma condenação sem provas, ou seja, as pessoas são
julgadas e condenadas sem serem validamente ouvidas” 770 , violando o referido
princípio.
Por outro lado, Grinover, Gomes Filho e Fernandes defenderam o instituto,
afirmando que a “discricionariedade controlada” 771 (ou oportunidade regrada)
permitida pela Constituição Federal não desvirtuaria o processo penal, na medida
em que a sanção fixada teria natureza jurídica de aceitação voluntária da proposta
do Ministério Público e não significaria “reconhecimento da culpabilidade penal”772.
Isso porque a transação, como se sabe, não importa em reincidência e não consta
de registros criminais, exceto para evitar nova celebração (conforme art. 76, §§4º e
6º da Lei nº 9.099/95).
Os autores, no entanto, reconheceram a “revisão de princípios tradicionais do
direito processual como o nulla poena sine judicio”773, ainda que sempre tenham
enfatizado o controle judicial na “verificação da legalidade da adoção da medida
769 REALE JUNIOR, Miguel. Pena sem processo. In: FERREIRA, Ivette Senise; REALE JÚNIOR, Miguel; DOTTI, René Ariel; TUCCI, Rogério Lauria; PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Juizados Especiais Criminais – interpretação e crítica. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 27. 770 Ibidem, p. 30. 771 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. Juizados Especiais Criminais. Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. São Paulo: RT, 1995, p. 28. 772 Ibidem, p. 132. 773 Ibidem, p. 132.
177
proposta e a análise de sua conveniência” 774. O mesmo se verifica na doutrina
quanto à suspensão condicional do processo, conforme Guaragni: “o Juiz, ao
receber a denúncia com a proposta, já aceita, de suspensão do processo, deve
verificar o preenchimento das condições previstas em lei, fiscalizando o uso do
princípio da ‘oportunidade regrada’” 775 . O autor, apesar de reconhecer que “a
disponibilidade da ação e atos processuais pertence ao Ministério Público, por força
do princípio acusatório” 776 , relembrava que “ao órgão judicial é conferida a
fiscalização do princípio da obrigatoriedade (art. 28, CPP), e o princ. da
oportunidade surge como exceção àquele” 777 , ressaltando a participação do
Magistrado na aplicação da “sanção”.
É bem verdade que, na transação e na suspensão condicional, há dois
diferenciais importantes: em primeiro lugar, o descumprimento inicia um processo
que sequer foi instaurado (no caso da transação) ou retoma um que não adentrou à
instrução probatória (no caso da suspensão condicional); ademais, para ambas as
possibilidades, há previsões constitucional e legal expressas.
No caso da colaboração premiada, na vigência do acordo em que se
estabelece a pena imediata, o processo segue seu natural curso paralelamente, com
o acusado não apenas cumprindo suas restrições corporais, mas também se
submetendo à instrução com a conduta que se espera de um colaborador (isto é,
confessando seus crimes, não produzindo prova em busca de sua absolvição e,
mais importante, participando da produção da prova em detrimento dos corréus).
Nesse caso, parece que o descumprimento do acordo quanto à “pena” (possível, por
exemplo, no caso de uma prisão domiciliar com tornozeleira que seja rompida)
implicará não apenas a retomada do processo, mas a rescisão de seu acordo,
posicionando-o na instrução como um ex-colaborador que, a depender do momento,
não pôde se defender.
Mais importante, porém, é o fato de que as cláusulas de cumprimento
imediato de pena não possuem lastro legal, não constando do rol de benefícios do
art. 4º da Lei nº 12.850/2013 qualquer previsão de cumprimento imediato de sanção.
774 GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. Juizados Especiais Criminais..., 1995, p. 133. 775 GUARAGNI, Fábio André. Suspensão Condicional do Processo Segundo a Lei 9.099/95. In: KUEHNE, Maurício; FISCHER, Félix; GUARAGNI, Fábio André; JUNG, André Luiz Medeiros. Lei dos Juizados Especiais Criminais. Curitiba: Juruá, 1996, p. 107. 776 Ibidem, p. 107. 777 Ibidem, p. 107.
178
Isso significa que, quando da negociação do acordo, pode ser imposta ao
colaborador uma obrigação (ou benefício, a depender da perspectiva do observador)
com a qual eventualmente não se concorde, mas cuja anuência é condição sem a
qual o feito não será celebrado.
Imagine-se, nesse sentido, a seguinte situação: determinado réu, querendo
colaborar com as investigações voluntariamente, coloca-se à disposição da justiça
para confessar seus delitos, indicar seus comparsas e reparar o dano causado; o
Ministério Público, porém, exige-lhe a segregação pessoal imediata como condição
para o acordo. Em sendo o acusado indiferente à referida solicitação (ou já estando
recolhido preso, com fundamentos que dificilmente seriam refutados pela justiça –
no caso de coação de testemunhas, por exemplo), não parece haver um problema
negocial. Aceita-se a condição e celebra-se o acordo. No entanto, não estando o
acusado disposto a se recolher preso, há um problema. Sem a segurança de uma
previsão legal e diante de uma possível volatilidade durante a negociação de um
acordo, dois cenários são possíveis: ou o acusado aceita a condição a contragosto
(o que não parece ser um óbice ao reconhecimento de sua voluntariedade), ou não
celebra o acordo (o que, por outro lado, pode envolver não apenas um prejuízo ao
investigado/acusado, mas também ao interesse público, a depender do que pudesse
contribuir ao processo).
A rigor, a Lei nº 12.850/2013, como se disse, não prevê a possibilidade de
cumprimento imediato de pena ou de fixação prévia de quantum de pena a ser
eventualmente cumprida. Rigorosamente, pelo texto legal, o momento de concessão
dos benefícios (perdão judicial, redução de pena e benefícios executórios) é a
sentença. Ou seja, de acordo com a lei, apenas quando da prolação da condenação,
o Juiz estabelecerá a pena e a forma de cumprimento ao réu colaborador. Assim,
poderá o Magistrado conferir a eficácia do acordo e a efetividade da colaboração
prestada pelo réu.
Um indivíduo que não queira se recolher preso imediatamente, seja por
questões pessoais ou, de forma mais preocupante, pela incerteza de que sua
colaboração será efetiva – por exemplo, se os fatos por ele apresentados forem
concomitantemente apresentados com maiores detalhes e provas de corroboração
por corréu –, pode ter a insegurança de que, ao cumprir a pena imediatamente, não
tenha reconhecido seu benefício na sentença. Isso pode significar que a antecipação
prisional não seria correspondida por um benefício ao acordo celebrado. Trata-se,
179
sem dúvida, de uma situação de insegurança jurídica. Talvez por essa razão, o
manual do ENCCLA não admita, de forma bastante expressa, essa possibilidade de
cláusula no acordo, afirmando que “não deve o magistrado homologar propostas que
tragam preestabelecido o quanto de redução da pena” 778, o que justifica pelo fato de
que o Ministério Público e o delegado de polícia “não podem prometer algo que não
podem cumprir” 779.
Na doutrina, há quem siga esse pensamento. Por exemplo, Lopes Jr. e Rosa
atestam uma “evidente incompatibilidade com o Princípio da Necessidade (nulla
poena sine judicio)”780, ainda que consignem, à luz do que “sustentam os defensores
do viés expansionista” 781, tratar-se de uma suposta “realidade que se impõe diante
da insuficiência estrutural do poder judiciário” 782. Nesse sentido, fazem alusão à
transformação que ocorre na função do Magistrado, cujo papel ficaria reduzido ao
“de mero ‘homologador’ do acordo, muitas vezes feito às portas do tribunal” 783, e do
incremento ao poder do Ministério Público.
Para os autores, há uma possibilidade, com a profusão de acordos nesse
sentido (que garantem, de certa forma, que o colaborador não sofrerá maiores
sanções pessoais com a persecução), “que as pressões psicológicas e as coações
sejam uma prática normal, para compelir o acusado a aceitar o acordo e também a
‘segurança’ do mal menor de admitir uma culpa, ainda que inexistente”784.
Em igual sentido, Wunderlich defende que “o regime jurídico trazido pela
Constituição Federal deve ser adotado às inteiras de maneira vinculante e dirigente”,
funcionando como “uma regra absoluta e que não comporta temperamento” 785. O
mesmo autor, evidenciando a similitude entre a prática da colaboração e o modelo
negocial dos Juizados Especiais (que afirma ter fracassado, notabilizando
“retrocesso, uma desburocratização que se burocratizou ainda mais” 786.), sustenta
778 BRASIL. Manual – Colaboração..., 2014, p. 8. 779 Ibidem, p. 8. 780 LOPES JR., Aury. ROSA, Alexandre Morais da. Com delação premiada e pena negociada, Direito Penal também é lavado à jato. Consultor Jurídico. 24 de julho de 2015. Disponível em < http://goo.gl/cACxRe > Acesso em 9 de maio de 2018. 781 Ibidem. 782 Ibidem. 783 Ibidem. 784 Ibidem. 785 WUNDERLICH, Alexandre. Colaboração premiada: o direito à impugnação de cláusulas e decisões judiciais atinentes aos acordos. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Colaboração Premiada. São Paulo: RT, 2017, p. 18. 786 Ibidem, p. 20.
180
que ao Magistrado se “impõe a não homologação de acordo (...) com certas
cláusulas que, por exemplo, não passem pelo filtro constitucional” 787.
Especificamente sobre o princípio da nulla poena sine judicio, Canotilho e
Brandão afirmam que as cláusulas que preveem que o “cumprimento da pena
privativa da liberdade se inicia a partir da assinatura do acordo de colaboração
premiada (...) são clamorosamente ilegais e inconstitucionais.”788
Por sua vez, Badaró reconhece que “na chamada ‘Justiça Consensual’ a
imposição da pena não é fruto de uma prévia verificação dos fatos, mas de um
acordo” 789, que ocorre em um campo de “extrema discricionariedade, para não se
dizer puro arbítrio do acusador” 790. Nesse sentido, e mencionando a situação a que
se refere este subcapítulo, o autor questiona o papel do Ministério Público em
estabelecer – e ver cumprida de imediato – pena prévia ao julgamento da causa:
Por isso, quem investiga não pode julgar e quem julga não pode investigar. São funções incompatíveis entre si. Num processo em que ao investigador não coubesse realizar o julgamento, o problema estaria solucionado, cada uma das funções ficaria a cargo de sujeitos distintos. Porém, tal qual vem sendo realizada a colaboração processual entre nós, ambas as funções estão sendo exercidas pelo Ministério Público (...) É o Ministério Público que irá escolher com quem celebrará a colaboração e, o que é mais relevante, que versão dos fatos será aceita. Há colaboradores que recebem imunidade e sequer serão processados; outros, mesmo sem terem sido investigados ou denunciados, já aceitam voluntariamente uma pena específica a ser cumprida, com a simples homologação do acordo. Não haverá instrução nem julgamento! É inegável que vivemos um retorno a um modelo de concentração de funções: o Ministério Público investigou, estabeleceu a verdade dos fatos, decidiu, estabelecendo a pena que foi aceita pelo colaborador resignado, e puniu. Como ocorria séculos atrás, a fogueira da inquisição continua acesa, só tendo sido trocado quem exerce o papel de inquisidor! 791
Por outro lado, Mendonça questiona se o princípio nulla poena sine judicio
seria um “óbice intransponível” 792 ao cumprimento de benefícios. Na resposta,
apresenta dois posicionamentos:
787 WUNDERLICH, Alexandre. Colaboração premiada..., 2017, p. 25. 788 CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada e auxílio judiciário em material penal: a ordem pública como obstáculo à cooperação com a operação Lava Jato. Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 146, nº 4000, set.-out. de 2016, p. 30. 789 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada: meio de prova, meio de obtenção de prova ou um novo modelo de justiça penal não epistêmica?. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Colaboração Premiada. São Paulo: RT, 2017, p. 139. 790 Ibidem, p. 142. 791 Ibidem, p. 143. 792 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 99.
181
A primeira posição – majoritária certamente – tenderia a ser no sentido da impossibilidade desse tipo de previsão de cumprimento imediato, pois seria necessário o processo judicial, com todas as suas garantias, para somente então constatar a responsabilidade doa acusado, após o devido processo legal. (...) Realmente, em relação às situações em que há previsão de cumprimento de pena em regime prisional (regime fechado propriamente dito) essa parece ser a melhor a mais prudente solução, ainda mais sem previsão legal específica autorizando-a. (...) No entanto, para o cumprimento de outros benefícios (prisão domiciliar, regimes semiaberto e aberto, prestação de serviços à comunidade e multa), a resposta tradicional acaba trazendo algumas incoerências (...).793
Nesse sentido, o autor sustenta que “o princípio do nulla poena sine judicio foi
claramente pensado e introduzido no ordenamento como uma forma de proteção ao
imputado” 794, tratando-se de uma autolimitação do Estado como “forma de evitar
abusos e excessos punitivos”795. No caso da colaboração, porém, “é do interesse
dos próprios colaboradores (...) que haja o cumprimento imediato dos benefícios,
para que seja possível o imediato cumprimento das sanções”796, de modo a evitar
que a demora do processo impeça “o recomeço de suas vidas” 797. Segue, nesse
sentido, afirmando que “a interpretação tradicional e inflexível do princípio do nulla
poena sine judicio acaba trazendo prejuízo ao colaborador” 798 , invertendo-se a
“lógica dos direitos fundamentais, utilizando-se a referida garantia em desfavor de
quem deveria proteger” 799.
Mendonça também argumenta que, ainda que haja problemas nos Juizados
Especiais (em que é “até mais provável que uma pessoa (...) acabe aceitando o
cumprimento de uma pena restritiva de direitos mesmo sendo inocente” 800 ), tal
situação não deve ser replicada na colaboração premiada, já que o colaborador “não
apenas confessa, mas produz diversas provas para se incriminar (assim como
terceiros)” 801.
Mas o autor adverte que “tal medida seja efetivamente no interesse do
colaborador – e não uma imposição do Ministério Público –, que existam prova
793 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 99-100. 794 Ibidem, p. 100. 795 Ibidem, p. 100. 796 Ibidem, p. 100. 797 Ibidem, p. 100. 798 Ibidem, p. 100. 799 Ibidem, p. 100. 800 Ibidem, p. 100. 801 Ibidem, p. 100.
182
suficientes contra o colaborador – inclusive um standard apto à condenação – e que
esse seja um ato voluntário e informado”802, sobretudo em razão da participação do
advogado e da fiscalização do acordo pelo Poder Judiciário.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal apresenta algumas respostas
quanto a esses problemas. Durante a relatoria do Ministro Teori Zavascki nos casos
da Operação Lava Jato, foram feitas considerações acerca do cumprimento imediato
da pena em acordo apresentado em termos similares ao que se ora analisam:
“Por oportuno, cumpre assinalar que, embora nada impeça o imediato cumprimento do acordado por Fábio Cleto Ferreira na cláusula 5ª, parágrafo 2º, alínea b, o art. 4º, caput e §§ 1º, 2º e 11, da Lei nº 12.850/2013 não deixa margem à dúvida no sentido de constituírem os benefícios acordados, ainda que homologados (...), direitos cuja fruição estará condicionada ao crivo do juiz sentenciante, no caso concreto, à luz daqueles parâmetros. Portanto, o cumprimento antecipado do acordo, conquanto possa se mostrar mais conveniente ao colaborador, evidentemente não vincula o juiz sentenciante, nem obstará o exame judicial no devido tempo.”803
Decisão semelhante teria sido proferida pela Ministra Cármen Lúcia quando
da homologação dos acordos da Odebrecht, ainda não publicada (os acordos
seguem sob sigilo) 804 . Note-se, porém, que nas decisões de homologação dos
acordos de Delcídio do Amaral e João Santana, que preveem situações similares,
não se encontra disposição em igual sentido. Por um lado, pode-se tratar de
omissão voluntária do Ministro Edson Fachin, no sentido de homologar um acordo
dentro de um sistema já estabelecido e que, à luz da decisão do Ministro Teori
Zavascki, não garantiria que a pena antecipada vinculará o juiz sentenciante; por
outro, pode representar uma mudança de posicionamento, no sentido de que,
eventualmente, essa pena cumprida de imediato vincule o Juízo. Pela leitura da
decisão de homologação do acordo de João Santana, a primeira possibilidade
parece mais precisa. Na oportunidade, o Ministro Fachin fez valer o entendimento
firmado no Habeas Corpus nº 127.483 de que não cabe qualquer juízo de valor a
respeito das declarações do colaborador quando da homologação, postergando,
802 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 101. 803 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição 6122/DF. Relator Ministro Teori Zavascki. Publicada no Diário de Justiça Eletrônico em 13 de dezembro de 2016. Disponível em: <http://goo.gl/RtW1V4> Acesso em 9 de maio de 2018. 804 MENDONÇA, op. cit., p. 97.
183
para o momento previsto em lei, “a emissão de qualquer outro juízo quanto ao
conteúdo das cláusulas acordadas”805.
Não obstante, dentro da própria Suprema Corte, o tema foi duramente
questionado pelo Ministro Gilmar Mendes. Segundo o julgador, “o cumprimento
antecipado da pena, uma espécie de prisão preventiva voluntária, também passou a
ser uma previsão padrão” 806 , chegando “ao ápice nas delações do Grupo
Odebrecht”, com as seguintes considerações:
Nessas, chegou-se a desafiar o art. 5º, LXI, da CF, segundo o qual ninguém será preso sem ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. A notícia que foi dada pelo repórter Walter Nunes, da Folha – eu já fiz referência, na outra assentada, a esse belo trabalho do jornalista – é de que foram acordadas as penas para pronto cumprimento.807
Para o Ministro, a situação em análise (que se assemelha aos acordos
referidos, ainda que, neste caso, haja as respectivas ações penais em que,
eventualmente, serão analisados os benefícios homologados) revelaria “o novo
Direito Penal e uma nova jabuticaba, nunca vista em lugar nenhum. É o Direito
Penal Constitucional de Curitiba” 808 . Na sequência de seu voto na Questão de
Ordem na Petição nº 7074, o Ministro Gilmar Mendes revela seu descontentamento
com a situação do colaborador que cumpre “pena sem inquérito, sem denúncia e
sem sentença” 809, posicionando-se no sentido de que os acordos com essa espécie
de previsão “passaram a ter força constituinte, porque revogam normas
constitucionais” 810.
Não obstante, parece que, seguindo a orientação dos dois relatores da
Operação Lava Jato de que a pena cumprida de imediato efetivamente não vincula o
juiz sentenciante, reduz-se sobremaneira a tensão existente com o devido processo
legal e o princípio do nulla poena sine judicio. Afinal, mantém-se a função do
Magistrado na análise da efetividade do acordo para a possível manutenção da pena
acordada, caso verificado o cumprimento das obrigações estabelecidas ao
colaborador. E mais: a se adotar o entendimento da decisão do Ministro Teori
805 BRASIL. Petição nº 6890..., 2017, p. 784. 806 BRASIL. Questão de Ordem na Petição nº 7074..., 2018, p. 184. 807 Ibidem, p. 184. 808 Ibidem, p. 185. 809 Ibidem, p. 185. 810 Ibidem, p. 185.
184
Zavascki transcrita, chega-se ao ponto de concluir que o cumprimento antecipado
previsto no acordo não se refere a uma pena efetiva, mas a algo mais próximo às
medidas despenalizadoras da transação penal e da suspensão condicional do
processo.
Com as diferenças já apontadas entre os três institutos, poder-se-ia
argumentar que a pena cumprida imediatamente por força de acordo de colaboração
premiada seria uma segregação cautelar voluntária, por conta e risco, pelo
colaborador. Ou seja, se o colaborador tem o objetivo de resolver sua pendência
com a justiça criminal, submetendo-se desde logo a uma espécie de prisão (ainda
que domiciliar), poderia fazê-lo, desde que com a compreensão de que o período
cumprido, na pior das hipóteses, apenas funcionará como causa para a detração de
sua pena.
Parece ser importante, porém, que o acordo não se limite a beneficiar o
colaborador apenas com a fixação das penas que serão cumpridas imediatamente.
Como se vê dos acordos ora analisados, toda a reprimenda corporal prevista se
resume às frações de pena que passaram a ser cumpridas com a homologação,
apenas havendo, como benefício penal, propriamente dito, a previsão do teto de
pena (que também será analisado neste estudo) a partir do qual serão suspensos os
demais feitos em trâmite contra si. A ausência de indicação de qualquer dos
parâmetros legais (imunidade, perdão judicial, redução de pena ou substituição do
regime) pode limitar o juiz, quando da análise da efetividade do acordo, a modular a
concessão dos benefícios.
Em outras palavras: o acordo resume os principais benefícios específicos ao
tempo de pena cumprido imediatamente, sem permitir qualquer alteração pelo Juiz
da causa na hipótese de entender que a colaboração não teve a efetividade prevista.
Imagine-se, portanto, que, ao final de algum dos processos envolvidos, entenda o
Magistrado que, naquele caso específico, o colaborador não foi efetivo nas provas e
declarações que se propôs a manifestar. Ou seja: os benefícios a que faria jus
seriam menores do que o inicialmente previsto. Sem que haja um parâmetro no
acordo para essa situação, parece se estabelecer situação de insegurança ao
colaborador. Afinal, havendo apenas um teto máximo de pena de vinte ou trinta anos
de reclusão e um período de pena hipoteticamente já cumprido, poderia o
Magistrado entender pela aplicação de pena complementar que não violasse aquele
limite, mas que desatendesse aos parâmetros de cumprimento inicial.
185
Ainda que o Ministério Público e o próprio colaborador possam pretender
estabelecer, sem margens, as penas que serão cumpridas (cuja possibilidade será
debatida logo mais), parece ser extremamente recomendável que o acordo preveja
possibilidades para que, no caso de entendimento judicial contrário à completa
efetividade prevista, não se criem situações prisionais imprevistas ao colaborador.
É certo, porém, que à luz do que dispõe o texto legal e o que estabelece a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, mais recomendável ainda seria que
nenhum benefício penal ou obrigação consistente em privação de liberdade seja
concedido imediatamente ao colaborador, estabelecendo-se a sentença como
momento único à concessão do prêmio penal. Assim, garante-se: a) ao Magistrado –
e ao processo – a titularidade da condenação, protegendo-se o princípio nulla poena
sine judicio; b) ao colaborador que não pretende se recolher preso, o direito de se
submeter ao processo livremente, aguardando sua condenação para a obtenção do
benefício penal; c) a segurança aos réus delatados de que alguém que lhes impute
fatos e crimes não será beneficiado (ainda que apenas em razão da detração, caso
o acordo seja reconhecido como inefetivo e o colaborador integralmente condenado)
independentemente da comprovação da efetividade de sua colaboração.
Alternativa distinta seria, naturalmente, a complementação da lei quanto à
referida situação. Talvez fosse possível que, em algum parágrafo do art. 4º da Lei nº
12.850/2013, estabelece-se a possibilidade de que, acordando as partes, a prisão
provisória fosse convertida em antecipação dos benefícios do acordo, deixando claro
o aspecto de voluntariedade do colaborador (de preferência, com a participação do
Juízo nessa averiguação, nos termos do art. 4º, §7º da Lei nº 12.850/2013) que,
recolhido preso preventivamente, aceita se manter nessa posição,
independentemente dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal.
Para os efeitos deste trabalho, porém, a conclusão é a de que, ainda que haja
um aparente conflito entre o princípio do nulla poena sine judicio e o cumprimento
antecipado de medidas privativas de liberdade ou restritivas de direito, não parece
haver mácula à Constituição, em razão da voluntariedade que se exige no acordo
com tal previsão, que parece afastar o caráter de pena, propriamente dita, e
configura medida que não garante o efetivo cumprimento dos benefícios previstos, a
ser concedido em sentença.
186
4.1.2.2 O CONFLITO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E
DA AMPLA DEFESA
À primeira vista, e assim como ocorreu com o princípio do nulla poena sine
judicio, há uma colisão entre a previsão de cumprimento imediato de pena e o
princípio da presunção de inocência. Conforme se tratou no primeiro capítulo, o
princípio se alicerça na ideia de que, até o trânsito em julgado, presumir-se-ia
inocente o acusado que, em decorrência disso, não poderia cumprir pena.
É verdade que, exceto no período compreendido entre 2009 e 2016, a
interpretação jurisprudencial quanto ao cumprimento de pena não caminha
exatamente nestes termos, admitindo-se, atualmente, a execução provisória da pena
a partir da condenação por órgão colegiado. Nada obstante, não parece ter havido
na jurisprudência brasileira qualquer entendimento pretérito de que, assim que
investigado, poderia um indivíduo passar a cumprir pena. Afinal, se sequer
denunciado ou condenado em 1º grau, ainda maior seria a presunção de sua
inocência.
A partir da análise do subcapítulo anterior, entende-se que essa resposta está
praticamente prejudicada. Como se concluiu que a “pena” imediata prevista nos
acordos analisados não pode ser considerada, propriamente, uma pena, não haveria
que se falar em violação à situação de inocência do colaborador. Se o que se tem é
o cumprimento antecipado, mas voluntário e efetivamente desejado pelo colaborador
(com o objetivo de resolver suas pendências judiciais o quanto antes), tratar-se-ia,
na realidade, de uma privação ou restrição voluntária de liberdade ou direitos. Ainda
que sem a recomendável previsão legal, tal caráter afastaria qualquer invocação ao
princípio do art. 5º, LVII, da Constituição Federal.
É interessante voltar ao referido princípio, porém, em razão da possível
alegação de sua violação, na medida em que, sob as condições descritas no
parágrafo anterior, acaba-se por colocar a presunção de inocência em conflito com o
princípio da ampla defesa.
É que, conforme se tratou no terceiro capítulo deste estudo, a colaboração
premiada deve ser compreendida como um relevante instrumento de defesa a ser
utilizado pelo acusado, de modo que a invocação – por terceiros – de que o modelo
de acordo que estabelece pena ser cumprida imediatamente violaria uma garantia
187
fundamental acabaria por violar o próprio direito de defesa de quem seria
prejudicado.
Para explicar tal dinâmica, é interessante o conceito de Mendonça quanto ao
que denomina de princípio do devido processo negocial. O autor sustenta que, no
âmbito da justiça negocial, a base fundamental não é mais o devido processo legal,
mas o referido princípio “cujos princípios estruturantes são a autonomia da vontade
– como decorrência do princípio da liberdade –, a eficiência, a boa-fé objetiva e a
lealdade”811.
Segue Mendonça, quanto à autonomia da vontade, sustentando que se trata
de princípio que “impõe a liberdade de estabelecer o conteúdo do acordo” 812 às
partes, de modo a estabelecer, com as “cessões recíprocas para buscar alcançar o
fim comum” 813, um efetivo negócio. Tal dinâmica, de fato, é estranha ao processo
penal, que é público (“e não coisa das partes” 814) e “um instrumento a serviço do
Estado para atingir objetivos públicos” 815. No entanto, para o autor, “o fato de o
processo ser público e os interesses serem indisponíveis não é motivo suficiente
para alijar a autonomia da vontade no processo penal”816.
Diante disso, o autor acolhe o entendimento de que, ainda que o processo
penal em regra verse sobre direitos indisponíveis, não há vedação na composição, o
que faz com fundamento também no processo civil. Nesse sentido, menciona o
enunciado nº 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis que, em relação
ao art. 190 do Código de Processo Civil817, estabelece que “a indisponibilidade do
direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico
processual”818.
Em sentido semelhante, Didier Jr. e Bonfim, ao classificar a colaboração
premiada como um negócio jurídico, afirmam que “a vontade (...) não é apenas
pressuposto fático do ato jurídico, mas ela também atua no âmbito de sua eficácia,
811 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 64. 812 Ibidem, p. 61. 813 Ibidem, p. 61. 814 Ibidem, p. 65-66. 815 Ibidem, p. 65-66. 816 Ibidem, p. 65-66. 817 “Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.” BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em <http://goo.gl/9wdGwD> Acesso em 9 de maio de 2018. 818 Disponível em: <http://goo.gl/BGQG8E> Acesso em 9 de maio de 2018.
188
no âmbito da escolha de categoria eficacial e de seu conteúdo, sempre dentro dos
limites tratados no sistema” 819. E segue, afirmando que, “na colaboração premiada,
o colaborador obriga-se a colaborar porque receberá, ‘em troca’, a decisão favorável
de extinção da punibilidade ou redução ou conversão da pena” 820. Já a autoridade
pública “propõe a decisão penal favorável porque receberá, ‘em troca’, a
colaboração efetiva, da qual deverá decorrer, no mínimo, um dos resultados
previstos no art. 4º da Lei” 821.
Disso decorre o conflito que se ora apresenta entre a ampla defesa e a
presunção de inocência. Se já não há violação a esse princípio em razão dos
motivos expostos no subcapítulo anterior, também não o há porque, ao aceitar
cumprir uma “pena” imediata, o colaborador age em interesse pessoal, voluntário,
dispondo de sua liberdade sem uma efetiva garantia de recebimento de benefício na
sentença (mais sobre isso adiante), mas porque entende, orientado por defensor
constituído, que se trata da melhor saída para o exercício de sua defesa. Nesse
sentido, Sánchez Rios e Farias reconhecem a mudança do caráter da defesa
técnica, que passou “a assumir uma postura de verdadeiro ‘assistente’ do Ministério
Público, atuando apenas para orientar o cliente a cooperar no sentido de garantir os
benefícios prometidos”822.
Não se ignora, no entanto, que acordos que sigam mais à risca o que dispõe
a Lei nº 12.850/2013, como o de Luiz Antônio de Souza, revelam que, para
determinados colaboradores, a lógica do processo penal segue a mesma. No seu
caso, em que não foi previsto o cumprimento imediato de “pena” como benefício,
tampouco se fixaram efetivas penas ou garantiram benefícios, há uma preservação
dos conceitos tradicionais da presunção de inocência e da ampla defesa.
Considerando-se que o referido colaborador havia sido condenado, sem
benefícios, antes da celebração do termo aditivo analisado, sua colaboração parece
envolver, não apenas o cumprimento dos requisitos do art. 4º, caput, da referida lei,
como também o de lutar, em recursos defensivos, para que eventualmente a pena já
aplicada seja reduzida. O que é interessante notar é que, sob a perspectiva do
colaborador, seu acordo é extremamente pior do que os três da Operação Lava
Jato. Ainda que haja discussões – adiante referidas – sobre a segurança dos
819 DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada..., 2016, p. 33. 820 Ibidem, p. 35. 821 Ibidem, p. 35. 822 SÁNCHEZ Rios, Rodrigo, FARIAS, Renata Amaral. O instituto da colaboração..., 2018, p. 22.
189
benefícios pré-fixados perante o Juízo quando da sentença, o fato de ter sido
previsto um cumprimento inicial de uma pena pré-fixada, em condições
extremamente mais favoráveis, e bastante inferior à que seria cominada sem o
acordo, garante aos três colaboradores iniciais um melhor prognóstico penal que
àquele que teve, sob a perspectiva tradicional, garantida a presunção de inocência
(na medida em que, sem a prévia cominação ou previsão de pena, pode ser
integralmente absolvido em sentenças posteriores ao acordo, ao contrário dos
colaboradores da Lava Jato que, em razão do cumprimento imediato, provavelmente
não se beneficiariam de situação semelhante).
Com efeito, e com um pé na realidade, parece que uma discussão sobre a
presunção de inocência e a ampla defesa, no âmbito da colaboração premiada, é
pouco produtiva. A depender do acordo celebrado, parece ser melhor ao
colaborador que tais garantias sejam deixadas de lado para que se assegure um
melhor resultado prático. E qualquer discussão que ignore essa posição de quem
sofrerá as consequências do processo penal não deixa de ser meramente teórica.
De qualquer forma, e para responder ao problema desta pesquisa, pode-se
afirmar que, neste processo penal pós-colaboração premiada, a presunção de
inocência do colaborador (a depender do conteúdo do acordo, mas partindo-se dos
exemplos mencionados em que se estabeleceu o cumprimento imediato da pena),
não mais parece pertencer ao núcleo central das garantias que lhe preocupam,
cedendo lugar a uma nova forma de exercer sua defesa, qual seja mediante a
colaboração com o processo por meio de um acordo que lhe beneficie. Já a ampla
defesa assume caráter novo, em que não mais se resume à oportunidade de refutar
os fatos imputados, técnica e pessoalmente, mas busca, justamente pela adesão à
tese acusatória, a melhor situação penal possível.
No primeiro capítulo, trabalhou-se a ideia de que a ampla defesa também
revela interesse público, na medida em que a contraposição entre as partes auxiliará
a averiguação da legitimidade e legalidade do processo penal. Tal função, na
colaboração premiada, deverá ser exercida na análise da prova, conforme se verá
no subcapítulo corresponde abaixo. É certo, porém, que, na ótica do colaborador, o
exercício da defesa mais se preocupará com a legitimidade do acordo do que com o
processo, revelando importante mudança (que se entende não se tratar de uma
violação) na dinâmica processual tradicional.
190
4.1.3 AS POSSÍVEIS TENSÕES DECORRENTES DA FIXAÇÃO PRÉVIA DE PENA
E OUTROS BENEFÍCIOS NÃO PREVISTOS EM LEI
Os acordos de Paulo Roberto Costa, Delcídio do Amaral e João Santana,
além de preverem o cumprimento imediato de uma “pena”, também se caracterizam
por uma série de benefícios penais e obrigações não previstas em lei. A Costa,
previu-se o cumprimento de um ano de prisão domiciliar e zero a dois anos de prisão
em regime semiaberto, seguidos do restante da pena unificada de até vinte anos em
regime aberto. Para Amaral, estabeleceu-se o cumprimento de um ano e seis meses
em regime semiaberto domiciliar, seguido de um ano em regime aberto domiciliar e
seis meses de serviços comunitários de sete horas semanais. Por fim, para Santana,
previu-se o cumprimento de um ano e seis meses de “prisão”, em regime fechado
domiciliar, seguido do mesmo período em regime semiaberto diferenciado e um ano
em regime aberto diferenciado.
No primeiro acordo, previram-se prazos de pena incompatíveis com o regime
legal de início de cumprimento de pena e progressão de regime. Nos dois últimos
acordos, por outro lado, tem-se a previsão de cumprimento de um quantum de pena,
dividido em regimes pré-estabelecidos, e relevantemente inferior a um teto de pena
igualmente fixado nos acordos (quinze anos, no máximo).
Para o que interessa ao escopo deste trabalho, também vale mencionar
outros benefícios não previstos em lei, quais sejam a suspensão das ações penais
pelo prazo de dez anos quando as condenações proferidas chegassem aos limites
de pena indicados, após o qual se aguardaria a extinção da punibilidade pela
prescrição da pretensão punitiva e, no caso de Costa, a previsão de que o Ministério
Público promoveria o arquivamento de fatos novos trazidos pelo colaborador no
âmbito do acordo.
Conforme se analisou no terceiro capítulo, alguns desses benefícios são
textualmente incompatíveis com aqueles que o Juiz “poderá, a requerimento das
partes”, conceder: perdão judicial, redução em até dois terços da pena, substituição
por restritiva de direitos (art. 4º, caput, da Lei nº 12.850/2013), imunidade processual
(art. 4º, §4º), a redução da pena anteriormente fixada ou a progressão de regime
fora das hipóteses legais (art. 4º, §5º).
A sistemática desses acordos se repete no âmbito da Operação Lava Jato,
não se tratando, de forma alguma, de exceções à regra. Aliás, o acordo de Luiz
191
Antônio de Souza, que prevê apenas “pleitos” do Ministério Público para que os
Tribunais ou o Juízo de execução penal reduzam a pena já aplicada e para que o
Juiz da causa conceda o perdão judicial na sentença, parece ser, pela busca que se
realizou quando da pesquisa que orienta este trabalho, o excepcional.
Cláusulas variadas e não previstas em lei como as que se ora analisam têm
sido homologadas pelo Supremo Tribunal Federal e Juízes de 1º grau por todo o
país e foram recentemente formalizadas pelo Ministério Público Federal, na
mencionada Orientação Conjunta nº 1, de 23 de maio de 2018, como “boas práticas”
da colaboração premiada. Naturalmente, essa realidade merece uma análise
própria, em razão das possíveis tensões que geram com princípios tradicionais do
processo penal brasileiro. É o que se pretende fazer neste subcapítulo, em que se
analisarão os termos dos acordos à luz dos princípios do Juiz natural, da
obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública.
4.1.3.1 A CONCILIAÇÃO COM O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
Neste subcapítulo, pretende-se enfrentar a questão das cláusulas
abrangentes dos acordos indicados em face do princípio do Juiz natural a partir de
três perspectivas distintas. Em primeiro lugar, revisitar-se-á o conceito original da
homologação judicial do acordo e da posterior verificação de sua eficácia, o que se
fará eminentemente à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Na
sequência, analisar-se-á de que maneira pode haver uma tensão entre a faceta da
imparcialidade do princípio em comento e a homologação nos termos dos acordos
da Operação Lava Jato. Por fim, enfrentar-se-á a discussão específica sobre as
cláusulas mencionadas, sobretudo no que diz respeito aos potenciais efeitos que
terão sobre Magistrados ainda não vinculados aos autos (em fatos posteriores) e o
Juízo da Execução Penal.
4.1.3.1.1 A VINCULAÇÃO DO JUIZ AOS BENEFÍCIOS NA HOMOLOGAÇÃO
JUDICIAL
No item 3.6.3 deste trabalho, analisou-se, sob perspectiva eminentemente
legal, a fase da homologação judicial. Na oportunidade, concluiu-se que a decisão
que homologa o acordo não tem o condão de adentrar em seu mérito e mantém o
192
Magistrado alheio à vontade das partes, exatamente conforme dispõe o texto da Lei
nº 12.850/2013. Nesse sentido, conforme prevê o art. 4º, §7º do diploma, ao Juiz
apenas caberia a verificação da regularidade, legalidade e voluntariedade do acordo.
Na sentença relativa a cada um dos processos abarcados pelo instrumento
celebrado entre Ministério Público, conforme o art. 4º, §11 da lei, voltaria o Juiz à
dinâmica da colaboração para analisar os termos do acordo homologado e sua
eficácia. Relembre-se que, no art. 4º, §1º, estabelece-se que, para qualquer
benefício ao colaborador, a concessão levará em conta sua personalidade, natureza,
circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso, além da própria
eficácia do acordo.
Se, na análise legal da Lei nº 12.850/2013, a compreensão da dinâmica de
atuação do Magistrado é relativamente simples, a situação que se ora analisa, em
que os acordos preveem benefícios extremamente concretos, com a aplicação de
penas preestabelecidas e outras circunstâncias relativas ao seu cumprimento, traz
algumas complicações. É que, como o Ministério Público garante aos colaboradores
que suas penas serão aquelas (cabendo discussão, no tópico seguinte, sobre essa
possibilidade), parece haver uma substituição na função do Juiz, que não mais
passaria, pela leitura dos termos do acordo, a ter margens para a modulação dos
benefícios de acordo com o que dispõe a lei.
O Supremo Tribunal Federal discutiu a questão no julgamento da Questão de
Ordem na Petição 7074, em acórdão publicado em 3 de maio de 2018. Na ementa,
constou o seguinte sobre o tema:
Questão de ordem que se desdobra em três pontos para: (i) resguardar a competência do Tribunal Pleno para o julgamento de mérito sobre os termos e a eficácia da colaboração, (ii) reafirmar, dentre os poderes instrutórios do Relator (art. 21 do RISTF), a atribuição para homologar acordo de colaboração premiada; (iii) salvo ilegalidade superveniente apta a justificar nulidade ou anulação do negócio jurídico, acordo homologado como regular, voluntário e legal, em regra, deve ser observado mediante o cumprimento dos deveres assumidos pelo colaborador, sendo, nos termos do art. 966, § 4º, do Código de Processo Civil, possível ao Plenário analisar sua legalidade. 823
Pela leitura da ementa, extrai-se a conclusão do julgamento unânime no
sentido de que o acordo considerado regular, voluntário e legal deve ser observado
quando da sentença se o colaborador cumprir os deveres assumidos no acordo. Ou
823 BRASIL. Questão de Ordem na Petição nº 7074..., 2018, p. 2.
193
seja, se o colaborador apresentou uma narrativa em seus depoimentos e se
comprometeu a apresentar determinados documentos ou a indicar outras fontes de
prova para a corroboração, e assim agiu na instrução, sem contrariar o que fora dito
ou deixar de cumprir aquelas obrigações, a homologação vincularia o Juízo da
causa a aplicar os benefícios acordados.
A discussão na Suprema Corte, porém, não se deu sem importantes
questionamentos pelos Ministros. O Ministro Luiz Fux posicionou-se no sentido de
que, “depois desse controle de legalidade – até para não gerar insegurança jurídica
(...), só caberá ao órgão julgador verificar a eficácia daquela colaboração sobre se
aquelas declarações correspondem à realidade probatória apresentada na
sentença”824. A análise da eficácia que recairia ao Juiz da causa, portanto, seria “a
eficácia da delação em si, em razão da correspondência da colaboração com a
realidade probatória dos autos; aí é eficaz” 825.
O Ministro Roberto Barroso seguiu linha semelhante, afirmando que “no
momento do julgamento, já não cabe mais juízo de legalidade ou juízo de mérito
sobre a colaboração” 826, sendo que, “no momento do julgamento, o que se vai fazer
é verificar se o que foi clausulado no acordo, se aquilo a que o colaborador premiado
se obrigou, ele efetivamente cumpriu e de maneira satisfatória” 827.
O Ministro Marco Aurélio, por sua vez, ao questionar se os “benefícios que
tenham sido ajustados obrigam o Órgão Julgador” 828, consignou que “a resposta é
desenganadamente negativa” 829 . No entanto, reconheceu que as cláusulas que
estabelecem os benefícios configuram “inspiração para o Órgão Julgador atuar,
mantendo a higidez desse instituto que, na quadra atual, tem-se mostrado
importantíssimo” 830 . O Ministro enfatiza, porém, que tal inspiração não teria o
condão de concentrar no Ministério Público “a arte de proceder na persecução
criminal, na titularidade da ação penal, e, também, o julgamento, embora parte
nessa mesma ação penal” 831.
824 BRASIL. Questão de Ordem na Petição nº 7074..., 2018, p. 55. 825 Ibidem, p. 50. 826 Ibidem, p. 63. 827 Ibidem, p. 63. 828 Ibidem, p. 233. 829 Ibidem, p. 233. 830 Ibidem, p. 233. 831 Ibidem, p. 233.
194
Em seu voto, o Ministro Ricardo Lewandowski afirmou que a homologação
realiza um “exame precário, efêmero, que se faz à luz dos meros indícios que o
Relator tem em mãos” 832. A análise de legalidade, assim, envolveria ao
dever de vetar cláusulas que excluam, da apreciação do Judiciário, lesão ou ameaça de lesão a direitos; em segundo lugar, que estabeleçam o cumprimento imediato da pena ainda não fixada; em terceiro lugar, fixa em regime de cumprimento de pena não autorizados pela legislação em vigor; em quarto lugar, avancem sobre cláusulas de reserva de jurisdição; em quinto lugar, determinem o compartilhamento de provas e informações sigilosas sem a intervenção da justiça; e, finalmente, em sexto lugar, autorizem a divulgação de informações que atinjam a imagem ou a esfera jurídica de terceiros. 833
Verificando-se os acordos deste estudo, percebe-se que essa análise
criteriosa quanto a determinadas cláusulas possivelmente contrárias ao texto
expresso em lei não ocorreu. De qualquer forma, os acordos foram homologados.
Resta, com isso, a pergunta: se, homologado o acordo com referidas cláusulas, qual
o posicionamento que se espera do Magistrado, quando da análise da eficácia dos
acordos?
O próprio Ministro Lewandowski levantou essa questão, referindo que a
Ministra Cármen Lúcia havia afastado a incidência de uma cláusula contrária ao
texto expresso da lei (quanto à suspensão da prescrição por prazo superior ao do
art. 4º, §3º da Lei nº 12.850/2013) quando da homologação do acordo da Odebrecht,
mas que poderia não o ter feito. Com efeito, defendeu o Ministro que o Plenário (e,
em outros casos, o juiz natural da causa), na sentença, reavaliasse tais cláusulas.
Embora o acórdão não tenha encerrado o tema sob essa perspectiva (e
parece ser plenamente possível que volte à discussão futuramente), a conclusão
que se tem, por ora, é a de que ocorre preclusão à discussão da legalidade do
acordo e, com efeito, aos benefícios acordados. O próprio Ministro Marco Aurélio,
que questionou a concentração de poderes com o Ministério Público, reconheceu,
ainda que com a ressalva do surgimento de fato novo, essa situação jurídica:
A preclusão desse ato de Sua Excelência é uma preclusão que aponto como relativa, porque, caso surja um fato novo, o próprio Relator, que será também o do processo-crime a ser formalizado, apresentará esse fato novo, com a
832 BRASIL. Questão de Ordem na Petição nº 7074..., 2018, p. 152-153. 833 Ibidem, p. 152-153.
195
honestidade de propósito que lhe é própria, ao Colegiado julgador. E este terá campo amplo para manifestar-se a respeito. 834
O Ministro Celso de Mello reconheceu que, homologado o acordo, configura-
se “ato jurídico perfeito, do qual resulta, quando adimplido pelo agente colaborador,
direito subjetivo que lhe garante acesso aos benefícios de ordem legal” 835 e que,
“ressalvadas as hipóteses de seu descumprimento por parte do agente colaborador
ou da superveniência de causa legítima apta a desconstituí-lo” 836 , revela-se
“insuscetível de modificação” 837. Da mesma forma, o Ministro Dias Toffoli afirmou
textualmente que, “caso a colaboração seja efetiva e produza os resultados
almejados, há que se reconhecer o direito subjetivo à aplicação das sanções
premiais estabelecidas no acordo, inclusive de natureza patrimonial” 838.
O próprio Ministro Gilmar Mendes, que afirmou que “o Juiz não é parte do
acordo” 839 e, portanto, “não fica por ele vinculado” 840, consignou que, ainda que o
Ministério Público apenas possa se comprometer a “pleitear a sanção premial” 841,
“havendo benefício válido no acordo, e sendo o acordo devidamente cumprido, o
julgador deve aplicar o benefício” 842, com a ressalva de que o Magistrado deverá
dosá-lo, utilizando-se dos já mencionados parâmetros do art. 4º, §1º da Lei nº
12.850/2013. O problema desse posicionamento, que pode ser futuramente
discutido de modo específico, é o grau de amplitude que se dará ao Juiz para a
verificação, na sentença, da validade do benefício acordado.
De qualquer forma, pode-se concluir, por ora, que o Supremo Tribunal
Federal entende, no que diz respeito à participação do Juiz na delimitação dos
benefícios que serão concedidos ao colaborador, que a homologação encerra a
discussão. Assim, as cláusulas quanto aos prêmios que serão conferidos ao
acusado subscritor do acordo deverão ser aplicadas na sentença quando as
obrigações assumidas forem cumpridas.
Na doutrina, há posicionamentos semelhantes. Veríssimo defende que “a
homologação do acordo serve para garantir ao colaborador que ele receberá, ao
834 BRASIL. Questão de Ordem na Petição nº 7074..., 2018, p. 233. 835 Ibidem, p. 260. 836 Ibidem, p. 260. 837 Ibidem, p. 260. 838 Ibidem, p. 134. 839 Ibidem, p. 215. 840 Ibidem, p. 215. 841 Ibidem, p. 215. 842 Ibidem, p. 215.
196
final, caso cumpra a sua parte, os benefícios (a quantidade e o tipo de penas) que
lhes foram prometidos com a avença”843. Para Didier Jr. e Bonfim, a homologação
com essa característica definitiva seria “consonante com a ratio subjacente ao
sistema penal, já que, em princípio, caberia ao órgão jurisdicional o juízo de
aplicação das consequências penais punitivas” 844. Em outras palavras, segundo o
autor, a homologação cumpriria o mandamento do art. 5º, LIII, da Constituição
Federal de que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente” 845 , equivalendo-se “à decisão penal que concede perdão judicial,
extinguindo a punibilidade, ou àquela que aplique redutor de pena restritiva de
liberdade ou, ainda, à que converta em pena restritiva de direito” 846, formando coisa
julgada material.
Bottini segue a mesma linha, afirmando que “uma vez homologado o acordo,
seus preceitos são válidos e geram efeitos no mundo jurídico” 847, ainda que ressalve
sua potencialidade, na medida em que, como a colaboração se dará em ações
penais, “os benefícios dependem de sua efetividade futura” 848 . Seguindo a
orientação do Supremo Tribunal Federal, o autor observa que
(...) uma vez homologado o acordo, há preclusão da análise de sua legalidade, exceto se surgir fato novo, ou informação nova a respeito de fato antigo, ou for reconhecida ilegalidade teratológica, caso em que a revisão se limitará à cláusula maculada sem afetar os demais elementos da avença.849
No entanto, quanto às cláusulas acordadas, sem a superveniência de vício,
Bottini conclui que “há um direito subjetivo do colaborador de aceder aos benefícios,
uma vez que a colaboração gera um dever por parte do Estado quando efetiva sua
postura, reconhecida por seu comportamento durante a instrução processual.” 850
843 VERÍSSIMO, Carla. Principais questões..., 2017, p. 113. 844 DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada..., 2016, p. 40. 845 BRASIL. Constituição…, 1988. 846 DIDIER JR.; BONFIM, op. cit., p. 40. 847 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A homologação e a sentença na colaboração premiada na ótica do STF. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Colaboração Premiada. São Paulo: RT, 2017, p. 189. 848 Ibidem, p. 189. 849 Ibidem, p. 192. 850 Ibidem, p. 195. Em igual sentido: SARMENTO, Daniel. Parecer: Colaboração Premiada. Competência do Relator para Homologação e Limites à sua Revisão Judicial Posterior. Proteção à Confiança, Princípio Acusatório e Proporcionalidade. Disponível em: <http://goo.gl/4aQJin> Acesso em 20 de maio de 2018.
197
A partir dessa discussão, e respondendo-se ao questionamento central desse
trabalho, percebe-se uma mudança no conceito do princípio do Juiz natural com a
dinâmica da colaboração premiada, sobretudo se observada a partir dos acordos da
Operação Lava Jato que constam deste capítulo. Nos referidos casos, houve a
previsão de penas específicas que, independentemente do momento de
cumprimento, deverão – à luz da orientação do Supremo Tribunal Federal e da
doutrina ora analisada – ser reconhecidas pelo Juiz no momento da sentença caso
constate a efetividade da colaboração. Na prática, isso significa que, na fase da
dosimetria da pena, quando o Magistrado deve analisar as circunstâncias judiciais
do caso e pessoais do acusado, estabelece-se uma limitação à individualização da
pena, na medida em que, por força da segurança jurídica que o instituto requer, os
benefícios acordados e homologados não mais poderão ser revisitados (o que se
afirma por ora, na medida em que o tema poderá ser revisitado pela jurisprudência).
Perceba-se, porém, que essa discussão não é relevante quando considerado
o acordo de Luiz Antônio de Souza. Naquele caso, como se disse, nenhum benefício
foi garantido quando da homologação, cabendo ao Ministério Público pleitear a
aplicação do benefício e o Juiz concedê-lo ou modulá-lo. Considerando-se que, no
referido acordo, não se garantiu qualquer certeza ao acusado, há um risco de que,
ainda que seja efetivo o acordo, o Magistrado não aplique o benefício em sua
integralidade, já que permanece aberta a possibilidade do art. 4º, §1º, da Lei nº
12.850/2013. Assim, entendendo-se que a personalidade do colaborador ou
qualquer das outras circunstâncias inscritas no dispositivo obstam a extinção da
punibilidade, o Juiz, fundamentadamente, poderá, nos termos do caput, aplicar outro
dos benefícios previstos em lei.
4.1.3.1.2 A IMPARCIALIDADE DO JUIZ E A HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL
No desenvolvimento da pesquisa que orientou a elaboração deste estudo,
verificou-se importante objeção de Estellita quanto à potencial violação à
imparcialidade do Juiz quando da homologação do acordo de colaboração premiada.
Ainda sob a égide da Lei nº 9.807/98 (durante a qual eram celebrados acordos
similares aos atualmente praticados, mas sem as formalidades legais), a autora
levantou o seguinte questionamento a respeito dos objetivos da colaboração
198
premiada e da participação preliminar do Magistrado quando da celebração de
acordo:
Caso o objeto da delação seja a “identificação dos demais co-autores ou partícipes”, esse julgamento antecipado do mérito da ação penal efetuado na celebração do “acordo” priva delator e delatado de garantias básicas decorrentes do devido processo legal: de um lado, priva o acusado delator de qualquer possibilidade de um julgamento justo, porque o seu julgador já se “comprometeu” a condená-lo; e, de outro, tira dos delatados a mesma possibilidade, pois já se proferiu um juízo antecipado de certeza sobre a “identificação dos demais co-autores ou partícipes”.851
Para a autora, portanto, “no momento em que um magistrado ‘homologa o
acordo’, está ele a afirmar (antecipadamente) sua convicção sobre a veracidade das
informações fornecidas pelo delator sobre a ‘identificação dos demais co-autores ou
partícipes’” 852 , de modo a violar duplamente o devido processo legal quanto à
função do Magistrado: “de um lado, retira-lhe a imparcialidade objetiva e, de outro,
impede o desenvolvimento contraditório do processo”853.
Em um primeiro momento, chamou à atenção o referido raciocínio – que não
se sabe se permanece válido à autora –, na medida em que, na lógica tradicional do
processo, não pareceria normal que um Juiz que deva ser imparcial (conforme se
desenvolveu no primeiro capítulo) pudesse, sem a violação ao referido princípio,
comprometer-se com a condenação de alguém que nem sequer estivesse, por
exemplo, denunciado nos autos. Trata-se de provocação mental semelhante à que
desafiou a pesquisa sobre a violação ao princípio do nulla poena sine judicio, acima
desenvolvida.
A compreensão prática da colaboração premiada, porém, encerrou, por ora,
essa primeira percepção. Como se viu na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal acima trabalhada, o posicionamento que tem se firmado naquela Corte – e
que é seguido nas instâncias superiores, ao menos como regra nas grandes
operações policiais (em especial na Lava Jato) – é, de fato, o de que “a colaboração
processual não é mais apenas um meio de obtenção de prova que se insere no
arsenal e nas técnicas modernas de investigação da criminalidade organizada”854,
mas “um novo modelo de Justiça Penal, que funciona a partir de funções não
851 ESTELLITA, Heloisa. A delação premiada..., 2009. 852 Ibidem, p. 3. 853 Ibidem, p. 3. 854 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada..., 2017, p. 146.
199
epistêmicas, e sem preocupação de legitimar o exercício do poder de punir
estatal.”855
A lógica, portanto, da dinâmica de acordos não se preocupa com a
imparcialidade do julgador, mas com a segurança de que, celebrado, tenha-se a
garantia de seu cumprimento à risca ao final do processo (independentemente da
pena voluntária pré-fixada pelo colaborador junto ao Ministério Público). Não é,
portanto, preocupação do colaborador que a celebração do acordo impeça a
prolação de uma futura sentença absolutória. Abre-se mão dessa possibilidade
quando se admite a prática delituosa em troca da garantia de benefícios penais que,
por meio da voluntariedade manifesta na celebração, tornarão aceitável a
condenação.
Nos acordos da Operação Lava Jato ora analisados, em que os parâmetros
penais são bem definidos e garantem aos colaboradores a segurança de que, pelos
fatos penais praticados, confessados e complementados por imputações e provas
contra terceiros, responderão da forma delimitada, não parece fazer parte do âmbito
de preocupação do colaborador e seu defensor que o Juiz tenha convicção primária
de sua culpa e, em razão disso, conduza a instrução de maneira parcial, tratando-o
como um culpado. Essa é, aliás, a própria premissa do acordo: submeter-se o
acusado ao processo com a demonstração de que efetivamente praticou os crimes
que lhe foram imputados e de que, da mesma forma, outros acusados delatados
também o fizeram. Nesses acordos, portanto, é indiferente a parcialidade do Juiz,
que, por sua vez, deve mais se preocupar com a produção da prova pelo Ministério
Público, que corrobore aquilo que diz o colaborador (especialmente para verificar a
efetividade da colaboração) do que, propriamente, com seus eventuais preconceitos
decorrentes da celebração de acordo.
Por outro lado, em um acordo como o de Luiz Antônio de Souza, em que essa
certeza de pena não existe, talvez a parcialidade seja especialmente mais prejudicial
em razão da insegurança causada ao colaborador. Entendendo-se a colaboração
como um acordo de vontades, não haveria que se falar em risco de imparcialidade
ao colaborador que já aceitou uma pena. Mas àquele que depende de uma
instrução, em relação à qual não tem controle, eventuais preconceitos do Magistrado
quanto ao conteúdo do que vier a dizer podem ser, de fato, perigosos (ainda que
855 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada..., 2017, p. 146.
200
haja uma perspectiva premial encerrada na decisão que homologa o acordo, que
permitirá discussões futuras quanto à extensão dos benefícios).
A discussão quanto à imparcialidade do Juiz na homologação da colaboração
premiada também se volta ao debate do processo penal brasileiro quanto ao Juiz de
garantias. Este, segundo Lopes Jr., é o “responsável pelas decisões acerca de
medidas restritivas de direitos fundamentais requeridas pelo investigador (polícia ou
MP) e que ao final recebe ou rejeita a denúncia”856, passando a instrução processual
ao Juiz da causa, que não teria se imiscuído na produção da prova indiciária.
O tema é objeto do Projeto de Lei nº 8.045/2010, que prevê no Capítulo II
justamente essa figura processual. Dizia o art. 14 do texto original que “o juiz das
garantias é o responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal”857,
elencando suas funções específicas, todas relacionadas à fase pré-processual.
Talvez seja benéfico à dinâmica da colaboração premiada, na forma como realizada
hoje (isto é, com a fixação antecipada de penas e outros benefícios abrangentes),
que o Juiz que tem o primeiro contato com os indícios apresentados pelo
colaborador (ainda que a lei vede sua incursão no mérito do acordo) e homologa a
tratativa não seja aquele que o julga. Tratar-se-ia de situação especialmente mais
benéfica aos acusados delatados, na medida em que o Juiz da causa poderia ter um
menor compromisso material com o conteúdo do acordo, conduzindo a instrução e
julgando sem qualquer vínculo cognitivo com os seus termos.
No entanto, trata-se de problema compartilhado hoje com todas as demais
medidas investigatórias decretadas pelo Juiz da causa, de modo a não se
demonstrar uma mudança efetiva na lógica da imparcialidade do julgador.
4.1.3.1.3 OS IMPACTOS NO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL DAS CLÁUSULAS
ESPECÍFICAS
Ainda que se vá analisar, no próximo subcapítulo, a possibilidade de o
Ministério Público propor inúmeras cláusulas não previstas em lei nos acordos de
colaboração ora analisados, cabe a análise de duas, neste momento,
856 LOPES JR., Aury; RITTER, Ruiz. A imprescindibilidade do Juiz das garantias para uma jurisdição imparcial: reflexes a partir da teoria da dissonância cognitive. In: GONZÁLEZ POSTIGOM Leonel. Desafiando a inquisição: ideias e propostas para a reforma processual penal no Brasil, Chile: Centro de Estudios de Justiça de las Américas – CEJA, 2017, p. 323 857 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 8.045/2010. Disponível em <http://goo.gl/2dxa9u> Acesso em 12 de março de 2018.
201
especificamente quanto ao potencial impacto que podem ter ao princípio do juiz
natural.
A primeira cláusula a ser analisada, que consta, com redações diferentes, dos
acordos de Paulo Roberto Costa e João Santana, prevê a amplitude do acordo para
além dos fatos já investigados. No caso do primeiro colaborador, o acordo prevê que
o Ministério Público irá promover o arquivamento de “fatos novos em relação ao
acusado trazidos pelo colaborador em relação aos quais não exista, na data do
acordo, nenhuma linha de investigação em qualquer juízo ou instância” 858 . No
acordo do segundo, há a delimitação do objeto como “todos os fatos ilícitos
praticados pelo colaborador até a data de assinatura” 859.
Ambos os acordos, como se vê, inserem no âmbito negocial fatos então
desconhecidos de qualquer autoridade e em relação aos quais não há procedimento
formal instaurado. No primeiro caso, há um compromisso do Ministério Público de
arquivar os feitos; no segundo, sequer há essa menção, podendo-se presumir que
todos os fatos penais relacionados constariam dos anexos da colaboração.
Considerando-se, como já se afirmou reiteradas vezes, que, ainda que se
admita o cumprimento da pena de imediato e que se assuma que os benefícios
acordados serão direito subjetivo do colaborador caso cumpra as obrigações
estabelecidas, ambas as cláusulas parecem ignorar a figura do Juiz da causa. A
uma, porque os fatos novos a serem arquivados – no acordo de Costa – deveriam,
por força do art. 28 do Código de Processo Penal, ser remetidos ao Juiz competente
com um requerimento próprio, não podendo ser feito de ofício; a duas, porque os
crimes supostamente cometidos por Santana precisariam ser primeiramente
delimitados para que, apenas após, pudesse ser estabelecida a extensão do
benefício. No caso de fatos não determinados, retira-se do Juiz a possibilidade de,
individualmente e quanto ao respectivo fato penal, efetuar o juízo de efetividade e
eficácia do acordo, em situação que poderia caracterizar uma violação ao Juiz
natural – já que, para o estabelecimento definitivo, tal análise na sentença parece
ser imprescindível.
Silva e Merlin já puderam se manifestar sobre a situação referente ao acordo
de Paulo Roberto Costa. Na oportunidade, afirmaram que, “se não é possível
relacionar o acordo de colaboração a um objeto futuro e incerto, então seria
858 BRASIL. Petição nº 5209..., 2014, p. 21. Acordo de Paulo Roberto Costa. 859 BRASIL. Petição nº 6890..., 2017. Acordo de João Santana.
202
contrário à lei a promessa homologada pelo STF de que o colaborador será
agraciado pelo arquivamento de investigações de fatos novos”860. Para os autores,
“não pode o Ministério Público transigir sobre a punibilidade e a persecução penal de
crime que nem mesmo se conhece no momento da assinatura do acordo”861. O
posicionamento parece acertado sob a leitura tradicional do princípio da
obrigatoriedade, mas a perspectiva que se confere à legalidade não é o foco deste
subcapítulo (sendo tratada mais adiante). O que se questiona, neste ponto, é a
tensão das cláusulas com o princípio do Juiz natural, a qual se entende que
efetivamente ocorre.
Observe-se, porém, que ambos os acordos foram subscritos pela
Procuradoria Geral da República, de modo que, conforme se tratou no subcapítulo
referente à legitimidade para a propositura da colaboração premiada, não seria
possível a qualquer autoridade judicial determinar “a remessa do inquérito ou peças
de informação ao procurador-geral”862, já que este já se posicionou antecipadamente
quanto ao arquivamento (no caso de Costa) e à generalização de fatos penais (em
relação a Santana).
Embora tal situação possa configurar uma clara exceção prática e legal ao
princípio da obrigatoriedade, já que, de acordo com o próprio Código de Processo
Penal, o Procurador-Geral detém a última palavra sobre o arquivamento de
investigação863, deve-se observar que, em caso de acordos celebrados em Tribunal
de hierarquia superior, pode ainda haver o desmembramento do feito 864 quando
houver multiplicidade de delatados, sendo alguns com foro especial por prerrogativa
de função e outros não. Com a previsão original de arquivamento ou de inclusão
genérica de múltiplos fatos no objeto do acordo, impossibilita-se, ao que parece,
esse possível desmembramento, que remeteria o acordo às autoridades
efetivamente competentes, tanto para a condução da ação, quanto para a análise da
efetividade do acordo.
Não se ignora, por outro lado, que, nos casos que envolvam crimes
cometidos pelos colaboradores no âmbito da Operação Lava Jato, inevitavelmente
860 SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira e; MERLIN, Luiz Henrique. Barganha e Colaboração Premiada: Modelos Norteamericano e Brasileiro. Artigo apresentado no evento “Colaboração premiada: sua conceituação, seus limites e as dúvidas geradas na sua aplicação”, realizado no Instituto de Estudos Culturalistas – IEC – em 30 de setembro de 2017. 861 Ibidem. 862 BRASIL. Código de Processo Penal, 1941. 863 Conforme SARMENTO, Daniel. Parecer…, 2018. 864 VERÍSSIMO, Carla. Principais questões..., 2017, p. 123-124.
203
as investigações seguirão quanto a possíveis outros envolvidos. Nesses casos,
ainda que os colaboradores não constem do rol de acusados, sua participação
ocorreria por meio de depoimentos prestados durante a investigação e a instrução
judicial. Caso ocorresse algum problema em tais declarações, haveria um meio pelo
qual o Juiz competente poderia averiguar a eventual inefetividade do acordo e ao
menos comunicar ao Supremo Tribunal Federal a ocorrência do fato. Nos casos de
crimes cometidos de forma exclusivamente individual, porém, verificar-se-ia essa
impossibilidade.
Quanto a esse primeiro aspecto, portanto, parece ser possível a discussão
sobre um real conflito da colaboração premiada – na forma como prevista nos
acordos em análise – com o princípio do Juiz natural (e também o princípio do
Promotor natural). Para a solução de qualquer dúvida, seria recomendável, inclusive
por força de lei, que o objeto do acordo fosse devidamente especificado quando da
sua assinatura. Em caso de impossibilidade, em razão de dúvida, pelo Ministério
Público, acerca da efetiva prática delitiva quanto a determinado fato narrado pelo
colaborador, parece ser medida mais adequada que se proceda, ao longo das
investigações eventualmente realizadas, à celebração de termos aditivos ao acordo
original, preservando-se a competência do Juiz a quem seja remetido o feito.
A Orientação Conjunta865 nº 1/2018, embora sem força de lei, sugere um
caminho no primeiro sentido. Ao definir os requisitos de instrução do acordo,
estabelece-se como “boa prática” que cada os anexos tenham os seguintes
elementos: descrição de cada fato típico ou conjunto de fatos típicos conexos;
indicação da duração e local da ocorrência desses fatos, envolvidos, meios de
execução, produtos ou proveito do crime, potenciais testemunhas e demais provas
de corroboração e a estimativa do dano. Sem dúvida, com tal procedimento,
minimiza-se a crítica que se pode fazer às cláusulas acima indicadas.
A segunda espécie de cláusula que merece destaque nesta análise guarda
relação com as previsões heterodoxas de progressão de regime, na medida em que
se poderia verificar uma tensão com a competência do Juízo de execução,
verificadas no acordo de Paulo Roberto Costa. No referido contrato, estabeleceu-se
que “a avaliação da produtividade do acordo, para fins do tempo de regime
semiaberto a cumprir, entre 0 e dois anos, será feita pelo Juízo com base em
865 BRASIL, Orientação Conjunta nº 1/2018..., 2018, p. 5.
204
relatórios e serem apresentados pelo Ministério Público e pela defesa” 866, devendo
levar em “consideração fatores tais como número de prisões, investigações,
processos penais e ações cíveis resultantes, assim como valores recuperados no
Brasil e no exterior” 867 . Segundo uma das cláusulas, o tempo de progressão –
variável entre zero e dois anos – seria, portanto, aferido pelo Juiz da causa, que
tomaria em consideração “o grau de efetividade do acordo” 868.
Como observaram Silva e Merlin, ao atribuir ao Juiz que homologou o acordo
a tarefa de avaliar os requisitos da progressão de regime, o referido acordo estaria
ferindo a “competência exclusiva do Juiz da execução penal, eis que de forma alheia
à lei promete ao colaborador vantagem que não pode cumprir e que é, sob o ponto
de vista legal, forma irrealizável até mesmo pelo Juiz competente”869. Embora o
trabalho citado se refira expressamente à cláusula mencionada, é comum a todos os
acordos da Operação Lava Jato a determinação prévia dos prazos de cada regime,
desconsiderando a posição do Juiz de execução penal no deferimento da
progressão. Isso não ocorre no acordo de Luiz Antônio de Souza, em que se tem a
previsão expressa da figura do Juiz da execução penal, para quem serão formulados
pedidos específicos relacionados aos benefícios previstos.
Canotilho e Brandão afirmam que, na “fase pré-sentencial, o Ministério
Público Federal não está (...) habilitado pela Lei nº 12.850/2013 a propor a um réu,
como contrapartida de sua colaboração, qualquer regime de progressão de pena”870.
Para os autores, tais previsões revelariam violação ao princípio do Juiz natural, na
medida em que o “juiz competente para a homologação deste acordo de
colaboração premiada (pré-sentencial)” 871 não é “competente para decidir da
questão, já de ordem penitenciária, da modalidade de execução da pena privativa de
liberdade a cumprir pelo réu, caso ele venha a ser condenado.” 872 Deveria ser
observada, sob essa perspectiva, “uma relação de congruência subjectiva entre o
acto de homologação da colaboração premiada e o acto da efectivação dos
866 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição 5209. Relator Ministro Teori Zavascki. 27 de agosto de 2014. Disponível em: <http://goo.gl/rgErdQ> Acesso em 6 de maio de 2018. 867 Ibidem. 868 Ibidem. 869 SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira e; MERLIN, Luiz Henrique. Barganha..., 2017. 870 CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada..., 2016, p. 32. 871 Ibidem, p. 33. 872 Ibidem, p. 33.
205
benefícios prometidos” 873, para que o Estado pudesse honrar o compromisso que
assume com o colaborador.
Sob uma leitura fria da Lei de Execução Penal874, à luz dos arts. 66, III, b e
112, compete de fato ao Juiz de execução penal determinar a execução progressiva
da pena, “com a transferência para regime menos rigoroso (...) quando o preso tiver
cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom
comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento”875. Assim,
os prazos pré-estabelecidos de penas para cada regime poderiam, sob uma leitura
tradicional, entrar em conflito com o referido dispositivo.
A Lei nº 12.850/2013, por sua vez, permite, “se a colaboração for posterior à
sentença”876, que haja “a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos
objetivos” 877. Entendendo-se que o disposto no art. 4º, §5º pode se aplicar também
ao colaborador que ainda não foi condenado (trata-se de um benefício limitado pela
prévia condenação que, a princípio, não poderia ser negado àquele a quem
caberiam melhores prêmios878), ter-se-ia a possibilidade de progressão de regime
sem o cumprimento dos benefícios. Por essa leitura, parece haver um permissivo
legal para o prévio estabelecimento do prazo de cada regime de pena,
independentemente da posição do Juiz de execução.
Mais importante, porém, parece ser o posicionamento segundo o qual,
havendo a cisão de casos homologados por Tribunal (prerrogativa de foro, por
exemplo), “o novo juiz deve respeitar os limites impostos à sua atividade, balizados
pela preclusão das decisões tomadas anteriormente” 879 . Ainda que haja uma
diferença entre a alteração da competência para a apuração de um fato penal e a
transferência da causa para o Juízo de execução, a lógica (amparada pelo
posicionamento do Supremo Tribunal Federal quanto à preclusão decorrente da
homologação) é a mesma. Assim, se o acordo for homologado com previsões
873 CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada..., 2016, p. 33. 874 BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://goo.gl/7NkErH> Acesso em 14 de maio de 2018. 875 Ibidem. 876 BRASIL, Lei nº 12.850..., 2013. 877 Ibidem. 878 Em sentido oposto, Canotilho: “na fase pré-sentencial não pode pactuar-se um benefício só previsto para uma colaboração pós-sentencial (v.g., a progressão de regime de execução de pena privativa da liberdade)”. CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada..., 2016, p. 30. 879 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A homologação..., 2017, p. 197.
206
acerca da execução, afastar-se-iam as disposições da Lei de Execução Penal para
que a execução da pena ocorresse conforme determina o contrato.
Isso não significa que não há uma mudança na percepção prática que se
possa ter quanto ao princípio do Juiz natural no que se refere ao Juízo de execução.
Não obstante, parece não haver que se falar, por ora, em uma ilegalidade ou
inconstitucionalidade, já que há previsão legal amparando a heterodoxia executória
e precedentes da Suprema Corte asseverando o caráter imutável dos termos do
acordo quando da alteração da competência da causa relacionada.
4.1.3.2 A CONCILIAÇÃO COM OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE,
OBRIGATORIEDADE E DA INDISPONIBILIDADE DA AÇÃO PENAL PÚBLICA
Superada a análise de situações individualizadas de possíveis conflitos entre
cláusulas e princípios constitucionais específicos, passa-se a uma leitura de
benefícios e obrigações previstos nos acordos citados – e outros já enfrentados pela
doutrina e jurisprudência do Supremo – que simplesmente não contam com amparo
legal. Embora a análise adiante realizada parta de uma leitura das cláusulas
contratuais em face da legalidade, há uma relação intrínseca dessa relação com os
princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública.
Explica-se: as cláusulas ora analisadas são, em regra, criações do Ministério
Público Federal para, em especial, fazer valer o aspecto negocial dos acordos de
colaboração. Trata-se de benefícios não previstos em lei que buscam garantir ao
colaborador uma maior segurança quanto à minuciosa delimitação das
consequências penais que advirão da sua submissão ao processo como alguém que
vá produzir provas incriminadoras e não, como mandaria a lógica tradicional,
confrontar as alegações acusatórias.
Como se tratou no primeiro capítulo, obrigatoriedade e indisponibilidade da
ação penal são princípios estabelecidos no ordenamento brasileiro a partir da leitura
do Código de Processo Penal, não constando expressamente da Constituição
Federal (como ocorre, por exemplo, na Constituição italiana880). Com isso, a sua
vigência decorre eminentemente da leitura legal (assim como algumas de suas
exceções, ressalvada a transação penal, que tem previsão constitucional). Assim, ao
880 “Art. 112 – Il pubblico ministero ha l’obbligo di esercitare l’azione penale”. ITÁLIA, Costituzione Della Repubblica Italiana. Disponível em: <http://goo.gl/WTqA2Q> Acesso em 15 de maio de 2018.
207
se analisarem ambos os princípios na prática da colaboração premiada, será
indispensável que se faça uma leitura das cláusulas de acordos também à luz do
princípio da legalidade. Afinal, caso se entenda, ao final deste capítulo, que, na
colaboração premiada, não vigem diretamente ambos os princípios (expandindo-se
a aplicação da obrigatoriedade no processo penal brasileiro), certamente tal
compreensão terá um impacto na exigência legal taxativa de benefícios.
Nos acordos da Operação Lava Jato ora investigados, uma série de cláusulas
já especificadas complementam o texto da Lei nº 12.850/2013: a fixação de teto de
pena; o cumprimento imediato da “pena”; a suspensão do prazo por dez anos
quanto atingida a pena máxima; a predeterminação dos regimes de cumprimento,
questões de natureza patrimonial e outras cláusulas específicas a cada um dos
colaboradores. Tais previsões não se conformam expressamente com os benefícios
do art. 4º, caput ou com outras previsões do referido diploma, sendo dispensável
discorrer profundamente sobre cada uma. O que é claro é o fato de que, na
celebração dos acordos, o Ministério Público Federal (ao menos no âmbito da
Operação Lava Jato, mas já se verificando situações muito semelhantes em
diversos outros casos, como na colaboração da JBS) tem se valido de ampla
liberdade na fixação de benefícios e obrigações. Tanto é que, na Orientação
Conjunta nº 1/2018, estabelece aquelas previsões como “boas práticas”.881
O mesmo não ocorreu no acordo de Luiz Antônio de Souza, utilizado neste
estudo como uma espécie de grupo de controle científico, e no qual a maioria
absoluta das cláusulas (em especial as que se relacionam com as previsões acima
elencadas) segue literalmente o disposto na Lei nº 12.850/2013.
O tema já foi analisado pela doutrina e pela jurisprudência. De um lado,
autores como Canotilho e Brandão são enfáticos em afirmar que “possíveis
exclusões ou atenuações de punição de colaboradores fundadas em acordos de
colaboração só serão admissíveis se e na estrita medida em que beneficiem de
directa cobertura legal, como manifestação de uma clara vontade legislativa” 882.
Segundo afirmam, “é terminantemente proibida a remessa e/ou a concessão de
vantagens desprovidas de expressa base legal” 883.
881 BRASIL, Orientação Conjunta nº 1/2018..., 2018, p. 10. 882 CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada..., 2016, p. 24. 883 Ibidem, p. 24.
208
Especificamente quanto a cláusulas como as que se oram analisam,
ressaltam uma potencial violação ao princípio da separação de poderes quando o
Poder Judiciário aplica benefícios que não foram previamente estabelecidos pelo
Poder Legislativo:
(...) o princípio da separação de poderes, que se procura garantir e efectivar através da prerrogativa de reserva de lei formal ínsita no princípio da legalidade, seria frontal e irremissivelmente abatido se ao poder judicial fosse reconhecida a faculdade de ditar a aplicação de sanções não previstas legalmente ou de, sem supedâneo legal, poupar o réu a uma punição. É o que sucederia, por exemplo, no caso de atenuação de uma pena de prisão para lá da redução de “em até 2/3 (dois terços)” prevista no caput do art. 4º da Lei nº 12.850/13 ou de concessão de um perdão judicial em relação a um crime não contemplado pela Lei nº 12.850/13. Em tais casos, o juiz substituir-se-ia ao legislador numa tão gritante quanto constitucionalmente intolerável violação de princípios fundamentais do (e para o) Estado de direito como são os da separação de poderes, da legalidade criminal, da reserva de lei e da igualdade na aplicação da lei. 884
Há razão de preocupação. Como ensinam Didier Jr. e Bonfim, como o acordo
de colaboração alcança a esfera de terceiros, “como é o caso daqueles que foram
‘delatados’” 885, e não apenas diz respeito à abreviação do processo do colaborador
mediante uma confissão, como ocorre no plea bargaining dos Estados Unidos da
América, sua compreensão não pode fugir dos regramentos do sistema em vigor.
Silva e Merlin adotam posicionamento semelhante. Em análise do sistema negocial
alemão, especificamente quanto a projeto que instituiria modelo de barganha em
moldes próximos ao que se propõe para o futuro Código de Processo Penal,
afirmam que “tanto lá como aqui, no projeto de lei brasileiro, o que caracteriza a
Barganha é o fato de o acusado abrir mão do direito de se defender, recusando a
instrução processual e encurtando o processo, em troca recebe ele uma significativa
redução de pena”886.
Na colaboração premiada, seguem os autores, “o efeito é justo contrário:
ocorre um alargamento do processo em face da colaboração que trará elementos de
prova contra terceiros. Ao final o colaborador receberá um prêmio pela efetividade
de sua colaboração” 887, que será concedido pelo Juiz, “dentro dos limites previstos
884 CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada..., 2016, p. 24. 885 DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada..., 2016, p. 47-48. 886 SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira e; MERLIN, Luiz Henrique. Barganha..., 2017. 887 Ibidem.
209
pela norma” 888 . Considerando-se que a idoneidade do colaborador é sempre
questionável em razão de sua posição nos fatos penais narrados, havendo inclusive
cláusula limitadora do uso de sua palavra como prova exclusiva (art. 4º, §16), “os
benefícios prometidos ao colaborador devem estar adstritos aos limites da lei” 889.
Analisando-se uma das cláusulas dos acordos da Operação Lava Jato deste
estudo, pode-se ir além na discussão. Sobre a previsão de suspensão dos
processos por dez anos, seguida de inércia “que perdurará até que já não seja mais
possível proceder contra o réu, por ter entretanto sobrevindo a prescrição do
procedimento”890, Canotilho e Brandão afirmam, peremptoriamente, que se trata de
ilegalidade manifesta. Especialmente porque há um “notório sacrifício do princípio da
obrigatoriedade da promoção processual” 891. Em outras previsões, ocorre o mesmo
suposto sacrifício, como na já mencionada cláusula do acordo de Paulo Roberto
Costa que prevê o arquivamento pelo Ministério Público Federal de futuras
investigações decorrentes dos termos da colaboração.
Badaró também defende que, em sendo a colaboração premiada, enquanto
acordo, um meio de obtenção de prova e, portanto, potencialmente restritivo de
direitos fundamentais alheios, não se pode deixar de observar a legalidade, que,
“mais do que nominar um meio de obtenção de prova, deve estabelecer seus
requisitos, as hipóteses de cabimento, seu prazo de duração etc.” 892. Segundo o
autor, não é possível “a produção de meios de obtenção de provas atípicos” 893.
Em sentido oposto ao que defendem os autores acima citados, tem-se o
posicionamento de Mendonça, que parte da premissa que “a própria Constituição
admite que haja espaços de consenso no processo penal” 894, em referência que faz
ao art. 98, I, que prevê a transação penal. Para o autor, “nada impede que esse
espaço seja ampliado, inexistindo qualquer vedação constitucional nesse sentido”895,
o que já teria inclusive ocorrido com a suspensão condicional do processo, que criou
nova modalidade negocial para crimes de médio potencial ofensivo sem nova
888 SILVA, Eduardo Sanz de Oliveira e; MERLIN, Luiz Henrique. Barganha..., 2017. 889 Ibidem. 890 CANOTILHO, J.J. Gomes; BRANDÃO, Nuno. Colaboração premiada..., 2016, p. 24. 891 Ibidem, p. 24. 892 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada..., 2017, p. 131. 893 Ibidem, p. 131. 894 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 67. 895 Ibidem, p. 67.
210
emenda. Assim, segue Mendonça, o constituinte teria traçado um “limite mínimo” 896,
sem vedar que o legislador fosse além.
A colocação é interessante, mas não suficiente para justificar a amplitude
absoluta de previsões de acordos. De fato, é possível questionar se o disposto no
art. 98, I, da Constituição Federal é uma cláusula de abertura para a justiça negocial
ou se trata-se de uma expressa limitação imposta ao sistema. Isto é: de um lado,
pode-se entender que, ao prever a transação, o constituinte teria aberto uma
possibilidade para novas soluções negociais, tanto aos crimes de médio potencial
ofensivo, quanto aos de alta gravidade; de outro, poder-se-ia afirmar que se trataria
de uma exceção à regra, no sentido de que, se, nas infrações de menor potencial
ofensivo, a Constituição admite a transação, então, nas demais, tal possibilidade não
existiria.
Ao que parece, pelo exemplo da suspensão condicional do processo, a
primeira hipótese é mais plausível. No entanto, tal conclusão não resolve a
pendência das cláusulas não previstas em lei. Especialmente porque se admite, com
menores ressalvas pela doutrina e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,
a previsão da imunidade processual do art. 4º, §4º como plenamente possível. Ou
seja, havendo previsão legal na própria Lei nº 12.850/2013, existiria a possibilidade
de ainda maior mitigação dos princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade
sem a necessidade de complementação extralegal dos referidos benefícios.
Mendonça vai adiante, no entanto. Segundo ele, a incidência do princípio da
legalidade, abarcando a obrigatoriedade da ação penal, teria maior importância no
sistema litigioso. Em se tratando de um “modelo consensual” 897, porém, admitir-se-ia
maior espaço ao consenso em razão da autonomia da vontade. Com efeito, o
princípio da legalidade seria “aplicável em toda medida limitativa de direitos
fundamentais, que deve se encontrar prevista em lei” 898, possuindo “finalidade de
segurança jurídica e legitimação democrática, visando restringir as intromissões que
o Estado faz na esfera do imputado” 899 – o que contrasta com a lição de Badaró
acima quanto à natureza da colaboração como meio de obtenção de prova.
Segundo Mendonça, portanto, o princípio da legalidade não teria o objetivo de
vedar, para o colaborador, a ampliação do conteúdo legal de benefícios a serem
896 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 67. 897 Ibidem, p. 67. 898 Ibidem, p. 67. 899 Ibidem, p. 67.
211
aplicados. Tanto é que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, antes da dinâmica
atual da colaboração premiada, já havia decidido nesse sentido, nos autos da
Correição Parcial nº 2009.04.00.035046-4/PR, oportunidade em que se estabeleceu,
quanto a benefícios não previstos em lei, que “embora criação extralegal, é ela
mantida pela inexistência de interesse recursal dos envolvidos – ressalvada hipótese
de direito indisponível -, não sendo moral e faltando legitimidade a terceiros em
discutir favores concedidos ao delator.”900
Tratando diretamente de cláusulas como as que se ora analisam, Mendonça
defende, por exemplo, a fixação de um teto de pena porque em determinados casos
(em que o colaborador responde a dezenas de processos), “aceitar um benefício
genérico (...) pode ser extremamente prejudicial ao colaborador, além de deixa-lo em
uma situação de absoluta insegurança jurídica”901. Ademais, haveria uma possível
violação ao interesse público quanto ao acordo, na medida em que, respondendo
proporcionalmente por cada fato narrado, ao colaborador interessaria omitir certas
condutas, “até mesmo como forma de autopreservação”902. Assim, tal previsão teria
uma função própria importante, estabelecendo o momento em que se entende “que
o acordo alcançou seu fim, de forma que a pena será considerada suficiente para a
prevenção e a repressão do delito. A partir de então, passa a não haver mais
interesse em novos processos contra o acusado.” 903
Da mesma forma, quanto à já mencionada suspensão do processo após
atingido o limite de pena, o autor sustenta se tratar de “um grande estímulo para que
o colaborador continue a cumprir suas condições – entre elas, a de não voltar a
delinquir.” 904 Para justificar tais cláusulas, o autor faz uma comparação com a
suspensão condicional da pena do art. 77 do Código Penal.
Mesmo sendo um claro defensor do modelo de colaboração premiada
atualmente praticado em boa parte dos casos penais de relevo no país, Mendonça
ressalva que, “embora a legalidade estrita não seja óbice, é recomendável que haja
alguma cobertura legal para os benefícios” 905 , de modo que não se apliquem
medidas que já não sejam disciplinadas no ordenamento e permita-se o emprego de
900 BRASIL. Porto Alegre. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Correição Parcial nº 2009.04.00.035046-4/PR. Relator Desembargador Federal Néfi Cordeiro. Publicado no Diário Eletrônico em 12 de novembro de 2009. 901 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., 2017, p. 89. 902 Ibidem, p. 90. 903 Ibidem, p. 90. 904 Ibidem, p. 92. 905 Ibidem, p. 96.
212
analogia. Com isso, admitir-se-ia, independentemente da legalidade, toda e qualquer
previsão (obrigação ou benefício) que seja, de certa forma, admitida em alguma
medida no sistema (excetuando-se, assim, penas vexatórias).
A doutrina do direito administrativo pode emprestar uma tentativa de solução
ao impasse. Ao discutirem a amplitude do modelo consensual do acordo em ações
de improbidade e outros procedimentos da área, chegou-se a problema semelhante
ao que se ora verifica com a colaboração premiada criminal. De um lado, autores
como Ferreira sustentavam que “não há escolha entre processar ou não processar,
entre sancionar ou não sancionar, salvo quando a lei dispuser em contrário” 906,
enfatizando que “ato de hierarquia inferior não pode liberalizar o que o estado de
legalidade obriga” 907. Por outro lado, Palma entende que “a leitura da legalidade
adequada à consensualidade considera a lei e o Direito, razão pela qual o
fundamento legal da atuação consensual, não se resume à lei formal, mas abrange
também princípios e atos normativos” 908.
Binembojm, por sua vez, afirma que “a ideia de juridicidade administrativa,
elaborada a partir da interpretação dos princípios e regras constitucionais, passa,
destarte, a englobar o campo da legalidade administrativa, como um de seus
princípios internos, mas não mais altaneiro e soberano como outrora” 909, no sentido
de que, ainda que a legalidade seja extremamente relevante, a ausência de previsão
legal poderia ser dirimida por fundamento direto da Constituição ou em razão de
“ponderação da legalidade com outros princípios constitucionais” 910.
Em sentido semelhante, e embora defenda que os benefícios do acordo
devem ser “um entre as três opções previstas legalmente”911, quais sejam o perdão
judicial, a redução de pena até dois terços ou a substituição da pena privativa de
liberdade por restritiva de direitos, Didier Jr. e Bonfim reconhecem na colaboração
premiada um “espaço de autorregramento” 912 , enfatizando, em especial, a
necessidade de se preservarem os limites estabelecidos pelo sistema. Se a
906 FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 333. 907 Ibidem, p. 333. 908 PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e acordo na administração pública. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 273-274. 909 BINEMBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 142. 910 Ibidem, p. 142. 911 DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada..., 2016, p. 33. 912 Ibidem, p. 33.
213
limitação é imposta pelo sistema em geral, abrir-se-ia uma maior amplitude para as
cláusulas de acordos e, em especial, para a mitigação dos princípios da
obrigatoriedade e da indisponibilidade.
Ademais, segundo os autores, ainda que o sistema processual penal receba a
colaboração premiada com “incômodo e estranheza, já que construído sob os pilares
da decisão absolutória e da decisão condenatória” 913, as lacunas decorrentes da
aplicação da Lei nº 12.850/2013 poderiam vir a ser dirimidas pela compreensão do
Direito como um “sistema unitário e aberto que se caracteriza pela ductibilidade,
exigindo-se uma dogmática líquida ou fluida compatível à sua base material
pluralista” 914 . Com efeito, seria preciso buscar a resposta “sob a perspectiva
sistêmica do ordenamento e dos valores que lhe são subjacentes” 915, de modo que
a lacuna seja “integrada por normas do próprio sistema” 916.
De fato, ambas as linhas de pensamento – contrária e favorável à amplitude
dos benefícios e obrigações da colaboração premiada para além do texto legal – têm
fundamentos importantes. Por um lado, é inegável que a perspectiva tradicional da
dogmática penal e processual tende a limitar qualquer medida que se reverta em
face de terceiros sem o amparo da lei (embora a discussão sobre benefícios
também se refira individualmente ao colaborador); por outro, ao se analisarem as
cláusulas questionáveis à luz dos princípios da autonomia da vontade e da
segurança pública917, pode-se entender tratar-se de medidas válidas, sob uma ótica
do sistema jurídico.
Em qualquer hipótese, é importante a compreensão enfatizada por Armenta
Deu de que a oportunidade como “exceção de um dos princípios fundamentais do
direito – como garantia contra o abuso dos poderes públicos (...) deve enfrentar o
perigo de desequilibrar aqueles” 918, com os riscos de “uso indevido de faculdades
discricionais (...) e a quebra da imparcialidade, combinando as funções acusadoras
e julgadoras nas mãos do promotor” 919. Segue a autora, afirmando que, se, por um
913 DIDIER JR., Fredie; BONFIM, Daniela. Colaboração Premiada..., 2016, p. 45-46. 914 Ibidem, p. 45-46. 915 Ibidem, p. 45-46. 916 Ibidem, p. 45-46. 917 Conforme SARMENTO, Daniel. Parecer…, 2018. 918 ARMENTA DEU, Teresa. Principio..., 2016, p. 3. Do original: “excepción de uno de los principios fundamentales del Estado de Derecho – como garantía frente al abuso de las facultades públicas (...) debe arrostrar el perigo de desequilibrar aquéllos”. 919 Ibidem, p. 4. Do original: “uso indebido de las facultades discrecionales (...) y la quebra de la imparcialidad, al aunar las funciones acusadoras y enjuiciadoras, ahora em las manos del fiscal”.
214
lado, a legalidade tenta garantir a igualdade perante a lei, “a vigência do princípio da
oportunidade consagra a desigualdade, de maneira nem sempre suficientemente
justificada” 920. Em outras palavras: independentemente da corrente escolhida sobre
a ampliação do princípio da oportunidade e redução dos princípios da
obrigatoriedade e indisponibilidade, é necessário que sempre se tenham em mente
os riscos do caminho a ser escolhido, ainda que possa garanta maior efetividade ao
processo penal.
A resposta poderá vir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Como
bem alerta Bottini, “não raro, cláusulas são glosadas pelo Poder Judiciário” 921, que,
em algumas ocasiões, já pôde se pronunciar por temas afeitos ao que se discute
neste capítulo. Alguns exemplos já foram citados no subcapítulo anterior, quando se
verificou o posicionamento dos Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski
contra cláusulas de suspensão dos processos assim que atingido o teto de pena e
que estabeleçam benefícios não autorizados pela lei. Outro pronunciamento de
relevo foi feito pelo Ministro Dias Toffoli, conforme se vê a seguir:
Então, eu recebi esse acordo, assinado pelas partes, e entendi que suscitava dúvida essa forma de cumprimento de pena. Então, eu coloquei em meu despacho: “Não obstante previsto os vinte anos como tempo máximo de cumprimento de pena, o acordo somente disciplina o regime prisional durante os primeiros dois anos e dois meses, quedando-se omisso em relação ao restante da pena, o que deverá ser esclarecido. É mister ainda que, no caso de descumprimento das condições dos regimes diferenciados de execução de penas propostos - vejam o que eu coloquei no despacho -, mister que, no caso de descumprimento das condições dos regimes diferenciados de execução de penas propostas, sejam disciplinadas as hipóteses em que, ao invés da rescisão do acordo nos termos da Cláusula 27, o colaborador ficará sujeito a eventual regressão do regime.”922
O acórdão da Questão de Ordem na Petição nº 7074, porém, não resolveu
tais problemas identificados nos debates em Plenário. Com efeito, não seria
surpreendente que, no futuro, tal tema voltasse à discussão, reconhecendo-se,
eventualmente, a ilegalidade dos acordos que preveem benefícios não previstos em
lei e que alterem, sem o amparo legal, o conteúdo dos princípios da obrigatoriedade
e da indisponibilidade.
920 ARMENTA DEU, Teresa. Principio..., 2016, p. 4. Do original: “la vigencia del principio de oportunidad equivale a consagrar la desigualdade, de manera no siempre suficientemente justificada”. 921 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A homologação..., 2017, p. 186. 922 BRASIL. Questão de Ordem na Petição nº 7074..., 2018, p. 113.
215
De todo modo, e considerando-se a realidade prática dos acordos, parece
que a conclusão a que se pode chegar neste trabalho a respeito dos princípios da
obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal é a de que, por ora, há uma
profusa mitigação de seu conteúdo pelos Juízes e Tribunais que admitem as
cláusulas abrangentes de limitação de pena e outras previsões de modo
incompatível com os benefícios previstos no art. 4º, caput, da Lei nº 12.850/2013 –
enfatizada pelo posicionamento do Supremo quanto à preclusão decorrente da
homologação e ao direito subjetivo gerado ao colaborador caso cumpra suas
obrigações do acordo.
Quanto à situação dos acordos ora analisados, porém, parece que cabe uma
recomendação específica para que se conciliem a intenção do colaborador e a
disponibilidade interna do Ministério Público com a problemática em questão,
sobretudo no que tange ao teto de pena e à suspensão do prazo dos processos
adicionais quando aquele for alcançado. Parece ser possível, pela compreensão dos
benefícios legais, que seja feita uma clara conciliação entre eles, complementando-
se o acordo periodicamente, na medida em que novas imputações forem formuladas
aos colaboradores. Por exemplo: ao invés de fixar um teto de pena para eventuais e
futuros casos penais, o Ministério Público poderia oferecer, de forma conjugada, os
benefícios de perdão judicial, redução de pena e imunidade processual ao
respectivo colaborador.
Assim, para a pena que se pretende ver cumprida, estabelecer-se-ia, quanto
a determinados casos, uma redução de pena proporcional ao desejado; para os
demais casos existentes, oferecer-se-ia o perdão judicial; para os casos futuros
(conhecidos em razão do acordo), garantir-se-ia a imunidade, já que o colaborador
seria o primeiro a receber o benefício quanto a esses fatos – desde que não fosse,
nos termos da lei, o líder da organização criminosa. No que diz respeito à suspensão
dos processos, a solução parece ser a celebração de termos aditivos quando novos
casos forem incrementados ao acordo. Se a declaração do colaborador ensejar uma
nova denúncia, o Ministério Público poderá complementar o acordo, sempre de
modo a manter o benefício material inicialmente previsto.
Ainda que o benefício concedido possa vir a ser rigorosamente o mesmo do
que sem tais formalidades (o que, por outro lado, poderia revelar a própria
desnecessidade do detalhamento e a adequação do procedimento atual), pelo
sistema proposto, parece ser possível garantir a legalidade e evitar qualquer
216
discussão sobre ilicitude de provas decorrentes de colaboração eventualmente
anulada, ao menos até que se reveja o texto legal e se estabeleçam regras mais
claras sobre o conteúdo do acordo.
4.2 A COLABORAÇÃO COMO PROVA DA CONDENAÇÃO
A análise das possíveis tensões envolvendo a compreensão tradicional dos
princípios do processo penal e a prática da colaboração premiada indicou uma
aparente mudança de paradigma, com maior apelo à autonomia da vontade e à
prevalência dos interesses de acusação e defesa no âmbito negocial. Caso se
estivesse diante de um modelo de justiça cível ou mesmo de uma barganha,
propriamente dita, em que o réu negocia com o Ministério Público sua própria pena
mediante a confissão e a reparação do dano, as diferenças sistêmicas teriam menor
impacto nesta discussão.
Acontece, como já se apresentou acima, que a colaboração é, não apenas
um instrumento de confissão e barganha para a concessão de benefícios penais,
mas um meio de obtenção de prova que tem como objetivo primário as funções dos
incisos do art. 4º da Lei nº 12.850/2013. Seu uso se justifica, portanto, pela
necessidade de aprofundamento de investigações para o desmantelamento e
persecução de integrantes de organizações criminosas, com o especial interesse de
reparação do dano.
Isso quer dizer que toda a mudança da dinâmica do processo penal acima
ilustrada tem como alvo, não o colaborador que abre mão de seus direitos em troca
de um benefício, mas especialmente os delatados que virão a ser investigados,
denunciados e potencialmente condenados a partir da narrativa apresentada na
colaboração. E mais: para a obtenção do prêmio, o colaborador terá como obrigação
fundamental a ampliação do escopo das investigações de que seja parte, sendo
tanto mais beneficiado quanto abrangentes e detalhados forem os crimes de
terceiros narrados.
Essa lógica da colaboração premiada traz um evidente risco, qual seja a
possibilidade de que os acordos sejam utilizados de forma perversa por um
réu/investigado que pretenda ser beneficiado por sua aparente voluntariedade com a
Justiça, mas que não tenha muito o que imputar a terceiros além de falsas
217
acusações. Mesmo entre os defensores do modelo atual de colaboração o risco é
reconhecido. Mendonça, nesse sentido, sustenta que é necessária a adoção dos
mecanismos e filtros já criados pela lei contra essa prática, quais sejam a
regra da corroboração – criada exatamente em razão do risco de acordos mendazes –, o exercício do contraditório em juízo, assegurando-se o direito ao confronto, o crime de falsa colaboração (...) e a previsão de que o colaborador, caso rescinda o acordo, perderá os benefícios e, ainda, serão válidas as provas por ele produzidas em seu desfavor.923
De fato, assiste razão ao autor quanto à existência de um sistema de freios e
contrapesos na Lei nº 12.850/2013 quanto ao uso da colaboração como prova
condenatória. No art. 4º, §16, há a previsão de que “nenhuma sentença
condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente
colaborador”924. Da mesma forma, o art. 19 prevê o crime de falsa colaboração, que
pune aquele que “imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a
prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações
sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas”925. Por fim, o art.
7º, § 3º prevê a publicidade do acordo com o recebimento da denúncia, indicando o
acesso aos delatados de seu conteúdo no curso da ação penal.
Considerando-se que o art. 155 do Código de Processo Penal exige que o
Magistrado forme sua convicção “pela livre apreciação da prova produzida em
contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos
elementos informativos colhidos na investigação”926, tem-se um modelo que, em
tese, impediria que uma colaboração perniciosa fosse indevidamente utilizada como
fundamento de uma condenação criminal.
O grande problema, que se relaciona diretamente com os princípios da
presunção de inocência e do contraditório, é que não há um parâmetro legal para a
valoração da prova decorrente da colaboração premiada. Embora seja clara a
necessidade de elementos de corroboração para as declarações do colaborador,
não se extrai do texto legal uma orientação mais específica sobre o conteúdo dessas
provas adicionais. Simantob, em razão disso, questiona “que tipo de elemento de
prova é preciso para corroborar a palavra do delator? Basta que qualquer afirmação
923 MENDONÇA, Andrey Borges de. Os benefícios possíveis..., p. 85. 924 BRASIL. Lei nº 12.850…, 2013. 925 Ibidem. 926 BRASIL, Código de Processo Penal…, 1941.
218
do colaborador seja provada para que se valide todo o resto da delação? Ou é
necessário que o elemento de corroboração diga respeito a aspecto decisivo do tipo
penal?”927.
Para o referido autor, num modelo adequado à Constituição, “o juiz deve
abstrair a palavra do colaborador até conseguir reunir indícios da ocorrência de um
fato ilícito de que o réu seja seu autor”928 . Somente a partir disso, “depois de
minimamente provar o fato e a autoria, é que poderá utilizar a palavra do
colaborador para corroborar os elementos e fundamentar a condenação” 929 . Na
prática, segundo Simantob, o inverso estaria ocorrendo, com “juízes usando a
palavra do colaborador como único elemento de prova para condenar para depois
sair em busca de qualquer outro dado empírico capaz de conectar a afirmação do
delator com a realidade”930.
A lei, porém, não determina qual deve ser a conduta do Magistrado. Como
bem observa Badaró, “o conteúdo das declarações do colaborador (...) será
diretamente valorável pelo julgador”931, em um “regime de prova legal negativa, no
qual se determina que somente a delação premiada é insuficiente para a
condenação do delatado”932. Com isso, o §16 do art. 4º não teria por “objetivo
determinar qual meio de prova ou quantos meios de prova são necessários para que
um fato seja considerado verdadeiro”933, mas apenas que a colaboração isolada não
pode funcionar como prova única da condenação.
O próprio Badaró evidencia o problema da lei quanto ao tema, revelando uma
profunda mudança no sistema processual penal:
(...) desloca-se a centralidade da legitimação do exercício do poder de punir de um instrumento cognitivo fundado no saber construído em contraditório, com o funcionamento de um mecanismo dialético de verificação e confronto entre tese e antítese, baseado na prova produzida que suporte cada uma delas, para um modelo em que haverá apenas uma “verdade” preestabelecida por uma escolha discricionária. 934
927 SIMANTOB, Fábio Tofic. Colaboração premiada na Operação Lava Jato. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; COSTA, Marcos da. A importância do Direito de Defesa para a democracia e a cidadania. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2017, p. 251. 928 Ibidem, p. 251. 929 Ibidem, p. 251. 930 Ibidem, p. 251. 931 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada..., 2017, p. 135. 932 Ibidem, p. 135. 933 Ibidem, p. 135. 934 Ibidem, p. 143.
219
O autor afirma que o grande problema dessa “verdade” buscada pela
colaboração premiada é o fato de ser “fundada em evidências geradoras de
crença”935, emprestando a afirmação de Martins de que é “evidente o que dispensa a
prova” 936 . Para o autor português, “a evidência instaura um desamor do
contraditório”937, já que “constitui um desdobramento do sentido na indicação da sua
própria verdade” 938 . A colaboração premiada, nessa lógica, seria formadora de
evidência, afastando a instrução da necessidade de uma adequada produção da
prova. Badaró exemplifica, tomando por base dinâmica de fatos similar (mas não
nominada) à da Operação Lava Jato:
Num contexto recente, em que alguns funcionários públicos confessam seus atos de corrupção, com narrativas fáticas compatíveis entre si, e devolvem algumas dezenas ou até centenas de milhões de dólares, essa repetição de versões criminosas somadas à montanha incalculável de dinheiro já são suficientemente plausíveis, seja no que confessam contra si, seja no que incriminam terceiros. E se torna absolutamente inútil ao delatado criticar o tentar falsear a crença gerada pela narrativa dos delatores, a partir de mecanismos probatórios. Fica-se com a crença alucinadora gerada pela evidência e rejeita-se a prova que possa confrontá-la, mostrando uma verdade diversa. 939
Para o autor, a situação processual referida, em que tudo indica a prática
delituosa a partir da narrativa da colaboração e dos elementos fornecidos pelos
colaboradores, impediria a absolvição de alguém verdadeiramente inocente, mas
que, “como sua versão não se alinhou com a narrativa já selecionada e adotada
como a história oficial das inúmeras colaborações premiadas” 940, não teria espaço
para demonstrar uma narrativa fática diferente daquela apresentada pelos que o
delataram.
Com base nisso, Badaró encerra sua crítica sustentando que “o modelo de
colaboração premiada brasileiro se transformou num fast track, que eliminou o
demorado e custoso processo” 941, indicando uma volta “a sistema punitivo em que a
centralidade não está na busca dialética de provas como mecanismo de suporte da
935 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada..., 2017, p. 143-144. 936 MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito. 3ª Edição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 2. 937 Ibidem, p. 2. 938 Ibidem, p. 3. 939 BADARÓ, op. cit., p. 145. 940 Ibidem, p. 145. 941 Ibidem, p. 146.
220
versão a ser adotada como a preferível na reconstrução histórica dos fatos, mas em
uma imposição solipsística de uma ‘verdade’ escolhida” 942.
O tema é bastante polêmico, possuindo aspecto epistemológico da prova que
foge ao objetivo deste trabalho. O que se pretende, aqui, é responder como a
colaboração premiada, na forma como praticada, tem interagido especificamente
com os princípios da presunção de inocência, da ampla defesa e do contraditório.
Uma forma de tentar responder a esse questionamento é a leitura da
jurisprudência de Tribunais que já tiveram que se debruçar sobre o tema. Nas
Apelações Criminais nº 5012331-04.2015.4.04.7000 943 e 5045241-
84.2015.4.04.7000944, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria de
votos, absolveu o ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, João Vaccari Neto,
em razão da ausência de prova de corroboração quanto a múltiplas declarações de
colaboradores que o implicariam em diversos fatos penais.
No primeiro caso, o Relator, Desembargador João Pedro Gebran Neto, votou
pela manutenção da condenação do acusado a partir da corroboração mútua
extraída de inúmeras declarações de colaboradores no sentido de sua participação
nas atividades ilícitas investigadas. Segundo o voto, “das declarações dos
colaboradores, não se pode retirar a qualidade de indício”945, e, do conjunto de
indícios apresentados nos autos, seria possível a extração da responsabilidade
criminal de Vaccari.
No voto do Revisor, o Desembargador Leandro Paulsen, por outro lado,
concluiu-se que, “a despeito do grande potencial probatório do depoimento do réu
colaborador, nada foi feito. O que temos é a versão oral dada por corréu diretamente
implicado no ilícito e que, muito provavelmente, tenha sido o segundo maior
beneficiário das propinas” 946 . No entanto, “nenhuma prova de corroboração foi
produzida pela acusação” 947 , impedindo a condenação. Segundo o voto, “o
Ministério Público Federal não produziu elementos probatórios como registros
942 BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada..., 2017, p. 146. 943 BRASIL. Porto Alegre. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal nº 5012331-04.2015.4.04.7000. Relator para acórdão Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto. 27 de junho de 2017. 944 BRASIL. Porto Alegre. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal nº 5045241-84.2015.4.04.7000. Relator para acórdão Desembargador Federal Leandro Paulsen. 26 de setembro de 2017. 945 BRASIL, Apelação Criminal 5012331..., 2017. 946 Ibidem. 947 Ibidem.
221
materiais das supostas reuniões em que Vaccari tomou parte, informações de sigilo
fiscal ou bancário (...), mensagens interceptadas” 948 ou outro elemento que pudesse
“colocar acima de dúvida razoável o dolo do acusado” 949.
No voto do Desembargador Victor Luiz dos Santos Laus, acompanhou-se o
voto do Revisor sobre o referido acusado em razão da ausência de apresentação
pela acusação de “elementos materiais que pudessem corroborar aquelas
declarações, assim como não foram arroladas testemunhas que poderiam fortalecer
a prova, como a apontada cunhada de João Vaccari” 950. Segundo o voto-vista,
proceder em sentido contrário violaria o disposto no art. 4º, §16 da Lei nº
12.850/2013.
No segundo caso, o Relator originário, Desembargador Gebran Neto, votou
pela manutenção da condenação de 1º grau, entendendo que existiriam contra o
acusado, além da palavra de colaboradores, um conjunto de indícios “compatível
com o quadro de corrupção sistêmica já identificado ao longo das diversas fases da
‘Operação Lava-Jato’”951 . Considerando-se, ainda, que o acusado eram um dos
principais representantes do Partido dos Trabalhadores e, mais importante, que não
apresentou contraindícios da imputação criminal, estaria correta a sentença de
primeiro grau.
Na dissidência aberta pelo Desembargador Paulsen, entendeu-se pela
absolvição pela ausência absoluta de elementos materiais de corroboração,
consistentes em prova testemunhal ou documental de seu envolvimento nos fatos.
Sem provas judiciais em sentido similar ao que afirmaram os colaboradores, não
haveria que se falar em “prova acima de dúvida razoável de seu envolvimento nos
ilícitos descritos pelo Ministério Público Federal”952.
No voto do Desembargador Laus, chegou-se a conclusão semelhante, com o
Julgador se atentando para o fato de que um depoimento policial (um dos indícios
indicados pelo Relator) que incriminaria o acusado não foi renovado em Juízo, não
podendo ser considerado em atenção ao princípio do contraditório. Assim, a
absolvição seria a medida impositiva em razão da ausência absoluta de elementos
de prova judicial que amparassem as palavras dos colaboradores.
948 BRASIL, Apelação Criminal 5012331..., 2017. 949 Ibidem. 950 Ibidem. 951 BRASIL, Apelação Criminal 5045241…, 2017. 952 Ibidem.
222
A partir de ambos os julgados, parece ser possível extrair a correta lição de
que a condenação criminal não pode decorrer das palavras de um colaborador
(exatamente nos termos da lei) ou das colaborações recíprocas que não sejam
amparadas por outros elementos de prova independentes, produzidos à luz do
contraditório. No entanto, o acórdão não encerra integralmente a discussão. É que,
nos casos de João Vaccari Neto, as absolvições decorreram da ausência absoluta
de prova de corroboração. Contra o acusado, conforme se extrai dos acórdãos, ter-
se-iam apenas as palavras dos colaboradores e elementos indiciários não
reproduzidos em Juízo.
Não se trata, portanto, de um caso em que a acusação, com o uso de
colaboração e provas de corroboração, apresentou uma tese, e a defesa, com
outros elementos probatórios judiciais, apresentou a antítese, decidindo-se o caso a
partir do confronto de todos os elementos dos autos. A impressão que se tem, pela
leitura dos acórdãos, é a de que, fosse o caso, provavelmente prevaleceria a
narrativa acusatória. É que, se, por um lado, a colaboração sozinha não pode
ensejar uma condenação, por outro, a existência de prova de corroboração
(assumida aqui como uma prova judicial que indique as elementares típicas do crime
imputado) parece tornar suficiente o acervo probatório pela condenação.
É o que se extrai dos votos do Tribunal Regional Federal da 4ª Região: caso
houvesse ao menos um depoimento judicial corroborando a narrativa dos
colaboradores, a condenação seria provavelmente mantida. Ou seja: com a
colaboração corroborada, seria exponencialmente maior o trabalho da defesa para
obter uma absolvição, possivelmente sendo necessária não apenas a produção de
prova judicial em seu favor, mas também a produção de prova que desqualificasse a
credibilidade das declarações do colaborador.
Com efeito, na coexistência de provas em favor de acusação e defesa,
parece ser possível presumir que a colaboração premiada é o elemento de prova
que “corroboraria” as demais. Tanto em favor quanto contra o acusado. Afinal,
havendo provas judiciais contra determinado acusado e provas igualmente
qualificadas em sua defesa, em caso de processo judicial que conte com
colaborador, sua palavra será decisiva para a sentença. Caso o colaborador exima o
réu de responsabilidade, é possível que sobrevenha uma absolvição; caso ratifique a
narrativa acusatória, certamente advirá a condenação.
223
Isso não significa que o requisito legal de validade da prova decorrente de
colaboração não seja importante. Sem a prova de corroboração, não se pode
esperar nenhum efeito da colaboração premiada. Segundo a frase de Trott,
”corroboração é para o depoimento de um cúmplice o que a gasolina é para um
carro: sem isso você não chega a lugar nenhum.953 Aliás, ao definir como deve ser a
conduta da acusação com o depoimento de um cúmplice, o autor norte-americano
sugere que se apresente “a prova de corroboração antes de colocar o delator para
depor”954, tamanha a importância, nos Estados Unidos da América, da prova que
confirma o que diz o colaborador.
Trata-se, porém, de uma dinâmica que causa “desconforto cultural” 955 .
Sobretudo ao se analisar a tradicional doutrina sobre o valor probatório do
depoimento de acusado confesso quanto à imputação de fato alheio. Para
Malatesta, nesse sentido, a palavra de um corréu que pretende obter benefícios
penais com sua confissão/delação não teria muito valor: “se, quanto ao condenado,
tal acusação, uma vez aceita, puder dar lugar à revogação da sentença, ou a um
perdão judicial, surgiria válida a suspeita contra a sua veracidade”956.
De todo modo, e partindo-se dos casos concretos analisados, pode-se
afirmar, em resposta ao problema enfrentado neste estudo, que a colaboração
premiada certamente altera a dinâmica do processo quanto aos três princípios
referidos. A presunção de inocência, para o corréu delatado, será garantida na
sentença apenas quando a prova da condenação decorrer exclusivamente da
palavra do colaborador ou de colaborações cruzadas, sem a produção de elementos
de convicção independentes e produzidos em Juízo; o exercício da defesa e do
contraditório, por sua vez, envolverá não apenas o fornecimento ao acusado de
todos os instrumentos para a produção de prova e oportunidades de fala nos autos,
mas a obrigação intrínseca de, havendo provas de corroboração, em qualquer
medida, comprovar que as acusações formuladas pelo colaborador não são
verdadeiras – e possivelmente, comprovar a sua manifesta falta de credibilidade.
Não se ignora, porém, que essa dinâmica de transferência do ônus da prova
não é exclusiva da colaboração premiada. Com o uso de outros meios de obtenção
953 TROTT, Stephen. O uso de um criminoso como testemunha: um problema especial. Tradução de Sérgio Fernando Moro. Revista CEJ, Brasília, Ano XI, nº 37, p. 68-93, abr./jun. 2007, p. 88 954 Ibidem, p. 89. 955 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A homologação..., 2017, p. 185. 956 MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 1960, p. 214.
224
de prova invasivos, como a interceptação telefônica e a quebra de sigilo de dados
financeiros ou fiscais, tem-se situação semelhante, na qual a absolvição dependerá
de um maior esforço defensivo no sentido de, não apenas negar os fatos e aguardar
a produção da prova acusatória, mas de produzir prova em sentido contrário com o
objetivo de desconstituir os elementos daqueles decorrentes.
225
CONCLUSÃO
Pretendeu-se, neste trabalho, analisar a possível mudança de paradigmas na
estrutura principiológica do processo penal com a implementação e proliferação de
acordos de colaboração premiada decorrentes das previsões da Lei nº 12.850/2013.
Conforme se pôde demonstrar, essa verificação de que os preceitos comumente
afeitos ao processo podem não mais ser integralmente aplicados na atualidade
decorre de uma paralela mudança no foco do Estado na persecução criminal, não
mais se dedicando exclusivamente à proteção de bens jurídicos individualizados,
mas se voltando à prevenção de crimes de natureza supraindividual.
O trabalho se dividiu em quatro partes, partindo, no primeiro capítulo, de uma
apresentação do processo penal sob uma ótica tradicional, com a descrição clássica
de princípios que hoje, com a dinâmica da colaboração premiada, podem ter seus
conteúdos profundamente alterados. Nesse sentido, procedeu-se à descrição teórica
dos princípios do nulla poena sine judicio, Juiz natural, Promotor natural, presunção
de inocência, contraditório e ampla defesa, obrigatoriedade e indisponibilidade da
ação penal pública.
Na sequência, no segundo capítulo, tentou-se justificar, à luz da política-
criminal, direito penal, direito penal empresarial e processo penal, os fundamentos
de existência de um instituto como a colaboração premiada. Nessa análise,
encontrou-se marco teórico no seguinte sentido:
a) Sob a perspectiva da política criminal, há uma tendência de criação de
mecanismos que busquem a eficiência das investigações criminais, considerando a
incapacidade da administração da Justiça em combater a criminalidade organizada
com métodos criados originalmente para a responsabilização de indivíduos por
crimes de menor repercussão social;
b) Nesse sentido, a tutela penal acompanharia a tendência de promoção de
direitos, ainda que sob consideráveis críticas quanto ao conteúdo ético da
colaboração premiada;
c) Em relação ao aspecto penal, reconheceu-se a colaboração premiada
como causa de exclusão ou redução de pena de conteúdo similar a experiências do
passado, como a “Ponte de Ouro” referida por von Liszt. Sua justificativa, quanto a
essa natureza, foi apresentada à luz da doutrina sobre outras figuras legais de
exclusão da pena, como a desistência e o arrependimento eficaz, verificadas
226
também a partir das teorias dos fins da pena. Analisaram-se quanto a esse tema, as
tradicionais correntes (teorias absolutas, relativas e mistas), encontrando-se
justificativa mais precisa para a colaboração premiada sob a leitura da prevenção
geral positiva. Também se apresentou, sob perspectiva distinta sobre a função do
direito penal, a possibilidade de conciliação da colaboração premiada com a teoria
de reparação do dano como terceira via do Direito Penal. Embora os conceitos
relacionados encontrem obstáculos ao instituto em análise (em razão da gravidade
abstrata dos crimes envolvidos), há relevância em se considerar a reparação do
dano como fundamento teórico para a colaboração premiada;
d) Na sequência, fez-se uma breve incursão ao conceito de justiça penal
negocial, na qual está inserida a colaboração premiada, apresentando-se as
modalidades previamente estabelecidas no ordenamento brasileiro (transação penal
e suspensão condicional do processo) e os modelos de Direito comparado do plea
bargaining norte-americano e do patteggiamento italiano.
No terceiro capítulo, adentrou-se ao direto estudo da colaboração premiada
no Brasil, fazendo-se um inicial desenvolvimento histórico de instrumentos
semelhantes até a leitura atual da Lei nº 12.850/2013. Após a apresentação da
estrutura legal, de forma ampla, vários aspectos do instituto foram analisados,
eminentemente sob sua perspectiva textual, com poucas incursões à análise prática.
Em primeiro lugar, tratou-se da natureza jurídica da colaboração premiada,
evidenciando-a como um meio de obtenção de prova (enquanto acordo) e meio ou
fonte de prova (quanto aos seus produtos); uma causa de diminuição e exclusão de
pena; um novo instrumento de defesa e um ato negocial composto, sob a
perspectiva do ato administrativo.
Na sequência, tratou-se dos sujeitos da colaboração premiada. Em relação ao
próprio colaborador, abordou-se a natureza de sua posição no processo, acolhendo-
se o posicionamento de que se trata de um sujeito autônomo, que não é
testemunha, interrogado ou simplesmente um informante, mas um indivíduo
interessado no caso e de quem, simultaneamente, exige-se o compromisso com a
verdade. Da mesma forma, enfrentou-se discussão sobre a participação do
advogado na dinâmica da colaboração premiada, sugerindo-se eventuais
impedimentos, à luz do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do
Brasil, em atuações concomitantes em face de colaborador e corréu (colaborador ou
não) ou quanto ao conteúdo a ser delatado, quando se tratar de advogado
227
colaborador em relação a seus clientes (que somente poderiam ser objeto do acordo
se os fatos relacionados fizerem parte do contexto investigatório).
Por fim, quanto aos sujeitos da colaboração, tratou-se do tema da
legitimidade para a propositura do acordo, adotando-se o posicionamento de que a
autoridade policial poderá participar da negociação e celebração do instrumento
(como permite a lei) desde que essas ocorram no âmbito da investigação e que
contem com o aval do Ministério Público. Ressalvou-se, porém, quanto ao tema, a
resolução da questão pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a
legitimidade policial com restrições sobre o conteúdo dos benefícios a serem
oferecidos.
Ainda no terceiro capítulo, apresentaram-se considerações sobre o
procedimento da colaboração premiada, passando por discussão quanto à lógica
dos atos prévios à celebração (que não são previstos em lei e partem de uma
perspectiva eminentemente negocial), da fase de proposta e celebração do acordo,
da homologação judicial, do juízo de eficácia do acordo e da possibilidade de sua
rescisão. Por fim, discorreu-se sobre o sistema de benefícios, tratando-se de suas
modalidades, amplitude e momento de concessão.
Esclarece-se que, na análise legal da colaboração premiada da Lei nº
12.850/2013, estabeleceu-se a fundação das discussões que se seguiram a partir da
verificação prática do instituto, realizada no quarto capítulo. Nesse sentido, mais se
levantaram questionamentos sobre as previsões legais do que se apresentaram
conclusões definitivas sobre cada um dos temas tratados.
Por fim, e adentrando-se à tentativa de resposta ao tema central deste estudo
(qual seja em que medida a colaboração premiada se relaciona com os princípios
tradicionais do processo penal insculpidos na Constituição), passou-se a analisar, no
quarto capítulo, a dinâmica prática do referido instrumento, o que se fez, em primeiro
lugar, pela análise de quatro acordos de colaboração premiada efetivamente
celebrados entre réus/investigados e o Ministério Público.
Foram analisados três acordos oriundos da Operação Lava Jato (dos Srs.
Paulo Roberto Costa, Delcídio do Amaral e João Santana) e um acordo proveniente
da Operação Publicano (do Sr. Luiz Antônio de Souza). A escolha dos acordos
decorre da diametral diferença entre aqueles e esse, considerando-se que os três
primeiros contêm uma série de cláusulas inovadoras em relação ao texto legal,
enquanto que o último segue mais à risca o que dispõe a Lei nº 12.850/2013.
228
Destaca-se que as cláusulas escolhidas para análise se referem eminentemente aos
benefícios concedidos aos colaboradores, não se ignorando uma série de outras
previsões dos acordos que podem vir a ser igualmente estudadas no futuro.
A primeira dessas cláusulas é a que prevê o cumprimento de pena
imediatamente após a homologação do acordo, que foi confrontada com o conceito
original do princípio do nulla poena sine judicio. Na análise que se realizou, chegou-
se à conclusão de que, não obstante os colaboradores da Lava Jato tivessem
efetivamente se submetido a formas de segregação de liberdade e limitação de
direitos sem o devido processo legal, que, na visão tradicional, prevê a fixação de
pena apenas após pronunciamento judicial de mérito, tais medidas não teriam
propriamente essa natureza, mas funcionariam como um efetivo benefício concedido
ao colaborador que, voluntariamente, submete-se a tais condições de forma a se
beneficiar nos processos a que responde.
Ainda que haja, nesses casos, uma redução do conteúdo do princípio
referido, já que, afinal, não há um conteúdo decisório de mérito na decisão
homologatória que acaba por admitir o cumprimento imediato de “pena”, chegou-se
à conclusão de que não se trata de uma violação constitucional, mas de uma
ampliação de conceitos anteriores das medidas despenalizadoras dos Juizados
Especiais Criminais. Há, sim, problemas com tais previsões, que eventualmente
poderiam ser impostas, sem a correspondente previsão legal, a potenciais
colaboradores que não estivessem dispostos à segregação imediata. Não obstante,
como a voluntariedade é requisito de validade do acordo de colaboração, admite-se
sua aplicação, ainda que se possam sugerir alterações no texto da Lei nº
12.850/2013 quanto ao tema.
Na sequência, analisou-se a mesma situação em relação aos princípios da
ampla defesa e da presunção de inocência, evidenciando um conflito que caracteriza
a nova dinâmica negocial do processo penal brasileiro: como se trata também de um
instrumento de defesa, ao admitirem voluntariamente previsões como o
cumprimento imediato de pena, os colaboradores abrem mão de sua presunção de
inocência para garantir o melhor resultado defensivo possível. Nessa análise,
concluiu-se que o acordo que não previa qualquer pena pré-estabelecida e garantia
ao acusado o devido processo legal e uma possibilidade de futura absolvição sem
nenhuma sanção penal era, na realidade, o pior acordo sob a perspectiva da defesa
e, sobretudo, da segurança jurídica. Trata-se, sem dúvida de uma grande novidade
229
no sistema penal brasileiro, em que o melhor caminho pode vir a ser aquele em que
a defesa técnica e a presunção de inocência são deixadas de lado – assim como a
garantia do devido processo legal – para que, ao final, as consequências aos
acusados sejam mitigadas de forma negociada e segura ao colaborador.
O trabalho também analisou os acordos práticos no que diz respeito às
cláusulas não previstas em lei, quais sejam os tetos de pena, os regimes de pena
com tempo e forma pré-estabelecidos, a suspensão do processo após o alcance
daqueles tetos, entre outras. Em primeiro lugar, tais cláusulas trouxeram um
questionamento sobre a potencial violação ao princípio do Juiz natural (sobretudo
naquelas que garantem uma pena pré-fixada e o arquivamento de fatos futuros
ainda não investigados). Nesse sentido, dividiu-se a análise em três pontos:
a) Voltou-se ao tema da homologação judicial para enfrentar a jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal quanto à vinculação do Magistrado aos benefícios
previstos. Concluiu-se que, não obstante haja divergências na composição da
Suprema Corte, está formado entendimento de que, uma vez homologado o acordo,
não mais se discute a legalidade das cláusulas (com a preclusão da matéria), mas
apenas sua efetividade e eficácia. Nesse aspecto, há uma clara mudança no
conteúdo tradicional do princípio do Juiz natural, retirando do Magistrado uma
importante função da individualização da pena em casos que tragam a pena descrita
no próprio acordo;
b) Na sequência, analisou-se a dinâmica da colaboração premiada sob a
perspectiva da imparcialidade do Juiz, o que se fez a partir de questionamento
doutrinário sobre a vinculação do Magistrado aos termos do acordo (e de sua
previsão condenatória ao colaborador) celebrado antes da denúncia, de modo que,
antes da instauração do processo, já haveria uma previsão condenatória. A
conclusão a que se chegou nesse ponto foi a de que, na lógica da colaboração, e
quanto ao colaborador que já tem pré-fixada pena contra si, a imparcialidade do Juiz
é menos importante (e talvez desejada), na medida em que seu objetivo não é o de
um julgamento justo com chances de absolvição, mas o de garantir a aplicação de
seus benefícios na sentença. Quanto aos delatados ou ao colaborador que não tem
previsões certas no acordo, a discussão voltaria ao tema do Juiz de garantias, na
medida em que a imparcialidade do Juiz pode ser questionada não apenas na
colaboração premiada, mas em todo meio de obtenção de prova que seja deferido
pelo Juiz que analisará o mérito da causa;
230
c) Finalmente, quanto ao princípio do Juiz natural, enfrentaram-se algumas
cláusulas específicas à função do Magistrado, quais sejam as previsões de ampla
abrangência do acordo (para casos ainda não identificados e/ou futuros) nos casos
de Paulo Roberto Costa e João Santana, e as previsões relativas à execução penal,
que afastam a legitimidade legal do Juiz da respectiva competência. Em relação ao
primeiro caso, embora se tenha reconhecido que os acordos foram celebrados pela
Procuradoria-Geral da República (que detém, por força de lei, a palavra final sobre o
arquivamento das investigações), há uma possível transformação no conteúdo do
princípio do Juiz natural (e também do Promotor natural), afastando-se a atuação
futura de Juízes e Promotores competentes – em casos de desmembramentos, por
exemplo – que deveriam vir a averiguar a efetividade do acordo proposto (ainda que
se possa prever, na maioria dos casos, a atuação do colaborador como declarante,
podendo ter sua atuação efetivamente fiscalizada). Em relação ao Juízo de
execução, que tem sua posição prejudicada em acordos que se imiscuem em regras
de progressão de regime, por outro lado, concluiu-se pela existência de permissivo
legal para a aplicação de benefícios de execução, ainda que fora das hipóteses da
Lei de Execução Penal, além de se verificar a solução apresentada pelo Supremo
Tribunal Federal quanto ao tema, indicando que, em caso de cisão de casos
homologados naquela Cote, a preclusão decorrente da homologação deve ser
respeitada.
Ainda quanto as cláusulas não previstas em lei, realizou-se análise quanto
aos princípios da legalidade, obrigatoriedade e indisponibilidade, considerando-se
que, ao fixar tetos de pena, estabelecer regimes e determinar a suspensão de
processos por prazos superiores aos previstos em lei, o Ministério Público estaria
não apenas violando o texto da Lei nº 12.850/2013, mas rompendo com o
paradigma da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal. O tema é
extremamente polêmico e há perspectivas antagônicas bastante claras. De um lado,
há quem entenda (inclusive na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal) pela
impossibilidade de desvinculação dos benefícios dos acordos ao texto expresso de
lei; por outro, sustenta-se a mudança na lógica do processo penal, com a elevação
da autonomia da vontade e da busca pela efetividade do processo (também como
forma de proteção ao bem jurídico da segurança pública) como fundamentos aptos à
ampliação dos espaços de consenso e do princípio da oportunidade no processo
penal brasileiro. Também se mencionou a doutrina do direito administrativo no
231
sentido de que não mais devem as práticas jurídicas ser observadas exclusivamente
com base na lei, admitindo-se sua interpretação extensiva também à luz do Direito,
de forma ampla.
A conclusão a que se chegou, nesse ponto, é a de que, embora o Supremo
Tribunal Federal possa – e deva – voltar a discutir tal tema de forma específica (já
que, ainda que algumas cláusulas previstas em lei tenham sido glosadas por
Ministros de forma monocrática, não houve discussão ampla no plenário), há, de
fato, uma tensão com a legalidade e com os princípios em questão. Ainda que não
se sustente uma inconstitucionalidade, recomendou-se, neste aspecto, que os
acordos sejam celebrados com esteio nos benefícios legais, mesmo que mantendo
previsões certas de pena (o que seria possível com a combinação dos benefícios
previstos no art. 4º da Lei nº 12.850/2013) e aqueles relacionados a casos futuros
(que poderiam ser acrescentados por meio de termos aditivos correspondentes).
No último subtópico do quarto capítulo, enfrentou-se a questão da
colaboração premiada como prova para a condenação, o que se fez sob a
perspectiva do réu delatado. Sem adentrar em uma perspectiva epistemológica da
prova – o que fugiria do escopo deste estudo –, analisou-se a doutrina e, sobretudo,
a jurisprudência para a compreensão de como o instituto da colaboração se
relaciona com os princípios da ampla defesa, do contraditório e da presunção de
inocência. A conclusão a que se chegou nessa análise é a de que há uma mudança
substancial na lógica tradicional dos referidos princípios, com a presunção de
inocência sendo garantida apenas quando a colaboração não é acompanhada de
nenhum elemento de corroboração e a ampla defesa e o contraditório voltando-se
não mais ao fornecimento ao acusado dos instrumentos para a produção de prova e
oportunidades de fala nos autos, mas à obrigação de produzir contraindícios e, de
forma preferencial, refutar os termos de colaboração (inclusive atacando a
credibilidade do colaborador).
Em apertada síntese, portanto, a análise do processo penal pós-colaboração
revela uma grande transformação. Como se trata de um instituto jurídico novo e que
ainda não teve sua análise exaurida pelas Cortes Superiores, são possíveis
mudanças nas conclusões que se ora apresentam. Não obstante, parece ser
importante indicá-las, especialmente porque é plenamente possível o
aperfeiçoamento da colaboração premiada brasileira.
232
A título ilustrativo, sugere-se que sejam feitas algumas alterações legais que
poderiam resolver parte das questões acima evidenciadas:
a) Quanto à discussão sobre o princípio do nulla poena sine judicio, a lei
poderia prever a conversão de prisão preventiva ou medidas cautelares substitutivas
em cumprimento antecipado do acordo, ressaltando o aspecto voluntário e de risco
dessa cláusula (no sentido de, à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,
não garantir a concessão definitiva do benefício). Da mesma forma, é importante
que, em sendo o caso dessa antecipação dos benefícios, a lei estabeleça a
obrigação de vinculação do acordo aos benefícios legais para que se permita ao Juiz
da causa, na sentença, avaliar a adequação da “pena” já cumprida com a efetividade
do acordo;
b) A amplitude dos benefícios e a prefixação de penas também pode ser
melhor esclarecida pelo texto legal (seguindo, inclusive, a iniciativa do Ministério
Público na Orientação Conjunta nº 1/2018, que estabeleceu as “boas práticas” da
colaboração premiada). A uma, pela inclusão na Constituição da prerrogativa do
Ministério Público de negociar pena em crimes de organização criminosa (ou em
crimes de natureza grave, com penas superiores a quatro anos de reclusão); a duas,
pela previsão legal de que o Ministério Público poderá estabelecer quaisquer
benefícios incluídos no rol do art. 4º da Lei nº 12.850/2013, de forma combinada e
abrangente e sem se limitar a alguns dos parâmetros engessados do diploma (como
o limite de dois terços de redução da pena);
c) Quanto à análise da prova, embora não pareça ser adequada uma
tarifação, seria interessante que a lei dispusesse expressamente a que deve se
referir a prova de corroboração, não apenas fazendo uma limitação negativa aos
produtos da colaboração premiada, mas conferindo melhores parâmetros à
valoração da prova. Por exemplo, poder-se-ia exigir que a condenação dependesse
da comprovação, por meios independentes, das elementares típicas objetivas do
crime em questão, não funcionando a prova de corroboração como uma forma de
apenas conferir credibilidade à história apresentada pelo colaborador, mas como
efetivo instrumento para o convencimento do Magistrado.
De todo modo, não foi a pretensão deste estudo exaurir o tema e apresentar
respostas completas e concretas para cada um dos problemas oriundos da
colaboração premiada. Pretendeu-se demonstrar, à luz da prática, que a mudança já
se estabeleceu no ordenamento, devendo haver a compreensão de que, nesse
233
contexto, deve-se lutar pelo aperfeiçoamento dos institutos e contra eventuais
abusos que decorram do sistema ora vigente. A mencionada Orientação Conjunta nº
1/2018 do Ministério Público Federal, que foi publicada após a celebração dos
acordos ora analisados, é um primeiro passo nesse aperfeiçoamento, na medida em
que traz diretrizes mais claras aos participantes de processo penal em que se
celebre acordo. Ainda que não resolva boa parte dos questionamentos deste
trabalho, as “boas práticas” reconhecidas pela instituição possibilitam uma maior
discussão doutrinária, legislativa e jurisprudencial sobre a colaboração premiada.
234
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