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CENTRO DE INSTRUÇÃO DE COMANDOS REGIÃO MILITAR DE ANGOLA BELO HORIZONTE CAMPO MILITAR DO GRAFANIL L U A N D A Extractos do meu Diário de Guerra e (Paz ) *AGRUPAMENTO SIROCO – 1971 *AGRUP AMENTO RAIO – 1972 e 1973 ANTÓNIO ADRIANO DUARTE GAMA Alf. Mil. COMANDO” CIC / RMA «Assiste ao poeta uma liberdade indiscutível: na sua alma simples tudo se torna singular». E daqui deriva para nós, que não o somos, a extraordinária vantagem de poder, às vezes, viver o mundo, não como é, mas como os poetas no-lo oferecem. A minha emoção não tem realmente fronteiras diante de homens que, em vez de cantar amores, ou fazer versos de tinta negra sobre papel branco, os escreveram, com o mais vibrante entusiasmo, no próprio corpo da mítica terra angolana, em holocausto lento, através de uma esteira de sangue, suor e lágrimas, deixada pelas Companhias de Comandos, em lugares cujos nomes jamais se apagarão da nossa memória: Margens dos Rios TEMPOÉ, LONGA, CUITO, CASSAI, ZAMBEZE, LUANGUINGA, QUEMBO, CUCHI, 1

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CENTRO DE INSTRUÇÃO DE COMANDOS

REGIÃO MILITAR DE ANGOLA

BELO HORIZONTE – CAMPO MILITAR DO GRAFANIL

L U A N D A

Extractos do meu Diário de Guerra e (Paz) *AGRUPAMENTO SIROCO – 1971 *AGRUPAMENTO RAIO – 1972 e

1973ANTÓNIO ADRIANO DUARTE GAMA

Alf. Mil. “COMANDO” CIC / RMA

«Assiste ao poeta uma liberdade indiscutível: na sua alma simples tudo se torna singular». E daqui deriva para nós, que não o somos, a extraordinária vantagem de poder, às vezes, viver o mundo, não como é, mas como os poetas no-lo oferecem. A minha emoção não tem realmente fronteiras diante de homens que, em vez de cantar amores, ou fazer versos de tinta negra sobre papel branco, os escreveram, com o mais vibrante entusiasmo, no próprio corpo da mítica terra angolana, em holocausto lento, através de uma esteira de sangue, suor e lágrimas, deixada pelas Companhias de Comandos, em lugares cujos nomes jamais se apagarão da nossa memória: Margens dos Rios TEMPOÉ, LONGA, CUITO, CASSAI, ZAMBEZE, LUANGUINGA, QUEMBO, CUCHI, LUIANA, CUANDO, CUBANGO e CUNENE; Anharas da CAMEIA, CUBATI, LUATUTA e CAMUE - CAMUE; Regiões de LUMEGE; LUENA; LÉUA; SANDANDO; LUAU; LUACANO; LUNGUE - BUNGO; NINDA; SESSA; GAGO COUTINHO; SAUTAR; CHIUME; CANGAMBA; M’PUPA; CANGOMBE; MUIÉ; LUMBALA; CAMACUPA; CAZOMBO; CAMAXILO; ALTO CHICAPA; ALTO CUITO; NOVA CHAVES; CASSAMBA; LUCUSSE; CHITEMBO; NERIQUINHA; LUPIRE; LONGA; VILA NOVA DA ARMADA; CAIUNDO; DALA; LAGO DILOLO; BUÇACO; TEIXEIRA DE SOUSA; LUANDO; LUQUEMBO; MUNHANGO; CUEMBA; CUITO CUANAVALE; RIVUNGO; MAVINGA; UMPULO; MUCUSSO; CUANGAR; CUCHI e CALAI, (Leste de Angola). SANTA CRUZ DE SANZA POMBO; NAMBUANGONGO; TOTO; QUITEXE; QUIBAXE; TERREIRO; BALACENDE; QUICABO; MUCABA; ZALA; ZALALA; TABI; TENTATIVA; VALE DO LOGE; ÚCUA; NOVA CAIPEMBA; SONGO; BEMBE; TOMBOCO; LUVACA; NOVA

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SELES; ICOCA; BESSA MONTEIRO. FAZENDAS (ROÇAS): MARIA ADELAIDE; BEIRA BAIXA; MADUREIRA; LIFUNE; ONZO; MARCELA; MARIA ALICE; LUÉGE; SANTA LUZIA; PINGANO; MILAGROSA; QUINTA DAS ARCAS; PUMBASSAI; MUZECANO; QUIVINDA, LUISA MARIA; BUZINARIA; CHANDRA–GOA; TRÁS–OS–MONTES; MINERVINA; SANTA CRUZ DOS DEMBOS; QUISSEQUEL; MARIA DONZÍLIA; PAMEL; MARIA HELENA; BELMONTE; DANGE; GIO; CUALE ANTOAVE; GIRASSOL; ESNERALDA MARIA; LUÉGE; S. PEDRO; TAELA / MILAGROSA; VAMBA e S. BENTO DO CASTELO; ETC. (Norte de Angola).

Quando conto aos meus amigos metropolitanos a História de Portugal em Angola, começo sempre da mesma maneira: - A História de Angola é poesia, cujas estâncias são escritas com tintas de variadíssimos matizes: sangue, vidas, frustrações e persistências – e os autores não são poucos; tantos militares, missionários e comerciantes, que se esvaíram em sangue no ressequido capim das suas agrestes chanas. SIROCO era um termo sagrado na mística–Comando. Todos os anos, à imitação deste vento quente e violento que, vindo do Saara, varre toda a costa africana, os Comandos, utilizando a época do tempo seco, acampavam durante cerca de dois meses nos pontos mais quentes do terrorismo, tentando pacificar a zona, através de lançamentos de helicópteros sobre os aquartelamentos dos movimentos rebeldes. Então, nestas paragens, com mais de mil homens, apoiados, em larga escala, pela Força Aérea, no vai-vem contínuo da guerra, passavam-se as cenas mais díspares, que rondavam, tantas vezes, a revolta e a contestação, para logo a seguir, se converterem numa obediência cega, a quem lhes exigia sacrifícios de tal ordem que ultrapassavam todas as barreiras da resistência humana. As colunas saíam, normalmente, às primeiras horas da madrugada, pela calada da noite. Havia grande aparato a rodear o acontecimento do ano: «O SIROCO». No CENTRO DE INSTRUÇÃO DE COMANDOS, junto ao musseque do Cazenga, maquinava-se a maior investida contra os inimigos da presença portuguesa em África – (MPLA, FNLA e UNITA). Levávamos rebenta-minas, cozinhas rolantes, Unimogs e Berliets carregadas de todo o potencial bélico, combustível e mantimentos, tendas, ambulâncias equipadas de primeiros socorros, estavam rigorosamente alinhadas numa avenida de bojudos imbondeiros que dava acesso à porta de armas, dentro da vedação de arame farpado. Somente estas árvores milenárias, tristes e renegadas, serão testemunhas de tão grande azáfama. Depois de uma comida volante, leite quente com cacau e sandes de fiambre e queijo, a malta, fardada dos mais requintados trajes de campanha, rede-mosquiteiro enrolada ao pescoço, G3, poncho para passar as noites, cinturão cheio de carregadores de balas, granadas ofensivas/defensivas e cantil, bornal às costas com rações de combate para três ou quatro dias de viagem, os tradicionais baralhos de cartas para jogar à “lerpa”, aguardava em parada, a chegada dos grandes do Quartel General, que viriam desejar-nos boa sorte, logo que acabassem a diária sessão de bridge na messe de oficiais em Luanda. A noite estava cinzenta e abafada de calor e humidade, igual a muitas outras noites de Luanda. Reinava um silêncio absoluto, entrecortado pelas batucadas

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do Cazenga. Ninguém ousava perguntar qual seria o nosso destino, pois era segredo absoluto, e os poucos oficiais (dois Capitães e um Tenente-coronel) que tinham estado no «briefing» da véspera, não o podiam revelar a ninguém. Todas as ordens dadas eram transmitidas em código de senha e contra-senha. De repente, aquela mancha imensa, perdida na escuridão do sertão, deu sinais de vida à voz de «senti-ap» do Comandante, Gilberto Santos e Castro, orgulhosamente equipado de SIMONOV, apanhada aos “turras”, no último SIROCO, pela 22.ª Companhia de Comandos. Era o Mercedes negro do General que chegava, seguido de alguns Wolkswagens de oficiais do Estado Maior. Ao «descan-ar» do Comandante, em bicos de pés para atenuar um pouco o seu metro e setenta e dois de altura – (a minha altura...), após a entrada do General, segue-se o «elogio da loucura», segundo os cânones de Erasmo: «O COMANDO É INSENSÍVEL À FOME E À DOR... RI-SE DO MEDO... A SUA COMPANHEIRA DE TODOS OS DIAS É A MORTE...» Depois começaram as promessas proferidas por um Ten. Cor. do Estado Maior, de barba cerrada numa queixada tetraédrica, a condizer com os frutos dos imbondeiros: O correio chegar-vos-á todas as semanas, qualquer que seja o vosso paradeiro. Se houver feridos, sereis evacuados de helicóptero para o Hospital Militar de Luanda. Em caso de morte - (que é provável...) - , entregar-vos-ão, gratuitamente, às vossas famílias no espaço temporal de um mês. Armas capturadas ao IN, haverá como habitualmente o prémio de Governador Geral para os mais ousados e valentes. Os que escaparem terão um mês de descanso na paradisíaca Ilha de Luanda. Sem mais perda de tempo, pois urgia partir, calhou-me a mim, como um dos oficias da 33.ª Companhia, ler os sete artigos do Código Comando: «O COMANDO AMA DEVOTADAMENTE A SUA PÁTRIA, ESTANDO PRONTO A FAZER POR ELA TODOS OS SACRIFÍCIOS... NÃO DISCUTE AS ORDENS QUE RECEBE, NÃO ADMITE NEM CONHECE EMBARAÇOS OU RESISTÊNCIA À SUA INTEGRAL EXECUÇÃO. «REMOVE TODOS OS OBSTÁCULOS AO FIEL E EXACTO CUMPRIMENTO DOS SEUS DEVERES... «O COMANDO NÃO FOGE AO PERIGO, NÃO EVITA AS SITUAÇÕES QUE POSSAM ACARRETAR-LHE INCÓMODOS. INCUMBIDO DE UMA MISSÃO, PÕE EM CUMPRIMENTO DELA TODAS AS POSSIBILIDADES DE ACTUAÇÃO, TODAS AS SUAS FORÇAS FÍSICAS, INTELECTUAIS E MORAIS».

Como eram duros os caminhos que conduziam à guerra! A coluna avançava numa lentidão cautelosa, ora por picadas, ora por pântanos e chanas, para fugir aos trilhos minados, comandada pelo oficial de operações que, à frente, entre o rebenta-minas e o pronto socorro, seguia com um mapa topográfico na mão. A maioria da caminhada era feita de noite, saudados pelos hediondos mochos e noitibós que, despertados do seu sono pelos faróis das viaturas em movimento, saltavam do capim esbarrando-se muitas das vezes contra os nossos rostos encardidos pelo cieiro do gelado cacimbo e do pó da picada.

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Dormiam as chanas, coalhadas de vultos e fantasmas, num silêncio medonho de magia. Havia um movimento incessante de animais de todas as espécies, zebras, gnus, impalas, onças, hienas, chacais, pequenos antílopes, etc., perdidos nos meio de troncos calcinados pela ígneas carícias das queimadas, como cruzes de passados martírios, a predizer calvários a quem ousa violar aquele lago doirado de capim, adornado pelo luar do sertão. De repente vibra no espaço um ruído cavernoso, semelhante a um trovão. No silêncio em que estávamos, abre-se novo silêncio, mais denso, mais doloroso. Logo a seguir rompe um tropel doido e vêem-se multidões de sombras, em pânico, ziguezagueando em várias direcções. Em menos de um minuto volta, novamente, a bonança. A lagoa de capim seco deixa de ondular e volta a ser o leito tranquilo do luar, criado por Deus para que a noite não fosse tão bárbara! Pouco depois destacam-se da sombra dois vultos bamboleantes, que avançam com lenta majestade. Por vezes os seus olhos reencontram-se com os faróis dos Unimogs e parecem acender-se. São dois leões que reclamam o franquear sacrílego dos seus domínios sagrados. Param de vez em quando, senhoriais e arrogantes, retomando, depois a sua marcha, em linha recta, como quem não encontra obstáculos de espécie alguma. Só mais tarde reaparece uma ou outra gunga retardatária, pronta a desfechar galope ao mais pequeno ruído, afugentando algumas gazelas medrosas que correm rentes ao radar das viaturas. Ao longe esgueiravam-se vultos que deviam ser hienas, mas, logo a seguir, chega-nos aos ouvidos um tropel pesado. São as feias e agressivas pacaças que se aproximam. Parece uma manada de possantes toiros que, na arena, raivosos, procuram destruir tudo que encontram à sua frente. Entram, seguidamente no capim, tombado pela humidade da cacimbada, a resfolegar, revolvem-se na lama da chana e retiram aos urros, deixando-nos como estátuas de sal, pregados em cima de carros atulhados de material bélico. Dentro de pouco, o céu começava a clarear e a chana, que até então estivera mergulhada em profundo sono, despertava, agora com alaridos estridentes. Do mais profundo da natureza, um doce cântico de amor se levanta. É um coro maviosíssimo de ânsias, de impulsos, de tonalidades, verdadeira orquestra do infinito, despertando, a prenúncio da fuga da noite, em todos os seres, nas rochas e nos animais, nas ervas humildes e nos gloriosos troncos, um hino magnífico de louvor. É o húmus dos prados, a seiva das plantas, o sangue dos animais. É a alma da criação, a força inexplicável do binómio vida – morte, eterno retorno cósmico que anima e embeleza os trópicos. Era com este saudável abraço da manhã, tépido e perfumado, que a coluna parava para comer e descansar. Por toda a parte, Grupos de Combate montavam uma rigorosa vigilância, não esquecendo o menor dos pormenores exigidos pela segurança de uma frente de guerrilha bem treinada, armada e municiada. Dois helicópteros, em breve, começavam a sobrevoar a zona, não só fazendo o «reviews» do caminho percorrido, mas também traçando o azimute da distância que nos separa do local do nosso primeiro posto avançado de guerra. No chão arenoso, cavávamos cacimbas, donde, a menos de um metro, saía água salobra, que servia, apenas, para refrescar e lavar a cara irreconhecível do pó das picadas carreteiras, misturado com cinza negra das queimadas.

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Mal dormidos e mal comidos, refrescando a garganta com um pouco de água morna e racionada dos cantis, o corpo totalmente partido pelos saltos contínuos da irregularidade do terreno, e, com novas forças e redobrado alento, retomávamos, corajosamente, a caminhada, ora sobre a desoladora monotonia de extensos e escaldantes areais, ora, tantas vezes, cortado o caprichoso rendilhado de indolentes rios e charcos de águas estagnadas, portadoras de bilharziose, quer por cima da emaranhada vegetação da lasciva floresta tropical, onde saltam e se divertem os antílopes de nervosas pernas e finas hastes, e os desconfiados elefantes passeiam a monstruosa imponência de um corpo disforme. Até que, finalmente, depois de dois dias e três noites, chegámos às margens do Lago Dilolo, primeira etapa do SIROCO. Enquanto, apressadamente, armávamos as nossas tendas, despejávamos o material bélico para um paiol improvisado. Soldados, em tronco nu, capinavam um vasto terreno para hangar de helicópteros e sala de operações. O sol perdido no ocaso, em negligentes e esbatidas pinceladas, tingia o céu de fogo, parecendo querer encandecer os capins dobrados de angústia e de sede que, no extremo da chana, confinavam com o rubro do horizonte. Recolhi cedo à minha tenda, colocado, no espaço que me estava destinado ao lado do segundo comandante. Homem puro e simples. Um inesquecível amigo, daqueles que são para toda a vida... Então, o calor abafadiço e húmido, o trovejar longínquo e constante, a irritação da pele, que se transformava numa excitação impertinente de nervos, o saber-me tão distante do meu “quimbo” e da minha “tribo”, tão fora do meu ambiente e envolto em trevas misteriosas sob o céu recamado de constelações desconhecidas para a maioria dos mortais, mais me afastava o sono e prolongava a insónia, numa noite escuríssima, húmida de cacimbo, mal luzindo as estrelas por entre as nuvens baixas. E no silêncio deste misterioso negrume, quebrado, de vez em quando, pelo barulho metálico das armas das sentinelas a roçar pelos botões do camuflado, ouvia a prece da noite, rezada pelos mil rumores da chana e pelo cachoar das águas do Dilolo. Escutava a voz ancestral das terras virgens, o edénico hino da natureza brava, eco do «Fiat» criador, que parecia reboar ainda pela vastidão do caos, vindo das épocas do começo dos tempos. DILOLO, numa lenda Quioca, quer dizer choro. Uma palavra em lágrimas que se traduz num contínuo canto de maldição e vitória. Para nós, naquele momento, traduzia-se em desespero, na luta constante pela própria vida. DILOLO, água estagnada, um pedaço de mar perdido, misteriosamente, no meio das areias escaldantes da CHANA DA CAMEIA, mais do que choro, foi para mim e para os meus companheiros, um canto de conformidade, como quem aceita e abençoa a dor. Era para ali que nós, sem destino, vagueámos, na incerteza do dia seguinte, por meio de enormes planícies alagadiças, paradas, sob o céu em concha, ou, então, entre impressionantes morros de salalé, que se prolongam para além, muito para além, não se sabe até onde, esconderijo de bandos de antílopes que se esgueiravam à nossa passagem. E sobre aquele cenário, opressivo e desolador, um céu opaco, cinzento e espesso, atmosfera que

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pesava como se materializasse, tornando-se palpável e tangível, caía-nos impiedosamente, em cima, como se o arrastássemos às costas doridas e pisadas pelas correias das mochilas. Chegava o meio dia. Sob o sol, a prumo, ardia capim seco à nossa volta. Por toda a parte ficavam estendidas lagartas sufocadas; outras, a custo, cortavam os trilhos num repentino rumor de folhas ressequidas pelo chão. Aqui, um soldado, sentado em cima da mochila, de olhar cansado e vago, abria, indiferentemente, uma lata de conserva e tentava enganar a fome. Além, outro, acocorado, queimava um cigarro, sacudindo a cinza na ponta do cano da arma. Mais além, à nossa frente, uns revezavam-se no posto de sentinela, outros empunhando emissores – receptores, os DHS/CHP, escutavam as primeiras novas dos companheiros que foram lançados lá para os lados do MARCO 25, a interceptar um grupo de guerrilheiros fortemente armados, vindos do Congo, para actuar na região do Luena. Muitos, nas tendas plantadas no chão arenoso e escaldante da chana, bem aquecidas por um sol reverberante, jogavam a “lerpa” e bebiam “Cuca/Nocal” quente, mais preocupados com a eminente largada sobre o inimigo que cercava os colegas, do que com o dinheiro que perdiam/ganhavam no jogo. Colunas e colunas, cansadas e deprimidas, avançando a custo, como serpente, em movimentos ordenados e semi – rápidos, pela areia da chana sem fim, entravam e saíam do acampamento a toda a hora.

Entretanto, sabe-se que o inimigo está bem armado, ataca à granada, morteiro e canhão sem recuo. Já temos alguns feridos e um morto. Um Grupo de Combate está praticamente sem munições, um outro está cercado de todos os lados, esperando com ansiedade a todo o momento, a ajuda dos bombardeiros T-6. Metade de uma Companhia de tropa normal, em CAIANDA, tem muitos mortos e feridos. Foram atacados por grupos rebeldes itinerantes. Mais oito dias e levantaremos arraiais para o CAZOMBO ou margens do TEMPOÉ. Em Luanda o nosso General espera muitas Kalashnikov e Simonov capturadas ao IN para nos condecorar, colectivamente, com medalha da Cruz de Guerra. Cuando os helicópteros nos sobrevoavam, toda a “maralha”, como que em disputa de corta-mato, voava ao local de poiso, previamente para isso preparado, a procurar saber quem eram os feridos ou mortos. Ali mesmo se procedia, injustamente, à distribuição do espólio: o Comandante recebia, risonho, as Kalash e Simonov capturadas ao IN, o Médico e Enfermeiros os feridos, e o Capelão, os mortos! Por vezes o Médico ficava atrapalhado por não ter meios ao dispor para tratar os feridos mais graves, enquanto o Capelão, com uma equipa de voluntários, procediam à lavagem dos corpos ensanguentados, com água de maldição do DILOLO, na tentativa de ludibriar a Deus, para que não chegassem à eterna mansão, como os da visão apocalíptica, vindos duma grande tribulação com manchas de sangue fratricida e Ele não conhecesse as maldades da terra. À noite, caíam, abruptamente, as estrelas, como lágrimas ígneas, sobre o horizonte de toda a região da CAMEIA. A chana era como um mar imenso, a confinar com o céu, submersa sobre um outro mar de estrelas, ciciada por uma leve brisa, segredando à folhagem húmida as saudades de frescura dos longínquos Oceanos. Era tão bárbara e tão além – mundo a sua solidão, que

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sentíamos um vasto queixume de saudade sobre o peso das sombras e dum céu precocemente anoitecido por nuvens debruadas de luar. O Capelão e muitos de nós, rezávamos, diariamente, o terço junto ao abençoado Lago: «Avé – Maria, Santa – Maria, Glória ao Pai»... Parecia que o eco, continuamente repetido, reboava pela imensidão das chanas, partido, apenas, pelos lúgubres morros de salalé, desfilando em volta do DILOLO, em tom de escárnio, como duendes a predizer-nos um amanhã azarento. E nós, como querendo forçar o destino, voltávamos a implorar, em desafio ao Céu... «perdoai-nos as nossas ofensas com nós perdoamos a quem nos tem ofendido»... Muitos militares, de todas as patentes, de rostos macerados pelas agruras da guerra, lívidos das noites ao relento, feridos na progressão nocturna pelas pontas agrestes do capim seco e espinhos de dilacerantes arbustos, terminavam em súplica humilde, ... «mas livrai-nos do mal. Amen». Por vezes, olhava atentamente as paradas águas do grande Lago, que a lua, em gesto generoso, prateava para que o quadro não fosse tão terrífico. Mas, de imediato, aparecia uma nuvem mais traiçoeira que as escurecia de negra nódoa movediça a condizer com a lenda: «se alguém, à noite, vigiar as suas margens, verá as filhas do Muzogo, que ali ficaram a penar, surgir em desespero, à flor da água, afugentadas pela imensidão de jacarés, ávidos de sangue humano».

Há três dias que estávamos acampados junto às margens do rio TEMPUÉ, à espera de novo plano de guerra. À nossa frente erguia-se o monte do Alto Cuito, grande morro de terras saibrosas que, em certos pontos, deixa a nu a rocha viva. Outras elevações, arredondadas pela erosão do tempo, desfilavam, recortando o horizonte como vultos maciços e monótonos. A vegetação era muito baixa e rara, surgindo a meus olhos, grandes manchas de terra requeimada para cultivo (feijão, mandioca, milho, massango, batata doce, etc.), lavras dos nativos ali refugiados. A paisagem, agora, apresentava-se outra. Ao solo arenoso e movediço, sucedia-se a planura revestida de matagal de espinheiros, robustos e lacerantes. Não havia caminho. Tínhamos atravessado as «anharas» (propriedade das feras – leões, hienas, chacais e onças), desde o LUACANO ao TEMPUÉ, numa extensão de pouco mais de quinhentos quilómetros, durante duas noites e um dia, por vastos descampados cobertos de capim amarelecido ou acastanhado, com raras árvores de copa verde escura, ficando apenas marcado o rodado lento das nossas viaturas, para ser logo apagado quando surgissem as primeiras chuvas. No decorrer da viagem, erguiam-se altas penedias amarelas, agressivas, nuas ou serapintadas de ervas negras e rasteiras, calcinadas pela chapa de fogo do sol, soberbas muralhas de fortaleza ciclópica, rodeadas por imensos cactos raquíticos e espinhosos, consumidos pela sede de chuvas que amarfanhava e crucificava o areal descarnado. Avançámos para elas, através da planície longa, ainda imersa na luz cinzenta de uma manhã enevoada. Primeiro parecia que caminhávamos em vão. Rodando sempre, não saíamos do mesmo sítio, tal a vertiginosa extenção do areal. Depois as penedias tornavam-se maiores e mais

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temerosas agigantando-se com a morte da distância; direi: barreiras de maldição erguidas por um Deus cruel para mostrar ao homem a sua impotência e pequenez. A seu lado, viam-se árvores de galhos rijos, cinzentos e nus, muito ramificados, que mais pareciam espinhos; eram as cassoneiras ou almeidinas, plantas borrachíferas, que serviam, às vezes, para fixar o avanço das dunas. A pouco e pouco iam aparecendo algumas acácias desgarradas, de ramos torcidos pela sede. Aqui e ali avultavam morros de calhaus enormíssimos, sobrepostos em pirâmide, que tinham reflexos rubros, acastanhados e negros, com o ar sinistro de grandes esqueletos calcinados. A paisagem transformava-se; já não era a estepe raspada, quase virgem de vegetação, que se alongava em planura rasa para se engolfar nas vastidões dos Bundas e Luchazes, mas sim o começo do matagal, com suas árvores disformes e sedentas, sobretudo o hercúleo baobá de braços torcidos e monstruosos, suas pequenas plantas enfezadas, quase esmagadas na areia pelo peso do sol, seus tufos de capim crestados, onde pastavam bandos de gazelas e guelengues. Adiante, observei atentamente, um estreito cordão de capim e arvoredo, «damba» ou «mulola», leito de riacho bebido pelo escaldante sol, em cuja terra fresca a vegetação pulula. Cabras de leque apareciam e, ao ouvirem o barulho ensurdecedor dos motores das viaturas, algumas delas paravam, atentas, - (a maior fera terráquea, - o homem - estava ali!...), o pescoço esguio tendido à procura de um abrigo, geladas de medo, transidas de pasmo, paralisavam à passagem da coluna. – (Era a vez do único animal que mata por prazer – o homem – satisfazer o seu impulso animalesco, sempre sedento de sangue...). Em correria louca, passava pouco depois, um bando de zebras, espectaculosas em suas pelagens listradas, soltando ganidos semelhantes aos dos cães. Lá de longe, dos confins do areal intérmino, corriam lufadas quentes que nos sufocavam e crestavam a cara, encortiçada pela poeira, como se labaredas invisíveis ardessem, dia e noite, em combustão incessante. O sol, mais irado que nunca, fornalha coruscante do céu, despedia chispas e raios sobre as areais fulvas e calcinadas da savana. Em torno, tudo sucumbira à sede. A natureza paralisara e morrera por si mesma, não se avistava sinal de vida, além dos seres martirizados que avançavam em cumprimento de uma ordem imperiosa. As pobres árvores de troncos horrivelmente descarnados, que se erguiam, aqui e além, como espectros disformes, eram testemunho de toda a secura e da nossa tristeza ambulante. Naquela paisagem desolada e torturante, o rio TEMPOÉ, guarda avançada do ALTO CUITO, com sua magra orla de verdura, era um oásis plantado na chana, avolumado pelo contínuo escoamento das cacimbas, guardando em si o indecifrável enigma do sertão. No irregular rasto da passagem, em sucessivos pontos de interrogação, que, na lenta marcha, desenha através do areal, deixa posto o angustioso problema da causa primeira. É tese e é antítese, é afirmação e é negação, no concerto da misteriosa unidade, da eterna incógnita da síntese final.

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Vem de longe o coração de África. Leviano e irrequieto, canta e ri, deixando-se guiar pela mágica surpresa do imprevisto. Avança, avança sempre. Insensível a dores, encarniçado contra obstáculos que, temerariamente, menospreza; aqui, matreiro, disfarçadamente contorna a invencível barragem de granito; acolá, encapelando-se, espumando de raiva, dá combate à petulante cordilheira ao propor-se tolher-lhe a passagem. Decorrem séculos sem fim, zeros de tempo na vida do Eterno, num pertinaz e natural assalto sem tréguas a grandezas. É um guerreiro louco e glorioso, as hostes sempre engrossando pela sedução do denodo e pela vontade indómita de vencer. Por ele enfeitiçados, novos e robustos caudais lhe tombam amorosamente nos braços, e, todos em conúbio, fazem a mesma caminhada, entoando um suavíssimo coro de louvores, oração vespertina de todas as tardes ao Criador do universo. Após a momentânea loucura do triunfo, logo serena, porém. Agora na milenária tranquilidade daquele sono benfazejo só a curtos espaços quebrado pelo dramático pesadelo dos temporais, grave e majestoso, em curvas e contra curvas, retoma a sua caminhada, através das chanas, oferecendo-se, como toalha no coradoiro ao persistente sorvo do sol que o definha. De passagem, deixa o húmus que fecunda a terra. Crescem os milhos, mandioca e arrozais, bendito maná que nutre e alimenta a população da resistência, humilde, triste e faminta.

Sob a protecção redentora das suas águas, manancial que nos saciava a sede e revitalizava os corpos sujos e cansados, acampámos cerca de trinta dias, numa solidão tal que criava em nós indefinível sentimento de abandono. Isolados, neste ponto perdido de África, vivíamos um dia a dia simples, de mãos dadas com a natureza, sempre atentos aos rumores misteriosos do capim, que, a cada momento, nos poderiam ser fatais. O tempo sucedia-se segundo um lento processo, que faz lei na existência de cada um dos seres vivos: «à vida a morte, à morte a vida, ao dia a noite, à tempestade a bonança, à bonança a tempestade»... Por entre rudimentares e miseráveis barracas de lona, ramaria e capim, deambulava heterogénea multidão de soldados – (TROPA NORMAL, GE’s, FLECHAS e LEAIS), magros, lívidos, esgotados de canseiras e privações. A face chupada, terrosa e amarelecida da bílis, o olhar apagado e triste, o passo arrastado e incerto, o ar cansado e melancólico, eram mais sombras que homens, mais seres vencidos pela fatalidade dos acontecimentos e pela violência depauperante do clima, do que rapazes de vinte e poucos anos, de que é lícito esperar energias que não verguem e vigor que não sucumba. Os Grupos de Combate “COMANDOS” (estes sim, bem preparados psicológica e militarmente, bem nutridos e por isso robustos), transportados por helicóptero, vinham e iam, continuamente, para as distantes matas, onde se refugiavam, bem armados, os homens da resistência, (MPLA, UNITA E FNLA).

«...Entardecia. O sol ovante e pomposo, fazia a sua caminhada lenta para o ocaso, entre rúbidas ondas de

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sangue e de luz. Quedei-me sem limite temporal a contemplar aquele poente de maravilha, exuberante de luz e de cor, quadro grandioso, em que as tintas mais surpreendentes se misturavam e confundiam em matizes de tal brilho e variedade, que nem o mais forte talento de artista seria capaz de fixar sobre a tela. Em fundo de púrpura e ouro, de azul, roxo, verde, amarelo, as nuvens esbraseadas tomavam formas estranhas e bizarras de seres monstruosos, dando vida e movimento à grandiosidade do horizonte que nos separa das grandes matas do Cuando, Savate e Caiundo. E tão depressa o sol parecia bailar, doido e rubro, numa combustão violenta e explosiva que arrastava pelo céu em brasa, como depressa essa incandescência perturbante se atenuava e diluía, em tons doces e brandos, como se mão subtil e misteriosa derramasse no meu olhar atento e intrigante, carícias de encantado sonho. A pouco e pouco, na savana agreste e distante começava a erguer-se a sombra esfumada do entardecer. Era como ténue fumo que surgisse do solo e ficasse pairando, levemente, sobre as nossas tendas dispostas, junto ao rio, numa clareira da margem esquerda. Perto de nós, uma quantidade de aves, das mais variadas espécies, gemiam em despedida ao dia que findava».

«1972 caminha para o seu termo. As notícias que circulam entre nós, a respeito dos movimentos rebeldes, não são lá muito animadoras. Por um lado – os AGRUPAMENTOS SIROCO E RAIO – desmantelou totalmente o MPLA, reduzido, agora, a pequenos grupos errantes, investindo somente contra colunas nas picadas e, ao fim de semana, no anonimato, os seus homens fazem sala, bebendo a sua Cuca com o europeu nos cafés das capitais de província! Pelo contrário a UNITA, altamente armada, com o material mais sofisticado, pretendia estabelecer o seu Quartel General no ALTO CUITO. Infiltrou-se, perigosamente, em toda a zona Leste, causando mesmo muitas baixas ao nosso Exército da tropa «macaca», ou tropa normal, como nós, os “Comandos”, lhes chamamos. Os seus planos riscavam-se, paredes meias, com os nossos, talvez tão-somente divididos pelo bom do rio TEMPOÉ, que dá de beber ao reino animal: pretos, mulatos, brancos e toda a espécie de seres vivos, ali acorrem, à procura de água regeneradora, fonte de vida.

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De espaço a espaço, lá para os lados do ALTO CUITO, da outra margem do TEMPUÉ, os braseiros apagavam-se em clarões vermelhos, como morriam os sons aguitarrados de canções que sentinelas dedilhavam no seu “Quissange”, monótonas cadências de desesperança, de gente escravizada, e dócil – (era assim que eu conhecia o verdadeiro Povo angolano – Povo humilde, generoso e bom). Progressivamente começava a ouvir-se, pela noite fora, o rumor monocórdico e dolente do batuque dum tambor gentílico que, nas suas lentas pancadas, chamava a malta negra para o desnalgado e lascivo baile do sertão, feito ao clarão do revérbero rubro das fogueiras. Eram ruídos dum rufar esquisito e compassado, revelando revolta e amargura de um povo nómada que sofre agruras de penas seculares... de escravos que, arrancando o crachá da servidão, fugiram para terras distantes... de mulheres que vão à Samba ou às Ganguelas, muito longe, buscar borracha para o patrão... de lágrimas de mãe negra que choram o abandono do seu filho na paliçada da libata, enquanto embalam o berço dourado do filho da mãe branca... E lá, ao longe, na extensão das «anharas», os batuques vão soando sempre sem cessar, ritmando, dolentemente, a dança sertaneja, sob a infinita abóbada sideral, à luz discreta de milhões de estrelas prateadas. Por sua vez o rio, solidário connosco, seguia o seu destino obedecendo ao comando imperioso do sertão, ora murmurando doces cantigas, quando nos dessedentava, ora berrando roucas imprecauções no fragor da sua corrente, logo que recebia o sangue dos nossos (ou deles...) mortos ou feridos. Desvairado, caminhava rasgando caminho, vencendo barreiras e distâncias, acompanhado pela maravilhosa orquestra dos montes e das «anharas», dos pássaros e das feras, das estrelas e das nuvens, do vento que sopra e do trovão que ribomba, tendo, obrigatoriamente, como nota de complementaridade, na esplêndida sinfonia universal, o nosso “triste fado” e o “batuque” gentílico dos nossos irmãos africanos.

-...OPERAÇÃO ROJÃO / IH e ROJÃO 2 / IH (1.ª e 2.ª Fases) -...OPERAÇÃO ÁTILA / IH e ÁTILA 3 e 5 / IH - Falar acerca das operações militares “COMANDO” acima referenciadas, no teatro de operações no Leste do território angolano, não posso, não devo e também não quero. São um segredo, considerado militarmente como “ultra secreto”. Será para mim, como será para os 25 homens (notáveis combatentes – 90% angolanos!...) que compunham o GRUPO DE COMBATE que eu tive a honra de liderar, um segredo que nos acompanhará até ao momento em que as nossas frágeis “carcaças” descerão às “catacumbas” que esperam por nós. Depois vai seguir-se um outro combate, esse com o grau máximo de dificuldade, pois vamos ter de enfrentar a JUSTIÇA DIVINA, -

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o CRIADOR - que, certamente nos perguntará o motivo pelo qual cometemos tais lamentáveis proezas!...

...- Deixámos o Leste, fomos passar umas “férias” a Luanda e um mês depois seguimos para o segundo inferno: o Norte de Angola.

«Os “slogans” que nos foram encasquetados no decorrer da instrução específica de “Comandos”, o “COMANDO” não tem fome nem sede, ri-se do medo... – vamos ser sérios; não é bem assim... O “COMANDO” é como todos os homens, um composto de corpo e alma, um ser normal, um ser mortal e, por isso mesmo tem fome, sede e medo, e muitas outras necessidades inerentes à natureza humana».

As coisas complicavam-se lá para os lados do Norte. O MPLA e FNLA jogavam a sua última cartada. Vinham do Congo Kinshasa, atravessando o rio Cuango – (o rio das “camangas” - diamantes), fronteira com Angola, instalando-se em Santa Cruz, circunscrição de Sanza Pombo. Pelos “Sitreps”, relatório da situação bélica, sabia-se que se tratava da maior infiltração de tropas africanas (angolanos e mercenários), desde o início (1961) da guerra subversiva em Janeiro: Malange; Fevereiro, em Luanda e em Março, por todo o Norte de Angola. SANZA POMBO, grande povoação de brancos, rica e opulenta, bem provida de rios e riachos, naquelas lonjuras que, a princípio, tantos tiveram por inóspitas, era agora ponto de atracção do QG de Luanda, apoiado pela Base Aérea do Negage. Era terra pacificada, vigiada por sucessivos Batalhões de tropa normal desde 1961, que, no ócio, se iam abandalhando. Caçado de surpresa, o que nesta altura estava em missão de soberania (incumbido de proteger pessoas e bens, brancos e negros), foi o primeiro a sucumbir à força de grupos itinerantes, atacado, com espaços estratégicos, SANTA CRUZ, MACOLO e ZAZA CUANGO, causando mesmo muitos estragos nas Companhias ali estacionadas. Urgia intervenção imediata para que não se instalassem e criassem raízes naquelas densas matas, onde abundava valor incalculável de borracha, café, cera, resina, piaçaba, etc. Pretendiam instalar-se na região de SANZA POMBO, entravar o comércio dos diamantes do rio Cuango e as fazendas e roças de Carmona – capital do UIGE, em intercâmbio com o Congo, dominar, enfim, as riquíssimas províncias de Malange, Cuanza Norte e Uige. A quem calharia engolir a batata quente? Não era preciso reflectir muito. Aos Pára-quedistas? Esses viviam na sua luxuosa aldeia de Belas e eram-lhes destinadas prestigiosas missões e não

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aquelas que pudessem correr o risco do fracasso. Os “Comandos”? Esses, sim. «Pau para toda a colher», era preciso castigá-los, com operações suicidas, porque se envolviam, continuamente, em zaragatas, na capital, com meninos maus de boas famílias da Polícia Militar. Às vezes davam-lhes mesmo umas boas tareias, quando estes, a exercerem a sua prepotência, os abeiravam, dizendo que estavam mal fardados. O nosso destino estava traçado. «Com eles para as matas virgens de SANZA POMBO», eram os ditos que corriam, há uns dias, em Luanda, nas «boites» da baixa, Thamar, Cortiço, 007, os gabinetes da sétima repartição do QG, como lhe chamávamos nós. O nosso Comandante tinha recebido do Estado Maior do Exército uma ordem de serviço em que três Companhias de Comandos, iriam acampar, dois meses, nas matas de SANTA CRUZ, em missão 100% operacional. As horas que nos separavam da partida eram curtas. Não se falava muito no nosso aquartelamento do GRAFANIL. Havia silêncio e muita azáfama. Tudo se processava automaticamente, com gente que estava habituada a estas andanças. Tiravam-se as mochilas da arrecadação, limpavam-se armas, requisitavam-se munições e carregavam-se as cartucheiras. Procuravam-se as últimas cartas acabadas de chegar das variadíssimas zonas de Angola e da Metrópole, distribuídas pelo S.P.M. (Serviço Postal Militar) ao cair da tarde... Marasmo e tristeza porque muitas não vinham, chegariam, talvez, ao outro dia, quando a coluna, a grande velocidade, estivesse a enfrentar as densas e perigosas curvas de Salazar, ou, então, a descer para o Negage. Os mecânicos davam os últimos retoques na revisão e afinação dos potentes motores dos Unimogs e Berliets, atestavam depósitos de bidões de combustível (Gasolina, Gasóleo e Petróleo). Carregavam-se cunhetes de material bélico e caixas de rações de combate. Afinavam-se, na carreira de tiro, a pontaria das metralhadoras (ligeiras e pesadas), morteiros de todos os calibres e bazucas. O silêncio continuava. Ninguém ousava pronunciar palavra. Os nossos homens fumavam cigarros atrás de cigarros à porta das casernas. Vieram as despedidas. Tanto movimento à porta de armas, junto ao arame farpado! É que a nossa Companhia – a 33.ª, era constituída por três quartos de angolanos, brancos, mestiços e negros. Seres dilacerados, banhados em lágrimas, abraços que nunca acabavam, de mães, noivas, esposas, filhos, namoradas, madrinhas de guerra, amigas, as sempre carinhosas senhoras do M.N.F. (Movimento Nacional Feminino) ... era o adeus aos seus heróis e aos seus amores! De seguida, veio o «Briefing» obrigatório para todos os oficiais que iriam partir. Lá estava o nosso Ten. Cor. SANTOS E CASTRO, destemido e valente, um militar notável, precocemente envelhecido,

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magro, de barriga dilatada, perdido num dólman camuflado a ultrapassar-lhe os joelhos, óculos de presbitia na ponta do nariz, com os dedos encrostados pelo AC (tabaco), estendendo, trémulo, em cima de uma mesa, grande quantidade de fotografias aéreas e mapas topográficos, nos quais traçaria o projecto a percorrer. Ficámos de pé, em redor da mesa, sobrepostos em três filas. Fixou-nos com o seu olhar de raposa matreira, um por um, à espera de alguma ausência, demorou-se mais um pouco na minha direcção, certamente por se tratar de alguém que conhece de garoto e também por ser o seu mais novo oficial, bem assim como o mais jovem que frequentou o 22.º curso de Comandos e agora com tão grandes responsabilidades às costas... – (eu tinha somente 20 anos!). Então ele, com voz mimada, de menino velho, dirigiu-nos a palavra: «Camaradas, esta operação é de muita responsabilidade, joga-se o nosso prestígio, porque os olhos dos anormais do QG estão postos em nós. Vamos capturar todo aquele material ao inimigo, que avança a olhos vistos, e destruir as suas bases. Teremos que agir com firmeza e máxima agressividade para atingirmos os objectivos, custe o que custar. Os nossos homens terão de se mentalizar de que, na guerra, se luta e se morre. Os “Comandos”, com maior razão, derramarão, se for preciso, o seu sangue até à última gota», afirmou ele, batendo o punho na mesa com tanta violência que alguns mapas voaram em todas as direcções e muitos dos copos e garrafas de Whisky tombaram. Olhei para o médico, Alferes Carvalho, em posição estática, a meu lado, e murmurei por entre lábios: «estou farto, farto desta porcaria. Custa-me tudo isto. Os nossos militares continuam a morrer e a ficar estropiados. Estou cansado e triste de ouvir dizer ao Capelão que também ele está cheio e amargurado de andar à procura, por entre o capim, dos restos de ossos, pernas e cabeças, para formar um corpo completo e enviá-lo à sua família, tantas vezes, com braços e outros membros trocados». O Comandante sentiu que alguém falava em surdina e, autoritário, como sempre, perguntou se havia alguma novidade. Silêncio absoluto. De novo, começou com voz mais forte e olhar mais vigilante, a indicar a hora da partida, duas horas da madrugada e a distância a percorrer, oitocentos quilómetros numas vinte e quatro horas. A estrada era toda alcatroada até ao Negage; cento e cinquenta quilómetros para Sanza Pombo, em boa estrada. A Santa Cruz, os últimos vinte quilómetros, a coisa era muito perigosa. Teríamos que ir a passo, dois ou três rebenta minas à frente da coluna, porque a picada estava cortada e armadilhada, com minas anti-carro e o que mais se veria.

Tínhamos entrado na terceira semana de campanha nas matas de Santa Cruz, experimentado já todas as situações possíveis e imagináveis de atentado à dignidade humana (nós e eles...) e à nossa resistência física e moral. A

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alimentação não era famosa, privados do conforto necessário para o merecido repouso de uma noite reconfortante. Acampados numa clareira de serranias arborizadas, em cima de poeiras de micro-organismos que, na profundidade de podridões milenárias, se degladiam e entredevoram para viver, começávamos e terminávamos os dias sempre da mesma maneira. Grupos de Combate que partiam, outros que chegavam, missão cumprida, feridos para seguirem para Luanda, mortos que aguardavam destino e vivos que, estupefactos, esperavam, a todo o momento, a sorte das suas vidas a serem jogadas neste vai e vem contínuo. O tom da nossa epopeia começaria, logo, a caminho de Carmona, capital do Uige, quando um dos Unimogs se despistou, numa curva muito acentuada, deixando nós, o derretido alcatrão, abrasado pelo sol escaldante do meio dia, ensopado com o sangue do Furriel Santos, que ali perdia a vida, e o de alguns feridos graves e ligeiros. Neste momento, helicópteros, vindos dos lados de Sanza Pombo para o Hospital Militar, sobrevoando a estrada, projectavam a sua sombra, tal grande pássaro alado, sobre a coluna que seguia, psiquicamente destroçada, pelo sangue derramado antes de chegarmos ao nosso destino. A viagem, calculada em vinte e quatro horas, tinha passado para o triplo. Os povoados indígenas, requeimados e encardidos, abundavam à beira da estrada. Na braveza da paisagem descansavam, de quando em quando, manchas tranquilas de plantações gentias de mandioca, milho, algodão e jinguba. Havia corpos de negros semi-nus que brilhavam, à luz do fogo, como brônzeas estátuas que, sustentando candelabros, ornamentassem, pomposamente, o átrio grandioso de um palácio solarengo. Das margens do rio Lucala até Samba Caju, a paisagem era caracterizada por uma orografia vigorosa, ora coberta por grandes extensões de floresta, ora atapetada por gramíneas, com mantos arredondados, vales fantasiosos e uma rede densa de linhas e cursos de água. Com esta mesma fisionomia de paisagem, descemos ainda, de Camabatela até ao Negage, sempre entre mata espessa ou sobre lombas capinosas, incomodados com todas as quentes humidades do Congo a fustigarem-nos, de frente, o rosto ressequido de cieiro, pela noite passada ao relento, encostados aos rodados das viaturas, às portas da povoação. A caminho de Sanza Pombo subimos e descemos vales profundos, sem clareiras. A espaços, as árvores estremeciam e as folhas velhas caíam copiosamente. Eram macacos que, espavoridos, saltavam de árvore em árvore, ao ouvir o barulho dos motores das viaturas. Atravessámos uma das mais famosas zonas de elefantes que, durante o dia, dormitavam na mata à sombra das grandes árvores e, à noite, faziam diabruras nas lavras dos nativos, indo beber centenas e centenas de metros cúbicos de água aos rios mais próximos, e água é coisa que ali não falta... Era, mais uma vez, noite cerrada quando alcançámos o portal de uma das grandes lonjuras de Angola, Sanza Pombo, onde já se sentiam as solidões do rio Cuango. Sobre o espectáculo maravilhoso da floresta tropical, de súbito, fulminantemente, caiu o pano – o negro sudário da treva. Toda a África, agora, escurecia: as epidermes, os rios, os vales e os montes. E os

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nossos corações pernoitando, de novo, ao relento, comungavam deste negro sudário da treva. Aos primeiros alvores da manhã, iniciámos a nossa marcha a caminho de Santa Cruz. Os tais vinte quilómetros de picada minada e emboscada, que era aconselhável percorrer à luz do dia, segundo rezam os cânones da estratégia militar, para haver possibilidade de recuperar os feridos, antes que anoitecesse. As viaturas nos primeiros cinco quilómetros, atravessaram extensas planícies de capim e floresta rasteira, de árvores tisnadas pelas últimas queimadas. Passados cerca de dois quilómetros, demos a nossa entrada solene na enorme catedral verde que nos conduziria a Santa Cruz. É floresta e selva, composta de arbustos pequenos, depois maiores e logo as árvores de grande porte, medindo aproximadamente setenta ou oitenta metros de altura. A viagem decorria lenta e cautelosa. De repente, há um estrondo de tal maneira forte que, numa área de sessenta metros, levantou-se uma nuvem de poeira densa misturada com pedaços de madeira e muitos objectos não identificados a sobrevoarem as copas das altas árvores. Automaticamente, tudo saltou das viaturas procurando as bermas mais pronunciadas da picada para defesa. Era o quilómetro dez. Uma potente mina anti-carro destruiu, totalmente, o rebenta-minas, Berliet carregada de sacos de areia, conduzida, unicamente, por um corajoso soldado. A picada estava obstruída e o pontão dinamitado. Horas e horas ali estivemos à espera da engenharia. Passámos mais uma noite ao relento, debaixo de uma viatura, coberto com a nossa mortalha, o poncho camuflado, companheiro de viagem. Noite fria e triste, como todas as noites do Cuango. Senti fortes dores nos ferimentos causados pelo rebentamento da mina. Ainda pedi auxílio ao médico. Disse-me que, pela manhã, me iria evacuar para o Hospital Militar com os restantes feridos mais graves. Se o Comandante não concordasse, que o baixaria ao Quintas, estabelecimento militar de doentes mentais de Luanda... A guerra não era comentada nem discutida. Fazia-se. Fazia-se, religiosamente, segundo os planos do Comandante e seu gabinete de operações, trabalhando incansavelmente, longas horas à luz mortiça de um simples petromax. Eram traçados de acordo com a movimentação lógica do IN, que vagueava da direita para a esquerda, de Norte para Sul, ou, às vezes, esperava pela nossa posição no terreno, adivinhada pela observação do curso aéreo dos helicópteros, que vinham e iam. Os resultados eram, aparentemente positivos. Na tenda da sala de operações, por toda a parte, misturados com garrafas de Whisky (reserva 20 anos – do bom... para nós era lenitivo, néctar dos deuses, como lhe chamávamos...), abundavam montões de material bélico capturado, oriundo das mais diferentes nacionalidades. Desde Kalashnikov, Degtyarev, PPSH, Tokarev, Browning, Lee-Enfield, Steyer, Mousin-Nagant à Simonov, do morteiro de todos os tipos ao canhão sem recuo, passando pelas metralhadoras pesadas sendo algumas anti-aéreas, de tudo ali havia um pouco. Nós, sempre que olhávamos para tal exposição, sentíamos um certo contentamento e alívio, na certeza de que aquele potencial mortífero, já não seria despejado sobre nós.

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Mas na guerra não há vitórias totais, mas sim sucessão de factos de destruição mútua. Nenhuma das partes beligerantes se poderá proclamar por sua alta-recreação, vencedor antecipado. Por entre os escombros desta máquina demolidora, provocados pelo rodar de viaturas e atroar de granadas, na pertença construção de uma paz e de uma justiça impostas, ficam vestígios indeléveis pelos quais a História, à luz do bom senso, guiado pela recta razão, julgará os homens, nos umbrais do tempo, multiplicando, no futuro, por toda a parte, tribunais de Nurenberg a declarar os justos vencedores. A consciência moral de cada um, primeiro juiz que, sumariamente, sancionava actos e acções, no silêncio do defeso da guerra, ia-nos corroendo de tal maneira com complexos de alguma culpa que, progressivamente, diminuía a agilidade de nossos passos nas sendas dos objectivos marcados nas cartas topográficas. A máquina corpo começava a emperrar. Os estômagos começavam a ter dificuldade em digerir as conservas da Manutenção Militar e a água choca dos cantis. O Comandante era uma das maiores vítimas na sua contínua peregrinação de assistência ao Posto Médico. Em Luanda e Lisboa ninguém dava o justo valor ao nosso esforço. “A brigada do reumático e os “situacionistas” viviam bem no ar condicionado, alheandondo-se sistematicamente às tragédias humanas que se passavam nos três teatros de guerra (ANGOLA, MOÇAMBIQUE E GUINÉ). Vivia-se, intensamente, a vida nocturna de “boites” e “cabarets”, onde se queimava o dinheiro da iniquidade, ganho a preço de sangue. Esta indiferença aumentava em nós – (os operacionais, os que davam o corpo ao manifesto), uma revolta e contestação, vingada, ao anoitecer, no regresso das matas, nas garrafas de Whisky e Brandy... Cada morto enviado para a morgue na estrada de Catete e cada ferido para o Hospital Militar, eram mensagens escritas em sangue, por pessoas humanas que, algures no Leste e Norte de Angola, reclamavam igualdade de direitos e mais respeito por aqueles que já não os podiam reivindicar. Pelos “Sitreps” e “briefings”, pressentia que a nossa actuação naquelas matas tinha sido, deveras, eficaz e digna. Sem haver chacinas e cortes de orelhas aos nativos, como muitos pescadores de águas turvas têm escrito, demagogicamente, nos seus falsos escritos, a zona estava, praticamente, pacificada. Estes demagogos que assim tentaram denegrir a nossa acção operacional, armando-se em valentões no após-guerra, nunca lá estiveram ou ouviram algum tiro na mata. Meninos bem, mas maus estudantes, frustrados por não atingirem o posto de oficial miliciano, a quem seus papás ricos conseguiram, através da velha cunha portuguesa, colocar numa das repartições públicas, ou, então, encaixar numa especialidade dentro do arame farpado, sem nunca saírem do aquartelamento, teriam que urdir histórias para não serem inferiores àqueles que cumpriram o duro ofício de atirador ao enfrentarem o inimigo nas duras campanhas de África. Ainda há outra raça de pseudo-militares, estes mais perigosos na manipulação da opinião pública, que, à procura de promoções na sua hierarquia, embarcaram connosco no mesmo comboio e se apearam da carruagem em andamento para nos traírem. Tentaram, como Pilatos, lavar as mãos da sua culpa, acusando-nos de responsáveis de todos os males da guerra no Ultramar.

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Não tenhamos dúvidas que, se existe guerra em Angola, ela só se mantém – (e por isso é financiada), para servir os interesses económicos e políticos das grandes potências mundiais. Ninguém, a nível internacional, defende os nossos direitos, porque somos colonialistas pobres, mas estão ao lado dos neo-colonialistas ricos. Os nativos no meio de tudo isto, são como bolas de «ping-pong». Apanham porrada ora duns, ora doutros. No fim, em duelo fratricida, ajustam contas connosco, que somos os menos culpados. Houve desertores que pretenderam disfarçar o medo numa fuga de pseudo-opção política. Afectos ao MPLA, de ideologia marxista, partido que luta nestas matas, introduzindo-se, clandestinamente, no seu meio com o respectivo armamento. Traíram os seus colegas (alguns) vieram a tombar às mãos daquelas forças, no Canacassala, Muxaluando ou picada de Zala, mortos a tiro de arma telescópica, por um tal Fernandes, o «papa-alferes», primeiro classificado no C.S.M. (Curso de Sargentos Milicianos) das Caldas da Raínha. Um dia, - (os trânsfugas – traidores), ainda serão considerados heróis, porque fugiram, virando costas aos seus colegas e à sua Pátria, e nós cobardes por termos ficado a cumprir o nosso dever...

Alguns guerrilheiros iam-se entregando com o seu armamento e muitos dos que resistiam passavam novamente a fronteira do rio Cuango. Apenas, nas lonjuras de Santa Cruz, havia um foco, fortemente armado e municiado, resistindo notavelmente a todas as nossas investidas. Era necessário mais um “forcing” por parte dos Comandos, para que a zona ficasse pacificada; assim, brancos e pretos viveriam, novamente, em paz, como sempre ali tinha acontecido. De manhã, muito cedo, quando o dia começou a romper, com perfeita visibilidade para a movimentação dos quatro helicópteros, dois Grupos de Combate, começaram a ser lançados sobre o objectivo, ficando os outros dois – (entre os quais, o meu) de prevenção para entre-ajuda em caso de necessidade. Meio dia, hora fatídica. Chegaram via rádio, notícias dramáticas de que os nossos homens estavam irremediavelmente cercados numa densa mata e a contas com um ferido grave. Pediam a nossa ajuda para atacarmos o IN pela retaguarda. Assim fizemos. Fomos lançados numa clareira a três quilómetros de distância. Em fila indiana, às duas horas da tarde, começámos a subir a encosta a corta-mato, ou por veredas estreitas ladeadas de fundos precipícios ao som de rajadas intermitentes de Simonov e PPSH – (a famosa e terrível costureirinha...). Ao meio da escalada, surpreendeu-nos um sol abrasador, violento e congestionado, como cáustico sobre chagas. Vergado sobre o peso do equipamento, progredia, penosamente, morro acima, como se fora atrelado a peso superior às minhas forças, o suor corria-me em catadupas, pela cara empastada de lama, pingando da barba desalinhada e suja para o camuflado colado ao corpo como samarra mal curtida. O passa-palavra da estratégia de guerra morria ao longo da fila indiana, ouvindo-se, apenas, o arrastar dos pés no meio das folhas secas e do chocalhar das ferramentas portáteis penduradas no cinturão, para cortar os arbustos que

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impedissem a nossa progressão. Todos, de olhos no chão, as maxilas contraídas, os dentes cerrados, busto inclinado para a frente, caminhávamos em direcção à mata onde os nossos camaradas estavam cercados. Os nossos dois Grupos de Combate quando subíamos a vertente do planalto, de súbito fomos mais uma vez surpreendidos por rajadas intervaladas, que cortavam as folhas das árvores sobranceiras às nossas cabeças, vindas de todos os lados. Dei ordem ao meu Grupo de Combate, em passa-palavra, para mudar de direcção, a nascente, começando a marcha através de um vale, encostados à margem esquerda da linha de água. Quando já metade dos dois Grupos se encontravam a atravessar o vale, a uns quinhentos metros dos outros que estavam cercados, em passo de corrida, ouvimos estampidos secos como de rolhas a saltarem de garrafas de champanhe vindas da encosta, em frente. Contávamos quase em alta voz , um, dois, três, quatro, cinco, era o tempo das granadas rebentarem. Deitamo-nos, tentando diminuir a silhueta e entrar pela terra dentro. Uma a uma iam estoirando, como o ecoar de trovoada seca, no cimo do morro que nos abrigava. Os homens da retaguarda, logo após as últimas explosões, começaram a correr, em ziguezague, como se quisessem fugir aos estilhaços, tratando de chegar rapidamente à minha beira e, em cunha, fazer a defesa em conjunto, metidos em abrigos naturais das últimas chuvas... Eram quatro horas da tarde. O fogo aumentava tanto sobre nós como sobre os nossos camaradas que estavam cercados desde a véspera e reagiam com dificuldade por causa dos feridos. Vendo o “filme” pedi de imediato o auxílio da Base Aérea do Negage através do pequeno rádio AvP-1. Formamos os dois Grupos em linha na meia encosta, para que, quando caíssem as primeiras bombas, pudéssemos avançar na maior velocidade possível, socorrendo os camaradas e evacuar os feridos, na primeira clareira que encontrássemos, antes de anoitecer. Na guerra tudo está programado. Quando surgiram os velhinhos T-6, com o seu ruído característico, novidade da última grande guerra, o vale transformou-se no centro de um pequeno vulcão com a largada de bombas. Iam e vinham, roncando em voo picado, despejavam as “bananas” sobre o IN e nós chegávamos, em corrida acelerada, sãos e salvos, junto dos Grupos de Combate, comandados superiormente pelos Alferes SANTOS e ESTEVES; este gravemente ferido, a precisar urgentemente de evacuação, caso contrário morreria. A Companhia recomeçou a sair da mata, à procura de uma clareira, orientada pela pequena aeronave DO do oficial de operações e os dois helicópteros, prontos para recuperação dos feridos. Todos nós, sem excepção, caminhávamos devagar por causa do emaranhado dos arbustos, tossindo ao respirar o ar saturado de pólvora queimada. Carregavam os feridos, revezando-se no seu transporte. A sede era intensa. A cada passo, desarrolhávamos os cantis semi-vazios e virávamo-los por cima da boca, para receber algumas gotas regeneradoras. Eu, além do meu, dependurado no cinturão, trazia sempre um outro de reserva na mochila, para dar de beber aos feridos se os houvesse.

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A noite negra dos trópicos caía rápida e triste sobre a floresta imensa que nos rodeava. A DO e os helicópteros, em movimento de asas à laia de adeus, tomaram a direcção do Negage, pois estávamos ainda a duas horas da primeira clareira, levando consigo a nossa amargura, mas também a reconfortante esperança dos feridos serem recuperados antes de amanhecer. Ficámos, por momentos, a olhar a trajectória daquelas máquinas, em breve transformadas em minúsculos pássaros a sobrevoarem o espaço. Com uma mancha vermelha, por cima do copado das árvores, que parecia resistir ao misterioso negrume da mata, parámos para enfrentar o maior dos inimigos, pior que o sibilar das balas: aquela fatídica noite! Nela iria ecoar o grito de desesperação e agonia do Alferes ESTEVES, meu querido e inesquecível amigo, que tinha tombado gravemente ferido na peleja da manhã. As corujas e os mochos, dominados pelo silêncio fúnebre da escuridão, recusaram quebrar, com seus pios de pavor e agoiro, o longo estertor do homem forte – (ele era um verdadeiro “COMANDO”) que, envolto no próprio sangue, se encostou, durante longas horas de luta, a uma árvore milenar para morrer . Toda a fauna do sertão, no pesado recolhimento do degredo, como vizinho compassivo à cabeceira do enfermo desenganado, perdoando agravos, na expectativa de tragédia, aguardava melancolicamente o funesto desenlace. Foi então que, nesta atmosfera de desolação e pavor, uma voz aos farrapos fez estremecer a noite. É noite!... Noite fechada!... Noite sinistra!... Noite de terror!... Por todo o meu camuflado descem pingos de sangue. Há sangue por toda a parte. Sinto-o, cheiro-o. «Lutei como pude. Na sofreguidão de um ideal, tudo abandonei. Na solidão busquei alento e energia e na solidão os perdi. Sofri, sem conforto, sem amparo, venha a morte, mãe dos desgraçados, bondosa fada dos que tudo deram mas foram vencidos pelo infortúnio. O sangue derramado nas batalhas fecunda a terra sobre que, mais puro, mais demudado, outro cavaleiro se erguerá na santa cruzada da Paz. E, amanhã, um pouco de mim, lampejará ainda, no ardor esplêndido do sublime combate». Começou a inteiriçar-se muito, até que ficou todo inerte, os olhos vidrados, medonhamente abertos, como ameaça terrível sobre o infinito, enquanto dos lábios roxos e já frios se evolava, num sopro, a palavra a custo, longamente pronunciada – Mam... Mam... mãe. Instintivamente, estendi a mão a tremer sobre aquelas pálpebras, cerrando-lhas com carinho. Em seguida cobri-lhe o corpo com o pano de tenda, que, em vida, o tinha abrigado do cacimbo da noite, e agora na morte, lhe serviria de mortalha. Pobre espólio de um notável combatente morto em combate. Um camuflado ensanguentado, um bornal com latas de conserva, uma arma descarregada, um cantil vazio e um crucifixo ao pescoço! Por um instante, um curto e seco relâmpago derreteu em luz as trevas da noite. Vi o seu rosto lívido e as mãos cruzadas sobre o peito, em atitude da sua última submissão ao Senhor dos Exércitos. Estendido, mais pequenino, pretendia fazer-se criança para entrar no Reino dos Céus. Mabecos, chacais, hienas, e quimalancas, aninhados, escutavam, em silêncio, o testamento de um moribundo que ousou, sacrilegiamente, penetrar as fronteiras do seu éden. Um brusco golpe de vento, revoltado contra a maldade

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humana, sacudindo árvores, em tom de «riquiem», formou, providencialmente, à roda do cadáver, uma mísera coroa de folhas secas. Vou falar um pouco sobre o diálogo que tive com um jovem guerrilheiro, ferido num recontro e capturado pelo meu GRUPO DE COMBATE. O mesmo era muito jovem, 15 ou 16 anos no máximo. Disse-me que estudou desde pequeno numa Missão Protestante americana no Congo e, que, no futuro, gostaria de ser Pastor numa igreja em Angola, quando os colonialistas brancos já tivessem sido mortos ou corridos...

Como estávamos ainda a cerca de três horas da nossa base, tendo de percorrer um caminho armadilhado e densamente arborizado, fui falando com o capturado depois de lhe prestarmos os primeiros socorros, fazendo-lhe perguntas acerca do seu passado. Disse-me entre outras coisas que, em Janeiro, num ataque a uma aldeia, em que ele foi parte activa, foi morto pelas populações nativas, o COMISSÁRIO POLÍTICO da 4.ª REGIÃO MILITAR, “KIMAKIENDA” (Aristides Mateus CADETE) e noutra aldeia próxima, em 23 de Outubro de 1971, também mataram o COMANDANTE “MOANDOGE” (Nicolau Gomes SPENCER). Disse-me que tudo aconteceu na LUNDA, numas aldeias perto do Luau e Luacano, terras banhadas pelas águas do rio Cassai e, as populações usaram para se defender, além das tradicionais catanas e kanhangulos, Mausers, - (estas fornecidas às milícias das sanzalas pelas autoridades administrativas e militares). Justificou o ataque às sanzalas dos irmãos angolanos, porque uma grande parte da população era amiga da PIDE e dos colonialistas e, então, os dois grupos de guerrilheiros para se vingarem e matar a fome, dirigiram-se às sanzalas como era seu hábito, roubando galinhas, peixe seco, fuba, gado e raptando algumas mulheres para servirem sexualmente e no carregamento de armas e munições. Disse-me onde estavam escondidas muitas dezenas de KALASHNIKOV, SIMONOV e PPSH, completamente novas... Todos faziam parte do chamado D ESTACAMENTO “ P ACIÊNCIA ”. Vieram todos da BASE de CASSAMBA, na ZÂMBIA, - (ROTA CASSAI e LUENA). O seu destino final era os Dembos, 1.ª Região Militar do MPLA. Dividiram o ESQUADRÂO em dois. Uma parte seguiu a ROTA CASSAI (LUNDA) e a outra parte seguiu a ROTA LUENA (MOXICO). Em terras de Malange, agrupavam-se e seguiam rumo DEMBOS/DANGE.

Bartolomeu Kikuambi Yetu. Assim se chamava. Era um jovem extremamente inteligente e perspicaz. De um racismo primário, certamente incutido ao longo do seu crescimento pelos líderes, primeiro, religiosos e depois, políticos e militares.

Quando chegámos ao acampamento, entregámo-lo aos cuidados médicos. Quando o médico e o enfermeiro se retiraram deixando-o a repousar sobre a marquesa, de pés e mãos atados, mas ainda sem quase nenhuns curativos, fui lá

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ter com ele. Abri com todo o cuidado a porta e ele voltou a cabeça rapidamente, à defensiva.

- Sossega. Não te venho fazer mal – tranquilizei-o. - Só quero falar contigo. – Ele fitou-me com atenção até que estive ao seu lado. Tentou soerguer-se.

- Fica deitado. – Ele tragou saliva, tornou a recostar-se, tinha os lábios sangrando, há horas que padecia. – Eu sei que daqui a pouco te virão buscar e sei que te vão matar de má morte, por isso gostaria de te dizer umas coisas. Queres ouvir? – Olhou-me de muitos geitos, esperando, cheio de desconfiança.

- Observei-lhe as mãos, a camisa suja, o sangue nos lábios e na roupa. “Sangue que estava correndo em suas veias”. Observei a veia pulsando em seu pescoço. Ali estava o rio da sua vida, que Deus comandava. Ele também era uma criatura de Deus. Tinha também um coração, uma alma, sentia a dor, seu sangue era vivo, corria, latejava, era um ser humano como eu, nem mais nem menos. Que teria feito desde que nascera? Conhecia a ternura o seu coração? Ou só havia nele a tempestade? Eu queria penetrar o seu cérebro e o seu coração e descobrir o que havia nele que o fazia proceder como se os não possuísse. Queria descobrir no que um degolador, um assassino profissional é diferente dos outros homens.

- Perguntei-lhe: - Tu crês em Deus?- Eh! o Deuge é b...rranco! E o Virge e os anjos. Então vai uma péssoa

fazer reza pra o Deus b...rranco? Os b...rranco, só quer a desgraça dos preto.

Sim, siôr.- Por aquela eu não esperava. “Em que livro explicam a razão porque

Cristo é branco?”- Achas que Deus devia ser preto?- Então! O Deuge b...rranco é prós b...rranco. O Deuge preto é prós

preto. - Seria então necessário a existência de dois deuses. E também um Deus

amarelo e um Deus vermelho. Tu sabes que não é só a raça negra e a raça branca que existem, sabes?

- Ele olhou-me com olhar inexpressivo. Não sabia. – Então seria necessário que existisse um Deus para cada raça. Não te parece demais?

- Ele deu de ombros.- O Deuge é b...rranco porque tudo é dos b...rranco. E os Governo, e

os Prisidente e os Santo. Preto não tem lugar pra ele em nenhum lado.

- Está bem. A raça negra tem sido muito infeliz. Mas tu já alguma vez ouviste falar numa outra que é muito mais infeliz? Ouviste alguma vez falar nos Judeus? Sabes quem são os Judeus?

Ele ajeitou-se na marquesa, aborrecido. Não sabia e também não estava interessado em saber.

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- Os Judeus não são pretos e nunca houve gente mais detestada, mais perseguida e sofrida do que eles.

- Eh! – Riu-se. Os seus lábios inchados estiravam ao máximo, verteram um fio de sangue. – Minha Arfeige não está falar verdade.

- B...rranco não pode ser desinfeliz. B...rranco tem tudo, como vai ser desinfeliz, eh! B...rranco tem dinheiro, tem prédio, tem Deuge...

- Oh! rapaz, nem todos. E lá estás tu outra vez com Deus. Se calhar, Deus nasceu branco porque Ele precisava surgir numa terra onde pudesse ensinar, onde houvesse pessoas que pudessem receber a sua mensagem, pudessem amá-Lo, compreendê-Lo. Então escolheu uma terra de brancos e nasceu branco. Por que havia de nascer preto numa terra onde não havia pretos?

- Então só o b...rranco ia poder arreceber o Deuge, eh! Então o b...rranco é que é mais?

- O branco não é mais. Mas a civilização estava com eles. E Deus queria aproveitar os meios de civilização – a escrita por exemplo – para deixar expressa a Sua vontade. Ouviste por certo falar nos Mandamentos da Lei de Deus, nas Escrituras... Pois, nos missionário, disse ele.

- Tudo isso tinha que ficar escrito para aqueles que como nós, nasceram muito depois. Mas isso nada tem a ver com a cor da pele. Para Deus a cor não tem qualquer importância. Também os animais Ele criou de várias cores.

- Então o Deuge deu civilige... cilivijação prós b...rranco e não deu prós preto? Então o Deuge é do lado dos b...rranco. Todos b...rranco só quer a desgraça dos preto.

- Não me fales mais em pretos e em brancos. É só isso que vês na tua frente? Não vês mais nada que pretos e brancos, brancos e pretos. Sabes uma coisa? prefiro mil vezes viver entre os bichos do mato do que num mundo como o teu. Prefiro viver entre as cobras do que entre gente como tu. Alguma vez viste um animal comer o outro só porque não é da mesma cor?

- O Deuge...- O Deuge o que? Não metas a Deus nesta história diabólica. Deus é Luz,

não é branco nem preto, nem mestiço. Descansa que um dia O terás à tua frente.

- Pois é. Um dia O terás pela frente. No dia do Seu juízo. E vais ter que dar conta de tudo o que de tenebroso tens feito até agora. Olha para esse teu sangue. Basta Deus querer e ele gela e tu inteiro. Ai dessa hora, rapaz! Mas a quem é que isso importa? Aos que te põem numa mão uma metralhadora e na outra uma catana? Aos teus amigos? Aos que andam contigo em diabólicas andanças, matando, destruindo, saqueando, fazendo sofrer?

- Quando chegar a tua hora estarás tu sozinho com Deus. E, de duas uma: ou entras com Ele em sua casa de luz ou Ele te destroi para todo o sempre. – Levantei-me da cadeira onde me sentei. – Tenho muita pena de ti. És um miúdo ainda. Tanto valor que podias ter! Obcecado que

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andas, nunca te lembraste que és um homem e estás transformado num monstro.

- Eu não pode dizer nada porque tem medo – disse ele por fim, olhando-me de frente.

- Medo de quê?- Eu tem muinto medo – repetiu em voz baixa. Observei de novo a veia

latejando em seu pescoço. “Sim, é um homem. Um pobre, fraco e miserável ser humano.” Está totalmente manipulado por forças diabólicas ao serviço de oportunistas e do imperialismo russo e americano.

- O que pode ser pior do que a morte que te espera? Porque sei que te vão matar de má forma. Estão muito aborrecidos, tristes e cheios de ódio. Tu e os teus companheiros mataram horrivelmente as suas famílias, destruíram tudo o que possuíam. Estão muito revoltados. A mim não contes nada. Não quero saber nada. Só quero e te peço que ajudes a impedir que sofra mais gente, que mais gente inocente tenha as suas veias esvaziadas.

- Mas minha Arfeige, eu e os outro só cumpríamos ordem do chefe. - Afinal que ordem vos dão?- B...rranco e mestiço, matar mesmo. Os preto, só aquele que está

dos lado dos b...rranco.- Porque tens tanto medo de morrer à catana?- Quando o homem morre cortado não pode nascer outra veige.- Sim, siôr – moveu a cabeça afirmativamente, com entusiasmo – se

então não foi cortado nasce outra veige. - E quando é que nasce outra vez?- Quando os preto já está com tudo pra eles, quando os b...rranco,

uns morreu, outros fugiu no puto.- Minha Arfeige: como em 61, nós trage pauzinho nos boca. Nós

comprou no feiticeiro por 50 escudo.- Feiticeiro disse para trazer pauzinho nos boca quando está a atacar

os b...rranco, porque assim não morre, fica só dormir. A bala do b...rranco não mata, na pandance (independência) acordamos todos.

Acerca do diálogo que tive com este jovem guerrilheiro, muito havia mais para dizer, mas fico-me por aqui. Quem me ler, que tire as ilações que entender.

QUICABO, CANACASSALA, NAMBUANGONGO, ZALA...

Fui deitar-me. acordei cedo, numa noite mal passada, cheia de pesadelos. O «PAPA ALFERES», alto, magro, de cabelo em carapinha, semblante de mistério, vagueava pela Madureira, Camioneta Vermelha, Nambuangongo e Zala, furioso por não ter acertado o tiro naquela tarde fatal. Era a primeira vez que isso lhe sucedia. Gritava alto, no meio das matas do fratricídio: «Agora tem que ser... parece que conheço aquela cara que passa, no meio do

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condutor e de um furriel para que sejam sua couraça... os pobres morrem e ele fica. Olha, é ele mesmo, já passou aqui várias vezes... também tem uma Kalash com alça telescópica igual à do comandante dele, - o Santos e Castro. Ele é conhecido em todas as Companhias de Comandos pelo Alferes do cavalinho (o do Mustang). Dizem que o Grupo de Combate dele fez muitos estragos no Leste e é conhecido por Diamante negro. Por vezes, tira os óculos para que eu não o conheça. Também tem a mania que onde põe o olho, põe a bala. Agora tem que ser... Fernandes não falhará mais nenhum tiro... ainda não matei nenhum colonialista deste valor. Os meus amigos de Argel bem podem começar a preparar uns bons maços de notas de dólares. Ele vale muitos dólares não só pela patente que tem como também porque pertence a uma família de colonialistas muito antiga. Ainda não consegui nenhum troféu tão valioso, vai ser mesmo este... tem que ser, eu cá o espero!»

Eu, encostado ao mastro da proa do “ANTÓNIA”, perdido no negrume de uma noite sem estrelas, sentindo agora o sopro cálido de África, com todos os seus mistérios, entrei na amargura daqueles que desafiam o destino sob a asa da morte. Recordava agora o meu dia D, no caminho de Nambuangongo – Zala – Nambuangongo, em que a bala fatal, o tiro apontado, passou entre mim e o condutor do Jipão em que eu seguia, indo-se anichar na perna do soldado que se sentava, imediatamente, atrás de mim. Era em Janeiro, época de calor intenso. Quis ir ao Zala ao funeral de um soldado morto em combate. A viagem, os 35 quilómetros infernais, era jogar na lotaria o nosso destino. Partimos cedo. Dois Grupos de Combate, distribuídos por cinco Jipões e, à frente, uma GMC e uma Berliet, ambas cheias de sacos de areia, como rebenta minas, três metralhadoras, sendo uma «BREDA» e duas «MG» de para-peito, bazuca, morteiro, muitos cunhetes, era este o nosso paiol de percurso. A viagem correu sem feridos, mas com as emboscadas acostumadas, na Mata do café, Madureira e Camioneta Vermelha. Em Zala, pelo meio dia, foi o funeral, num cemitério rodeado de morros perigosos e um chão alastrado de invólucros de balas, sinal de encontros contínuos com o IN. O Capelão amedrontado com tudo isto, ainda se atirou para a cova do defunto, ao ouvir as salvas de tiros das honras militares da nossa tropa. No meio de tanta confusão, esta situação caricata, até passou um pouco despercebida, porque o pânico foi quase geral, embora lhe tivessem que dar a corda que estava debaixo do caixão, para que ele subisse e se procedesse à descida do militar insepulto. Aproximava-se a hora do regresso. Pressentia que eles nos esperariam na volta, em força, e que o tal Fernandes estaria à minha espera... Era pelas três da tarde, debaixo de um sol escaldante, quando entrávamos, novamente, na zona da Camioneta Vermelha, local assim chamado, porque existia ali uma viatura dessa cor, incendiada juntamente com ao seus ocupantes, nos massacres

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de 1961, pela UPA. Do morro sobranceiro à estrada, de um abrigo tecnicamente preparado, em guerrilha e contra guerrilha, como esta, depois de passar as três primeiras viaturas, o tiro de mira da alça telescópica foi-me apontado. Havia um especialista, neste circuito, que era perito em tombar oficiais milicianos com um único projéctil, chamado entre nós «O PAPA ALFERES». Corria de boca em boca, passando de companhia para companhia, que era um tal FERNANDES, mestiço, o melhor atirador, num curso de milicianos nas Caldas da Rainha (Metrópole), tendo adquirido, como prémio, uma arma de mira telescópica (22 Hornet), para fazer a guerra no Ultramar. Foi colocado em Nambuangongo, em 1962, passando-se com o seu troféu para o outro lado, juntamente com outros que, posteriormente, fugiram para ARGEL, - (formando o famoso “BANDO DE ARGEL”), começando a ser a nossa sombra negra, conhecendo-nos pelo rosto delicado ou outros sinais que nos distinguissem dos praças. Havia mesmo quem afirmasse que ele tinha uma descrição pormenorizada de todos os oficiais que eram colocados ou estavam em trânsito na sua zona de actuação. Recebia um ordenado fabuloso por forças ocultas comandadas em ARGEL, para onde desertou também o MANUEL ALEGRE. Coisas de traições. Homens que voltaram as costas à luta, à Pátria e apunhalaram os camaradas pelas costas.

Uma lágrima traiçoeira aflorou-me aos olhos e foi dissolver-se, sobrepticialmente, na imensidão do mar salgado, fazendo caudal com todas aquelas que vão e vêm...

- «»«»«»«»«»«»-:=:-«»«»«»«»«»«»«»«» - S ANTA E ULÁLIA , Sector dos DEMBOS – COMPANHIAS OPERACIONAIS Aquarteladas no QUIXICO, BEIRA BAIXA, MUXALUANDO, NAMBUANGONGO, ONZO e ZALA.

«Dizia-se que, terminadas as chuvas, grupos da guerrilha, vindos do Congo, iriam actuar no circuito Nambuangongo – Zala – Canacassala e instalar-se na Madureira. De toda a parte chegavam tropas, helicópteros, peças de artilharia pesada, médicos, ambulâncias equipadas com os primeiros socorros, enfim tudo o que era necessário para fazer uma guerra em longa escala, num raio de cerca de trinta quilómetros, tendo como posto avançado a Mata do Hinda. Nambuangongo aumentava, assim, o efectivo para aproximadamente, quatro mil homens.

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A engenharia não podia faltar, fazendo parte da sua estratégia abrir uma picada, por meio das matas, de Nambuangongo ao Canacassala e construir casernas de adobes e zinco para ocupação da Madureira. Nambuangongo tornara-se um autêntico Babel. O comandante de uma das grandes operações era o meu querido amigo, Coronel Alves Pereira, conhecido pelo nome de totobola. É dele que quero falar um pouco, pois marcou-me como homem integro, generoso, solidário, corajoso e notável comandante de tropas em campanha em zonas 100% operacionais. Nunca se sabia o que ele pensava, 1 X 2. Homem excêntrico, cinquenta anos, mais ou menos, forte, olhos azuis, calvo, conhecedor ao pormenor da zona, com o seu nome ligado à tomada de Nambuangongo em 1961. Nenhum oficial superior gostava dele; retribuía com a mesma moeda, não gostava de nenhum. Amava os soldados. Era inimigo figadal do Quartel General e Estado Maior. Mandava rádios dizendo que enviassem helicópteros a recuperar feridos, ou então, logo que chegasse a Luanda despejaria o resto das granadas de mão que sobrassem da operação. Exigia tudo ao Q.G. e eles, com medo (todos o temiam), satisfaziam os pedidos de um destemido homem de guerra. Avisava-os via rádio, que tinha tantas condecorações como porradas, agora precisaria de uma ou outra para desempatar. Durante os ataques (emboscadas), levantava-se no meio da picada, fazendo teatro. Pedia em altos berros aos terroristas que atirassem para ele que ganhava muito, e não para os soldados que pouco ou quase nada recebiam. Tinha como segundo comandante o Ten. Cor. Abrantes. Eram antípodas um do outro. Ligava pouco aos soldados. Gostava de se curvar com reverência diante dos superiores. Sempre que havia tiros, rezava «Pai Nosso». Chamavam-lhe o Celestial. No bornal trazia o terço e a Bíblia. Totobola, o Infernal, uma garrafa de Whisky reserva 20 anos e uma de Brandy 1920.

Ele (Cor. Alves Pereira) adorava conversar comigo e jogar comigo o King. A nossa amizade, respeito e simpatia é recíproca. Tratava-me por tu. Obrigava o helicóptero, muitas vezes, a vir-me trazer a Nambuangongo para pernoitar. No regresso, pela manhã, entregava-me uma garrafa de Whisky velho, duas ou três Cucas, dizendo que era para o meu pequeno almoço. Isto, acontecia, duas três vezes por semana. – Quem também adorava esta situação, era o piloto de helicópteros que, ao transportar-me ao encontro do comandante Alves Pereira, comia e bebia do melhor... Foi nalgumas dessas viagens que pude desfrutar dos quadros mais maravilhosos da minha passagem como militar pelo sertão do Norte de Angola. Quando sobrevoava os planaltos, divertia-me com os aguaceiros violentos que cortavam obliquamente o ar. Mais além, fixava extraordinárias combinações de luz e cor, o arco-iris sobre a terra muito verde banhada de sol, nuvens gigantescas acasteladas e grandes tempestades selvagens que deslizavam, em corrida louca, paralelas ao tremulante helicóptero.

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Outras vezes, o aparelho voava suficientemente baixo para vermos os animais nas planícies e partilharmos dos sentimentos que Deus deve ter experimentado no momento em que acabou de criar, antes de ter mandado Adão dar-lhes nomes. Ao ouvirem o ruído dos motores, paravam de pastar, mas não parecia passar-lhes pela cabeça olharem para cima. Finalmente, compreendiam que qualquer coisa de estranho se estava a passar e, de súbito, começavam a trotar pela encosta abaixo, para, daí a instantes, desatarem a galope, em fuga desenfreada para a mata -(fugiam aterrorizados, estavam na presença do homem – a pior fera...), fazendo erguer uma nuvem de poeira e pedras na sua esteira.

Aos domingos era celebrada missa campal para os militares. Totobola, assistente assíduo, junto ao altar, fazia gestos com a cabeça, se estava ou não de acordo com a homilia. O Celestial, era mais pacífico, orava e aceitava tudo o que o padre dizia. Um belo dia, o padre acabou de ler a parábola do fariseu e do publicano: «subiram dois homens ao templo para orar; um era fariseu, o outro publicano. O fariseu, em pé, orava que não era como os outros homens pecadores... O publicano, porém, mantendo-se à distância, dizia: Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador!...». Totobola, durante a homilia, identificava-se com o publicano e apontava, em voz alta, o pobre do Ten. Cor. Celestial como se fosse um fariseu, porque tinha muito pouca caridade para com os soldados, a quem por tudo e por nada, carregava com dias de detenção disciplinar. As operações iam a mais de meio. Totobola vai a Luanda «fazer barulho e pôr tudo em sentido». Exigia trinta fardos de bacalhau e dez pipas de vinho, para festejar a tomada da Madureira, como corolário das operações. Demorou-se por lá duas semanas. Foram quinze dias de saudades do amigo Totobola. Plantei a minha tenda junto à dos restantes oficiais. Encostei a cabeceira do colchão pneumático a um embondeiro, na esperança de amortecer alguma bala solitária dos ataques nocturnos. Rodeei-a de espinheiros, uma espécie de paliçada que sempre dificultaria, de algum modo, a aproximação de algum bicharoco noctívago e salteador. Eu e o embondeiro, dois gigantes esquecidos, dois irmãos na dor! Vejo-o como um monge, um asceta cativo na rígida clausura do chão, envolto no sujo e esfarrapado burel do monte. Somos símbolos sublimes da persistência e do abandono. Ambos sofremos, ambos nos resignamos, ele condenado ao atroz suplício do seu abandono, eu, injustamente, às agruras de uma guerra que não entendo... Uma angústia, um suplício de Tântalo, torturava-me a alma. Querer paz, justiça e liberdade e não poder desfrutar absolutamente de nada disto, era o maior dos suplícios a que, um jovem como eu, poderia ser condenado! Por vezes parecia-me ouvir a voz dos nossos adversários que, em tom irrisório, perguntavam onde está o vosso Deus? Via, cada vez mais distante, a realização da promessa, com o sabor a tempos escatológicos «em que das espadas forjarão relhas de arados e das lanças farão foices. Uma nação já não há-de erguer a espada contra a outra, nem mais se há-de aprender a fazer guerra». Sozinho comigo, escrevia páginas desesperadas, sem fim, do meu diário, que eram frutos amargos de quem tem a ousadia de desafiar os infinitos, as

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torrentes e os desertos e pautar a sua vida por normas que pretendem atingir as fronteiras do absoluto. Ora, nesta caminhada existencial, as mais altas alegrias tingem-se de tristezas, roçam abismos e causam vertigens. Ah! como é grande triunfar na dor, caminho seguro que conduz à rendição do homem. Oh! como é belo dominar destinos! À minha volta, a confusão e a revolta, misturadas com uma irrequieta sede de ideal, cresciam cada vez mais. As horas passavam-se inaproveitadas e vãs. Muitos militares, indiferentes, áridos de sonho, iam, no lento arrastar de dias sem esperança, desenhando os seus próprios passos incertos nas terras inexploradas da Mata do Hinda. Eu, pensador e amante «do Longe e da Miragem» ia-lhes falando desta, mas também de outra Pátria, onde não haveria mais luto nem pranto, mas sim o raiar duma manhã sem ocaso, em que se praticaria, para sempre, a justiça, a paz, a honestidade e a rectidão.

As operações aproximavam-se do fim. Era a festa dos fardos de bacalhau e dos pipos de vinho que o amigo Totobola tinha arrancado à Manutenção Militar de Luanda. «Entregaram-me tudo, tintim por tintim do que eu lhes exigira». Disse-me radiante ele. «Apenas tive que dar dois murros em cima da mesa, mandar o acostumado grito de guerra – “isto é infernal” – e abanar, pelos colarinhos, dois oficiais mais renitentes, escrupulosos seguidores do regulamento militar. A resistência foi muito curta. Ao verem-se ameaçados de serem metidos, à força, num dos helicópteros e lançados no ponto mais quente do terrorismo na região de Nambuangongo, assinaram, imediatamente, todas as requisições, atiradas, ostensivamente, para cima das suas mesas dos gabinetes de ar condicionado». Contava-se, nos meios militares, que, alguns mais medrosos, ao saberem que o Coronel Alves Pereira vinha do mato, totalmente “cacimbado”, fazer reivindicações, meteram atestado médico e nem sequer apareceram, nesses dias, ao trabalho... De facto Totobola começava a ser um mito muito incómodo, mas necessário. Homens como este teriam mesmo que existir, para que os outros oficiais superiores – (muitos fazendo parte da brigada do reumático), vivessem em paz e o terrorismo a caminho de Luanda, não alastrasse cada vez mais, introduzindo-se nos meios citadinos da capital de Angola e ameaçasse o Quartel General. Ninguém gostaria que ele impedisse a vida noctívaga dos guerreiros em descanso, europeus e africanos, na sua divagação pelas “boites”, cinemas e outros sítios de diversão, vingando todo o “stress” e frustrações de meses a fio no mato. A guerra, no curso normal da História, alimentou sempre duas posições antagónicas – miséria para muitos e riqueza para outros. Luanda era também a capital do ócio e da vergonha, lugar de encontro das duas partes beligerantes. Cruzavam-se nas mesmas ruas, sentavam-se nos mesmos cafés, desfrutavam do mesmo sol, contemplavam as mesmas estrelas e rezavam nas mesmas igrejas. À sombra do terrorismo, a preço de sangue fratricida, nasciam grandes fortunas, alimentadas nos bastidores sócio-políticos. De rosto austero, sem um sorriso, profundamente marcado pelas agruras da guerra e de sucessivas noites de cacimbo, fazia a sua vida no meio dos militares em campanha. Dormia debaixo da mesma tenda e comia sempre do mesmo tacho.

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Nunca me falou da sua família, mas sim, com respeito e carinho dos «meus soldados», deixando transparecer, na sua fisionomia, a ingenuidade duma criança. Despojara-se dos galões de Coronel, tornando-se como um deles. Deslocava-se na primeira viatura, «o rebenta minas», sempre ao lado do condutor, conhecido entre nós pelo lugar do morto, dando sinais evidentes ao adversário de que era o chefe. Gritava bem alto, com o Unimog parado, em frente aos esconderijos mais problemáticos: «Ó papa – alferes», «ó Fernandes duma figa», se estás aí, aparece, não sejas cobarde. Quero ter uma conversa contigo. Deixa em paz os pobres dos Alferes milicianos! Solenemente pousava a arma e, desarmado, pendurava uma carta num dos arbustos mais destacados da picada. Voltava à viatura, pegava na arma e cartucheiras e, com o grito «stá a andar», seguia, misteriosamente viagem. O que ela continha, só ele e o lendário Fernandes, o papa – alferes, o sabiam. Um dia perguntei-lhe se gostava da guerra. Respondeu-me que não. Que amava a paz e a concórdia entre irmãos. Que lutava e daria a vida, se fosse necessário, para que, brancos e pretos, se encontrassem, definitivamente, sem qualquer espécie de barreiras, numa pátria comum, conquistada pelo direito natural de nascimento. Que a terra onde cada um nasce é sagrada, por isso mesmo ninguém poderá retirar a outrem o direito de cidadania.

...DESTINO: NAMBUANGONGO – MADUREIRA

1 – NAMBUANGONGO Luanda acordava cedo, enquanto as estrelas iam desmaiando, ofuscadas pela copiosa luz do astro-rei, que não tardaria a surgir. Lá, na estrada, frente ao Campo Militar do Grafanil, circulavam carros e machimbombos em direcção ao Sul, Dondo, Quibala, Cela, Nova Lisboa, Sá da Bandeira, e, para Leste, Lucala, Malange, Henrique de Carvalho e Luso. As 25 camionetas de carga, alugadas pelo Exército a civis, que tinham como destino os Dembos, estavam alinhadas, frente às casernas, carregadas se sacos de batatas, arroz, feijão, rações de combate e outros géneros, tudo isto para abastecer o posto avançado da Manutenção Militar e, ao mesmo tempo, servir de banco a alguns dos seus pobres passageiros. Numeradas, de um até vinte e cinco, com indicações precisas dos Grupos de Combate que as iriam ocupar. De toda a parte surgiam militares, armados até aos dentes, semblante carregado e pálido, de uma noite mal dormida, rigorosamente fardados de camuflado; à cinta, cartucheiras e cantil; às costas, mochila e pano de tenda, mantendo no regaço, do braço direito para o esquerdo, a companheira fiel da comissão, a metralhadora ligeira G3. Ao peito, em fio de metal enrolado ao pescoço, pendia uma placa picotada em duas metades iguais, com o número mecanográfico gravado. Em caso de morte, para identificação do cadáver, parte era metida na boca e outra iria para o Quartel General em Luanda.

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Lá vamos nós, sem galões (os que os tinham), estratégia de guerra, a caminho não da terra da promissão, onde corria leite e mel, mas sim para uma Pátria enjeitada, de ódio e morte, onde desde meados de Março de 1961, corre o sangue de tantos meus semelhantes! A coluna tinha atingido a Avenida dos Combatentes em direcção à estrada do Cacuaco. Já o sol começava a lançar sobre nós os seus raios inclementes. Os espaços aéreos da capital, eram sobrevoados por helicópteros, bombardeiros e outros aviões da Força Aérea. A guerra principiava pela manhã cedo. Feridos que chegavam ao Hospital Militar de Luanda, agora na nossa retaguarda, aviões que partiam a bombardear as matas por onde iríamos passar, helicópteros que levantavam em direcção à ZIN, Zona Intervenção Norte, a recuperar feridos. Era este o pano de fundo da nossa caminhada. O silêncio nas viaturas era sepulcral. A população da cidade, habituada ao movimento da tropa que chega e tropa que parte, nem sequer dava pela nossa passagem. E nós, sem uma palavra, entrávamos na apoteose bizarra do mundo negro – os musseques. Casas de madeira com cobertura a folhas de zinco e cubatas de adobe e palha, redondas e pontiagudas, perfeitamente alinhadas, em espaço de terra dura como betão, desde as imediações de Luanda, na orla marítima, até ao Cacuaco. Negros, bronze de diversos cambiantes, corpos primorosamente talhados em ébano, alguns trabalhadores, ociosos outros, estes últimos em maioria, juntavam a sua revolta à nossa, assistindo, em silêncio, à grande coluna que passava. De mistura com os adultos, apareciam também os filhos, pobres crianças, semi-nus, olhando demoradamente as viaturas, entre nuvens de poeira, com sorriso inocente, acenando-nos com carinho.

Mais adiante, em frente de uma esmerada cubata, de pé, sem mexer, estava uma jovem mulher, vestida segundo os cânones de expressão sociológica e cultural indígena, com os três panos usados pela moda feminina: um pano à cinta; outro, do mesmo tamanho, passado por baixo das axilas e preso sobre o peito; um terceiro, o mais importante, porque ligado a uma tradição mitológica de sacralidade, era o pano da cabeça, colocado directamente por cima do lenço e caindo até à cinta. Era uma «Mãe Negra», portadora de mistério, com um filho às costas e outro pela mão. Fixei-a bem. Chorava na sua revolta contra a guerra. «Na terra, tanta guerra, tantos enganos»... Impressionado com este contrastante quadro – dum lado o amor de mãe, doutro o ódio dos homens – arranquei a pistola Walter que levava à cinta e lancei-a contra o taipal da viatura, dizendo para o meu impedido, guarda-me essa «porcaria» e entrega-ma no fim da comissão para fazer o espólio. Chegámos à Tentativa, fazenda grandiosa de milhares de palmeiras. Uma translúcida abóbada de copas verdejantes, que impressionava pela sua considerável extenção, é sustentada pelo infinito número de fustes que se alinham, em perspectiva geométrica, como imponentes colunas de majestosa catedral. Por volta do meio dia parávamos na vila do Caxito, a sessenta quilómetros de Luanda, povoação de cerca de cem casas de brancos, mas à volta, com uma vastíssima zona de sanzalas. As viaturas alinharam na rua principal, para que cada um puxasse da sua ração de combate. Fome não havia, a sede era muita. Dirigi-me a casa do Snr. Pires, pai do Valdemar (amigo de longa

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data, desde os primeiros anos do Colégio), que ali era comerciante, havia já quase três décadas. Que alegria senti naquela casa! A sua santa mãe, sabendo da grande amizade que tinha pelo seu filho, chorou copiosamente, ao ver-me enfiado numa farda camuflada, transpirado e com muito pó, a caminho de uma guerra sem sentido... Do Caxito a Nambuangongo são pouco mais de noventa quilómetros. Do Caxito às mortíferas «Sete Curvas» são trinta quilómetros. A sorte das tropas portuguesas é que eles raramente acertam no alvo. «Dizem que os guerrilheiros moram ao nosso lado no Caxito, Cacuaco e Luanda. Vão atacar e voltam. Disse-me o Snr. Pires: sabe meu Alferes, neste momento os “turras” estão a beber a sua Cuca ou Nocal ao lado das nossas tropas e sabem quem são os oficiais, apesar de vocês não trazerem as “bissapas”. É um perigo o terrorismo, ele vive e mora no nosso meio. Enquanto vocês fazem viagens em coluna, eles, a corta mato, chegam às «Sete Curvas». Nesta guerrilha clássica ninguém está seguro. Basta um tiro solitário saído do meio de uma mata, para vários grupos de uma companhia andar um dia inteiro à sua procura.

Brevemente perdemos de vista o Caxito. A coluna rola na estrada. Ninguém ousa pronunciar uma palavra. A respiração, ou qualquer gemido, são abafados pelo barulho dos potentes motores e suas fortes rotoras de tracção às quatro rodas, fazendo com que a viatura galgue, sem qualquer dificuldade, os grandes desnivelamentos da estrada. Entrámos na savana, coluna completamente partida, com os condutores civis, peritos nestas andanças, a tentarem regularizar, naturalmente, sem qualquer paragem, os cinquenta metros de distância, exigidos pela precaução de minas e emboscadas. Paisagem descarnada, com abundância de «laurisilva» perene, espinheiros e cactos. Por entre os embondeiros, barrigudos e antipáticos, com grandes aves pousadas nos galhos descarnados e os frutos como ratazanas penduradas pelo rabo, surge, aqui e acolá, as primeiras ruínas de casas esburacadas e palhotas destruídas. Ao longe, um grande mastro, com uma bandeira de Portugal, tendo como pano de fundo os contrafortes da serra de Quicabo, sede de um Batalhão, rodeada de arame farpado e lâmpadas eléctricas. Depois de passadas sem “maca” as «Sete Curvas», a monotonia da paisagem ia-se modificando progressivamente. Aqui começa a aparecer uma grande quantidade de embondeiros. Bojudos, troncos vencidos pela idade, abatidos pela doença e roídos pelos vermes, apavorados com a sua congénita disformidade, fazem da floresta um recôndito asilo de invalidez. Há, pelo menos, cinco mil anos que o embondeiro não conhece a mocidade. Sem pais, nem filhos. Tudo irmãos, qual deles o mais idoso. Lá longe, a ocultar-nos o horizonte, estavam as florestas, as tais matas, com a dimensão de sacralidade recebida nas horas do Génesis, na formosa canção do amanhecer inicial, agora sacrílegamente profanas pelo sangue fratricida que, continuamente, se vai esvaindo no seu ressequido capim. Estávamos quase a entrar na densa mata. Olho e vejo dois embondeiros gigantescos, um de cada lado da estrada, com os seguintes dizeres, num grande

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cartaz em tabopan, feito pela nossa tropa, que ali sofria pesadas baixas desde 1961: Portas da Guerra. Os aviões não deixavam de nos acompanhar, cruzando-se, em determinada altura, com dois helicópteros que, vindos dos lados de Zala, traziam feridos para o Hospital Militar de Luanda. Ainda sobrevoaram um pouco a nossa coluna, seguindo, rapidamente, o seu destino. Começámos a entrar numa zona de curvas e contra-curvas muito prolongadas, numa extensão de quatro quilómetros. A última viatura estava na primeira e já a primeira começava a dobrar a terceira, a mais perigosa, porque não havia qualquer abrigo do lado esquerdo. Do lado direito, atrás de um monte, outro monte surge, mais alto, e outro ainda mais alto... O sol ardia abraseado, despedindo, lá do alto, sobre a planura requeimada, chispas de cólera. Nuvens de poeira espessa envolviam-nos como cortina impenetrável, magoando-nos os olhos e tapando-nos a respiração. A vegetação do solo era pobre e raquítica. Árvores ralas de pequeno porte, erguiam para o céu os braços nus e contorcidos, implorando a piedade de uma gota de chuva que não caía. Só de onde a onde, gigantescos embondeiros projectavam um pouco de sombra com seus troncos nodosos de árvores sem elegância e sem beleza, no areal ingrato de terra agressiva e inóspita, onde nada mais se cria. Olhava os meus companheiros mais próximos e via-os como eu, expressão dura, olhar atento, preocupação. Todos nós éramos retrato vivo de martírio humano. Quando sentia a garganta esbraseada e seca, queimada pela sede, deitava mão ao cantil e bebia um trago de água morna, retardando o líquido na boca para molhar os lábios crestados pelo impiedoso sol. Com a cara apoiada nos joelhos, com pó e suor, disse «seja o que Deus quiser» e esqueci a quinta, a sexta e a sétima curvas. Ia-me habituando à vida dura de militar de tropas especiais, em campanha. Vira cair à volta de mim todas as ilusões. Os sonhos mais queridos, aqueles que me haviam entusiasmado o espírito e exaltado o coração, tinham-se diluído em atrito doloroso com esta realidade que nos reduzia a nada. Fizera apelo às mais recônditas energias da minha alma, aquelas que nunca tinha tido ocasião de se revelar e cuja existência dentro de nós, muitas vezes, nem sequer suspeitamos, e elas, dóceis, acorrem em nosso auxílio, despertadas, talvez, pelo inconsciente atavismo que se aninha em todo o ser humano. E não é verdade que o homem encontra sempre em si, quando quer ou a necessidade o impõe, forças de adaptação, de resistência e de luta que o levam a triunfar em todas as adversidades? A sensibilidade magoa-se, a alma angustia-se, o coração sangra, mas tudo vai passando, são momentos dolorosos que deixam um sulco de dor e de amargura, entretanto diluídos numa existência que recomeça todos os dias ao amanhecer, hora da esperança. Temos, sempre, uma enorme capacidade de nos adaptarmos à sorte que o destino nos talha, não deixando no entanto, de sofrer dolorosas transformações da nossa personalidade, ao arrasar tudo quanto, anteriormente, edificámos dentro de nós, com tanto carinho e amor, através de longos anos, para, sobre essas ruínas, essa devastação dolorosa, edificarmos um novo ser que desconhecemos e, a princípio, nos atormenta e assusta.

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«Neste preciso local onde me encontro neste momento, aconteceu uma grande carnificina, que abalou toda uma companhia de tropa “normal”, quando faziam protecção a uma coluna. Dois grupos de combate, um comandado pelo Alferes Marques Pena, finalista de medicina em Coimbra, mobilizado por causa das greves de estudantes, outro pelo Alferes Belo Rosa, alentejano, alegre a sadio, com espírito de tudo estar sempre bem. Tiros e granadas vinham de todas as direcções. O sangue corria naquele pó já tingido por outros que ali tinham marcado encontro com a morte, desde 1961. Contaram-me que a confusão foi enorme. Não se sabia quem estava vivo ou morto, naquela nuvem de pólvora e fumo. Um cheiro de sangue, sangue de irmãos, derramado por irmãos, sobre o seio da Pátria comum, se levantava do capim e salpicava o rosto e farda dos vivos que passavam para novos combates. O grupo suicida, num ataque relâmpago, desce à estrada e, de repente, despeja as últimas granadas para cima da nossa tropa deitada nas bermas, batendo em retirada. Bocados de pernas, dedos, braços, couro cabeludo, olhos, etc., iam ficando, dependurados, nas copas dos bojudos embondeiros, exactamente como os seus frutos, mákuas, as tais ratazanas presas pelo rabo. José Marques Pena safou-se. Jorge Belo Rosa, é deficiente das Forças Armadas, deixando, para sempre, a sua perna esquerda dependurada num dos tristes embondeiros da sétima curva. Os feridos foram evacuados. Outros, quatro, a morte convidara-os para o repouso final no cemitério de Nambuangongo. Os vivos, esses ergueram-se, com as vestes tingidas de sangue, para de novo, se mancharem e mutilarem, rolando-se, por terra, noutras duras lutas que se avizinhavam, como acontecera, pouco tempo depois, ao Alferes Lobo Cardoso e seu grupo de combate a caminho de Canacassala».

Depois de meia hora de técnicas e tácticas bélicas, os pelotões de sapadores e reconhecimento, em marcha apeada, avançam para a frente da coluna, à procura de minas e armadilhas. As viaturas seguiam, vazias, a passo, ladeadas por dois grupos de combate. Entrámos na mata virgem. Não se vislumbrava uma nesga de céu. A luz do sol, filtrada através da folhagem, formava estranhos e temíveis desenhos, dando um aspecto terrível à floresta. Muito acima do solo, empoleirados em cima de troncos de árvores seculares, como frutos, habitava uma população gárrula e inquieta – os macaquinhos cinzentos ou escuros conforme a tonalidade que recebiam do sol, no seu ocaso. Eis-nos a sair do túnel da floresta à volta de dum alto morro, coberto por um denso arvoredo. Era o tal «Morro da Vingança», cheio de esconderijos, barreiras e vestígios de guerra, local tradicional de ajuste de contas entre os guerrilheiros e o Exército português. Bastava uma granada lançada do cimo da primeira barreira, que não teríamos qualquer hipótese de defesa. Mais à frente, surge o rio Onzo. O dia vai declinar. O sol esconde-se por entre árvores gigantescas de frondosa ramagem, projectando sombras extensas sobre as águas amarelentas da sua corrente, que nos iria lavar e dessedentar, durante o período das operações nos Dembos.

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Começámos a subir os últimos sete quilómetros. Já se avistavam as luzes em Nambuangongo. A noite e as copas das árvores fizeram pacto de escuridão, para que nós, ávidos de novas sensações, pudéssemos contemplar o espectáculo sublime e empolgante das grandes queimadas em terras africanas (Norte de Angola), fogo redentor ateado pelos nativos para purificar e fertilizar o terreno das próximas sementeiras. Sempre a galgar, caminhada feita, devagar, vamo-nos aproximando dos clarões de incêndio que há tempo vêm despertando a nossa atenção. Há línguas de fogo, vermelhas, fulgurantes, ameaçadoras, que, por entre turbilhões de fumaceira e o faiscar das centelhas, se projectam no céu negro, órfão de luar, em visões trágicas de catástrofes das remotas eras terciárias. As chamas avançam sempre, ao longo de uma frente enorme; galgando tudo, dão-nos, no horizonte, ilusão de um céu em fogo, unido a um mundo em chamas. Entrávamos em Nambuangongo dos Dembos, o «algures no Norte de Angola», de que tanto falava o saudoso jornalista Ferreira da Costa, no início do terrorismo! Nambuangongo, Vocábulo de difícil pronúncia, símbolo de resistência desde as campanhas de João de Almeida, em 1907, perigo e vergonha, estendendo-se desde estas terras mortíferas até às portas de Luanda. Caudal de sangue que foi aumentando até à chacina de Março de 1961. As viaturas estacionaram, alinhadas, em frente à igreja, único edifício que resistiu aos saques e incêndios dos turras e bombardeamentos da nossa aviação, durante o tempo de ocupação dos “turras” (lacaios – vassalos) ao serviço dos imperialistas ( russos e americanos ). «Escrevia Ferreira da Costa: encontrámos casas, armazéns, fábricas incendiadas, haveres e bens estraçalhados, mortos a apodrecerem, sem túmulo. Quando foi içada a Bandeira de Portugal no ponto mais alto da Igreja de Nambuangongo, quase todo os homens choraram de emoção. Era a vitória da Pátria amada sobra a pilhagem, a violação, o massacre». Só em 1962, os Ten. – Coronéis Massanita e Joaquim Alves Pereira, o Totobola, um pela Fazenda Beira Baixa, outro por Ambriz – Zala, entraram definitivamente em Nambuangongo, no meio dos maiores sacrifícios e privações de toda a espécie. Conta-se mesmo, nos meios militares, que receberam ordens do Quartel General para ficarem nas imediações da vila, porque os pára-quedistas iriam ser lançados. O Totobola mandou um rádio a Luanda que seriam todos abatidos a tiro. E assim a honra da tomada pertence, justamente, àqueles que mais sofreram e mais baixas tiveram. Reparei na carga da última viatura. Trazia caixões. Todos do mesmo tamanho, tanto valia que o morto medisse um metro e noventa como um metro e sessenta. A talha era a mesma. Na escuridão da noite eram metidos, a toda a pressa na torre da Igreja. Fiquei só, por uns instantes, sentado debaixo de uma enorme cruz de ferro, sobranceira ao cemitério, iluminada por um gerador eléctrico. Olhava a escuridão

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das matas, o perigo, as últimas queimadas amortecidas pelo cacimbo da noite, as hienas que passavam rentes ao cemitério, reclamando sangue humano. Entretanto fui para os meus aposentos. Em cima do meu colchão pneumático, deitei-me com o camuflado empoeirado da viagem. A soldadesca movimentava-se sem destino. Ouvia vozes ébrias cantando: «Ó Senhor de Matosinhos, ó senhora da Boa Hora, ensinai-nos o caminho daqui para fora»... Eram os «velhinhos» que partiriam na madrugada seguinte! Não adormecia. Estava vigilante. A cada passo enxugava as lágrimas com a ponta do dólman. Tinha pouco mais de vinte anos, estava longe da família e de alguns dos meus melhores amigos...

2 - MADUREIRA

Já a coluna se deslocava da Mata da Hinda para as margens do rio Quilolo, passando por uma região argilosa, onde as águas das chuvas tinham formado um lençol duro e viscoso. Acampámos a três quilómetros do ponto nevrálgico. A aviação vinha preparando, há uns tempos, em bombardeamentos sucessivos, o nosso assalto ao objectivo, enquanto que a engenharia abria uma grande clareira na savana para acesso de helicópteros com tropas e recuperação daqueles que possivelmente iriam ser feridos ou mesmo mortos em combate. Fomos logo infelizes com as condições climatéricas da primeira tarde. O sol corria já a passos largos para o seu ocaso. O céu, opaco, brumoso e pesado, carregava-se de nuvens grossas, acasteladas de formas caprichosas, que subiam, alastravam e escureciam o ar, ameaçando borrasca próxima. Relâmpagos começavam a fender o ar em zigue-zagues lívidos e aterradores. A seguir, o trovão, um trovão rouco, profundo, enorme, prolongado, abalou tudo. Entretanto a trovoada redobrou de furor. Clarões rasgavam a atmosfera por todos os lados. O céu parecia arder e crepitava. A sucessão de trovões, em rugidos contínuos, simultâneos e sobrepostos, rolavam indefinidamente, como ribombos de poderosa artilharia e estrépito confuso de derrocada. Todo o céu, por cima e à roda, vibrava, fremia e estalava, fazendo saltar, de todos os lados, animais selvagens, espavoridos e acossados pela tormenta. Das profundezas da floresta vinham ruídos estranhos, ora surdos, ora cavos e profundos, como se forças misteriosas, lá para os recessos desconhecidos, labutassem em pugna infindável. E as vibrações do céu e da terra misturavam-se, casavam-se e afundavam-se naquele concerto descomunal de ribombos, rugidos e estrondos, que se despenhavam e rolavam até ao infinito. Entre nós e a Madureira a natureza continuava revoltada como que a impedir a nossa progressão, para que não houvesse mais sangue entre irmãos. A tormenta bramia mesmo por cima das nossas cabeças. Entretanto, começou a desabar a chuva, uma chuva alagadora e invencível, penetrando a rudeza das telas impermeáveis das nossas tendas. A própria violência da tempestade encurtava-lhe a duração. Com a chuva, os relâmpagos espaçaram-se e os trovões abrandaram, afastando-se primeiro devagar e depois a galope, até se perderem, a pouco e pouco, nos confins do

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horizonte, onde, ainda por bastante tempo, ficavam a rolar, surdos e longínquos, como composição distante que penetrasse entre montanhas. Distavam, agora, cerca de três quilómetros. Duas forças, naturalmente antagónicas, eram separadas pela poderosa corrente do Quilolo. Da margem esquerda estavam os brancos, pretendendo restituir, aos da sua cor, que ali nasceram, o direito de serem angolanos, enquanto que da outra, a guerrilha afirmava que África é dos pretos e de mais ninguém – (era o racismo primário). E a natureza bramiu, em convulsões de revolta, contra este racismo intolerável, instalado, há milénios, na humanidade que escrevia, assim, uma História de vergonha ao adulterar o direito natural de posse por ocupação de terras inóspitas, com o grito de «isto é meu». À minha volta, alguns soldados, vão vencendo a fadiga, dormiam em magotes, debaixo de árvores, molhados da forte chuva e mordidos dos mosquitos, esperando a manhã para partirmos ao assalto da base; outros, displicentes, bebericavam cerveja quente, sorvendo-a pelo gargalo e fumavam cigarros atrás de cigarros, como quem, nervosamente, aguarda uma terrível sentença que não sabe se será de vida ou de morte. «O Comando ri-se do medo... ( será? ) a sua companheira de todos os dias é a morte... ( sem dúvida !). Ao meu lado, debaixo do mesmo bivaque, rodeado de roupas sujas, caixas de munições, sacos de lona, carregadores de espingarda, granadas e conservas espalhadas um pouco por toda a parte, estava o Capitão Magiollo de Gouveia, Comandante de uma Companhia de Infantaria, que nos viria apoiar soberbamente com as suas tropas de infantaria e depois de entrarmos na Madureira aí ia ficar pelo menos durante um ano. É um homem nobre, carácter impoluto, alma eleita, militar distintíssimo, rosto bexigoso, completamente alquebrado pelas comissões que já fizera e, segundo me contou, todas muito complicadas e, por conseguinte, muito sofridas. Ainda a aurora vinha longe, e ele sem dormir, segredava-me ao ouvido, para não quebrar o sono dos nossos colegas que, a nossa missão era dificílima para conseguir entrar na Madureira. Revelou o seu profundo altruísmo ao dizer-me que estava nervoso (embora tivesse muitíssima confiança em nós, Comandos), não pelo que lhe poderia acontecer, a ele, que era profissional e de consciência tranquila com os homens e com Deus, mas sim aos seus militares, mobilizados, muitos deles, contra vontade. Dentro de pouco, porém, em explosão súbita, rompe o dia, e, logo, quase a seguir, o sol vem revelar-nos o cenário que nos rodeava e secar o camuflado colado ao corpo. É a floresta imensa, infindável, de árvores densas, de pequeno porte, num terreno baixo, deixando adivinhar, ao longe, os penhascos, ravinas e desfiladeiros que caracterizavam a Mata da Madureira. A curta distância, sobre uma pequena elevação, despida de arvoredo, no meio da selva, pudemos ver um enorme leão, que, rindo-se da nossa pequenez, nos saudava com seus rugidos estrondosos e medonhos. Era um possante animal, belo e musculoso, erguendo a juba espessa e fulva, em ar de soberbo desafio, como senhor absoluto das selvas, a quem ninguém ousasse incomodar. Ao mesmo tempo que as florestas se enchiam de guinchos, cantares e gorjeios alegres da passarada, a grossa coluna, protegida pela aviação, começava a subir

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a encosta da Madureira que, desde os massacres de 1961, nunca mais tinha sido franqueada pela nova picada aberta. De repente, aos primeiros tiros, tudo voou das viaturas, sem qualquer ordem hierárquica de posto ou idade, os homens rastejavam, procurando desaparecer nas dobras do terreno, passando, com um estalido, em uníssono, a arma da patilha de segurança para a posição de fogo. Da direita, da esquerda, da retaguarda, de todos os lados éramos recebidos, triunfantemente, ao som do mais variado fogo de artifício, marca Estados Unidos, União Soviética, China, Coreia, etc. Creio que nenhum Rei ou Presidente da República portuguesa teve, algum dia, uma espera tão apoteótica, na estrada em qualquer povoação do seu reino. Ouvia-se já o zumbido assobiado da primeira granada, caindo como o estrondo de trovoada seca. Vi o Capitão Magiollo de Gouveia, humano, em sacrifício pelos outros, branco como a cal, os olhos muito abertos, como se fossem de vidro, a fixarem o vazio, os lábios secos, descoloridos e enfarinhados, a ordenar em gestos de comando, o avanço da sua companhia apeada. Corriam em zigue-zague, como se quisessem fugir ao forte fogo cruzado, dobrados sobre a espingarda para o “boneco” ser mais pequeno. Eram três horas da tarde. Uns mosquitos pequenos (miruins), parecendo os únicos bichos vivos que resistiam ao calor, metiam-se pelos olhos, pela boca, pelo nariz, como que procurando algum refrigério. As balas, pelo menos por uns instantes, tinham deixado de assobiar. A Madureira tornara-se inferno de confusão e de sofrimento, com todas as viaturas estacionadas no largo (terreiro) da antiga fazenda, em frente a vestígios de rica habitação de europeu, onde tudo foi barbaramente assassinado e não ficara pedra sobre pedra. De súbito, os helicópteros, vindos rentes às copas das árvores, estratégia para não serem atingidos, desciam. levantando uma nuvem de poeira, carregada de pedaços de capim e paus secos, poisando no terreno desmatado pelas máquinas da engenharia. As hélices mantiveram-se a rodar enquanto que os feridos, muitos eram metidos à pressa, em macas. Um adeus aos pilotos habituados a estas andanças, a desejarem-nos boa sorte, novamente a poeira e o vento a fazerem voar os quicos e a desaparecerem por cima das nossas cabeças em direcção ao Hospital Militar de Luanda. Os aparelhos, serenos, seguiam a sua rota, a pingarem mais sangue sobre as copas das árvores do Canacassala, Quicabo, Mabubas, Porto Quipire, Cacuaco – Luanda. Essas mesmas árvores que, por sua vez, abrigavam a gente miserável e faminta, com as lavras totalmente destruídas à nossa passagem. – (Coisas da guerra...). Depois começámos a debruçar-nos sobre os despojos de guerra, os mortos, a zona da verdade, três mortos! Esses não tinham direitos, não falavam, humildes ficavam para o fim, eram entregues ao Capelão, que também fazia, às vezes, de coveiro. Não tinham direito a embarcar na técnica das máquinas de transporte aéreo. Estavam embrulhados no poncho camuflado, que lhes serviu de agasalho do frio e da chuva e de manta nocturna e agora de sudário, que será, pelas gerações fora, o grito de vingança, contra todos aqueles que fabricaram esta guerra. Aguardavam, obedientes, transporte em coluna militar, para a vala comum do cemitério de Nambuangongo, a quinze quilómetros de distância. Não se preocupavam mais com os ataques de que seriam alvo a

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caminho da sua última morada. Nem mesmo temiam morrer pela segunda vez. Valentes e sem medo, nem tão pouco se apeariam das viaturas, a procurar abrigo nas bermas da picada. Cemitério de Nambuangongo. Missa campal de corpo presente. Três caixões de tábuas mal aplainadas – urnas para praças, na terminologia militar – onde luziam as cabeças de pregos martelados por cima do cetim preto da cobertura, perfilados em frente de uma grande cruz de troncos de árvores, feita pelos soldados, cobertos pela Bandeira Portuguesa, ondulando ao sol o verde clorofilizado dos futuros risonhos e o vermelho pulsátil das vitórias arrancadas a sangue no campo da Honra. Como o Capelão não tinha nem pão nem vinho, destruídos pela tempestade da véspera, fez à imitação do Père Teilhard de Chardin, uma celebração cósmica, a pacificação entre o céu e a terra, apresentando como matéria de sacrifício, as três infelizes criaturas; – três corpos rasgados pelas catanas e balas fratricidas, hóstias vivas agradáveis a Deus. Tinha-se entoado, naquela mata tão hostil, um «Glória a Deus nas alturas», não ao som da Harpa, mas sim à cadência do sibilar das balas que, de quando em vez, o interrompiam. Na celebração da palavra, o Capitão Magiollo quis fazer a primeira leitura. Ao falar de esperança na nossa ressurreição do último dia, as lágrimas caíram-lhe, copiosamente, como a uma criança, pelo rosto viril e austero de militar marcado pelo sofrimento, ateando a chama da sua dor a todos os soldados envolvidos na peleja daquela dura manhã. A Madureira deixava de ser, assim, símbolo de morte dos que ali passavam. Os perigos da estrada Zala – Nambuangongo, limitar-se-iam, agora, a flagelações esporádicas. De atalaia, durante um ano, em defesa dos outros, ficaria, generoso, o Capitão Magiollo de Gouveia com a sua companhia, não permitindo que houvesse mais mortos, qualquer que fosse a sua cor.

( POUCOS ANOS DEPOIS. – «Obrigado, querido e saudoso amigo Magiollo, pelo que fizeste por todos; ( portugueses, angolanos e por fim, timorenses ). Muitos te devem a vida. A tua tez morena escondia a grandeza e a brancura de uma alma eleita. Eu já sabia que eras um HOMEM. Afinal, mais que isso, foste um mártir, a favor do Povo Maubere, condenado ao genocídio, pelo crime de querer ser livre, - ( não querer receber o comunismo que Portugal lhe oferecia e impunha, como aconteceu nas restantes possessões ultramarinas ). Preferiste que as balas do fuzilamento rasgassem a tua carne, a cometer o crime de traição a um irmão que amou a mesma Pátria, venerou a mesma bandeira e rezou na mesma língua. Ele aprendeu de ti a lição de morrer a pronunciar baixinho: Avé Maria, Santa Maria, Avé Maria Santa Maria.

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Que tristeza. Nem uma palavra sobre ti, dos políticos portugueses e timorenses, - (eu sei, eras incómodo, eras demasiado sério). Tu que lá deixaste o teu sangue de mártir, em defesa duma raça pobre e escura».

- «»-«»«»-«»«»-«»«» -:=:- «»«»-«»«»-«»«»-«» - ...Um certo dia, já no fim das operações do AGRUPAMENTO RAIO, encontrava-me num dos quartos do Hotel LUENA na cidade do LUSO. Estendi-me na confortável cama e comecei a dormitar. Acabei por adormecer. Sonhava, via anos após anos rodarem na voragem dos tempos. Visionava ANGOLA – a grande ANGOLA independente e plurirracial – em pleno desenvolvimento e prosperidade, na absoluta posse de si, dos seus recursos e do seu futuro, governada pelas várias etnias. Via estradas modernas, rasgando-a em todas as direcções, caminho de ferro, penetrando em todos os recantos, largos canais, sulcando o seu sagrado solo, para o refrescar, irrigar e fertilizar. Colossais captações de águas, fazendo desentranhar a terra em produções de toda a espécie, florestas gigantescas, fornecendo ricas madeiras a uma população cosmopolita, o seu rico solo, perfurado em todas as direcções, e dele arrancado minérios valiosos, que iam disseminar a prosperidade e a grandeza por onde passavam. Grandes portos de mar, apetrechados com a mais moderna e perfeita maquinaria que o engenho humano tinha inventado, acolhendo no seu seio colossais transatlânticos, vindos de todos os cantos do mundo. Modernos e acolhedores aeroportos recolhiam, a todo o momento, grandes aeronaves de comércio e passageiros, ou pequenos aparelhos voadores de turistas, e, finalmente, grandes cidades, colossais centros populacionais, erguiam-se por toda a parte, prósperas, progressivas, civilizadas, dando guarida a uma população agitada, desenvolvida,

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enérgica, activa e empreendedora, que criava riqueza e a expandia a bem de toda a Humanidade. Todavia, naquela rica terra angolana, regada e fecundada pelo seu suor e sangue, ficaria, perdurando eternamente, o nome e a glória de um pequeno grande país – PORTUGAL. No lugar que foi cemitério de NAMBUANGONGO, erguia-se, agora, sobre escombros de ossadas de seus filhos, vítimas de uma guerra fratricida, a grande catedral dos DEMBOS, a perpetuar a sua memória. Mais tarde, bem acordado, evocava a maravilhosa obra dos nossos missionários, abençoada pela Virgem Negra, Nossa Senhora da Conceição de Muxima. Sem outra arma que não fosse a cruz e a bíblia, eles iam através das terras (regiões) mais inóspitas dos sertões, como hoje vão, à procura do nativo, imbuído de superstições feiticistas, para lhe revelar, na noite do seu ser, o luzeiro da alma, e elevá-lo à condição de homem. Muitas vezes foram pregados nessa mesma cruz de amor e de perdão que ofereciam, como estrela de alva, a quantos chafurdavam ainda na treva original. Mas não recuavam nunca! O sangue dos mártires fazia levedar a massa e novos apóstolos surgiam a render os que a morte levara. A sua vingança era fazer o bem a quem lhes queria mal! Sem os colonos portugueses e missionários, que seria da herança dos navegantes e guerreiros que descobriam e ocupavam as terras de além-mar? O seu esforço tornar-se-ia vão nesses continentes estranhos, onde tudo, desde o clima e as febres letais, até aos homens e animais, se lhes mostrava hostil. Muitos dos colonos em colaboração com os missionários, firmaram o que era oscilante, deram sopro de eternidade ao que parecia efémero. Com pertinácia incrível, com temeridade assombrosa, foram arrebatar os corações inimigos e deles fizeram corações irmãos. O Império Português, nascido à margem de qualquer imperativo físico, é bem o esforço do homem, do seu pensar e do seu querer, marcado com o selo vivo de suor e sangue, tornando-se uma obra multissecular, edificada na rocha inabalável de milhões de vontades, irmanadas pelo mesmo

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destino, e pela mesma fé de que os missionários foram portadores. É claro que, à secular colonização progressiva e pacífica dos primeiros tempos, fundada essencialmente no respeito pelos indígenas e no seu direito à vida como seres humanos, embora desfasados, no sentido de um maior desenvolvimento e perfeição, sucedeu, sob a pressão das circunstâncias, uma fase de ocupação militar efectiva dos territórios ultramarinos, como agora, aqui em Angola, desde Março de 1961. Às paixões desencadeadas, em dada altura, pelas grandes potências europeias, em torno do Continente negro, respondendo com o nosso direito sagrado que se baseia na prioridade de posse pelo descobrimento, mantida sem qualquer interrupção, durante cinco séculos, e sobretudo, na vontade expressa daqueles povos em unirem os seus destinos aos nossos, em cujo solo e populações marcamos, para sempre, o selo da nossa civilização. Ao contrário doutros impérios, construídos arbitrariamente, no fulgor das guerras, com elementos heterogéneos, amálgamas escabrosas de almas e de corpos inimigos, que passaram à história com o ódio implacável às metrópoles a que estiveram ligados até à sua autodeterminação. Colonos vindos do Portu gal Europeu (metrópole), Brasil, Açores e Madeira , vieram e a qui se fixaram para o resto da vida, especialmente a partir de 1850. Os seus descendentes já nasceram, em grande parte, em território angolano, onde quiseram viver e trabalhar e construir uma comunidade sem barreiras raciais. E assim, devido ao investimento do seu capital, foi possível entrar numa política de fomento, devidamente organizada e orientada, surgindo as estradas, os caminhos de ferro, os portos, as barragens, os aeroportos, as grandes construções de obras públicas, etc., caminhando A NGOLA , a passos largos , imparável, para um dos maiores centros de riqueza, (desenvolvimento industrial, comercial e humano) do Continente africano. Os franceses, ingleses, alemães, belgas, holandeses, italianos e outros, retiraram das suas Províncias Ultramarinas, todo o valor que, diziam lhe pertencer. O COLONO PORTUGUÊS , MAIS PURO

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E VIRTUOSO, (MAS TAMBÉM MAIS INGÉNUO), ACREDITA QUE O U LTRAMAR É A SUA TERRA POR DIREITO DE NASCEN ÇA E POR ISSO AQUI CONSTRUIU A SUA PÁTRIA EM COMUNIDADE DE COOPERAÇÃO COM OS INDÍGENAS.

Luanda, Julho de 1975

António A. D. Gama,

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