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    Svio Machado Cavalcante

    VALOR, RENDA E IMATERIALIDADE NOCAPITALISMO CONTEMPORNEO

    Svio Machado Cavalcante*

    DOSS

    I

    O capitalismo contemporneo marcado pela crescente conjuno da produo tradicional demercadorias fsicas com a criao de bens e servios intangveis que so permutados pelainformao, conhecimento ou apelo artstico ou cultural que possuem. Esse cenrio foi possibi-litado por novas tecnologias que modificam os processos de trabalho e promovemquestionamentos sobre a teoria do valor desenvolvida por Marx. O objetivo deste artigo problematizar essas questes a partir de intervenes de autores brasileiros que confluem paraas seguintes concluses: cincia e tecnologias so mobilizadas para a produo de mercadoriassem valor, consequentemente, a apropriao capitalista assume um carter cada vez maisrentista, e possvel analisar tal processo a partir de determinaes da teoria do valor de Marxque levam autonomizao da forma capital em relao a seus contedos. Assim, argumenta-se que, em vez de sua obsolescncia, o valor passa por uma transformao qualitativa e perma-nece como norma produtiva, ainda que sob uma forma desmedida.PALAVRAS-CHAVE: Valor. Renda. Trabalho imaterial. Capitalismo. Marxismo.

    INTRODUO

    Este artigo tem como objetivo principal or-ganizar, de forma crtica, um conjunto de inter-venes de autores brasileiros que se amparam,direta ou indiretamente, na crtica da economiapoltica de Marx com o intuito de analisar o car-ter da acumulao capitalista atual, que marcadapela imbricao da produo tradicional de mer-cadorias tangveis com novos valores de uso liga-dos informao e ao conhecimento.

    Dialogando com abordagens estrangeiras, odebate brasileiro apresenta uma avanada e impor-tante contribuio para o entendimento de como vigea lei do valor na atualidade. Propomo-nos a apresen-tar a tese de que h cada vez mais, no capitalismoatual, a produo de mercadorias sem valor. Aocontrrio das reaes comuns, que veem, nesse fato,uma recusa da teoria do valor de Marx, pretendemosmostrar que justamente o processo inverso que essatese denota, ou seja, a continuao do movimentodo capital em uma dimenso ainda mais intensa.

    Por essa razo, vamos ao encontro de certoconsenso que surge entre autores, que indicaremos aseguir, com leituras no necessariamente idnticasdos problemas: trata-se da afirmao, que tambmdefendemos em geral como adequada, segundo a qualo rentismo e a autonomizao so os traos maisimportantes do capitalismo contemporneo, o que ,alis, uma validao do sentido terico mais profun-do da anlise de Marx, isto , a prevalncia do capi-tal como forma sobre os contedos diversos da pro-duo ou, mais precisamente, sua tendncia de selivrar das barreiras a ele impostas.

    UM NOVO MODO PRODUO?

    Um dos aspectos mais importantes e anali-sados da reorganizao econmica e poltica docapitalismo presente desde as ltimas dcadas dosculo XX foi a gradual alterao de sua basetecnolgica. A constatao desse fenmeno noimplica atribuir s tecnologias qualquer papel au-tnomo no decorrer do processo. Porm, com odesenvolvimento da microeletrnica e de novas* Doutor em Sociologia pela Unicamp. [email protected]

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    tecnologias de informao e comunicao, no ape-nas as indstrias tradicionais sofreram profundasmodificaes em seus processos de produo, masum conjunto diverso de atividades, externo pro-duo material imediata, passou a ser cada vez maisdirecionado e comandado pela lgica da acumula-o capitalista. Prestao de servios, redes de co-municao, criao cultural e artstica, enfim, ati-vidades que, ao longo do sculo anterior, j vi-nham se integrando parcialmente aos circuitos devalorizao e emergiram como grande aposta docapital para novas fases de acumulao.

    Foram muitas as repercusses desse novocenrio na teoria econmica e social. A expressomais emblemtica foi a profuso de teses que bus-caram defender que as categorias e os conceitosformulados para uma sociedade industrial noseriam mais condizentes com as novas relaessociais existentes. Embora apresentem diferenas,as formulaes confluam, no geral, para uma ex-plicao que poderia ser resumida do seguintemodo: no mbito da produo imediatamente ma-terial, o trabalho vivo estaria perdendo, de formairreversvel, seu protagonismo. A cincia teria ocu-pado seu lugar e se transformado na principalfora produtiva. Por conseguinte, a tendncia se-ria de eliminao da classe trabalhadora tradicio-nal, j que, no limite, a nova base tecnolgica pres-cindiria do trabalho relativo transformao ma-terial das mercadorias. Porm, haja vista que osindivduos inegavelmente continuam a trabalhar basta lembrar que o assalariamento aumenta, aoinvs de diminuir, ao longo de todo esse proces-so , essas formulaes argumentam que a ativi-dade desempenhada fora da produo imediata-mente material guarda pouca ou nenhuma rela-o com a atividade de trabalho industrial tradici-onal, talvez apenas a mesma palavra trabalho usada, ento, para coisas distintas. Entre outrasrazes, surge da a j extensa preocupao com otrabalho imaterial. 1 Para autores prximos des-

    sas teses,2 o trabalho que tem por objetivo criarvalores de uso intangveis, relacionados infor-mao, ao conhecimento, cultura e, at mesmo,aos afetos e que apenas casualmente so trans-mitidos por suportes fsicos materiais no podeser explicado e analisado a partir de conceitos epadres da produo mercantil tradicional.

    Nesse contexto, a teoria marxista do valor edas classes sociais foi criticada e vista como ana-crnica e incapaz, segundo vrios autores Habermas (1987), Gorz (1982, 2007) e Offe (1989), de ter valor explicativo nessa nova condio.No nos propomos, neste texto, a sumariar taisteses ou coment-las criticamente.3 Interessa-nosproblematizar como certas contribuies que par-tem de Marx, a despeito de suas diferenas ou deeventuais crticas a marxismos, nos permitemdesenvolver o referencial materialista a partir daconstatao de que essas transformaes seja naproduo material imediata, seja naquilo que seconvencionou designar por trabalho imaterial implicam, sim, a necessidade de ampliao e de-senvolvimento das anlises originais de Marx, masque, ao contrrio de representar sua debilidade,indicam a fora e a vitalidade da forma como oautor apreendeu o movimento essencialmente con-traditrio do capital.

    MERCADORIA, VALOR E INFORMAO

    Vemos, ento, que o questionamento lana-do teoria marxista se fundamenta, basicamente,nessas duas avaliaes: a) a produo materialimediata se desenvolve a partir da cincia e compouca necessidade de trabalho vivo para a repro-

    1 O termo trabalho imaterial j foi diversas vezes questio-nado, com bons argumentos, principalmente por levar aimprecises. A atividade de trabalho, seja ela qual for,nunca imaterial, pois apenas os produtos de certasatividades que podem ter um carter intangvel, ou seja,

    valores de uso informacionais ou culturais e artsticosque podem ou no ser veiculados em suportes fsicos etangveis. Manteremos a expresso, neste texto, para finsdo debate, mas sem abandonar essa observao crtica.

    2 As teorias sobre o imaterial ganharam destaque a partirde obras como Lazzarato e Negri (2001), Hardt e Negri(2000), Gorz (2005), etc. Ao nos referirmos aos teri-cos do imaterial, no pretendemos abordar todos oselementos de suas anlises, apenas comentar critica-mente a forma pela qual entendem a obsolescncia da leido valor na atualidade.

    3 Algo feito, dentre outros, por Amorim (2006, 2009) ePrado (2005).

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    duo de mercadorias, e b) o trabalho mais signifi-cativo e importante ainda que no numericamen-te, mas estruturalmente o que est distante datransformao material, aquele que produz bensintangveis como informao e conhecimento.

    Neste texto, iremos tratar de forma mais di-reta a segunda avaliao, referente produoimaterial, ainda que as teses estejam, evidentemente,relacionadas. Com relao primeira, sobre o ca-rter suprfluo do trabalho vivo na produo in-dustrial tradicional, seria importante, apenas, co-locar em dvida sua verificao emprica. Estudosde caso da sociologia do trabalho, por exemplo,tm constatado a insero cada vez mais complexade processos automatizados, mas no autorizam aconcluso de que o trabalho vivo esteja em vias deser eliminado pelos aparatos tcnico-cientficos, oumesmo se tornado, em todos os setores, somenteum vigia ou controlador de processos autnomos.4

    Como j foi apontado por outros autores,ao identificarem o carter inegavelmente dinmicoe transformador das tecnologias, essas avaliaestendem, contudo, a supervalorizar seu papel naproduo. possvel considerar que essa viso dedissoluo do proletariado padea de distoresprovocadas pelo recuo, em boa parte do mundo,das lutas polticas dessa classe, haja vista o con-texto de menor mobilizao e visibilidade sociaisdesde a ofensiva neoliberal processo, por certo,muito desigual em cada pas e continente. A reorga-nizao capitalista da produo logrou desconstruirinmeros coletivos de trabalho, mas sua fragmenta-o poltica e jurdica (em razo de novos formatosde contratos de trabalho) no implica desapareci-mento, mas uma nova condio proletria.

    Por fim, se correto que pases centrais te-nham presenciado uma diminuio relativa e abso-luta de operrios fabris o que, alis, no novida-de, j que, nem na poca de Marx, eram a maioria no razovel ignorar os amplos laos que essesmesmos pases estabelecem com outras regies doplaneta em que, por meio das terceirizaes e dosdeslocamentos, h um crescimento de postos de

    trabalho fabris tradicionais. Tal produo reco-nhecidamente fundamentada na intensidade deexplorao do trabalho vivo e apresenta, at mes-mo, condies de trabalho condizentes com osprimrdios da subsuno formal: aumento abusivodas jornadas, condies insalubres e presena ex-plcita da coero fsica.

    Deixando de lado, portanto, um maior apro-fundamento nessa questo o que poderamos cha-mar de um vis eurocntrico que obnubila a dimen-so emprica o fato que o desenvolvimento denovas foras produtivas aponta, realmente, parauma transformao qualitativa dos processos detrabalho. Se, mesmo para Marx, o objetivo no erafotografar uma realidade emprica, mas sim apreen-der as determinaes do movimento do capital, tor-na-se imprescindvel entender as consequncias doprocesso em que a forma capitalista se prolonga paraesferas externas produo material imediata.

    Esse processo foi visto por muitos comouma negao (no no sentido dialtico) da teoriado valor-trabalho, ou seja, na sua simplesobsolescncia. Seria possvel, entretanto, tomar esseprocesso como o seu desenvolvimento num est-gio qualitativamente superior (negao dialtica)?Respondemos a essa questo de maneira positiva,mas usando uma problemtica diferente daquelados tericos do imaterial. Para aceder a esse enten-dimento, necessrio ter clareza do que real-mente distinto na produo dita imaterial: o fatode que parte expressiva dos bens gerados so, arigor, mercadorias sem valor. Ainda que no sejauma novidade em relao aos limites da teoriado valor, essa constatao vem sendo discutida nostermos da nova produo de informao e conhe-cimento por inmeros autores brasileiros desdeos anos de 1990, como Dantas (2003, 2011, 2012),Bolao (2000, 2002), Herscovici (2004, 2007),Teixeira e Rotta (2012), Prado (2005), Paulani (2012),Haddad (1998) e Lopes (2008).

    No seria propriamente uma novidade, poisessa assertiva nada mais do que um entendi-mento especfico do valor teorizado por Marx. Tra-dicionalmente, afirma-se que as mercadorias tmvalor porque elas materializam tempo de trabalho

    4 Em relao ao caso brasileiro, ver, por exemplo, as pes-quisas reunidas por Antunes (2006, 2013).

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    socialmente necessrio para sua produo. Masa produo aqui referida no a criao do mode-lo original, nico, aquele prottipo que ir ser abase para as demais cpias. O valor o tempo so-cialmente necessrio de trabalho para a reprodu-o das mercadorias. O modelo original apenasum valor de uso, que pode ter levado dias, mesesou anos para a sua criao ou mesmo apenasalguns minutos relativos a um insight por algumprojetista. O que realmente importa, em termos daproduo capitalista, quanto tempo de trabalhovivo ser necessrio para industrialmente repro-duzir aquele objeto.5

    Marx, alis, fez essa preciso no Livro III deO capital. Ao tecer comentrios crticos obra deA. Mller, marcada pelo que seriam confuses so-bre a relao entre capital e juros, Marx afirma que:

    Abstraindo todas as perturbaes casuais, nocurso do processo de reproduo, grande partedo capital existente mais ou menos desvalori-zada, porque o valor das mercadorias determi-nado no pelo tempo de trabalho que sua produ-o custou originalmente, mas pelo tempo de tra-balho que custa sua reproduo, e este diminuiconstantemente em consequncia do desenvol-vimento da fora produtiva social do trabalho.Num nvel mais alto de desenvolvimento da pro-dutividade social, todo capital existente apare-ce, portanto, como o resultado no de um longoprocesso de poupana do capital, mas como re-sultado de um perodo de reproduo relativa-mente curto (Marx, 1985-1986, p. 298).6

    Tomemos, ento, o caso da chamada pro-duo imaterial, como um software ou uma msi-ca. Se o produto que satisfaz um desejo do est-mago ou da fantasia levou meses para ser concebi-do, mas sua reproduo em milhares de outrascpias pode ser feita em poucos instantes, tal situ-ao um problema, antes de tudo, para o prpriocapitalista (ou qualquer capital personificado). Asoluo criada para que haja uma forma de lucro a existncia de coeres jurdico-polticas que pro-bam legalmente aquilo que qualquer pessoa podeter as condies materiais de fazer, ou seja, repro-duzir livremente cpias do produto. Derivam des-sa necessidade mecanismos de obteno de rendacomo a cobrana de licenas de uso, ou o Direitode Propriedade Intelectual (DPI) e as patentes.

    A especificidade da produo de informa-o e de novos conhecimentos reside no fato deque os bens originados apresentam trs caracters-ticas que dificultam a apropriao normal de valore renda por empresas capitalistas. Como resumeHerscovici (2007), do ponto de vista das trocaseconmicas, esses so produtos caracterizados por:no exclusividade (so saberes abertos consumi-dos pelo conjunto de usurios e em relao aosquais o produtor no pode controlar plenamenteas modalidades de apropriao), no rivalidade (oconsumo no esgota o produto e no inviabiliza ouso por outros) e carter cumulativo (cria rendi-mentos crescentes na medida em que um conheci-mento base para o desenvolvimento de outro).

    Esse vis particular da produo ditaimaterial fonte de preocupao antiga da econo-mia de viso neoclssica. Dantas (2012) salienta queos contornos do problema j esto bastante clarosna dcada de 1960, com o emblemtico debate entreJ. Arrow e H. Demsetz. Ao projetar como funciona-ria um mercado de informao, Arrow constata di-versos obstculos ao seu funcionamento timo,seja pelo vis do produtor (desestimulado, entreoutras coisas, pela dificuldade e riscos ao ter deacumular capital em bens com essas caractersti-cas), seja pelo vis do comprador (que no sabe aocerto a efetiva utilidade da informao antes depossu-la). Dantas ressalta que a concluso de

    5 Segundo Dantas (2011, p. 3), A mercadoria, pois, por suadefinio, no pode ser uma nica pea: ela h de serexatamente a reproduo de um modelo original tpico,em centenas ou milhares de unidades iguais ou similares.O modelo expressa o valor de uso. As milhares de peasidnticas, de uma dada forma material, com suas propri-edades fsico-qumicas, contm o valor de troca, no im-porta se a utilidade seja esttica ou instrumental.

    6 Ao fim do captulo, Marx (1985-1986, p.299) avananesse problema, com o intuito de criticar a concepofetichista que percebe, no capital portador de juros, umafora autnoma de produo de valor, como se no fossenecessrio, em primeiro lugar, a relao desse capital como trabalho vivo: [...] o produto do trabalho passado, oprprio trabalho passado, em si e para si, est prenhe deuma poro de mais-trabalho vivo, presente ou futuro.Sabe-se, entretanto, que, na realidade, a conservao, e,nessa medida, a reproduo do valor dos produtos detrabalho passado, apenas o resultado de seu contatocom o trabalho vivo; e segundo: que o comando dosprodutos de trabalho passado sobre o mais-trabalho vivodura exatamente apenas enquanto durar a relao-capi-tal, a relao social determinada em que o trabalho pas-sado confronta de maneira autnoma e avassaladora otrabalho vivo (itlico do autor).

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    Arrow, haja vista sua orientao liberal, no deixade ser um paradoxo: as leis sobre patentes seriamincrivelmente complexas e inibiriam a eficinciainventiva da sociedade como um todo, fazendocom que o Estado ou entidades no lucrativas de-vessem liderar o processo de criao da informa-o com vistas maximizao da oferta.

    A resposta de Demsetz foi justamente ten-tar fornecer uma soluo para a complexidadedas leis de patentes, como, por exemplo, por meiode contratos de copropriedade. Mas seu objetivoera bastante claro: se a informao tem um carterindivisvel e de fcil reproduo, dever-se-ia, jus-tamente, criar meios artificiais, importante res-saltar para torn-la escassa. Como no h manei-ras de alterar suas caractersticas objetivas, a solu-o seria investir pesadamente em meiosinstitucionais que pudessem garantir legalmenteseu estatuto mercantil normal. O roubo de in-formao no deveria ser distinto do roubo deum carro; tratar-se-ia apenas de impor puniesconsistentes e eficazes:

    A apropriao , em larga medida, uma questode arranjos legais e da imposio desses arranjospor meios privados ou pblicos. Pode-se aumen-tar o grau de apropriao privada do conhecimen-to, elevando-se os castigos por violaes de paten-tes e incrementando os recursos destinados vigi-lncia contra tais violaes [...] O problema doroubo to geral quanto o do azar moral e, se bempossam existir diferenas no custo para a reduodos roubos de vrios tipos de ativos, no existediferena em princpio [...] Sempre se pode em-pregar um conjunto mais duro de penas paraincrementar a apropriao do conhecimento(Desemtz, 1977 apud Dantas, 2012, p. 122).

    Nas intervenes de autores que se ampa-ram na teoria do valor, essas mesmas caractersti-cas especficas da produo imaterial exigiram umesforo para compreender seu sentido a partir domovimento e das determinaes da lgica de pro-duo e acumulao de capital.

    O ponto de partida, como j indicamos, foiperceber que, a rigor, o trabalho socialmente ne-cessrio que cria valor (e mais-valia) aquele refe-rente reproduo das mercadorias, e no pro-duo do modelo original. O custo de concep-

    o de uma mercadoria no se confunde com ocusto, medido em trabalho social, de reproduzi-la industrialmente (Haddad, 1998, p. 24). O re-sultado da pesquisa e do desenvolvimento se in-corpora, evidentemente, s mercadorias, mas nose trata da produo propriamente dita. Paulani(2012, p. 16), na mesma linha, argumenta que, em-bora indispensvel, o conhecimento nunca foi umavarivel direta da produo de valor. O conheci-mento se coloca como fator indireto de determina-o do capital constante, sendo que o valor relati-vo produo de conhecimento enquanto tal, po-rm, no aparece em nenhum lugar, a no ser indi-retamente no valor aumentado da mo de obra maisqualificada (p. 16). Da Marx afirmar que o valordas mercadorias o tempo de trabalho socialmentenecessrio sua reproduo. Segundo a autora,

    [...] assim, o valor de uma mquina no contmnenhum elemento relativo ao custo do saber queengendrou sua inveno, mas to-somente o cus-to das matrias-primas e outros insumos corren-tes, mo de obra e depreciao de capital fixoenvolvidos em sua fabricao, uma vez j inven-tada. De mais a mais, a crescente incorporaodo conhecimento produo ocorre sempre comvistas obteno de uma mais valia extra(superlucro), o que passa pela reduo do valordas mercadorias, de modo que seria uma contra-dio em termos se esse valor aparecesse direta-mente (Paulani, 2012, p.16).

    Desse modo, a produo de conhecimento edas mercadorias-conhecimento, segundo Teixeira eRotta (2012), seriam intrinsicamente sem valor. evidente que, em muitos casos, so necessrios su-portes fsicos para transport-las ou armazen-las(como os dispositivos miditicos de armazenamento,ou mesmo os recipientes de remdios), mas elesapresentam um valor extremamente reduzido dereproduo. Em outras palavras, o contedoinformacional presente no suporte material neces-sita de grandes quantidades de gastos com pes-quisa e desenvolvimento, mas, uma vez concebi-dos, seu valor se perde. Marx (1980) aborda oproblema novamente ao considerar que o produ-to do trabalho mental a cincia sempre estbem abaixo do seu valor, porque o tempo de traba-lho necessrio para reproduzi-lo no tem nenhu-

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    ma relao com o tempo de trabalho requerido parasua produo original.

    RENDAS E PRODUO CAPITALISTA

    Se as empresas focadas nesses setores nolucram por se apropriar do valor daquilo que dire-tamente produzem, de que modo, ento, elas en-contram fontes de rendimento, por sinal bastanteeficientes nos tempos atuais? No geral, os autoresacima mencionados convergem no sentido de in-dicar que se renovam, no capitalismo contempo-rneo, os ganhos obtidos por rendas vinculadas mera propriedade. Tal processo se verifica especi-almente pelo intenso processo de privatizao debens pblicos de informao e conhecimento, ocor-rido desde as ltimas dcadas. As patentes e osDPIs tornam-se os cercamentos da fase atual docapitalismo. Se, em suas origens, tais rendas co-mearam a ser obtidas pelo cercamento das terrascomunais, passa-se intensificao desse proces-so ao ser agora dirigido aos bens universais dainformao e do conhecimento. Tal sentido foiapontado na tese de David Harvey (2004), quedemonstra ser o processo de acumulao por es-poliao no apenas algo restrito aos primrdiosdo modo de produo capitalista, mas um proces-so contnuo que permanece solidamente mesmocom os avanos tecnolgicos.

    Entretanto, os termos utilizados para desig-nar essas rendas ainda so diversos, como, por exem-plo, as noes de rendas do saber, rendas de mono-plio diretas e indiretas, rendas informacionais, ren-da-conhecimento ou mesmo novas formas de ju-ros. At o momento, nos parece que o esforo maisabrangente de analisar esses rendimentos a partirda teoria da renda de Marx foi desenvolvido notrabalho de Paulani (2012), do qual aqui apenassintetizamos suas indicaes e concluses gerais.

    A autora fornece, de incio, uma reconstru-o dos diferentes casos de rendimento discuti-dos por Marx, o que faz ao identificar sete situa-es possveis. Posteriormente, discute como es-ses casos, ainda que estejam em sua maior parte

    vinculados questo da renda fundiria, podemser teis para compreender fenmenos prpriosda produo contempornea.

    As formas de rendimento apresentadas porMarx podem ser divididas, como demonstraPaulani, em dois grandes grupos.7 No primeirogrupo, esto os rendimentos cuja origem est dire-tamente ligada ao processo de produo em si ecuja magnitude varia de acordo com a forma deconduo desse processo: (A) lucro/salrio e (B)sobrelucro. O segundo grupo engloba as rendaspropriamente ditas, isto , os rendimentos obti-dos em razo da mera propriedade, sendo que suamagnitude depende de variveis que, em geral, soexternas ao processo de produo [renda diferen-cial de dois tipos (C e D), renda absoluta (E), ren-das de monoplio (F) e o juro (G)].

    Os dois casos, portanto, situam-se no pri-meiro grupo. O primeiro (A) a situao bsica queserve de modelo terico a todos os demais proces-sos. Trata-se da primeira grande diviso do valorentre salrio (valor necessrio para reproduzir a for-a de trabalho) e lucro (trabalho excedente que tomaa forma de mais-valia e aparece ao fim como lucro).No segundo caso (B), por presses objetivas da con-corrncia capitalista, as quais obrigam as unidadesprodutivas a aumentar o tempo de trabalho exce-dente para alm do tempo socialmente determina-do, pode haver um lucro extra (sobrelucro) por cer-tas empresas que consigam, por meio de inovaesgerenciais, elevar a produtividade para alm do preode produo socialmente determinado.

    No segundo grupo, os rendimentos apre-sentam um carter decisivamente distinto. Aindaque, evidentemente, dependam do valor geradopelo processo de produo propriamente dito, suasrendas gravitam externamente produo, em ra-zo de possurem algum ttulo de propriedade.Aqui se encontram as diferentes formas de renda(C, D, E e F).87 A autora acompanha, em parte, a descrio feita por

    David Harvey (2007).8 A elas se somam os juros e os dividendos. O juro

    renda que o capital propicia ao seu detentor pelo meroefeito da propriedade. O dividendo a renda dos quetm como propriedade aes de empresas. Tal como ojuro, trata-se de um rendimento que provm do lucro,mas que tambm externo produo.

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    Os casos C e D dizem respeito s rendasdiferenciais. O caso C a situao de renda dife-rencial produzida naturalmente, ou seja, casosem que ser proprietrio de uma determinada por-o de terra que tenha fertilidade maior em compa-rao s demais faz com que se obtenha uma ren-da superior ao lucro normal auferido pela ex-plorao das demais terras. Por ser um recurso li-mitado e monopolizvel uma faixa de terra comfertilidade naturalmente superior seu dono ob-tm uma renda fundiria. A esse caso, original-mente apontado por D. Ricardo, Marx ir acres-centar a existncia de outra renda fundiria. Trata-se da situao D, em que a diferena de produtivi-dade obtida artificialmente, pela aplicao demontantes diferenciados de capital em faixas deterra de igual fertilidade. Seguindo Harvey, Paulaniressalta que esses dois casos de renda diferencial,na prtica, acabam por se mesclar, servindo um delimite ao outro.

    Ainda na discusso sobre as determinaesda renda fundiria, Marx se prope a pensar numrendimento da propriedade da terra (caso E) que no causado pelas diferenas acima expostas, ou seja,nem por diferenciais naturais, nem por diferenasde aplicao de capital. A partir da contraposiocrtica ao esquema de Ricardo, Marx demonstraque mesmo a terra que considerada, em determi-nado momento, como de pior qualidade pode ge-rar renda, pois, ao ser monopolizada mesmo queningum a utilize, por esperar no futuro condi-es econmicas melhores , ela se ergue comobarreira ou obstculo ao capital. Por fim, qual-quer produo agrcola ali feita acaba por receberum preo de monoplio, que existe apenas emdecorrncia do instituto jurdico da propriedadeprivada da terra. Essa situao seria uma rendaabsoluta, que permite uma absoro de exceden-tes produzidos em outras esferas.

    Embora um bem agrcola possa receber umpreo de monoplio, o caso verdadeiro de ren-da de monoplio (F) distinto. Segundo Marx, asformas normais de renda so as diferenciais e aabsoluta, pois, alm delas, apenas existe um [...]autntico preo de monoplio que no determi-

    nado nem pelo preo de produo, nem pelo va-lor das mercadorias, mas pela necessidade e pelacapacidade de pagar dos compradores (1985-1986,p. 229-230). Paulani usa, como exemplo, a produ-o de vinho, em que um produtor especfico podese beneficiar da qualidade excepcional de sua uva.Quando isso ocorre, o preo no tem relao dedeterminao com o tempo de trabalho, social ouindividualmente, apenas com a disposio de pes-soas em pagar por um bem visto como escasso.Formalmente, v-se aqui um resultado semelhanteao da renda fundiria absoluta, mas h determina-es distintas. Na renda absoluta, a prpria ren-da que gera o preo de monoplio, enquanto, naoutra, ocorre o inverso, isto , na renda de mono-plio o preo de monoplio que gera a renda;tal preciso importante na medida em que desta-ca, no segundo caso, que, ao contrrio do primei-ro, no h, em paralelo, uma imposio do tempode trabalho socialmente necessrio, porque se tra-ta de uma mercadoria singular e nica, de bensexcepcionais que so vendidos por aquilo quedeterminados agentes podem e querem pagar.

    O CARTER RENTISTA DO CAPITALISMOCONTEMPORNEO

    Se o objetivo pensar a produo atual, quala pertinncia da descrio das rendas feita porMarx? possvel entender a produo imaterial eos bens intangveis nesses termos?

    Em primeiro lugar, fundamental notar queo trao mais caracterstico das ltimas dcadas docapitalismo a reatualizao do vis rentista. Essemovimento sentido desde as reformas polticas eeconmicas neoliberais, com profundas repercus-ses nas empresas de todo os setores, que cadavez mais subordinam a produo, em geral, finana. O rentismo torna-se central no processode acumulao, e no um mero desvio ou distoro.9

    Na esteira de Harvey, Paulani demonstra

    9 Ou seja, o problema o capital com suas tendncias neces-srias, e no a existncia de indivduos rentistas que sabo-tam um sistema que poderia funcionar normalmente.

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    como as rendas diferenciais (C e D) reaparecem nabusca incessante de capitais que exploram e mono-polizam recursos naturais esgotveis, principalmen-te aqueles contidos nos subsolos, como minrios epetrleo. Tais rendas tambm surgem nas questesrelativas especulao imobiliria, que tendem afazer da terra um espao livre para circulao decapital fictcio, ou seja, fazer com que o preo daterra dev[a] refletir a permanente busca do capitalpor rendas futuras aumentadas (p. 14). Bolhas ecrises so, portanto, riscos iminentes dessa lgica.

    Mas informao e conhecimento seguiriama lgica especfica de qual renda? As incursesnesse debate foram diversas. Prado (2006), porexemplo, argumenta que, por serem mercadoriasque no se vendem, mas so apenas licenciadasou emprestadas, haveria uma lgica semelhante do capital portador de juro, j que esse no seresume forma dinheiro. Empresas de tecnologiafuncionariam, ento, como instituies financeirasque vivem de juros cobrados dos usurios comooutras empresas e consumidores comuns. Dantas(2011) e Teixeira e Rotta (2012) seguem um cami-nho distinto e identificam, na produo de merca-dorias-informao ou mercadorias-conhecimento,a lgica das rendas diferenciais, ainda que existamdiferenas entre a monopolizao do conhecimen-to e da terra. Dantas ressalta o fato de que a criaode conhecimento ainda tem como fonte uma for-ma de trabalho. Teixeira e Rotta, enfatizando o ca-rter sem valor dessas mercadorias, consideramque a lgica similar renda fundiria, e do onome de renda-conhecimento ao rendimento deempresas que privatizam ideias e mercantilizamknow-how, informao e instrues. Herscovici(2007, p. 408) aponta para a existncia de rendasde monoplio obtidas por capitais intangveis, poisesse capital no mais concebido pelo o que elenormalmente pode gerar, [...] mas a partir dasrendas de monoplio diretas e indiretas que osDPI permitem se apropriar, num ambiente que secaracteriza por uma incerteza forte.

    Pode-se concluir desses apontamentos quea lgica econmica capitalista atual assume um ca-rter essencialmente rentista e, por conseguinte,

    especulativo. Paulani, contudo, luz da sistemati-zao acima realizada das rendas discutidas porMarx, mostra a importncia de notar situaes dis-tintas dos bens intangveis.

    A questo das mercadorias que so vendi-das por um valor de uso ligado ao conhecimento e informao nelas veiculados seria um caso pr-prio de renda absoluta discutida por Marx (E).Vejamos a venda de softwares. Esses produtos re-cebem a forma mercadoria tm um preo e o aces-so a ela depende desse pagamento mas seucontedo sem valor, pois, como foi acima discuti-do, o tempo de trabalho para a sua reproduo praticamente nulo.10 A analogia, desse modo, comuma renda fundiria especfica, que se constitui atu-almente como renda do saber. Haveria, contudo,duas diferenas. Uma a de que a produo desoftwares caracteriza-se pela abundncia, e no, comoa terra, pela escassez. A segunda que, na ausnciade produo de valor interna ao prprio setor, comono caso da produo agrcola, as rendas so extra-das da criao de valor de outros setores:

    Assim, apesar de aparecer formalmente comolucro, o ganho das empresas que produzem essetipo de bem de fato constitudo por renda, umarenda do saber, que se estabelece simplesmenteporque algum se apresenta como dono do co-nhecimento e, enquanto tal, exige uma renda paraliber-lo para os demais. Trata-se, portanto, deuma forma moderna de renda absoluta (Paulani,2012, p.17).

    Outra situao emblemtica da atualidade aquela que se refere aos bens intangveis necessa-riamente atrelados aos tradicionais bens tangveis,isto , a gerao de renda unicamente em razo deuma marca presente nas mercadorias. Um tnis,uma camiseta ou um relgio de empresas distintaspodem ter as mesmas especificaes e caractersti-cas, mas a constituio de determinada marca, como

    10 importante destacar que h controvrsias at mesmosobre o fato de a forma-mercadoria poder ou no absorverqualquer contedo. Para Herscovici (2010), a extenso dalgica do mercado no implica reproduo da forma-merca-doria, pois essa apenas se vincularia produo econmica,que depende de quantidades de trabalho social. O autor,contudo, levanta a hiptese de que o capitalismo pode sedesenvolver fora da forma mercadoria. Problematizamos essaquesto no interior das controvrsias sobre o trabalho pro-dutivo (Cavalcante, 2012, p.100 ss.).

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    um bem intangvel, cria um fascnio nos consumi-dores, acabando por se constituir numa espciede ativo da empresa, o que, por sua vez, gera ren-das extremamente superiores aos custos de repro-duo das mercadorias. Esse poder da marca, des-crito e analisado historicamente por N. Klein(2006), engendra novas rendas de monoplio (F).Ora, assim estabelecida, a marca singulariza a mer-cadoria, faz com que o cliente consuma, antes doobjeto em si, a prpria marca, que no tem relaoalguma com o tempo de trabalho socialmente ne-cessrio para a reproduo das mercadorias. Jus-tamente por isso, o capital se sente vontade paraterceirizar a explorao.

    Independentemente do tipo de rendimento diferencial, absoluto ou de monoplio importanotar que, em razo de uma lgica essencialmenterentista, no h, dessa maneira, contradio entrea criao contempornea de ativos intangveis empases centrais e a superexplorao, como j nosreferimos, da fora de trabalho nas regies perifri-cas que os reproduzem. Exemplo bastante ntidoque poderamos citar a relao entre as empresascomo Apple e Foxconn: esta mobiliza um exrcitode trabalho vivo que, submetido a padres prati-camente pr-industriais de relaes de trabalho,produz valor ao reproduzir materialmente os su-portes fsicos dos programas criados por aquela,que, por sua vez, ao deter o monoplio da marca edas patentes, suga, de forma rentista, o valor gera-do por assalariados que, com ela, no possuemnenhuma relao jurdica. A sntese de Paulaniexpressa esse processo:

    [...] j que os principais ativos das empresas soimagens, marcas e patentes, parece que o capitalterceirizou a explorao, delegou a outrem o tra-balho sujo de comandar a expropriao, deixoupara l o lucro e instalou-se confortavelmentenos espaos sociais que lhe garantem ganhos.Seus rendimentos agora no tm nada que vercom a atividade de explorar e ser explorado, elesso direitos que a propriedade lhe confere.Numa espcie de fetichismo ao quadrado, a acu-mulao parece perseguir um roteiro de mundovirtual, onde a explorao imaginria. Frente aisso, no h [de se] espantar que o fim do traba-lho tenha sido decretado (Paulani, 2012, p. 19).

    UM CONTRAPONTO NECESSRIO

    O leitor familiarizado com os termos do de-bate dos tericos do imaterial como Negri,Lazzarato, Gorz, entre outros ter notado certasaproximaes entre o tratamento desses autores ea exposio at aqui desenvolvida da teoria do valor-trabalho diante dos fenmenos contemporneos.Esses autores abordam elementos importantes daproduo contempornea. Contudo, o propsito aqui mostrar que as determinaes da lgica docapital esto posta em nveis distintos. Vejamosessa questo mais de perto a partir da crtica deAmorim (2012) a esses tericos.

    Segundo Amorim, esse conjunto de autoresreduz a teoria do valor de Marx a uma mera dimen-so quantitativista do valor, o que fazem em detri-mento da dimenso qualitativa da lgica analisadapor Marx. A lei do valor estaria em declnio porque otrabalho imaterial no passvel de ser reduzido emmedidas de tempo de trabalho abstrato. Como a pro-duo dependeria estruturalmente dessas atividades,haveria, consequentemente, uma nova forma de ge-rao de valor comunitria que ultrapassa a esfera daproduo material e envolve todos que compartilham,usam e desenvolvem os servios, caracterizando umaimbricao entre produo e consumo.

    Na perspectiva desses autores, o processo compreendido, ainda segundo Amorim (2012, p.47), como uma tendncia autofgica do capital,pois ele teria gerado, contra sua vontade, o fim dotempo de trabalho como medida de valorizao,constituindo, portanto, seu prprio fim. Inadver-tidamente, o capital teria engendrado uma econo-mia j de base comunista, em que a socializaoda produo atinge patamares superiores ao alaruma multido como agente produtor-consumidorde sua prpria existncia. A luta poltica revolucio-nria ganharia uma nova feio, e os agentescontestatrios seriam constitudos de uma miradede subjetividades que passaria a questionar as amar-ras ou o invlucro capitalista, que consistiriam ape-nas em um obstculo jurdico. Para Amorim, taisteorias apenas reeditam o vis economicista do mar-xismo, marcado pelo primado do desenvolvimento

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    das foras produtivas como motor da histria.Precisamos, portanto, indagar: ao tambm

    identificar a produo de mercadorias sem valor eapontar o carter rentista do desenvolvimento devrios bens intangveis, como informao e conhe-cimento, estaramos dentro do mesmo esquemaeconomicista? Nossa resposta negativa e, a se-guir, so apresentadas trs ordens de justificativasque consideramos fundamentais para compreen-so dessa questo.

    Sobre o carter da teoria do valor

    Um dos argumentos mais utilizados pelostericos do imaterial o de que o trabalhoimaterial representa o fim da lei do valor em razode suas caractersticas necessariamente incomen-surveis, ou seja, como se ele fosse irredutvel abstrao por medida de tempo de trabalho. Comoindicamos anteriormente, essa a tese complemen-tar primeira, bastante questionvel, segundo aqual o trabalho material perde importncia estru-tural na produo.

    Prado (2005) identifica a origem do equvo-co terico ao mostrar que, ao se proceder dessaforma, misturam-se as determinaes do trabalhoconcreto que sempre uma juno de trabalhomanual com trabalho intelectual com as caracte-rsticas dos bens ou servios produzidos, que po-dem ser ou no fisicamente tangveis. Trata-se detrabalho concreto de diferentes espcies, que so,evidentemente, incomensurveis, mas o valor de-termina-se pela dimenso abstrata do trabalho.

    Nesse sentido, a tese de que seria imposs-vel reduzir o trabalho concreto a trabalho abstrato,principalmente em atividades distantes da produ-o material imediata, to antiga quanto a pr-pria obra de Marx. Numa epgrafe a um captulode seu livro sobre a questo da classe mdia assa-lariada, D. Lockwood (1962, p. 8) recupera a crti-ca de C. Booth, de 1890: [...] a energia humana detrabalho, comum e indiferenciada, sobre a qual K.Marx baseia sua gigantesca falcia, no existe emnenhum lugar deste planeta; mas, em minha opi-

    nio, se poderia encontrar menos ainda entre ostrabalhadores de escritrio.

    importante que esse ponto seja bem deli-neado. Dentre vrias questes, isso indica que osentido da teoria do valor de Marx encontra-se numadimenso mais profunda, um objeto terico de fato,que teoriza aspectos essenciais da complexidade evariedade de objetos empricos. E a tendncia daproduo que o preocupa, ou seja, no se trata deidentificar, no plano emprico, se existe ou no umtrabalho reduzido a um simples dispndio de ener-gia em determinada quantidade de horas, mas ofato de que a produo capitalista desenvolve for-as produtivas reduzindo o teor qualitativo e dife-renciado dos trabalhos necessrios, ou seja, dimi-nuindo drasticamente justamente aquilo que dife-rencia as diversas atividades concretas.

    Dito de outro modo, no encontrar empiri-camente o trabalho indiferenciado em qualqueroficina, fbrica ou escritrio no implica debilida-de ou fragilidade da teoria de Marx.11 Mantida essarelao social de produo, a forma capitalista do-mina os mais diversos contedos, sempre redu-zindo num grau maior ou menor, mas nuncaaumentando, no longo prazo a autonomia e acomplexidade do trabalho vivo. Importante perce-ber, nesse sentido, que muito do debate sobre oprocesso de qualificao e desqualificao da forade trabalho encontra-se num nvel terico distintoda problemtica de Marx em O capital.12

    Em nossa viso, os tericos do imaterialdiagnosticam uma situao real, mas por razesequivocadas. Ao atentarem para uma produo no11 Da ser ainda fundamental a explicao de Althusser

    (1980) sobre a originalidade de O Capital. Trata-se deuma obra cujo objeto terico no o capitalismo daInglaterra do sculo XIX, ou o de qualquer outra forma-o social em algum contexto especfico, mas sim o modode produo capitalista. O carter concreto e materialistada teoria no incompatvel com essa constatao, pelocontrrio: uma teoria frgil justamente aquela que co-incide com a descrio e anlise dos objetos empricos,isto , como se o objeto terico pudesse ser mecanica-mente reduzido dimenso emprica. Marx no teorizousobre o trabalho abstrato por t-lo encontradoempiricamente em qualquer fbrica inglesa. Sua contri-buio, desenvolvida de acordo com a dialtica materia-lista, foi ter percebido o movimento do capital, que tipode relao social, enfim, estava ali sendo constituda equais eram as tendncias inerentes sua expanso.

    12 Ou seja, trata-se da impreciso de pesquisas que fazemuma fotografia de um determinado setor num determi-nado contexto e pretendem, a partir da, validar ou con-

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    condizente com a lei do valor, utilizam termos queconfundem as dimenses concreta e abstrata dotrabalho. Porm, como procuramos mostrar, pos-svel, num sentido bastante preciso, afirmar queh, sim, mercadorias sem valor, no pelo tipo detrabalho concreto necessrio sua criao, masporque so mercadorias cujo tempo socialmentenecessrio reproduo praticamente nulo.

    Ademais, essa produo de mercadorias semvalor no , de forma alguma, sinnimo de fim da ex-plorao. Como vimos a partir dos diferentes casos derendimento, o que a produo (material ou imaterial)tende a fazer sugar, de maneira rentista, o valor exis-tente em sua ou em outras esferas de produo.13

    Por fim, possvel notar que, nesses ter-mos, o carter da teoria do valor quantitativo ouqualitativo no pode ser tomado como uma sim-ples oposio. Por um lado, seria pouco razovelsuprimir sua dimenso quantitativa, imaginandoque o fato de mercadorias serem reproduzidas compouco ou nenhum tempo de trabalho no tenhaqualquer repercusso terica e concreta. Por outrolado, compreendidas suas novas feies, a dimen-so qualitativa vista pelo seu carter efetivo, ouseja, como superao dialtica das determinaesconcretas e quantitativas da produo com vistas preservao da explorao capitalista.

    A dominao do capital sobre a produoimaterial apenas jurdica (circulao) e noeconmica (produo)?

    Muitas das colocaes e observaes dostericos do imaterial fazem crer que j vivemos uma

    produo comunista, na medida em que o valor fruto de uma inteligncia coletiva disseminada portodos que produzem e consomem bens culturais,informao e conhecimento. Nesse contexto, a re-cuperao acrtica da era do fim do valor e do gene-ral intellect, citados por Marx (2011) nos Grundrisse,tornou-se uma presena obrigatria nessas obras.O problema seria que, ainda quase que teimosa-mente, o capital procura barreiras artificiais paracercear a produo coletivista, no mercantil dariqueza imaterial. Os conflitos polticos mais im-portantes, por conseguinte, estariam localizadosnas presses igualitrias e libertadoras de produ-tores, usurios e consumidores.

    Quando constatamos o carter rentista daproduo atual, que se fundamenta na mera pro-priedade legal atribuda a um bem ou servio, noconsideramos que o corolrio seja a existncia deuma explorao apenas extraeconmica. Por duasrazes fundamentais. A primeira a de que, a ri-gor, nenhuma mercadoria objetivamente propri-edade privada ou bem pblico, e a forma de apro-priao da produo est sempre relacionada comas lutas de classe centradas na esfera da produo.Como observa Herscovici (2004, p. 164),

    [...] um bem, em si, no publico ou privado: asrelaes de poder entre as diferentes classes so-ciais, mediatizadas e cristalizadas em determi-nadas instituies, determinam as modalidadesde apropriao sociais, ou seja, o carter priva-do ou pblico, desses bens (itlico do autor).

    Em segundo lugar, a produo de mercado-rias intangveis no est imune subsuno dotrabalho ao capital. A lgica industrial no ser,evidentemente, a mesma, principalmente por setratar, como vimos, de um trabalho concreto comcaractersticas distintas. Mas a questo passa a serjustamente identificar o grau e as novas determi-naes da subsuno existente. Em centrais deteleatendimento, a taylorizao das capacidadescognitivas parece suscitar novas condies de tra-balho proletarizado (Braga, 2009). Em uma reamais inovadora, como a de desenvolvimento desoftwares, as situaes so mais complexas. Mes-mo assim, pesquisas mostram a possibilidade de

    testar a tese de que o capital reduz trabalho concreto atrabalho abstrato. Ainda que seja esse um passo neces-srio do conhecimento da realidade concreta, no sufi-ciente para construir um objeto terico distinto capaz demostrar a no razoabilidade da lgica essencial do capitalproposta por Marx.

    13 Como defende Paulani (2012, p. 19), [...] a importnciade resgatar a teoria da renda de Marx est em mostrarque o fundamento de vrios dos fenmenos que tmcaracterizado a etapa atual do capitalismo [...] est nomesmo lugar onde sempre estiveram: o velho e conheci-do trabalho no pago, por mais que o conhecimento defato tenha crescido de importncia no processo produti-vo, por mais que as marcas e patentes venham pontifi-cando frente aos ativos convencionais, por mais que afinana parea dispensar a produo efetiva.

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    traar paralelos com a lgica fabril, na medida emque se identificam algo como linhas de montageme padronizao de atividades intelectuais na produ-o informacional (Tenrio; Valle, 2012), ou mesmoa intensificao e a precariedade das relaes de tra-balho existentes em assalariados e autnomos dasreas de tecnologia da informao (Castro, 2013).

    Como Marx abordou em relao ao trabalhono comrcio, o fato de ser improdutivo no signi-fica que seus assalariados no possam apresentarcondies socialmente semelhantes s do proleta-riado. Do ponto de vista da relao desse assalari-ado com o capital, ainda que no haja produode valor, ele produtivo para seu capitalista nopor gerar mais-valia, mas por concorrer para dimi-nuir os custos de realizao da mais-valia, efetuandotrabalho em parte no pago (Marx, 1974, p. 345).Uma denominao sugerida por Carchedi (1996)poderia ser aqui interessante, qual seja, a condiode certos assalariados de no sofrerem, em teoria,explorao, mas uma forma de opresso econmica.

    Nesse sentido, podemos igualmente acompa-nhar a sugesto de Prado (2005). Se considerarmoscorreto que, nessas reas de atividade, o trabalhocriativo, inteligente e de teor cognitivo que prevaleceem termos concretos, inegvel a dificuldade de seestabelecerem expresses que o reduzamquantitativamente, como tambm afirmam os tericosdo imaterial.14 Porm isso no significa que a normasocial no procure, a despeito das dificuldades, seimpor quantitativamente, estabelecendo padres arbi-trrios de medio e de regulao social. Da no setratar mais de valor, mas de valor desmedido, ouseja, uma norma desregrada, desregulada, que ampliaas irracionalidades da produo.

    A questo que nos parece essencial reter atendncia de desprendimento da forma social ca-

    pitalista em relao a seus contedos, tangveis ouno, o que nos leva ao problema a seguir.

    Teria o capital, autonomamente, construdoseu fim?

    A controvrsia, presente neste ltimo pon-to, diz respeito relao entre foras produtivas erelaes de produo. Alega-se que haveria umeconomicismo nos tericos do imaterial, por se gui-arem, novamente, pelo primado do desenvolvimentodas foras produtivas para a explicao da transfor-mao histrica. Nessa perspectiva, a cincia e atcnica assumem um carter neutro, racional, bas-tando apenas que certas amarras sejam desfeitas paraque um novo modo de produo se efetive por com-pleto. Ao indicarmos um desprendimento da for-ma em relao ao contedo, estaramos pensandonessa mesma chave analtica?

    As implicaes dessa pergunta so amplas eenvolvem no apenas a crtica ao economicismo decertas correntes tericas, mas tambm como a prpriaobra de Marx deu espao a leituras dessa ordem. Aqui,apontam-se apenas algumas das questes que envol-vem esse problema e que permitem nos diferenciar daproblemtica dos tericos do imaterial.

    Em primeiro lugar, se h qualquer espciede fim, no foi resultado de nenhuma ao aut-noma da lgica capitalista, mas em razo de ser ob-jetivamente impelido pelas contradies da produ-o e das lutas de classe que so, em ltima instn-cia, sua fora dinamizadora. Justamente por sofrertais barreiras e obstculos ao explorar o trabalhovivo na produo tradicional, tendncia do capi-tal procurar, a qualquer preo, se autonomizar emrelao a suas bases materiais.

    A autonomizao do capital, como explicamTeixeira e Rotta (2012), se expressa em duas di-menses. Uma delas a financeirizao, em quese busca uma autonomizao do valor em relaoao valor de uso, ou seja, espera-se criar valor semnada produzir. A outra algo como a contrapartidadesse processo no interior mesmo da esfera pro-dutiva, ou seja, a produo das mercadorias-conhe-

    14 Segundo o autor: [...] para se considerar um caso limi-te, no se pode medir a produtividade de uma equipe deengenheiros de informtica contando o nmero de pro-gramas de computador que ela faz num determinadotempo, mas se esses so bons programas [...] Ademais,note-se que nesse caso o produto no homogneo eque o resultado alcanado depende pouco do tempo detrabalho sua eficcia como produto depende da com-petncia cientfica e tecnolgica da equipe de engenhei-ros, assim como do desenvolvimento da cincia da com-putao (Prado, 2005, p. 84).

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    cimento, cujo objetivo igualmente se autonomizardas bases materiais do valor. O trabalho vivo afonte da valorizao do capital, mas, ao mesmo tem-po, sua barreira. O conceito de capital, na lgicadialtica usada por Marx, sujeito cuja pretensode dominao totalmente irrealizvel.15 O capital, portanto, uma forma abstrata que tem como ten-dncia expelir seu prprio contedo.

    Em outro trabalho (Cavalcante, 2012), dis-cutimos diversas passagens de textos em que Marxapresenta situaes de atividades no materiais emque o modo de produo capitalista se apresentaapenas formalmente, como nos extensamente de-batidos casos de certos servios, quando os produ-tos so indissociveis dos executores, ou quandoproduo e consumo so simultneos. O que pre-senciamos, na atualidade, a absoro crescentedesses contedos especficos pela forma do capi-tal. No referido trabalho, problematizamos essa ten-dncia como exemplo de inadequao da formacapitalista a contedos no materiais, j que a acu-mulao foi tradicionalmente expressa a partir demercadorias-coisas. Porm, nesse momento, seriaimportante precisar que essa inadequao , na ver-dade, uma adequao, ou seja, como a tendncia ade se autonomizar, passam a ser adequadas as si-tuaes em que a correspondncia entre produo evalorizao j no se efetivam nos termos materiaistradicionais. Situaes em que a forma domina ape-nas por ser forma, o que est longe de significar, bom ressaltar, que sua fora objetiva, em razo disso,diminui. Desse modo, a imaterialidade da produono deve ser pensada em termos de autodestruiodo capital, mas como esse processo engendra novascontradies sociais e polticas.

    CONSIDERAES FINAIS

    Levantadas essas questes, percebe-se queo desafio contemporneo compreender quais soas consequncias e as possveis modificaes nasclasses sociais que vm na esteira da transforma-

    o da produo capitalista.J so relativamente bem conhecidas as te-

    ses que diminuem a relevncia da classe trabalha-dora tradicional e enxergam, na multido ou emuma noo generalizada de produtores-consumi-dores, o agente social capaz de fomentar mudan-as da ordem capitalista. Seria necessariamente essaa concluso a que se deve chegar tendo em vista aproduo contempornea de valor e renda? Have-ria alternativas a esse esquema conceitual que noseriam refns de noes difusas de classe social?Sem poder avanar, no momento, nesses pontos,deixamos apenas registrados problemas decorren-tes do que foi at aqui exposto.

    Pelo poder das armas e das ideias e a des-peito das inmeras resistncias, o capital mostrou-se historicamente eficiente na subsuno, formal ereal, do trabalho concreto relativo produo debens materiais tangveis. Nas diversas linhas demontagem, pde constituir, e apropriar como seu,uma fora coletiva de trabalho ampla e diversificada.Reivindicaes mais ou menos pontuais e imedia-tas dos cotidianos de trabalho foram relativamenteincorporadas pelas instituies do Estado burgu-s e pelos mecanismos ideolgicos da sociedadecapitalista. Seriam esses artifcios ainda suficien-tes para a incorporao das demandas especficasdos assalariados que alimentam a produotecnolgica atual?

    Marx apontou para a formao de um inte-lecto geral como momento de uma produo nomais vinculada ao valor e, consequentemente, dis-tinta do modo de produo capitalista (Amorim,2007). Se existe algum trao de intelecto geral naproduo contempornea portanto, um intelectogeral capitalista quais seriam as contradiesexistentes num processo que ainda no ossubsumiu realmente, o que se nota na medida emque o prprio capital exige desses assalariados certaatuao como sujeitos na produo?16 Ainda queno seja uma economia comunista, como os va-lores que surgem do compartilhamento e do livre

    15 Ver a interessante contraposio da dialtica de Marx de Hegel em Mller (1982).

    16 Como ressalta Prado (2005, p.69), [...] a dominao docapital, justamente por ter perdido sua base materialanterior, precisa agora se basear, como nunca, em adesoideolgica e compromisso poltico.

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    uso da informao e do conhecimento podem fo-mentar movimentos contrrios no apenas s for-mas de apropriao, mas prpria produotecnolgica como um todo?

    Uma resposta comum a esses problemas afirmar que esses assalariados j so objetivamen-te proletrios, mas ainda no teriam a conscinciade classe relativa a essa condio. Esse caminho,contudo, se mostra bastante limitado, porque nobasta recolocar os problemas e projetos construdosem uma situao histrica particular para um mo-mento em que a base tcnica objetiva, por maisque no seja autnoma e determinante, impe de-safios especficos. a compreenso crtica dessasmediaes que ainda est por ser feita.

    Recebido para publicao em 16 de agosto de 2013Aceito em 17 de setembro de 2013

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    VALOR, RENDA E IMATERIALIDADE NO CAPITALISMO ...

    Svio Machado Cavalcante Doutor em Sociologia pela Unicamp. Pesquisa temas relativos a trabalho,sindicalismo, classes sociais e classes mdias. Publicaes recentes: Por uma definio de terceirizao.Caderno CRH. Salvador: Edufba. v. 25, p. 331-346, 2012; As telecomunicaes aps uma dcada daprivatizao: a face oculta do sucesso. Eptic (UFS), v. 13, p. 1-18, 2011; Tendncias da configurao dotrabalho no setor de telecomunicaes no Brasil. Lutas Sociais (PUCSP), v. 24, p. 44-59, 2010.

    VALUE, INCOME AND IMMATERIALITY INCONTEMPORARY CAPITALISM

    Svio Machado Cavalcante

    Contemporary capitalism is characterized byincreasing combination of traditional productionof physical commodities to the creation ofcommodities and intangible services that areexchanged for having information, knowledge orartistic appeal/cultural feature. This situation wasmade possible by new technologies that changework processes and raise doubts on the theory ofvalue developed by Marx. The purpose of thisarticle is to discuss these issues based on argumentsraised by Brazilian authors who converge on thefollowing conclusions: science and technology aremobilized for the production of worthlesscommodities; consequently, the capitalistappropriation assumes a character increasinglyrentier; it is possible to analyze this process basedon Marx's theory of value which explains that thereis an autonomization of capital in relation to itsmaterial contents. Thus, it is argued that, insteadof its obsolescence, a qualitative transformation ofvalue takes place and it continues to process associal norm, albeit in a form without measure.

    KEY WORDS: Value. Income. Immaterial Work.Capitalism. Marxism.

    VALEUR, RENTE ET IMMATERIALITEDANS LE CAPITALISME CONTEMPORAIN

    Svio Machado Cavalcante

    Le capitalisme contemporain est marqu parune jonction croissante entre la productiontraditionnelle de produits physiques et la crationde biens et de services immatriels remplacs parles informations, les connaissances ou les appelsartistiques/culturels dont ils disposent. Lesnouvelles technologies qui modifient les processusde travail et remettent en cause la thorie de lavaleur dveloppe par Marx rendent ce scnariopossible. Le but de cet article est de poser leproblme partir des interventions dauteursbrsiliens dont les conclusions suivantesconvergent: la science et la technologie sontmobilises pour produire des biens sans valeuret, par consquent, lappropriation capitaliste as-sume un caractre de plus en plus rentiste. Il estdonc possible danalyser un tel processus partirdes dterminations de la thorie de la valeur deMarx qui mnent lautonomisation de la formecapital par rapport ses contenus. On peut ainsifaire valoir quau lieu dtre obsolte, la valeur subitune transformation qualitative et se maintient entant que norme productive, mme si cest demanire dmesure.

    MOTS-CLS: Valeur. Revenus. Travail immatriel.Capitalisme. Marxisme.