Catherine Doyle - Vingança
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Transcript of Catherine Doyle - Vingança
Quando se trata de vingança, o amor é uma perigosa complicação.Para Sophie, aquele seria só mais um verão lento e abafado em Cedar Hill, fazendo um bico como garçonete no restaurante da família e passando o tempo com sua melhor amiga, Millie. Mas isso foi só até uma família se mudar para o casarão abandonado no Dim da rua — cinco irmãos italianos, um mais gato que o outro.Sem conseguir resistir aos olhos cor de caramelo de Nicoli, Sophie acaba se apaixonando — e propositalmente ignorando os sinais de perigo que envolvem os misteriosos irmãos. Por que as mãos de Nic estão sempre tão machucadas? Por que ele sempre carrega consigo um canivete com o seu monograma? E por que seu irmão mais velho, o arrogante e irritante Luca, quer proibir os dois de Dicarem juntos?Quando os segredos sombrios dos rapazes começam a vir à tona, Sophie precisa enfrentar dolorosas verdades em relação à própria família. De repente, ela se vê no meio de uma vendetta entre duas dinastias rivais: a família em que nasceu e a pela qual se apaixonou.Sophie vai precisar escolher entre lealdade e paixão, e, quando o Dizer, sangue vai rolar e corações serão partidos. Quando se trata de amor, a desonra pode ser uma questão de vida ou morte.
PARTEI
“De todasas formasde cautela, a cautelanoamor talvez sejaamaisfatalparaafelicidadeverdadeira.”
BertrandRussell,Aconquistadafelicidade
CAPÍTULOUM
OPOTEDEMEL
Não reparei logo de cara, mas havia algo entre o caixa e a pilha decomandas. Talvez estivesse ali havia horas ou mais, apenas esperando,enquanto eu passava mais um dia de verão morrendo de tédio nalanchoneteGracewell.Estávamossónósduasfechandoorestaurante.Eu,plantadaaoladodo
caixa, tamborilava as unhas no balcão, enquanto Millie, minha melhoramigaeparceiradebandejas,deslizavapelalanchonetecantandoparaumcabo de vassoura como se fosse ummicrofone. Todomundo já tinha idoembora,emeutioJack—ogerentenadaextraordinário—tinhaficadoemcasaderessaca.Asmesas estavam enfileiradas, rodeadas por cadeiras de encosto reto
cordevinhoealgumasplantasartificiais.Aportajátinhasidotrancada,asluzesestavambaixaseascabinespertodajanela,limpas.EumeesforçavaparanãoouvirMilliedestruindoumamúsicadaAdele
quandoreparei:umpotedemel.Euopegueieoanalisei.—Achoqueestoumelhorando—gritouMillieenquantoassassinavaa
músicadooutroladodalanchonete.Oúnicoacertodelafoiolevesotaquebritânico, mas apenas porque ela realmente era britânica. — Já consigoalcançaraqueleagudo!—Umamelhoraetanto,Mil—menti,semlevantarosolhos.Opoteerapequenoecilíndrico.Quandoeuobalanceideumladoparao
outro, o mel salpicado de cristais dourados se movimentou
preguiçosamente.Umpedaçodetecidodesgastadocobriaatampadopote,e no lugar do rótulo, amarrada emum laço elaborado, havia uma fita develudopreta.Artesanal? Estranho. Não conhecia ninguém que fizesse o própriomel
emCedarHill,eeuconheciaquasetodomundodacidade.CedarHilléessetipodelugar—umapequenacomunidadenosarredoresdeChicago,ondetodomundoconhecedavidadooutro;ondeninguémperdoanemesquece.Eusabiabemdisso.Depoisdoqueaconteceucomomeupai,vireiafilhadadesonra,eadesonra temopoderdegrudarnapessoacomoumagrandeplacadeneonnatesta.Millieatingiuaúltimanotadamúsicacomumvigorderacharosouvidos
eentãopulouparatrásdobalcãoeguardouavassoura.—Estápronta?—De onde veio isso?— Equilibrei o pote demel na palma damão e
estendiobraço.Eladeudeombros.—Nãosei.Estavaaquiquandocomeceioturno.Euobservei,atravésdoprismadourado,seurostosedistorcer.—Éestranho,nãoacha?Millie ajustou sua expressão para a clássica “eu realmente não dou a
mínimaparaoquevocêestáfalando”.—Omel?Nãoachei.—Éartesanal—falei.—É,percebi.—Elafranziuassobrancelhaseestendeuamãoparatocar
novidro.—Olaçoémeioestranho.Talvezumclientetenhadeixadocomogorjeta.—Quetipodeclientedeixaumpotedemelcomogorjeta?Millieficouboquiaberta,orostoseiluminando.— Você... — Ela inspirou de forma dramática. — Por acaso... — Ela
suspirou.—Atendeu...Inclineiocorpo,emexpectativa.—...umursinhoamarelo...Nãoacreditoquecaínessa.—...chamadoPooh?Arisadadelamefezrir,comosempre.Aquelesom—parecendoumpato
sendoestrangulado—foioquemechamouatençãoquandoelasemudouparaCedarHill cincoanosatrás.Naescola,agentepercebeuquesempreríamos das mesmas coisas. Foram coisas bobas — caretas, risadasimprópriasquandoalguémtropeçavaecaía,oprazerdelongasconversas
semsentidoediscussõesridículassobresituaçõeshipotéticas—quenosaproximaram. Naquela época eu não sabia que seria a única amizade asobreviveraoqueaconteceuàminhafamíliaumanoemeioatrás,masnãofaziamaisdiferença,porqueMillieeraamelhoramigaqueeupoderiater,eaúnicadequeeurealmenteprecisava.Rimosotempointeiroenquantofechávamosalanchonete,atéestarmos
do lado de fora, no clima agradável da noite. Localizada na esquina daFostercomaOak,alanchoneteficavaemumprédiobaixoemodestocomparedes de tijolos desgastadas. Era perfeitamente simétrico, o formatoquadrado evidenciado pelas grandes janelas que dominavam a fachada epelo estacionamento modesto que cercava o restaurante. Na marquiseficava o letreiro tosco com a palavra “Gracewell”, semi-iluminado pelospostes da rua ao redor. Do outro lado, o prédio da antiga biblioteca semisturava ao céu escuro, parcialmente encoberto por uma fileira deárvores bem podadas que passava pela sede do correio e seguia calçadaabaixo.Eu ainda segurava o pote de mel cuidadosamente embalado quando
passamos pelo estacionamento vazio. Não era como se alguém fosse seimportar,disseamimmesma—meutioJackestavaemcasaesperandoaressaca passar, então não havia ninguém com autoridade oficial parareclamarapossedomel.Fiz apenas o que qualquer funcionário cansado e mal pago faria na
mesma situação — tomei para mim um brinde que não teria qualquerutilidadepráticaesaídalanchonetemesentindovitoriosa.—Sabe,euestavapensando.—Milliediminuiuopassoparameesperar.—Cuidadocomisso—provoquei-a.—Talvezeudevesseficarcomomel.—Achadonãoéroubado—cantarolei.— Sophie, Sophie, Sophie. — Ela passou o braço em volta dos meus
ombrosemepuxouemdireçãoaela.Éramosquasedamesmaaltura,masMillie era voluptuosa, enquanto eu era magrela, feito um menino, ebochechuda igual aomeu pai, embora pelo lado positivo também tivesseherdado suas covinhas. Millie esmagou a bochecha na minha, como sequisesseme lembrar disso. Senti seu sorriso.—Minhamelhor amiga nomundo inteiro. Quão chata seria aminha vida sem você? As estrelas nãobrilhariamcomtantaforça,aluanãoserianadaalémdeumasombradesimesma.Asfloresmurchariame...— De jeito nenhum! — Me desvencilhei do seu abraço. — Não vai
conseguiromelmeelogiando.Souimuneaoseucharme.
Milliecoçouosolhosesoltouumgemidodecortaraalma.—Vocêjátemalanchoneteinteira.Nãopossoficarcomomel?Emboraelaestivessecerta,herdaralanchonetequandofizesse18anos
estava longedeseramaiorambiçãodaminhavida.Essashaviamsidoasinstruções do meu pai antes de partir, e não havia dúvida de que meuglorioso e mal-humorado tio Jack, com sua forte aura autoritária, iriaobedecer. De qualquer forma, não importava.Millie e eu sabíamos que alanchonetenãoeranadaempolganteesimapenasumadordecabeçasemfimàespreitanaminhavida.Masopotedemelcomolaçopreto?Eraalgobonito—umasurpresaparaquebraramonotoniadodia.Millieparouatrásdemim.—Sophie,quemfalaéasuaconsciência—sussurrouporcimadomeu
ombro.—Seiquefazumasemanadesdequenosfalamospelaúltimavez,masestánahoradefazeracoisacerta.Millieétãolegalebonita.Nãoquerdaromelparaela?Penseemcomoelaficariafeliz.—Eunãosabiaqueaminhaconsciênciatinhaumsotaquebritânico.—É,bem,nãopensemuitonisso.Sópasseomelparaela.Pareinasaídadoestacionamento,ondecadaumaprosseguiriasozinha
pelanoite.Antesdearendadosmeuspaisserreduzidapelametade,Millieeeu caminhávamosnamesmadireção,paraaavenidaShrewsbury,ondetínhamos empregados e jardineiros, piscinas gigantes e lustres de cristalpendurados em halls de verdade. Agoraminha caminhada para casa erabemmaislongadoqueantes.—Millienemgostademel—retruquei.—Eelanãorespeitaasabelhas.
Euavipisarnumaabelhatrêsvezesnasemanapassadaparagarantirqueestavamorta.— Não é culpa minha que esse país esteja sendo tomado por insetos
desagradáveis.—Oquevocêqueria?Estamosemplenoverão!—Éumamaldição.—Evocêestavausandoumperfumefloral.—Elaestavasendoinconveniente.—Entãovocêsimplesmenteamatou?Millieestendeuamãodramaticamente.—Apenasmedêomalditomel,Gracewell.Euprecisodeleparanegociar
ofimdomeucastigo.Levanteiassobrancelhas.Havíamosacabadodecompletarumturnode
oitohorasjuntaseelanãohaviamencionadonadadisso.—Castigo?
—Umacompletainjustiça.Umcompletomal-entendido.—Podecontinuar...— Alex me chamou de sorriso metálico. — Millie fez uma pausa
dramática.—Dápraacreditarnisso?Bem,elarealmenteusavaaparelho.Eeleestava tecnicamentenosseus
dentes.Masnãofaleiisso.Fizumacaraderevoltaefingiconcordarqueseuirmão“nãomuitomaduro,porémgostoso”eraumtiranogrosseiro.—Eleétãoidiota—afirmei.— Ele é literalmente o pior ser humano do planeta. Enfim, uma coisa
levou à outra e o iPhone dele caiu da janela... Bem, meio que caiu dasminhasmãos...queestavamcoincidentementepraforadajaneladoquartodelenahora...Elesurtoucompletamentecomigo.—Irmãos...—Bem,vocêtemsortedenãoprecisardividirsuacasacomnenhumrei
da babaquice— vociferou ela.—Que cara de 19 anosgrita com a irmãmaisnova?Querdizer,ondeestáahonradessapessoa?EleéumavergonhaparaafamíliaParker.Ecomoeupodiasaberqueotelefoneiaquebrar?—Queestranho.—Aindacomomelnamão,eumeapoieiemumposte
próximoeobserveiminhasombrasecurvardentrodapoçade luz.—Eupoderia jurar que os iPhones mais recentes vinham com ummicroparaquedas.Milliecomeçouagolpearoar,comoseoproblemapairasseàsuavolta.—Seeuderessesimpáticopotedemelparaminhamãeusaremuma
dassuasreceitas,elavaiolharparamimcomoafilhacarinhosaedocequesoueacabarácomessecastigoinjusto,quefoiimpostoamiminjustamenteporcausadoporcoignorantedomeuirmão.Eumeajeitei.—Issonuncavaifuncionar.Vouficarcomomel.— Tanto faz — disse ela, jogando o cabelo castanho liso para trás
dramaticamente.—Deveestarenvenenadomesmo.Elabotoualínguaparaforaesaiupisandoduroemdireçãoàescuridão,
deixando-mesozinhacomminharecompensaconquistadacomtanta luta.Botei o pote na bolsa, observando os cachos da fita preta sumirem ládentro.Atravesseiaruaeparei,tentandodecidirparaqueladoseguir.Depoisde
seis turnosseguidos,assolasdosmeuspés latejavame, comoMillieeeuhavíamosenroladoportantotempo,jáestavamaistardequeonormal.Ocaminhomais longo para casa era geralmente aminha opção favorita—erabem-iluminadoebem-frequentado—masoatalhoerabemmaiscurto,
sempassarpelocentrodacidade,subindoaladeiraedandoavoltaportrásdamansãoassombradanofinaldaavenidaLockwood.
CAPÍTULODOIS
OGAROTODEOLHOSASSOMBROSOS
Aluaestavacheiaealta,masanoitepareciamaisescuradoqueonormal.Depois de 15 minutos com apenas o som dos meus passos comocompanhia,ostorreõesdavelhamansãoPriestlyseerguiamemdireçãoaocéuàminhafrente,vigiandoascasasvizinhascomotorresdeobservação.Pormaisbonitaquefosse,amansãosempremelembravadeumacasa
de bonecas em ruínas. As paredes de madeira caiada se inclinavam emângulos estranhos, enquanto alguns cantos sobressaíam, afiados comofacas, atravessando a imensa quantidade de hera. Um muro de pedrascobertodefolhascontornavaoterreno;eraaúnicacasadeCedarHillqueproporcionava o luxo de tamanha privacidade, mas sua aura gótica eramaiseficazemrepelirinvasoresdoqueosmurosdamansão.As pessoas que conheciam a casa falavamdela com iguaismedidas de
apreensãoefascinação,ecomfrequênciacriavamsuasprópriashistóriasarespeitodolugar.Quandoeutinhaseteanos,minhamãemecontousobreumalindaprincesaquepassavaosdiasnoaltodostorreõesdaantigacasa,fugidadeumcasamentoarranjadocomumpríncipeamarguradoechato.Quandofizdezanos,ascriançasdavizinhançahaviamdecididoqueacasaera o lar amaldiçoado de uma bruxa velha e ardilosa. Ela enchia oscômodoscomgatosesapos,caldeirõesevassourase,nomeiodanoite,saíavoandopelocéuàprocuradecriançasdesobedientesquejádeveriamestar
na cama. Quando conheci Millie, ela me falou dos vampiros queobservavamportrásdasvidraçasrachadas,espiandocomolhosvermelhosebrilhantes.Maistarde,aos14,euestavaterminandoumtrabalhodehistóriasobre
CedarHillemedepareicomaverdadeiraeapavorantehistóriadamansão.Não havia bruxas, princesas ou vampiros — apenas a história de umajovem chamada Violet Priestly, uma enfermeira do fronte na SegundaGuerra Mundial que havia retornado como uma versão totalmentediferentedesimesma.Aslembrançastraumáticasaassombravam,atéqueas alucinações se tornaram fortes demais para ignorá-las. Pouco tempodepoisdeenvenenaromaridoeo filho,elaseenforcounohalldaantigamansão.Éclaroqueninguémquiscompraracasadepoisdisso.Nada seria capaz de afastar a escuridão que rondava a vizinhança dos
Priestly.Mesmonosdiasmaisquentesdeverão,quandoascalçadasardiamcommiragens,haviaumafrieza inquestionávelpartindodamansão.Eelapermaneceu assim por décadas, como um lembrete de outro espaço etempo,vaziaetotalmenteirrecuperável.Querdizer,atéaquelanoite.Aomeaproximardamansão,esfregandomeusbraçosparaesquentara
pele subitamente gelada e questionando minha decisão de seguir poraquele caminho, me assustei ao perceber que a casa havia mudadocompletamentedesdeaúltimavezqueeupasseiporali.Alguémfinalmentetomoucoragem—deverdade.AabandonadamansãoPriestlyfoiarrastadaparaoséculoXXI,eestavavivanovamente.Pareideandar.Os portões de ferro coloniais enferrujados tinham sido arrancados e
apoiadosnascercas-vivasquejánãoseestendiampelomurodojardim.Ossalgueiros-chorões estavam podados com uma perfeição quase artificial,revelandoasjanelasdosegundoandar,cujaexistênciaeununcapercebi.Asherasforamretiradasdasparedes,exibindoplacasdemadeirarobustaseuma porta vermelha recém-pintada, iluminada por um lampião de cadalado.E,aoalcanceda luzdos lampiões,erapossívelverdoisSUVspretosestacionadosladoaladononovochãodecascalho.Meu telefone vibrou no bolso — uma mensagem de texto de Millie
avisandoquehaviachegadobememcasa,eumlembretenão intencionalde que omesmo não era verdade paramim. Relutante, tentei retomar acaminhada, mas algo dentro de mim me impediu. A mansão Priestly, ocoraçãocongeladodeCedarHill,batianovamenteedane-seoatraso—eu
precisavasabermaissobreisso.Foi então que senti algo. Levantei o olhar para as árvores e vi uma
sombrabruxuleanteemumadasjanelasdecima.Eraumgaroto.Nãotinhacerteza da sua idade, mas mesmo de longe os olhos brilhavam. Eramgrandesdemaispara seu rostodelicadoe enquantomeobservavampeloquepareceuumaeternidade,elessearregalaram.Ogarotoseinclinouparafrente e apoiouaspalmasdasmãosna janela, comose fosse empurrarovidroparafora.Eleestavaacenando?Oumemandandoembora?Levantei a mão para cumprimentá-lo, mas ela parou no meio do
caminho,suadaeinstável.Eentão,comamesmarapidezqueapareceu,ogaroto desconhecido sumiu pela escuridão atrás dele, até que a casa,reformada,ficousilenciosamaisumavez.Confusa,desvieioolhardajanelavaziaparaaentradadecarrosàminha
frente enquanto a escuridão adiante tomava forma. Um leve farfalharsoproupeloareaperteiosolhosatéenxergaroutrafiguraatrásdeumdoscarros.Eleestavaagachado,procurandoalgonoveículo.Tenteilutarcontraodesejodeinvestigar,mas,comasmãostremendo,a
curiosidade tomou conta de mim e me impulsionou em direção à casa.Segui da calçada para dentro, tentando espiar pelas frestas dos portõesabertos, e o farfalhar parou. A porta do carro se fechou e ouvi o somdecascalho sendo pisado na escuridão. A pessoa se ergueu, a cabeçaaparecendo de trás do carro, e se moveu acompanhado do cascalhobarulhento até parar no caminho entre a casa e o portão, onde me viuobservando-o.Mesmoàluzdoslampiões,eleeraapenasumcontorno:umasombraalta
de ombros largos emovimentos decididos. Ele parou e abaixou o braço,descendoumabolsadelonaaochãoatéestaraseuspés,comumalentidãocalculada.Deuumpassoparao ladoeempurrouabolsacomabotaparatrásdocarromaispróximoeparalongedosmeusolhoscuriosos.Maseujátinhavisto,sejaláoquefosseaquilo,enósdoissabíamosdisso.Eleinclinouacabeçaparaoladoechegoumaisperto,umpassodecidido
edepoisoutro,encurtandoadistânciaentrenós.Acadapassomeucoraçãobatia mais forte. Minha curiosidade se evaporou e foi substituída pelarealidade:eu fuipega invadindopropriedadealheiaeagoraaquela figurasombriavinhaatrásdemim.Dei meia-volta e cambaleei pela rua deserta. Quando o silêncio foi
interrompido pelo som de passos pesados, comecei a correr,completamente despreparada para o gato que surgiu no meu caminhosoltando ummiado estridente. Escorreguei tentando parar e balancei os
braços procurando equilíbrio, mas o homem desconhecido atropelou asminhascostas,mecalandoantesqueeusoltasseumgritoaotiraroardosmeus pulmões ememandar voando pelos ares. Larguei a bolsa e caí nacalçadacomumbaquesurdo,ralandoasmãoseosjoelhosnoasfalto.Fuitomadaporumatontura,meujantarserevirandonoestômago.Antes que eu pudesse entender o que havia acontecido, ou imaginar
como seria morta, fui erguida da minha bolha de dor e posta de pénovamentenamesmaposiçãodesegundosatrás,comosealguémtivesseapertadoobotãorewind.Sóquedaquelavezhaviaalgodiferente.Eusentiamãosfortesaoredor
daminhacintura.Elasmemantinhamdepéenquantoeumeoscilavaparafrenteeparatrás,tentandoencontrarequilíbrio.—Stai tranquillo, sei al sicuro.— As palavras soaram tão estranhas e
inesperadasquepenseitê-lasimaginado.Olheiparabaixoenoteiasmãosdeleemvoltademim.Derepentemevi,
comosedoalto,relaxadanosbraçosdeumestranhoemumaruadesertanomeiodanoite,emfrenteàcasamaisfamosadeCedarHill.O mesmo estranho que tinha acabado de me flagrar invadindo sua
propriedadeedepoismejogadonochão.Eu havia assistido a muitos filmes românticos para apreciar uma boa
cenadetirarofôlego—mastambémhaviavistomuitoCSI.Numimpulso,empurrei asmãosdesconhecidas para longedemime saltei para frente.Agachei e peguei minha bolsa do chão, vendo de relance a fivela grossaprateada da bota de couro dele antes de me levantar correndo e jogarapressada a bolsa no ombro. Ergui os olhos para o cara, desejando teralgumtipodearmanaminhabolsasóporgarantia.Maseleficouparado,orostoumconjuntodesombrasnaescuridão.Elenão feznovamençãodemeatacar,enãomedemoreialiparaquetivesseoutrachance.—Nãomesiga.—Minhavozsooumaisfortedoqueeumesentia.Deiavoltaecomeceiacorrer.Aindaoescuteichamando,maseujáestavalonge.Nãomevirei,mas tinha certezadeque sentia os olhos sombrios—os
olhosdele—nasminhascostasenquantocorria.Umsomdistantederisosmeseguiupelaescuridão.Chegueiemcasaemtemporecorde.Depoisdedeixaropotedemelno
parapeitodajaneladacozinhaemearrastarparaoandardecima,limpeimeusjoelhosardidosemedeitei.Apósoquepareceramhorasencarandootetodeolhos arregalados, escutando asbatidas aceleradasnomeupeito,caínumsono inquieto.Sonhoscomgarotosemjanelasse transformavam
empesadeloscomcorposnassombrasepotesdemelcomfitaspretas.
CAPÍTULOTRÊS
AMERCADORADEFOFOCA
Nãoexistemuitacoisacapazdemeirritar.Noentanto,afontedetãorarairritaçãohaviaseinfiltradonaminhacasaeestragadoamanhãensolaradapraticamenteantesqueelacomeçasse.—Nãoéumbompresságio,Celine.Eutenhoumsextosentidoparaessas
coisas...A voz de Rita Bailey, mais estridente que uma sirene de polícia, não
encontravaqualquerdesafioparainvadirmeuquarto,apesardeestarumandarabaixo.Olheicomraivaparaoteto.Eunãoqueriaouvirsobreocasode Lana Green, a psoríase alarmante de Jenny Orin ou o escândalo dospiolhos das crianças Tyler. Mas o volume da voz daquela senhora medeixou sem alternativa. Eu teria que sofrer de qualquer forma e,considerandoabagunçadeprimentedomeuquarto,aliadaaomeudesejodetomarcafédamanhãemalgummomento,decidiencará-lade frenteeacabarlogocomapartemaisdesagradáveldodia.Saídacama,engatinhandoentreaspilhasdecalçasjeansecamisetasdo
avessoparapescarumsutiãparcialmenteescondido.Fiqueidepéerodeeiocômodosemtocaremnada—porqueàsvezesgostodebrincardisso—,retireiumpardeshortsjeansdochãoeosvestiantesdedecidirusarumaregatabrancaemeusAllStarfavoritos.Depoisdepassarumhidratanteeprender o cabelo em uma trança bagunçada, desci na ponta dos pés,tentando criar forças para o que estava prestes a enfrentar, sem café eexausta.
RitaBailey,umasenhorarobustadecabelogrisalhocurtoefeiçãotensaeenrugada,estavadebruçadanamesadacozinha,bebendoseucaféusandoumterninhorosapavoroso.Aoladodela,minhamãeaturavasuapresençadeformaeducada,comumsorrisocontidoebalançandoacabeçaquandonecessário.Elahaviaatéabertoumespaçonamesa,queficavatomadaporprojetosdecosturaeamostrasdetecido.Agora,limitadosaapenasalgunscentímetros, seus materiais de trabalho se equilibravam precariamentepertodaparede,correndooriscodedesmoronaraqualquermomento.Quandomorávamosemumacasaespaçosadequatroquartosnaavenida
Shrewsbury,minhamãe tinhadoisquartos inteirosdedicadosà explosãodemateriaisnecessáriospara criar seusvestidos,masaqui seusprojetospareciam caminhar de cômodo em cômodo, nos seguindo pela casaapertadaemtodosostonseestampaspossíveis.Metrosderendamarfimecreme esticados nos braços das cadeiras lutavam por espaço debaixo demanequinscomvestidosdeverãoetrajesdefestasofisticados.Desdequenosmudamos para cá, um ano emeio atrás, passei pormuitas situaçõestraumatizantesaoacordargritandocomavisãodeummoldedenoivapelametadependuradonocantodomeuquarto,ouumvestidojeansquejamaisdeveriaservisto.Nãoeracomoseminhamãenãotivesseumsistema,ésóqueninguém
além dela conseguia entendê-lo. Ela provavelmente era a costureira devestidosmaisdesorganizadamenteorganizadadeChicago,eachoqueelagostavaque fosseassim.Asra.Bailey,queencaravadeolhosapertadosapilha cambaleante de tecidos do outro lado da mesa, certamente nãoconcordava.Deslizeiparaacozinha,chamandoaatençãodelaantesquesuacarranca
ficassetãointensaqueabrisseumarachaduranorosto.—Bomdia,sra.Bailey.Nãofoitãoruimassim.Elareajustouseuolharparamim.—Bomdia,Persephone.Eumecontorci.Faziaumtempodesdequehaviaouvidomeunomena
sua completa feiura e, para variar, nada haviamudado—ele continuavaterrível.Masamaneiracomoaquelavelhaopronunciavasemprepareciapiorá-lo,prolongandoossonsdassílabascomosefalassecomumacriançadecincoanos—Perrr-se-fo-neeee.—PrefiroSophie—retruqueicomotomdeirritaçãoqueacompanhava
oassunto.—MasPersephoneétãomelhor.
—Bem, ninguémme chama assim.— Não era meu nome e ela sabiadisso. Era apenas o símbolo da obsessão passageira da minha mãe pormitologia grega, que infelizmente coincidiu com a época do meunascimento.Aindabemquemeupaidesistiudacomplicaçãojánoprimeiroanodeidade.Nãodemoroumuitoparaqueelechegassea“Sophie”comoumaalternativaaceitável.Suspeitoquefosseonomequeelesempretinhadesejado,e issometornoueternamentegrataaelepordoismotivos:um,eu não precisaria passar a vida inteira com um “nome relíquia pesadeloparasoletrar”,edois,elenãotermeapelidadode“Persy”.Quandominhamãeadmitiuaderrota,virei“Sophie”.Simples,práticoepronunciável.—Comovocêsabeomeunome,aliás?—acrescentei tardiamente.Em
todasasvezesqueasra.Baileymechamoupelonomeerradodepropósito,nuncameocorreuperguntarcomoelasabiadeumdosmeussegredosmaisbem-guardados. Mas, também, ela foi a primeira pessoa a descobrir alocalização da nossa casa nova quando nosmudamos, apesar de termostentadocomafincoesconderessainformaçãodela,edofatodequeficavaaquase uma hora a pé da avenida Shrewsbury. Vai ver ela era mesmovidente.—Euviemumacartacertavez.—Onde?— Não consigo lembrar. — Ela parecia ofendida com a pergunta. —
Talveztenhacaídodasuacaixadecorreio.—Hummmm.—Enxerida,reclameimentalmente.Aomeulado,minhamãeestavacontornandoabordadasuacanecacom
odedo.—Sophie—interrompeuela,gentilmente—,porquenãomudamosde
assunto?—Porquê?Continuatentandoseesquivardaculpadetermebatizado
comonomemaisvergonhosoehorrendoqueimaginou?—Emboraminhavozestivessecalma,aquiloeraumabrincadeirasóemparte.Nãoqueissoimportasse paraminhamãe; ela achava a indignação em relação aomeunomeinexplicavelmentedivertida.Achoquefazsentido.Paraelaaquiloerasóumapiadamesmo,queagorameseguiapormeiodepessoascomoasra.Bailey ou o tio Jack, que o usava contramim comouma armaquando seirritavacommeuscochilosnalanchonete.— Acho o nome Sophie igualmente adorável. Combina com você. —
Minha mãe tentou apaziguar, escondendo um risinho na caneca até queficassemàmostra apenas suas sobrancelhas arqueadasedelicadas. Sentiumapitadadeinvejapelasimetriadelas.Tudonelaeradelicadoerefinado
comoumafada.Pormeiodamágicadagenética,elametransmitiuapenasseu cabelo louro e o rosto com formato de coração.Mas, pelamágica daimitação, eu herdei também sua tendência à bagunça extrema e suainabilidade para cozinhar. Eu estava guardando o julgamento sobre deonde veio minha altura limitada, porque ainda esperava crescer setemilagrososcentímetrosatémeuaniversáriode17anos,queseaproximavarapidamente.Aopronunciar“Sophie”,asra.Baileysoltouumlongoedescontentesom
de rejeição. Parecia que ela estava se engasgando — e, por um brevesegundodecrisemoral,partedemimtorceuparaquefosseverdade.Atravesseiacozinhaatéobalcãoparaencherminhacanecaeviopote
demelnoparapeitodajanela.Raiosdesolmecumprimentaramatravésdovidro. Seria uma pena não prová-lo, decidi. Peguei uma colher e tirei atampadopote,deixandodeladoopedaçodepanoqueocobriaetomandocuidadoparanãoestragarolaçodeveludopreto.Atrás de mim, a sra. Bailey praticava seu hobby favorito— a arte da
lamentação.— Persephone é tão mais elegante. Ela talvez não goste agora, mas
semprepodetentarpassaragostar.—Obrigada,mas achoque vou ficar comSophiemesmo e continuar a
viver nomundomoderno.— Eumeti a colher no pote, correndo-a peloconteúdo.—Vocêparecetãocansadahoje,Sophie—informouasra.Baileyparaa
partede trásdaminhacabeça,pronunciandomeunomecomdificuldade,comosefossemuitodifícil.Ignorandoaprovocação,assimcomoaopçãocivilizadadepassaromel
nocerealouemumatorrada,enfieiacolhertransbordandodiretonaboca.— Ela vai ficar feliz e contente assim que tomar sua dose matinal de
cafeína — explicou minha mãe por trás de mim. O tom da voz dela,geralmentecalma,davaaentenderqueapaciênciaestavachegandoaofim.Mesmodepoisdabagunçacriadapelomeupai,minhamãehaviamantidoseu nível inacreditável de bondade. Isso significava que ela ainda eraeducadademaisparadispensarasexagenáriasolitáriae irritante,mesmoquando o papo parecia ser nada além de reprovações e comentáriosmaldosos.—Temcerteza,Celine?Elaparecetãoexausta.Éasombradaaparência
que uma garota de 16 anos deveria ter. Ela deveria estar no sol, ficandobronzeada.Elaeratãobonitinha.Sério? Eu teria respondido à altura, mas o mel mantinha minha boca
fechada.Minha mãe soltou um pequeno suspiro — sua especialidade. Era
ambíguo o suficiente para significar qualquer coisa para qualquer um—“Estou cansada/feliz/decepcionada”—,maseu tinhaa impressãodequenessecasoeraumaformadeconcluiroassuntodeformadelicada.Lutandocontraminhavontadedepegarocaféesaircorrendo,deimeia-
volta eme sentei àmesada cozinha, arrastando aspernasda cadeiranochão com o máximo de barulho possível e comemorando a expressãoincomodadadasra.Bailey.Ok,mocinha.Vamoslá.— Espero não ter interrompido nada importante. — As palavras
adoçadas pelo mel mascaravam o sarcasmo na minha voz. Tomei oprimeirogloriosogoledecaféesentiovapormeaquecerpordentro.—Bem,naverdade,interrompeu.Quellesurprise.Eusemprepareciainterromperosboletinsinformativos
doplantãodasra.Bailey.—Estava contando à suamãe que uma nova família semudou para a
mansãoPriestly,naavenidaLockwood.Fiquei completamentechocadacommeu interesse inesperadoporalgo
queasra.Baileytinhaadizer.Masderepentealiestavaeu,coladaàmaiorfofoqueira de Cedar Hill como se ela estivesse prestes a anunciar ovencedor domeu reality show favorito. Uma enxurrada de perguntas seformounomeucérebro.Deondeelesvieram?SãoparentesdosPriestly?Porquevocêestáusandoesseternorosahorroroso?— Bem, aposto que será bom ter rostos novos na vizinhança —
interrompeuminhamãeantesqueeupudessecomeçar.Avelhinhabalançoua cabeçacomoseestivesse sofrendoumderrame.
Ela se inclinounamesaeolhoudiretamenteparanósduas,umade cadavez,comosepedisseatençãoexclusiva,algoquesabiajáter.Asra.Baileybaixouavoz.— Você sabe que eu tenho o dom da clarividência, Celine. Vejo coisas
desdecriança...Preciseienfiaracaranocaféparaesconderoriso.— Eu estava passando pela velha casa dos Priestly algumas semanas
atrásetiveasensaçãomaisestranha.Quandoviaobraeoscaminhõesdemudança,tudocomeçouafazersentido.Acasaestácheianovamenteeeusimplesmenteseiqueissonãoébom.—Talvez não devêssemos nos precipitar— sugeriuminhamãe. Dava
para perceber que estava começando a perder a atenção. Ela puxouuma
linhasoltadacalçacapri,franzindoatesta.Também pensei em dizer para a sra. Bailey relaxar, mas ela já havia
desviadooolharparanossoquintalcomosevislumbrasseumadimensãooculta. Porém, na verdade, estava apenas encarando as plantas noparapeito.Elaapertouosolhosesuspirou,provavelmentereparandoqueestavammortas.—Nadadebomvirádapresençadecincojovenscausandoproblemasna
vizinhança,porqueéexatamenteissoqueacontecerá,Celine.Podeanotar.Ela balançou a cabeça novamente, mas cada fio branco arrumado de
formameticulosapermaneceuimóvel,comoseestivessemcongeladosali.—Espere, vocêquerdizercinco caras?—Eu já tinha visto dois deles.
Bem, umdeles,mais oumenos.O segundohaviamederrubado. Fiz umacareta aome lembrar.Mesmodepoisdeumanoite analisandoo assunto,aindanãotinhacertezadoquepensarsobreoacontecido.Asra.Baileyestavaescandalizadacommeuinteresse,éclaro.Suaboca
abriae fechavacomosetentasseacharaspalavrasexatasparaexplicarotamanhodadecepçãoqueeuera.—Cincojovensencrenqueiros—concluiuelaenfim,agarrando-seaseu
peitoparaefeitodramático.—Euosvi fazendoamudançaepossodizer,nãoparecemrespeitáveis.Não foi isso que você disse sobre meu pai?, quis perguntar, mas me
controlei.Adiscussãonãovaliaapena.Nuncavalia.E,alémdomais,eujátinhatodaa informaçãonecessária:haviaumanovafamíliadegarotosnavizinhança.Millieiaterumchiliquedefelicidadequandoeucontasseparaela.Distraída,levanteiparalevarminhacanecapelametadeatéapia.—Achomuitolegalqueagentetenhanovosvizinhos.—Oquehádelegalnisso?—Asra.Baileylançouaperguntaparamim
comoumaadaga.Eumevirei.—Oquenãotemdelegal?NinguémnuncavemaCedarHillporvontade
própria. Este lugar é tão entediante. Parece que a qualquer momentovamostodosvirarfósseis.Quemsabealgunsdenósjátenhamvirado...Mecontroleinovamente.—Nãoprecisasertãodramática—respondeuela.Pisqueicomforçaparaevitarumrevirarinvoluntáriodeolhos.—Tenhocertezadequeesses rapazes sãoperfeitamenteaceitáveis—
ponderouminhamãe, quemexia no kit de costura. Eu podia ver que elaestavamais interessada em achar uma agulha para consertar a linha da
calçaquehaviasesoltado.A sra.Bailey aindamantinhaumaexpressão carrancudano rosto e ele
começavaatremercomoesforço.—Não,Celine,temalgoerradonessahistória.Aquelacasaestávaziahá
tempodemais.Etodosnóssabemosomotivo.— Fantasmas— sussurrei dramaticamente. Eu queria acrescentar um
“uuuuuu”,masacheiqueseriaexagero.A sra. Bailey se levantou abruptamente, segurando o xale para
demonstrarumadesajeitadaindignação.Quandofalounovamente,suavozeraumsussurro.— Pode fazer quantas piadas quiser, Persephone, mas é melhor ter
cuidado.Olhei para minha mãe e fiquei surpresa ao perceber que ela havia
voltadonovamenteaatençãoparanossaconversa.—Famaatraifama—murmuravaasra.Baileysemolharparanenhuma
denós.—Econsiderandooqueseupaifez,émelhorficaratenta...— Acho que já basta, Rita. — Minha mãe se levantou da cadeira,
encarando a velha com um olhar sombrio. — Sophie sabe cuidar de simesma.Elaéinteligente.—É—reforcei,sentindo-meaummilhãodequilômetrosdali.Pensava
emcomoeuhaviamemetidoemperigonanoiteanterior.Adornomeujoelhotrouxeamemóriadevolta.
CAPÍTULOQUATRO
ACARTA
Aspalavrasdasra.Baileydespertaramalgoquenoúltimoanosetornoucomumparamim:culpapaterna.De volta à agradável privacidade do meu quarto, sentei de pernas
cruzadas na cama sempre bagunçada. Com o envelope mais recente daprisãoemumadasmãos,retireicomcuidadoacartaemergulheidevoltana vida domeu pai, que era, pelomenosmomentaneamente, limitada àscartasqueelemeenviavamaisoumenosacadaduassemanas.
QueridaSophie,
Desculpenãoterescritorecentemente.Gostodeesperarparateralgoadizer,mesmoquenãosejatão interessantequantoavidaemCedarHill.Detestariaquevocêpensassequemetorneiaindamaisentediantedoqueantesdepartir.Naverdade,estoutentandotiraromelhorquepossodaminhaexperiênciaaqui.Querodaravocêalgodequepossaterorgulhodenovo.
Achoqueficará felizemsaberqueliArdil22emapenasdoisdias,ouseja, estou ficandomaisrápido na leitura. Terei o conhecimento de um
professorde literaturaquandosair,equemsabeaté possoescreverumlivro.
Espero que seu verão esteja indo bem. Tentenão ligar muito senão puderpegar sol—você vai rir porúltimo quando todos os seusamigos ficarem com rugas prematuras e você ainda tiver a pele de umaadolescente.
Comoestão as coisas na lanchonete? Espero que seu tio Jack estejacuidandobemdevocê.Seiqueeleestáseesforçandobastante,entãopeguelevecomele.Sevocêpedir,tenhocerteza,elevailhedarumafolgaparavocêfazeralgocomaMillie—vivaumaaventura!Sobreseutio,estavapensandoquepoderiasugeriralgumascoisaspara
ele ler também. Seria uma boa maneira de relaxar. Talvez algo comimagenscoloridaseletrasbemgrandes?Estoubrincando.Nãodigaaelequefaleiisso!Eumepreocupocomele,oquepodeparecerirônicodadasas circunstâncias, mas conto com você para ficar de olho nele e napressãoarterialdele.Nãosomosmaisjovenzinhos,infelizmente.Ecomoestásuamãe?Elaselembroudeconsertaralava-louçaou
você precisou botar em ação o plano Pia Cheia? Espero que ela tenhaparadode trabalhardemais,mas seique issoé improvável. Diga a ela,por favor, que estou pensando nela, se ela perguntar, e espero que
pergunte.Nãotenhonotíciasdelafazumtempo,masseiqueelaaindaestáprocessandotudo.Édifícilparaela, assimcomo imaginoquesejaparavocê.
Faz tanto tempo quenão a vejo. Eu ficaria muito feliz se você mevisitassequandotiverumtempolivre.Quetaldepoisdoseuaniversário,quandoascoisasvoltaremaficarmaiscalmas?Jacknãoteráproblema
em lhedar carona, se vocêpedir.Eu sintomuito a faltado seu sarcasmo
adolescente,emboravocênãoacreditemuitonisso.Issoé tudo por enquanto. Estou ansioso por suapróxima carta e,
comosempre,estoupensandoemvocêecontandoosdias.Beijos,Papai
Boteiacartadevoltanoenvelopeeaapoieinamesadecabeceira.Tentei
afastaramelancoliadaminhamente.Mesmodepoisdetantascartasdeleeuaindamesentiatristequandoas lia,mastambémsabiaquenãoterascartasseriamilvezespior.Com peso no coração, apoiei um caderno nos joelhos e comecei a
escrever uma resposta, censurando as partes negativas da minha vida eacentuando as partes positivas enquanto escrevia. Mesmo que o mundoestivessedesabandoàminhavolta,eunãocontariaaomeupai,porqueele,mais do quequalquer um, precisavade boas notícias de todas as formaspossíveis.Enãoimportavaoquantomeencontravairritadaenervosa,eudariaaeleonecessárioparasobreviver.
Oi,pai!Escrevoestacartacomocadernoequilibradoem
joelhosraladosecomamãodolorida.Seestiverseperguntandooquehouve,explico:ontem,voltandodotrabalho,caídecaranochão.
Umasombraassustadoracorreuatrásdemimemejogounochão.Mas
tudobem:nãodeixeiqueelamematasse(denada),etenhocertezadequenãoeraa intençãodocara.Eleprovavelmentecorreuatrásdemimcomoumloucoapenasparameperguntarporqueeuestavabisbilhotandoacasadelesozinha,nomeiodanoite.Adolescentes,né?
Felizmente, sobrevivi para contar a história,emboranãopossadizerquemeuorgulhoestejatãobem.Aindaassim,achoqueéumaboamaneiradecomeçarestacartaeapostoquefezvocêsorrir.
Esperoquealgodebomtenhasaídodesse incidente,porquecorripara
casacommedoemesentindoparanoica.
Fico feliz de saber que você está lendo bastante.Acho que escrever um livro é uma ótima ideia.Dizemqueémuitoterapêutico.
Nãoseiquemdiz issooumesmoseéverdade.Erealmenteesperoque
quando você fala em livro, que não seja um autobiográfico, porque nãogostonemumpoucodaideiadereviverahistóriadoseujulgamentoporassassinato numa versão de bolso, pormais que isso seja bom para suasaúdemental.Etambémnãomeencantaaideiadeveramamãepassarporoutroataquedeansiedadetãocedo.
Não tive muita chance de fazer grandes coisasnessas férias além de trabalhar, e estou meacostumandocomarotina.
Eumeconformeicomoatualestadomonótonodaminhavida.
OtioJackestáótimo.Eleaindaestáseesforçandoparaseadaptaràsuafunção,emborasejaumpoucomaismal-humoradodoquevocê.Seráqueécoisadameia-idade? ;) Ele vai e volta da cidade toda hora.Millieeeudesenvolvemosumateoria:eleconheceuumamulherporlá.Querdizer,quetipodenegócioexigiriaessaquantidadedevisitas?Oquevocêacha:nossoJack,oCasanova?
Humm... É só uma ideia. Se for esse o caso, então não precisamos nos
preocuparcomasaúdedele,contantoqueocoraçãovábem.Embora,conhecendoo tio Jack,émaisprováveleleestarenvolvidoem
algumcasosórdidodoqueemumromanceépico.Atéagoranadachegoupertodepreencherovazioquevocêdeixounavidadele.
Obrigadapordizerquevourirporúltimoquandotodosmeusamigosestiveremquenemuvas-passasnofuturodepoisdepegaremtantosol.
Ficohonradapelainsinuaçãodequeeuaindatenhomaisdeumamigo,
esperoquevocêrealmentepenseassim.Sesoubessequantaspessoasmederamascostas,achoqueficariaarrasado.
E,parafalaraverdade,ficofelizdeestarlongedosol, porque sei que o tempo na lanchonete vaimeajudaraalcançaromeuobjetivofinal:comprarumcarro.Nãoseioquevoufazerparacomemorarmeuaniversáriode17anos,masprovavelmentevai seralgosimples.
OspaisdaMillievãoviajar,entãoelaeAlexvãodarumafestagigante,
comtodososamigosdeledafaculdade.Sevocêestivesseaqui,comcertezanãoaprovaria.Masvocênãoestá.
Acho que a mamãe quer me dar um vestido depresentedeaniversário.Vejoobrilhodosolhosdeladiminuírem um pouco toda vez que ela me vê demoletom.Elatalvezmorrapordentroseeunãousarumvestidoembreve.Namanhãdosábadopassado,eu a flagrei tirando minhas medidas enquanto eudormia.
Seeuenxergarqualquersinaldebabadosoubrilhos,abrigavaiserfeia.
Elaestátrabalhandomaisdoquenunca,eparecegostardisso.
A maioria dos amigos dela também desapareceu depois de tudo quehouve, e os que não sumiram também não aparecemmuito. Acho que amamãeperdeuseucírculosocial.
Seiqueoanopassado foimuitodifícilpara todosnós,masagoraelaparecemaisfeliz,etenhocertezadequesentetantoasuafaltaquantoeu.
Àsvezesparecequeelaodeiavocêetudooquevocêfezagentepassar.
Àsvezeseutambémmesintoassim.
Asra.Baileyvoltouaapareceraquiaosdomingos.Decidi hoje mais cedo que ela deve ser a pessoamaisirritantequejáexistiunesteplaneta.Vocêachaque ela pode ser descendente de Lúcifer? Só umaideia.
Irritanteépouco.Vocênãotemideiadasbesteirasqueelaandadizendo
sobrevocê.EaMilliesódevetermecontadometade.
Elaesteveaquihojedemanhã,falandosobreumafamíliaquesemudouparaaantigamansãoPriestly.Acho que devem ser parentes distantes. Estranho,não? Achei que aquele lugar fosse ficar vazio para
sempre.
Eagoraestácheiadegarotos,garotos,garotos!
Vou te visitar daqui a duas semanas, depois domeu aniversário, quando tiver uma folga nalanchonete.Malpossoesperar.
Detestoaideiadevervocêtãoabatidoetriste.Ficosemprecomvontade
decairemprantos.
Porenquantoésó.Estoucommuitasaudade.
Àsvezestantaqueatédói.
Estousemprepensandoemvocê.
Queriapoderdesligaressepensamento,comoumbotão.
Eestoucontandoosdias.
Contandoosanos.
Muitosbeijoseabraços,Sophie
CAPÍTULOCINCO
OSIRMÃOSPRIESTLY
Euestavadepé,de caranobalcão, torcendoparao tempoacelerar.Atémesmonoshoráriosdepico,alanchonetenuncaficavalotadadeclientes,masnaquelediahaviaumaestranhacalma.Comapenasumahoraparaeupoderirembora,osminutossearrastavam.Parapiorar,oar-condicionadotinhaquebrado,aumidadeestavadeixandoomeucabelotodoarrepiado,eo fornecedor não tinha aparecido pelo terceiro dia seguido, o quesignificavaquesobravampoucosingredientesparaospratos.Millie apareceu atrás de mim, apertando meu ombro. Ela era, afinal,
metademulher,metadecuriosidade.—Então,seessesparentesaleatóriosdafamíliaPriestlyacabaramdese
mudar,ocaradasombraprovavelmenteeraumdoscincocaras?—É—respondiemmeioaumbocejo.—Provavelmente.Elariucomosefosseacoisamaisengraçadaquejátinhaouvido.—Queconstrangedor.Levanteiacabeça.—Antesconstrangidadoquemorta.Elasorriu.—Ah,peraí,Soph,ondeestáseusensodeaventura?Fingiconsideraraperguntadela.—Achoqueenterradodebaixodomeuinstintobásicodesobrevivência.—Vocêpodiaterficadocomumasombra!—Orostodelabrilhava.—Outersidobrutalmenteassassinada—refutei.
—Argh,vocêémuitoestraga-prazeres.—Quetalassim—falei.—Dapróximavezqueeumeencontraremuma
situaçãoperigosacomumestranho,prometoquevoutentarbeijá-lo.— Ah! Não faça promessas que não vai cumprir. Não quero criar
esperanças.O sino acima da porta soou e três garotas entraram na lanchonete.
Reconheci duas delas do colégio. Erin Reyes e Jane Leder eram sóperversidadeepernasdemodelo,epoderiamganhardinheirojulgandoaspessoas se isso fosse uma profissão. Eu estava surpresa de vê-las naGracewell — era o oposto dos lugares de que elas pareciam gostar.Pensando bem, a lanchonete tinha a atração favorita delas — eu. Faziaquaseumanoemeiodesdeaprisãodomeupai,maseucontinuavasendooassuntofavoritodeErin.Ela me viu e deu um risinho. Eu tentei não me mexer enquanto ela
sussurravademaneiraensaiadaparaaterceiragarota,quejámeanalisavacomatençãoabsoluta.— É ela. Ela realmente trabalha aqui, no lugar onde tudo aconteceu.
Acredita?Asoutrasduassoltaramrisinhosesentimeurostoficarvermelho.—Aff—disseMillie,quetinhatantapaciênciaparaaquelecircoquanto
eu.—Euatendoamesa.Eseelasnãotiveremcuidado,levareioscardápiosacompanhadosdosmeussapatosenfiadosno...—Elasecalouedeuavoltanobalcãoparaatendê-las.Agradeci com um sorriso. A lanchonete Gracewell alimentava
basicamenteos trabalhadoreseas famílias locaishaviaanos.Mas,devezem quando, algumas víboras enxeridas do colégio faziam uma visita aoinfamerestaurantedeMichaelGracewell,eMilliesempreseofereciaparaatendê-losparamim.Com a mente dispersa, comecei a puxar uma linha solta do avental,
formandoumlaçoassimétrico.—Pretendetrabalharemalgummomentohoje,Sophie?Ursula, a subgerente, havia aparecido de dentro da cozinha. Ela tinha
basicamenteamesmaidadedasra.Bailey,maserainfinitamentemaislegal,porquepintavaocabeloderoxoesabia terconversasquenãoacabavamcom a minha vontade de viver. Ela gesticulou na direção de Millie, queentregavaoscardápiosparaastrêsgarotas.— Ah, peraí. Não tem mais ninguém aqui e não posso servir mesas-
fantasmas—protestei.ArisadadeUrsulaeraroucaeentregavaseuantigohábitodefumar.
— Só estou dizendo que você parece distraída hoje. — Ela subiu osóculosparaoaltodonarizatéseacomodarem,duplicandootamanhodosseusolhos.—Oudevodizer,maisdistraídadoqueonormal.—Éporqueelaestádistraída,Ursula.—Millieestavadevolta,limpando
oavental.Elaiasairumahoraantesdemime,porumsegundo,sentiumalevepontadadeinveja.—AgentedeviacontarparaaUrsula.—Deviamesmo—repetiuUrsula,virando-separaseapoiarnaparede
aomeu lado. Éramos exatamente damesma altura, então elame olhavadiretonosolhossemesforço.—Maseunãotenhonadaparacontar—jurei.—Mentira!—Millie deslizou para frente do balcão com o casaco nas
mãos.Elaovestiu,comumsorrisotãolargoquequasedavaparavercadadetalhedoaparelho.Elafechouozípereocrachácomseunome,MILLIE,AMAGNÍFICA (não sei como ela convenceu o tio Jack a aceitar isso),desapareceu.Depois se inclinoupara frente, fazendoaspontasdo cabelotocaremobalcão,ebaixouavoz.Ursulacorrespondeudepronto,chegandomaispertoefocandoosolhosemMillie.—Bem,vocêprovavelmentenãovaiacreditarnisso—começouMillie,
apontando para mim com o polegar. — Mas a Sophie está com umaquedinha por uma sombra. Uma verdadeira paixonite. Nossa Sophie é ataradadasombra.Ursulafranziuatestaaopontodeassobrancelhasquasesetocarem.—Oquê?—Elaestábrincando—expliquei,lançandoumolharmortalparaMillie.—Serámesmo,Sophie?Será?—Eladeuumsorrisinhoirônico,deuma
maneira que apenas Millie sabia fazer.— Ursula, vou precisar que vocêtomecontadaquelamesarepletadecriaturasincríveis porqueestou indoembora—disse ela, gesticulando para o canto em direção a Erin e suasamigas,antesdecruzarorestauranteegritar:—Vejovocêsamanhã!AssimqueMilliesaiu,Ursuladirecionouseuolharpenetranteparamim.—Então,oqueéessenegóciodesombra?—Nãoénada,juro.TemumafamílianovamorandonamansãoPriestly,
eachoquedeidecaracomumdelesoutrodia.Massaícorrendo,eagoraMillieachaqueéacoisamais tragicômicaqueela jáouviu.—Pegueiumpanoecomeceialimparobalcão,quejáestavabrilhando.Ursulasemicerrouosolhoscomosetentassedescobrirseexistiaalgoa
maisnahistória,masantesqueelapudessepensaremalgoosininhoacimadaportasoou.Embaladas por nosso silêncio abrupto, duas pessoas entraram pela
porta.Tenteinãoficarboquiaberta.Édifícil ignorarumgarotoalto,morenoe
bonito,masdoiséquaseimpossível.Osdoispararamaoentrar,osombroslargossetocandoparadosali,lado
a lado. Eles começaram a mapear a lanchonete com os olhos, como seprocurassemporalgoquepudesseestardebaixodasmesasoupenduradonosventiladores.Semquerer,Ursulaeeudemosumpassoàfrenteaomesmotempo.Elestinhamumjeitoestilosonatural—ascalçaspretasretaseramfeitas
sob medida, a barra na altura perfeita acima das botas de couro, quedeviamtercustadomaisdoquetodasasminhasroupas,eascamisetasdemarcaeramcomplementadasapenasporumasimplescorrentedepratanopescoço.Analisei o garotodadireita, sentindo algodentrodemim se agitar. Eu
conhecia sua silhueta, sua altura. Baixei os olhos e reconheci a fivelaprateadadasbotas.Ursula e eu não éramos as únicas ridiculamente abaladas: de relance
notei que as três garotas no canto haviam parado de conversar e agoraestavambemmaisagitadasdoqueumminutoatrás.Eunãoasculpava.OsgarotospareciamsaídosdeumfilmedeHollywood.Semolharparanós,elesdeslizaram—sim,deslizaram—atéumacabine
pertodajanelaesentaram,concentradosnaprópriaconversasussurrada.—Podeficarcomessamesa,querida?—suspirouUrsula.—Achoque
não consigo ficarpertodeles. Édeprimentedemais.—Ela seguiuparaooutroladodalanchoneteparaatenderasgarotasnocanto.Meu encontro noturno havia parecido apenas um pesadelo,mas agora
que o Garoto Sombra estava ali, percebi que precisaria enfrentar arealidade—eleeraMonteOlimpo,eueraLanchoneteGracewell,eeunãofaziaideiadeporqueeletinhamederrubado.Comsorte,eutinhagrandeschancesdenãoserreconhecidaporele.Embora a aparência elegante e as semelhanças óbvias tivessem me
levado a crer que eles fossem irmãos, foi o fato de eu tê-los escutadofalando italianoquandomeaproximeidamesaqueconfirmoua teoria—era omesmo tom cadenciado com o qual o Garoto Sombra havia faladocomigo.—Olá,meunomeéSophieevouatendê-loshoje—falei rapidamente,
entregandoumcardápioacada.OGarotoSombrainterrompeuaconversaesevirou.Deperto,eramais
novodoqueeuesperava—aindamaisvelhoqueeu,talvez—,tinhacabelo
castanho ondulado abaixo das orelhas e olhos redondos escuros compontinhos dourados. Fiquei abalada, não por sua beleza, mas pelafamiliaridade. Não conseguia afastar a sensação de já ter visto seu rostoantes—muito tempo atrás— e, embora ele fosse inquestionavelmentebonito, tiveo impulsodesagradáveldedesviaroolhar.Tenteipiscarparavoltaraonormal.Eletinhaapenasmedesconcertado.Seeuotivessevistoantes,nãoteriaesquecido.—Sophie—disseelecalmamente,encontrandomeuolhar.—Achoque
nosconhecemosnaoutranoite.Fiqueidequeixocaído.Mantiveasmãosàfrentedocorpoenquantoseus
olhosbuscavamosmeuscomumaintensidadetotalmentedesconhecida.Oirmãodele,queparecia terumdesinteressecompletonanossaconversa,liaocardápioemsilêncio.OGarotoSombrasorriu.—Euestavaapenastentandoajudarvocêalevantar,sabia?—Ah—disseeu,demonstrandooqueesperavaserumaexpressãode
indiferença.—Querdizer,deondevocêmesmotinhamecolocado?Quantagentileza.Seeleficouofendido,nãodemonstrou.— Você parou de correr tão de repente que não tive tempo de
desacelerar...Eeutenteimedesculpar,mas,seme lembrobem,vocêsaiucorrendo.Sorriconstrangida.—Talvezeutenhaexagerado...—Deixa isso pra lá—pediu ele, levantando asmãos em rendição.—
Vocêsempreficaassim,tãonadefensiva?—Depende...Vocêésempretão...agressivo?—Nonloso—disseelecalmamente,edooutroladodamesa,seuirmão,
concentrado no cardápio, soltou uma risadinha baixa. Eu estavaimpressionada com a facilidade com que ele transitava entre as duaslínguaseligeiramentecuriosaarespeitodoqueelesestavamachandotãodivertido.— Essa é uma pergunta capciosa— continuou rapidamente o Garoto
Sombra,comosesentisseminhairritação.Elefranziuatestaeseinclinoupor cima da mesa. — Sinto muito por toda essa história, Sophie. Eu sóqueriaperguntarumacoisa.Masaívocêparoudecorrertãoderepentee...— Ele parou no meio da frase, fazendo o melhor possível para parecerenvergonhado.—Apareceuumgatoeeunãoqueriaatropelá-lo.
—Ah,entendi.—Mas aí vocêdecidiume atropelar, entãonão tenho certeza se valeu
pena.—Eujádisse—disseeleemtomconspiratório.—Euqueriafazeruma
perguntaavocê.— Você sempre faz perguntas de forma tão agressiva? Acho que não
seriauminterrogadormuitoeficiente.— Talvez você tenha razão— concordou ele com um leve sorriso.—
Mas,dequalquerforma,souimpacientedemaisparaessetipodetrabalho.Mirei os pontinhos dourados dos olhos escuros dele, tentando não
perderalinhaderaciocínio.Haviaalgumacoisanaquelesolhos.—Então,qualeraapergunta?— Bem — disse ele. — Na hora eu quis saber por que você estava
espionandonossacasa.Masdepoisfiqueimeperguntandoporquedecidiuiremboraquandovivocê.Elenãoestavamaissorrindo;meanalisava,eentendioquequeriadizer
—elesabiaqueeuhaviafugidoequeeuestavacommedodele.Masagora,olhandoparaele,nãolembravaporquê.—Estavafugindodemim?Balancei a cabeça exageradamente, fazendo minhas bochechas
tremerem.—Não,dejeitonenhum.— Ah, é mesmo? — insistiu ele, dessa vez com um sorriso largo. O
movimento rearrumava seu rosto de uma forma linda, levantando assobrancelhasesuavizandoalinhadoqueixo.—Prefirodefinircomoummancarcasual.Elechegoupara tráse, aospoucos,pudeprestaratençãonomundoao
redordenovo.—Eudefiniriacomoumacorridadesesperada.—Étudosemântica.—Peçodesculpassemachuqueivocê—disseele.—MeunomeéNic,
aliás,eesseémeuirmão,Luca.Embora estivesse parada entre os irmãos, eu mal havia reparado em
Luca,quejánãoestavamais lendoocardápioeagorarepousavaasmãosentrelaçadasemcimadele.Abriumsorrisoparaogaroto.—Bem-vindoàGracewell.— Morri de tédio com essa conversa — respondeu Luca. A voz dele
estava impaciente e rouca, como se Luca estivesse com a gargantainflamada.—Masébomsaberqueplanejaserminimamenteprofissional
estanoite,Sophie.Fiqueibranca.Quecaragrosso.EleapontouodedoindicadorprimeiroparaNic,depoisparamim,como
senossaconversativesseavercomeletambém.—Estáprontoparaseconcentrar,Nicoli?Nicoli.Onomelhecaíabem.Eralindo.Nic se ajeitou no banco para ficarmais perto demim e assim ficamos
ladoalado,defrenteparaoirmãodele.—Relaxa,Luca.Lucalevantouasobrancelha.—Meuirmão,l’ipocrita.NiclançouamãonadireçãodeLuca.—Staizitto!—Vocêtrabalhaaquihámuitotempo,Sophie?—Lucajogouaconversa
outravezparamim.Elepassouamãopelocabelo,empurrandoasmechaspretasrebeldesdorostoparatrásdasorelhas.Fiqueihipnotizadaporseusolhos azuis, agoraquepodia realmente vê-los. Eram intensos e pareciambrilhardeformaanormalnorostobronzeado.Seráqueeraeleogarotonajanela?Não, ele eramuito bruto, implacável.Não era ele. Eu tinha quasecerteza.—Então?—insistiuele.—Luca—resmungouNic.—Seráquepodeparardefazerisso...—Deixequeelaresponda.— Não, não trabalho aqui há muito tempo — respondi rapidamente,
esperando que isso acalmasse a tensão surgida entre eles. Talvez elestivessemdiscutidologoantesdeeuaparecernamesa.OuquemsabeLucanão saísse muito e essa fosse a ideia dele de socialização. — É só umempregobobodeverão.Eumesenti culpadapormentir sobreopapelda lanchonetenaminha
vidaenomeu futuro,masderepentenãoconseguia lidarcoma ideiadeelespensaremqueeueratãocomum;queminhavidaestavafadadaaserpassadaemumlugarquenãoeraredecoradohaviapelomenosvinteanos,um lugar que pertencia a um homem preso, um lugar onde nadaempolganteaconteciaaninguém.Niclevantouosbraçosdamesaeoscruzou.Elemanteveoolharfixoem
Luca,comoseoinstigasseafazeralgo.Lucapareciainabaladopeloolharfatal.—Vocêgostadaqui?Deideombros.
—Maisoumenos,acho.—Eosseuscolegas?Vocêgostadeles?— Smettila! — sibilou Nic, mudando mais uma vez de idioma sem
qualqueresforço.—Fazdiferençaseeugostodeles?—Medigavocê—retrucouLuca.—Sim,elessãolegais,amaioriadeles—respondinomesmotom.—Por
quê?Estáfazendoumapesquisaparaapolícia,poracaso?Pela primeira vez na nossa conversa instável, Luca sorriu para mim,
revelandodentesafiadosemaçãsdorostopronunciadas.—Sophie—murmurouNic.—Nãofiqueaborrecidacomomeuirmão.
Comopodever,elenãotemomenortratosocial.Asuavidadenavozdelemeacalmou,emepermitiadmirá-lo,mesmoque
porumsegundo,antesdedeixá-losasóscomoscardápios.—Olheparaaquelasduasbelezuras!—festejouUrsulaquandovolteiao
balcão.—EntãoessesrapazessãoosnovosPriestly?Assenticomdiscrição.Dooutroladodalanchonete,NiceLucaestavam
entretidos em mais uma conversa. De volta ao lindo mundo particulardeles. Ursula e eu estávamos no planeta ao lado, assediando-os sem amenorvergonha.—Asuapaquera-sombraéodecabelopreto?—provocouela.—Não,ooutro.De repente, Nic virou a cabeça de leve, como se pudesse nos ouvir.
Prendiarespiração—semsaberporquê—eaperteiobraçodeUrsula,mas ela nem reparou, ocupada demais tentando não babar. De novo, elemergulhounaconversa,comosetivesseprecisadodeummomentolongeda intensidade daquela discussão, assim como Luca. As bocas seacelerarameseusgestosficarammaisexpressivos.— É tão difícil desviar o olhar — provocou Ursula, alheia à raiva
elevando-sedaconversadeles.—Evejaaquelesolhos.Deondeelessão?—Doparaíso?—chutei, enósduas rimos.Eleseramtãoexóticos, tão
diferentesdequalquerpessoajávistaemCedarHill.—Anjoscomem?Foi então que me lembrei de que havia esquecido completamente de
anotarospedidos.Contorneiobalcãoecorridevolta.—Oquevãoquerer?—Pegueiobloquinhonobolsodoaventaleoabri,
rasgandoapartedebaixodafolha.Luca pareceu assustado com a interrupção, como se tivesse esquecido
ondeestavam.Eleabriuocardápionovamente,passouosolhosporcinco
segundoseoafastoucomumacarafeia.—Umcafé.Puro.Forte.ElegesticulouparaNic.—Vouquererosanduíchedefilé,malpassado,comfritas.Eumcopode
leite—disseNic finalmente,antesde fecharocardápioedesviaroolharparamim.—Porfavor.— Algo mais? — Mantive o contato visual, sentindo meus lábios se
contorceremparaformarumsorrisotímido.—Cazzo,ésóisso!—sibilouLucaparamim.Aessaaltura,eujáestavaacostumadaalidarcomclientesdifíceis,masa
atitude de Luca era algo inédito, e eu estava perdendo a paciência maisrápidodoquedecostume.—Desculpe,masvocêestásesentindoofendidopelaminhapresençano
meulocaldetrabalho?Porquenãoprecisaficaraquisenãoquiser.Elemelançouumolharpresunçosoeeuoencarei.—Sónãocuspanomeucafé.Respireifundoeosdeixeiasósnovamente.DepoisquepasseiopedidoparaKenny,nacozinha,mejunteiaUrsula,
queestavalimpandoamesadeErinesuatrupe.Nosocupamoslimpandoas outrasmesas e varrendo o chão enquanto osminutos se arrastavam.Quando servi o sanduíchedeNic,meusolhosnotaramo começodeumatatuagemnascostasdele,acimadagoladacamiseta.Passeiosdezminutosseguintesatrásdobalcãoimaginandoquedeviaserapontadeumagrandecruzornamentada.Cinco minutos antes da hora de fecharmos a lanchonete, quando eu
estava encerrando as contas do dia, o telefone de Luca tocou e ele selevantou,saindorapidamente.Nic se aproximou com timidez do balcão, como se caminhasse em
direçãoaofogocruzado.Amesmasensaçãodefamiliaridadecomeçouaseacenderdentrodemim,maseuaafastei.Controle-se.— Desculpe pelomeu irmão.— Ele agitou o braço em direção a algo
atrásdesi.—Eledevetercaídodecabeçaquandoerabebê...milharesdevezes.—Achoquenuncaconhecialguémtãodiferente—observei.Foiaúnica
coisanãonegativaemquepenseiparadizersobreLuca.Nic entortou a cabeça, como se houvesse um zumbido no seu ouvido.
Talvezfosseissoqueelepensavasobreoirmão.—Achoquejáestouacostumado.Nãodeixequeeleatiredosério.—Podedeixar.
—Vocênãooachouassustador?Balanceiacabeça.DesúbitoolhardeNicganhouintensidade,enomesmoinstantepercebi
comomeucoraçãobatiaforte.—Quebom—murmurouele.—Maselecomcertezaéestranho—acrescenteicomoconclusão.—E
incrivelmentegrosseiro.— Deveríamos trazê-lo aqui mais vezes pra que você o mantenha na
linha.—Nicretiroudacarteiraumcartãodecréditopretoquereluziaumnívelderiquezaqueeuconheciaapenasemsonhoeoentregouparamim.Derepente,cadapedaçodomeucorpoestavatenso,emepergunteiseeleteria percebido. Ele devia estar acostumado a causar esse tipo de reaçãonasgarotas.—Então,quandovocêssemudaram?—perguntei,tentandomemanter
concentrada.— Semana passada.— Então eu não podia conhecê-lo de outro lugar.
Minhamente estavame enganando. Nic apontou para a velha casa atrásdelecomumarcasual,dandoaentenderqueaquelaerasomenteumadasmuitasmansõesfrequentadaspelafamília.Nãoqueissomesurpreendesse;haviaalgonele,aaparênciadeumgarotoricoquepodiapagarporviagensàEuropaeresortsdeskiemAspen.ElepareciaserdeumalinhagemqueseestendiamuitoalémdeumlugarmedíocrecomoCedarHill.—Masvocêjádevesaberdisso,seestavaespionandoanossacasa.Sentimeurostoesquentar.—Eunãoestavaespionandoasuacasa!Osorrisodeleficoumaislargo.—Certamentepareciaqueestava.EmpurreiamáquinadecartãodecréditonadireçãodeNiceespereiele
digitarasenha.Meuolharpousounosnósdosdedosdamãodireitadele,queestavamcobertosdeferimentosecortesprofundos.—Oqueaconteceucomasuamão?—perguntei, sobressaltadacomo
horror na minha voz. Era uma imagem difícil de digerir e não entendiacomoelenãoestavasecontorcendodedor.Nicafastouamãodamáquinaeaencarousurpreso.— Ah — disse ele lentamente, girando o pulso e observando o
machucado.Obarulhodaimpressãodorecibopreencheuosilêncio.—Vocêestábem?—Estou.
Fiquei com a impressão de tê-lo chateado. Destaquei o recibo e oentreguei.Dessavezeleusouaoutramãoparapegá-lo.—Eunãoquisserintrometida...—Não,claroquenão.—Nicpigarreou.—Eusótinhaesquecido,sóisso.
Fiqueitrancadodoladodeforaoutrodiae,paraentrar,preciseisocarumajanelacomumtapumedemadeiranapartedetrásdacasa.Asmaravilhasdeumamudançaetal...—Parecedoloroso—eudisse, fazendoumexcelentepapelemdizero
óbvio.Nicbalançouacabeçadeleve.—Játivemachucadospiores.Eunãoidentificavaseeleestavabrincandoounão,eantesquepudesse
pensaremalgumaresposta,elejáestavasevirandoparairembora.—Achomelhoreuir,Sophie.—Tchau—falei.—Quemsabeeuvejovocêdepois?—sugeriueleolhandoparatrás.—Desdequevocênãotentemematardenovo.— Vou me esforçar, mas você é mais do quem bem-vinda a espionar
minhacasa.—Elepiscou,avozlevemaisumavez.—Eunãoestavaespionando!—Buonanotte,Sophie.
CAPÍTULOSEIS
OHOMEMAFOGADO
ChegueiemcasaeencontreiumaMercedesprateadaestacionadanarua.Analiseiocarro,que,apenascomsuapresença,faziapareceraindapioroestado lamentáveldoFordacabadodaminhamãe.AMercedespodia serchique,mas estava vazia e nãome era familiar.Omais estranho era queàquelahoraminhamãegeralmente já estavadormindo, enão recebendovisitantes ricos. Eupodia ser a filha dadesonra,mas ela era a esposadadesonra, e isso significava que seu calendário social agora era bemmaislivre do que costumava ser. Agora, em vez de amigos, minha mãe tinhaprojetos.Comecei a ficar em pânico com a ideia de ela estarmesmo recebendo
uma visita — o tipo de visita que ia tentar substituir meu pai. Talvezestivesse cansada de esperar. Talvez não quisesse enfrentar os próximosquatroanossozinha,rebatendoperguntasdevizinhosfofoqueirosefalsosamigos,epassartodososdiasdosnamoradoschorandopelanoiteemquemeupaifoilevadoparalongedela.Talvezessefosseocarrodohomemquetentariaconsertartudo.Eume recompus.Haviaapenasumaescolhaa fazer, enãoera ficardo
ladodeforaempânico.Não.Euiaentrarporaquelaportacomtodomeusarcasmo e mau humor adolescente e usá-los para assustar o talpretendentemisterioso.Entreipelaportadafrenteeafecheicomcuidado.Vibraçõesesquisitas
emanavamdacozinha—umavozmasculina!Caminheinapontadospés
pelocorredorepareilogoatrásdaportadacozinha,entreaberta.—Nãoseiporquevocêestátãonervoso.Vaideixá-laapavorada—dizia
minhamãe.—Algumahoravocêvaiouvirmeusconselhos,Celine?FiqueimaissurpresaemouviravoztensadomeutioJackdoqueteria
ficadoaoouviravozdeumcompletoestranho.Segundoohistórico,minhamãe e meu tio nunca se deram bem. Na cabeça dela, o tio Jack estavasempre atrapalhando. E, mesmo quando estava atrapalhando comingressos para shows ou pizzas, ainda era um incômodo. Ele era a únicapessoanomundoqueminhamãese recusavaa tolerar.Estavaabaixodasra.Baileynaescalade“eunãoquerovocênaminhacasa”,e issonãoerapoucacoisa.Quandoerammaisnovos,meupaiemeutiotinhamapenasumaooutro
—oresultadodepaisausentesealcoólatras.Comoeraomaisnovoe serecusava a ter uma vida estável, Jack dependiamuito domeu pai. Ele omantinha por várias noites no bar da cidade ou se intrometia emmomentos da vida do meu pai que minha mãe gostaria de ter mantidoapenasentrenós três.Resumindo, Jackestavasemprepresente,eera,naopiniãodaminhamãe,umamáinfluência.Maseuconheciaooutroladodomeutio—otioquetinhamelevadoaté
ChicagoparaverWickednoOrientalTheatresóporquemeouviudizerumavez que eu gostava de musicais; o tio que ouvia às escondidas minhasconversas com Millie no trabalho para poder dar o que julgava serconselhos sábios sobre nossos problemas com meninos; o tio quebagunçavameucabeloquandoeuestavatentandoreclamardealgosério,que me dava o iPhone mais recente por impulso, “porque sim”, e queinsistiaemmelevardecarroàescolaquandonevavaparaeunãoprecisarpassarfrionocaminhoatéopontodeônibus.Euviaumhomemquefaziaoseumelhorpara ser responsável emeprotegerdepoisdaprisãodomeupai, e emboranem sempre ele tenha conseguidomeproteger das piadascruéisedosconvitesnegadosparafestas,pelomenostentava.Chegueimaispertodaporta.— Não quero que envolva Sophie nas suas teorias da conspiração—
rosnouminhamãe.—Vocênãoaprendeunada?—Eutenhodireitodecuidardela,Celine.EuprometiaoMickey.— Acho que já fez o suficiente — retrucou ela com uma voz
perigosamentecalma,usadaapenasnospioresmomentos.Meencolhiemsolidariedadeaomeutio.—Quandovaideixaressamerdapralá?—vociferouJack.
—Quandovocêassumirasuapartenela!Espieipelaporta.Minhamãeestavadepédeumladodacozinhavestida
comum roupão e pantufas.O cabelo louro curto estavadespenteado e orosto,tomadoderepulsa.Elahaviacruzadoosbraçoseestavaapoiadanabancada, o quadril inclinado em uma atitude desafiadora. Mesmo sendopequena, ninguém queria ser inimigo de Celine Gracewell. Eu, mais quequalqueroutrapessoa,podiaafirmarissocomcerteza.— Estou apenas tentando manter a Sophie segura — disse meu tio,
encolhendoosombros,resignado.—Porquenãomedeixafazerisso?—Porquenãoconfioemvocê.Nãodepoisdetudo.Com um suspiro frustrado, ele deu um passo para trás e balançou a
cabeça.—Vocênuncaconfiouemmim.—Ah,calaaboca,Jack.Aosentirquejátinhaouvidoosuficienteparaficardesconfortávelpelo
restodoano,empurreiaportacomforça.—Oqueestáacontecendoaqui?OrostodotioJackseinundoudealívio,ecorou.—Aíestávocê!—É.—Aponteiparamimmesmaparadarumefeitodramático.—Aqui
estoueu.Porqueessagritariatoda?— Nada, nada. — Ele passou a mão pelo cabelo grisalho cortado à
máquina, interrompendo o movimento para coçar a nuca. — Só estouestressado.Jacksempreestavaestressadocomalgumacoisa.—Oqueestáfazendoaqui?— Sendo dramático — provocou minha mãe antes que ele pudesse
responder.Ui.—Aquele na entrada é o seu carronovo?—perguntei, parando entre
minhamãeemeutioparatentarmudaroclima.—Seestáganhandotantodinheiro assim com a lanchonete, provavelmente deveria me dar umaumento.Elenãoachouapiadaengraçada.—Pegueiemprestadodeumamigo.Nãoestoudirigindomeucarronos
últimosdias.—Estava se sentindo chamativodemais essesdias?—brinquei, numa
tentativademelhoraroclimadenovo.Nãohavianadamaisdesconfortáveldoqueconstrangimento.E,alémdo
mais,otioJackdirigiaumconversívelvermelhoantigo—símbolomáximodacrisedemeia-idade.Erajustoqueeutirasseumacomacaradele.Elesuspirou.—Algodotipo.Minhamãepassoupormimparaencherumcopodeágua.—Sófalalogooquequerdizerparapodermosvoltaraotrabalho.—Oqueestá fazendoaqui a essahora?—pergunteinovamente.—E
por que não tem aparecido na lanchonete? O fornecedor ainda nãoapareceu.Meutiomoveuospéscomoumacriançaperdida,incertodeondeficar.—Eusei—disseele,comavozgrossadecansaço.—Luismorreusexta
ànoite.—Ah—falei,sentindoumsúbitogolpedeculpa.Ofornecedortinhaum
nome: Luis, sim, é verdade. E agora Luis, que mal tinha chegado aosquarentaanos,estavamorto.—Oqueaconteceucomele?—Eleseafogou.—Seafogou—repeti.—Ànoite.Onde?— Na banheira de casa— respondeu ele simplesmente, como se não
houvessenadabizarroarespeitodoqueacaboudedizer.—Minhanossa—soltouminhamãe,cobrindoaboca.Eu,noentanto,estavaboquiaberta.Tudopareciatãoincoerente.—Foi suicídio?—Naúltima vez que assinei uma entrega, Luis estava
tagarelandosobrecomootempoandavaótimo.—Luistinhamuitosmotivosparaviver—respondeuJackfriamente.—
Elenãofariaisso.—Oqueaquiloqueriadizer?Umfriorepentinoarrepioumeus braços.Meu tio continuou, inabalado pela insinuação,me deixandoemsilênciocommeusquestionamentos:—EricCaineeuvamosvisitarosfamiliares dele amanhã. Querome certificar de que tenham tudo de queprecisamenquantolidamcomessasituação.Aesposaestáinconsolável.Eu estava começando a me sentir uma completa idiota. Luis e eu nos
encontramos pelo menos vinte vezes e eu mal sabia seu nome; meu tiosabia sua história, conhecia a família e agora ia fazer de tudo para secertificardequeelesficariambem.— É muito legal da sua parte — falei, esperando que minha mãe
concordasse.Ela comcertezadaria créditosao tio Jackpor isso,masnãoestavaprestandoatençãoemmim.—Pobrezinha—disseelacalmamente,semacrescentarmaisnada.—Éacoisacertaafazer—disseJackparamim.— Você está bem? — Meu tio não era muito bom em demonstrar
sentimentos,masdavapraverqueestavaabalado.—Sim—respondeuele, tentandoamenizarminhapreocupação.—Eu
sóqueriaviraquifalarcomvocêantesdeviajar.—Vocêpodia terme ligado.—Eunãoqueriasergrosseira,mashavia
algo em visitas inesperadas queme deixavam nervosa.— Estou semprecommeutelefone.—Perdimeucelular.Precisocomprarumnovo.MinhamãecontornouamesaesesentouomaislongepossíveldeJack.
Elacomeçouatamborilarosdedosnamesa—umadicanadasutildasuairritação— enquanto observava de perto a nossa conversa. Se eu tinhapensadoqueamortedeLuis iriasuavizarseuóbviodesdémpormeutio,estavaerrada.Jackignorouairritaçãodela,esenticomosefosseaúnicaaliqueainda
sedavacontadetodooconstrangimentodasituação.—Então...Oquequermedizer?—perguntei.Ele puxou uma cadeira e se sentou, apoiando os cotovelos nos joelhos
comumacaraderrotada.—DepoisdevisitarafamíliadoLuisamanhã,vouficaremChicago.Não
vouvoltarparaCedarHillporumtempo.Masqueroconversarcomvocêsobreumacoisaantesdepartir.Eleolhouparamimcomseussincerosolhosazul-acinzentados—iguais
aosmeuseaosdomeupai.Comumapontadasúbita,melembreidecomoos irmãoseramparecidos.Antesdisso tudo,davaquaseparapensarqueeleseramgêmeos,masnãomais.Avidanaprisãofoicruelcomomeupai,enquantoorostodomeutiopermaneceubasicamentesemnenhumaruga,ocabelointactoeapelecomumlevebronzeadodesol.—Sobreoquevocêquerfalar?—Apoieiascostasnobalcãoeoagarrei
commais forçadoquetinhapensadoemfazer,pressentindoalgoerrado.Era por isso que eles estavam brigando. Minha mãe continuava atamborilarnamesa.—Uma famílianova semudouparaobairro eprecisoquevocê tenha
cuidadocomela.Sentiopânicoseespalharpelomeucorpo.—Comoassim?—Sabedoqueestoufalando?—questionouelecomcuidado.Assentidevagar,tentandoentenderdeondeessaconversatinhasurgido
eporqueestavamedeixandoempânicodenovo.—OquehádeerradocomosPriestly?Olheiparaminhamãeembuscadealgumapista.
—Teatro—murmurouela, fazendoumgestodesdenhosocomamão.Aindaassim,permaneceuondeestava,acompanhandoaconversa.—Persephone.—Rangiosdentespor instinto.Euodiavaquando Jack
me chamava pelo meu nome completo — Não vou entrar nesse méritoagora—disseele.Quandomeutiofalavasério, ficavaigualaomeupai,emedavaarrepios.Porumsegundo,quisfecharosolhosefingirqueelenãoestavaali,quetudoestavacomodeveriaser;quenãotínhamosacabadodecomentar que alguém haviamorrido afogado na sua própria banheira, eque não estávamos prestes a determinar um alerta de perigo contra ogarotomaisbonitodacidade.—Apenasfaçaoqueeupeço.Eunãoconseguiaevitaradesconfiança.Mesmocomamãomachucada,
haviaalgodetranquilizantenapresençadeNic.—Quandovocêvolta?—Aindanãosei.Misterioso como sempre. Desejei queMillie, a Interrogadora, estivesse
ali.Elaarrancavarespostasatémesmodeummudo.Eaindasedivertiria.—Entãoésóissoquevaimedizer?—Étudoquetenhoparacontar.—Jackdesviouoolharparaajanelaem
direçãoàescuridãodoquintal.—Entendeu?Eu estava prestes a responder que na verdade não estava entendendo
nadaquandoacoisamaisestranhaaconteceu.Jacksaltoucomosetivesselevadoumchoque.Acadeiracaiuparatráseelesaiucorrendo.—Oquefoi?—Acadeiradaminhamãearranhouochão.Jacksedebruçounapiadacozinhaeesticouamão.Acheiqueelefosse
socarajanela,masemvezdissoagarrouopotedemelqueaindaestavanoparapeito. Quando ele olhou para mim novamente, seus olhos estavamvermelhosesaltados.—Deondeveioisso?— O-o-omel?— gaguejei. Eu nunca tinha visto alguém tão assustado
comalgotãoinofensivo.—Euachei.Eleapertouolaçopretoentreosdedos,esfregando-o.—Onde?Deideombros.— Alguém deixou na lanchonete. Encontrei quando estava fechando a
loja.A cor desapareceu do rosto dele, transformando suas bochechas
normalmenterosadasemumtomdebrancoqueodeixavadacordepapel.— Se encontrar outro, quero que deixe onde estiver e me ligue
imediatamente.
—Jack,ésómel—afirmei.Porquetodosandavamagindodeformatãoestranhaultimamente?Eu
já tinha provado o mel e sobrevivido, então não era como se estivesseenvenenado.—Apenasmeobedeça—repetiuelecalmamente.—Certo?—Penseiquevocêtivessefaladoqueestavasemcelular—lembrei.—Vouavisarquandocomprarumnovo.— Jack? — Com tudo de estranho que estava acontecendo, eu havia
esquecidoqueminhamãecontinuavaali.—Achoqueestánahoradevocêir embora. Está agindo de forma estranha e está me deixandodesconfortável.ASophieprovavelmentequerdormir.Abri a boca para protestar — eu não estava cansada —, mas me
controlei.Elatinharazão.—Certo.— Jackolhouparao chão,balançandoa cabeça.—Desculpe,
Sophie.Tiveumdiamuitolongo.— Não tem problema. — Dei um sorriso reconfortante. Entre
administrar a lanchonete e cuidar dos investimentos em Chicago, Jacksempretrabalhoudemais,masnosúltimosdiaseleandavairreconhecível;estavaexaustoeagitadoe,agora,comamortedeLuis,seucomportamentoestavaaindamaisestranho.—Boanoite,Sophie.—Boanoite—respondi.Comomelaindanasmãos, Jackcaminhouapassos lentosparaaporta
dosfundos.Meiosegundodepois,ocensordemovimentoseacendeu,iluminandoa
sombra domeu tio enquanto ele ficava de costas para nós, encarando ochãoquebradodoquintaleagramamalcuidada.—Oqueeleestá...O fimdapergunta foiabafadoporumestrondodemachucaroouvido.
Encosteimeunariznajanela,masJackjáhaviadesaparecidodevista.Olheiparaochão,ondealuzrefletiacentenasdecacosdevidroeodouradodomel.—Essehomem!—guinchouminhamãe,vindosejuntaramimnajanela.
—Éexatamenteporissoquenãooqueroporperto.Ocomportamentodoseu tio é completamente irracional. Ele anda bebendo de novo e, se nãoparar,vaiacabar fazendoalgodequevaisearrepender...—Elaparoudefalareapertoumeubraço.—Vocêestábem?—Estou—menti,apoiandoamãonajanelaparaquenãotremessemais.—Queriaqueseupaiestivesseaquiparamantê-lonalinha.
—Achoque,seopapaiestivesseaqui,otioJacknãoprecisariadisso—faleicomcalma.Minhamãesoltouumsuspiro.—Vouterqueesperaratédemanhãparalimparaquelabagunça.—Podedeixarqueeuajudo.Ficamos na janela assistindo ao mel se espalhar pelas rachaduras no
concretocomosefossesanguedouradoescuro.
CAPÍTULOSETE
OSFALCÕESRUBROS
Millietinhaumaroupaparacadaocasião.Porisso,quandoelaapareceunasquadrasdeesportenaorlado rio, no sábado,não fiquei surpresadeencontrá-la com um microshort jeans e a camiseta de basquete maisapertadaquejávi.Elaabriucaminhoentreosadolescentes,desfilandonaminhadireçãoemumaexplosãodepretoevermelho.—NãosabiaquevocêerafãdoBulls.— Ah, não?— Ela deu um sorrisinho e se acomodou aomeu lado no
primeirobancodaarquibancada.— Oumelhor— falei, enquanto ela prendia o cabelo em um rabo de
cavalo.—Eunemsabiaquevocêgostavadebasquete.—Achoqueémaisjustodizerquesoufãdegarotos.—Elaterminoua
últimavoltanoelástico.—AcamisaédoAlex.Encolheunamáquina.—Elasorriusemamenorvergonha.Olhei para as roupas que eu usava: uma legging da minha mãe, uma
regata cinza e um par de Asics velho com listras verdes berrantes. Meucabeloestavapresonoaltodacabeça,caídoentremeusombrosnumrabodecavaloreto.Eujásentiaosolqueimarosfiosnovos,ralosdemaisparaficarempresoscomoresto.Milliepassouosolhosporminharoupa,torcendoonariz.—Vocêestá...—começouela,hesitante.—Básica?—concluí.Eunãotinhalámuitaaptidãoparaesportes,masestavafelizdeteralgo
paramedistrairdocomportamentorecentedomeutio.Faziadiasdesdeapartida dele depois do surto com o pote de mel, e ainda não tinha meligado.Ursulafoiencarregadadalanchonetenaausênciadele.FoielaquemmaisseabaloucomamortedeLuiseestavadecididaanuncamaistomarbanhodebanheira,paranãoseafogar.Millieeeureagimoscomumpoucomenos de drama, mas ainda assim estávamos felizes por nos livrar dossermõesmórbidosdela,nemquefossesóporumdia.NósnuncajogávamosnotorneiodebasquetedeverãodeCedarHill.Não
que fosse exatamente um “torneio”. Era mais um evento relacionado abasqueteorganizado todomêsde julhopelaAssociaçãodeMoradoresdeCedarHill.Comopartedasemprecrescenteagendadecompromissos,queincluía a manutenção de parques, vigilância da vizinhança e noites decinemaaoarlivre,aAMCHsempretentavacriarnovasmaneirasdemanteros adolescentes longe das ruas e das más companhias de uma forma“positivae socialmenteaceitável”duranteoverão.O torneiodebasqueteeraumdospoucoseventosquedavacertoe,aolongodosanos,setornouuma tradição de que todos zombavam, mas que ninguém perdia. Erarealmenteumadasúnicascoisasqueunia todosos jovensdavizinhança;pelorestodoverãoéramoscomobolasdefenosuburbanasepreguiçosas,zanzandopelacidadeemduplasetrios.ParaMillieeeu,oeventosemprehaviasidoumespetáculoqueagente
aproveitava das arquibancadas tomando sorvete e olhando para garotosbonitos. Mas, pelo bem de uma “retomada social”, como Millie chamou,decidimos que naquele ano iríamos participar. Fiquei em dúvida; seninguém queria ser visto com a filha de um assassino, quem gostaria dejogarbasquetecomela?AindabemqueAlex,oirmãodaMillie,convidouagente para fazer parte do time dele. Suspeitei de que aquela fosse umaforma de tornar o evento mais desafiador para ele — a essa altura, ostroféusdosúltimostrêsanosjádeviamestarempoeiradosnaprateleiradoquarto.—Talvezagenteganheessenegócio,sabe.—Millieestavareclinadano
bancoapoiadanoscotovelos,avaliandooambiente.Como sempre, havia muitos espectadores se apertando nas
arquibancadas e espalhados pelo gramado que cercava as quadras. ErinReyes e o resto da sua gangue já haviam se estabelecido em um localprivilegiado,noaltodaarquibancada.Emvezde jogaremnotorneio,elasficariam praticando a arte de jogar charme tomando picolés. Elas jáestavam fazendo um trabalho tão bomque chegava a ser constrangedor.Logo atrás das quadras, o rio corria preguiçoso, refletindo o céu azul, e
fileiras de arvorezinhas à margem se curvavam sobre a água como seestivessemprocurandoalgonofundodorio.— Lembro da última vez que joguei basquete — disse Millie com
nostalgia.Elaencaravaocéueeupodiaverqueosoljácomeçavaapintarsardasnoseurostopálido.—Euestava tentandopassarabolaproAlex,maselenãopegoueelaacabouquebrandoajaneladacozinha.—Bonstempos—lembreisaudosa.—Evocê?—Elabaixouacabeça.—Achoquenunca?PequenasrugasseformaramnatestadeMillie.—Tenhocertezadequevaijogarbem.—Ébomquejoguemesmo—interrompeualguém.Alex caminhava na nossa direção com um sorriso de propaganda de
pastadedente,acompanhadodedoisamigos.Oprimeiro,reconhecicomoRobbieStenson,umaversãobaixinhaebemmenosatraentedeumbonecoKen, que já vinha de fábrica com cabelo castanho jogado no rosto esobrancelhas exageradamente modeladas. Ele não andava: trotava peloslugares,comoumaespéciedetrollcheiodeestilo.Ooutrogarotoeuviumavez ou duas na casa da Millie jogando videogame, mas ele nunca falavamuito. Ele tinha um cabelo louro-arruivado, braços e pernasdesengonçadoseumatestaquebrilhavamaisdoqueosol.Milliesaltoudobanco.—Jáestavanahoradeaparecerem.Temosumtorneioparavencer.—Soph,conheceStennyeFoxy,né?—Alexapontouparatrás.Ah,garotoseseusapelidosidiotas.—Aham,oi—cumprimentei.RobbieStensonrespondeucomumacenodecabeçasutilquediziaque
ele era legal demais para esse tipo de apresentação— tão sutil quemalnotei—, e “Foxy” jogou um colete amarelo paramim. Eume atrapalhei,deixei o colete cair e precisei abaixar para pegá-lo. Eles obviamente nãoestavamnadafelizesporeufazerpartedotime.Millie pegou o colete por um reflexo, mas o largou no chão como se
estivesseemchamas.—Dejeitonenhum.Nãovouvestirisso.Estáfedendoasuor.—Você está falando sério?—A voz deAlex já demonstrava sinais de
cansaçoparaassuntosfraternais.Milliefranziuoslábiosemsinaldenojo.—Euliteralmenteprefiromorrer.Segurei meu sorriso. O sotaque britânico dos dois transformava as
conversasmaisbanaisemobras-primasdoteatro.Robbie,Foxyeeubotamosnossoscoletessemprotestos;omeuiaatéos
joelhos e cobria metade dos braços, encobrindo tudo menos meus tênisluminosos. Eventualmente, e depois de uma pressão não muito sutil daminhaparte,Millieseresignouevestiuocoletedela.—Vocêéumatirana—murmurouela.—Pelomenossuaspernasaindaestãobonitas—tenteianimá-la.Mas
nãodavaparaignoraraverdade.Estávamosafogadasemfosforescência.— Vamos jogar primeiro na quadra um — disse Alex, batendo e
esfregandoasmãos.—OnomedonossotimeéCestasCertas.Millieeeufizemoscaretas.—Esseéopiornomedomundo—falamosemcoro.—Porquenãopensamemalgomelhor,então?—desafiouAlex.—Ah,ah,ah—Milliecomeçouapularsemparar.—QuetaloSegredo
daVitória?AlexbaixouorostoeFoxysoltouumgrunhido.—Issonemfazsentido—interrompeuRobbie.—QuetalFaróisHumanos?—sugeri,gesticulandoparanossoscoletes
luminososhorrorosos.—Ok.—Alex jogouasmãosparaoaltoemrendiçãoeRobbieeFoxy
assentiramrelutantemente.—Vamosmudaronome.Milliecurvouasmãosemvoltadabocaesoltouumavozquebradiça:—ÉumpequenopassoparaSophieeumsaltogigantescoparaosenso
dehumordeAlex.Robbiesaiucorrendoparamodificarnossonome,deixandoFoxyeAlex,
que jáestava levandoasituaçãoummilhãodevezesmaisasériodoquenós.— Fiz um reconhecimento de território — começou Alex,
compartilhandoa informaçãocomosefosseumfuzileironaval.—Muitosdosoutros jogadoresesteanosãomaisnovosdoquenós,oquenosdáavantagem...Millie me deu um soco no braço e minha atenção se desviou de seu
irmão.—Oquê?— Agora você vai morrer, literalmente. — Os olhos dela estavam
arregalados, e eu me virei para seguir seu olhar. — São eles, certo? OsirmãosPriestly?Elanãoestavatotalmenteerradasobreminhamorte.Meucoraçãocom
certezaparoupor alguns instantes.Cruzandoaquadraoposta, os irmãos
Priestly vinhamnanossadireção; eramquatrodessa vez, e oparentescoeraevidenteporsuapelebronzeadaecabeloescuro.—Nuncapenseiquepudesseacharumabermudadebasqueteatraente
emumcara.—Foitudooqueconseguidizer.—Estavapensandonisso—disseMillie.Oqueelesestãofazendoaqui?,pensei.Amaioriadopúblicoparticipava
emnomedatradição—eraumamaneiraagradávelobastantedepassarotempo,aúnicaopçãoemumdiaensolaradoparaummontedejovensquenão tinhamnadapara fazer.Masesses garotosnãoeramcomoasoutraspessoas de Cedar Hill. Eu imaginava que fossem superiores demais parafrequentaremumtorneiomunicipaltoscodebasquete.LucacaminhavaaoladodeNiccomorostosério,eaoladodecadaum
estava um novo irmão. Eles provavelmente venceriam uma corrida derevezamento,sequisessem.Pelo jeitocomoos irmãospareciamprestaratençãoemLucaenquanto
elefalava,deduziqueeraomaisvelho,emboraosoutrosdoisqueeuaindanão conhecia, extremamente parecidos, não pudessem ser muito maisnovos—18ou19anos, talvez.Erammaisbaixose fortes,mas tinhamomesmoqueixoretangulareos traçosbem-definidosdorosto.DeduziqueNic era o mais novo dos quatro, embora a diferença não fosse muitogrande.—Benditabeleza!—Milliepraticamentesalivava.—Quatrogaranhões
italianostiradosdiretamentedosmeussonhos.QualdeleséoNic?Meusolhosaindanãohaviamsedesviadodele.—Odecabeloescuro.—Rá,rá,muitoengraçado.—Osegundodadireitaparaaesquerda.—Uau.EoLuca?—Osegundodaesquerdaparaadireita.Millieassobiouparasimesma.—Olá,olhosazuis.AlexcutucouoombrodeMillie.—Jáacabou?Estamostentandofalarsobreanossaestratégia.—Calaaboca—protestouela,dispensando-o.—Estamosocupadas.—
Ela apertou os olhos, apurando a situação.— Ok, quem é o da extremadireita?Odecabelolambidoparatrás?Aquiloéumacicatriz?—Nãosei.Talvezdevêssemoschamá-lodeBrilhantina.Quantomais eles se aproximavam, mais claro ficava que chamavam a
atençãode todasasgarotasdo lugar, e elespareciamestar cientesdisso.
Queria saber onde estava o quinto irmão— o garoto de olhos claros dajanelaquehavialevantadoamãosemumsorriso—masessepensamentodesapareceuquandoosolhosdeNicencontraramosmeusequaseexplodideansiedade.—Oi—articulouelecomoslábios,sempronunciar.Sorridevolta,resistindoàvontadedesegurarmeuestômagoidiota,que
nãoparavadedarcambalhotas.—Minhanossa,elesabeseduzir.—Milliepulavadeumpéparaooutro.
—Elesestãovindoparacá.Ficacalma.Fomoslevadasemdireçãoaosirmãos,comoseporímãs,deixandoAlexe
seuscomparsasparatrásenquantofalavamsobreestratégiasentediantes,determinados, como todos os garotos na quadra, a ignorar os recém-chegados.Oavisodadopelomeutio,tãoimportanteecrucialnaquelahora,desapareceupeloar. Seessesgarotoseramrealmente sinaldeproblema,comoJackpensava,euderepenteestavadispostaamearriscar.—Ei—chamei.—Nãosabiaqueiriamjogarhoje.Nic parou a um metro de distância e os outros irmãos fecharam um
círculoemvoltadenós.—Foiumacoisadeúltimahora.Agoraestoufelizdetervindo.Milliemebeliscou.Erasuaversãosilenciosadeumgritinhodealegria.—Coletebonito,Sophie—disseLuca,logodecara.—Malconsigovê-la.—Luca.—DesvieiminhaatençãodeNicapenaspelotemponecessário
paradispensarumolhardedesprezoaoirmãodele.—Éumprazer,comosempre.O irmãoao ladodele riu.Ele tinhaumcabelo ridículo:apartedecima
estavapresanumrabodecavalopretocurto,easlateraisdacabeçaeramraspadas, deixando à mostra uma pequena argola dourada na orelhaesquerda.Apesardocortehorroroso,eleerabonito,masquandoriaseusolhos se arregalavam de forma anormal e a boca aberta revelava doisdentes da frente lascados, que lhe davam um aspecto ligeiramenteassustador.ElemelembravadaquelahienaloucadeOreileão.—IgnoreoLuca.Issoéapenasumatentativamalsucedidadehumor.—
interrompeu Nic, lançando um olhar reprovador para o irmão em meunome.—Emeujeitodeapontarqueelaépequena—acrescentouLuca.—Obrigada,Sherlock.Euseiquesoupequena.—Sóestavamecertificando.— Você por acaso tem algum filtro entre o cérebro e a boca? —
perguntei.
—Tentonãousá-lodemais—respondeuele,despreocupado.—Dápraperceber.—Nãoprecisachorar,Lumicolor.—Calaaboca,Luca.—Nicpassouseucoletevermelhopelacabeçaeo
ajeitou.—Achoqueocoleteficaótimoemvocê,Sophie.—Cazzo,vaicomeçardenovo—reclamouLuca.Elerevirouosolhose
depois se curvou para Rabo de Cavalo, acrescentando em um sussurrocalculado:—Foiassimqueeleficounalanchonete.Foitãoirritante.—Sabe,Luca,vocêtemumtalentoparasussurrarascoisasnovolume
certoparaofenderaspessoas.— Obrigado, Sophie. — Ele subiu o tom da voz, deixando sua falsa
sinceridadequasecrível.—Agradeçopelaobservação.—Eudeverialhedarumamedalha.—Nemsedêaotrabalho—disseele,rindoironicamente.—Depoisde
hoje,tereiumtroféu.Abriumsorrisinho.—Seioquevocêpodefazercomessetroféu...ArisadadeMillieabafouo finaldaminharesposta.Elameabraçoude
lado,beliscando-mepelocolete.Gritinhos,gritinhos,gritinhos.— Então, qual é o nome do time de vocês? — cortou Nic, tentando
resgatarorumodaconversa.Infleiopeitoeafasteiosfiossoltos—agoraquasebrancos—dorosto.—FaróisHumanos.Lucabufou.— E o de vocês? — perguntou Millie, mas sua pergunta não era
direcionada aNic; ela olhava para Brilhantina,mordiscando levemente olábioinferior.Estudei o rosto dele— Millie tinha razão, ele tinha uma cicatriz. Era
claramente um ferimento antigo, que cortava a sobrancelha esquerda ebrilhavacontraapelebronzeada.Instintivamente,olheiderelanceparaamão machucada de Nic, e senti uma inquietação borbulhar no meuestômago.Masaafastei.— Falcões Rubros — respondeu Brilhantina para Millie, caindo
diretamentenaarmadilhadela.—Intenso—disseMillie,comumaexpressãodeflerte.—EraissoouOsFaz-Fantasmas—acrescentouLuca.Ohumordeleera
tãocaradepauqueàsvezeseunãosabiaseeleeraengraçadooudoido.—Chega.—NicdeuumsocofortenobraçodeLuca,masoirmãonemse
mexeu. Se eu tivesse recebido aquele soco, estaria no chão chamando a
mamãe.— Calmati! Acho melhor eu interromper isso. — Brilhantina se
intrometeu, alternandoas línguas comamesma facilidadedeNic eLuca.Eradifícildizerqualsotaqueeraoreal.Brilhatinaseaproximouparanoscumprimentar,segurandoamãodeMilliepormaistempoqueaminhae,notei, acariciando-a com o polegar. Talvez Millie finalmente tivesseencontrado sua alma gêmea. — Meu nome é Dominico. Mas podem mechamardeDom.Milliesoltouarisadinhamaisassustadoraquejáouvi.—EusouMillie.EssaéaSophie.Bem-vindosàvizinhança.Bem-vindosàvizinhança?Euprecisavajogarissonacaradelamaistarde.
Quem sabe ela podia dar uma passada na casa deles com uma cesta demuffins?— Obrigado. Você também trabalha na lanchonete, Millie? — Dom
esticou a pronúncia do nome dela como se estivesse falando de umadelicadaflor.SeucharmeeraquasetãopoderosoquantoodeNic,masseusolhos eram escuros e suas expressões mais intensas. Observei a cicatrizenquanto ele se afastava demim para ter uma conversamais particularcomMillie.SentioolhardeNicemmimnovamente.—Boasortehoje—disseelecomsinceridade.—Obrigada, para você também.—Havia outras coisas que eu queria
dizeraele,mascomRabodeCavaloeLucanosolhandoeumalconseguiapronunciarumapalavrasemficarcomvergonha.—Nãoprecisamosdesorte—interrompeuLuca,provocandooutrosoco
raivosodeNic.— Luca — choramingou Rabo de Cavalo. O tom da voz dele era
estranhamenteagudo,nãomuitodiferentedavozdeMargeSimpson,eporumterrívelsegundopenseiquefosserirnacaradele.Elefranziuocenhoesuas sobrancelhas se fundiram formando uma lagarta peluda acima dosolhoscordecafé.—Podemosirnosinscrever?— É, vamos, Gino. Nem deveríamos estar conversando com nossos
oponentes. — Luca deu uma cotovelada em Nic antes de ir embora. —Andiamo,garanhão.—Émelhoreuirmepreparar—disseNicemtomdedesculpas.—Não
queroentrarnalistanegradonossoqueridoditador.—Digoomesmo—falei,mas ficamosali.—Dequalquer forma,onde
estáorestodoseutime?Vocêsnãotêmumquintojogador?Ele balançou a cabeça mais casualmente do que eu esperava. Estava
torcendo para que elemencionasse o quinto irmão, que aomenos dessealgumadicadomotivoparasuaausênciaoualgumaindicaçãodequeeledefato existia e eu não havia imaginado um garoto assustador na janelanaquelaprimeiranoite.—Somosumquarteto.—Entãoestãoemdesvantagem—observei.—Éumaatitudearriscada.Nicfezcomqueospontinhosdouradosdentrodosolhosbrilhassem.Eu
não tinha certeza se era algum superpoder ou o efeito do sol, mas eraincrivelmente eficiente. E um pouco desconcertante, embora eu nãosoubesseomotivo.— Você é mais do que bem-vinda para ser nosso quinto elemento—
disse ele num sussuro conspirador.— Prometomanter o Luca longe devocê.Mordi o lábio para impedir quemeu sorriso ficasse assustadoramente
largo.—AchoqueaMillienuncameperdoariaseeuabandonasseobarco.—Ah,entendi.—Elefingiuumolhardefilhoteabandonado.—Vocêé
nobredemaisparaisso.—E,certamente,vocêéhonradodemaisparameroubardela.—Não,nãosou.Sentiumcalorsubirpelomeurosto.— Bem, terei que ser honrada por nós dois, então. Além do mais —
acrescentei, tentando justificar a recusa paramimmesma—, nosso jogocomeçaemumminutoejáperdiareuniãodeestratégia.Nãoqueroirritaraindamaisomeutime.—Ondeelesestão?Apontei atrásdemimparaAlexeo restantedos coletesamarelos,que
estavamnomeiodeumasessãointensadepolichinelos.OsorrisodeNicdesapareceu.—Aquelecaralouro?— Aquele é o irmão da Millie e dois amigos dele. Acho que ela os
subornouparadeixaremagentejogarnotime.NicestudouAlexeosoutrosgarotosenquantoelesfaziamalongamentos
elaborados.—Tenhocertezadequeosubornonãofoinecessário.—Soph.—Millieestavadevoltaemepuxavapelobraço.—Temosque
ir.Nossojogovaicomeçar.Dom havia se afastado dela e tive outra chance de olhar a cicatriz.
Embora ele não pudesse ser muito mais velho do que nós, algo nele o
envelheciaelhedavaaimpressãodeserdiferentedoqueaparentava.Nãoidentifiquei o que era. Ele me viu olhando na sua direção e deu umsorrisinho,comumaexpressãolupinanorosto.Desvieioolhar,envergonhada.—Vejovocêsnaquadra!—Milliemelevoucomela,rebolandobemmais
doqueonormal.QuandoaceneiparaNic,elecontinuavaencarandoAlex.Elenãoacenou
devolta.
GanhamosnossoprimeirojogoatempodeverosFalcõesRubrosjogaremcontraosBarradosnaBolanaquadraemfrente.Erafascinanteassistiraosirmãos Priestly; até mesmo Alex, que não havia mostrado qualquerinteressenelesquandochegaram,estavagrudadonojogo.NiceDomeramosmaisobviamenteatléticos,movimentando-sepelaquadracomopontosvermelhos. Eles faziam a maior parte das cestas, recorrendoocasionalmente aGino, que parecia sermais hábil em assustar os outrosjogadoresdoquedefatojogarcontraeles.Talvezfosseorabodecavalo.Luca deslizava pelas laterais, e quando omomento oportuno aparecia,
ele surgiadas sombras comoumavíborae roubavaaboladoadversárioantesmesmodeelepodernotar suapresença.Mas isso era tudoqueelefazia:interceptar.Nãoovifazersequerumacesta.Elenemsuou.Nosso jogocontraosDeixeoHasselhoffemPazcomeçouantesdo jogo
dos Priestly terminar, embora estivesse claro que, assim como nós, elesavançariam para a próxima rodada. Vencemos com uma vantagemconfortável de 62 a 39. Alex fez quase tudo sozinho, seguido por Foxy eRobbie.Millieficouclaramenteemúltimolugar,maseladeixoubemclaroquenãoseimportava.Estavaaliapenasparafazerumaapariçãosocialeseacontecessedeabolatocarseusdedosporacidenteelanãoseimportaria.Assistimos aos irmãos Priestly vencerem o segundo jogo com mais
facilidade do que nós. No nosso terceiro jogo enfrentamos os EsquilosElétricos. Notei a crescente presença de Nic nas laterais e decidi meesforçarativamente.Milliepareceuterfabricadoumplanosimilar,porquepelaprimeiraveznãoestavafugindodabolaedandogritinhos.Realmentecorriaemdireçãoàbola.No fim do terceiro quarto, os irmãos já estavam em outra quadra,
ganhandoojogocomonós,oquesignificavaquenossostimesiriamparaafinal.
CAPÍTULOOITO
OCANIVETE
—Droga—disseMillie.Apartemaiscurtadasuafranjahaviaenroladoe ela ficava ajeitandoo cabelo emdesespero enquantonos arrastávamospelaquadra.—NãoquerojogarcontraDom.Elevaivercomoeusouruimenãovaiquereriràfestaláemcasasemanaquevem.—Vocêjáconvidouocaraparaafesta?Milliepiscoulentamenteparamim.—VocênãoconvidouNic?—Hum...—MeuDeus,Sophie.—Elaapertouosolhosemassageouastêmporas
comasmãos.—Àsvezeseumeperguntooquesepassanessasuacabeça.—Eunemtinhapensadonisso—admiti.—Eunemtinhapensadonisso—imitouela,natentativamaisfracassada
domundodeimitarmeusotaque.—Nãosoudosul—expliquei.— É no dia do seu aniversário — rebateu ela, ignorando minha
alfinetada.—Vocêtemqueconvidá-lo.— Eu vou convidar.— Tentei não ficar nervosa com a perspectiva de
chamarNic para uma festa que aconteceria nomeu aniversário,mas emqueapenasumascincopessoasfalariamcomigo.—Enquantoisso,vamostorcerparaDomnãoperdercompletamenteo
respeitopormimduranteojogo.—Nãotemproblema—acalmei-a,refazendomeurabodecavalo.—Ele
jáviucomovocêéruim.Elamelançouumolharfulminante.—Comosenãobastasseeletermevistosuar!Deveestarfazendomais
dequarentagraushoje.Alex, Robbie e Foxy se juntaram a nós e começaram a se alongar
novamente.Elesagiamcomtantaseriedadequeeraquasecômico.—Sómaisumjogo,pessoal.Estamospróximosdavitória—disseAlex.—Nãoestamospertodavitóriamesmo—cochichouMillie.Aceneicomacabeçaemabsolutaconcordância.—Estamosferrados.Alexvoltouaatençãoparanós,orostotomadodepreocupação.Nósduas
éramosumcasoperdido,enãopodiaestarmaisclaroqueelesabiadisso.—Certo,osFalcõesRubros têmumhomemamenos,oquequerdizer
queFoxy,Stennyeeupodemosmarcaros trêsmelhores.MillieeSophie,vocêsmarcamocaraalto.—EunãoqueromarcaroLuca!—esperneei.—PossomarcaroDom?—perguntouMillie,esperançosa.Alexpassouasmãosnocabelo,emechassuadascaíramdevoltaaoredor
dosolhos.—Não.SeLucaconseguirsemovimentar,vaiacabarcomnossojogo.PorcimadoombrodeAlexeuviaosirmãosPriestlyseposicionandona
quadra.Concentrado,Nicquicavaaboladeumamãoparaaoutra.Aoseulado, Luca sorria como ummaníaco. Eu me perguntei se ele teria outraexpressãofacialalémde“babacacompleto”.—TerrachamandoSophie.—Hã?Alex estavame encarando, seus olhos azuis tão grandes quanto os de
Millie.Àsvezeseraassustadorcomoelestinhamexpressõesparecidas.—Vocêouviuoqueeudisse?Balanceiacabeçadeformaabobalhada.—Vocêestavafalando?Elesoltouumsuspiroprofundoebotouasmãosnosmeusombros,me
olhando nos olhos. Normalmente, eu ficaria boba se o irmão gato maisvelho deMillie chegasse tão perto demim,masminha obsessão porNicestavamedistraindo.— Preciso que mantenha Millie concentrada. Eu cuido do resto. Os
FalcõesRubrosvãosedarmal.—Precisaparardechamá-losassim.Dessejeitonãoconsigolevarvocêa
sério.
Ele apertoumeus ombros commais força, como se pudesse aumentarminhadeterminação.Observeiumagotadesuorescorrerdalateraldoseurostoparaopescoço.—Sophie,vocêpodeseconcentrar,porfavor?—Ei,cara,achoqueelaentendeu.Alextirouasmãosdemimemeafastei,foiquandoviNicparadobemao
ladodele.NicestavaolhandoparaAlexdomesmojeitodeantes,umolharquedizia“nãoconfioemvocêetalvezqueiramatá-lo”,maserabemmaisdepertodessavezemuitohostil.—Estátãopreocupadoemperderqueprecisaescutarnossaconversa?
—retrucouAlex.Niclevantouumasobrancelha.— Está tão obcecado pelo jogo que você precisa assustá-la? Deixe a
garotaempaz.AlexavançouemNic;eleseramquasedamesmaaltura,masNiclevava
vantagem.—Gostodeganhareelatambém.— Aposto que Sophie também gosta de se divertir. Conhece essa
palavra?—Niccerrouoqueixo.—Deixeelaempaz.—Quemévocê,afinal?—irritou-seAlex.—Nãoconheceagente,então
porquenãoparadecuidardanossavidaevaicuidardasua?Nicnãosemoveu.Estavamquaseencostadosumnooutro,eeupodiaver
pelamaneiracomoAlexdesviavaoolharparaRobbieeFoxyqueeleestavapedindoreforço.NãoeraaprimeiravezquereparavanaposturadefensivadeNic, e entendi que sua desconfiança em relação a Alex era porminhacausa. Pela maneira como Nic olhava para Alex, parecia que ele estavatentandocavarumburaconatestadeAlex.—Meninos,relaxem!—Meenfieinoespaçoentreosdois,separando-os
comasmãos.Alexseafastou,masNicnãorecuoutãofacilmente.Euquasepodiasentiratestosteronasaindodosporosdele.—Vamoscomeçaressejogodeumavez,tá?—Tá.—OsdentesdeAlexestavamcerrados.—Tá.—Nicdeumeia-voltaesinalizouparaosirmãos.Elessereuniram
nalateraldaquadra.Millieseaproximoudemimebaixouotomdevoz.—AchoqueDomvaimechamarparasair.AlexeNicestavamseposicionandoparaoiníciodojogo.—Comovocêsabe?Umgritofoidadoatrásdenós;abolaentrouemjogoeNicconseguiua
posse.—Eledeumuitoemcimademim.Epenseiqueeufossesemvergonha!
Dáparaverqueelenãoqueresperaratéodiadafestaparasaircomigo.Nicfezaprimeiracestaantesdeeutertempopararesponder.O jogo estava indo tão rápido que eumal acompanhava. Eu quase não
tocavanabolaeMilliesóquicavaabolaumavezantesqueLucaaparecessee a roubasse. Sempre que Nic passava por mim, eu sentia como se eledesacelerasse de propósito para que eu pudesse senti-lo encostando emmim, e esquecia que deveria estar marcando Luca. Na metade do jogo,estávamosperdendoporseispontos.No começo do terceiro quarto, Robbie passou a bola para mim— eu
estavaparadapertodacesta,semnenhumamarcação.Puleiparamarcar,masabola foi tiradadasminhasmãosantesqueeupudessearremessar.Ela saiu rolando depois queGino se atirou emmim. Eu teria voado paraforadaquadraseNicnãotivesseaparecidodonadaemeseguradopelascostas.Caíemcimadelecomumbaque.—Cuidado—disseele,ofegante,próximodomeupescoço.—Nic!—gritouLuca.—Atenção!Olheiparacimaa tempodeverumborrão laranjavoandodiretamente
paraminhacara.MinhacabeçacaiuparatrásbemnopeitodeNiceelemesegurouenquantoeudesmoronavaemcimadele.—Tuseipazzo!—berrouNicsobreminhacabeça.Lágrimas começaram a escorrer porminhas bochechas,misturadas ao
sanguequejorravadomeunariz.Umapequenamultidãosejuntouàminhavolta.—Desculpe.—EraavozdeLuca,maseunãoconseguiafocalizaroolhar
nele.—Maseugritei“atenção”.—Porquevocêpassouabolaparamimquandoorostodelaestavana
frente?—vociferouNicsobremim.—Porquevocêaestavaapalpandonomeiodojogodebasquete?—Vaffanculo!Eu não precisava entender italiano para adivinhar o que aquilo queria
dizer.Milliearrancouocoletequevestiaemepassou.Aperteimeunarizcoma
mão livrepara controlar o sangramento, tentandonão sentir o cheirodeanosdesuormasculinoentranhadonotecido.—Seráque todosvocês poderiamdarumespaçopara ela?—ordenou
Millie.Nic retirou as mãos da minha cintura e se juntou aos outros, que me
encaravamcomvariadosníveis depreocupação—comexceçãodeGino,queacompanhavaosmovimentosdeumaborboletaeriasozinho.—Achaqueconseguecontinuarjogando,Sophie?—perguntouAlex.Nicseenfureceu.—Estáfalandosério,cara?Essafoiaúnicacoisaquepensoupradizer?—Qualéamerdadoseuproblema?—reagiuAlex.Antes que Nic pudesse replicar, Millie estava batendo os pés no chão
comoacriançadedoisanosmaisirritadadomundo.—Qualéadrogadoproblemadevocêsdois?Garotosimbeciscomessa
competitiçãoimbecil.Fiquemquietos,todosvocês!Sophieeeunãovamoscontinuarparticipandodejeitonenhumdessejogoinfantilcomumbandode neandertais esquentadinhos para que possam ganhar um troféuvagabundoidiota.Não temosmaisnenhum interesse emparticipardessapalhaçada.—Eu...—começouLuca.—Não!—Millielevantouodedoindicadoreapontoudiretamentepara
oolhodele como se estivesseprestes a furá-lo.—Nãoqueroouvirmaisumapalavradasuaboca.Setiveralgoadizer,podeescreveremumcartãoeenviá-loàcasadeSophiecomasfloresmaisbonitasqueodinheiropudercomprar.Epodedizercomosesentemuitoportersidoumidiotacompletoequasetermatadoela.Sophiepodiatermorrido.Entendeisso?Morrido!Etudoquevocêfezatéagorafoidaressesorrisinhoarrogante.Eunãoachonada disso nem um pouco engraçado, e fique sabendo que eu entendomuito de humor. Então por que não tira esse sorriso da sua cararidiculamente perfeita e aprende um pouco de humanidade, seu masterpríncipedababaquice.Eu não compreendia ao certo como as pessoas não estavam rindo do
nível ridículo de dramaticidade deMillie. Se eu estivesse com um poucomenosdedor,estariarolandonochão.—Mil...—tentouAlex.— Não, Alex! — gritou ela. — Também não quero ouvir as suas
desculpas.Dequelugarmesmovocêveio?Édifícilacreditarqueviemosdomesmo útero. Se não é homem suficiente para viver sem um troféu dementira enchendo seu ego, entãonão éhomemsuficientepara falar comSophie ou comigo. E o mesmo vale para todos vocês, idiotas. — Ela meseguroupelobraçoecomeçouameafastardetodomundo.—Nósvamosparaaarquibancada,ondetemsorvete.Efimdeconversa!Eupodiaverochoquenosolhosdeles;claramentehaviamsubestimado
Millie.Nicquasefaziaburacoscomosolhosnacabeçadoirmão.Seolhares
matassem,Lucajáteriapartidodessemundo.—Vamosvoltaraojogo?—ouviAlexdizerenquantosaíamosdaquadra.—Possoficardeforaparaigualarojogo.—Meucoraçãodeuumsalto
comasugestãodeNic.— De jeito nenhum. Vamos terminar como está. Ainda sim, vamos
vencer.Alex,seuburro.
Depoisdojogo,Nicveiomevernalateraldaquadraenquantoeuapertavaum picolé fechado no nariz. Millie tinha ido procurar Dom para tentarsalvaraquelapaixonitenascentedoseusurtonaquadra.Alexhaviapartidoduranteumacessoderaiva,eLucadeviaestarpasseandoporaícomseutroféugigantedebaixodobraço.—Parabénspelavitória.—Valeu.—Nic se jogou aomeu ladona gramae levantouos joelhos,
passando os braços em volta deles. — Mas não acho que um troféu deplásticodesessentacentímetrosváfazermuitadiferençanaminhavida.—Vocêprovavelmenteteriaperdidoseeutivessecontinuadonojogo—
provoquei. Afastei o picolé e mexi o nariz para recuperar algumasensibilidade,aliviadaporparecernãoestarquebrado.— Novo em folha— disse Nic. Ele se aproximou para examinar meu
nariz mais de perto e pude reparar nas sardas no nariz dele. — Estáperfeito.—Qualéadevocêscomessanecessidadeincessantedemeatacar?—
perguntei.—Estãoatrásdemimoualgodotipo?Podiampelomenossermaissutis.—Deveseralgumacoisaemvocê.—Nicmelançouumsorrisomaroto.
—Geralmentesomosmuitodiscretos.—Quatrogarotosdiscretos.Sãopalavrasquenãocombinammuitobem
naminhacabeça.— Bem, na verdade não são apenas qua...— Nic interrompeu a frase
quandoalgoatrásdemimchamousuaatenção.Olheiporsobreoombro.No final da margem do rio, depois da última quadra, vislumbrei com
dificuldade uma figura de rabo de cavalo empurrando alguém de cabelolourocurtoatrásdeumasárvores.AlexeGino.Eradifícilveroqueestavaacontecendo,maspareciaqueestavambrigando.Nic levantou emum salto. Tentei acompanhar,mas ele eramuitomais
rápidodoqueeu.Emsegundosele chegouao rio,desviouporentreasárvoreseafastou
Alex de seu irmão.Quando os alcancei, Gino estava deitado como corpodobrado,imóvel,apoiandoacabeçanasmãos.Aliperto,NicseguravaAlexnochãoeosdoistrocavaminsultos.Alex rolou o corpo de lado e chutou Nic, fazendo com que ele caísse
sentado.—Issonãotemnadaavercomvocê!—gritouAlexenquantoosdoisse
levantavam.—Você acabou de nocautearmeu irmão!— gritou Nic, partindo para
cimadeAlexeoagarrandopelos joelhos.Eleoatiroucontraumaárvorepequena,quesecurvoucomopesodosdois.—Parem!—Tentei afastarNicdeAlex,maselenãoqueria largar.Me
afasteibematempodeevitarqueAlexmeatingissequandoselançouparaafrente,cabeceandoNiceojogandodiretonalama.—Alex!—berrei.—Vocêenlouqueceu?—Oirmãodelequecomeçou!—EleseposicionousobreNic.—Vocês
sãoumafamíliadeladrõesimundos!Voltemparaolugardeondevieram!Niccuspiusanguenochão.—Nãofaledaminhafamília—ameaçouele.Nicselevantoucommuito
esforço,resistindoaosesforçosdeAlexdejogá-lodevoltanochão.Eleserecuperouelançouumsoco.Alexdesviou,fazendocomqueacertasseoar.Quando Alex o empurrou novamente, Nic nem se mexeu. Em vez disso,esticouosbraçosepuxouAlexparaummata-leão,jogando-omaisumaveznochão.EnquantoAlexxingavaetentavaselevantar,Nicenfiouamãonobolso
de trás da bermuda e tirou algo. Com um movimento, o objeto sedesdobrou.NicsegurouaquilocommaisforçaesecurvouporcimadeAlexatéqueosdoisquaseestivessemcomonariznochão.Eunãoconseguiaveroqueeleestava fazendo,maspercebiumbrilhonamãodeNicenquantoelemexiaoobjetoemmeioàbrigadosdois,egriteiquandopercebioqueera.—Nicoli,smettila!DeiumsaltoaoouviravozdeLuca.Eleapareceuatrásdemim,correndo
emdireçãoaoirmão,eagarrouNicpelopescoço,afastando-odeAlex.A cor sumiu do rosto de Nic ao ouvir o que o irmão sussurrava
intensamentenoseuouvido.Estudeiaspalmasdassuasmãos—ocanivetequeeleestavasegurandohaviasumido.Ali perto, Gino começava lentamente a voltar a si. Ele se levantou,
massageandoanuca.Antesqueelepropriamenteanalisasseacena,quasemederrubouaocambalearemdireçãoàmargemdorioeaosseusirmãos.Alex também havia se levantado e tremia de raiva. Ele se lançou em
direçãoaGino.—Nempensenisso—disseLuca.—Apenasváembora.— Dois contra um não é justo — disse Alex, contornando os irmãos,
sendoquedoisdelesestavamcompletamenteforadeórbita.NicaindanãotinhaditoumapalavradepoisdetersidoafastadodeAlexporLuca,eGinoainda tinha dificuldades de se manter de pé. Eu podia ver que Alex osmedia, analisando seus ferimentos. — Da próxima vez, lute por vocêmesmo,Gino.Entreinomeiodosdois.—Alex,vaipracasa.—falei.—Nãoprecisapiorarasituação.Eleapertouosolhos,observandoNiceLuca,calculandosuasopções.E
então,comrelutância,elecedeu.—Certo.Vocêvem?—perguntouele.OlheiderelanceparaNic.Nãosemreceberumaexplicação.—Emumminuto.—Elesnãosãopessoaslegais,Soph—disseele,comavozconfusa.—
Porqueestádoladodeles?—Eujávou,emumminuto—repeti,tentandoignorarosentimentode
traiçãonorostodele.—Comoquiser.Estou indoembora.—Alexcomeçouaseafastar,mas
antesgritouumaúltimaobservaçãoaoseafastar:—Vocêdeusorte!Eunãotinhacertezadecomqualirmãoeleestavafalando.—Não—disseLuca.—Vocêdeusorte.Assim que Alex sumiu de vista, voltei minha atenção para os irmãos
Priestly.Nictinhadificuldadesemrespirareolhavaparaagramaànossavoltacomumaexpressãoindecifrável.Atrásdele,ocabelodeGinoestavatortoatrásdasorelhas,comoumcogumelodelado.Elemantinhaamesmaexpressãomalucaqueeu tinhavistonaquadra: agitadae sem foco. Lucameolhavacalmamente.—Estamos indoembora—declarou,comoseestivessesaindodeuma
festa,nãodeumabriga.—Quemerdafoiessa?—perguntei,ignorandosuainsolência.—Elemechamoudeladrão—disseGinolentamente,comoseestivesse
apenascomeçandoarecordar.Eleestavaclaramentecomumaconcussão,maseunãoconseguiadizeroquehaviadeerradocomNic,quepermaneciaestranhamentecalado,comosolhosparabaixo.—Eledissequeroubeino
jogo.—Edaí?—perguntei.—Entãoeutivequecalarabocadele!—Elelevantouavozepercebisua
línguapresapelaprimeiravez.Deviaserodentelascado.Lucarevirouosolhos.—Relaxa,Gino.—Brigarnãoéamaneiracertadefazeralguémcalaraboca—falei,me
segurandoantesquedeixasseumseuidiota!escapar.PuxeiNicpelobraçoeosolteidasmãosdeLuca.Eleparoudeprestaratençãonagramaeolhoupara cima, o âmbar dos olhos reacendendo. Pelo menos pareceu notarminhapresença.—Sintomuitoquetenhavistoisso,Sophie—disseelecalmamente.—
Euestavatentandodefendermeuirmãoeascoisassaíramdecontrole.—Nãobrinca.—Estamos indoembora—repetiuLuca,sinalizandoparaNicsegui-lo.
—Vamos.OsolhosescurosdeNicestudavamoambienteenquantoeleseafastava.—Espere!—falei,seguindo-o.Elesevirou.— Acabei de ver você atacar Alex com um canivete. Não pode
simplesmenteirembora!Mesmo ao pronunciar as palavras, eu mal acreditava que aquilo era
verdade.Eratãoassustador.MasNicbalançouacabeça.—Não,nãousei.—Euvi—retruquei.—Vocêtirouumcanivetedobolso.— Você não sabe do que está falando — disse Luca sem se dar ao
trabalhodesevirarparamim.—Vamos,Nicoli.Nicfranziuatesta,preocupado.—Achoquevocêdeveterimaginadoisso,Sophie.—Eunãoimaginei—protestei.Nic não estava me escutando. Ele me lançou um olhar, aquele que os
adultos usam quando querem ser condescendentes — o olhar da sra.Bailey.—Vocêaindaestáconfusaporcausadoqueaconteceumaiscedo.Acho
queprecisadescansar.Eumeafasteidele.—Seimuitobemoqueeuvi.Agora eu estava com raiva. Uma hora ele estava sendo carinhoso e
atencioso, e na outra estava apontando canivetes para o irmãodaminhamelhor amiga e tentando me convencer de que eu era louca quando oquestioneisobreoassunto.—Vamosconversarsobreissodepois,tá?—disseNic.Elemedeuumleveacenodecabeçaantesdesevirar.Fiqueiobservando
osgarotosseafastaremenquantomeperguntavaseestavaenlouquecendoouseeleeraomentirosomaisconvincentequeeujátinhavisto.EuestavaprestesavoltarparaasquadraseencontrarMilliequandoalgo
na margem chamou minha atenção. Segui o reflexo e, em um segundo,estava revirando a grama e segurando o canivete que eu tinha visto Nictirardobolso—entãoera issoqueeleestavaprocurando.Eeupensandoque a expressão cabisbaixa era sinal de remorso! Senti uma mistura detriunfo e náusea quando virei o canivete na palma da mão. Tinha 15centímetrosdecomprimentoeerabemafiado.Dobreiocanivete,fechandoalâmina.Ocaboerapesado,douradoe,nocentro,pertodabase,haviaumainsígnia desenhada. Seu contorno era preto e no lado de dentro estavaentalhada uma águia com arabescos ornamentados em vermelho-escuro.Asasassemiabertastocavamocontornodobrasão.Abaixodosímbolo,haviaumainscrição:Nicoli,12demaioQuasedeixeiocanivetecair.Essenãoeraumcanivetequalquer;eraum
canivetecaro,personalizado,comonomeeoaniversáriogravados,deduzi.Era importante; tinha um significado. E eu não fazia ideia do que aquiloqueriadizer.Virei o cabo para observar o pássaro dentro da insígnia. Eu sabia
identificarumaáguiae,aoolharpelasegundavez,percebiquenãoeraisso.Umgavião,talvez?Entãometoquei.Opássarodobrasãoeraumfalcão.Umfalcãorubro.Eutambémnãosabiaoqueissoqueriadizer,masagoratinhacerteza,bemláno fundo,dequeaquilosignificavaalgoparaos irmãose,certamente,significavamuitoparaNic.Entender tudo aquilomedeixoumeio empânico, porque eu sabia que
nãopodiacontrolarminhareação.Mesmoquemeutioestivessecertosobrea famíliaPriestly, eu aindanão conseguia controlar amaneira comomeucoraçãosaltavatodavezqueeupensavanosolhosescurosdeNic—haviaalgonele, algo que eunão conseguia ignorar. Eu estava começando a tersentimentos por alguém que andava por aí commachucados suspeitos eque carregava uma armapara qualquer lugar, uma armaque claramenteestavapreparadoparausar.Umaarmapelaqualeleiaprocurar,masnãoiaencontrar. Eu sabia que não podia confiar em mim mesma, e isso
significavaqueteriaquefazero impossívelparamemanter longedeNic,aocontráriodoquequeriameucoração.
CAPÍTULONOVE
AINVASÃO
MinhatentativadeficarlongedeNicPriestlyeseusirmãosduroupouco.Quando cheguei em casa domeu turno da noite, alguns dias depois, o
climahaviafechado,trazendoumadaspiorestempestadesdeverãodequemelembrava.Corriparaaportadecasanamesmahoraqueumtrovãorugiuportrás
das nuvens, levantando os pelos da minha nuca e trazendo uma novanuvem de chuva. Após a centésima busca minuciosa na bolsa, aceitei aderrota. Eu tinha esquecido as chaves e, como minha mãe estava emChicagoparaumaprovadevestidodeumacliente,euficariatrancadadoladodeforasabe-seláporquantotempo.Meutelefoneestavasembateria,entãoeunãotinhacomosaberquandoelavoltaria,enãoestavadispostaanadarenquantoesperavaporela.Levanteie, tentandonãoprestaratençãoemcomoachuvacolavameu
jeansaocorpo,corridevoltaparaarua,desviandodaspoçasnocaminho.Se eu corresse em uma velocidade um pouco abaixo à da luz, usando ocaminho mais curto, eu chegaria na lanchonete, a nove quadras dedistância, bem a tempo de encontrar Ursula e a nova garçonete, Alison,fechandoorestaurante.Setudodessecerto,euentraria,pegariaaschavesesairiaatempodenadardevoltaparacasa.Enquanto eu corria, o céu relampejava e rugia, me deixando cada vez
mais aflita. Não chovia assim desde a noite em quemeu pai foi preso, erelembrei, comumdesagradável embrulhonoestômago,de comoaquela
tempestade foi aterrorizante. Desde então, fico apavorada com o som detrovões—elesetornouumsinalsinistro, indesejado.Eagora,nãomuitotempo após nosso fornecedor ter sido encontrado afogado na própriabanheira,aliestavaeu,completamentesozinhaepresanomeiodeumadasmaiorestempestadesdahistóriadeCedarHill.Quandoenfimentreinoestacionamento,meuspésnadavamdentrodos
sapatosalagadosemeunarizestavatododormente.Noladodedentrodalanchonete,as luzesestavamapagadas.Orestauranteinteiropareciaumacaixadeconcretoencolhidasobocéuescuro.Eutinhachegadotardedemais.Atravessei o estacionamento correndo, na esperança de me abrigar
debaixo da marquise na entrada da lanchonete. Pretendia esperar atempestadediminuiredepoisiriaatéacasadaMillie.Seeuconseguisseficarcomosolhosabertoseseachuvanãoestivesse
chicoteandomeucabeloparatodasasdireções,euteriavistoapessoaemfrenteàportaantesdedardecaracomela.—Ei!Prestaatenção!Cambaleeipara trás,deixandometadedocorpopara foradamarquise,
mas não sem antes perceber que a figura estranha estava encostada naporta e comasmãosnovidro, comose espiasseo ladodedentro.Ele seviroueabaixouocapuz.—Nic?—Sophie?— O que você está fazendo aqui?— perguntamos os dois ao mesmo
tempo.—Esqueciminhaschavesefiqueitrancadaparaforadecasa.Nicassentiu,pensativo.Espereiporumaresposta.Depoisdeumalonga
pausa,elerespondeucalmamente.—Euqueriavervocê.Outroraioiluminouocéuepudeverorostodele.Suaexpressãoestava
sériaeestranhamentevulnerável.Eraesquisitopensarquehaviaesseladonele;euoimaginavasempreperfeitoemuitoconfiante.Eperigoso,lembreiamimmesmacomumsusto.Concentre-se,Sophie.Instintivamente,deiumpassoparatrásefiqueiimóvelsobodilúvio.—Vocênãodeveriaestaraqui—falei,satisfeitacomafirmezadaminha
voz.—Nãoachoumaboaideiaagenteseencontrar.—Comoassim?—perguntouele,comavozderepentecautelosa.— Eu sei que você mentiu.— A memória do dia do torneio voltou e
estendi o braço para abrir minha bolsa. Peguei o canivete dentro dela:
estavafechado,masaindaassimmeusdedostremeramaotocaremocabodemetal gelado. Eunão achavaque ele o arrancaria daminhamão,maspartedemimnãoestava convencidadisso; comoeupoderia ter certeza?Dei um passo para trás e segurei o canivete com mais força, tentandoignorarachuvaqueencharcavaminhasroupas.Nicseaproximou.Viseusolhossedesviaremparaminhamão,masele
nãosemexeupararecuperarocanivete.Comcuidado,euo levanteiparaqueficasseentrenósdois.—Reconheceisso?Elemeobservavacomuma imobilidadecalculada.Minhamãotremiae
não havia nenhum som além da sua respiração irregular e os trovõesdistantes.—Eentão?—perguntei.O silênciopermaneceu.A respiraçãodeNic voltou aonormal,mas sua
expressão continuava inalterada, determinada. Quando ele enfim merespondeu,pareciaestarusandotodaasuaenergia.Eleapertouoslábioseempurrouaspalavrasparafora,pronunciando-aslentamente,comosesualínguaotraísse.—Émeu.— Achei na grama depois que você foi embora. — Era um detalhe
desnecessário; ele provavelmente tinha voltado ao local para procurar ocanivete depois de eu ter ido embora. Mas me senti na obrigação delembrá-lo de que estava certa e ele errado por tentar me convencer docontrário.Elesabiaqueeusabiaqueocaniveteeradelee,quantomenoselefalava,maiseuficavadesconfiada.Baixeiminhamãoedeiumpassoàfrenteatéficarpertodele,abaixoda
cobertura,paraqueabarreiraentrenóssedesfizesse.Osombrosdeleseenrijeceram.—Porquevocêcarregaumcaniveteporaí?Eletentouganhartempopassandoamãonocabeloepuxandoasmechas
paratrásdasorelhas.Quandotirouasmãosdacabeça,deuumsuspiroderesignação.—Ocanivetefoiumpresentedomeutio—começouele,devagar,como
seestivesselendoumroteiro.—Eleéumpouco...excêntrico.Virei o canivete emminhamão, passando o polegar na insígnia com o
falcãoenainscriçãoembaixo.—Nomínimo—falei.—Naminha família,quando fazemos16anos,meu tiodáumcanivete
personalizado com o nome e a data de nascimento — continuou ele,
parecendomais confiante.—Éalgoqueera feitopelopaidele,meuavô,entãoelefazcomagente.Éapenasumatradiçãofamiliar.—Mepareceumpoucoperigoso.—Nãotenteiencobrirojulgamentono
meutomdevoz.Nicdeudeombroseadmitiucalmamente.—É,achoquedáparadizerissosobreFelice.—Fe-li-tche—repeti, lutandoparapronunciarotche.Combinavacom
uma pessoa que gostava de presentear os outros com canivetes. — Euganheibrincosquandofiz16anos.Nenhumaarma,infelizmente.Nic passou o polegar pelo lábio inferior e me vi concentrada no jeito
comoeleomordiscava.Ignoreiopensamentoemeafasteideledenovo.Concentre-se.—Eu vi você pegar o canivete durante a briga com Alex. Você ia...—
Minhavozvacilou.—Oquevocêiafazercomisso?—Nada.—respondeuelecomtamanhaconvicçãoquequaseacreditei.
— Eu jamais usaria o canivete contra ninguém, muito menos contra oirmãodasuaamiga.Maspenseique,seeleovisse,seafastariaedeixariameuirmãoempaz.ElejátinhanocauteadoGino,mascontinuavaquerendobrigar. Ele é tão competitivo e estava tão irritado por termos ganhado.Estavaconvencidodequetínhamostrapaceado.Eusóqueriamelivrardeleantesquemeusoutrosirmãosaparecessem.—Entãovocêiaameaçá-locomumcanivete?—perguntei,incrédula.—Não,nãodessejeito.Eusó...eunãosei.Estavatentandoapartar...—
Eleinterrompeuafrase.PreciseilutarcontraavontadedeseguraroqueixodeNiceencará-loaté
que me dissesse a verdade. Aquilo era a verdade ou uma mentiraelaborada?—Eporquevocêcarregaisso?—Édifícildeexplicar—respondeuelecomaexpressãorepentinamente
envergonhada. — Acho que carrego o canivete comigo para me sentirprotegido,eparadefendermeusirmãosseforpreciso.Desdequemeupaimorreu tem sido difícil para nós. Ficamos diferentes. Eu fiquei diferente.Não conheço esse lugar nemas pessoas daqui, e estou tão acostumado alevarocanivetecomigoquedeixá-lonobolsoéquasenatural.Nãomesintoseguro sem ele. — Ele engoliu em seco, escondendo o sentimento queestavafazendosuavozfalhar.—Seiqueéumamaneiraestranhadelidarcomalgodessetipo,mastemmeajudado.Derepente,ocanivetepareciapesadonaminhamão.
—Eunãosabia.Nicdeudeombros.Outro clarão iluminouo rostodele epudeverque
estava tomado pela lembrança. Ele deixou o corpo cair contra a porta,derrotado.Fossequalfosseojogodaverdadequejogamos,euganhei,emesentiaenjoadaporcausadisso.—Ascoisassãocomosão—murmurouele.Precisei desviar o olhar. Eu havia passado por aqueles mesmos
momentosde lutoe tristeza,haviamemartirizado,ea trocodequê?Porumpaiquemereciaestarondeestavaequeemalgummomentovoltariapara mim. Eu sabia que havia coisas a respeito de Nic que talvez otornasseminadequadoparamim,mashaviapartesdasuavidaqueelenãopodiamudareissonãofaziadeleumamápessoa.—Sintomuito.—Não,euquesintomuito.—Eleseendireitouabruptamente,comose
alguémacimadeleopuxasseporcordas,eavulnerabilidadedesapareceuda sua postura. — Fui um idiota de puxar o canivete, mas eu nãomachucaria Alex, prometo. Eu jamais faria isso. Por favor, diga isso paraMillie.—Não falei sobre o canivete com aMillie— falei emeu estômago se
reviroudeculpa.Eraumarevelaçãoetanto.—Ah—disseelecalmamente.—Alexnãoviuocaniveteeeunãoqueriapiorartudo.Alémdomais,ele
me mandou uma mensagem de texto depois pedindo desculpas pelasituação ter ficado tão complicada, então achei melhor lidar com o queaconteceu como um incidente isolado que saiu de controle. Quem sabevocês dois possam deixar isso para trás. — As palavras saíramrapidamente,emboladasumanaoutra.Derepentemeurostopareciaestarpegando fogo. Eu não havia contado tudo paraMillie. Eu era uma amigaruim?Ouapenasuma idiota?PorqueapesardesaberqueeunãodeveriagostardeNic,eugostava,eemboraestivessetentandoevitá-lo,euesperavavê-lo;paraqueeletivesseachancedeseexplicar.—Obrigado—disseelecomsinceridade.—Desculpaseassusteivocêe
se eumenti.Achei que seriamais fácil,masdepoispercebi quenão foi acoisacertaafazer.Quisviraquiparafalarcomvocê.—Entãoéporissoqueestáaqui?—perguntei,curiosasobreohorário
davisita.Nicsorriu,revelandoumafileiradedentesbrancosnoescuro.—Vocêmepegou.Enfieiocanivetedevoltanabolsaefuiespiarpelovidro,comoeletinha
feito.Nãoporquepenseiquealguémpudesseestarládentro,masporque,derepente,estavamesentindoenvergonhadaenãosabiaoquefazer.—Vocêconsegueentrar?—perguntouele.Meu cabelomolhado balançava como pedaços de corda amarrados em
voltadaminhacabeça.—Todomundojáfoiembora.—Talvezeupossafazeralgumacoisa.—Podemeteletransportarparadentro?Eleinspirouoarirregularmenteeperguntoudeformatímida:—Querqueeutente?—Oteletransporte?—Não.—Elepigarreou.—Possotentarabriraporta,sequiser.—Oquê?Como?—Vocêmedápermissãoparatentar?Levanteiasmãosemfalsarendição.—Porfavor.—Vocêseimportadechegarumpoucoparatrás?—Vaimesmofazerisso?Elesemanteveimpassível.—Sim.Eu teria concordado com basicamente qualquer pedido dele naquele
momento, porque ali, sob a chuva, ele estava incrível. O cabelo castanhoonduladomolhadoeafastadodorostorevelavaoefeitocompletodassuasmaçãsdorostobem-delineadas.Deiumpassoparatrás.Nic ficou de costas paramim e retirou do bolso algo que parecia uma
canetatinteiro.—Oqueéisso?—Outropresentequevocênãoaprovaria—disseelecomsinceridade
antesdemoveroobjetoparapertodaporta,tirando-odaminhavisão.Pormaisoumenosumminuto,tudoqueeuviaerammovimentossutis
debraçoenquantoelemexianaporta—primeironafechadurasuperior,que cedeu com um leve clique, e depois a inferior, mais complexa, quedemoroumaistempo.Finalmente,elegirouamaçanetaeaportaseabriuànossafrente,chacoalhandoosinoacimadela.Fiqueidequeixocaído.—Vocêacaboudearrombaralanchonete.— Você me deu permissão. — Ele enfiou o que quer que estivesse
usando de volta no bolso e deu um passo para trás sinalizando que euentrassenafrentedele.—Vocêprimeiro.
Euoencareiecorriparadesligaroalarmeantesquedisparasse.—Issoéumhábitoseu?—Não.—Elemeseguiadeperto.—Meus irmãoseeuprocurávamos
porobjetosquenosajudassemainvadirosquartosunsdosoutrosquandoéramosmais novos. Nunca fizemos nadamais grave do que uma guerraentre quartos. Foi uma sorte conseguir abrir a porta com uma chave defendavelha.Asfechadurasnãosãotãoresistentesquantodeveriam.Girei um interruptor para que uma fileira de lâmpadas embutidas se
acendesse,iluminandoocaminhoatéooutroladodalanchonete.—Evocêcarregaissoporque...—Euestavatentandoentrarnovelhoceleironacasadomeutiohojeà
noiteparausarcomodepósito.Nicme seguia com a atenção dispersa por toda a lanchonete, como se
fosseolugarmaisfascinantedomundo.—Minhamãecomprouummontedeantiguidadesparaacasanova,mas
elanãoquerqueagenteboteascoisasnolugaratéelavoltardeviagem,nasemanaquevem.Elaquerterminardepintaracasaantes.Entãoestamostentandoacharondeguardartudo.Entreiatrásdobalcãoecomeceiaprocurarminhaschaves.—Então suamãe estádeixandoqueos filhos cuidemdos seusmóveis
carosenquantoelaestáfora?Nic entrou atrásdobalcão aomeu lado, seubraço encostandonomeu
enquantoprocurávamospelaschavesladoalado.—Basicamente.—Não sei se estou completamente convencida dessa história,mas faz
maissentidodoqueminhasoutrasteorias.—Queteorias?Boteiodedonoqueixo,fingindorefletir.—Quetalsevocêforumfamosoladrãodejoias?Nicinclinouacabeçaparaoladoesorriu.Atensãodesapareceudosseus
ombros.—Issoatéqueémaneiro.—Ouquetalsevocêroubarvelhinhasenquantoestãodormindo?—Nadamaneiro.Pareideprocuraraschavesporummomentoeolheiparaele—osolhos
castanhos pontilhados, o contorno do lábio superior, a maneira como ocabeloformavaumcachoabaixodasorelhas.Haviaalgonebulosonele,algoobscuroeincerto.Issoacendiaemmimumaespéciedeinquietudequenãosentiahaviamuito tempo.Eume lembreidoavisodomeutioe,nãopela
primeiravez,sentiopesosobremim.—Oproblemaéque...—faleicomavozembargada—nãoseioquevocê
é.Nicfixouseuolharnomeu.—Talvezissosejapartedagraça.Envergonhadademaispararesponder,volteiaprocuraraschaveseNic
caiunagargalhada.Tenhocertezadequeelenãoquisparecersedutor,masosomproduzidodasuarisadamisturadoànossaproximidadeestavamecausandoesseefeito.—Entãosuamãeviajouparaforadopaísedeixouosfilhossozinhosna
casa nova? — perguntei, tentando me distrair. — Ela parece confiarbastanteemvocês.—Elanãoconfia—disseNic,rindodenovo.—Ésóqueoamordelapor
móveisvenezianosémaiordoqueadesconfiançanoscincofilhos.Cinco filhos! Então eu não havia imaginado o Garoto Priestly Número
Cincoe,definitivamente,nãohaviavistonenhumfantasmanaquelanoite.— A gente tenta respeitar os pedidos dela durante as viagens —
acrescentouNic.—Embora, às vezes, fique tudoumabagunça e, claro, agentetambémbrigue,comotodososirmãos.—Eunãotenhoirmãos,entãoachoquenãoseimuitosobreessacoisade
rivalidade.Nicassentiu,pensativo.—Éumapena.Meusirmãossãomeusmelhoresamigos.—AtéoLuca?—Nãoresisti.Nicdeuumsorrisocompreensivo.—AtéoLuca.—Issoé...umasurpresa.—Elenãoétãoruim.Eumecontrolei.—Não há nadamais importante que os laços familiares— completou
ele.—Quandomeuavôestavavivo,elesemprediziaLafamigliaprimaditutto.Estáescritonoseumausoléu.Podrederico?Mecontroleinovamente.—Oqueissoquerdizer?—Famíliaantesdetudo.—Legal—falei,meiosemjeito.—Quandoopaidaminhamãemorreu,
escrevemosnalápidedele“Todoarrumadoesemnenhumlugarprair”.AexpressãoconfusadeNiceraprevisivelmenteadorável.—Eleeraateu—acrescenteitentandoexplicar.
—Ah.—Aconfusãosetransformouemumsorrisoirônico.—Umateuengraçado.—Elemorreudamesmaformaqueviveu;fazendopiadasqueirritavam
minhaavó.Eu me agachei e comecei a mexer nos armários atrás do balcão —
encontreiaventaisdobrados,suéteresencardidoseumacalçadeginástica.Provavelmenteminha.Niccontinuouarevirarospapéisnobalcão.—Ogerentenãovaiseincomodardevocêestaraqui?—Minhaschavesnãoestãoaí—falei,abrindooutroarmáriosuperiore
tateando o lado de dentro. Não havia nada além de bolas de poeira ecanetasquebradas.—Deveestarnumdaquelescompartimentos.LevanteiosolhosparaNic.Elehaviapegadoumcardápioeoexaminava.—Elenãovaiseincomodar?—perguntouelemaisumavez.—Não.—Procureiemoutrocompartimentoesentiapontadosmeus
dedos tocarem algo pontudo e de metal. — Vou trancar tudo quando agentesair.Elenãovainemsaberqueestivemosaqui.Eu podia ouvir as folhas de papel sendo reviradas por Nic com uma
pausaocasionalantesdeguardá-lasnovamente.—Cadêele,aliás?Gireimeuombroparaalcançarmelhordentrodocantoapertado.—Quem?—Seugerente.—Umamigo delemorreu, então ele foi visitar a família.Não sei onde
estáagora.—Pareiquandoaexpressãodereprovaçãodomeutiomeveioà mente, vermelha e inchada. Uma pontada me fez perceber que sentiasaudadesdele.Torciparaquemeligasselogo.Fechei a mão em volta das chaves, sentindo-me vitoriosa ao tocar as
pontasmetálicas.Nichaviaparadodemexernospapéis.—Então,elesimplesmentenãovoltou?Euaspuxeiparafora—umachavedelatãodaportadalanchonete,uma
prateadadafechaduramenor,achaveroxadecasaeumchaveirobrilhanteno formatodaTorreEiffel, presentedeMillie.Deiumsalto ebalancei aschavesemtriunfoàminhafrente.—Achei!—Guardei-asnabolsa.OsorrisodeNicpendiamaisparaumlado,pressionandosuabochecha
direita. Estávamos a trinta centímetrosumdooutro, nãomais distraídospelabusca, e semnadaparaolharanãoserparanósmesmos.Sozinhae
ensopadana lanchonete, fiquei aindamais cienteda suapresença e cadarespiraçãominhapareciamaisaltadoqueonormal.— Quer uma carona até em casa? — perguntou ele. — Ainda está
chovendomuito.Enãoqueroquevocêsederretaevireumapoça.—Estáinsinuandoquesouumabruxa?Nicfingiuumaexpressãohorrorizada.—Demaneiranenhuma.Souumcavalheiro.—Anãoserquandoestáderrubandogarotasdoladodeforadecasae
invadindolanchonetesnomeiodanoite—ressaltei.Penseiemacrescentarumcomentáriosobreocanivete,masmesegureiaopensaremseupaieemtudoqueeletinhaacabadodemecontar.Eleconcordou,cerimonioso.—Sim.Tirandoessascoisas.Hesitei.—Euadorariaumacaronaparacasa.Eu o segui de volta até o outro lado da lanchonete, concentrada nas
mechasmaisacastanhadasdoseucabeloescuro.Enquanto Nic se dirigia à porta com as mãos nos bolsos, ele voltou a
inspecionarorestaurante.—Estelugarétãoretrô.—Vocêaprendeagostar.— Comominha mãe— sugeriu ele com uma leve risada.— Aliás, às
vezesachoqueaindaestouaprendendo.— Sinto o mesmo por algumas pessoas.— Sorri pensando em Jack e
ignorando deliberadamente seu aviso. Ele pode ser difícil e imprevisível,masquandoentrana vidade alguém, entrade verdade, comoumapintaquefazpartedenós.—Apostoqueninguémpensaissodevocê,Sophie.Ah,apenasumasmilpessoasemCedarHill.—Vocêficariasurpreso.—Ficaria?—Nicsevirouparamim,demorando-sesobovãodaporta.—Temosqueir—murmurei,tentandomanterofoconascoisasqueo
faziamserumapessoaquestionávelenãonamaneiracomoelemedeixavasemarsódeolharparamim.SeNicficoudecepcionado,nãodemonstrounada.Emvezdisso,abriuo
zíperdocasaco.—Toma—disseele,estendendoocasacoparamim.—Vamosterque
correratéocarro.—Elemanteveobraçoesticado,vestindoapenasumacamiseta preta e jeans escuros. Nic tensionou o maxilar e senti que me
desafiavaarecusarogesto.—Porfavor.—Bem,jáquevocêinsiste.Peguei o casaco e o enfiei nos ombros. Era pelomenosquatro vezes o
meu tamanho. Quando fechei o zíper e balancei as mangas para que seajeitassem sobre minhas mãos, a seriedade no rosto de Nic se esvaiu.Resistiaoimpulsoderodopiarparaqueocapuzondulassecomoumacapa.Nãosejaestranha.Niclançavaumsorrisomaliciosoparamim.—Quê?—Boteiminhasagorainvisíveismãosnacintura.—Nuncaviu
umratoafogadovestindoummoletomdecapuzgigante?—Nãoigualavocê.—Eleriu.—Bom,vocêprecisasairmais.—Éclaro.Desliguei as luzes, ativei o alarme e tranquei a porta, seguindo-o em
direçãoàchuvatorrencial.Fazia sentidoeunão tervistoaSUVdeNicmais cedo—elaestavado
outro lado do estacionamento, fora do alcance atémesmo da iluminaçãodos postes da rua. Corremos até o carro, cambaleando contra a força dovento que jogava o que pareciam ser baldes de água em nossos rostos.Quando chegamos, me atirei para dentro do carro, brigando com atempestade para fechar a porta. Eume joguei no bancomacio de couro,abraçando meu corpo enquanto Nic ligava o motor. Sem a proteção docasaco,eleestavabatendoosdentes.Passei o caminho ensinandoNic a chegar naminha casa e passando a
mãonocabeloparaquenão ficassearrepiadoporcontadaumidade.MalestavacomeçandoaterumaconversamaisrelaxadacomNiceamesentirumpoucomaisaquecida,quandoeleestacionouemfrenteàminhacasa.—Obrigadapelacarona.—Tenteinãoparecermuitodecepcionadapelo
fimdonossotempojuntos.Abriaportadocarroeelaseescancaroucomaforçadovento.—Sophie.—Nicseinclinounaminhadireçãoemeseguroupelaperna,
mantendo a parte inferior domeu corpono calor dedentrodo carro.—Espere.Meu coração deu um salto e me preocupei que fosse possível ouvir o
volumecomquebatiarepentinamente.Tenteinãorespirarmuitodepressaouencararsuasmãosemmeujoelho.Olheiparaeleeviquefixavaoolharnosmeusbraços,naminhacintura,nomeu—noseucasaco.—Ah.—Sacudiocabelonumatoderepreensão.—Oseucasaco.Comeceiaabrirozíper.
—Não,nãoé isso—respondeuelecompressa,mantendoasmãosnomeujoelho.—Podedevolveroutrahora.Apoieiasmãosnomeucoloe,comarespiraçãoengasgadanagarganta,
esperei. Dava para ver que ele se preparava para falar outra coisa. Meucérebro começou a imaginar mil possibilidades diferentes e, de repente,meucoraçãoestavasaltandoparaforadopeitocomosetentasseescapar.Elerespiroufundo,comumaexpressãoincerta.—Ocanivete...—disseelecalmamente.—Podemedevolver?Fiquei arrasada, e algo dentro demim— algo que pareciamuito com
esperança—morreu.Mexinaminhabolsaetireiocanivete,largando-odeumasóveznamãoestendidadeNic.—Claro.Esqueci.Ele fechou a mão e uma centelha de alívio passou por seu rosto,
relaxando-o.—Obrigado.— Acho que é melhor assim. Imagine eu andando por aí com um
canivete. Com certeza não é amelhor ideia. Eu provavelmente cairia emcima dele ou algo do tipo. — As palavras jorravam para fora de formainvoluntária,emumtomalto, tentandodisfarçaromeuconstrangimento.—Euprovavelmenteacabariamematandooualgoassim,e,comcerteza,existem maneiras menos vergonhosas de morrer. — Dá para ser maisconstrangedor?Eumecontraí, encabuladaeentão saído carroantesquepudessepiorarasituação.—Obrigadaportudomaisumavez.—Sophie?—Nicseesticoupelobancodocarona,sério.—Pode fazer
umacoisapramim?—Oquê?—Nãofiquepensandoemmaneirasdemorrer.—Podedeixar.Elerecuoucomumsorrisocontroladoefecheiaporta.Fiquei parada na chuva olhando o carro desaparecer no fim da rua. E
então pensei no garoto com amãomachucada e canivete que acabou dearrombara lanchonetedomeupai,emepergunteiporqueeuestavatãotristeemvê-lopartir.
CAPÍTULODEZ
OARTISTA
HaviaapenasumacoisaaserfeitacomocasacodeNic.— É perfeito! — comemorou Millie quando liguei para ela na manhã
seguinteparacontartudo.—Vocêpodeusarissocomodesculpaparairàcasadeleeconvidartodomundoparaafestanosábado!Por causa da briga com Alex, Millie não era a maior fã de Nic, mas
também não era do tipo que guardava rancor. Como “garotos são assimmesmo”, ela decidiu que viamuito potencial nele e que Nic com certezatinha que ser convidado para a sua festa. Eu podia imaginarmuito bemcomoAlex reagiriaaoverNic,masMillieestavadecidida.Alexnãopodiavetarosconvidadosdela.Aindamaisquandohaviatãopoucos.Alémdisso,elaseinteressavamuitopelaminhapatéticavidaromântica.
Como Nic era novo em Cedar Hill, e obviamente desconhecia o passadorecente domeupai,Millie o via comouma rara oportunidadede alguémlivredejulgamentosparaeumeapaixonar.Seeleerabomounãoparamimnãoeraaquestão.Issoapenasadeixavamaiscuriosaarespeitodeleedasua família, especialmente agora que Dom tinha convidado ela para sairdepoisdotorneiodebasquete.— Vou encontrar Dom às seis horas, então me liga mais tarde se
descobriralgoimportante—guinchouelaaotelefone.—Enãoseesqueçade tirar fotos, se conseguir entrar na casa. Vocême deve essa. Sou novademaisparamorrerdecuriosidade.DecidinãodizeraMilliequenãotirariafotosclandestinasdacasadeNic
semoconhecimentodele.Imaginareuoconvidandoparaumafestajáeraassustadorosuficiente.Eseelerecusasse?Eseaceitasseedescobrissenafestaquesouumapáriadasociedade?—SósevocêdescobriralgosobreacicatrizdoDom—retruquei.—Essaéfácil.Boasortehoje.Vocênãovaisearrepender!—comentou
elaalegrementeantesdedesligar.Quando finalmente cheguei àmansão Priestly, eu estava uma pilha de
nervos.Restauradaaoesplendororiginal,acasapareciasaídadeumcontode fadas. Sob o sol forte, as janelas brilhavam comodiamantes e, semasheras que encobriam as paredes, todo o exterior era de um imaculadobrancoreluzente.Comoexatamenteeuiafazeraquilo?Oi,obrigadapormeemprestarseu
casaco.Aliás,porquenãovaiàfestadaMillienosábado?Porcoincidênciaémeuaniversário,masamaioriadaspessoasvaimeignorarporquemeupaiéumassassino,oquetecnicamentemetransformaemfilhadoDiabo.Então,eaí,vocêvai?Sutil.EseNicnãoestivesseemcasaeLucaatendesseaporta?Oi,digaparaoseuirmãodarumpulinhonacasadaMillienosábado,mas,porfavor,vocênão.Vocêépéssimo.SeGinoatendesse,eupoderiadistraí-locom um objeto brilhante e torcer para que Nic aparecesse em algummomento.Comocasacopenduradonomeubraçoemeuspensamentoscalculando
tudoquepoderiadarerrado,toqueiacampainha.Quandonãoescuteioecodoladodedentro,useiaaldravaparabateràporta.Esperei.Batidenovo.E agora? Eu não havia pensado em nenhuma ideia brilhante caso não
houvesse ninguém em casa. Será que deveria deixar o casaco na porta eesqueceressahistóriatoda?Queanticlímax.Distraída,fuicaminhandopelalateraldamansão,ondeaentradadecarrosdavaemumcaminhoestreitoquecontornavaacasa.Quandochegueiaos fundos,parei, surpresa.Nãoseioqueeuesperava
encontrar ali—umaquadrade tênis ouquemsabeumapiscina—,mascertamentenãoeraaquilo.Atulhadoemalcuidado,ojardimmostravaumadiferença gritante em relação à fachada. Pelas laterais, arbustosemaranhados estavam pontilhados de rosasmurchas. A grama batia nosmeus joelhos e era de um verde-acinzentado ressequido. No fundo dojardim destruído estavam os destroços de uma fonte com adornos depássaros entalhadosemgrandesblocosdepedra;no centrodogramado,umagrandemesademadeiraseequilibravanastrêspernasrestantes.Atrásdemim,portasduplascomvitraisdavamparao jardim.Estavam
entreabertas.
Empurrei as portas de leve com as pontas dos dedos, empurrando asfolhas,eespieiointeriordeumacozinha.Asparedeseosarmáriostinhamumtomdebrancoimpessoaleochãodemadeiraclaraparecianovo.Umfogãoàlenhadeferroiadochãoaotetocheiodeluminárias.—Quemé?—Umavozmusicalsurgiudointerior,interrompendominha
bisbilhoticecomumsusto.Hesitei.Seeunãoconheciaavoz,avoztambémnãomeconhecia,então
dequeserviriadizermeunome?—ÉaSophie—disseeu,umsegundodepois.Nenhumaresposta.—Sóqueriadevolverumcasaco.Abri um pouco mais as portas. Uma parte maior da cozinha surgiu à
minhafrente.Nasparedesbrancasestavampenduradasdiversaspinturasaóleo emolduradas. Identifiquei uma delas como a obra de Da Vinci, Avirgemamamentandoomenino—eraapinturafavoritadaminhaavó—,emboranãoreconhecesseasoutras,tambémreligiosas.Eununcaviraumacasacomaquelaquantidadedearte—eraquasecomoumagaleria,ouumaigreja, e me vi intimidada por todo o esplendor. Pensei em pegar meutelefone e tirar uma foto escondida paramostrar àMillie,masmeu ladoracionalmeimpediu.Comcautela,entreinacasa.Nomeioda cozinhahaviauma ilha com tampodemármore, edo lado
opostoumamesadevidro cobertade folhasdepapel e lápisespalhados.Umgarotoestavasentadoàmesadesenhando.—Olá— falei novamente, embora fosse óbvio que ele tinha notado a
minhapresença.Ele levantou a cabeça e seus olhos azuis penetrantes de imediato
encontraramosmeus.Analisei-osefranziocenhoenquantomeuestômagorevirava.—Luca?Ele não respondeu. Apenas pousou o lápis e permaneceu sentado em
umacontemplaçãosilenciosa,oscotovelosnamesaeoqueixorepousadologoatrásdosdedosentrelaçados,comoseestivesserezando.Fiqueisemar.—Ah!NãoeraLuca.Eraogarotodajanela.Exatamentecomonaquelaprimeira
noite, seus olhos cresceram, mas dessa vez pelo reconhecimento. Emcontrastecomapelecordeoliva,osolhosdeleeramabsurdamenteazuis.Eram como os de Luca,mas algo parecia diferente— erammais ternos,
talvez.— Estou reconhecendo você — comentou com sua voz agradável e
melódica.Fuiemdireçãoaele,emcompletasurpresa.Eletinhaosolhosazuisde
Luca, assim como a pele dourada e o cabelo preto. Porém, enquanto ocabelodeLucaerabagunçado,commechascaindonosolhos,odogarotoeracurtoearrumado,penteadoparatrás,revelandooqueixopontudoeasmaçãs do rosto marcadas. Ele também era mais magro e um poucoencurvado. Eu não conseguia dizer se era mais velho do que eu— nãoaparentavaser,masasemelhançacomLucamefezpensarquetalvezfosse.—Vocêestavaolhandoparaminhacasasemanapassada.—Eleabaixou
asmãoseasrepousounamesa,masseusolhospermaneciamcautelosos.Parei quando cheguei à mesa, rondando incerta. Naquele momento
entendiporqueelenãosemoveunaminhadireçãoeporquenãojogounotorneiodebasquetenasemanaanterior.Eleestavaumacadeiraderodas.—Sim,eraeu—respondi.Tenteinãoencará-lo,maselesepareciatanto
comLucaeaomesmotempotãodiferentequeeradifícilacreditar.—Eusóestavacuriosa.— Acho que você caiu de forma bem espetacular logo depois —
acrescentouele,masnãodeformadura.—Issoédiscutível.Naverdade,seuirmãotrombouemmim.Elesorriue,derepente,pareceumuitojovemebrincalhão.—Esperoqueeletenhapedidodesculpas.—Elepediu...nofimdascontas.—Chegueiumpoucomaispertoatéque
minhasmãostocassemamesa.—Vocêseparecetantocomele.—Eramosolhos, tão sobrenaturais. Era surreal paramim que pudessem existir emdois rostos diferentes.—Querdizer, como Luca.Não tive a intençãodeficarencarando,masérealmenteincrível.— Bem — disse ele —, podemos até ser gêmeos, mas não somos a
mesmapessoa.Fiqueiapenasparcialmentechocadacomaquelarevelação.Emboraeles
tivessem semelhanças impressionantes, todos os irmãos Priestlycompartilhavam os mesmos traços, e aquele garoto tinha uma aura deinocênciaqueLucanãotinha.Elepareciadoceeimuneaoquetransformouseuirmãoemumidiota.—Primeiro,elenão temmetadedaminhahabilidadenumacadeirade
rodas.—Eledeuum tapana rodaabaixoda suamãodireita e abriuumsorrisoirônico.—E,segundo,soumaisinteligente.—Nãoduvido.—Elepareceusatisfeitoporeuconcordar.—Meunome
éSophie.Maseujádisseisso.—Olá,Sophie.—Osorrisodeleeraumavisãoetanto.EpensarqueLuca
tinhaopotencialdeteramesmabelezaeosmesmostrejeitos,masescolhianãousá-los.—MeunomeéValentino.Ele se virou para frente e pegou o lápis de novo, girando-o entre o
indicadoreopolegar.Minhaatençãoseguiuomovimentoefiqueisemarquandopercebiasfolhasdepapelabaixo.Tenteianalisartodasdeumavez.—Queincríveis.Valentinoespalhouosdesenhoscomumacasualidadesemlógica.Eram
maravilhososeele comcerteza sabiadisso.Emais, ele tinha queadmitirseu talento e concordar comigo. Eu achava meu pai bom por saberdesenharoMickeyMouse,masaquelesdesenhoseramoutrahistória.Passei os olhos pelos desenhos e parei quando encontrei um perfil de
Nic. Desenhado a lápis, sombras cuidadosas contornavam a sobrancelhafranzidaeeramreforçadasabaixodasmaçãsdorosto.Os lábiosestavamentreabertos, o cabelo em cachos abaixo da orelha e o olhar fixo,concentradoemalgoforadafigura.—Vocêfaztudoparecertãoreal.OlheiderelanceparaValentino.Elemordiaolábio,pensativo.— Tento encontrar as características que nem sempre se mostram à
primeira vista — explicou ele. — As características que definem quemsomosecomonossentimosdeverdade.Tentoolharsobasuperfície.A voz dele começou a fervilhar de entusiasmo e asmãos criaram vida
própria.— A vida é tão complexa que mal conseguimos ser a pessoa que
deveríamos.Emvezdisso,usamosmáscarasecriamosbarreirasparalidarcomomedoea rejeição,oarrependimento,a ideiadequealguémtalveznão nos ame como somos em nossa essência, que alguém talvez nãoentenda nossas motivações. Quero estudar a verdade da vida, não asuperfície.Hábelezaemtodaparte;mesmonaescuridãoháluz,eéaformamaisrara.Vicomooentusiasmoiluminavaorostodele.— Não conheço ninguém que fale coisas assim — admiti. — É...
encorajador.—Éaverdade—disseelecomsimplicidade.—Possoverosoutros?Ele repousouo lápis edeslizou a cadeirapara trás.Apoiei o casacona
cadeiraaoladoemeinclineisobreamesa,apoiando-mesobreasmãos.Havia um desenho de Gino e Dom jogando videogame; eles estavam
sentadosnochãocomaspernascruzadas,parecendocrianças.Segurandoos controles, eles riam um do outro, os ombros se tocando e as cabeçasinclinadasparatráscomosolhosvoltadosparaoteto.Osrostosdosdoiseram a expressão da diversão.Dombagunçava o rabo de cavalo deGinocomumadasmãos.—Éummomentoperfeito—suspirei.—Felicidade—disseValentinocalmamente,osolhosfixosnaimagem.VolteimeuolharparaoperfildeNic.Oqueixoestavafirme,aexpressão
concentrada.—EssaaíéDeterminação—acrescentouValentino.Ao ladododesenhodeNichaviaum retratodeumamulherdepé em
uma cozinha. Asmãos dela estavam apoiadas na lateral da pia enquantoolhavapelajanelaàfrente.Amulhereraeleganteepareciadespreocupada,usando um roupão longo que se arrastava até os pés. Raios de soliluminavam o rosto e uma mecha de cabelo preto caía pelas costas. Assobrancelhaseramacentuadas.—Ésuamãe?Eleassentiu.—Elaébonita—falei.—Elaestavairritada—disseValentinodesprovidodeemoção.Estendiobraçoepuxeiodesenhoseguinte.Luca.Eleestavasentadonos
degraus de uma entrada, usando um terno preto. Os joelhos estavamdobrados, servindo de apoio para os cotovelos, e os ombros curvadosfaziam com que ele parecessemenor, como Valentino. Ele olhava para ochão,observandoonada,epuxavamechasdocabelocomforça.Engoliemseco.Eradifícilolharparaaquelaimagem.ObserveiValentino
erepareiqueeletambémhaviadesviadoosolhos.—Dor?—pergunteicomcalma.—Luto—respondeuele.—Deveserdifícilolharporbaixodamáscara—falei,sentindoopeitode
repenteapertado.Valentinolevantouoqueixo.—Étãodifícilquantousaruma.Afastei as mãos e endireitei o corpo enquanto um sentimento
desagradável tomava conta de mim. Eu não queria mais olhar para osretratos. Era desconfortável olhar para os momentos mais obscuros daalmadealguémsemqueapessoasoubesse.—Vocêachaqueusamáscaras?—Estouusandoumaagoramesmo.—Valentinosorriugentilmente.—
Nósdoisestamos.—Éumpensamentotriste.—Sim.Masàsvezesmeperguntoqualseriaaalternativa.Imaginesenão
tivéssemossegredos,nadaaesconderdaverdade.Esetudofosseditonahoraqueconhecêssemosunsaosoutros?A ideia ficou na minha mente. Olá, meu nome é Sophie. Meu tio é um
maluco paranoico, meu pai está preso por assassinato e minha mãe seescondenotrabalhoparanãoterquepensarnoseucoraçãopartido.Tenhoquasecertezadequeprefirodesenhosanimadosàvidarealetenhoapenasuma amiga de verdade. Tenho pavor de tempestades e uma profundadesconfiança de gatos. Sou obcecada pela fofura dos bichos-preguiça e àsvezeschorovendocomerciais.—Seriaterrível—concordei.Valentino abriu um sorrisinho como se tivesse acabado de ouvirmeus
pensamentos.—Caosabsoluto.Assenti,convencida.Emalgumlugardentrodemimeuestavatentando
lutarcontraavontadedecairemprantos.Comosesentissemeuconflito,Valentinomeconcedeuummomentodeprivacidade.Eledesviouoolharecomeçou a arrumar os papéis em uma pilha deixando apenas o desenhoinacabado exposto. Era um homem de mais ou menos quarenta anos,vestindoumimpecávelternoescuro,quemeencaravadiretodopapel.Porum segundo pensei conhecer o tal homem, que talvez o tivesse visto emalgum lugar,masa sensaçãopassoueeumedei contadequeerao filhodele que eu conhecia. Ele era tão parecido com Nic que senti como setivesselevadoumsoconoestômago.Tinhaosmesmosolhosescuroscompontosmaisclaros,omesmonarizretoeosmesmoslábioscheios.Ocabeloeragrisalhoemalgumasparteseasentradasrevelavamumatestamarcadaporrugasdeexpressão.Orostoerasombrio.—Seriedade?—arrisquei.—Não—respondeuValentinosemlevantarosolhos.—Essedesenhoé
a Morte. — Assisti enquanto ele sombreava os cantos do desenho. —Desenho meu pai todos os dias para nunca me esquecer dele. Mas nãoexistemaisnadaqueeupossadescobrirsobreeleagora.Eleestácomosanjosenãoprecisamaisdeumamáscara.Tudoqueeleerasefoi.— Sintomuito— falei com gentileza. Foi realmente a única coisa que
pudepensaremdizere,aindaassim,nãoparecianemumpoucosuficiente.Valentinodeudeombros,conformado.—Não podemos impedir a inevitabilidade damorte. Ela chega de um
jeitooudeoutroe,nofinal,noslevaparaomesmolugar.Sentirmuitopelamorteécomosentirmuitopelosolbrilharouachuvacair.Ascoisassãooquesão.Eu queria dizer a ele que tinha sorte de ser pragmático,mas não tive
chance. A porta se abriu atrás de mim. Primeiro, senti o perfume: eralevementedoce.—Valentino?—disseumavozmasculina,firmeegentil.Vireieviumhomemmagrodemeia-idademeencarandocomsurpresa.
Ele tinha a pele bronzeada e o cabelo mais prateado que já vi. Assobrancelhaseramtãoclarasqueeumalconseguiavê-las,maspelaformacomomarcavamatesta,davaparaperceberqueestavamerguidas.—Minhanossa—disseelecomumlevesotaque.—Olá.Eleveionaminhadireçãocomoumcabodevassourabem-vestido,coma
cabeçainclinadaparaolado.Eunãoentendiamuitoderoupasmasculinas,massabiareconhecerumternocaroquandoviaum.Eradeumtecidoriscadegize,porbaixo,eleusavaumacamisacinzabrilhanteeumlençodesedanopescoço.Seeleestavamorrendodecalor,nãodemonstrava.Eleestendeuamãoeeuocumprimentei;oapertoerageladoefirme.O
aromaadocicadoestavamaisforteagoraqueestávamostãopróximos;eraquase sufocante. Havia algo familiar no cheiro, mas eu não conseguiaidentificá-lo.—Evocêé?—perguntouele,comumlevesorriso.—MeunomeéSophieedeiumapassadaapenaspara...— É um prazer enorme — interrompeu ele, silenciando-me
educadamenteelargandominhamãodemaneiraautomática.Tentei não encarar as manchas vermelhas no rosto dele: não eram
exatamenteespinhas,maispareciampicadasdeagulha—difíceisdeverdelonge,mas impossívelde ignorardeperto.Pareciaqueele tinhacaídodecaraemumjardimderosas.— Por favor, desculpe minha intromissão. Espero não estar
interrompendoalgo.MeunomeéFelice.—disseele,pronunciandoo“tche”comumfortesotaqueitaliano.—TiodeValentino.Ocaradocanivete.Tenteinãodemonstrarmeudesprezo.—Nãoestáinterrompendonada—respondeuValentinoatrásdemim,
comumtoquedeindignaçãonavoz.Felicedeuavoltanamesacompassos largosegraciosos,deixandoum
rastrodoperfumeforte.—Nãosabiaquevocêstinhamtempoparafazeramigosnavizinhança.—Nãoéocaso,nemdelonge—respondeuValentino,deformaácida.—
Sophieveioapenasdevolveralgo.Levanteio casacodeNic comouma formadealiviaraestranha tensão
quehaviasurgido.Feliceolhouparaocasacocomumaexpressãoraivosa.—IssoédoLuca?—Duvido—respondeuValentino.Felicebalançouacabeça.—Claroquenão—murmurouele.—Elesabesuasprioridades.Eu não tinha certeza se ele estava atacando amim ou aos outros três
irmãos.— É de Dom? — perguntou Felice com uma careta, como se fosse o
mistériomaisimportantedomundo.—Não.Eleestánumencontrocomaquelagarotadalanchonete.—Ah,sim,claro.Abriaboca,surpresa.EntãoelesjásabiamdaMillie?Anotíciamaltinha
24horas!Elesdeviamcompartilhartudo.Noentanto,nãofaziamamenorideiadequemeuera.—ÉdoNic—interrompi,completamenteinsultada.—Esbarreicomele
na lanchoneteontemànoite e elemeemprestouo casacoporqueestavachovendo.Felice enrijeceu e trocou um olhar de preocupaçãomaldisfarçado com
Valentino.—Nicolinãomencionouisso—comentou,recompondo-sedeimediato.Arespostameatingiucomoumsoco.Comoeles jápodiamsabersobre
Millieenãosaberabsolutamentenadasobremim?Nic,eraóbvio,nãomeconsideravaimportanteosuficienteparamencionarminhaexistência,nemporalto.Opensamentomefezsentirumaidiotaporestarali.—Bem,aquiestá.—Jogueiocasacodevoltanacadeira.Euobviamente
játinhadadoimportânciasuficienteparaele.—Queriaapenasdevolvê-lo,mascomeçamosafalarsobreosdesenhosdoValentinoemedistraí.—Ah.—Feliceapertouosombrosdosobrinhoeolhouderelanceparaa
pilhadepapéis.—Primorosos,não?—Sim—falei,desejandonuncateridoatélá.—Sabe—começouFeliceparaninguémemparticular—,andeilendoas
coisas mais incríveis sobre sensibilidade artística e sua conexão comgrandes tragédias.— Ele se afastou de Valentino e começou a rodear amesa.—Vocêsabiaquemuitosartistasecompositoressãoconhecidosporteremcriadoseusmelhorestrabalhosapósgrandestragédiaspessoais?Ele não esperou uma resposta e continuou a caminhar pela cozinha,
gesticulandoenquantofalava.— Veja o exemplo de Carlo Gesualdo, um famoso príncipe italiano e
gênio da música. Ele assassinou a mulher e o amante na própria cama,mutilouoscorposedepoisospenduroudecabeçaparabaixodo ladodeforadopalácioparaquetodospudessemver.EentãocompôsalgumasdasmúsicasmaispoderosasepesadasdoséculoXVI.Valentinosemexeunacadeira.Feliceparoudegesticulareseconcentrounaminhareação.—Oqueachadisso?Tenteinãopensaremcomomeuplanotinhadadoerrado.—Meparecequeatragédiadessecompositorfoicriadaporelemesmo
— arrisquei, desejando silenciosamente desaparecer em um buraco nochãoeatravessarocentrodaTerraatéchegaremcasa.—Então,nãotenhocertezasevocêdeveriaconsiderarahistóriacomoalgoqueaconteceu.—Gostadedebater,possover.—AexpressãodeFelicesealegrou.—
Mas certamente pode concordar que ele foi pressionado pelas ações damulher a calcular uma retribuição precisa. A punição era esperada pelasociedade, mas ter que cometer o assassinato talvez tenha sido a suatragédiapessoal.—Mas certamente ele não precisavamatá-la.— SeMillie pudesseme
ver, debatendo as complexidades de um assassinato no século XVI. Tudoisso,mais o papo das lápides, emmenos de 24 horas. O calendário diziajulho,masestavacomeçandoaparecerHalloween.— Bem, a esposa dele foi infiel e, naquela época, infidelidademerecia
umapuniçãoalta.—Tãoaltaquantoassassinato?—Acreditoquesim.CruzeiosbraçosofendidaportodasasmulheresdoséculoXVI.—Nãoconcordoqueatraiçãodelajustifiqueumapuniçãoassim.—Ah!—Felicelevantouodedoindicadorcomoseacabassederesolver
umenigma.—Masaosaberqueapuniçãocriadaporelefoioqueolevouaseulegadomusical,talvez,emnomedealgomaior,sejajustificada.Nofimdas contas, acho que fez domundoum lugarmelhor. E isso com certezadeveservircomojustificativa.—É...—comeceideformadesajeitada.Euestavaficandoconfusaesem
dúvidashaviaultrapassadomeusconhecimentos.—Sóachoessahistóriatodaumabizarricecompleta.—Sim—reforçouValentino,pigarreando.—Ébizarra.Assimcomoessa
conversa.
Felicedispensouocomentáriocomumacenodamão,prestandoatençãonapinturaaóleoatrásdenós.—Masmeupontoéqueamúsicaficougloriosa.Vocêdeveconsiderara
possibilidadede haver uma relação inversa, ou seja, um ato repreensívellevar a uma conexão mais profunda com a energia criativa e, emconsequência,alindascomposições.—Hitlereraumartistaantesdecometertodasaquelasatrocidades.—
Essaeraaúnicacoisaqueeuhaviaabsorvidodaauladehistória;ejáqueestávamosbatendoumpaposobreassassinato,porquenão incluirHitlerna conversa? O dia já estava um horror mesmo.— Então não acho querealmente possa afirmar que o assassinato leva alguém a ser um artistamelhorouvice-versa.Eu queria acrescentar algo como Então não saia por aí matando sua
esposa,masacheimelhornão.Felicebateupalmas.—Mas não é fascinante? Que duas partes da psique possam coexistir
dessamaneira?— Pode haver luz na escuridão— disse eu, repetindo as palavras de
Valentino.Valentinoassentiucomgentileza,maseupodiasentirseuincômodo.As
mãosdele apertavama cadeira com tanta forçaque aspontasdosdedosestavambrancas.Ah, parentes esquisitos. Era adorável que Nic e eu tivéssemos tios
ligeiramentemalucos.Quemsabeumdiapoderíamosapresentá-los.— Certamente! — respondeu Felice, após uma pausa, ao meu lema
emprestado.—E,àsvezes,umcaminhodeescuridãopodelevaràluz.Passei o peso do corpo para o meu outro pé, desconfortável. Ele me
confundiudenovo,maseucomeçavaaentenderporqueeleachavaumaboaideiacomprarcanivetesparaossobrinhos.—Achoqueéumalongadiscussão.OtelefonedeFelicetocou,preenchendooambientecomumaópera.Ele
fechou os olhos e curtiu amúsica antes de finalmente tirar o celular dobolsoeatendê-lo.—Ciao,Calvino!—Elecobriuaparte inferiordotelefone.—Medeem
licençaumminuto—sussurrouantesdesairdacozinha.Fiqueiolhandoenquantoeleseafastava—Bem,eleébem...intenso.Quandomevirei,aexpressãodeValentinoeraindecifrável.— Sophie— falou com uma voz cansada.—Obrigado por devolver o
casacodoNic,masprecisosersincerocomvocê.Elenãogostariadevê-la
aqui.Pareciaqueeutinhalevadoumtapa.—Oi?—Nãoqueromagoarvocê—continuouelenomesmotomapaziguador.
—Masestamosnomeiodeumassuntofamiliarmuitoíntimo.Eleestava falandosobreopai?Amortedeledeviasermaisrecentedo
queeutinhaimaginado.—Estouindoembora—engoliemseco.Valentinosorriu,pesaroso.—Porfavor,nãoleveparaoladopessoal.—Tudobem—menti,virandoascostasparaeleemeapressandopela
cozinha. Meus olhos avistaram umamoldura preta à esquerda da porta.Estava pendurada no centro da parede e era impossível ignorá-la. Noquadro havia amesma insígnia do canivete deNic; fundo preto com umfalcãorubronocentro.Abaixodobrasão, lia-seemvermelho:La famigliaprimaditutto.Famíliaantesdetudo.EraafrasedoavôdeNic,lembrei.—Ésóqueotiming...—continuouValentinodelonge.Senti meu corpo todo formigar e não tinha certeza do motivo. De
repente,tudopareciatãointenso.Fecheiaportadacozinhaatrásdemim,sentindoosanguedeixarorosto.Eumaltinhachegadoaofinaldoquarteirãoquandoalguémmeagarrou
pela camiseta. Cambaleei para trás e bati em alguém pequeno erechonchudocomumlevebaque.Gireiocorpo,tentandomedesfazerdaquelapegadasuspeita.—Sra.Bailey?—Opavoremminhavozmerevelouumanovanotaque,
atéentão,eunãosabiasercapazdeatingir.—Oqueestáfazendo?Avelhafezumacaretacomosetivesseacabadodechuparumlimão.—Possoperguntaramesmacoisaavocê,PersephoneGracewell.Oque
vocêpensaqueestáfazendo?—Estouindoparacasa.Meuturnonalanchonetecomeçaemumahora.
—Fecheiasmãoscomforçaparanãoatacá-la. Issoeraaúltimacoisadequeeuprecisavadepoisdeumdiacomoaquele.—EmeunomeéSophie!—Euvivocêentrarnaquelacasa—revidouela.—Faleiparavocêficar
longe dessa família. Ficou tanto tempo lá dentro que quase chamei apolícia!—Estáfalandosério?Elaenrijeceuocorpo.—Nãotemlidoosjornais?—Doqueestáfalando?
—Estoufalandodediversosdesaparecimentoseduasmortesestranhasnasúltimasduassemanas;todoserammembrosdessacomunidadeevocênemreparou.Abraosolhos,Persephone!— Estão abertos! — Ou pelo menos eu pensava que estavam.
Obviamente,euprecisariafazerbomusodoGoogle.A sra.Bailey continuava tagarelandocomodedoapontadoparaminha
cara.—Aspessoassimplesmentenãoseafogamnaprópriabanheira,sabia.E
tambémnãocaemdetelhadossemquerer!— O que está querendo dizer?— perguntei, cruzando os braços para
afastarofriosúbito.Asra.Baileybaixouotomdevoz.— Estou querendo dizer que há algo de errado naquela casa e você
deveriaficarbemlongedelá.Não fiz questão de esconder minha irritação. Mais um dia, mais um
boato.—Nãopodesairporaídizendoessetipodecoisa,sra.Bailey!—Háumaescuridão—sibilouela,resoluta.Recomeceiacaminhar,apressandoopasso.Assimelaprecisariacorrer
parameacompanhar.—Édor!Elesestãodelutopelopai.Asra.Baileynãoparecianemumpoucosurpresacomaminharesposta.
Pelocontrário,elademonstroudesdém.Fiqueiboquiaberta.—Vocêachaengraçado?—Aquelehomemmereceestarondeestá.Pareibruscamente.Elamealcançou,quasesemfôlego.—Oquedisse?— Escute com atenção, Persephone.— Elame puxou pelo braço para
quepudessecochichar.—Aquelehomemmereceestardebaixodaterra.Eseaquelesgarotosforemminimamenteparecidoscomele,entãomerecemomesmodestino.Eu a encarei por um bom tempo,meus punhos cerrados pendendo ao
lado do corpo, respirando fundo. Eu estava tentando acreditar nela,mascomominhasemoçõeshaviampassadoodiaemumamontanha-russa,eusóqueriaestrangulá-la.Eraesseo tipodecoisaqueela falavasobremimpelasminhascostas?Aopiniãodelasobremeupaisemprefoibemóbvia.—Comopodedizeralgoassim?—questionei.Asra.Baileyolhouporcimadoombro,atordoada.
— Persephone — sussurrou ela entre lábios tremidos. — Tem ummotivoparaaquelehomemtersidochamadodeCeifador.Ceifador.Umenjootomoucontademimesentiaspernasficaremfracas.—Oqueissoquerdizer?—gaguejei.—Oqueachaquequerdizer?—perguntouela.—Andeipesquisandoe
descobriqueopaideleseraumhomemmuitoruim.Duvidoqueosgarotossejammuitomelhores.Vocêprecisaconfiaremmimquandodigoquedeveficarlongedeles.Nãopossodizernadaalémdisso.Mas que droga isso queria dizer? Essa velha tinha um limite diário de
besteiras que podia espalhar? Eu a observei, receosa. O que ela poderiaganhar dizendo isso?Mas, então, o que ela ganhava dizendo tudo o quedizianormalmente?Elaerafamosaporfazerdramaeporespalharboatosinventados, e eumeperguntavaquantaspessoas elanão teria alertado ameurespeito.Nicnãoeraumapessoaruim,eutinhacerteza.E,aliás,nemseus irmãos.Eles jogavambasqueteevideogames. Implicavamumcomooutroedavamemcimadegarotas.Nãoerajustojulgá-lospelareputaçãodo pai. Eu entendia bem do assunto e não ia cometer omesmo erro detodos os meus antigos amigos. Ainda mais quando o pai de Nic já nãoestavamaisentrenós.Volteiaandar.Asra.Baileyapressouopasso.—Eusóquerooseubem.—Tábom.—Vireiacurvaapertandoopasso,naesperançadechegar
maisrápidoemcasa.—Agradeçoapreocupação.—Dequalquerforma,oqueestavafazendonaquelacasa?Pormaisqueeunãoquisesse alimentar seuvício, acheiquea verdade
talvezadeixassequieta.—Estavadevolvendoumcasacoquepegueiemprestado.—Vocêestácomumcheiroestranho.—Valeu.Elacomeçouamefarejar.Pareinovamente.—Oqueestáfazendo?— Cada um dos meus seis sentidos é altamente desenvolvido. Estou
tentandodescobrirquecheiroéesse.LembreideFeliceeocheiroenjoativodele.— É doce? — perguntei, levantando a mão que eu havia usado para
cumprimentá-lo e cheirando-a.Meusdedosainda tinhamum levearoma,masnãoera tão fortequantoasra.Baileyafirmava.Talvezeu tivesseme
acostumado.— Sim— disse ela, pegando minha mão e a cheirando. Seu rosto se
apertou,concentrado.—Éumperfumenovo?—Nãoestouusandoperfume.— Ah — exclamou ela após um segundo. O tom na voz era de uma
presunçãocompleta.—Euseioqueé!Cruzei os braços na altura do peito fingindo impaciência, mas um nó
geladojáhaviaseformadonabocadomeuestômago.—Oquê?A sra. Bailey arqueou a sobrancelha de forma incriminadora,
prolongandoaresposta.—Mel.
CAPÍTULOONZE
ONOME
O resto do dia passou como um borrãomonótono. Tio Jack finalmenteligouparaalanchoneteparasaberdemim.Elemedeuonúmeronovo,masantes que eu pudesse falar com ele sobre qualquer coisa, a conversaacabou.Passeiorestodoturnotentandoentendercomexatidãooqueeleestavafazendoeporqueaindanãotinhavoltadoparacasa.TambémfiqueipensandonomeleseocheiroestranhodeFeliceestavaligadoaovidroqueencontreiaoladodocaixa.Ursula andava trabalhando em turnos de 12 horas para preencher o
vazio de competência deixado pelo meu tio e por Alison e Paul — quepassavammaistemposepegandonacozinhadoqueatendendoasmesas.Millie, no entanto, havia tirado o dia de folga e o aproveitava comestilo.Ligueiparaelaquandoacabeimeuturno.—EntãooValentinoexpulsouvocê,basicamente?—perguntouelaapós
umsuspirodramático.—Basicamente,sim—respondi,aindaconstrangida.—Onegóciotodo
foitãoestranho.VocêsentiualgoestranhonoseuencontrocomDom?— Não! — Digeri a empolgação na voz dela e senti uma pontada de
invejaindesejadadecomoosacontecimentoscorreramdiferentesentreelaeDom.—Apenasconversamosefizemosumpiquenique—tagarelouela,alegre.—Dápraacreditar?Parei ao chegar no final do estacionamento, sem saber que caminho
seguir.
—Sério?Issoparecetão...—Falso?Eusei.Pareceumacenadeumfilme.—Eacicatriz?—perguntei,atravessandoaruaparatomarocaminho
maiscurtoeamaldiçoandoamansãoPriestly.—Acidentedebarco—disseMillie,bocejando.—Sério?—perguntei,ouvindooceticismonaminhavoz.Dom não parecia ser o tipo de cara que andava de barco. Mas seus
irmãostambémnãopareciamserdotipoquejogavambasqueteeeuestavaenganadaquantoaisso.—É,éumahistóriasemgraça.Algumacoisacomumanzol—respondeu
Millie,desinteressada.—Enfim,compramoswrapsemilkshakese fomoscomer no Rayfield Park. Conversamos durante horas. Ele parecia muitointeressadoemmim,oquedeveserumbomsinal.—Comcerteza.Comecei a subir a pequena ladeira no trajeto para casa e minha
respiração foi ficandomais difícil pelo esforço conforme tentava dizer àMillieoqueestavameincomodando.Faleisobreopaidelestalvezserumassassino famoso. Embora eu não confiasse na sra. Bailey e nenhumapesquisa no Google com os termos “assassino Chicago Priestly” e suasvariantestivesseconfirmadoqualquerfatorelevantesobreafamíliadeNic,euaindaassimqueriainformarMillie.—Vocêachaquedeveríamosficarlongedeles,pelomenosatédescobrir
oqueestáacontecendo?—arrisquei.Milliesoltouumgemidodedesaprovação.— Soph, a sra. Bailey é, tipo, uma revista de fofoca ambulante. Ela se
alimentadeboatos ridículos. Lembra aquela vezque ela faloupraminhamãequeeuestavagrávida?Elaélouca.NãotemnadadeerradocomDomoucomafamíliadele,acredite.—Eusóachoquetemalgumacoisameioestranhaali.—Entãovamosdescobriroqueé!—encorajouela.—Encarecomoum
mistério.Ummistériosexy.— E se for algo que a gente não deveria descobrir? — perguntei,
pensandodenovonocheirodemeleemDomemumacidentedebarco.Eusimplesmentenãoconseguiaimaginá-lodesapatodockside.—EuvicomovocêolhaparaoNic,Soph—disseMillie.—Medizque
elenãovaleainvestigação.Talvez ela estivesse certa; mesmo com o mau pressentimento, era
inegávelminhaatraçãoporNic.EMilliesabiadisso.Alémdomais,eunãoqueriaacabarcomaempolgaçãodelaporcausadeumboato.
—Então,sobreoquevocêsfalaram?—Mudeideassunto.—ElemecontouquemoravabemnocentrodeChicagocomafamíliae
que acha o interior um tédio. Ele tem19 anos, o que é sexy e indecente,embora ele estrague um pouco sua perfeição com aquele gel no cabelo.Querdizer,olookGreasesófuncionanoHalloween.Nãoqueissotenhameimpedido de ficar babando enquanto ele falava. Tive de pedir pra elerepetirváriascoisas,oquefoiumpoucoconstrangedor.Mas,enfim,depoisa conversa virou sobremim,mas eu soumesmo um tópico fascinante.Efalamossobrevocêtambém.Sentimeurostoficarvermelho.—Porquê?Virei em uma rua estreita onde mansões de muros altos e cerejeiras
ladeavamasubidaaomeulado.Nametadedocaminho,aruaeracortadapelaavenidaLockwood.—Pormaisqueeuamefalarsobrevocê, foiDomquemmencionouseu
nomesemquerer.— Ah, é? — Eu não sabia nada sobre Dom, a não ser que ele era
obviamentemenosesquisitodoqueGino,equeestavanapontaopostadeLucanaescalaBabacaCompleto.—Oqueelefaloudemim?— Ele estava perguntando sobre a lanchonete e tal. Falei que
provavelmente em breve seu tio vai passar o negócio para você e queéramosmelhoresamigas,eentãovocêvaiobviamentemedarumaumentoenorme.—Obviamente—concordei,sarcástica.—EaímeempolgueiumpoucoedesandeiafalarsobrecomoJackestá
fazendoumpéssimotrabalhocomogerente.—Millie!VireinaavenidaLockwood.—Ah,Sophie—criticouela.—Issoéumfato.Eleandasupersumido.
Quer dizer, a pessoa não pode desaparecer assim quando quer. Primeiroque é uma grosseria, segundo que é esquisito. É exatamente o tipo decomportamentoquealimentaasfofocasidiotasdasra.Bailey.—Verdade.—Elatinharazãoeeunãoiaaborrecê-laporcausadisso.—Enfim, tenho certezade queDomvai repassar a informaçãode que
vocêembreveestarámontadanagranaparaoNiceissosóvaideixarvocêaindamaisatraente!Retraí o corpo ao pensar namentira que eu tinha contado para Nic e
Luca na primeira vez que os vira na lanchonete. Com sorte, Nic não sesentiria traídoporminhadesonestidade.Alémdomais, tecnicamenteera
sóumempregodeverão.Porenquanto.Aomeaproximardacasa,sentimeuestômagorevirar.—Acho difícil que sejam interesseiros. Devia ter visto a casa deles—
falei,olhandoparaacasa.— Quem sabe um dia eu veja. — Eu podia ver Millie mexendo as
sobrancelhasdeformasugestivadooutroladodotelefone.—Émelhoreudesligar.Estouexaustadaminhaaventura.—Espera!Vocêssebeijaram?—Seagentetivessesebeijadovocênãoachaqueesseteriasidooinício
daconversa?—Quepena.—Maselebeijouaminhamãoquandomedeixouemcasa.Serve?Foitão
romântico.—Claroqueserve!—conforteiMillieenquantopassavacorrendopela
casadeNic.—Certo,agorapodedesligar—faleiquandojáestavadooutroladoeamansãoiaficandoparatrás.Vireiàesquerdaeocaminhocomeçouadescernovamente.—Masmandamensagemquandochegaremcasa.—Tchau!—Sophie!—Umavozchamouassimqueguardeiotelefonenabolsa.Eumevirei,sentindoumfamiliarembrulhonoestômago.Euoreconheci
nahora,correndoemminhadireçãocomocapuzlevantado.Reagicomumacalmacalculada,tentandoimpedirquemeudesagradável
entusiasmomefizessecorrerdebraçosabertosemdireçãoaele.—Nic?Elediminuiuopassoeabaixouocapuz.Umsorrisoiluminouseurosto.—Oi.—Oquevocêestáfazendo?—perguntei.— Você não parecemuito feliz emme ver— observou ele. Pequenas
rugassurgiramentresuassobrancelhaseeleparoudesorrir.—Talvezeutenhasubestimadosuareaçãoaomevercorrendoatrásdevocêcomoummaníaco...—Porquê?Querdizer,funcionoutãobemdaúltimavez—provoquei.Sua expressão era de remorso, mas ele não conseguia esconder o
sorrisinho.—Eudeviateraprendidoalição,nãoé?Nãoquisassustá-la.—Tudobem—garanti.—Ésóquevocêapareceudonada.Umaexpressãodealíviocobriuorostodele.— Eu estava indo vê-la na lanchonete e aí vi você passar em frente à
minhacasaeresolviaproveitaraoportunidade.—Pelomenosdessavezvocênãomederrubou.—Agarreimeupeitoem
sinaldealívio.—Eutalveztivessequeenchervocêdeporrada.—Queapavorante—disseeleaindasorrindo.—Ei!—Batidebrincadeiranobraçodele,revelandoafamiliaridadeque
haviaentrenós.—Fiquesabendoquepossosermuitointimidante.—Tenhocertezadequeseuspunhosminúsculossãomuitopoderosos.Bati nele de novo, mas dessa vez ele segurouminhamão nomeio do
caminho.—Ouvidizerquevocêpassounaminhacasahoje.—Suaexpressãoficou
sériaeosolhos,frios.—Nuncaváàminhacasa.Afasteiamãodadeleemevireiparacontinuarcaminhando.—Nãosepreocupe,nãovoumais.—Sophie!—Elecorreuatrásdemim.—Meexpresseimal,desculpe.—Eu estava apenas devolvendo seu casaco— respondi,mantendo os
olhosparaafrenteenquantocaminhava.—Estavasendoeducada.Agorajásei que foi a decisão errada e, antes que comece, não se preocupe, seuirmão Valentino já deixou bem claro que não sou bem-vinda, então nemprecisaperderseutempo.—Medeixeexplicar.—Eleacelerou,depoissevirouecomeçouaandar
decostasparapoderolharparamimecaminharaomesmotempo.Assopreiumamechadecabelodosolhoseoencarei,furiosa.—Nãoquisdizerqueasuapresençanãoébem-vinda.Gostomuitode
vervocê...Sóficotenso,sóisso.—Comigo?—Não,nãocomvocê—disseele,puxandoocabeloparatrás.—Coma
minhafamília.Algunsdelessãomuitoestranhos.Então ele estava envergonhado. Bem, esse não era o piormotivo para
nãomequerernacasadele.—ConhecioFelice—falei.—Seédelequeestáfalando.Niccontraiu-se.—Eusei.Eleémuitointenso.Decidinãofalarnadaarespeito.—Elecriaabelhas?—perguntei,mudandodeassunto.Euhaviapassado
o dia pensando no cheiro de mel; às vezes podia jurar que ainda podiasenti-lo.Não era como se fosse um crime fazer o própriomel,mas tinhaalgumacoisanareaçãodomeutioaomisteriosopotedemelquenãomesaíadacabeça.Nicparoudeandar.
—Comovocêsabedisso?—Aquelasmarcas no rosto dele—disse eu, parando também.—São
picadasdeabelha,nãosão?Nic hesitou por um instante, como se ponderasse a resposta, e então
apenasdisse:—Sim.— E ele tem cheiro de mel. — Fiz uma pausa, ponderando se minha
próxima frase seria ofensiva,mas decidi dizê-lamesmo assim.—Parecequeeletomabanhonomel…Nicriu.—Éumapossibilidade.Elegostadecomerofavodemelpuro,ecultivae
extraiporcontaprópria.É...oqueelegostadefazer.—Suaexpressãosetornousombria,maselesorriunovamenteantesqueeupudessedecifraromotivo.—Masnãotemnenhumacolmeianasuacasa?—Aindabem!—respondeuelecomumligeirotomdealívio.—Felice
moraemLakeForest.MasenquantominhamãeestánaEuropaelesesenteobrigadoavirconferirseaindaestamosvivos.—Elefazoprópriomel?—confirmei,tentandonãomudardeassunto.
Volteialembrardopotecomolaçopretoquetinhaaparecidoumasemanadepoisqueelessemudaramparaacidade.Dessavez,Nicdemoroupararesponder.—Sim.—Eledáomelparaoutraspessoas?—Porquê?—Aexpressãodorostodelemudouenãoentendiamaneira
como me olhava. Era como se suspeitasse de mim. Será que eu estavafazendo perguntas demais sobre a família dele?Ou será que omel tinhaviradoumassuntouniversalmentecomplicadoparatodos?Eucomcertezanãotinhasidoavisada.Dei de ombros, observando Nic tão cuidadosamente quanto ele me
observava.—Apareceuumpotedemelna lanchonetehápouco tempo.Tinhaum
laçopreto.—Certo...—Estávamosquerendosaberdeondeveioeparaquemera.—Quemachou?—Eu.Nicfranziuocenho.—Oquevocêfezcomopote?
—Leveiparacasaeprovei.Erabom...Aídeixeicairsemquerereopotequebrou — acrescentei. Não tinha a menor chance de eu contar o queaconteceu de verdade. Era estranho demais até paramim, e eu conheciaJackdesdesempre.Umtioesquisitojáeraosuficienteparaaconversa.OrostodeNicficouaindamaisconfusoeelebalançouacabeça.—Comojádisse,Felicenãomoraporaqui.—Entãoelenãofariaalgoassim?—Duvidomuito—disse ele, virandoa atençãopara as estrelas sobre
nós.—Dequalquermaneira,eunãomepreocupariamuitocomisso.—Maseumepreocupo—falei,lutandocontraodesejodesocarobraço
deNicparaqueelemeolhassenovamente.Comoseentendessemeudesejo,elevoltouoolharparamim.—Estápreocupadacomomel?—perguntouele,abrindoumsorriso.Sentimeu rosto corar. Falandodessa forma, pareciamesmoumpouco
idiota.—Sónãogostodemesentirexcluídadenenhumassunto.—Experimenteseromaisnovodecincoirmãos.Continuamos a caminhar. Nossas mãos quase se tocavam enquanto
balançavamladoa lado,ebelascasasemruasarborizadasdavamlugaracasasmenoresemquadrassimétricas.— Então, não se importa de ser escoltada para casa novamente? —
perguntouele,seguindominhaindicaçãoaoatravessarmosumcruzamentodeserto.— Não. — Fiquei tímida ao olhar para Nic sob o luar. Havia algo na
maneira que seus olhos brilhavam ou em como o cabelo enrolava naspontasquedeixavaminhabocaseca.— Queria me certificar de que você não ficou chateada com o que
aconteceu mais cedo. Sei que Valentino foi grosseiro, mas eleprovavelmenteestavatentandoprotegervocêdamaluquicedoFelice.Dispenseia justificativa fazendoumgesto comamão, embora sentisse
alíviocomaexplicaçãodele.—Vousobreviver.—Quebom.—PorfalaremValentino—comecei,tomadapelacuriosidade—,posso
perguntaroqueaconteceucomele?—Vocêquerdizerporqueeleestánacadeiraderodas?—É, isso— respondi, encarandomeus sapatos.— Se não se importa
comapergunta.Nicnãopareceuofendidoesolteioar,aliviada.
—PossodeduzirqueentendeuqueeleeLucasãogêmeos—começouele.Fizquesimcomacabeça.—Então,quandominhamãeestavagrávidados dois, a posição de Luca na barriga fez pressão na parte inferior docorpodeValentino.Elenãosemexiadireito.Suaspernasficaramenroladasem pedaços da placenta e quando Valentino nasceu ele tinha o que échamado de “malformação congênita”. A perna direita estavacompletamenteesmagadaeviradaparaoquadril.Osmédicosfizeramumacirurgiaquandoeleeracriança,masapernanuncasedesenvolveudireitodepois disso. Valentino andadistâncias curtas comumabengala,mas eleprefereusaracadeira.—ElesentealgumamágoadeLucaporcausadisso?—perguntei.Nicdeudeombros.—AchoqueelejáficafelizdeLucanãotê-locomidodentrodabarriga.
—Nicriudaminhaexpressãodechoque.—Éelequediz isso,nãoeu—esclareceu.—NãoachoqueeletenhamágoadeLuca.Valentinosemprefoiomaisinteligentedetodosnós.Éomaiscriativoeentendemuitobemaspessoas;bemmaisqueLuca.Elessãotãopróximosqueàsvezessintoquesãoamesmapessoa.Concordamem tudoe, se vocêdecidirdiscutir comum, vai discutir com os dois, e eles atropelam você antes que consigapensardireito.—Nicfezumabrevepausa,caindoemumalembrançaqueofezsorrir.Observeicomatenção,tentandodescobriroquesepassavanacabeçadele.—AchoqueLuca sentemais culpapelasoportunidadesqueteve,masValentinonãoéumavítima.Elesmorreriamumpelooutro.—Uau—disseeu,sentindoafamiliarsensaçãodesolidãopelosirmãos
queeujamaisteria.—Deveserlegalteressetipodeligação.—Acreditoquetodomundopodeteressetipodeligaçãocomalguém—
disseNiccalmamente.—Nãoéesseoobjetivodavida?—Esperoquevocêestejacerto.—Meconcentreinasminhasunhaspara
nãomorrerdevergonhacomoolhardele.Nicparoudeandarepareitambém.—Estou—falou,resoluto.Olheimaisumavezparaele,timidamente,eantesquemeunervosismo
tomassecontademimemefizesseenlouquecerporcompleto,soltei:—Então,aMillievaidaruma festanosábadoequase todomundo foi
convidado,aípenseiquetalvezquisesseir,senãotivernadaparafazer.Niclevantouassobrancelhas—eunãosabiadizerseerapelavelocidade
doconviteoupelosignificado.—Imaginoqueoirmãocharmosodelavaiestarlá?Puxeioarentreosdentes.
—Sim,mas você com certeza será bem-vindo, se é com isso que estápreocupado.Eles têmuma regra.Nãopodemvetar os convidadosumdooutro.Nicsoltouumarisadabaixaedemorada.—Salvopelopoderdevetosproibidos.—Exato—falei,maisrelaxada.—Comopoderiaresistir?—Nãoachoquepoderia.Estoudeduzindoquevocêtambémestarálá.—Claro.Naverdade,tambémémeuaniversário.—Ah—disseele,sorrindo.—Buoncompleanno.Vouadorar.Fizumadancinhadavitórianaminhacabeçaenquantomecertificavade
manterumaexpressãoneutra.—Legal.— Estava mesmo querendo saber o que você faz para se divertir —
continuouele.—Estavapensandonissomaiscedo.—Entãonãoparadepensaremmim,é?—provoquei.—Nemquando
jogabasquetecomseusirmãosourelaxanasuamansãogiganteenquantoestoumorrendodetédionalanchonete?—Claroquenão.—Quebom.—Evocêtambémédifícildeesquecer—acrescentou,quasecomouma
conclusão.—Achoqueamaioriadaspessoasdiscordaria—respondi.—Nãosouamaioriadaspessoas.—Issosemdúvidaéverdade—concordei.—Então,mefaledevocê,Sophie.Querosabermaissobrevocê.—Porquê?—Ninguémnuncaqueriasabersobremim.Especialmente
nenhuma pessoa com aquela pele bronzeada. — Sou muito entediante,prometo.Ele riubemdeperto,e senti sua respiraçãonaminhaorelhaenquanto
eleseinclinavanaminhadireção.—Quemsabedeveriadeixaroutrapessoaquenãovocêmesmadecidir
isso.Emvezderesponder,chuteiumapedrinhasoltaeaobserveiquicarna
rua.—Bem,vamoscomeçarcomoquesabemos—disseele, esfregandoo
queixo.—Vocêéumpoucodefensiva...—Ei!—Oqueéadorável—completoulogo.—Eoquemais?Vocênãogosta
de tempestades. É nervosinha e fica vermelha quando alguém olha
fixamenteparavocê...Fizumacareta.Eletinhanotado.—Oquesótornaolharparavocêmaisdivertido—brincouNic.—Não
quejánãofossedivertidoolharparavocê.Sentimeurostocorardenovoeamaldiçoeiqueaquiloacontecessebem
naquelahora.—Vocêmoracomseuspais?—perguntoueledelicadamente,quasede
formanatural.—Morosócomaminhamãe—respondi.—Meupainãomoracoma
gente faz tempo, então a gente tenta não queimar a casa ou nãomorrerenvenenadacomcomidaestragada.Eume senti culpadapor omitir a parte sobremeupai estar naprisão,
masnãoquiscorrerorisco.—Vocêssedãobem?—Sim,quandonósduasestamosemcasa.Masachoquenãonosvemos
tantoquantoeugostaria.De repente, me senti vulnerável demais, contando meus pensamentos
maisprofundosaumgarotobonitoqueprovavelmentenãose importavacomaminharelaçãocomaminhamãe.Nicmeobservou,contemplativo.—Deve serdifícil.Masquemsabeadistâncianãoaproximavocêsnos
momentosimportantes?—Talvez.—Deumahoraparaoutramevi tomadapelaemoção.Qual
eraadosgarotosPriestly?Nomesmodia,demanhã,quasetinhachoradocomValentino!Eagora...—Então,estevaiserseuúltimoanonocolégio?Salvapelogongo.Nossospassosseguiramnomesmoritmo.—Aham,apartirdesetembro.Tenhomaisumanoletivotorturantepela
frente.—Suspireidramaticamente,felizportermosmudadodeassunto.—Evocê?—Acabeidemeformar—respondeuelecomcertoorgulho.—Eoquevaifazerdavidaagora?—Adieiafaculdadeporumsemestre;vouficartrabalhandocommeus
irmãos,basicamente.—EmCedarHill?—Não—respondeuele.—Nãoexatamente.Nãootempotodo.—Vocêgosta?—Doquefaçooudeondemoro?—DeCedarHill.—Sentiumasúbitavergonhadaminhaligaçãocoma
cidade.Emespecialnaparteondeestávamosagora.HaviaumadiferençagritanteemrelaçãoaoluxoaoqualNicestavaacostumado.Elesorriuparamimcomosepudessesentirminhavergonha.—Nãogosteimuitonocomeço,masagoragosto.—Oquevocêfaz?Quetipodetrabalho?Eledeudeombros,masmanteveaposturadefensiva.— Nesse momento? Não muita coisa... — falou, sendo vago e
interrompendoafrasenomeio.—Achaquevaisentirsaudadedocolégio?Nicbalançouacabeça.— É só por um semestre. E gosto de me manter ocupado; quero me
sentirútil,sentirqueestoucontribuindominimamenteparaomundo.Achoquejamaistereiqueusartrigonometrianavida.—Né?—concordeienfaticamente.—OuShakespeare.Blerg.Nicreagiucomoseeutivesse lhedadoumtapa.Paroueseguroumeus
braços, puxando-meparaperto atéque eu estivesse sob seuolhar.Acheiqueelefossecomeçaramesacudir.— Você realmente acabou de zoar o homem que escreveu Romeu e
Julieta?Franziocenho.Eununcatinhapensadodireitonoassunto;sósabiaque
nãogostavadeestudare,paramim,Shakespeareerasinônimodeescola,umlugarondeeunãomesentiabem-vinda.—Achoquenãosouumagrandefãdetragédias.— E de amor?— Ele perguntou com tanta intensidade que quaseme
esqueciderespirar.Lentamente, Nic passou as mãos pelos meus braços, subindo pelos
ombrosatéqueospolegarestocassemabasedomeupescoço.Sentiapeleficararrepiadadeansiedade.—Amoréoutracoisa—falei.—Amoréfraqueza.—Eleobservouseusdedosenquantoosmoviapara
cimanopescoçocomumtoquequaseimperceptível.—Afraquezaéoquenosfazhumanos—falei,comavozrouca.—Eserhumanosnostornafalhos.—Eleestavatãoperto.—Vocêéfalho,Nic?Eleolhavaparaosmeuslábios.—Claroquesou.—Achodifícil.— Não deveria achar— sussurrou. Ele ajeitou uma mecha de cabelo
atrásdaminhaorelha,mantendoopolegarsobmeuqueixo.
Fiquei na ponta dos pés e elemepuxoupara perto até nossos narizesquase se tocarem. A respiração dele estava irregular. Então, Nic segurouminhacinturacomforçaeencostouoslábiosnosmeus.Eu não podia mais resistir. Estava entregue e de repente nada mais
importava a não ser Nic e o jeito como nossos lábios se tocavam,segurando-me como se nunca mais fosse me largar. Tudo à nossa voltaficouemsegundoplanoe,porumsegundo,senticomoseomundointeiroprendessearespiração.Então,obarulhoensurdecedordeummotoracaboucomosilêncio.Um
carro passou acelerado pela rua, nos trazendo de volta à realidade eacabandocomobeijo.Enquantoocarropretocantavapneuaopararnaruaaonossolado,senti
minhasentranhassecontorceremdedecepção.Nic,desvencilhadodemim,correuemdireçãoaovidroescurodocarroebateunajanela.—Gino?Dom?—gritouele.—Cosavuoi?Comumacasualidadeelegante,ovidroseabriueomotoristaseinclinou
paraobancodocarona.—Luca?—Nicpareciachocado.Ele,comtodaasuafriezaesplendorosa,vociferou:—Entre,Nicoli.—Oqueestáacontecendo?Lucaesticouobraçodeformabruscaeabriuaportadocaronaparaque
batessenoirmão.—Entrenocarroagora.Nicvirouparamim,pedindodesculpas.—Eleémeioexageradoàsvezes...—Semela—interrompeuLuca.— Ficou louco? Ou apenas resolveu ser babaca por um dia? Não vou
largaraSophienomeiodarua!Lucaesfregouamãonatestaesoltouumsuspiroalto.—Nãoseiquedrogavocêachaqueestáfazendo,irmãozinho,masnãoé
engraçado.—Sobreoquevocêestáfalando?—VocêfaloucomDomhoje?—Não.—Vieniqui.Nicseinclinouparadentrodajanelaaberta.Luca baixou a voz e falou rápido apenas uma frase. Embora eles
estivessem falando em italiano, permaneci ali de braços cruzados,
escutando. E, embora eu tenha ouvido apenas um monte de sílabasincompreensíveis,entendiumapalavra.Eapalavraera“Gracewell”.Nosegundoquemeusobrenomesaiudabocado irmão,Nic seviroue
me olhou com um pavor muito maldisfarçado. Os lábios macios queestiveramencostadosaosmeusalgunsmomentosantesestavamtensose,derepente,Nicmeolhavacomosenãosoubessequemeuera.—Oqueestáacontecendo?—Qualéoseunome?—perguntouele,tenso.—Vocêsabeomeunome—respondi,assustadaderepentepornãoo
reconhecer.—ÉSophie.—Sophiedequê?—Nic...—Sophiedequê?—repetiuele,avozassustadoramentefria.—G-Gracewell—gaguejei,comoslábiostremendo.Elepareciaprestesadesmaiar.—Cazzo!—Quediferençafazqualéomeunome?—Ouviodesesperoemminha
voz,maseunãoligava.Elebalançouacabeça.—Masnãofazsentido.—Comoassim?—Precisoir.—Aspalavraspareciamforçadas,maseleaspronuncioude
formadeterminada.—Qualoproblema?—insisti.—OqueLucadissesobremim?AtrásdeNic,Lucaencaravaaruaimpaciente,masasmãosseguravamo
volanteemumapertodeaço.—Entrenocarro,Nic.Chega.Nic se demorou, olhandoparamim como se eu tivesse acabadode lhe
darumtapanacara.—Luca...—implorouele,comosetivesselevadoumarasteiraecaídode
caranochão.Luca não virou a cabeça e, quando falou novamente, sua voz estava
endurecidaderaiva.—Sai.De.Perto.Dela.Agora.AgarreiobraçodeNic.Eunãosabiaaondeeleestavaindo,massabiaque
nãoqueriaquefossesemmim.—Agora!—Lucaarreganhouosdentescomoumlobo.Houveummomentode vazio, quandomeu coraçãopareceu entrar em
colapsoeentãoNicseafastoudemimesubiunobancodocarona,batendo
aporta.SalteiparafrenteemependureinajanelaabertabemnahoraqueLuca
giravaachave.FoientãoqueviqueablusadeLucaestavacheiadesangue.— O que aconteceu? — falei, assustada, com o coração apertado. Se
aquelesanguefossedeLuca,eleestarianohospital.Masnãoestava.Estavasentadonaminhafrente,raivosoeileso.Diversosdesaparecimentoseduasmortes estranhas nas últimas duas semanas, zuniram as palavras da sra.Baileynaminhamente.—Deondeveiotodoessesangue?LucanãorespondeueNicfalouemseulugar:—Afaste-sedocarro,Sophie.—Issotemavercomomeupai?Luca e Nic trocaram olhares intensos e de repente me senti de novo
comoumapária.—Querosaberoqueeledisse!—griteicomNic.—Fala!FoiLucaquemfinalmenterespondeu.Girandoacabeça lentamente,ele
meencarouatéqueseusgélidosolhosazuisdominassemminhavisão.—Gracewell—sussurrouele—,saidepertodomeucarroouvocêvai
searrepender.Nic soltou um palavrão em voz baixa, mas continuou sem olhar para
mim.Luca,noentanto,manteveoolharhostilatéqueeudesistisseetirasseasmãosdocarro,cambaleandoparatrás.OmotorrugiuduasvezeseosirmãosPriestlyacelerarampelanoitesem
sequermaisumolharnaminhadireção.Fuideixadasozinha,nomeiodarua deserta, enquanto um monte de perguntas explodia dentro do meucérebro.
PARTEII
“Éapenasnoamorenamortequepermanecemossinceros.”FRIEDRICHDÜRRENMATT,Crepúsculodeumanoitedeoutono
CAPÍTULODOZE
AABELHA
Euestavaparadanaesquina,abraçadaaNicecomosbraçosenvolvendoseu pescoço. Vimos o asfalto se partir sob nossos pés. O som de águacorrendo rugia nos meus ouvidos enquanto um abismo partia o chão,dandoespaçoparaaschamasquesubiam,lambendoocéu.Derepente,Nichaviasumidoeeucaía.Gritei,masminhavozficoupresanagarganta.Oarera substituídoporareia, eomundo ficoupreto, comosealguém tivessedesligadouminterruptordentrodaminhacabeça.E então não havia mais nada além do meu coração, batendo forte no
peito,eocheirodecreamcheese.Guiadaporumzumbidodistante,caídevoltanarealidade.—Sophie...Osolatravessavaminhaspálpebras.—TerrachamandoSophie...Semicerreiosolhoseespereiotetoentraremfoco.—Adivinhaquediaéhoje?Tossipara tirarogostoarenosodaminhagargantaepisquei, tentando
afastaralembrançadosonho—eraasegundanoiteseguidaqueeutinhaaquelesonho.Senteinacamaapoiadanoscotovelos.—Bomdia,aniversariante!Minha mãe estava empoleirada na beira da minha cama. Seus olhos
estavamquasefechadosporumsorrisoquebotavaodoGatodaAlicenochinelo. Fiquei feliz de vê-la sorrir daquele jeito, mesmo que fosse por
causadomeudia.Eusentiafaltadamaneiracomoosolhosdelabrilhavamquandosorria.No colo dela havia um cupcake de red velvet com uma cobertura
extravagantedecreamcheese.—Bomdia—faleicomavozrouca.—Felizaniversário,querida.Elapescouumisqueirodedentrodocasacoeacendeuavela.—Façaumpedido!—exclamou,enfiandoocupcaketãopertodomeu
rostoqueviasfumacinhassubiremdachama.Penseinopedidoenquantoachamadançavanafrentedosmeusolhos,
meprovocando.Clareza,decidi,finalmente.Eusóqueroclareza.Assopreiavela,decidida,apagandoachamacomumgolpedear.Minhamãesacouumafacaprateadadooutrobolso.Elapartiuocupcake
bemnomeioeasmetadescaíramcomopesodacobertura.Entãopegouumametadeemeentregou.—Delícia!—faleidepoisdemorderumpedaço.—Obrigada.Comaoutrametadeapoiadanocolo,minhamãevirouparatrásepegou
umpresenteembrulhadoemumpapelroxoextravagante.—Fizumnegóciopravocê.Sorri, limpando o resto de cobertura dos dedos no edredom. Eu já
suspeitavadequefosseovestidoqueelavinhafazendosecretamente.Comcuidado,puxeiaspontasdafitaedesdobreiopapeldeformaqueovestidoescorregasseparaacamaperfeitamentedobrado.Euoestiquei.Erabem-estruturado, mas delicado, feito de uma seda de um dourado claro,adornadocomlantejoulascintilandoàluzdosol.Levanteiovestido,passeiosdedospelasalçasfinasesentiacinturamarcada.—Éincrível!—Ecombinacomseucabelo!—Minhamãesorriu.—Penseiquevocê
podiausarnafestadaMilliemaistarde.—Ótimaideia!SentiumapontadadeculpaporesconderaausênciadospaisdaMillieda
minhamãe.Mas,aindaassim,oqueosolhosnãoveem,ocoraçãonãosente,certo?Elabateupalmasumavez.— Almoço mais tarde? — perguntou, pulando da cama. — Quero
presentearminhafilhade17anoscomumalmoçonoEatery.—Sério?—Deiteidevoltanacamaeestiqueio corpoemum longoe
preguiçosobocejo,olhandoparaoteto.—Pareceótimo.—Ecaro.Minhamãelevouovestidocomelapeloquarto,desviandodosmoletons
velhosedascalçasjeansjogadaspelocaminho.Elaopendurounoarmárioe,comumúltimoolhardecepcionado—ehipócrita—paraochão,saiudoquarto, me deixando sozinha com meus pensamentos, concentradosnaquele sonho estranho. Como um golpe de eletricidade, o beijo de Nictomou conta de mim de novo e senti meu estômago se contorcer emdesconfortocomalembrançadapartidarepentinadele.Torciaparaeunãoestar condenada a reviver o abandono também em forma de pesadelo.Ainda tinha um monte de perguntas na cabeça e nenhuma forma deconseguirasrespostasdequetantoprecisava.Aperteiabarriga,quelutavacontraocupcake,esolteiumgemido.Talvezumafestafosseexatamenteoqueeuprecisavapararelaxar.
OrabodecavalopretosurgiadacabeçadeGinocomoumaminipalmeirasombria. Ao lado dele, as luzes se refletiam no cabelo lambido de gel deDom.Oqueelesestavamfazendoali?—Oquefoi,querida?Nãogostoudaquiche?Voltei a atençãoparaminhamãe,queestava sentadadooutro ladoda
mesa.—Estáboa.Sóestouumpoucoagitada.— Não falou nada desde que chegamos. Achei que ia gostar daqui. É
metidoabestademais?Aoverapreocupaçãonorostodela,fuiconsumidaporumanovaondade
culpa.Balanceiacabeçacommaisênfase.— Está falando sério? Este restaurante é ótimo. — Apontei para a
decoração clean do Eatery: o chão de granito preto era decorado comfloraiselaborados;asmesascobertascomtoalhasbrancascaras;ecolunasromanas subiam até o teto por todo o restaurante. As paredes eramdecoradascomfotografiasempretoebrancodaChicagodoiníciodoséculoXXepontilhadascomlustresdevidro.—Éumaboamudançadearesparaquemfrequentaalanchonete.Minhamãesorriuetomouumgoledevinho.—Porfalaremlanchonete,euqueriafalarcomvocêsobreisso...Deixeiminha atenção retornar para Dom e Gino— oumelhor, para a
partedetrásdassuascabeças—emepergunteiqualeraaprobabilidadedeestarmosnomesmorestaurante.Estávamosaquilômetrosdedistânciade Cedar Hill, bem no centro de Chicago, e como era um dos melhoresrestaurantesdacidade,serviamaiscomoumaespéciedelugarmilionárioparacelebrações.Osdeusesdocarmadeviamestarcurtindooespetáculo.
PelomenosNiceLucanãoestavamacompanhandoosirmãos.Tenteimelembrar de como Nic havia sido terrível naquela noite, mas era difícilesquecer todos os outros detalhes sobre ele, os mais doces, gentis eengraçados. Seus sorrisos, seubeijo... comoelehaviamedeixadosozinhanomeiodanoitesemolharparatrás.Estremeci.—Sophie?—Oquê?MordioutropedaçodaquicheLorraineenquantomeperguntavaporque
havia decidido comer aquilo. Mas também, não tinha entendido o que amaiorpartedocardápiodiziaenãoestavaconvencidadequegostariade“batatasfritascominfusãodetrufas”maisdoquedebatatasfritasnormais.—Querofalarcomvocêsobrealanchonete.—Podefalar.Atrásdaminhamãe,Ginosecontorciacomalgoditopelohomemcareca
sentado à frentedele.Domestava àdireitado irmãoehaviaumhomemmagroealtoàesquerdadele,viradodeperfilparamim.EraFelice—euapostaria meu jantar nisso. Embora estivessem do lado oposto dorestaurante, colados uns aos outros em uma cabine escondida, um levecheirodemelcirculavapeloar.Talvezeuestivesseenlouquecendo.Desvieiosolhos.Minhamãecontinuavaafalar,gesticulandoanimadamente.—...criouexpectativasinjustasemcimadevocê.Precisasairmaisevero
mundo,nãoacha?Um zunido chamou minha atenção. Uma abelha tinha entrado no
restauranteecirculavapelamesaaonossolado.—Sairdeonde?—perguntei,meforçandoaprestaratençãonovamente
ao que minha mãe dizia e me recriminando por ser tão dispersa. Noentanto,euaindaviaumpequenoborrãopretoeamarelopelocantodosolhos.—Dalanchonete.Enfieiogarfonaquiche.—Oquetemalanchonete?Ohomemquenão reconheci se levantoudamesadosPriestly. Ele era
alto e careca e tinha uma testa ampla e um grosso bigode preto quedominavaseurosto.Eleresmungouaopassarporumagarçoneteeentãodesapareceupelaportadobanheiro.—Achoquedeveriapedirdemissão.Afetademaissuaenergiaevocêmal
temtempolivre.Agora que eu tinha ouvido a frase inteira, estava surpresa com a
sugestão.Repouseiogarfoeengoliumpedaçointeirodequichedeumasóvez. — Mas a lanchonete é do papai. Achei que o plano era que euadministrasseolugaratéelevoltar.—Nãoseiporqueeuestavaresistindoà ideiadela, herdar a lanchonetequando fizesse18anosnunca tinhameanimado.Eusempresoubequenãoeraminhavocação.Aabelhapassouzunindopelomeurosto,desviandoporpoucodonariz.
Minhamãelargouogarfoesoltouumgritinho.— Desculpe — explicou ela, envergonhada, recompondo-se. — Eu
semprelevoumbaitasusto.—Achoasabelhasatébonitinhas—falei,tentandoacalmá-la.Dooutroladodorestaurante,aabelhaziguezagueavaemdireçãoàmesa
dosPriestly.Deveestarretornandoparaseumestre,pensei,fitandodenovoapartedetrásdacabeçaprateadadeFelice.—Oqueestáacontecendocomvocê?Está tãodispersa.—Minhamãe
agarroumeupulsoechamouminhaatenção.— Desculpe. — Balancei a cabeça em uma tentativa inútil de me
concentrarepuxeiamãodevolta.—Oqueestavafalando?— Por que não deixa seu tio administrar a lanchonete depois que se
formar ano que vem, até seu pai voltar? Assim vai poder se concentrartotalmenteementrarnafaculdadeeestudaremChicago,emvezdeficarnointerior.Temummundointeiroláfora,sabia.Enfieimaisumagarfadacheiadequichenaboca.— Ainda estou economizando para comprar um carro. Preciso do
dinheiro—faleicomabocacheia,tentandofalarporcimadela.Voltei a desviar o olhar. O homem careca de bigode tinha voltado do
banheiroesejuntavaoutravezaogrupodosPriestly,sentando-secomumgrunhidoaudível.—Possolhedarumpoucodedinheirotodasemanaparaocarro.Você
nemiasentirfaltadasgorjetasdalanchonete—insistiuminhamãe.—Nãoquerocolocaressepesoemcimadevocê—faleicomabocameio
cheia.—Seiquenãotemosdinheiropraisso.Minhamãeempurrouumpedaçodequeijodecabrapeloprato.—Sophie,eurealmenteprefiroquevocêpeçademissão.—OtioJackfaloualgumacoisapravocê?Temconversadocomele?—
Euestavacomeçandoaficarinquietanovamente.Minhamãeestavaagindodeformaestranha,assimcomotodomundonaminhavida.— Não, mas talvez devêssemos manter vocês dois afastados. Ele tem
parecidomaisdestrambelhadodoqueonormal.—Achoqueeleficariamuitomalseeuoabandonasseagora.Aindamais
depoisqueoamigodelemorreu.Eladeudeombrosaopescarumapequenafatiadecebolaroxadoprato
emorder.—Jacknemestámaisporperto.Eelenãopodetertudooquequer.RetorneiosolhosparaamesadosPriestly.DomeGinodiscutiamcomo
homemcarecadebigode.Felice—sim,eraelecomcerteza,davaparavê-loagora—estavasentado, imóvel,comasmãosfechadasemcimadamesa.Ele observava em silêncio a abelha, que agora voava perto demais deles.Com a discussão, as vozes aumentaram e se espalharam por todo orestaurante.—Oque está acontecendo?—Minhamãe se viroupara tentar ver de
ondevinhaacomoção,queacaboutãorápidoquantohaviacomeçado.—Mãe?Elaolhouparamim,ansiosa.—TemalgumacoisaquenãomecontousobremeupaieotioJack?Ou
sobrevocêeotioJack?Tenhoaimpressãodequenãocontaramahistóriatoda.Elaseapoiounoscotoveloseentrelaçouosdedossoboqueixo.—Comoassim?—Bem,eunãosei.Porissoperguntei...Oestrondodeumtapafezcomquepulássemosdascadeiras.—Calvino!—Foiumgritotãoaltoquepareciademulher.Masvierana
verdade de Felice, que tinha se levantado com asmãos no rosto. Agora,todosnorestauranteolhavamparaamesadeles.Ohomemcareca,Calvino,recostou-seplacidamentenacabine,tirandoamãodamesasempressaealimpandocomumguardanapo.Eletinhamatadoaabelha.ArespiraçãodeFelicesealterou.Eledissealgobemaltoemitaliano,mas
Calvinonempiscou.TentoupedirqueFelicesesentassecomgestos,masquantomaiscalmoeleparecia,maisFeliceficavaensandecido.Elecomeçouaberrar insultosenquantoapontavaparaoqueeudeduzia sera carcaçaesmagadadaabelha.Fiqueiboquiaberta.Eununcatinhavistoalguémtãocalmosurtartãode
repente.Felicebotouamãonapartededentrodopaletó,fazendocomqueGinoe
Dom se agarrassem aos seus assentos. Calvino levantou de um pulo eergueu os braços como em rendição. Ele sussurrou rápido algumaspalavras.Felice tirou a mão do paletó e fechou o punho ao lado do corpo. Ele
passouaoutramãopelocabeloatépararapertandoanuca.
Comcalma,esemtirarosolhosdeFelice,Calvinosesentou.Felicepermaneceudepé.Levantouoqueixo,parecendoaindamaisalto,
e,comumúltimopalavrãodirecionadoaCalvino—masouvidoportodosemumraiodeumquilômetro—,saiuàspressasdorestaurantecomoumesqueletoraivosoeelegante.— Que homem estranho — sussurrou minha mãe, sua voz mais um
sussurroentretodososoutrosnorestaurante.— Família estranha — murmurei, assistindo a Gino e Dom se
reacomodaremàmesae retomaremaconversa.Quemsabenaquelecasoespecífico euera sortuda por ter sido excluída. Era óbvio que os Priestlytinhammuitocomoquelidareeujáhaviaatingidominhacotadedramapela vida inteira. Provavelmente seria melhor assim. Mesmo que nãoparecesse.Volteioolharparaminhamãeeaencontreimordendoolábioinferior.— Sophie, temmuita coisa que você não sabe sobre seu pai e Jack—
começouela,retomandoaconversacomoseaquelainterrupçãodramáticanunca tivesse acontecido. — Às vezes penso que Jack merecia estar nacadeiamaisdoqueseupai.Eraaprimeiravezqueeuouviaminhamãeapontarculpadosnasituação
daquela noite — ou sequer falar voluntariamente a respeito. Era umdaqueles momentos silenciosos mas definidores que estavam sempre àespreita na dinâmica da nossa relação, mas que raras vezes eramabordadosporqualquerumadenós.—MasJacknemestavalá.—Euseidisso—admitiuela.—Masseutiosemprefezamizadecomas
pessoaserradas,otipodepessoaqueseimportamaiscomdinheirodoquecomafamília,equealimentaasparanoiasdele.QuandoseupaisemudouparaCedarHill,elequeriacomeçarumavidanovacomagente,umavidamelhorqueadelequandoeracriança.Eleerarespeitávelebem-sucedido,masentãoJackcomeçouanosrondar.Elenãotinhafamíliaeconsideravaanossaadeletambém.Eleeseupaicresceramsozinhos,doisgarotoscontraomundo,etenhoaimpressãodequeseupaisentiacomosedevesseaJackumpedaçodasnossasvidasparaqueelenão ficassesozinhoporaí.MasJackcomeçouabotaressasideiasnacabeçadoseupai.Asmesmasideiasquevejoeletentandobotarnasuacabeça;ideiasquefazemvocêtermedoe ficaransiosa.Chegouaopontode Jackcomeçaraquestionara tudoeatodos que frequentavam a lanchonete e com isso logo seu pai tambémcomeçou a ficar paranoico.Quantomais pensono assunto,mais acreditoque,seJacknãotivesseinfluenciadoseupai,elenãoteriaseprecipitadoem
achar que o homem que entrou na lanchonete naquela noite era umassaltanteperigoso.—E não teria atirado nele— completei friamente.—Não sei se você
podeculparJackporisso.—Eledeuaarmaaseupai.—Paraprotegeroirmão—retruquei.—Elessemprecuidaramumdo
outro.Elaespetouogarfoemumpedaçodetomate.— Você está certa — respondeu ela rápido, balançando a cabeça. —
Deixapra lá.Eunãodevia ter tocadonesseassuntonoseuaniversário.Odiadehojedeveseconcentrarnascoisasboasdasuavida.De repente, o clima entre nós ficou desconfortável e tenso. Tomei um
gole de Coca diet e deixei as vistas vagarem para os Priestly, que agoraestavamatipicamentesilenciosos.GinoapoiavaacabeçanasmãoseDomestavaapoiadonoencosto,encarandoo tetodemaneira inexpressiva.Euentendiacomoelessesentiam.
CAPÍTULOTREZE
AFESTA
Examinei meu reflexo no espelho do quarto, certificando-me de que ohidratantedaminhamãe tinha semisturadopor completo àminhapele.Passeiumpoucodobronzeadornatestaeblushnasbochechas.Remexinabolsademaquiagemdaminhamãe,saqueiumdelineadorpretoeopasseinas pálpebras antes de aplicar um rímel pegajoso nos cílios. Então meafastei e apreciei meu reflexo, maravilhada com o que as modernidadescosméticaspodemfazerporalguémquequasenuncavêosol.Minha mãe entrou no quarto e vi um presente nas mãos dela — um
retângulograndeembrulhadoemumpapeldasprincesasdaDisney.—ÉdaMillie?Elacolocouopresentenacama.—Eladeixouaquiquandovocêestavanobanho.Abra.Estoumortade
curiosidade.Nãoprecisavapedirduasvezes.Rasgueiopapeleencontreiumacaixa
desapatocinza.NapartedecimahaviaapalavraCARVELAescritaemumafontepretadesenhada.—Como aMillie pagoupor isso?—perguntouminhamãe, dando voz
aosmeuspensamentos.Balanceia cabeça, incrédula.Comoeupodia terumamelhoramiga tão
maravilhosa?Levanteiatampacomcuidado,retireiopapeleencontreiumpardescarpinsdecouroenvernizadocordecreme.Osalto,quedeviaterpelomenosuns12centímetros,erarevestidoporumlevebrilhodourado,
eobicodosapatoseabriaemumaaberturapeep-toeperfeita.—Achoqueestouapaixonada—gemi.Minhamãesuspirou.—Nuncafiqueitãodecepcionadaporterpésmenoresqueosseus.Encaixeimeupéesquerdonosapatoecambaleeiparaafrente.—Comovoufazerparanãocairdecaranochãocomessessapatos?Minhamãesorriuaomeentregarooutropé.—Ninguémdefatoandadesaltoalto.Aspessoasapenassobrevivem.Depoisde15minutos testandoos sapatos, coloqueio vestido.Girando
em frente ao espelho, retirei o grampo do cabelo fazendo com que elecaísse em ondas nas minhas costas. Eu mal me reconhecia, mas tinha asensaçãodequeapessoanoespelhoiasedivertirbastante.
Quando encostamos o carro em frente à casa de Millie, já ouvíamos amúsica ecoando pelas paredes. Muitos carros ocupavam a rua até aentrada.Desciparaomeio-fio.— Tem certeza de que os pais da Millie concordaram com isso? —
perguntouminhamãe.Euaobserveiestudaroscarros,desconfiada.—Aham.—Virei de lado para que ela não pudesse vermeu rosto de
mentirosacaradepau.—Ok...—cedeuela.—Divirta-se!Observeiocarroseafastaratéquevirasseumpequenopontoazul.Quandome virei, Millie estava parada na porta com um vestido preto
curtoapertado.—Millie!—gritei,indoatéelaemcâmeralentaporcontadossaltos.—
Muitoobrigadapelossapatos!— Puta merda— gritou ela de volta, os lábios pintados de vermelho
abertosdesurpresa.Encolhiosombrosecobriovestidocomosbraços.—Estáexagerado?Émelhoreutrocarderoupa?Elasubiuedesceuodedoapontandoparaovestido.—Essevestidorealmentemostratodasassuasmelhoresqualidades!—
Milliefezumatentativafrustradadeassoviarcomosdedosedepoismexeuassobrancelhasdeformasugestiva.—Tarada—provoquei,alcançando-a.—Que foi?—Ela levantouasmãossugerindo inocência.—Quisdizer
querealmenteressaltaoazuldosseusolhos...Tãovívidos...—Comquemestáfalando?—AlexapareceunaportaatrásdeMillie.O
cabelolouroestavaperfeitamentearrepiadoeelevestiajeansescuroscomumacamisetajustaazul.Eleria,segurandoumcopovermelho.Quandomeviuparadanovãodaportaficouboquiabertoefezamesmaexpressãodairmãaolado,fazendoosdoisquasepareceremgêmeos.—SophieGracewell—balbuciouele.—Eusei—murmurouMillie.—Eusei.
Millieeeudançamoscomoloucas,jogandoasmãosparaoaltoegirandoocabelo, nós duas cuidadosamente tentando se equilibrar nos saltosimensos. À nossa volta, casais circulavam como ímãs, colados uns aosoutros ou fugindo para darem um amasso em outro cômodo. Eu malconhecia aspessoas—amaioria eramamigosde faculdadedeAlex e asque me conheciam através de Millie me ignoravam, como sempre. Nãoimportava. Todos riam e se divertiam, e era contagiante — eu estavarelaxadaemuitoanimada.OmaisimportanteeraqueeuseriaeternamentegrataaMillieportertransformadoaimpressionantesaladacasadelaemumabolhadeenergia,resultandoemumaniversáriodivertido:tudodequeeuprecisava.Asaladeestarhaviasidodespidadosporta-retratos,bibelôsebonecas
assustadoras de porcelana que geralmente ficavam expostas nascristaleiras nos cantos do cômodo—uma obsessão damãe deMillie. Asluzesestavamtãobaixasqueostraçosdequalquerpessoaamaisdedoispassos ficavam embaçados e irreconhecíveis, e os sofás de couro e aspoltronas de tecido haviam sido empurrados para as paredes. Acima dalareira, umaTVde cinquentapolegadas reverberava amúsicapelos alto-falantes.—CadêoDom?—perguntei,ignorandoadorzinhachatanospés.—Elenãovem.—AexpressãodeMilliemurchou,maselaexplicoucomo
senãoimportasse.—Nãotenhonotíciasdesdeonossoencontro.Elenemrespondeuaminhamensagemdetexto.—Sintomuito,Mil!—berreiporcausadamúsica.—Quedroga!—Tudobem—respondeuela,altiva,masdavaparaverquenãoestava
bem.ElahaviaficadoobcecadaporDomdesdeoencontro,eelenãotersedadoaotrabalhodeligarnãoerasóestranho,mastambémincrivelmentegrosseiro.—Esperoquenãosejaporminhacausa.—Percebi,derepente,sentindo
a cor se esvair domeu rosto bronzeado e cheio de blush.— Talvez Nictenhaditoalgoparaele.
Milliefezumacaraazeda.—Se forporsuacausa,entãoDomé tãocovardequantoo irmão,eos
doisdeveriamserignoradosporjulgaroacidentedoseupai.Nãoiaquererficarcomalguémassimdequalquerforma!—O azar é todo dele.—Ofereci como resposta, sentindo a raiva dela
acenderaminha.—Eleéumidiota.— Os dois são! Espero que fiquem bastante entediados penteando
aqueles cabelos idiotas e pagando caro demais por suas roupas italianasbabacasenquantoenvelhecemnaquelamansãobizarra!—Millieatirouacabeçaparatrásecomeçouamexerosquadris,botandoumpontofinalnaconversasobreDomeseusirmãos.Seguindo adeixa, fechei os olhos epermitimeu corpo sentir amúsica.
Mas,dentrodaminhabolhapessoal,nãodeixavade imaginarasmãosdeNic em volta da minha cintura; com ele pedindo desculpas pelocomportamento estranho e dando uma explicação plausível para suaindiferença repentina.Masquandoabri os olhos e gireimaisumavez, viumasériederostosquenãoreconhecia,coradoseofegantes.Depois de um tempo, meus pés começaram a pulsar de dor. Parei de
dançar e atravessei a porta dupla que levava à cozinha comuma grandemesademármore.Ládentro,umgrupodegarotosestavadebruçadonumbarrildechope,virandoumcopoatrásdooutro.Namesa,duasmorenasmagrelas deminissaias participavam de um jogo de pingue-pongue comcervejapontuadoporgritinhos.Eu me espremi para passar ao lado de uma garota ruiva que fazia
tatuagemdehenanascostasdeumaamigaefuiatéageladeira,nomesmomomento em que Alex esmagou seu copo no balcão e pulou para trás,levantandoosbraçosemcomemoração.—Otários!—gritouele.—Nãopodemvencerocampeão!Deiumsorriso.Alexesteve tão tensono torneiodebasquete;era legal
vê-lo mais relaxado — mesmo que ainda estivesse sendo incrivelmentecompetitivo.Quandoelemeviu,baixouasmãoseencolheuosombros,tímido.—Cerveja?—ofereceuele,apontandoparaobarrilatrásdesi.—Temos
outrascoisasmaispesadastambém.Afasteimeucabelodesgrenhadodatesta,sentindoasgotasdesuorsob
osdedos.—Quemsabemaistarde—falei.Jáestavadifícildemaismemanterde
pécomossaltos.Acheiqueseriamelhorpraticarumpoucomaisantesdeacrescentarálcoolàjogada.
—Temcertezadequenãoqueruma?—Alexmeofereceuosorrisocomoqualeusonhavanaescola.Masagoraalgumacoisahaviamudado.—Sim,tenhocerteza.—Abriageladeira,pegueiumaCocadieteaabri
enquantoosgarotosatrásdemimriam.Eumepergunteiseestavamrindodemim,mas era covardedemais para confrontá-los. Sentindomeu rostoruborizar,me afastei e contorci o corpo ao passar pela garota ruiva, queagoradesenhavaumgolfinhonoquadril.Umaboladepingue-ponguevooupor cima da minha cabeça e quicou na mesa de mármore no meio dacozinha.Volteiilesaàsala,meaperteiparapassarporumcasalquesepegavana
portaefuidançandoaoredordealguémquesemexiacomoumalombrigaaté chegar ao sofá mais próximo. Quando o alcancei, encontrei MillieconversandocomPauleAlisondalanchonete.—...eentãopensei,queseja,voumedivertirsemele...Oi,aniversariante,
venhasesentarcomagente.—Eladeuumtapinhanoespaçoaoseulado.—Oi.—MeespremientreMillieeobraçodosofá, sentindoumalívio
imediatonassolasdospés.—Quandovocêschegaram?—SeguioolhardeMillie para o colo de Alison e vi que ela e Paul estavam demãos dadas.Agoraeraclaramenteoficial.—Nesteinstante.AUrsulaliberouagentemaiscedo.— Feliz aniversário, Sophie— acrescentou Paul, animadamente.— A
festaestáótima.—Valeu.—Deideombros.—Nãoéminha.Nãoconheçoamaioriadas
pessoas.—Ah,claroqueé—interferiuMillie,dandoumacenocomasmãos.—E
se os amigos doAlex não conheciam você antes de hoje, certamente vãoconhecer, graças a esse vestido. — Ela virou sua bebida e suspirousatisfeita.—Comcerteza—concordouPaul, fazendocomqueAlisoncravasseas
unhasnapernadele.—Ai!—gritou.—Foimal,estavasóconcordando.— Acho que está na hora do refil.—Millie levantou e saiu dançando
entre a multidão com mais atitude do que Beyoncé. Eu invejava acapacidade dela de andar tão tranquilamente nos saltos sem sentir anecessidadeimediatadedeitarnochãoearrancarospés.Saíembuscadeumbanheiro.Osomdealguémvomitandonolavabodo
térreomotivouminhaviagemaosegundoandar,e,mesmodepoisdebatertrêsvezes,abriaportadobanheiroedeidecaracomumcasalseminu.Foiummomentotraumáticoparatodosnós.Fecheiaportaàspressaseseguimaisadiantepelocorredor,parandona
porta do quarto dos pais de Millie e batendo na porta com os nós dosdedos. Quando ninguém respondeu, entrei devagar, rezando para nãoencontrarmaisumacenamedonha.Masoquartoestavavazio.Aportaestreitaaoladodaparededearmáriosdiziaqueminhamemória
estavacerta:oquartoeramesmoumasuíte.Mas,quandomeaproximei,amaçanetagiroupeloladodedentroeaportaseabriu.Puleiparatrásecaínacama.Meuprimeiroimpulsofoilevantarasmãosecobrirosolhos.—Desculpe,nãosabiaquetinhaalguémaqui.Minhaexplicaçãofoirespondidacomumarisadaalta.—Relaxe,Sophie.Derrubeicervejaemmimetodososoutrosbanheiros
estavamocupados.Descobri os olhos e encontrei Robbie Stenson apoiado no batente da
porta,segurandoumcopovermelhoemcadamão.—Querumabebida?Estásobrando.—Não,valeu.—EstavafelizemsaberqueRobbienãomeculpavapelo
fiasconotorneiodebasquete.—Nãoachoqueeudeveriabeber... Jáestádifícilandarnessesaltosóbria.Nãoqueroarriscarminhavidacaminhandobêbada.Eletirouocabelodatestaedeuumsorrisinho.—Ésó sucodecranberryeágua tônica,masdáumacertaonda.Acho
queéoaçúcaroualgoassim.—Maneiro.—Pegueiocopodasuamãoestendida, sentindoumcalor
súbito.—Estoumorrendodesede.— Imagino.—Ele sentou na cama comumbaque e arqueou uma das
suassobrancelhasperfeitasparamim.—Vocêestava fazendounspassosdedançaanimaismaiscedo.Porquenãousoutodoessetalentonaquadra?Poderíamostertidoalgumachance.Sorriaindacomabocadentrodocopo.—Nãotenhocertezaseeuconseguiriadriblarefazeradançadorobôao
mesmotempo.Robbieriucomumronco.— Poderia ter intimidado nossos oponentes. — Ele me encarou sem
piscarenquantoeutomavaumgoledabebida.—Vocêestámuitobonita,aliás.—Valeu.—Derepente,tiveasensaçãodequeaquelaconversapodiater
umsignificadodiferenteparanósdois.Qualeraadessevestido?— É melhor eu voltar lá pra baixo — falei, repousando o copo na
mesinhadecabeceira.—Acheiquevocêprecisavausarobanheiro.
—Nãoprecisomais.Achoquesóestavacommuitocalor.—Levanteiecaminheimeiodesengonçadaatéaporta,comospésdoendodenovo.—Quemsabeagentesefalamaistarde—gritoueleatrásdemim.— É, quem sabe — concordei, agarrando o corrimão e descendo as
escadascomcuidado.Devoltaàcozinha,encontreiMillieseengraçandoparaumgarotocom
um cavanhaque duvidoso. Ela estava apoiada no ombro dele e ria comoumagarotinha.AstentativasdeesquecerDomcomcertezaiambem.—Sophie.—Elaabriuumsorrisolargoeselevantouquandomeviu.—
VenhaconheceroMarcus.Eleémaravilhoso.—Elaseaproximouebaixoua voz.—Tãomais divertido do que aquele tédio doDom.Não sei o queestavapensando.Éóbvioquenãosomoscompatíveis,eleerasériodemais.Derepente,minhavisãocomeçouagiraremesentiestranha.—Consegueficardepé?—Vocêandoubebendo,Soph?Os olhos dela ficaram grandes demais para seu rosto e a boca estava
abertaemumânguloestranho.Negueicomacabeçaemesentitonta.—Temcerteza?—Elaficoutãopertoqueeupodiaverassardasnoseu
rosto.Elassemoveramcomoumquebra-cabeçaedepoissumiram.—Cl-claro.—Caíparatrás,nadireçãodaparede.—Masnãoestoume
sentindomuitobem.—Umalarmedisparoudentrodaminhacabeça,masosomfoificandocadavezmaisbaixo.—Temcertezadequenãotomouumshotdenada?Amúsicareverberavanaminhacabeça.—Não,e-eusó...—Pareieaperteiorosto.—Esquecioqueiadizer.— Acho que alguém precisa levar você para casa. — Eu não estava
entendendo muita coisa, mas dava para ver que a diversão haviadesaparecidodavozdeMillie,eocaradocavanhaquetinhaidoembora.—Estoucomdordecabeça.Po-podepegaralgumremédioparamim?—
Fiz uma careta ao ouvir como as palavras tinham saído emboladas.Pareciamtãoclarasnaminhacabeça.—Oqueestáacontecendo,Sophie?—Alextinhaaparecidoderepentee
estavaparadoàminhafrente,mesegurando.Foientãoquepercebiqueseelemesoltasse,eucairiadecaranochão.Largueimeucorpoemeunarizbateunopeitodele.—Achoqueelabebeudemais—comentou,mepondodepédenovo.— Não bebi — falei, embaralhando as palavras enquanto tudo ficava
preto. E, quando reparei, estava deitada num cômodo silencioso da casa,encarandoumlustredecristalnoteto.Meuestômagoestavaembrulhado.
—Queroirpracasa.—Droga—murmurouMilliedealgumlugardistante.—Celinevaime
matarseelachegarassim.—EulevoaSophieparacasa—sugeriualguém.—Temcerteza,Robbie?—Aham,euseiocaminho.Elanãopodeirsozinha.Nãodessejeito.—Nãosei.—OrostodeAlexdançouàminhafrente,seusolhosgirando
comorodascoloridas.—Talvezsejamelhorchamaramãedela.—Alex,eulevoela.Eunãobebi.Vocênãoquerestragarafesta,nãoé?Solteiumgemidoemeagarreiaosofá.—Não quero ir com ele.— E então sussurrei para uma almofada.—
ChamemoNic.AalmofadanãorespondeueNicnuncaapareceu.—Ok,Sophie,vamos.—Alexenganchouobraçonomeuemelevantou
dosofáatéqueeuficassedepéapoiadanele.OmundogirouàminhavoltaeosrostosdeMillie,AlexeRobbiesemisturavamemumestranhomosaicohumano.—Espere—disseMillie.—Elanãovaiconseguirandaratéemcasacom
isso.Derepente,haviaapenasdoisrostosnaminhafrenteeeunãolembrava
quem era quem. Achava que Alex tinha cabelo louro, mas o outro caraestava comosolhos azuisdele.Balancei a cabeçapara frente epara trástentandoacabarcomaconfusão.—Quantoelabebeu?—Apostoqueelasecouaquelatequila,cara.E entãome vi na porta, calçando um par de botas Ugg que não eram
minhas.Deixeiorostocaireochãocomeçouapulsar.— Robbie, diga para ela me ligar quando chegar em casa, certo? Não
esqueça.E,assim,galopamospelaentradadacasaeviramosacurvaemumarua
deserta que se destacava adiante como um rio preto. De repente, sentiminhacabeçaincharcomoumbalão.—Voucair.Puleiasrachadurasnoasfalto.Robbiepassouobraçoporminhacinturaemeguiouemlinhareta.—Relaxe.Vocêestáumpoucozoada,sóisso.Aoouvirapalavra“zoada”,sentialgoemmeuouvido.Inclineiacabeçae
medeiumtapanacara.—Sai!Sai!Sai!
E então me vi passando por uma fileira de casinhas retangulares quepareciamtersidomarteladasnochão.—Elasparecemtãotristes—geminoombrodeRobbie.Pisquei e, quando abri novamente os olhos, estava deslizando pela
calçadaeapertandoosolhos incomodadospelo luarofuscante.AmansãoPriestlysurgiunocéuàminhafrente,comoumcastelo.— Tem uma princesa ali. — Senti a necessidade de resgatá-la
imediatamente. E então esqueci sobre o que estava pensando. — Estouexausta— percebi, enquanto omundo àminha volta ficava silencioso ecalmo.Paramosdeandar.—Eu sei.—Robbieme apoiou em uma parede. Eu estava vagamente
cientedaspedrasdesiguaisespetandoasminhascostas.—Nãodurmoháunscemanos—lembrei.Minhacabeçacambaleouaté
tombarparabaixo.Elemelevantoucomoumabonecadepanoeapertouminhacintura.—Estousegurandovocê.—Eujátôemcasa?—perguntei,cansada.Estavadifícilmeconcentrar
em qualquer coisa, e eu tinha a impressão de que poderia vomitar aqualquerminuto.— Aham, relaxe, Sophie. Está tudo bem. — Senti um dedo sob meu
queixo, ajeitando minha cabeça. Revirei os olhos quando senti umarespiração quente fazer cócegas em meu rosto. Lutei contra minhaspálpebrasfracas,tentandomantê-lasabertas.Quandoconseguiabri-las,vidoisolhoscinzadefalcãomeencarandoaumcentímetrodedistância.E,nomomentoemqueperdicompletamenteocontroledomeucorpo,sentiasmãosdelesubindopelomeuvestido.
CAPÍTULOCATORZE
OCAVALEIRODASSOMBRAS
Emalgumlugardentrodemim,opânicoaumentava.—Pare—eumeouvidizer,aflita.OsolhosdeRobbie,norostoinchado,seestreitaram.—Relaxe.—Nãoquero.—Tenteibalançaracabeça,massóconseguimexê-lasem
controle.Eledeuumrisinho.—Entãoporqueapareceunafestausandoisso?—Elepuxouotecidodo
vestido. Tentei falar de novo,mas não consegui reunir forças suficientesparapronunciaraspalavras.Odedoásperodelecorreumeuslábiosesolteiumgrunhido,sentindoasalivaseacumularnagarganta.Eleseaproximou.Cuspeseacumulavanocantodasuabocaquandoelefalou:—Paredesefazerdedifícil.Asmãosdeledescerampelalateraldomeuquadrileseacomodaramna
minhapernaexposta.Derepente,eueraincapazdemeconcentraremnadaalémdisso.Elepassouosdedospelaminhacoxaesegrudouemmim,meapertandoentreseucorpomagroeaparedegelada.Robbiepassouamãopelomeucabelo,agarrando-oepuxandominhacabeçaparatrás.Lutei para lembrar se estavamuito longe de casa,mas tudo virou um
borrão.Meupânicoaumentou,fazendominhacabeçalatejar.Tenteimexer
os braços,mas eles nãome obedeceram, presos sob o peso do corpo deRobbieenquantoeleposicionavaaoutramãonabarradomeuvestido.Meus olhos tremularam e se reviraram quando ele encostou os lábios
salgadosnaminhaboca.PorummomentopenseiemNic:comoelehaviaencostado seus lábios nos meus com todo o cuidado, como se tentasseaproveitar cadamomento; comoo frionabarrigahavia tomado contademimenquantosuasmãosseguravamgentilmenteminhacintura.Masessasnãoeramasmãosdele,ouosseuslábios.Ásperosesecos,elesapertavamminha boca, mantendo-a aberta com uma língua que mais parecia umacobra, até que caí sobreRobbie, ficando aindamais tomadapela bocarraqueinspecionavaminhagoelatãoincessantementequecomeçavaadoer.E,então,osomdeummotorinterrompeuopavorososilêncioeumcarro
paroucantandopneualiporperto.Robbiecongelou,nossoslábiosaindasetocando, e botou as mãos de volta na minha cintura. Em meu estadoconfuso, imaginei que deveríamos parecer dois bonecos de madeira,encostadosumcontraooutronomeiodanoite.Não sei quanto tempo fiquei encostada em Robbie Stenson como uma
estátua,mas fiquei feliz com o ar fresco que senti quando afastaram seucorpodomeu.Elesoltouumgritoestranguladoaoserarrastadoparatrás,diminuindoapressãoedeixandomeupeitoseexpandirnovamente.Alguémestavagritando.Meucorposerecostounaparedeedeslizeiatéo
chãosemsentirminhaspernas.Aolonge,ouviosomdecascalho,seguidopor um grito gutural. Houve um estalo ressonante e um berroensurdecedor que mais parecia um gato morrendo. Sapatos foramarrastados pelo chão. Soluços altos deram lugar a súplicas desesperadas.Tenteientender,masaspalavrasseembaralhavam,incompreensíveis.Meucorpoescorregouatéochão,acabeçapousadanoconcreto.—Váemboraantesqueeuacabecomvocê.Eleestáfalandocomigo?Maisbarulho.Porqueestátãoescuro?Osomdepassosficavacadavezmaisdistante.Aindaestouviva?Outralevadepassos,maisfirmesesilenciososqueosanteriores,vinham
naminhadireção.—Sophie?Estámeouvindo?Algoseguroumeusombros.Meucorpofoisacudidodeleve,maseunão
tinhaforçasparaabrirosolhos.Euestavamortaparaomundo.Mortaparatudo,excetoparaavoz.
— Sophie? Por favor. — Mais uma sacudida leve. Senti um dedopressionarmeupescoço,bemondemeupulsosaltava.Houveumsuspirolongoealiviado.—Vamos,Sophie.Acorde.Luteiparareunir forças,masestavadestruída,comoumbalãomurcho.
Tudo ficou silencioso e tentei me lembrar de onde eu estava e do queestavaacontecendo.Euhaviasaídodafesta?Caídonochão?—Podetentarabrirosolhos?Porquenão reconhecia a voz?Era tão familiar e aomesmo tempo tão
estranha.Umbraçodeslizouemvoltadosmeusombroseooutropassouporbaixodosjoelhos,melevantandodochãogelado.Minhacabeçabateuemalgoduroeouviabatidaconstantedeumcoração.Deslizei atéum local quente, quepercebi serum carroquando, apóso
estrondodaportabatendo,surgiuosomreconfortantedomotor.Logoeuestavame balançando em um bancomacio. Osminutos se passaram emumaimensidãoescuraatéeuficarconscientedenovo,emummardevozesdistantes,luzespiscandoebipesapitando.Umdedopercorreualateraldomeurosto.Umavozdistante interrompeuomomento emque eu estavaprestes a
entenderondeestava,eaconclusãomefugiuantesquecompreendesse.—Localizeiamãedela.Nãoquerficaratéelachegar?—Nãoposso.Passos se distanciaram até que eu só ouvia o som da minha própria
respiração agitada no peito. Segura na ausência completa de tudo, meentreguei ao vazio, onde memórias semiesquecidas eram misturadas apesadelos aterrorizantes, e eu não sabiamais o que era real e o que eraimaginação.
Acordei olhando para um teto completamente diferente do que estavaacostumada. Era alto e de azulejos, com luzes fluorescentes quemachucavammeusolhos.Ocheirodedesinfetantetomavacontadoar.Ascortinas, abertas em uma janela distante, eram desconhecidas e de umverde sem graça. E, apesar do calor queme aquecia, senti algo gelado eduroespetandominhamãoesquerda.Acamaeracercadaporbarrasdemetaleasparedeseramdeumbranco
ofuscante.Fecheiosdedossobreumcurativoepercebi,comumapontadademedo,quehaviauma injeção intravenosaenfiadanascostasdaminhamão.—Sra.Gracewell,elaestáacordada.
Minhacamabalançou.Vireiacabeçaemeencolhiaosentirumapontadadedornanuca.Aprimeiracoisaquevifoiorostopálidodaminhamãe.AoseuladoestavaMillie,exausta,comummoletomgiganteeobatomdanoiteanterior, queagoraera apenasumborrãovermelho.Elapuxoua cadeiraparafrente.—Comovocêestásesentindo?Eumeesforceimuitoparanãosurtar.Movicadaumdosmeusmembros
e fiquei aliviada de confirmar que não estavam quebrados. Conferi meucorpointeiroembuscadecurativosenãoencontreinenhum.Entãopasseiasmãospelocabeloemaranhadoeconfirmeiquenãohavianenhumpontonacabeçatambém.—Oque aconteceu?— falei coma voz rouca.—Essa é a pior dor de
cabeçaqueeujátive.— Tudo bem, querida. — Minha mãe afagou minha mão para me
tranquilizar.—Énormal.Millieolhouparamim,parecendoprestesachorar.Amaquiagemestava
marcada de lágrimas e as pálpebras manchadas de rímel. Ela apoiou acabeçanasmãosepuxouseucabelocastanhobagunçado.—Eusintotanto,Soph.Minhamãeapertouminhamãoatédoer.—Parecequevocêfoidrogadanafesta.Demorei muitos segundos para que as palavras se conectassem à
confusãodomeucérebro.Eentãosentiumapertonabocadoestômago.—Drogada?—Nãofazíamosideia—fungouMillie.—Vocêestavanormaledonada
nãoconseguianemficardepé.Nãolembravaondeestavaeficourepetindoquequeriairparacasa.Tenteimelembrar,masasmemóriasnãoapareceram.—Entãometrouxeramparacáemefizeramumalavagemestomacal?Milliefechouorostoedesviouoolharparaacoberta.—Agenteachouquevocêsóestavabêbada.Alguémdissequevocêtinha
tomadotequilaoualgoassim.AíoRobbieStensonlevouvocêparacasa.A expressão no rosto da minha mãe se transformou em um show de
decepção.—Agora,Millie saiba quedeveria ter ligadoparamim— falou ela.—
Bebendoounão,deveriamtermeligadoparaeusabersevocêestavabem.—Desculpa, sra. Gracewell! Se eu tivesse suspeitado por um segundo
quealguém tinhadadoalgumacoisapara ela, eunão teria simplesmentemandado ela para casa... — Millie começou a soluçar em um choro que
balançavatodoocorpo.MinhamãeconfortouMilliecomtapinhasamigáveisnascostas.—Eusei—disse,tentandoacalmá-la.— O que aconteceu?— Senti que estavame esforçando para lembrar
algopróximo,masquantomaistentava,maiseuesquecia.—Robbie disse quenãohavia bebido e que sabia o caminhopara sua
casa.—Millieestavaenrolando,omitindoalgo;eraóbvio.Minhamãeinterrompeu:— Recebi uma ligação dizendo que um rapaz trouxe você para a
emergência do hospital. Quando cheguei, eles fizeram alguns testes eencontraramvestígiosdeRohypnolnoseusangue.Apalavrabateucomoumatoneladadetijolos.—Ro-Rohypnol?—gaguejei.—Mederamum“Boanoite,Cinderela”?—
Imediatamenteleveiasmãosatéminhacalcinha.— Não, não se preocupe — interrompeu Millie, com pressa. — Ele
chegouatempo.—Robbie?MinhamãetrocouumolharcomMillie.—Não,nãofoiRobbie.Aenfermeiradissequefoiumrapazmorenoede
cabelo escuro que trouxe você para cá. Ela disse que ele não quis dar onome.Meucoraçãoestavatãodisparadoquemalconseguiapensar.ComoNic
podia fazer parte disso? E por que estava sendo tão cauteloso com seuenvolvimento?—Nãoestouentendendo...—Eledisseàenfermeiraqueencontrouvocêcomumgarotoqueparecia
estar tentando se aproveitar da situação. Enfrentou o rapaz, que fugiu.Então,quandoelepercebeuquevocêestavamuitomal,tetrouxeparacá.Sentiumapontadanaincisãodosoronaminhamão.—OndeNicestáagora?— Ele foi embora antes de a gente chegar. — Dessa vez, Millie
respondeu.—Mas a enfermeira disse que ele ficou por quase uma horaenquantotentavamlocalizarasuamãe.Elequeriasecertificardequevocêestavabem.Minhamãeserecostounacadeira,parecendomaisrelaxada.— Millie e eu tentamos entrar em contato com os Priestly, mas não
encontramoso telefonedeles. Seriaumaboaconversar comessemeninoquandovocêsairdaqui.— E para onde o Robbie foi depois que Nic apareceu? Era ele quem
estavatentandoseaproveitardemim?Milliedeudeombros,assobrancelhasfranzidasdeconfusão.—AchoqueNicpensouqueeleestavatentandobeijarvocê.Eusempre
penseiqueRobbietalvezgostassedevocê,masnãoachoqueelefariaissocomvocêtãoapagada.Querdizer,vocêvomitouduasvezesantesdesairládecasa.Quehorror—eunãomelembravadisso.—Alex passou amanhã toda tentando falar comRobbie, para saber o
que aconteceu — continuou Millie. — Quem sabe o Nic simplesmentesurtouquandoviuvocêsdoisjuntos.MeucérebrorecuperouamemóriadeNicsendociumentocomAlexno
torneio de basquete, mas eu ainda estava exausta e confusa. Não melembravadeencontrar comRobbieStensonnanoiteanterior, emboraeutivesseumavagalembrançadevê-lonafestanomeiodamultidão.—Então,quemfoi?—perguntei,enfurecida.—QuembotouRohypnol
naminhabebida?— Não sabemos, Soph. Até onde sabemos, você foi a única vítima.—
Millie mal me olhava nos olhos.— Alex disse que talvez tenha sido umprimodeumdos amigosdele. Ele se envolveu emumahistóriaparecidaunsanosatrás.Nemfoiconvidadoparaafestaeagoranãoolocalizávamos.—Millieparoudefalar.Esfregouosolhos,espalhandoasombranosolhosaté parecer um panda. — É tudo minha culpa, Soph. Desculpe por terdeixadoafestasairdecontrole.—Estátudobem—falei,torcendoparaqueaquiloaplacassesuaculpa.
—Podiatersidopior,certo?Nãomemachuquei.—Sim,aindabem—disseminhamãe.Fecheiosolhoscomforçaemeconcentrei.Estavadançando.Estavana
cozinha.EstavacomMillie.Edepois,nada.—Estoutentandomelembrar.Minhamãeapertoumeuombro.—Querida,omédicodissequeéprovávelquenãorecupereamemória
de ontem à noite. Você pode ter uns flashbacks, mas dificilmente vai selembrardetudooqueaconteceu.Masestamosdeterminadosadescobrir.Apolíciavaiquererconversarcomvocê,agoraqueestáacordada,etambémvamosfalarcomessetaldeRobbieassimqueeleaparecer,prometo.—Vamosdarumjeito—reforçouMillie.Olhei para a agulha na minha mão e fiquei um pouco mais ciente do
líquidogeladoqueentravanomeucorpo,gotaagota.—Quandopossoiremboradaqui?Odeiohospitais.
Como se programado, uma enfermeira rechonchuda de cabelo curto elouroentrounoquarto.—Comovocêestásesentindo?—perguntouela.Eutinhaumavagalembrançadejáterouvidosuavoz.—Confusaecomdordecabeça—deduzi.Sem olhar para cima, ela emendou um discurso que parecia
perfeitamenteensaiado:—ORohypnolestádeixandoseucorpoeapiorpartedoefeitojápassou.
Vai sentir uma leve dor de cabeça e talvez um pouco de enjoo pelospróximosdoisdias,masdepoisdissodevevoltaraonormal.Omédicodissequeestaráliberadaquandosesentirforteosuficiente.—Estouforteosuficiente.Aenfermeiracontraiuoscantosdoslábiosfazendoumacareta.—Deagoraemdiante,aconselhoquemantenhasuasbebidasporpertoo
tempo todo e cubra os copos quando estiver perto de pessoas que nãoconhecemuitobem.Abriabocaparaprotestar,masmecontrolei.Euestavacomraiva,mas
nãodela.Estava comraivade tudo:dapessoaquehaviamedrogado,dogarotoquehaviatentadomebeijarquantoeuestavatãomaledeNic,portermelargadoalitãoconfusa.Primeiroelevaiemboracomoirmão,medeixandoemumaruadeserta,
depois aparece do nada e me salva, mas me deixa sem saber o queaconteceu. Mesmo ausente, ele aindamexia comminha cabeça e, de umjeitooudeoutro,issoprecisavaacabar.
CAPÍTULOQUINZE
OAVISO
Estava sentada com os cotovelos namesa, olhando para o telefone. Elevibrava no tampo demadeira, fazendo com que as ervilhas rolassem noprato.OnúmerodatelameavisavaqueeraJack.—Elenãovaipararde ligar.—Minhamãe falou comaboca cheiade
costeladeporcodefumada.—Lido com isso amanhã.—Eu queria falar commeu tio,mas estava
tardeeeumal conseguiamanterosolhosabertos, anão serpara comer.Engoliamontanhadepurêdebatatanaminhabocaereclamei:—Porquevocêtevequecontartãorápidoparaele?—Não contei. Falei com a Ursula porque não quero que vá trabalhar
amanhã, e ela contou quando ele ligou para a lanchonete.— Ela deu deombroseenfiouumagarfadadeervilhasnaboca.Meu telefone começoua vibrardenovo,piorandoadorde cabeçaque
aindalatejavanaminhanuca.Pegueiotelefoneepasseiodedopelatela.—Oi,Jack.—Estoudoladodefora.Abraaporta.—Oquê?—Abraaportadosfundos.Ele desligou. Fui andando até a janela da cozinha. Ele parecia uma
sombra parado perto dos arbustos, cuidadosamente fora do alcance dossensoresdemovimento,eeumalconseguiavê-lo.Deondeeleviera?—Eleestáaquidenovo?—Avozdaminhamãefervilhavadedesprezo.
Elaselevantou.—Oqueeleestáfazendo?Destranquei a porta e ele correu para dentro, fechando e trancando a
porta.—Sophie—soltoueleofegante,asbochechasinchadaserosadas.—Deondevocêveio?Ele dispensou minha pergunta com um gesto e me esmagou em um
abraço tão fortequepenseique ia ficar semar.Nãoabraçava Jackdesdequandoeueracriança.Estavaacostumadaaoutrostiposdedemonstraçãodeafeto—presentescaros,umafolgasemavisooutelefonemasaleatórios.Masalgonaqueleabraçomefezsentirmelhordoquetodasaquelascoisas—mefezsentirsegura.—Estoutãofelizquevocêestábem—suspirouelenomeupescoço.Elemelargouecambaleeiparatrás,apertandoopeitocomamão.Estava
começandoasentirumapertonagarganta.Engoliemseco,esperandoquepassasse,mas omodo como Jackme olhava, com os olhos tão parecidoscomosdomeupai,tãocheiosdepreocupaçãoealívio,quasemefezchorar.—Seeutivessedeixadoqualquercoisaacontecercomvocê,Mickeyteria
fugidodacadeiasóparamematar—disseeletentando,emvão,melhoraroclima.—Oqueestáfazendoaqui?—faleideumavez,emumatentativademe
distrairdonónagarganta.Atrásdemim,minhamãesondavaa situação.Quasedavaparaveradesconfiançavazarpelosporos.Jack coçoua cabeça raspada.Ele estavaestranhamentedesgrenhado, o
ternodesempresubstituídoporumacalçajeanslargaeummoletompreto.Elenãopareciatermetadedoegooudariquezadesempre.—Passeiodiainteiroligando,Persephone.Fizumacareta.Eledeviaestarirritado.—Euestavanohospital.—Fiqueisabendo.Quasemorridepreocupação.—Nósdois—disseminhamãe.Elafoiatéapiaecomeçouaencheruma
chaleira.—Comoestásesentindo?—Porondevocêestava?—perguntei,aomesmotempo.Jackesfregouosolhos.—Portodooestado—respondeuele,cansado.—Fazendooquê?—Coisasdetrabalho.Ele estava sendo conciso; nunca falava comigo sobre seus outros
negócios.Eusabiaquetinhaalgoavercominvestimentosetaxasdejuros,
e é por isso que nunca me dei ao trabalho de querer saber mais. Eumorreriadetédio.—Estádevolta?EmCedarHill?—Fiqueisurpresaemvercomominha
esperança soava infantil, e me senti envergonhada. Obviamente eu nãotinhanotadocomosentia faltadele. Jackeraaúnicareferênciamasculinanaminhavidae,semele,eumesentiamaisincompletadoquedeveria.Elebalançouacabeçasoturnamente.—Aindanão.Nãototalmente.Minhamãe se ocupavano fogão. Ela entregouuma caneca com cháde
hortelãaJack,queaceitoucomumasobrancelhalevantada.—Obrigado,Celine.—Antesquepergunte,nãotemálcoolnabebida.Meencolhi.Tudoestavaindotãobematéentão.Eletomouumgolesem
tirarosolhosdela,controlandoarespostaporminhacausa.—Nãopodiateresperadoumahoramaisrazoávelparafazerumavisita,
Jack?— A voz deminhamãe transbordava reprovação.— Precisa fazertudonomeiodanoite?Elaaignoroudessavez,repousandoacanecanamesa.—Oqueaconteceuontemànoitefoigrave—faloueleparamim.—E
bemnoseuaniversário!—Eusei—falei,mordendooslábiosparaquenãotremessem.—Jádescobriramquembatizousuabebida?—Não—respondi,cansadaderespondersempreamesmapergunta.A
políciajáhaviameentrevistadonohospital,enãotinhamsidomuitoúteis.Não é como se houvesse alguma pista, e eu estava convencida de quejamais me lembraria completamente daquela noite. Sabia também queRobbie Stenson me evitaria para sempre, assim que reaparecesse. Elefinalmente havia respondido à mensagem de texto de Alex dizendo queestavaviajandopor“motivosfamiliares”,equenãotinhasedadocontadequeeuestavatãomalassim.Elerealmentepensouqueeugostavadeleequeriabeijá-lo,epediudesculpaspormeu“namorado”terficadoirritadoeinterrompido o momento. Se estivesse se sentindo culpado de verdade,teriamandadoumamensagemparamim,masnemsedeuaotrabalho.Eaúnica outra pessoa que sabia das partes deletadas daminha noite era omeu“namoradoirritado”,Nic,quejátinhaganhadoumOscarnaartedemeevitar.— Foi alguém da festa que fez isso? — Tio Jack continuava em seu
interrogatóriosemsentido.Deiaeleamesmarespostaquedeiàpolícia.
—Achoquesim,mastinhatantagenteláquepodetersidoqualquerum.Jackassentiu,atenciosamente.—Tinhaalguém láquevocênão conhecia?Alguémdanova famíliada
avenidaLockwood?—Não—respondi,comcerteza.—Aliás,senãofosseporaquelafamília,
eupoderiaestarbempior.—Oquê?—rosnoueleeasuavidadedesuavozdesapareceu.—Foiumdelesquemmeencontrounocaminhoparacasaeme levou
paraohospital.—DeixeideforaapartesobreRobbieStenson;nãoqueriaquemeutiomeimaginassebeijandoumgaroto.Alémdomais,eumesmamalpensavanoassuntosemquererarrancarminhaprópriapele.Jackapertouoslábios,travandooqueixo.—Comosabequenãofoielequemdrogouvocê?Nãomedeiaotrabalhodeesconderairritaçãonaminhavoz.Eunãoia
deixar Jackmanchar a boa ação de Nic por causa dos seus preconceitoscontraafamíliaPriestley.—Elenãomedrogou.Elenemestavanafesta!—Nãosei,não—resmungouJack.Eleolhouparaminhamãe,masseu
olharestavaperdidoaolonge,claramentedesacocheiodavisita.Elatinhafeitoseumelhor:resistiraporquatrominutos.Solteiumsuspiro,quesetransformouemumbocejo.— Mesmo se ele tivesse me drogado através de alguma intervenção
mágica, por que ele me levaria ao hospital e pediria que ligassem paraminhamãe?—Tenhocertezadequeeleteriamaneiras...—Porfavor—forcei.—Podeparar.Estásendoparanoico.— É tão cansativo— acrescentou minha mãe com uma voz seca. Ela
cruzouosbraçoseseaproximoudemim.Cobriaboca,escondendomaisumbocejo.—Ok—cedeuJack.—Estousópreocupado,Sophie.Entende?Queroter
certezadequevocênãoéumalvo.Eu estava cansada, mas não o suficiente para ignorar a estranheza
daquelafrase.—Porqueeuseriaoalvodealguém?Minhamãeestavairritada.Suatolerânciaparaosdelíriosparanoicosde
Jack se esgotara haviamuito tempo. Afinal, tinha sido aquele hábito quemeterameupainaconfusãoqueolevouparaaprisão.—Doqueestáfalando?—Nãosei—respondeuele,maisparasimesmodoqueparanós.Passou
amãopelorostoatéocabelo.Euestudeisuaaparência:osolhosestavamvermelhos, a barba por fazer, a pele manchada. Até os lábios estavampálidos.—Sophieestábem,Jack—disseminhamãe,engolindoorestodafrase.
Era evidente que ele estava perturbado com o que acontecera comigo, enão tinha por que brigar com ele. — Acho que você precisa descansar.Todosnósprecisamos.—Tudobem—cedeuele.—Vouembora.Ele então sorriu paramim; era um sorriso doce e cheio de esperança,
comumpequenosinaldemistério.—Quandovocêvolta?—Euestava,novamente,parecendoumacriança,
masnãomecontinha.Euqueriameutioporperto.Eleeraaversãomaisimprevisível e descontrolada do meu pai, que era calmo e comedido, enaquelemomentoeleestavafazendoomelhorquepodiaparaserasduascoisasparamim.Talveznãoestivesseindomuitobem,masaindatínhamosumaligação,eleeeu.E,emboraminhamãenãofosseadmitir,semmeupaiporperto,nossafamíliaprecisavadetodooapoio.Elebagunçoumeucabelo.—Embreve—respondeu,ríspido.—Euligo.Eleparoucomamãonaporta.—Elembre-sedoqueeudisse.Fiquenasua.—Podedeixar—menti,comfacilidadedessavez.AparanoiadeJackme
deixara ainda mais determinada a descobrir exatamente o que estavaacontecendoàminha volta. E eu suspeitavaque as respostas estavamnacasadosPriestly.
CAPÍTULODEZESSEIS
OMAL-ENTENDIDO
Dois dias depois, com a recuperação quase completa, eu estava prontaparainiciarminhainvestigação.NãofiqueisurpresaporNicnãotertentadofalarcomigodepoisquesaí
dohospital,porquenadaqueNicfaziaoudeixavadefazermesurpreendiamais.Caminheiatéacasadelenoiníciodatarde.Pareiemfrenteaosportões
deferroe inspecioneiamansãocomumacrescentesensaçãoruim.Haviaapenasumcarroestacionadonaentradaeumpânicosúbitomeocorreuaopensar na possibilidade de esbarrar com qualquer um dos outrosintegrantesdafamília.Afinal,eucontinuavasendoumaGracewell—sejaláoqueissosignificavaparaeles—enãohavianadaquepudessefazer.Criei coragem e passei pelos portões abertos, pisando nos cascalhos
barulhentos pelo caminho. Quando cheguei à porta vermelha, bati naaldravaerecuei,esperandoansiosa.Depoisdoquepareceuumaeternidade,trêstrincosmetálicosgirarame
aportaseabriu,revelandoumasilhueta,ocultapelasombradohallatrásdele.Maseuconheciaaquelecontornotãobemquantoaquelavoz.—Sophie?—Nicestavaparadosobovãodaporta,perfeitocomjeans
desbotadoeumacamisetabranca.Eleestavadescalço.—Oi—chutei,percebendosuatensão.—Querofalarcomvocê.Comasmãosapoiadasnosdoisladosdaporta,eleseinclinouparaforae
estudouojardimatrásdemim.
—Sophie—repetiu,masdessavezmaisgentil.—Oqueestá fazendoaqui?Pelomodo como os olhos dele buscavam osmeus, eu sabia que ainda
existiaalgoentrenós.Oarànossavoltapulsava,edecidiirdiretoaopontoantesqueaquilomeconsumisse.—Nãoprecisasefazerdedesentendidosobreaoutranoite.Sua expressão mudou, os olhos se arregalaram. Ele se aproximou
devagar e então parou, incerto, como se lutasse contra a vontade de seaproximardemim.—Doqueestáfalando?—Aenfermeiramecontousobrevocê.Seiquepediuparaelanãofalar
nada,maselafalou,entãonãoprecisamentir.Ele parou de hesitar. Foi naminha direção, descalço sobre o cascalho.
Baixou a voz até um sussurro e segurou meus braços, me puxandogentilmenteatéele.Visuasmãosnaminhapeleeaperteioslábios,confusa.—Sophie.—Ele fixouoolharnomeu.—Não tenhoamenor ideiado
queestáfalando.—Comoassim?Vocênãomelevouparaohospitalnooutrodia?Quando mencionei a palavra “hospital”, a confusão em seu rosto se
transformouemangústia.—Porquevocêfoiparaohospital?—Elemeolhoudecimaabaixo.—
Alguémmachucouvocê?— Não foi mesmo você quem me salvou? — perguntei, subitamente
envergonhada.—Salveivocê?—repetiuele,horrorizado.—Masaenfermeiradisseparaaminhamãe...—Sophie.—Elemoveuasmãosparaminhacinturaeendureceuavoz.
—Porfavor,medigaoqueaconteceu.Porumsegundo,pudevernaminhafrenteoNicqueeutinhaconhecido
noinício.Estavabemali,aoalcance,quandooutrafiguraapareceunaportaatrásdele.— Nicoli? — Foi tudo que Luca precisou dizer para que seu irmão
pulasseparalongedemimcomoseeuestivesseemchamas.—Oquefoi?—exigisaber.—Oqueestáacontecendo?—Nãoposso.—Eleseafastou,quasepedindoperdão.—Nãoposso.—Nãoestouentendendo.—DesvieioolharparaLuca,queseencostou
nobatentedebraçoscruzados.Eleignorouminhapresença.— É melhor entrar, Nicoli. Valentino está procurando por você. — A
últimapartepareceuumaameaçavelada,maseunão sabiamuitobemomotivo.Nichesitou,comospunhoscerrados.— Luca, não vou embora até ter certeza de que ela está bem.— Ele
estava irritado e isso me deixou segura, mas não o suficiente. — Algoaconteceucomela.Estevenohospitaleprecisosaberomotivo.—Eusei—disseLuca,avançandolentamenteemdireçãoaoirmãopara
queficassemcaraacara.Lucaeramaisalto,masNiceramaisforte.Eumepergunteiqualdosdois
ganharianumabriga.EentãomepergunteicomoLucasabiadohospital.—Como?—Niceeuperguntamosaomesmotempo.—Fuieuquealevei.—Vocêoquê?—questionei.—Estábrincando,Luca?Porquediabosnãomecontouissoantes?Porumsegundo,penseiqueNicfosseatacaroirmão;acabarcomele,e
fazerumfavoratodosnós.Masnão.Apenasficouali,espumandoderaiva.Fiqueiobservandoseupeitosubiredescer.Luca agarrou o pescoço de Nic, trazendo-o perto o suficiente para
sussurrar algo no ouvido e, quando ele se afastou, parte da raiva haviasumido.—Émelhordarum jeitonisso—disseNicagitadoantesdeentrarde
novo.— Porque não pode esperar que eu não faça nada...—A frase foiinterrompidanomeiodaameaça.— Humm, tchau, Nic! — gritei de forma sarcástica enquanto ele se
afastava,mecensurandopordeixaracovardiadelememagoarmaisumavez.—Quefamíliabizarra—sussurrei,altoosuficienteparaLucameouvir.Assobrancelhasestavamencobertaspelocabelopretobagunçado.—Veioaquiparaisso?Paramexingarfeitoumacriança?Cruzeiosbraços.—AcheiqueestavaaquiparafalarcomNic.Eleapertouoslábios.—Sintotedecepcionar.—Nãosentenada.—Éverdade,nãosinto.Luteicontraavontadedebaterospés.—Então,asuamissãoadomicílioeraapenasparaagradeceraoNicoli,e
sóaele?Ou,eu,apessoaquedefatoajudouvocê,nãomereçonenhumtipodegratidão?
Engoliumatoneladadepalavrões.—Issonãopodeestaracontecendo.—Bem,masestá.—Derepente,Lucamepuxoupelobraçoatépararmos
atrásdocarro,protegidosdaruaedequasetodasasjanelasdacasa.—Melarga!—gritei,afastando-o.—Qualéoseuproblema?—Qualomeuproblema?Estábrincando?Dei um passo para trás, me apoiando no carro e, de repente, uma
memória surgiu naminhamente.Eu estava sendo esmagada contra umaparededepedras.Balanceiacabeçaeamemóriasumiu.—Porquevocêprecisasertãobabaca?Luca se aproximou, diminuindo a distância entre nós em mais 15
centímetros.—Porquebebeuapontodeficardaquelejeito?—retrucouelecomuma
vozcruel.—Nãotemnenhumapreçopelaprópriasegurança?—Comoousadizerisso?—rebati.—Nãotemamenorideiadoqueestá
falando,entãocalaaboca!—Fuieuquecateivocêdacalçada!—Parasuainformação,eunãotinhabebido!Lucamordeuolábioesentiaraivasubiremminhacorrentesanguínea
como metal ardente. Antes que pudesse me controlar, minhas mãosestavamno peito dele empurrando-o com tanta força que ele cambaleouparatrás.Partiparacima,empurrando-ocadavezmais.—Eufuidrogada,seuidiota!Porummomento,ficamosencostados,unidospelaforçadaminharaiva
e o som das nossas respirações pesadas. E então, com uma lentidãoexagerada,elemeseguroupelosombrosemeafastougentilmente.Tenteimeconcentrarnarespiraçãoemeacalmar,masestavaofegante
demais.—Entendo—disseeleporfim.—Eunãosabia.Deideombros,semforças.—Achoqueeudeveriatersidomaiscuidadosa.Elefranziuonarizcomnojo.— E ele deveria ter sido bem mais respeitoso, independente do seu
estado.Senti um nó na garganta,mas eu tinha conseguidome controlar pelos
últimosdoisdiasenãoiacederàslágrimasagora,especialmentenafrentedeLuca.—Nãomelembrodenada—falei,mordendoalínguaeolhandoparao
chãoatrásdele.—Aindatenhodificuldadesparalembrar.
—Não tente.— Luca botou asmãos nos bolsos do jeans.—Algumasmemóriassóvãotemachucar.—EstáquerendodizerquevoumesentirpiorsesouberoqueRobbie
fez?Elebalançouacabeça.— Ele não machucou você, tá? Estava só sendo um bêbado idiota
tentandoasortecomumagarotabonita.Arregaleiosolhoscomoelogionãointencional.— Eu estava apenas tentando explicar qual era a do cara — ele se
corrigiu rapidamente.—Ele foi burro, certo?Não deveria ter tentado seaproveitardevocê.—O-ondefoi?Ondeagenteestava?Eunãosabiaqueseriatãodifícil falarsobreaquelanoite,ecertamente
não imaginei que falaria disso com o arrogante Luca Priestly, mas euprecisavasaber.—Aalgumasquadrasdaqui.Euovicomvocêumpoucoantes...—Ele
parou de súbito emudou a direção da frase.—Não gostei da cara dele,então dei a volta para ver se ele estava fazendo algo que não deveria.Quando encontrei vocês, dava para ver que você estava apagada, entãodecidiintervir.—Oqueaconteceucomele?—Nãoselembra?—Não.—Sópediqueelefosseembora,eelefoi—respondeuelesemmais.—
Elefoibemobediente.—Entãoelesimplesmentefoiemboranomeiodanoiteemedeixoucom
você,alguémquemalconhecia?EstudeiLucacomatenção,esperandoumaresposta.Osolfaziacomque
seusolhosazuisbrilhassemdeformaquaseamigável,masnãohavianadasemelhantenotomdavozdelequandomerespondeu.—Quando peço para alguém fazer uma coisa, geralmente não preciso
pedirduasvezes.—Issoquasepareceumaameaça.Lucaapenasrevirouosolhosedeudeombros.—Sabequemdrogouvocê?—Não.—Eugostariadesaber,seconseguiressainformação.—Porquê?—perguntei,mesentindoinquieta.— Está perguntando por que quero saber a identidade da pessoa que
acha aceitável envenenar a bebida de garotas durante uma festa?— Suarespostatinhatomdeobviedade.—Nãovejoquediferençaissofazparavocê—retruqueiclaramente.—Não—concordouele.—Nãovê.Eupodiaperceberahostilidadevoltando,sentiomesmocalafriodanoite
emqueelehaviamandadoNicseafastardemim,eaquiloiaalémdosmeuslimites.Eleeratãoirritante.—Oquevocêdisseparadeixarseuirmãocontramim?Elebalançouacabeça.—Nãovouentrarnesseassunto.—Mereçoumaexplicação.— É melhor você ir embora. Acho que já fiz o suficiente por você,
Gracewell—devolveuelenamesmamoeda.—Nãoestouinteressadoemajudarvocêemeuirmãoateremum“felizesparasempre”.Gracewell?Entãoeunãomereciamaisnemser chamadapeloprimeiro
nome.—Oqueeufizparavocêmeodiartanto?Elerevirouosolhosnovamente.—Eunãoodeiovocê.Eunãosintonadaporvocê.Arespostameferiumaisdoqueeugostaria.—Vocêéhorrível,sabia?Elenempiscou.—Earrogante—sussurrei.—Emetido.— Terminou? — Em um instante ele havia me imprensado contra o
carro.—Vamosesclarecerumponto,certo?—Seuolhareraagressivo.—Estaéaúltimavezquequerovervocêpertodestacasa,entendeu?Quandocaminharparacasadepoisdotrabalho,atravessearua.Nãoolheparacá.Nãovenhanessadireção.Sequerrespirenessadireção.Eujádissequenãosoudepedirduasvezes.SeeuencontrarvocêpertodoNicdenovo,mesmoseestiver sódizendooi ou correndoatrásdelequenemumcachorrinhoperdido,vouatrásdevocê,daquelasuaamigainglesatagarela,dasuamãee,acredite,vocênãovaigostar.Entendeu?Senti o pavor se infiltrar no meu corpo. Agora eu estava vendo.
FinalmenteestavavendooperigodequeotioJackeasra.Baileytentavamme avisar. Sem falar nomau comportamento, que devia ser responsávelpelo sangue na camisa de Luca. Talvez meu tio paranoico e a velhafofoqueira estivessem certos sobre aquela família — pelo menos sobreLucaestavam.Euqueriadizeralgocorajosoeinteligente,maselemefitavacomosefossemedevorar,entãoassenticomoumzumbi.
—Deagoraemdiante,vamosseguircaminhosdiferentes.Capisce?Minhavoztremeuderaivaemedo.—Vocênãopodefalarcomaspessoasassim.Eletirouasmãosdocarroeseafastou.—Entendeuoqueacabeidedizer,Gracewell?Cruzeiosbraçoseassenti.—Estamosentendidos?—Super.—Vocêtemmedodemim?—Eleinclinouacabeça.—Sim.—Aminhavozsaiuenfraquecida.—Temorgulhodisso?Lucameolhoupormuitotempoantesderesponder.—Não,nãotenho—respondeu,tãobaixoquepreciseimeesforçarpara
ouvi-lo.Eentãosevirouecaminhouparaacasa.—Espere!—chamei,quandominhaparteracionalprotestou.Lucaseviroudevagar.—Vocêsedáotrabalhodemanterseuirmãolongedemim,masaíme
levaparaohospital e quer se certificardeque estoubem.Enãodiz seunomeparaaenfermeira,casoeupensequevocêéumcaraminimamentedecente.Nãoentendo.—Nãoprecisaentender.Sóprecisaaceitar.—Entãoporquesedeuotrabalhodemecatardacalçada?Porquese
importasefuidrogadaounão?Aperguntaficoususpensanoarentrenós.Elepiscouduasvezeseaboca
se abriu em um “O”. Por um segundo, ele pareceu tão jovem e inocentequantoseuirmãogêmeo.—Estábrincando?—Eleestavapasmo.—Nãosouummonstro.—Nãoéoqueparece.Eleapertouonarizepuxouoarcomosefossedizeralgo.Masnãodisse.
Emvezdisso,balançouacabeça.—Émelhorvocêirembora,Gracewell.—Eutenhoumnome,sabia?Eleriu,olhandoparaocéu,comoobommaníacoqueera.—ÉSophie.S-O-P-H-I-E.Elecontinuourindo,masquandovoltouaatençãoparamim,avozestava
perfeitamenteimpessoal.—Temcertezadisso?Fiqueipálida.—Comoassim?—Vocêentendeu.
Antesqueeupudesseprocessaroembrulhonomeuestômago,elevoltouafalar.Dessavez,suavozestavaperturbadoramentecalma.—Nãoentendeu?VocêéumaGracewell. É tudoquevocê sempre será
paranós.—OqueimportaparavocêsesouumaGracewell?—euquissaber.Por um momento interminável, ele me encarou, pensativo. Quando
finalmente cedeu, soltou um suspiro profundo, como se tivesse enfimtomadoumadecisão.Atravessouaentradadecarrosechegouatémimemquatropassadas.—Realmentenãotemamenorideiadeporquenãoébem-vindaaqui?
—chiouele.—Érealmentetãoignoranteassim?Engoliemseco,reparandoaaridezinstantâneanaminhagarganta.—Doqueestáfalando?Luca franziu o cenho. Eu não tinha entendido a pergunta, e ele não
entendiaaresposta.—Cazzo.—Elemeestudoucomumaconfusãoquaseviolenta;orosto
estava tenso, fazendo com que parecesse abatido.— Não vou lidar comisso.—Querorespostas!—protestei.—Nãovaiconseguirnenhumaaqui.— Onde, então?— perguntei, quase implorando, a voz sucumbindo à
irritação.Luca ficou tenso, as últimas gotas de paciência que ainda tinha para a
nossaconversaterminaramrápido.— Pergunte ao seu pai, Gracewell. Você deve estar lhe devendo uma
visita.A sensação familiar de pesar subiu porminha espinha.Meu pai. Tudo
sempre voltava ao meu pai. É claro que tinha algo a ver com ele— eujamaissuperariaoqueelefez.Jamaissuperariaavergonha.Mashaviaalgonovo nas palavras de Luca, algomais profundo, que faziameu estômagorevirar.OquemeupaifezparaosPriestly?Antesdeserpreso,elejamaistinhafeitonadaerrado.Atéondeeusabia,pelomenos.Luca não ia esperar até eu descobrir. Ele me deu as costas de novo,
caminhou apressado até a casa e bateu a porta com um baqueensurdecedor.Comorostoquenteeardendo,olheiparacimaeencontreiValentinono
mesmolugaremqueoviranaprimeiranoite.Estavaperfeitamenteimóvel,comoscotovelosapoiadosnoparapeito,olhandoparamim—eparatudoquetinhaacabadodeacontecer.Seurostoerasolene.Seráqueeletambém
meodiava?Seráqueconcordavacomaformaqueseugêmeoagia?Elelevantouamãoeamanteveerguidanoar,comoemumacontinência.
Aceneidevolta,comobraçoquepareciatãopesadoquantomeucoração,eele sorriu para mim. Foi um pequeno gesto de gentileza — um levemovimentodoslábios,nadamais.Eentãoelesumiu.Efuideixadacomaideiadeque,serealmentequeria
respostas,precisariaprocurá-lasnolugarquemaisestavaevitando.
CAPÍTULODEZESSETE
AMEMÓRIA
Nodiaseguinte,falteiaotrabalhoepegueiumônibusparavisitarmeupainoCentroCorrecionalStateville,emCrestHill.Nãoconteiparaminhamãe—elaandavaestressadadesdeoincidentenafestadaMillieeacheiqueaprisãodeviaseraúltimacoisasobreaqualelagostariade falar.Alémdomais, eu estava indo em busca de respostas para um problema que elaparecia desconhecer e, se fosse tão ruim quanto eu imaginava, preferiamanterascoisascomoestavam.O centro correcional era composto por diversas alas de concreto e um
prédio circular protegido por uma cerca de arame e dez torres devigilância. Fora dos muros, mais de oito mil hectares de campo abertocercavamaprisão,mantendoisoladosdavidanormalseusmaisdequatromilpresidiários,incluindomeupai.Eraasextavezqueeuovisitavaemumanoeseismesesdeprisão,ea
cadavezficavamaisdifícil.Tenteiponderarofatodequeaindateriamaisquatroanosdevisitaspelafrente.Depois de mostrar a identidade e passar pela revista de segurança,
encontreimeupainasaladevisitas.Ànossavolta,osoutrosprisioneirosseacomodavam com suas famílias em cadeiras de metal e mesas brancas;crianças e bebês dividiam o ambiente com avós robustas e adolescentesgóticos.Osguardasobservavamdasparedes,comolhosatentosàprocurade um abraço ou qualquer outro movimento proibido, por cima ou porbaixodasmesas.
Meupaiestavamaispálidodoqueeuesperavaecomolheirasaindamaisprofundas.Eusabiaqueelepodiaestarbempior.Comomeupainãofaziapartedenenhumagangue,eleera,emtermosprisionais,um“nêutron”,oquesignificavaqueospresidiáriosmaisviolentosnãooincomodavam.Noentanto, não conseguia evitar os efeitos da escassez de comida e doexercíciofísicolimitado.Eleestavaperdendopesoedormindopouco.—Comovocêestá?—Comeceiamorderaunhadomindinho;umtique
nervosoquenormalmentevoltavanapresençadele.Meupaisacudiuocabelogrisalhobagunçadoparaquecaíssenatestae
escondesseomachucadosobreoolho—quasenãooincomodavam.— Indo, Soph.—Ele tentou sorrir,mas saiu torto e amarelo.—É tão
bomvervocê.Reunitodasminhasforçasparanãodesabarnobancogeladodemetal.
Eleeraasombradohomemquetinhamecriadoabasedecontosdefadas,filmes de aventura e longas viagens. As piores atitudes que ele tinhatomadonavidaenvolviamgritarcomigoquandoestavairritado,esquecerdelavaralouçaouficaratétardenaruacomotioJackdevezemquando.Elenãopertenciaaomesmolugarqueummontedeassassinos.Mesmoquetivessematadoumhomem.—Pai,vocênãoparecemuitobem.—Nãotemmuitasfrutaselegumesnadietadaqui—provocouele,mas
o tom levenãoalcançouseuolhar.Ele se inclinoue segurouminhamão;sentiamãoásperaecalejadadelenaminha.—Felizaniversárioatrasado,Soph.— Sem encostar!— gritou um guarda por perto. Resisti à vontade de
bater a cabeçanamesaquando afastamos asmãos. Emvezdisso, fixei oolharnasminhasunhas.—Obrigada,pai.—Então,comovãoascoisasemcasa?—Seusolhosseacenderamcom
interesse,relaxandoseurostoemedistraindodasnovasrugasemvoltadabocadele.—Umtédio,comosempre—menti,omitindodepropósitoaparteem
quehaviammedrogadonafestadaMillie.EusabiaquetioJackouminhamãecontariamembreve,masnãoqueriaqueelesoubessepormim.—Comeceiumlivronovoontem...Escuteienquantoelemecontavatudosobreoslivrosqueandavalendo.
Quando terminou, iniciei minha lista de assuntos seguros, incluindo osnovosclientesdaminhamãeemLincolnParkeamaisrecenteideiainsanada Millie de ir explorar as ilhas gregas depois que nos formássemos.
Falamos sobre as visitas semanais da sra. Bailey e mencionamosrapidamentemeuúltimoanodeescola,quecomeçariaembreve.Meupaisorriu e participou em todos osmomentos certos até que a conversa seencerrou de forma natural. Por mais que eu quisesse debater tópicosinofensivos,sabiaqueprecisavaabordaroassuntoprincipal,porque logonosso tempo acabaria. E, até o momento, eu não tinha sequer chegadopertodefalardomotivodavisita.—Pai—comeceiantesqueelepudesseentraremmaisumaconversa
arrastada.—Tenhoumapergunta.Ele se ajeitou na cadeira eme observou com atenção. Eu adorava isso
nele—sempremetratavacomoalguémdignoderespeito,desdecriança.Esabiaque issosignificavaqueelemeresponderiadamelhormaneiraquepudesse.—Oquefoi,Soph?Decidiirdiretoaoassunto.—Vocêselembradequefaleisobreanovafamíliaquesemudouparaa
antigamansãoPriestly?Sãocincogarotos.As pálpebras dele tremeram, mas sua boca se manteve fechada,
esperandoqueeuterminasse.—Bem,achoquetalvezvocêosconheça.—Vocêfaloucomatalfamília?—perguntouele,coçandoapenugemno
queixo.—Elesprocuraramvocê?—Sim—respondi.—Jáfaleicomeles.Meupaienterrouorostonasmãosesoltouumsuspiro.—MeuDeus—disseelecomavozquaseengasgada.Voltei a sentir uma terrível angústia. Ela fezmeus olhos arderem e se
agarrouàminhagarganta.—Pai?—Sophie—começouele,masdessavezcomumavozcansadaecheia
de decepção. Então, descobriu o rosto, deixando as mãos pousarem namesacomumbaque.—AcheiquetioJacktinhaditoparavocêficarlongedeles.—Comovocêsabedisso?—Porqueeleveiomeverquandosoubedamudança.Enósdecidimos...—Espere—interrompi.—OqueosPriestlytêmavercomagente?Meupaipiscouduasvezesefezumacareta.—OsPriestly?QuemsãoosPriestly?— Os...— parei de repente. Meu cérebro virou de cabeça para baixo.
Pense. Quem eram os Priestly? Nós apenas havíamos deduzido uma
conexãoentreafamíliadeNiceacasaantiga.Afinal,elanuncatinhasidopostaàvenda,oquecomcertezasignificavaumaherança.Atéminhamãenãohavialevantadoessaquestão.Masagora...— Sophie — chamou meu pai com a voz tão baixa que precisei me
aproximar.—Nãoseideondetirouessaideia,maselesnãosãodafamíliaPriestly.SãodafamíliaFalcone.Foicomosetivesselevadoumsoconacara.Caíparatrásnacadeira.Comopudesertãoburra?Tãoignorante?Luca
estava certo. Eu estava errada. Estive errada o tempo todo. Eles nuncatinhamseapresentadocomoPriestly—eupegueionomedavelhalendaurbanaenuncamedeiaotrabalhodeconfirmarseeraverdadeounão.Aconclusão chegou como uma tempestade de raios. A aparênciamediterrânea,osdiálogosemitaliano,a insígniadefalcão.OrostodeNic.Aquelesmalditosolhos.Oódioimediato.— Falcone — repeti, Fal-co-ne, minha voz parecia distante enquanto
embaralhavaaspalavrasquemudavamtudo.— Sim. — Houve uma pausa demorada, e então meu pai perguntou,
delicadamente:—VocêselembradequemeraAngeloFalcone?Eraumaperguntadolorosaedesnecessária.Essenomeestavagravado
nomeucérebroparasempre.—Claroquemelembro.—Apoieiacabeçanometalgeladodamesa.Eu
haviaolhadocinquentavezesparaafotodeAngeloFalconee,aindaassim,nãotinhafeitoaconexão.TinhavistoodesenhofeitoporValentinoenãotinhafeitoa ligaçãoentreorostodeleeohomememtodosos jornaisnaépoca.OhomemcomosolhosdeNic.MeuDeus.Levanteiacabeça.—Éohomemquevocêmatou.—Issomesmo.—Meupaipôsasmãosnocoloparaqueeunãopudesse
ver, mas eu sabia que ele estava inquieto. Com a concentração, euconseguiaveraveiapulsandonatêmpora.Elecomeçouarangerosdentes,umhábitoadquiridonaprisão.Porumlongoperíododetempo,nenhumdenósfalounada,mascadavezqueouviaaquelesomeumeencolhia.Eu jamais esqueceria aquele nome. Mas nós nunca falamos sobre o
assunto,nãoabertamente.Talvezfosseahora.— Foi no Dia dos Namorados— falei, quebrando o silêncio. Eu tinha
recebidoumcartãodeWillAckermannocolégionaqueledia.Eleodeixounomeuarmárionahoradorecreio,comseunúmerodetelefonenapartedetrás.Tinhaodesenhodeumursodepelúciasegurandoumcoração,edoladodedentrohaviaumpequenopoemasobrecomoelegostavadomeu
cabelo. Não era amaior criação literária domundo,mas quasemorri defelicidade.Eugostavadeledesdesempreetodasasminhasamigasestavammorrendodeinveja.—Sim—disseele.—EraDiadosNamorados.— Estava caindo uma tempestade — continuei, meus pensamentos
focadosemoutraépoca.—Euestavacomdordecabeça,entãotomeiumaaspirina e fui dormir cedo.Quando estavaquase adormecendo, amamãeentroucorrendonomeuquarto.Elachoravaeeunãoentendiaoqueestavatentandomedizer...—Pareidefalar.Davaparaverqueeradifícilparaeleescutar tudo isso. Era aindamais difícil falar,mas insisti, porque alguémperderaavidanaquelanoiteeeuapenascomeçavaaentenderagravidadedasituação.OpaideNicestavamorto.Eeusóhaviameconcentradoemcomomeupaihaviasidojogadoatrásdasgradesporumerroquecometeuquando estava assustado no escuro da lanchonete no meio de umatempestade. — A mamãe disse que você estava sozinho, fechando alanchonete, quando um homem apareceu no escuro e começou a gritar.Você achouque ele estava tentando roubar o restaurante, entãopegou aarmaqueJacktinhalhedadodeNataleatirounele.—Eelemorreu—terminouele.—Sim—concordei.—Elemorreu.—E,nofimdascontas,elenãoestavaarmado.MeuDeus.—Isso.—Eeunãotinhalicençaparaaarmaqueusei.Sópiorava.—Ah.— Eu não deveria estar armado— falou ele, frustrado.—Mas estava
tardeeeuestavanervoso.SeutiohaviamecontadosobreasganguespertodeCedarHillepenseiqueprecisavameprotegermelhor.Acheiqueaquelehomemfossemeatacar.—Entãoatirounele.—Minhaexpressãoeraindecifrável.Pordentro,eu
estava gelada.—E agora está preso por homicídio culposo, enquanto osfilhosdeAngeloFalcone...—EstãomorandoemCedarHillpertodaminhafilha—completouele,
mordendoolábioantesqueumpalavrãoescapasse.Euapertavaospunhoscomtantaforçaqueminhasunhasmachucavam
aspalmasdasmãos.—E você não pensou em compartilhar essa informação extremamente
importantecomigo?
—Jackeeunãoqueríamosdeixarvocêesuamãeassustadascomisso.Quasericomoabsurdodaafirmação.—Então achou que eramelhor eu ficar sabendo por um dos filhos de
AngeloFalcone?—AcheiqueJackiadarumjeitoparaqueficasselongedeles!—rebateu
ele,comumaraivaquaseigualàminha.Secontinuássemosdessejeito,umdosguardasmemandariaembora.—Vocêdeviatermecontado—falei,baixandoavoz.—Eunãoteriame
assustado.Conseguirialidarcomisso.—Provavelmente.Talvez.Umdia.— Certo, e o que você faria se não tivesse medo? — rebateu ele. —
Sempre existia a possibilidade de você querer se aproximar deles, pedirdesculpasoucorrigiroquefiz.Conheçovocê,Soph.Temumbomcoração.Nãoébesteiradaminhapartepensarquevocêfariaalgodotipo.—Issoéloucura,pai!—Talveznãofosse,maseuestavatãonervosaque
nemiacogitarapossibilidadedeeleestarcerto.—Eoquevocê ia fazerpara eles ficarem longe demim?— chiei.—Eles foram à lanchonete nanoite seguinte àmudança! Um avisomenos enigmático seria bom. AcheiqueotioJackestavasósendoesquisito!Meupaibalançouacabeçaesuspirou,derrotado.—Talvezagentedevesseteragidodeoutrojeito—cedeuele.Elemeobservouemsilêncioporummomento.Osolhossearregalaram
atédominaremseu rosto abatido; o azuldeles tinha se transformadoemumcinzaescuro.—Sophie,agoraquesabeaverdade,porfavor,fiquelongedosFalcone
como Jack havia pedido. Não temos como saber o tamanho doressentimentodelesemrelaçãoamimouporqueestãodevoltaaCedarHill.—Ok.— Foi tudo o que disse. Estava cansada demais para continuar
discutindo. E, além do mais, não é como se os Falcone estivessemimplorandoparaandarcomigo.—Eles já sãouma famíliaperigosadequalquer jeito—continuouele,
vacilante.— O que isso quer dizer?—Me lembrei vagamente de saber algo na
época; Angelo Falcone não era bem um cidadão modelo. Seria bompesquisar de novo os detalhes, levando em consideração que, na época,evitei de propósito ler qualquer coisa mais detalhada sobre a vítima domeupai.—Querdizerquenãogostodenadadisso—respondeuele,orostoem
pânico.Umpânicoqueelevinhatentandoesconderdemim.—Nãogosto
desaberqueestãopertodaminhafilhaequenãopossofazernada.Partedemimquisdizerjáfezosuficiente,maseunãopodiasercruel.—Sãosógarotos—falei.—Sãodaminhaidade.— Cinco minutos! — gritou um guarda corpulento a três mesas de
distância.Meupaicomeçouaretorcerasmãos.— Vai ficar longe deles? Por favor, tome cuidado. Vou falar com Jack
sobreisso.—Sãosógarotos—repeti.Elefechouosolhosetentouseacalmar.—Éissoqueaprisãofazcomapessoa.—Quandoeleabriuosolhosde
novo,aindaestavamtensosdepreocupação.Assenti,fingindocompreender.—Achaqueelesvoltaramatrásdealgumacoisa?—Nãosei—disseeleemvozbaixa.—Sinceramente,nãosei.Do nada, lembrei da imagemdo pote demel como laço preto. Afastei
aquelepensamento.
CAPÍTULODEZOITO
OFAZ-ANJOS
Quandochegueiemcasa,disseàminhamãequeestavacomdordecabeçae ia me deitar. Lutando contra o desejo de ignorar tudo e me forçar adormir, peguei o laptop antigo do meu pai e digitei “Angelo Falcone,Chicago” no Google. Achei um artigo do ChicagoSun-Times de dois anosantes,emfevereiro,ecliquei,derepenteinundadaporumaondadenojoedescrença.
ANATADASFAMÍLIASMAISINFAMESCOMPARECEAOVELÓRIODOCHEFEDAMÁFIAANGELO“FAZ-ANJOS”FALCONE
Aconteceunaterça-feira,18defevereiro,ovelóriodonotóriochefedamáfia, Don Angelo Falcone, na Holy Name Cathedral, em Chicago.Falcone, conhecido pelo apelido “O Faz-anjos” por conta da supostacarreira como prolífico assassino da máfia, foi morto a tiros às 23horas,em14defevereiro.Falcone estava do lado de fora da Gracewell, uma lanchonete
localizada em Cedar Hill, nos arredores de Chicago, quando seenvolveuemumadiscussãocomodonodoestabelecimento.Falcone,queestavadesarmado, levoudoistirosnopeito.Elemorreunahora.Michael Gracewell, proprietário da lanchonete, permanece detido à
espera de julgamento. Apesar de Falcone ter um alto envolvimentocomamáfia,apolícianãoacreditahavermotivaçãocriminosaemsuamorte.AngeloFalconeerabemconhecidopelapolíciadesdesuaascensãoa
chefe do negócio criminoso da família Falcone emmeados dos anos1990.Apesardetersidopresodiversasvezes,Angeloprovouterumacapacidadequestionável de evitar a prisão, com testemunhas-chavesque desapareciam ou retiravam seus depoimentos antes dojulgamento. Ele é suspeito de ser responsável pelos recentesassassinatosdedoisdosprincipaismembrosdaGanguedoTriânguloDourado,uminfamecarteldedrogasdoMeio-Oeste,entreoutros.PoliciaisàpaisanaeagentesdoFBIestavaminfiltradosemmeioà
multidão na terça-feira. Embora não fosse esperadonenhum tipo deproblema,emnomedagrande tradiçãode respeitoentreas famíliasda máfia em velórios, os agentes policiais foram tentar identificarquem será o sucessor de Angelo Falcone como chefe da dinastiaFalcone.AidentidadedosegundoemcomandoeradesconhecidapelapolíciaàépocadamortedeFalcone.ApolíciaacreditaqueoirmãomaisnovodeAngelo,FeliceFalcone,
seja seu sucessor. Emuma ação que pareceu confirmar essa dúvida,Felice Falcone (imagem acima) falou rapidamente com jornalistas,enquanto as outras pessoas presentes não deram declarações àimprensaapósacerimônia.O suposto novo chefe da máfia Falcone fez a seguinte declaração
sobre o falecido: “Angelo era um verdadeiro soldado de Deus. Nãotemos dúvida de que ele será recompensado nos céus por seu bomtrabalhonaTerra.Ele será recebidopeloNossoSenhorcomhonraedignidade,almalimpaeumcoraçãonobre.Sentiremosmuitosuafalta,maselejamaisseráesquecido.”O “Faz-anjos” foi enterrado em um caixão preto de mármore no
mausoléudafamília,noCemitérioGraceland.Ele deixa uma esposa — filha do clã rival Genovese — Elena
Genovese-Falcone e cinco filhos: Valentino, Gianluca, Giorgino,DominicoeNicoli(foto).
Encarei a imagemno finaldapágina.Ao fundoestavaNic:umaversão
ligeiramentemais nova e tristonha, de ternopreto.O cabelo estavamais
curtodoqueagora,semasmechascacheadasrebeldesquecaiamnatesta.Estavamenos forte, o que deixava seu rosto abatido, e a boca estava emumalinhaséria.Eleseguravaocaixãodopaisobreoombroesquerdo.Luca segurava o outro lado do caixão, com a mesma expressão
concentrada,osolhosassombrosamenteazuis.GinoeDomestavamatrásdosirmãos,cadaumdeumlado,suasfeiçõestomadaspeloluto.Aofundo,reconheciohomemaltoecarecadorestauranteeo inconfundívelFelice,vestindoumaecharpecinza-escuroecomorostoabatidoigualaosoutros.Valentino estava na parte de baixo dos degraus da catedral, o rostoinexpressivo, os olhos vazios. Amãe deles— amulher alta e de cabelosescurosdodesenho—estavaaolado,comumvéupretocobrindoorosto.AmãodelaapertavaoombrocurvadodeValentinocomfirmeza,enquantoeleviaosirmãoslevaremopaiembora.Tapei a boca para impedir uma ânsia de vômito. Era demais para
assimilar,mastudovinhadeumasóvez,comogolpesderealidade.Meupaimatouohomemnaquele caixão; eledeixouaquelamulher chorandosemummarido;edeixouNicparasempresemumpai.MasopaideNiceraumassassino—umfamosochefedamáfia,oFaz-
anjos—eseu legadorondavaa famíliacomoumanuvemdetempestade.AgoraFeliceestavanocomando,sabeláoqueissosignificava,ederepenteelenãopareciamaistãoinofensivooupeculiar,apenasassustador.Minhacabeçacomeçouagirar,eantesqueeumedessecontadoquese
passava,estavacorrendoparaobanheiro.Fiqueiláporumbomtempo—abraçadaaovaso,buscandoara cadaarfadaviolentaquebalançavameucorpo, como se tentasse assimilar que minha vida em Cedar Hill haviamudadoparasempre.
CAPÍTULODEZENOVE
AVERDADENUAECRUA
Parada na calçada, eu tentava arrancar meus pés da gosma que meprendia. E afundava. Um falcão havia descido do céu, me rondando deperto.Bicoumeusolhosatéarrancarsanguedaspupilasemedeixarcega.Ping!Pisqueicomforçae,naescuridão,vimeupai,caídocomacabeça
nasmãos.Chamei,maseleestavadesaparecendoe,quantomaiseutentava,maismeuspulmõesardiam.Ping! Acordei, suando e sem ar. Atrás das cortinas, algo se mexia na
janela. Peguei meu telefone na cabeceira e acendi a tela. Era 1h48 damanhã.Ping! Saí da cama e espiei pela janela. Uma figura alta e sombria se
agachounochãoepegoualgodagramamalcuidada.Levantouumbraço,mirandoonde estava aminha cabeça. Ele parouquandome viu no lugarondealgunssegundosantesestavamascortinaselargouapedrinha.Abriajanelaeumabrisadearfrescodeverãotocoumeurosto.—Sophie?—Eleseaproximou,ativandoosensordeluzacimadajanela
dacozinha.—Nic?— Fechei os olhos e recuei, todas as informações voltando de
umasóvez.Viflashesdovelóriocomapalavra“máfia”.OpaideNichaviamatadopessoasemeupaitinhamatadoopaidele.—Sophie—repetiuele.—Precisofalarcomvocê.Engoliemseco,torcendoparaminhavoznãofalhar.—Ok.Voudescer.
Acendialuzdoquarto,cateiumcardigãrosanochãoeovestiantesdedescerasescadas.Quandochegueiaoquintal,Nicestavaparadoaofundo,noescuro,esperandopormim.Aluzvoltouaacenderenquantoeuandavaemdireçãoaele.Tinhauma
expressãoenigmáticaeoolharfixadoemmim.—Oi— faleiquandocheguei.Cruzeiosbraços,esperando,enquantoa
noitenosenvolvia.—Deveestarseperguntandooqueestoufazendoaqui.—Entreoutrascoisas.Achoquenãoolheiparaele.Tinhaculpademaisdentrodemim,e,seeu
oolhassenosolhos,sabiaquenãosegurariaaverdade.—Precisavasabersevocêestavabem.Lucamecontouoqueaconteceu...
—Eleparouefalouumpalavrãobaixinho.—Enãoqueriadeixarascoisasdessejeito,nãocomessasituaçãoqueomeuirmãocriou.Eleerrouaofalardaquelejeitocomvocê,Sophie.Mordiolábioatémachucar.—Achoquenãotenhomaisnadaparadizer.— Pode pelo menos olhar pra mim? — Ele se aproximou até uma
distânciaemqueerapossívelverseuspés.Balancei a cabeça, mantendo os olhos voltados para a grama. Muitas
emoções borbulhavam dentro de mim. Eu precisava aguentar firme, ouperderiacompletamenteocontrole.Precisavamanterofoco.—Sophie,porfavor...—Nãoposso.—Minhagarganta latejava.Fecheiosolhosparasegurar
aslágrimas,maspodiasenti-laschegando,prontaspararolar.Eunãotinhaforçasparasuportartudoaquilo,nãomais.—Porquenão?—murmurouele.—Comopossoolharpravocêsabendooquesei?—Levanteioqueixoe
encareiopeitodele.—Sophie...—Fuivisitarmeupaihoje—continuei, abalada.—Seiqueelematou
seupai.Seiqueéporissoquevocêmeodeia.Nicestendeuobraçoetocoumeuqueixo,levantando-ogentilmenteaté
queeuerguesseorostoeoolhassenosolhos.E então a represa que sempre conteve minhas lágrimas se abriu por
completo. Elas rolaram pelo meu rosto rápida e abundantemente,sacudindomeucorpoacadasoluço,comarespiraçãoengasgada,buscandoar.Tudoqueeuhaviaescondidodentrodemim—aprisãodomeupai,a
dordaminhamãe,oabandonodotioJack,odesprezodosFalconepormimemeudesejolatenteporNic—estavareunidonaquelaslágrimaspesadasque rolavam por meu rosto e corriam até o pescoço. Me deixei cairagachada, com as mãos na cabeça, enquanto chorava de formadescontrolada pela primeira vez desde a prisão do meu pai, sem meimportarcomnadaanãosercomadorquefinalmenteselibertavadomeucorpo.Emuminstante,Nicestavaaomeulado,aninhandomeucorpocurvado
nosbraços.Eleapoiouacabeçanaminhaesussurrouparaomeucabelo:—Porfavor,nãochore,Sophie.Porfavor,nãochore.Ele me abraçou por muito tempo, até a corredeira de lágrimas se
transformaremriachocalmoeeuconseguirrespirarnovamente.EntãoNicpuxou minha cabeça para o seu peito e me afundei nele, sentindo seucheiro.— Como você não me odiaria? — murmurei na pele dele. — Seria
impossívelvocêolharparamimenãoveroquemeupaifez.Eleacaricioumeucabeloefalougentilmente:—Nãoénadadisso,eujuro.—Elenãofezdepropósito,Nic.Foiumacidente—soluceibaixinho.—
Eleéincapazdemachucaralguém.—Eusei—sussurrouele.—Porfavor,nãochore.—Desculpa.—Apalavrasaiutãoemboladaquemalaentendi.—Vocênãotemquesedesculpar.—Tenho,sim.Lucadisse...—Olhepramim...Porfavor,sóolhepramim.Levanteiacabeçadevagar,sentindoopesoeatonturadeumasóvez.Ele
enxugouminhasbochechas.—Presteatenção,Sophie.Vouserbemclaro.Lucanãotinhaqueterdito
nadadaquilopravocê.Issotudonãotemnadaavercomvocêoucomele,eLucasabedisso.Oqueaconteceucommeupaifoiumacidente.Jápassou.— Mas não passou. — Pensei nos desenhos de Valentino e no rosto
abatidoecansadodomeupai.Jamaispassaria.—Bem,nãoémaisnovidade—respondeuele, comcuidado.—Enão
culpovocê.Quandotevejo,mesinto feliz.—Ele levantoumeuqueixodenovo.—Nãome importa de onde veio ou quem é sua família. Eu soubenaquela primeira noite, quando segurei você nos meus braços, que nãoqueria soltá-la. Mas aí você saiu correndo, então precisei largar...— Eleficoupensativoesorriu.—Emesentivazio.—Nãoconsigoentender—sussurrei.—PorqueoLucadiriaissosenão
eraarazãoporquevocêestavameevitando?—Porque estava tentando se livrar de você—admitiu ele.—E sabia
queissoiafuncionar.— Nunca fiz nada pra ele— protestei inutilmente.— Como ele pode
odiaralguémquemalconhece?—SeiquetudomudoudepoisqueDomcontouaelequemvocêera,mas
Lucanãoaodeia.Elesóésuperprotetor.Revireiosolhos,queestavamúmidoseardidosdetantochorar.—Doqueeleestáprotegendovocê?—Nãosousóeu.—Nicacaricioumeurostooutravez.Engoliemseco.
Eununcaquisbeijá-lotantoquantoagorae,noentanto,tambémnuncamesentitãoávidaporinformações.— Você sempre faz o que ele manda? — Ouvi a amargura na minha
própriavoz.Nicapertouos lábios,acentuandoasombrasobasmaçãsdorostoeos
olhos.—Basicamente.—Porquê?Elerecolheuasmãos,entrelaçando-as.—Écomplicado.—Éporissoquenãopodemaisficarcomigo?—insisti,observandosuas
mãosesentindofaltadocalordelasnaminhapele.—Porqueelemandou?AexpressãodeNicseentristeceu.—Vocêfazparecersimplesdemais.—Nãoé?—Não.—Nãoconsigoentender.Nicbalançouacabeça.—Seiquenão.Eumeafasteidevagarparaquenossoscorposnãomaissetocassememe
endireitei,observando-ocomfrieza.Quandovolteiaabriraboca,disseaspalavrasdaformamaislentaeclarapossível,paraqueeleentendessequeeusabiamaisdoqueelepensava,equenãoprecisavadasuaproteção.—Deveteravercomessahistóriademáfia.O silêncio que veio em seguida foi retumbante. Nic reagiu como se eu
tivesse batido nele; sua respiração ficou acelerada e instável, o queixotremia.Euoobserveiatentamente,mantendominhaexpressãoneutra.— O que quer dizer? — perguntou ele, enfim, mas as palavras mal
produziramsomalgum.
Mantiveavozfirme.—Achoquesabeoquequerodizer.Eleolhouderelancesobreoombro,comoseestivessecommedodeque
alguémpulassedos arbustos.Ele voltoua atençãopara a gramaatrásdemim.Estaloualínguaedisse:—Nãosei.—OFaz-anjos.—Foiumaafirmação,nãoumapergunta,efezoarúmido
deverãoparecermaisfresco.Elefechouosolhoscomforça.Euoatingiexatamentecomoimaginei,e
mearrependinamesmahora.— É verdade, então? — perguntei, assustada, mas querendo a
confirmação.—Asuafamíliaédamáfia?Elearrancouumpedaçofinoelongodegramaetentoudividi-loaomeio.—Nãonegoainformação.Sentiafamiliarsensaçãodenáuseacrescendonoestômago,masestava
fraca demais dessa vez. Eu havia enfrentado boa parte dosmeusmedosantesde cairno sono, e agoraa confirmaçãodealgoqueeu já sabianãoparecianadademais.Quandofiqueiemsilêncio,elesegurouminhamãoderepente,comose
temessetermeperdidonaquelebreveinstantedesilêncio.Aperteiamãodeledelicadamente.—OFelicemandavocêmachucaraspessoas?Vocêrespondeaelecomo
respondeaLuca?—Claroquenão.—Elepareciaofendidocomasuposição,efiqueifeliz
comisso.Seelenãorespondiaao“chefe”,entãonãodeviaestarenvolvidocomoqueopaieraacusadodefazer.—Oquesignificaparavocêeparaosseusirmãosfazerpartedamáfia?Nichesitou,edavaparaverqueeletentavaformularumaresposta.—Infâmia.—Enotoriedade?—Penseinoartigoetremi.— Sim — concordou, como se não o incomodasse tanto quanto me
incomodaria. — No momento em que nascemos, somos marcados pelareputaçãodafamília,nomeadosemhomenagemaosnossosantepassadosecriadoscomumfortesensodelealdadeehonra...—Vocêsmachucamaspessoas?Ele passou a mão no cabelo até que ficasse caído ao lado dos olhos,
protegendo-os.—Nãoéassim.—Comoé,então?
Nicsegurouminhasmãos.— Sophie, tem muita coisa que não posso contar para você. Fiz uma
promessa séria e, quebrá-la significaria violar um código de sigilorespeitado por todos os membros da minha família. Mas se não puderconfiar em mais nada, confie nisso: sou uma boa pessoa, com valoresmorais. Meus irmãos são leais até a morte. Fomos criados sabendodiscernir oque é certo e oque é errado.Protegemos e servimos ànossamãeparaqueelapossaser feliz todososdiasdasuavida, lamentamosamortedonossopaievamosàigrejatodososdomingospararezarporsuaalma. Quero proteger os que amo e os que não podem proteger a simesmos.Mas, acima de tudo, quero fazer omundomelhor com aminhapresença.Sentiumaondadealívio.Eunãosabiaoqueestavaesperandoqueele
fossedizer,masissoerabemmelhor.—Vocênasceunessemundo—falei,quasecomigomesma—,masisso
nãoquerdizerquefaçapartedele.—Nicsuspiroucomosefossedizeralgo,mas se conteve. — Nós dois vivemos à sombra dos nossos pais —continuei,percebendoaquilopelaprimeiravez.—Eujamaismachucariavocê—concluiuelecalmamente.—Eusei.—Entrelaceimeusdedosnosdele.Eutinhavistoaquelasmãos
machucaremAlex,tinhavistoferimentosroxosnasjuntasdosdedos,masprecisava acreditar que comigo seria diferente. Estudei nossos dedos, apelemorenadelejuntoàpalidezdaminha,apegadaforteesegura.Pareciadiferente.Pareciacerto.Por um tempo, nenhumde nós disse nada.Muitas feridas psicológicas
foramexpostaseestávamosexaustosdeemoção.—Sabeporquenãopossoficarcomvocê?—disseNic,enfim.—Quero
quesaibaquenãofuieuqueescolhimeafastar.Euestavacomeçandoaentenderisso.—QuandoLucadescobriuquemeuera,tudomudou,nãoé?—Oqueháemumnome,certo?—OrostodeNicseentristeceu.—Não
éumaboaideiaagenteficarjunto.Nãodepoisdetudoqueaconteceu.Nãoquerochamaratençãodesnecessáriaparavocê.—Estou correndo perigo? Elesme avisaram sobre isso...—Pensei no
meutioecompreendisuapreocupação.Umafamíliamafiosasemudaparaa rua vizinha à da família responsável pela morte do seu chefe. Dei umsuspiroprofundo.— Jack avisou? — As palavras de Nic continham um ligeiro tom de
animosidade.
—Omeupaitambém.—Vocênãoestáemperigo.—Eletentouparecercasual,mashaviaalgo
novoemsuavoz,contendo-a.—Masachoqueémelhorvocêsficarembemlongedenósedealgunsmembrosdafamíliamais...rebeldes.Pelomenosporenquanto.Nicvoltouaficarquieto.Subiuasmãosparaosmeusbraçosecomeçoua
esfregá-los.Eunemtinhapercebidoqueestavacomfrioatésentirocalordotoquedele.—Épraeuficarcommedo?—perguntei.—Nãoprecisatermedodenada—respondeucalmamente.Deiumsorrisofraco.Estavacommedodeperdê-lo,masnãopodiadizer.
Nãoajudariaemnada.Eledesviouoolharparameuslábios.—Seeusoubessequeaquelanoiteseriaaúltimavezqueabeijaria,não
teriaparado.Meusorrisovacilou.Porqueelenãopodiaseroutrapessoa,qualquerum
quenãofosseumFalcone?—Émelhoreuirembora—disseele,comoseconvencesseasimesmo,
nãoamim.Maselenãoestavaseafastando,estavaseinclinandonaminhadireção.Nossosdedos estavamentrelaçados e elemepuxavaparaperto,passandoosbraçospelaminhacintura.Devagar, como se lutasse contra o desejo, ele encostou sua testa na
minha.—Mas,ese...Ese,poruminstante,vocênãoforSophieGracewelleeu
nãoforNicoliFalcone...—Eleparoudefalaredeixouoslábiostocaremosmeus.Fuitomadapelodesejoquandonossoslábiosseencontraram.Abocade
Nicestavafirmenaminha,quenteedeterminada,equandonossaslínguasse tocarammedeixei levar,completae inteiramente,pelapaixãodaquelebeijo.Logo,nomeiodealgotãointensoquetivedificuldadesparameafastare
recuperar o fôlego, um zumbido distante nos puxou de volta para arealidade.Ofegante,Nicseafastoudemimepescouotelefonequevibravanobolsodacalça.Elebotouamãonocoraçãoeapertouopeito.—Valentino.—Avozdelesooutrêmula.—Estouindo.—Eledesligoue
voltouaatençãoparamim,masadoçuranos seusolhoshavia sumido, epercebi, com um susto, que estava olhando para uma versão muitodiferentedeNicoliFalcone.
—Vocêprecisair—falei,aindacomdificuldadepararespirar.—Desculpe.— Ele segurouminhamão.— Sophie, por favor não fale
comninguémsobre isso. Fizumapromessae aminha famílianão ficariafelizsesoubessequenãoacumpri,mesmoqueapenasporuminstante.—Nãovou—faleisemprecisarpensar.Aindasentiaocalordoseubeijo
nos meus lábios, e seria capaz de fazer qualquer promessa naquelemomento.Elelevouminhamãoaoslábios,beijando-adeleve.—Riguardati,Sophie—sussurrouele.—Tenhacuidado.Por um breve momento de loucura, considerei correr atrás dele e
resgatá-lo, mas então lembrei do aviso de Luca. Eu não queria que elechegassenemremotamentepertodeMillieoudaminhamãe.Eume arrastei escada acima e voltei para a cama, pensando no breve
instante no quintal quando tudo em minha vida era empolgante e feliz.Assimquecomeceiaadormecer,melembreidealgoqueNictinhadito.Jackavisouvocê...?Comoelesabiaonomedomeutio?Eununcahaviamencionado—tinha
certezaquenão.Eentãocomeceiamelembrardeoutrosfatos,fatosqueestavamapenas
começando a fazer sentido: as perguntas esquisitas de Luca na primeiranoite quenos conhecemos; o interesse deDompelo local de trabalhodaMillie, e comoele ahaviadispensadodepoisdedescobriroquequeria ameu respeito;Nic à espreita na lanchonete na noite emque invadimos olugar, o carro parado longe, no escuro, como se ele estivesse esperandoalgumacoisa...oualguém.Derepente,tiveumasensaçãohorríveldequeatalcoisaouotalalguém
eraamesmapessoaqueevitavaCedarHilldesdequeosFalconehaviamchegado—meutioJack.FoiquandopercebiqueeunãosabiaahistóriacompletaentreosFalcone
eosGracewell.Eque,emboraNicgostassedemim,nadadisso interferiaemsuahabilidadedementir,emuito,naminhacara.
CAPÍTULOVINTE
OFILME
Os primeiros efeitos da minha despedida noturna de Nic foram maiscomplicados do que eu esperava. O que ele disse virou meu mundo decabeça para baixo eme fez questionar tudo que eu pensava saber sobreminhafamíliaeminhasemoções.Devezemquando,memóriassorrateirasdosseusolhosescuros,dotoquedocabelobagunçadooudecomoàsvezesosorrisodelepuxavamaisum ladodaboca invadiamminhamenteemedeixavamaindamaisnervosa,quasemecausandoumadorreal,capazdemedividiremduas.Tentei ignorar o máximo possível as imagens desagradáveis fazendo
turnos duplos na lanchonete, chegando cedo e saindo tarde para ganharumagrana.UmapequenapartedemimesperavaqueNic fosseaparecer,maseusabia,lánofundo,queelenãoviria.Fizquestãodepegarocaminhomais longo para casa depois do trabalho para não passar pela mansãoPriestly—ouFalcone—ecorreroriscoderevisitarosentimentohorrívelassociadoaela.Meu tio saiuda faseestranhaparaabizarrice total.Edesapareceupor
completo. Liguei sem parar, mas ele nunca atendia. Mandei inúmerasmensagens, mas ele só respondeu uma vez e, quando o fez, usou duaspalavrasirritantes—“Estoubem”.Maismentiras.Algoestavaacontecendocomele,eusabia,masaindanãoentendiaoque
era.Jacksabiaqueeutinhaperguntaseelenãotinhaamenorintençãoderespondê-las,fossepormensagemdetextoouqualqueroutraforma.Agora
elenãoestavaapenasevitandoCedarHill:estavameevitandotambém,oque me deixava cada vez mais ansiosa. Começava a me sentir como seestivessegritandoparaovazio,semninguémporpertoescutando.—Realmentenãotevenotíciasdele?—perguntouMillieaopassarmos
soboarcodepedranaentradadoRayfieldPark.Eranoitedecinemaaoarlivre,eelahaviameconvencidoa ircomela.Queriaqueeu tentasse,porpelo menos algumas horas, me distrair, antes que enlouquecesse depreocupação.—NãoparececoisadoJack.—Eu sei.— Jack prometeu ameupai que sempre cuidaria demim, e
ignorarminhas tentativas de contato não era um bom sinal.—Deve teralgomuitoerradoparaeleterseafastadodetudo.Seguimos um dos caminhos de pedra sinuosos que cercavam uma
clareira verde margeada por castanheiras. À nossa frente, algunsadolescentes espinhentos carregavamumapilha de cobertores, cestas depiqueniqueecadeirasdobráveis.—Eseelenaverdadetiverfugidocomtodoodinheirodalanchonete?
—perguntouMillie.—Quedinheiro?Nósduasrimos.Era bomme divertir com a Millie depois de todos os acontecimentos.
EmboraelasoubesseoquemeupaitinhafeitoaopaideNic,tenteinãomesentir culpada por omitir alguns detalhes— com relação à máfia— dahistória.Eu tinhaprometidoaNicenãoqueria seralguémquequebravapromessas. Além domais, eramelhor paraMillie que não soubesse; nãoqueria arriscar colocá-la em perigo, ainda mais depois das ameaças deLuca.Milliepôsodedonoqueixo.—Bem,seutiodevereceberdinheirodealgumlugarparapagaraqueles
ternosmetidosabesta.—Podeacreditar.Eujáviascontabilidades.Nãoédalanchonete.—Droga—lamentouMillie.—Euaindatinhaesperançasdeganharum
aumento.Seguimos uma multidão por um caminho lateral em direção à praça
centraldoparque.Maisàfrente,ErinReyesetrêsdosseusclonesinsípidosflertavamcomumgrupodegarotosdaescola.Elameviuedeuumrisinho,jogandoocabeloparao ladoemseuhabitualgestode“eusoumelhordoquevocê”.Arisadaficoumaisalta.—Essagargalhadasópodeserfalsa.—Combinacomonarizdela—retrucouMillieantesdemearrastarpara
longe.Elapassouamãopelotroncodeumcarvalhonocaminho.—Estátentandosereconectarcomanatureza?—provoquei.Elamedeuumleveempurrãoecambaleei,saindodatrilhaparaalama
queacercava.—Ei!—Estousótentandofazervocêrelaxar.—Vocêéumverdadeirotesouro.— Obrigada, Sophie — agradeceu Millie, fazendo uma reverência
ridícula.Finalmente chegamos à praça: grandes extensões de grama separadas
portrilhasdepedraladeadasporenormesárvores.Noladoopostohaviammontadoumatelagigante.—Temumtrailerdetacosesteano!—guinchouMillie,mearrastando
peloshortjeans.—Vamossentarporaqui.Uma multidão já relaxava em cadeiras e cobertores em frente à tela.
Havia famílias com crianças, que corriam despreocupadas, e casaisabraçadinhos carregandodesde almofadas e cestasdepiquenique a latasdecervejaegarrafasdevinho.— Uau, as pessoas devem realmente amarMonty Python — observei,
enquantoMillie estendia seu cobertor em um local nomeio do caminhoentreatelaeotrailerdetacos.Elaajeitouosquatrocantos,certificando-sedequeestavamretos.—Nãoacreditoquevocênuncaviuessefilme.Assimquenosacomodamos,esvazieiasacolaeespalheinossobanquete
improvisadopelacoberta,fazendofileirasdebalasechocolates.Millieenfiouamãoemumsacodejujubasetacouquatronabocadeuma
sóvez.—Euamoisso—disseelacomasbochechasinfladas.—Emboraeuseja
proibida de comer jujubas. — Ela sorriu, revelando pequenos gomoscoloridosqueagoraestavampresosaoaparelho.Ri da cara dela, feliz. Desde a noite em que conheci Nic, fiquei me
torturando com dúvidas e chafurdando em autopiedade. Isso estava mefazendomaismal do que bem. Eu precisava parar com aquilo antes queficasseloucapensandonoquenãopoderiamudar.Abri um sorriso e então o senti enfraquecer ao ver a expressão que
apareceuderepentenorostodeMillie.—Eupenseiqueeleestavaforadacidade—murmurouela,comavoz
forçadamentebaixa.
—Oquê?—Seguioolhardela e apertei osolhosparaver emmeioàmultidãocrescente.—Dequemvocêestáfalando?—RobbieStenson.Eleestáaqui.
CAPÍTULOVINTEEUM
AARMA
ConcentreitodaminhaatençãonapartedetrásdacabeçaredondaidiotadeRobbie Stenson. Embora eu aindanãome lembrasse de nadadaquelanoite, ficava com raiva só de olhar para ele. Era como se minha peleestivesseemchamaspeloquetinhaacontecidoemeucérebrolutasseparaacompanhar. Ao meu lado, a risada estridente de Millie zunia no meuouvido.Elaassistiaaofilmecontente.—Porquevocênãoestárindo?—perguntouela.Olhei para a tela, um monte de cavaleiros ingleses discutia
incessantementecomumsotaquefrancêscômico.Estranho.—Estoudistraída.— O que você acha que vai conseguir encarando a cabeça do Robbie
dessejeito?—Millieenfioumaisummontedepipocadocenaboca.—Estátentandofazercomqueeleexplodacomopoderdamente?—Nãosei.—Franziorosto tentandoencontraraquela lembrançaque
rondavameuconsciente.—Estoutentandomelembrar.Millieenfioumaisumpunhadodepipocanabocaemastigou,pensativa.—Nãotente—disseela,deixandogrãosmeladoscaíremnocobertor.—
Tenteesqueceroassunto.Vocêestáaquipararelaxar,lembra?Fiz o possível para seguir o conselho dela,mas, ainda assim, algo não
estavacerto...Depoisdequaseumahora,atelaficouescura,sinalizandoointervalo.—Taco?—sugeri,sentindoanecessidadedeesticaraspernas.
—Jáquefazquestão—respondeuMillie,deitando-se.—Querodois,porfavor.Limpeiofarelodaroupaeatravesseiogramado,parandonofinaldafila
detacos.Logoestavaespremidaentreumagarotadecabelorosa-shockingeumcaragordinho.—Caixa livre!—gritouumavozde adolescente.Uma levadepessoas
atrás demim correu para formar uma segunda fila e, de repente, me viparadaquaseaoladodeRobbieStenson.Eleolhouderelanceparamimedesviouosolhosrapidamente,masnão
sem que eu pudesse ver o hematoma amarelado namaçã do rosto e nomaxilarprotuberante.Oquetinhaacontecidocomele?Ocaixafezsinaleafilaandou,melevandocomela.Robbieparoudomeu
lado; ele brincava de rodar um copo vermelho nas mãos, e o líquidobalançavaparafrenteeparatrás.Elelevouocopoàboca,encaixando-onoslábios e dando goladas na bebida. Cada vez que eu via o copo subindo edescendo,ficavamaisfixadanele.Eentãotudovoltou.Lembrei de ter ido ao quarto dos pais de Millie e dado de cara com
RobbieStenson.Derrubei cerveja emmim—nãoera issooqueele tinhadito? Mas Robbie estava com dois copos. E disse que sequer estavabebendo.Fizumacaretaaomelembrardabebidadoceegasosa,pensandoem como ele havia insistido para que eu bebesse e como, quando nossentamos na cama, eu tinha ficado desconfortável com seus olhares. Eentãotodoorestodamemóriaeraumvazio.Percebi,nomesmomomentoem que o caixa tocou o sinal novamente, ativando um alarme no meucérebro,queRobbieStensontinhamedrogadonaquelanoiteeplanejadome levar para casa eme atacar. Não havia nada de inocente ou ingênuonessahistória.E,paracompletar,tinhacertezadequeascoisaspoderiamteridodemal
apiorseLucanãotivesseinterrompidonomomentocerto.Afilaandoudenovo.—Anda—resmungouogordoatrásdemim,maseunãoconseguiame
mexer.Estavacoladanochão.—Ei,anda!—insistiuele.Senti uma ânsia de vômito. Ao meu lado, Robbie avançava na fila,
balançandoocopovermelhosemparar.Oobjetotinhaviradoumpêndulode memórias explosivas, lançando cada uma delas na minha direção, eantesquemedesseconta,empurreiRobbieparaforadafila.—Oquefoi?—Seucorpoparrudocambaleouparaolado.Eletropeçou
ecaiunagrama,apertandoascostelas.
—Comopôde?—Partidenovoparacimadele,masdessavezeleestavapreparado. Se levantou e foi para longe de mim, saindo de perto damultidão.Fuiatrás.—Qualéoseuproblema,garota?—gritoueleporentreosdentes.—Vocêtentoumeatacar!—disparei.—Não tenteinada—ele respondeucom tanta segurançaqueeu teria
duvidado da minha memória se tudo aquilo não estivesse pulsando tãoforte na minha cabeça. — Estava levando você para casa quando seunamoradomeencheudeporradasemmotivonenhum.Temsortedeeunãoterprestadoqueixa.EntãoLucaeraoresponsávelpeloshematomasdeRobbiee,pelovisto,
nãotinhapegadoleve.Noentanto,maisestranhodoqueapossibilidadedeLucaserumpsicopataeraperceberque,nofundo,eusentiaumacentelhadesatisfação.RobbieStensonnãosesafoudasuatentativadeviolação.—Seiquevocêmedrogou.—Estavavagamentecientedahisteriaque
cresciadentrodemim.GraçasaLucaFalcone,Robbiepagoupeloquefez,masnãotinhapagadopeloqueplanejavafazer.—Vocêarmoutudo!Eumelembrodoquevocêmedeu.Robbieriucomdesdémefranziuorosto.—Lembra?—Aindarindo,elegirouemvoltademimcomoumurubu
rondandoapresa.—Bem,duvidodequeissosesustentenafrentedeumjuiz.—Entãovocêadmite?—rebati,furiosa.Ele deu de ombros e parti para cima dele outra vez. Uma dor aguda
atingiu meu ombro esquerdo quando caí no peito dele. Ele me agarrou,pressionandoasminhascostelas.—Pare!—Orostodele se contorciadedor.Elemeapertoucommais
força,tentandomeameaçar.—Vocêestápassandovergonha,esqueçaisso!Luteieesperneeinosbraçosdele.—Mesolta!—guinchei.Craveiasunhasnospulsosdeleomaisforteque
pude,atéelemesoltar.—OK—respondeuele.—Desaparecedaminhafrente.Puleiparatrás,aumentandoadistânciaentrenós.— Você é doente! — gritei, erguendo o punho na direção dele, a
adrenalinaamilnasminhasveias.—Comovocêpôdefazer issocomigo?Comqualquerpessoa!OsorrisodeRobbiedominouorostomachucado.—Ah,porfavor.VocêdevesaberquecomerafilhadeMichaelGracewell
dámuitamoral.
—Vocêquisdizerestuprar—cuspiaspalavras,encurralandoRobbie.—Nãomedigaquevaitentarbrigarcomigo—ironizouele.Eleeraapessoamaishorrendaquejátinhavistonavida.—Odeiovocê.—Relaxe,Sophie.Eunãotocariaemvocêagora.Ojeitoqueeledissemeunome,comosefosseumpalavrão,fezcomque
eumesentissefisicamentedoente.—Vocêvaipagarporisso!—Assisticomsatisfaçãoàcorsumirdorosto
dele. Os olhos ficaram grandes e ele se retraiu ainda mais. Mas estavaenganadadepensarqueminhaspalavrastinhamcomeçadoasurtirefeito,porque Robbie não olhavamais para mim; olhava para alguém atrás demim.Donada,umaterceiravozsejuntouàconversa.Erasinistramentecalma,
emcomparaçãoànossadiscussãoacalorada.— Ciao, Robert. Quanto tempo. — Com aquele tom doce, eu poderia
pensar que era alguém próximo, até amigável, se eu não tivesse tantacertezadequeeraLucaFalcone.ViRobbielevantarasmãoseseencolher,enquantoLucasaíadetrásdemimcomosetivesseacabadodebrotardochão. Há quanto tempo ele estava ali escutando? Virei, procurando seusirmãos,maseleestavasozinho.—Nãopudedeixardeouviraconversadevocês—continuouele,calmamente.—Esperonãoestarmeintrometendo.—Fiquelongedemim,cara,ouvouchamarapolícia.—AvozdeRobbie
tremeuumaoitavaacimadonormal, e a arrogância logodesapareceudorostodele.—Robert—chamouLuca.—Achoquevocêprecisaseacalmar.Parece
agitadodemais.—Vocêquebrouminhascostelas!—Sóumaouduas—brincouLuca,desdenhoso.—Oquevocêquer?AvozfalsamenteamigáveldeLucaeraaindamaisassustadoraqueseu
tomdeameaça.—Sóquerofalarcomvocêsobreumacoisa,podeser?EledeumaisumpassoàfrenteeRobbiecambaleouparatrás.—Nãoconheçovocê.Oqueagentepoderiaterparafalar?—Oseupainãotemumaempresademóveis?Robbiearregalouosolhos.—Comosabedisso?Lucadeumaisumpasso,diminuindooespaçoentreosdois.—Éumainformaçãopública,não?
—Achoquesim.—Evocêtrabalhaparaele,certo?Aessaaltura,eusóviaapartedetrásdacabeçadeLucaenquantoelese
aproximavadeRobbie,ignorandominhapresençaporcompleto.— Sim, trabalho — respondeu Robbie, parecendo um pouco mais
confiante.—Quebom.—Lucacruzouosbraços.—Vamosdeixarnossohistórico
deladoporumsegundo,certo?Oquepassou,passou,eachoquedevemosdeixarissoparatrás.Issonãoédaminhacontamesmo.Robbieassentiucomoumdaquelescachorroscomacabeçademolaem
painéisdecarro.—Estouprecisandodemóveisnovos,seéquevocêacredita.—Sério?—Eacheiquepodiacompensarnossoencontroinfelizdepoucotempo
atrás—LucaapontouparaorostomachucadodeRobbie,girandoodedoparaefeitodramático.—Lembradisso?—Si-sim.—Edisso?—Eleapontouparaascostelas.— Claro — sibilou Robbie, abraçando o corpo com os braços
rechonchudos.—Então,penseiqueparafazeraspazes,poderíamosfazerumnegócio.
Precisodebastantecoisa.Robbierelaxouosombros.—Nãosouumcaramau—continuouLuca,etiveaimpressãodevê-lo
sorrir; um eventomais raro que um eclipse solar.— Então por que nãoconversamossobreisso?— Agora? — Robbie levantou uma sobrancelha. — O filme já vai
recomeçar.Porquenãofalamossobreissoquandoeuestivernotrabalho?—Éurgente,entãovamosconversaragora.—LucasegurouRobbiepelo
pescoço.—Vamos.—Eleoafastoudoparque,indoemdireçãoàsárvores.—DêtchauzinhoparaGracewell—mandouLuca.—Elaficaaqui.Sentiotomdeavisoemsuaspalavras,masaovê-losdesapareceratrás
do trailer de tacos, dei de cara com um dilema inesperado.O filme estáprestesa começar, lembrei amimmesma,masmeuspésme levavamemdireção às árvores e não para onde Millie estava sentada, esperando—certamentejásempaciência—pelostacosqueagoraeunãotinhamaisamínimaintençãodecomprar.Omodo como Luca envolveu Robbie nos seus braços parecia que eles
eramquaseamigos, e euprecisavaadmitirquehavia algo inegavelmente
convincentenamaneiracomoelefalaracomRobbie.Aocontráriodomeuagressor,nãofuiburraosuficienteparacairnopapodele.Eusabia,maisdoquemuitagente,queLucanãoprecisavadeamigos.Oumóveis,aliás.Oquerquefosseaconteceremmeioàquelasárvores,dificilmenteseriaumatransação de negócios — pelo menos não para Robbie. Mas, como umcompleto idiota, ele deixouLuca guiá-lo para longe, e eunão tinha comonãoosseguir.Apressandoopassoparanãoperdê-losdevista,masmantendodistância
suficienteparaquenãomevissem,deiavoltanotrailerdetacosnahoraemqueofilmerecomeçou.Maisàfrente,viLucaeRobbiesumirematrásdeduasárvoresinclinadas.Eufizumanovaparadaeentãoseguiasvozesdosdoisnapontadospés,desviandodegravetosefolhassecas.Depoisdemuitosminutosmeesgueirando,aconversadeleschegouaté
mimatravésdeumapequenaclareira.Eleshaviamparadodeandar,entãoparei também. Pelo espaço entre as árvores, vi os dois parados um defrenteparaooutro;Robbie apertavaas costelas eLucaparecia relaxado,comasmãosaoladodocorpo.Chegueimaisperto.—Masacheiquevocêqueriafalarsobremóveis.—protestouRobbie.— Acabei de lembrar — respondeu Luca. — Não preciso de móvel
nenhum.—Entãoporqueestamos...OarfoitiradodospulmõesdeRobbieantesqueelepudesseterminara
frase.Observei,horrorizada,LucasocarabarrigadeRobbie, fazendocomquecaíssecurvadonochão.Eleroloudeladonaterraegemeu.—Estamosaqui,Robert,porqueouvioquevocêdisseparaaSophie.—
AvozdeLucaestavabizarramentecalma.ElepisounopédeRobbie,masaterraabafouseugrito.—Esetemumacoisaqueeuodeiosãopessoasqueempurram drogas para as outras. — Luca rondou Robbie, encobrindo-ocomsuasombra,eochutoucomforçanoombro.—Odeioespecialmentealguém que droga uma garota e tenta estuprá-la. — Ele ergueu o pé edepoischutoudenovoabarrigadele.Escuteiosomdealgosequebrando.Robbiegritou,comacaranaterra.Lucausouosapatoparavirá-lo.—Querdizer,jáeraruimosuficientequandopenseiquevocêestavasódandoemcima dela, mas agora? — Luca pisou nas costas de Robbie e ele ficoubalbuciando,orostocheiodeterraegrama.—Agoravocêéomaisbaixodossereshumanos.Vocêéaescóriahumana.Comecei a cambalear para frente, quase paralisada de medo, mas
determinada a fazer alguma coisa. Porém, minha tentativa de ajudar foi
frustradapelachegadadeoutrapessoa.— Levante! — berrou ele, e o som daquela voz me paralisou
completamente.—Nicoli,faleiparaficarlonge!MasNicnãoestavaprestandoatençãoemLuca;sequerolhavaparaele.
Nic olhava cheio de ódio para o corpo contorcido de Robbie enquantopartiaparacimadele.—Levante-se,Stenson!—gritouelecomumavozquaseirreconhecível;
límpidaecomumaraivaqueeununcatinhaouvidoantes.—Levante-seeolhenosmeusolhosouvouatéaíefurovocê!Devagar, Robbie se forçou a levantar do chão. Sustentou metade do
corpo junto a uma árvore, apoiando asmãos no tronco e comos joelhosdobradosàfrente.EletentavarespirarenquantoLucaseafastavadosdois,deixandoasmãosatrásdascostaseinclinandoacabeçacomoseassistisseaumshowdemarionetes.Tentei me mexer, mas não conseguia. Minhas pernas tremiam
intensamenteepreciseimeseguraraumaárvoreparanãocairdemedonochão.—Mandeivocêselevantar—repetiuNic,enfurecido.—Nicoli—avisouLuca,masnãosemexeu.—Cuidado.Gemendodedor,Robbieselevantoucomumacareta.—Minhascostelas—choramingouele.—Porfavor.Nicoagarroueo jogounotroncodaárvore,depoisapertouagarganta
deRobbie,cujorostocomeçavaasangrar.—Vocêachaaceitáveltocaremumapessoaquandonãoquersertocada?
Oqueestáachandodisso?—Eleaumentoua forçadoapertonopescoçogrossodeRobbie.—Nicoli—murmurouLuca.Eleseaproximouebotouamãonoombro
doirmão,comoumconselheiro.—Staiattento.—Oqueéisso?—balbuciouRobbiecomorostocomeçandoaficarroxo.
—Issoéuma...Em seguida, houve uma sequência confusa de movimentos, então
conseguiapenasentenderduascoisas.AprimeirafoiosurgimentodeumobjetodemetaljuntoàcabeçadeRobbie.Asegundafoiosomdeumclique.Eentão,comumarespostacalculada,escuteiNicconfirmartudoqueeu
játinhavisto:—Éumaarma,seuidiotademerda.Robbietentougritar,masNicenfioutãorapidamenteocanodaarmana
bocadelequeogritoficouengasgado.
—Escutebem,seulixohumano—rosnouNic.—Esteéoúltimoaviso.Vou ficardeolhoemvocê.Seeu ficarsabendoquevocêchegoupertodealgumtipodedrogadenovo,vocêvaimorrer.Sevocêtentardarqualquertipodedrogaparaumagarota,apedidodelaounão,vocêvaimorrer.E,sesequer tentar piscar para Sophie Gracewell de novo, vou arrancar seucoraçãoeenfiá-lonaporradasuagarganta.Estámeentendendo?Robbieassentiu.— A polícia talvez não tenha provas suficientes para condená-lo por
tentativadeestupro,maseutenho.Enãosoumuitofãdejulgamentocomjúri popular, Stenson. Então, aconselho você a aceitar esse último avisocomose fosseumpresentedeDeus.Mudesuavida.E se sequer suspiraralgosobreestaconversaparaapolícia,vailevarumtirodeumdosmeusirmãos antes mesmo de deitar para dormir. Pode ter certeza. — Nic seinclinoupara frentequaseemcâmera lenta.—Ouquemsabeeudevesseatiraremvocêagoramesmoefazerumfavoraomundo.Forceiminhas pernas fracas para frente, tentando impedir o que quer
queestivesseprestesaacontecer,masLucachegouantes.—Basta!—girou,afastandoamãodeNicdabocadeRobbie;Nicbaixou
o braço, mas não largou a arma e Luca não o obrigou a fazê-lo. Em vezdisso, só segurou o braço com o revólver para que não fosse usadonovamente. Permaneci imóvel onde estava, metade exposta, metadecoberta, observando a respiração arfante de Nic enquanto ele encaravaimpassívelorostoassustadodeRobbie.NicfinalmenteseafastoudeLucaeguardouaarmanacinturadojeans.
O movimento pareceu quase intuitivo, e fiquei me perguntando se eleestavaarmadonaúltimavezquetinhameabraçado.Elebalançouocabelo,deuumpassoparatrás,segurandoopeito,edeuascostasparaRobbie.—Luca,livre-sedeleantesqueeumudedeideia.OirmãomaisvelhoseadiantouedeuumtapinhanorostodeRobbie,em
umademonstraçãobizarradecamaradagem.—Entendeutudo,Robert?Robbieenxugouaslágrimasdorostocomascostasdamão.—Eupro-prometo—respondeuaossoluços.—Quebom.—LucalevantouobraçoeapontouatrásdeRobbie,parao
restante do parque.— Agora corra como se sua vida dependesse disso.Porqueéaverdade.EfoiexatamenteoqueRobbiefez.Semperdernemmaisumsegundo,ele
se lançou sem jeito por entre as árvores até que fosse apenas um pontomancandonaescuridão.Quandoosomdospassosdesiguaisdesapareceu
porcompleto,LucadesviouaatençãodasárvoreseseconcentrouemNic.— Eu falei para você ficar longe.— Ele parecia mais cansado do que
irritado,comoseestivesseacostumadoaessetipodecomportamento.— Você falou que ele tentou se aproveitar dela. Nãome falou que ele
tinhausadodrogas!—Eunãosabiadissonahora.Evocênãodeveriabisbilhotar.—Nãodeveriaesperarqueeunãomemetesse.—Seiunpazzo,Nicoli.—Destavezédiferente.—Vocêsempredizisso.—Masédiferente.—Elanãoésua.—Éminhafunçãoprotegê-la.—Vocêquasematouocara—sibilouLuca.—Elemerecia—rebateuNiccomtranquilidade,quasedeformanatural.— O que aconteceu com o plano de ficarmos quietos? Você podia ter
estragadotudo.Eeujádisse,nãoédasuaconta.—Elaédaminhaconta,porra!—Dequalquerjeito,elanãovaimaisquererternadacomvocêmesmo
—continuouLuca,despreocupado.Niclevantouacabeçacomumgolpe;osolhosagitados.—Porquenão?Sentimeucoraçãoseapertaremagoniaaoperceberoqueestavaprestes
aacontecer;eratardedemais,nãohavianadaafazer.Lucalevantouobraçoeapontoudiretamenteparamim.—Porqueelaestáparadabemali.Nic seguiu a direção apontada até seu olhar encontrar omeu e, assim
comonanoiteemquehaviadescobertomeunome,ohorrordistorceuseurosto. Ficamos ali, distantes, ambos de coração partido por motivosdiferentes.—Sophie...—sussurrouele,maseratardedemais.Eunãoconseguiafalar.Eusequerabriaabocadetãochocada.Comeceia
meafastar.Elecambaleouparafrente.—Deixeelair—aconselhouLuca.—Elaestáapavorada.Voltei tropeçando para a sombra das árvores. Minha retirada se
transformou em um impulso inconsequente. Corri em desespero peloparque,emdireçãoàtelabruxuleante.Quandopasseipeloúltimoconjuntodeárvores,deiavoltanotrailerdetacos,ondedeidecaracomMillie.
—Cuidado,Soph!—gritouelaenquantoeutropeçavaecaíanagrama,aoladodotacorecém-lançadoparalonge.Resmungando,elamelevantoudochão.—Ondevocêsemeteu?— Precisamos ir embora— expliquei, acelerando o passo.— Se você
soubesseoqueacabeidever...—Oqueestáacontecendo?—Vamos!—Puxeiminhaamigaemdireçãoaogramado.Guardeitodas
as nossas coisas de volta na bolsa, espiando toda hora as árvores,esperando o reaparecimento de Nic e Luca. — Explico tudo quandoestivermos longedaqui.—Esaícorrendodenovo,arrastandoMilliepelocaminho.— O que está acontecendo?— chiou ela entre um fôlego e outro. —
Estou.Muito.Fora.De.Forma.Pra.Isso.— Só vamos embora! — Guiei Millie pelo caminho de volta até
avistarmosaentradadoparque.Antesdepassarmos sobo arco, elaparoue apertouabarriga comose
tivesselevadoumsoconoestômago.—Pare—pediuela,ofegante.—Preciso.Deumminuto.—Podemoscontinuar,porfavor?—Achoque.Meuspés.Estãosangrando.—Elaretirouocabelodorosto,
que brilhava comuma camada de suor.—O que está acontecendo. Comvocê?Antesqueeupudesserelatartudoqueeutinhaacabadodetestemunhar,
alguémmeagarroupelobraço,afastando-medela.—Ei!—ProtesteiaoverNicmepuxandoparapertodele.—NempenseemdizernadaparaMillie—suplicouele,comavoz tão
baixaquesóeuouvi.Eleapertouasmãosemtornodosmeuspulsos.—Porfavor.Atrás de nós, Millie começava a perceber as manchas de suor que se
acumulavam sob os braços e o sangue que escorria entre as tiras dasandália.—Quenojo—reclamouela,atirando-senagrama,ofegante.—Nãopodecontrolaroquedigooudeixodedizerparaminhamelhor
amiga!—falei,furiosa,soltando-medele.—Vocêprometeu—disseele,comcalma.—Acheiquesignificavaalgo.—Prometiquandopenseiquevocêeraummembro inativodamáfia,o
que,óbvio,vocênãoé!Issoéoutrahistóriacompletamentediferente.Nãovoumantersegredonenhumsobreisso!—Sophie—disseele, irritado.—Realmenteprecisoquevocênãofale
nadasobreoqueacaboudever.Eupodiaversuairritaçãoaumentando.Agarreiacamisetadeleeopuxei
paraalateraldoarco.—Vocêmentiuparamim!Elelevantouasmãos,rendendo-se.— Não menti, Sophie. Eu só... deixei algumas coisas de fora. Posso
explicar.Euoempurrei.—Fezcomqueeuacreditassequevocêerabom!—Eusoubom!—Não, não é!— Voltei a empurrá-lo.—Me fez pensar que você era
inocente.Fezcomqueeuacreditassequevocênãofaziapartedetodaessamaluquicedemáfia!Comcautela,Nicretirouasmãosdopeito.—Eununcadisseisso.—Vocêtevebastantetempoparafalaraverdade.—Euqueriaestapeá-
lo.Usei todomeuautocontroleparamanterasmãos fechadasao ladodocorpo.—Eusei.—Masnãofalouaverdade.Resistênciaedeterminaçãochamuscavamnoolhardele.— Não tive tempo suficiente para explicar tudo. Mas não menti para
você.Tudoqueeudisseéverdade,sónãodojeitoquevocêinterpretou.—Pergunteisevocêmachucavaaspessoas!Vocêdissequenão!Eleseaproximou.—Eudisse que não era como você pensava. E não é. Tudo o que faço
envolveproteção.—Proteção—ironizei.—Éoquedizparavocêmesmoquandobotasua
armanabocadealguém?Elemepuxouparasi.—Presteatenção.—Não—implorei,sentindoaslágrimasseformarematrásdosolhos.—
Estoucommedodevocê.Eleseencolheucomoseeudefatotivessebatidonoseurosto.—Eudissequenuncavoumachucarvocê.—Comopossotercerteza?Elemeencaroutãofirmequequaseperdiarespiraçãoe,depoisdeum
momentoangustiante,respondeucalmamente.—Porquevocêéumapessoaboa.
Olheifuriosamenteparaele.—Umdenósprecisaser!—Eutambémsouumaboapessoa.—AcaboudebotarumaarmanabocadeRobbieStenson—rosnei.—Sintomuitoquetenhavistoaquilo,masfoiinevitável.—Comoumataquedaquelepodeserinevitável?Seusolhosescureceram,maselenãorespondeu.— Não é possível que não saiba que fez algo inaceitável. Preciso dar
queixanapolícia.—Sophie,fizaquiloporvocê.Comoeupodiadeixá-loimpunedepoisde
terdescobertooqueeletentoufazercomvocê?Eumeafasteidenovodele.—Estálouco,Nic?Sabequenãopodesairporaíbotandoarmasnacara
daspessoasporminhacausa.Seicuidardemimmesma!Eleapertouonarizesuspirou.—Aquilofoiumfavorparaasociedade.Stensonéotipodesujeitoque
nãovaiparardepoisdeumagarotasó.Fiztudoquepodia,excetoexplodiracabeçadele.Fiqueisemar.—Dáparasermenosexplícito?Elepassouamãopelocabelo.—Desculpe.—Nãoachoqueestejaarrependido.Elenãoolhavamaisparamimeeusabiaquetinharazão.Elenãoestava
arrependido;estavaarrependidodeeutervistoacena.—Sei quenão tenhoodireitodepedir algopara você—disse ele—,
mas,porfavor,nãoconteparaninguémoqueviu.Vaitrazerproblemas.—Nãobrinca.Fuitestemunhadeumcrime.Emesmoqueavítimaseja
alguémqueodeio,aindaassimnãoécerto.Nãovouguardarseusegredo.Nãosereisuacúmplice.— Entãome deixe explicar pelo menos.— Ele segurouminhasmãos,
fechando os dedos em volta delas antes que eu pudesse afastá-las. —Sophie, vou quebrar a promessa. Vou contar o máximo que puder —sussurrouele,nervoso.—Precisoqueentendaquemeusou.Porfavor,medêachancedecontartudoavocê.—Étardedemais—falei,masminhacertezaeratãofracaquantominha
voz.Elelevouminhamãoatéseucoraçãoesentiasbatidasnopeitodele.— Não sou uma pessoa ruim. Admito que menti ao deixar que
acreditassenoquequisesse.Precisavaquevocêsesentissefelizeseguraenãoqueriaacabarcomessasensaçãodepoisdetudoquedescobriusobrenossospais.Não tenhovergonhadequemsououdeondevenho,maseuestavacommedodequevocêdescobrissetudoenãomedesseachancedeajudá-la a ver o que realmente significa. Tive pânico de que a verdademudasseamaneiracomomevê.Masvocêmerecetertudo,edareitudosevocêdeixar.Minhacertezaestavasendodestruídaenósdoissabíamosdisso.Afastei
minhasmãoseascruzei.Eusabiaquedeveriamexistirmaisexplicações,masnãoacheiqueeleadmitiriade forma tão fácilapósmentirparamimpor tanto tempo.Dessa vez, ele estavame convencendo—com todososargumentoscertos.Euestavanamãodele.Odiavaasensaçãoe,aomesmotempo,ansiavaporela.—Vocêtemumachance.
CAPÍTULOVINTEEDOIS
AVOCAÇÃOFALCONE
Nicmeofereceucaronadoparqueatésuacasa,maspreferi irapécomMillie.— Ah, uma briguinha de casal — deduziu ela no caminho para casa.
Millie não estava completamente errada, mas também não estavacompletamentecerta.NãoconteiaverdadesobreabrigaemRayfieldParkpelo mesmo motivo que não havia contado que iria para a casa de Nicdepois que seguíssemos caminhos diferentes na avenida Shrewsbury. Eunão estava pronta para processar a história toda e, até lá, queria mecertificardequeelaestariasegura.Quantomenoselasoubesse,melhor.Quandovireinaentradadoportão,Nicjáesperavapormimnaportade
casa.—Vocêveio.Eumeaproximeiemsilêncio.Eleseencostounaportaabertaparaque
eu pudesse passar. Tentei não prestar atenção quando encostei nele aoentrar,maspudeverareaçãoemseurosto.A parte da frente da casa era completamente diferente da cozinha
modernanapartedetrás.Euestavaimersanocenáriodetodasashistóriasde terror que já tinham me contado, e era exatamente como na minhaimaginação.Notetoalto,aindacobertodeteiasdearanha,haviaumlustredecristal.
As tábuas de madeira no chão do grande foyer eram desbotadas edesniveladas,eestalavamcomcadapasso.Àfrente,umagrandeescadaria
cobertaporumgrossotapetevermelhoviravademaneirabruscaàdireitaparaosegundoandar,eopapeldeparededealtorelevosedescolavadasparedesemfiaposmaltrapilhos.Ocorredorseguiaàesquerdadaescadaria,levandoauma fileirade cômodos fechados compequenasportas.O ladodireito se destacava pelas novas portas enormes envernizadas compuxadoresgrossosdemetaldourado.— Sophie? — Virei e encontrei Nic, me olhando com antecipação. —
Podeviraquicomigo?—Elemeguiouatéumagrandesala,ondedoissofásvermelhosdecourocontornavamumaimponentelareira.EumesenteiemumdossofáseNicescolheuooutro.Percebi,semuma
gota de surpresa, que não havia uma TV, apenas um descanso de couropara pés, um relógio antigo sobre a imponente lareira e uma estanteembutida que ocupava inteiramente a outra parede. Era abarrotada deDickens,Defoe,Twain,Swiftedetodososoutrosgrandeseintimidadoresautores. Acima da lareira, uma pintura a óleo dominava o ambiente. Erauma espécie de anjo vingador representado com uma vastidão de coresescuraseemolduradoemourovelho.Ocupavaalargurainteiradalareira.—EsseaíéumadasdoValentino—disseNic,seguindomeuolhar.—Éincrível.—Émeiodramática.Dramática. Minhamemória trouxe à tona a imagem de Nic apontando
umaarmaparaacabeçadeRobbieStenson.—Bem,pelomenoselegastaotempodelecomboascriaçõesartísticas.Nicpigarreou,constrangido.—Bem,estouaqui—falei,concentrandomeuspensamentosnoqueeu
precisavasaber.—Comeceafalar.Elesedebruçounobraçodosofáemeencaroucomseusolhosescuros.—Oquevoucontarparavocênãoéparaosfracos—disseele.—Não
debato sobre minha família com frequência e preciso saber que não vaiusarnadadissocontramim.Contranós.Hesiteieeleinterrompeumeusilêncio.—Quandotudofordito,nãopodereivoltaratráseissojáéumriscopor
sisó.Penseilongamentesobreoqueeledisse,ponderandodeverdadeoque
mepediaeoquemeofereciaemtroca:acompletaverdade.EunãoqueriatrairaconfiançadeNic,mastinhamedodeprometermeusilênciocasooqueelemecontassefosseassustadordemais.Maseuprecisavasaber.Elequeriacompartilharsuahistória,queriaconfiaremmime,apesardetudo,eutambémqueriaconfiarnele.
—OK—falei.—Prometo.—Nãovoufalartudo.Nãoposso.—Sóprecisodosuficienteparaentender,Nic.Eleme observou pormais um instante, como se tentasse ler algo nos
meus olhos. E então ele se acomodou e suspirou, rendendo-se, enfim,depoisdetodoaqueletempo.— Sophie, minha família e eu estamos no negócio da proteção. E isso
quer dizer que às vezes precisamos machucar pessoas, e outras vezesprecisamosmatá-las.E ali estava— finalmentedito.Meumedo inconfessohavia se tornado
realidade.Tal pai, tal filho:Nic tambémeraum “Faz-anjos”. Cobri a bocacom a mão e me concentrei em tentar tranquilizar a respiração. Eu nãoconseguiafalar.Estavaenjoada.—Me deixe explicar— continuou Nic. Ele estendeu amão paramim,
mas me encolhi e ele desistiu. E então soltou uma nova bomba. — Sóperseguimospessoasquemerecemmorrer.Olheiparaele,boquiaberta.—Issoéumaespéciedepiadadoentia?—Foioqueconseguidizercom
abocaaindatapada.—Porquenãoéengraçado.Eleficouapenasmeolhando—defendendooargumentomaisloucoque
eujátinhaouvidodasuaboca.— Está querendo dizer que persegue gente como Robbie Stenson?—
pergunteirapidamente.Eleassentiu,calmo.Calmodemais.—VocêteriamatadoRobbieseLucanãoestivesseláparaimpedir?Elenãoesperouumsegundopararesponder.—Semhesitar.Penseiemmelevantar,bateraportaecorreromaislongepossível.Mas
não levantei, não consegui — não quando ainda restavam coisas adescobrir.—Nãopercebeoquantoissoélouco?Dessavez,Nicdesviouoolharcomumacareta.—Elemereciacoisapior...SeLucanãoestivesselá...—Vocêprovavelmenteestarianacadeia—completei,friamente.—Eeleasetepalmosdaterra.Baixeiasmãosesegureiocourodosofáparacontrolararaiva.— É para isso que serve a polícia, Nic. Não cabe a cidadãos comuns
armadoscomovocêeLuca.Um abismo se criou entre nós. Olhei para meu colo e a amargura me
apertouagarganta.EmboraNicnãomedevessenada,eumesentiatraída,feridapelasuaverdadeirarealidadeeassustadapelossentimentosqueeuaindatinhaporele,apesardetudoisso.Penseimaisumavezemirembora.Comosesentissemeuincômodo,ele
se sentou ao meu lado no sofá, tocando minha coxa descoberta com aperna,emesentienergizadapelaproximidade.Eleapoiouoscotovelosnosjoelhosesevirou,deixando-meapenascomapaixãonavozeobrilhodosseusolhos.— Então você acha que Robbie Stenson desistiria de machucar outra
pessoa só porque não conseguiu fazer o que queria com você? —perguntouele,docilmente.—Porqueeuachoquenão.Alguémprecisavabotá-lonolugarantesquetentassefazercomoutrapessoaoquefezcomvocê. Uma pessoa que poderia não ter tanta sorte. É isso que fazemos,Sophie.—Oquequerdizercoméotipodecoisaquevocêsfazem?—perguntei.
— Está tentando me dizer que sua família é uma espécie de esquadrãomoralistadajustiça?Inesperadamente, Nic riu; uma reação estranha e imprópria e me fez
questionarcomoeleconseguiasertãodespreocupadocomnossaconversa.— Quando decidimos combater um problema, não agimos dentro dos
limites da lei. Para nós, é muito simples. Existe todo um submundo docrime que não pode ser controlado pela polícia. Criminosos que nãopensamduasvezesantesdemataremalguémqueatrapalheseusganhos;otipodegentequetemmaisadvogadosejuízessobasasasdoquedinheironobanco.Elesnãoseguemasregras.Sãocomessascoisasquelidamos.Apoieiascostasnosofá,sucumbindoaopesodetudoqueelemepedia
paracompreender.—Masporqueprecisacaçarqualquertipodepessoa?Oqueissotema
vercomvocês?Nic baixou a voz e falou com calma, como se revelasse um terrível
segredo:—Temtudoavercomagente,Sophie.Estáemnossosangue.—Domesmojeitoquecomandara lanchoneteestánomeusangue?—
Euteriaridosenãoestivessetãohorrorizada.—Maisoumenos.—Nicsorriu.—MinhafamíliavemdaSicília.Desdeo
início,cadaumdenósjánasceudentrodamáfia.Nãoforamintroduzidos.Nasceramnela.Paranós,nãoexisteumaescolha,umaalternativadevida.Senti umapontada de dúvida. Isso queria dizer que ele estava preso a
essetipodevida?SerumFalconesignificavanascerdestinadoamatar,do
mesmojeitoqueserumGracewellsignificavaserpéssimoemmatemática?Comoissoerapossível?Eleprosseguiu,inabaladocommeusilêncio.—AstradiçõesdosFalconesãoexclusivas,nossasociedadeéligadapelo
sangueenossasaçõessãofrutodehonraesolidariedade.Estamosnaterrapara fazerdomundoum lugarmelhor.Damos tudopela famíliae, assim,damostudopelaprocuradobem.—É tudomuito poético— falei após ummomento de ponderação.—
Masquandovaicomeçaraexplicarapartesobrematargente?— Agora. — Nic reagiu com uma calma pavorosa. Ele sequer piscou,
apenasrepousouamãonaminhaeentrelaçounossosdedossobreojoelhodele.Deixeiquefizesseisso.Nãosabiaporque,masestavatentandovê-locomoumprodutoda suaancestralidadee criação, enão tinha certeza sedevia puni-lo antes que entendesse o significado disso. Mal sabia se eucorriaperigoounãoporestarali,masmesenticonfortadapelotoquedelee,apesardetodosossinaisparacorrer,fiqueiali.— Na Sicília, a máfia surgiu da necessidade de proteger os cidadãos
locais. Não era como é hoje em dia, com famílias diferentes comandadaspor códigos de conduta cruéis e esquemas ilegais de dinheiro. A máfiaoriginal, La Cosa Nostra, era diferente. — A voz dele ficou melancólica,comose lembrassedealgodeque tinha feitoparteumdia.Talvezele sesentisse assim.—Depois que a Itália anexou a Sicília a seu território noséculoXIX,asterrasforamtiradasdaIgrejaedoEstadoedadasacidadãoscomuns.“Ocomérciocresceu,assimcomoocomercialismoe,comisso,surgiuo
ladofeiodeganhardinheiro:ganância,crime,assassinato.Nãoexistiaumaforçapolicialdeverdade.Os locaisnão tinhamninguémparaprotegerascasas,osnegócios,atémesmoosfamiliares,entãoforamprocurarissoemoutro lugar. Meu avô dizia que foi um simples exemplo de oferta edemanda.Primeiro,pequenosgruposdehomenscomeçaramasurgirportodaSicília;emtrocadedinheiro,elesgarantiamasegurançamatandoosqueameaçavamapaz.Anotíciaseespalhoue,depoisdeumtempo,essesgrupos passarama ser contratados por famíliasmais ricas para executarvinganças pessoais, as famosas vendetas, ou para garantir proteçãoadicional.”— Então, esses tais grupos, os primeiros membros da máfia, eram
apenasumaformadeleiautorregulamentada?—perguntei.Éfamiliar.— E foi esse o problema — respondeu Nic. — Sem lei, além da sua
própria,amaiorianãoresistiuàtentação;algumasorganizaçõesseviraram
contra quem protegiam, caindo na violência banal, extorsão, lavagem dedinheiroenocrimeorganizado.Tudoaquiloquerepresentaa infâmiadamáfianosdiasdehoje.“Depois disso, muitos deles que haviam se tornado grandes famílias a
custadoprópriotrabalho,imigraramparaosEstadosUnidos.AfamíliadomeuavôfoiumadasprimeirasaimigrarnoiníciodoséculoXX.—Nicfezumapausaantesdecontinuar,refletindoumacertezasilenciosa.—MasosFalconenuncaescolheramocaminhodacorrupçãodequemestavaàsuavolta,nemnaSicílianemaqui.Sempretentamosprotegeraquelesquenãopodemprotegerasimesmos,eficardoladocertoentreocertoeerrado.E,àsvezes,acoisacertaématarumhomemdotipoerrado.”Derepente,elepareciabemmaisvelho.Partedemimqueriachorarpor
eleepelainocênciaquenuncahaviaexperimentadodeverdade,masoutrapartequeriasacudi-loegritarcomeleporsertão idiota,pornãoversuavocaçãocomoeuvia—umdesejoinsanodemorte.—Sobreoqueestápensando?—perguntouele.Balanceiacabeça.—Quevocêpodemorrer com17anosporqueviveatrásdevinganças
quenemsãosuaseaindanãoconsigoentendermuitobemomotivo.— É meu trabalho — disse ele, simplesmente. E então vieram cinco
palavrashorríveis:—Souummatadordecarreira.Perdiacapacidadedepiscar.Derepentenãohaviaespaçosuficientenos
meuspulmõesparaenchê-loscomoarqueprecisavapararespirar.Seeutivesse lembradodealgumpalavrãonaquelemomento, teriausado todosaomesmotempo.Nicapenasesperou,comeducação,enquantoeuligavaapalavra“matador”aumgarotode17anoscomlindosolhoscastanhoseumsorrisoespontâneo.— Quantas? — balbuciei, enquanto os números giravam na minha
mente;cincopessoas?Dez?Cinquenta?Elemeolhouconfuso,maseusabiaqueeletinhaentendido.Simplifiquei.—Quantaspessoasvocêjámatou?—Nãosei.—Mentira.— Chute— exigi, mas minha voz falhou. Eu realmente queria saber?
Seriapiorqueminhasdeduções?— Não foram muitas. — Os olhos de Nic aumentaram e me peguei
reparandonospontosdouradosdentrodeles.Eumeconcentreidenovo.Eunãoiadeixarqueocharmedeleosalvasse
dessa.—Qualquernúmeroacimadezeroé“muito”.
Nicteveobomsensodedesviaroolhar,mesmoqueestivessefingindoavergonhaquedeveriasentir.—Então,quantasforam?—insisti.—Nãopossofalarsobreisso,Sophie.Podemecausarproblemas—disse
ele,quaseimplorando.—Apenassaibaqueelaserampessoasruins.BempioresdoqueStenson.Eéomeutrabalho.—Comopodeserseutrabalho?—Finalmentedisse,emboratenhasaído
comumavozagudadedoerosouvidos.—Nãopoderiasernenhumoutro.—Poderiasermuitascoisas,Nic!—Euestavagritandosemquerer.—
Poderiaserprofessor,médico,vendedor,pescador,contador...—Sophie—interrompeuNiccomgentileza.—Tenteseacalmar...Eumeobrigueiaficarcaladaatécontrolarahisteria.Quandoenfimme
acalmei,admiti:—Estoucommedo.— Eu disse que jamais machucaria você — afirmou ele, com
tranquilidade.—Ésóumtrabalho.—Não—falei,balançandoacabeça.—Comopoderiaser?— Os Falcone são uma das linhagensmais respeitadas e honradas na
máfiaamericana.Asoutrasfamíliassemprenosprocuram,porummotivoou outro, e nós sempre ajudamos. Essa tem sido a nossa vocação nosubmundo.Eécomooperamosdentrodaomertà.—Aúltimapalavrasaiucomnaturalidadedasuaboca.—Oqueéomertà?—Minhalíngualutoucontraapronúncia.Nicsorriudaminhatentativadesastrosa.—Éumcódigodesilêncio.Nossogruponãofalacomalei,masfalamos
entre nós e é assim que fazemos as coisas. Amaneira como resolvemoscertos...problemas.—Querdizerpessoas—apontei.—Pessoas—confirmouele.— Então a sua família é uma espécie de divisão especial damáfia?—
deduzi.Elepensouporumminutoantesdeabrirumsorrisosuave.—Achoqueviramosisso.Nossaparteseencarregadepessoasquenão
deveriam estar vendendo drogas nas ruas, ou traficando, ou matandoinocentes...—Eleengrossouavoz.—Cuidamosdaescória.Elemeobservouatentamenteenquantoeucomeçavaa juntaraspeças
para visualizar o cenário que ele descrevia. A família dele feria ematavapessoascujoobjetivodevidaeraferirematarinocentes.Eraseutrabalho,
maseramaisdoqueisso:eraseulegado.Mascomoelejustificavaissoparasimesmoecomoeupoderiaexplicarsuacompreensãodissotudo?Pensarque eu estava sentada ao lado de ummatadorme deixou tonta e, aindaassim,quandoolheiparaNic,nãosentimedo,senti...confusão.—Evocêssãopagosparafazerisso?—Sim,somos.—Poroutrasfamíliasdamáfia?—Sim.—Generosamente,imagino.— Isso não importa. — Ele tinha razão, a resposta não importava. A
mansãofalavaporsisó.—Espere.—Haviaalgofaltandonaexplicaçãodele.—Masosmembros
damáfiatambéminfringemalei,certo?Seiquenãovivemexatamentedeacordocomasleis.Ouvifalaremcabeçasdecavaloeassassinatossecretose lavagem de dinheiro e rixas familiares pesadas... — Interrompi meuraciocínio,esperandoqueNicnãonotassequeeuacabeidecitarummontede coisas que eu tinha visto em filmes nos últimos anos. Afinal, aquelashistóriasdevemtervindodealgumlugar.Elesuspirou.—Sim,asfamíliasnãosãoexatamenteangelicais.— Então como eles protegem vocês se precisam caçar, pelo menos,
algunsdeles?Nicmeolhoucomoseeutivessesubitamentecriadochifres.— Sophie— disse ele, ofendido. — Jamais perseguimos membros da
nossaprópriacultura,nãoimportaoquefaçam.Derepenteeuestavadevoltaaomeupróprioplaneta,vendo-odelonge
eresistindoàvontadedesacudi-loatéaburricesairdele.—Issoéumapiada?—Não.Eumesenteisobreasminhaspernasparaficarmaisaltadoqueeleno
sofá.—Entãoapenasperseguemcriminososcomunsdodiaadia?Enenhum
doseulado?— Não podemos— disse ele, olhando-me de baixo com seus grossos
cíliospretos.—Porquenão?—Porque senão estaríamos todosmortos a essa altura.—Ele foi tão
enfáticoquefiqueimenossurpresadoquedeveria.—Masasfamíliasdamáfianãobrigamentresitodahora?—Maisuma
afirmação tirada do cinema, mas tinha a impressão de que estava certasobreisso.—Sim,masnãocomagente.Somosintocáveis.—Porquenamaiorpartedotempoestáfazendootrabalhosujoporeles,
certo? Você presta um serviço e em troca mantém essa vida de luxo—retruquei.—Issoétãoerrado.Nicseendireitounosofá,deixando-noscomamesmaalturanovamente.—Eliminamosapiorespéciedanossasociedade.Nãovêisso?Balanceiacabeça.Comoelepodiasertãoingênuo?—Estáapenaseliminandoaconcorrência,Nic.Amáfiaaindaassimpode
fazeroquequiser.—Éumserviçoàsociedade.—Serviçobemseletivo.—Melhordoquenãofazernada.— Você não se incomoda? Não pensa em como isso é hipócrita?
Assassinos que pagam você para assassinar outros assassinos?—Minhacabeçaestavacomeçandoagirardenovo.—Tentonãopensarmuitonisso.—Poisdeveria.—Como assim?—perguntou ele, ferido.— Já parou para pensar que
todaminha famíliavaiparao infernopor fazerChicagoum lugarmelhorparavocêmorar?Jáparouparapensarquenãoimportaquantaliberdadeeproteção nós temos, continuamos de mãos atadas por outros em nossacultura?—Sim!—supliquei.—Pensenisso!— Sophie, não há nada que eu possa fazer! — A voz dele se tornou
raivosa.— Issoéaminhavida.É tudoquesemprevivi.Éoqueconheçocomocerto.Étudooqueconheço.Boteiasmãosnocoloemereclineiparatrás,reconhecendoquelutava
umabatalhaperdida.—Nãodeveriasertudoounada.—Eusei—cedeuele,exausto.—Masoquepossofazer?—Podeirembora.—Aúnicaformadelargaresseestilodevidaéemumcaixão—concluiu
eledeformaassustadora.Osilênciorecaiusobrenós.Partedemimcompreendia.Euqueriachorar
por ele e pelo futuro ao qual estava preso, mas não chorei. Estavaanestesiadademais, assustadademais para considerar a possibilidadedeque talvez Nic não quisesse largar seu estilo de vida, de que gostava de
puniraspessoas,deassisti-lastremendoe implorandoporperdãodiantedele.Fiqueiolhandoparaminhasunhasenquantoeleolhavaparamim.—Ésuicídio—balbuciei.Nicserecostouesorriu,eporumsegundoaparentouseroadolescente
quedeveriaser.Felizedespreocupadoenãosombrioeduro.—Meus irmãoseeu fomos treinadosparaesse tipodevidadesdeque
aprendemos a andar — disse ele. — Sabemos ler um ambiente comoninguém. Sabemos como quebrar o pescoço de alguém de dez formasdiferentes. Temos o conhecimento para nos infiltrarmos em gangues e ahabilidadedeatirarnolíderacempassosdedistância.—Pareciaqueeleestava citandoa listadehabilidadesbásicasdocurrículoenão relatandoatividadesmafiosasespeciais.—Vocêrespondeaochefedasuafamília?—perguntei.—Sim—disseNic lentamente,comosecomeçasseaperceberalgo.—
Seguimosasinstruçõesdele.—Quemé?Elebalançouacabeçacomosesaíssedeumtranse.—Sophie.—Elehesitou.—Eujáfaleidemais.Meempolguei...Sempre
façoissocomvocê...—Eleseinterrompeu.—Vocêpoderiaacabarcomigo.—Nãovou—respondi,automaticamente.Eunemhaviapensadonisso,
masmeucoraçãojátinhaaresposta.Apesardetudo,eunãoqueriadestruí-lo. Ele já estava sendo destruído pelas pessoas à volta dele. Pela própriafamília.Seaomenosvisseisso,talvezeupudesseconvencê-lo.—Nãopossofalarmaisnada—disseele.Nãofaziadiferença;eujásabiaquemeraochefe.Comoopaidelespodeterautorizadoissoquandoestavavivo?Certavez,
meupaimeviubrincandode fumarumcigarrode chocolateequasemedeixoudecastigo.MasopaideNicprovavelmentehaviadadoaprimeiraarma comoumpresente para ele, e o ensinou a carregá-la, apontá-la e amatarcomela.EagoraeraFelice?Certamenteeradaresponsabilidadedelecuidardosgarotos,nãousá-losparamatarpessoas.Deixei meu corpo cair no encosto do sofá, sentindo uma exaustão
repentina.—Nãoprecisadizermaisnada—falei,comgentileza.Nicse inclinouparabaixodeixandonossosnarizesalinhadosenquanto
eleolhavaparamim.—Estácommedo,Sophie?Fizoquepudeparaignorarnossaproximidade.—Nãosei.
—Nãosaiucorrendo.—Aindanão.Eleabriuumlevesorriso.Estavacomeçandoamesentirintoxicadadenovo;tontadedesejo.— Você faz coisas ruins. — Lembrei a mim mesma em voz alta,
cometendo o erro de encará-lo. Quantas pessoas passaram seus últimossegundosnaterraolhandoparaaquelesolhos?—Sóàsvezes—disseele,calmamente.—Precisalevarissotudotãonaboa?—Nãome sintomal com o que faço.— Ele passou o dedo pelomeu
pescoçoesentiumarrepionacoluna.Quantospescoçoseletinhaquebradocomaquelesdedos?—Masmesintomalporvocênãogostardessapartedemim,poisessaparteéquasetudoquesou,Sophie.—Mastemtantabondadeemvocê,Nic—sussurrei.—Bondadepelaspessoascertas.—Eleobservoumeuslábiosenquanto
passavaosdedosneles.—Porpessoascomovocê.Sentiumacorrentefamiliar.Nãosedistraia.Ondeestavatudoaquiloque
euqueriadizer?Derepente,nãomelembravadenada.—Nãodeveriadesobedeceràlei.Elepuxoumeuqueixoparapertoepassouonariznomeu.—Eusei—murmuroucontrameuslábios.Arespiraçãodeleestavatão
irregular quanto a minha.— Bella mia — gemeu suavemente na minhabocaefoisuficienteparaqueminhadeterminaçãofossepelosares.Dessa vez, o beijo foimais intensodoque o anterior.Nic enganchou a
mãoemmeucabelo,puxando-meparasieencaixandonossoscorpos.Elearrastouabocanaminhapele,inebriando-mecomseusbeijos.—Édifícildemaisficarlongedevocê—gemeueleparameupescoço.—
Nãoqueromaisserbonzinho.—Entãonãosejamais—falei,agarrando-ocommaisforçaesentindoos
músculos das costas dele tensionados sobmeus dedos. Cuidadosamente,ele deitou minha cabeça para trás e encontrou minha boca de novo,separandomeuslábioscomsualínguaenquantomedeitavanosofácomasmãossobminhascostas.Quandoaportadafrenteseescancarou, fazendotremerosofádebaixo
de nós, fomos jogados de volta à realidade com um choque. Levantei atempodeveroolharaterrorizadodeNic.Elepuloudepécombochechasaindavermelhaseosolhosatentos.
CAPÍTULOVINTEETRÊS
OBRAÇODIREITO
Lucaentrouàspressasnasala.—Nic,vocêtevenotíciasdoVal...Masquemerdaelaestáfazendoaqui?—Otomdafraseficoudrasticamenteagudodametadeparaofinal.Nicposicionouocorpodeformaprotetoraàfrentedomeuelevantouas
mãos,comoseLucafosseumpolicialcapazdemeatacarearrancarminhacabeçafora.Eleparouànossa frente.Seuolhareraumamisturade fúriaechoque,
mashaviaalgoamaisquenãoidentificava.—Nic,vouarrancarseucoraçãoefazervocêcomê-lo,seuidiota...—Ele
continuoua frasecomapiorcombinaçãodexingamentosqueeu já tinhaouvidodeumasóvez.Nicpuloudepéeenfrentouoirmão.—Euprecisavaexplicaroqueelaviu.OsolhosazuisprofundosdeLucairradiavamódio.—Eachoumelhortrazê-laaqui?Niccerrouospunhos.—Nãocomece.Sentindoqueestavaperigosamentepertodeperderocontrole,levanteie
empurrei Luca para fora do caminho. Não sabia lidar com a ideia de serplateia de uma conversa que, com certeza, eu não entenderia, mas queaindaassimmeenvolveriaosuficienteparaficarcheiadedúvidas.Eunãodeveria estar ali com eles de qualquer forma e, agora queminha clareza
mentalhaviaretornado,fariausodela.—Voudaroforadaqui.Nicestendeuobraçoparamim,masLucadeuumtapanamãodele.—Deixeelair—avisouele.—Anãoserqueprefirapiorartudo.Nic não protestou e me perguntei qual seria o motivo. Eu me afastei,
passandopelocorpoenrijecidodeLucasemolharnovamenteparanenhumdosdois,ebatiaportadacasacomoumademonstraçãodehostilidade.Enquanto eu atravessava o chão de cascalho da entrada,minhamente
era inundadaporperguntassobrecomoeupodiaestardevoltaàmesmasituação. Eumal havia começado a esquecer e agorame via de volta aopontoinicial,confusaeabandonadaporummafiosoquemefaziatãobemquantoumaseringacheiadeveneno.Comeceiacorrer,derrapandonocascalho,masnãochegueimuitolonge
antes de algo agarrar meu braço e me jogar sem a menor preocupaçãocontraaposturaobstinadadaúltimapessoaquedesejavaver.EumesolteidopeitodeLuca,ondehaviaaterrissado.Eleagarroumeus
ombrosemeempurrouatéaparededepedranofinaldaentradadecarros,imprensada entre as mãos dele, como da outra vez. O rosto de Luca foitomadoporsuajáfamiliarraivaselvagem.—Acheiquetinhaditoquenuncamaisqueriavervocênaminhacasa.—
Ele estava tão próximo que eu podia ver uma pequena cicatriz brancaacimadoseulábio.Passouporminhacabeça,deformabemimprópria,queeu provavelmente era uma das poucas pessoas vivas que sabiam daexistênciadacicatriz.Assopreiumamechasoltada frentedosmeusolhos,acertandoosdele
semquerer.Comoagorajásabiaquenãomachucariaumagarotainocente,sentiumagotaamaisdeconfiançaparafalarcomele.—Nicmeconvidou.—Nãome importaseoPapativesseconvidadovocê.Nãoébem-vinda
aqui.—Bem,aviseissoaoseuirmão.Nãorespeitosuaautoridade.Minharespostaoprovocouepudeversurgiremduasentradasnassuas
sobrancelhas.—Sabequenãopodeficarcomele.—Euconsigolidarcomisso.—Nãoconsegue,não.—Seiquevocênãovaimemachucar.Os olhos de Luca sinalizaram algo, mas quando voltou a falar, estava
calmo—quasegentil.
—Issonãoquerdizerquevocênãovásemachucar.—Eleapertouosolhos,frustradoe,quandoosabriunovamente,estavamemchamas.—Medigaoqueeuprecisofazerparamelivrardevocê,jáquelembrarocrimedoseupainãoajudoumuito!Empineionarizememantiveséria.—DigaoqueestãofazendoemCedarHill.Lucameobservoucauteloso,hesitando,eentãodisse:—Não.—Entãoachoquevouficarporaquimesmo.—Eunãofariaissosefossevocê.—Oquevai fazer,Luca?—Cerreiospunhosao ladodo corpo.—Vai
botarumaarmanaminhacara?—Sefornecessário.—Quanta coragem!—explodi.Estávamos tãopróximosagora.—Não
podeusarpalavras,masvaificarsuperfelizdeusarumaarma.—Nãovouseroresponsávelpordestruirsuainocência!Inclineiacabeçanadireçãodeleparaquesoubessequenãoestavacom
medonemeratãoinocentequantoeleimaginava.—Váemfrente—sussurrei.—Podedestruir.—Nossosrostosestavam
colados.—Quasefuncionoudaoutravez,quandofalousobremeupai.—Nãoimporta—respondeuele,resoluto.—Nãovouserocaraquedá
umsoconacaradoBambi.Levanteiavozdenovo.—EntãomedizoquevocêsestãofazendoemCedarHill!Luca moveu seu olhar impassível dos meus olhos para minha boca e
afastouqualquerpensamentoqueestivesseseformandonasuacabeça.—Não—disseelecomcalma.Empurreiopeitodele,afastando-odemim.— Sei que são damáfia. Se acha que não consigo lidar com isso, está
errado.Ele balançou a cabeça, incrédulo, a voz pulsava comumnível de raiva
muitosuperioraomeu.—Claroqueelecontouparavocê.Aqueleidiota.Evocêaindaestáaqui,o
quenãotefazmuitomaisinteligentedoqueele.Encarei-ofuriosa.—Seiquevocêsnãomachucampessoasinocentes.Sãotodoscheiosde
“honra” e “moral”... por mais distorcido que isso seja — acrescentei,venenosamente.Ele se afastou e não conseguia mais ler sua expressão. Houve um
momentodesilêncioeentão,comumavozfriaecalculada,eledisse:—Evingança.—Oquê?Elesemicerrouosolhos.—Esqueceudefalardevingança.—Oquetemavingança?—Estremeci,lembrando-medomeupai.Edo
paidele.Nossohistórico.OsorrisodeLucaacentuouoscontornosdoseurosto.— Ah, Nicoli não contou essa parte? Faz sentido que ele tenha sido
seletivo.Mordi o lábio, procurando dentro de mim pela força que eu tinha
acabadodereunir,masquegasteitodagritandonacaradele.—Eledissequevocêsnãosãoiguaisàsoutrasfamílias.—Sim.—Lucapermaneceuperfeitamenteimóvelemeobservoucomo
um gavião rondando uma presa.— Exceto quando falamos de vingança.Como as outras famílias, os Falcone sempre conseguem a vingança,independentedesermoralmenterepreensível.—Não—falei,projetandooqueixoebalançandoacabeça.—Não?—Luca gargalhou; deduzi que era sua risada real, e fazia um
estranhosommetálico.—Gracewell,vocêérealmenteuma figura.Oquevocê imaginou? — perguntou ele, entretido. — Que fôssemos anjosvingadores com armas e canivetes, sem pecado ou culpa? Você viu Nicbotar uma armana boca deRobbie Stenson.Ouviu o gatilho ser ativado.Realmente acredita que a ideia de vingança estaria afastada de umadinastiadematadoresterritorialistasetemperamentaisquedesignouasimesmaatarefadedistribuirocarmanosubmundo,algoquenãodeveriaser função de ninguém na terra? Acha que tudo que fazemos é a coisacerta?Ele balançou a cabeça, incrédulo, e amaldiçoei minha ingenuidade. Eu
tinhasidoburraosuficienteparamedeixarlevarporumanoçãoromânticade que Nic era uma espécie de vingador. Ele era um assassino, simplesassim,esuscetívelaosmesmoshumoreseàsmesmastentaçõesquetodos.DeslizeideladonomuroparasairdasmãosdeLuca.Elemedeixouire
sentiumapontadadealívio.—Vocênãovaimemachucar...—Não—respondeuele.—Nãovou.—Entãoporqueestásendotãodramático?AvozdeLucaficouperigosamentecalma.—Prestebastanteatençãonoquevoudizer.—Preciseimeconcentrar
nos lábiosdeleenquanto falavaporqueotomturquesadosseusolhosderepentesetornouintensodemais.—SouobraçodireitodetodaadinastiaFalconee seestoudizendopara serdiscretaenãovirmaisaqui, entãoébomacreditarquetenhoummotivo.PrecisaseafastaromáximopossíveldessacasaedeCedarHill.Nictalvezestejaseiludindo,achandoquepodeprotegervocêdoqueestáprestesaacontecer,masnãopode.Meupai foiassassinadoeissosignificaquesuafamíliatemumadívidadesanguecomanossa,Sophie.Umadívidadesangue.Oarquerestavanosmeuspulmõesfoiarrancado
demimemumgolpesó.AexpressãodeLucademonstrouhesitação,masele a escondeu antes que pudesse entender o que significava. Quandochegououtravezàporta,elesevirou.Euestavaplantadanomesmolugar,comoeleesperava.—Sabeoquequerdizeropotedemel?—perguntouele.Meuestômagosereviroucomotomdavozdeleecomofatodeelesaber
do mel. Embora eu sempre achasse que soubera, no fundo, haver umaconexão, de repente tudo parecia mais sinistro do que jamais poderiaimaginar.Balanceiacabeça.—Nãoeraumpresente.—Nãoacheiquefosse—menti.Não havia mais nenhuma emoção na voz ou no rosto de Luca; estava
completamenteinexpressivo.Eledesviouoolhardemimparaocéuescuro.—TemummotivoparameutioFeliceserchamadopelosubmundode
“APicada”,sabe?Não respondi nada. Apenas fiquei ali, tentando fazer asminhas pernas
funcionaremenquantomelembravadorostocheiodepicadasdeabelhadeFelice.— Quando Felice Falcone entrega uma amostra do seu mel com laço
pretoaalguémsignificaquevoltaráparabuscaropote.Tenteiignoraroapertonagarganta,maserademais.—Equandovolta, voltaarmado.Opotedemel éoPresentedeMorte
dosFalcone.—Lucavoltouseuolharnovamenteparamim,encarando-medecima.—Queestesejaseuúltimoaviso.Váemboraenquantohátempo.Fiquei pálida e minha mente girava freneticamente. Eu tinha todas as
peças,sóprecisavaencaixá-las.—Masoquesão...—Fale com seu tio,Gracewell— interrompeuLuca.—Oudevodizer,
Persephone?
Antes que eu pudesse responder, ele bateu a porta num baqueensurdecedor,deixando-meali,tremendodacabeçaaospés.
CAPÍTULOVINTEEQUATRO
OSINVASORES
Seguiparacasa,tirandootelefonedobolsoeligandoparameutio.Tocoue tocou até cair na caixa postal. Pelo amor deDeus.Quase espatifeimeutelefonedetanta frustração.Ligueimaisquatrovezesenada.Deixeiduasmensagensdevozeentãomandeiumamensagemdetexto:
Sei o que o mel significa. Precisamos falar sobre os Falcone. Ligue
urgente.
Euestavaquaseemcasaquandomeutelefonecomeçouatocar.—Jack—atendi.—Achoqueestouemperigo.— Sophie, acabei de ler suamensagem. Está tudo bem?—A voz dele
estavatomadapelopânicoeaminhacomeçavaaficarigual.—Ondevocêsemeteu?Ligueiváriasvezes!—explodi.—Concentre-se,Sophie—rebateuele.—Explicoissomaistarde.Onde
elesestãoagora?—Nãosei—falei.Eleseramtantosquepodiamestaremqualquerlugar
fazendo qualquer coisa. Contei as ameaças de Luca; sobre a dívida desangueeomel,tentandofazerminharespiraçãoacompanharaspalavras.
—Ondevocêestáagora?—perguntouelequandoterminei.Vireinoportãodecasa.—Estouemcasa—respondi.—Entreetranquetodasasportas.Voumandaralguémaí.—TioJack?—Euestavaenroladacomaschaves.Tinhaapenastrêsno
chaveiro,masficavamcaindoporcausadaminhamãotrêmula.—Elesvãomemachucar?—Não—respondeuele,rapidamente.—Claroquenão—acrescentou
logodepois.—Oqueestáacontecendo?—Eraaperguntaquenãoqueriacalareeu
aindanãotinhaencaixadotodasaspeças.—Não tenho tempoparaexplicar, Sophie.—Eupodiaouvir elegritar
ordensparaalguémdooutroladodalinha.Acerteiachavenafechadura.Ocliquedeaberturameencheudealívio.—Sevocêsabiaqueeuestavaemperigo,porquefoiemboradessejeito?Agora que meu medo se encontrava sob controle, estava ficando com
raiva.JackandavaevitandoCedarHillcomosefosseumadoença,emnomedasuaprópriasegurança,masnãotinhasedadoaotrabalhodedizerparaque eu eminhamãe fizéssemos omesmo. Lá se vai a promessa que elefizera a meu pai. Ela estava em Chicago para uma série de provas devestidosdenoivaatéamanhãànoite,maseusabiaque ficaria furiosadenãosaberdahistória.Aindamaisdessa.—Sophie—dizia Jack comumúnico e longo suspiro—, elesnão vão
machucarvocê.Eunãoteriadeixadovocêaíseachasseisso.Essesgarotossãosóconversa.Aquelafamíliaamaosomdaprópriavoz.—Elesqueremvingança,Jack.—Batiaportaepasseiacorrente.—Eles
queremumadívidadesanguepeloquepapaifez.OLucamesmomedisse!—Corriparaacozinhaesubinobalcãodapia.Apoieiotelefonenoombroetranqueiasjanelas.Jacknãopareceuimpressionado.—IgnoreoqueLucadisse.Estáapenastentandoassustarvocê.Descidobalcão.—Masporquê?—Presteatenção.EusouoproblemadosFalcone.Apenaseu.Nãovocê.— Como assim, você?— Forcei amaçaneta parame certificar de que
estavatrancada.—Nãoposso falardissoagora.MandeiEricCainatéaí.Elevaimanter
vocêemsegurança.Vocêoconheceunomeuaniversárioalgunsanosatrás.—Eume lembro— falei, lembrando vagamente de umhomembaixo,
afeminado, com um cabelo vermelho escuro invejável. Como exatamenteelememanteriasegura?—EncontrovocêemalgumlugarpertodeCedarHillefalamossobreo
assunto.—Eamamãe?—perguntei.Meutioteveaaudáciadesoltarumarisada.Cerreiospunhosatécravar
asunhasnaspalmasdasmãos.—ElesnãochegariamnempertodaCeline—disseele,menosprezando
o assunto.—Ela não temnada a ver comigo. Todomundo sabe que suamãemedespreza.Eelesnãoestãointeressadosempunirseupai,Sophie.Trancoutodasasportas?—Sim.—Euestavanocorredornovamente.Subidoisdegrausporvez
depois de decidir trancar as janelas do segundo andar como garantia.—Porquevaimetirardaquisenãoestoucorrendoperigo?Falepelomenosalgumacoisaparaeumepreparar.— É uma precaução, Sophie. — Ele fez uma pronúncia elaborada da
palavra“precaução”comoseeu fossemesentirmelhor.Nãoadiantou.—Eles jamais iriamatrásdevocêporcontadoqueseupai fez.Éuma ideiaabsurda. Emesmo se fossem, o que não é verdade, a máfia Falcone nãomachucapessoasinocentes.Éumadassuasregraspreciosas,moralmentesuperioreseidiotas.Eelesamamseremmoralmentesuperiores.Eupodiasentiroveneno.Então Jacksabia tudoqueeusabiaedecidiu
não me falar nada. E isso queria dizer que ele não era inocente? O queexatamenteelefezparaentrarnalistadosquemerecemmorrer?—Vocêparecesaberbastantecoisasobreeles.Valeupeloaviso.—Podia
termepoupadomuitotempoemuitapaixonite.—Euavisei,sim.—É.Umabelaporcariadeaviso.Descicorrendodevoltaparaoprimeiroandarcommeuspésbatendono
chãocomotrovões.— Sophie, realmente não posso entrar nessa discussão agora. — Ele
pareciacansado.—Tenhapaciência.Jámandeialguémaí.—Estoutentando.—Deslizeipelaportaentreabertadasalae fecheia
janela.Estavafechandoascortinasquandoouviumavozatrásdemim.—Olá,Sophie.Deixeiotelefonecairnochão.GinoeDomFalconeselevantaramdosofá
aomesmotempoecaminharamnaminhadireçãocomopassocoordenado.— Como entraram na minha casa?— Tentei encontrar o telefone no
chão, mas o cômodo estava completamente escuro. Os dois deram de
ombroscomosrostosencobertospelobreu.Elestinhamensaiadoisso?—Émelhoriremembora.—Cruzeiosbraçosnumatentativademostrar
resistência.Tambémsubiotomdavoz,torcendoqueJackaindaestivesseescutando.—Estouesperandovisitas.A risada de Gino pareceu um latido rouco. Dom parou a trinta
centímetrosdemimeoirmãoficoulogoatrás,comumrabodecavaloquelhedavacincocentímetrosamaisdealtura.Osdoisestavamcomomesmosorrisoameaçador.—Oquevocêquer,Dom?—Aprincípio,Jack—disseele.Atrásdele,Ginoassentiucomenergia.—
Mas não podemos perder mais nenhum tempo tentando achá-lo. Nãovamosmaiscorreratrás.—Eseguirvocênãonoslevoualugaralgum—acrescentouGinocoma
monocelhafranzidasobreseusolhosindecifráveis.—Étãochato.Cambaleeiparatrás,batendocomapernanoparapeitodajanela.—Estavammeseguindo?RezeiparaqueJackaindaestivessemeescutandodeondemeutelefone
tivessepousado.— Sim— declarou Dom, assertivo.— Foi por acaso que descobrimos
quemvocêera.Pensamosqueeventualmentenoslevariaaoseutio...—Eledisse isso como se eu o tivesse decepcionado namissão da qual eu nãotinhaomenorconhecimento.—Masnãofoioqueaconteceu.Ginocomeçouarirentreosdentes.— Estavam me seguindo — repeti. Minha voz parecia distante;
transbordadadeincredulidade.—Háquantotempo?—Tempodemais—falaramaomesmotempo.—Nic foi contra, se fizer você se sentirmelhor.Anda comprandouma
brigaparadeixá-laforadisso—mencionouDomcomfalsaempatia.—Masascoisassãocomosão.—Foradissooquê?— Comprando uma briga e perdendo — desdenhou Gino, ignorando
minhapergunta.— Mas — acrescentou Dom —, se não estivéssemos seguindo você,
provavelmente teria sido estuprada naquela noite depois da festa maischatadomundo.—MeuDeus.—Sentiumembrulhodehorror.—FoiassimqueLucame
encontrou.— Não era para ele se meter — disse Dom, decepcionado. — Não
estávamosautorizadosafazernadaquemodificasseseudiaanãoserque
seutioaparecesse,masLucaquebrouasregras,comosempre.Agentenemtinhaficadosabendoatévocêchegargritando,falandosobreoassuntonaportadanossacasa.Empalideci. Gino parecia ter se desligado da conversa e dispersado a
atençãopelocômodoescuro.Aoouvirumsomdoladodefora,oolhardeDom se desviou para uma fresta na cortina, atrás de mim. Aproveitei adistraçãomomentâneadosirmãosedeslizeipelaparedeatémeaproximardaporta.Elesmeseguiramcomorobôs.—Eunãofariaissosefossevocê—disseGinocomsualínguapresa.—
Nãoquerobateremumagarota.Mesmoquesejavocê.—Vocêvaiterqueircomagente.—Dompareciaquasepesaroso,mas
nãofezmuitoparaaplacarmeuantigoódioporele.Nãosótinhainvadidominha casa e estava tentando me levar a algum lugar contra minhavontade,comohaviausadoMillieedadoumpénabundadela.Issoofaziaumcompletoeimperdoávelbabaca.Saíemdireçãoàportaaberta,masGinomebloqueouinstantaneamente.Eleesticouobraço,fechandoapassagem.Domdeuavoltaemefechoupelooutro lado.Eleolhouparao irmãoe
fezumgestodecabeçacontrolado.Ginocaiudequatroesearrastoupelochão como um réptil, vasculhando o lugar com a mão enquantoengatinhava.Eracompletaedesnecessariamentedramático.Tenteicorrer,masDomagarroumeubraçoemepuxoudevolta.—Não.Finalmente,Ginopescoumeutelefonedebaixodapoltronaeselevantou,
balançandootelefonenoar.—Achei—disseele,triunfante.Dompegouotelefoneebotouaoouvido.— Fala, Jackie! — ironizou ele. Meu ouvido foi inundado por gritos
distantes.—Achoqueestánahoradeencerrarmosessenegócio.Rindosozinho,Ginoveioparameulado.—EstánahoradeSophiedartchauzinho.—Osorrisodelemostroudois
dentes lascadose a línguaabaixodeles.Euainda tentavaentenderoqueJackestavadizendoquandoGinoescondeuotelefonedemim.Domcobriuobocaleapontouparaoirmão.—Andalogo—ordenouele.Opanoúmidoveiodonada.
PARTEIII
“Ondeestiveromal,cairásobreeleomachadofatal.”WILLIAMSHAKESPEARE,Hamlet
CAPÍTULOVINTEECINCO
AVINGANÇADODIADOSNAMORADOS
Eu ouvia um zunido. O mundo vibrava, pulsando em meus ouvidos efazendocomqueeumesentissecomosehouvesseabelhassaindodomeucrânio.Acordei comumespasmo.Umacacofoniadocedecheirospairavapeloar,puxando-medaescuridãoquemeenvolviacompletamente.Abriosolhoseviumtetobrancoesentiumterrívelnónagarganta.Gemi.— Ah, acordou, finalmente. Estava querendo saber quanto tempo
demorariaparapassaroefeito.Eunãoprecisavavirara cabeçanadireçãodavozparasaberdequem
era. Tinha o tom suave pouco comumpara umhomeme cada sílaba erapronunciada com uma precisão exagerada, revelando seu leve sotaqueitaliano.—Felice—falei.Tenteimesentar,masnãoconsegui.Lacresdeplástico
prendiam minhas pernas e braços, apertando desconfortavelmente ospulsosecalcanharesexpostos.—Ondeestou?—De forma geral? Em Lake Forest. Especificamente? Deitada nomeu
sofá.O couro fez barulho quando lanceiminhasmãos atadas em direção às
pernasemesentei.Remexiocorpo,deixandoos joelhoscaíremnosofáebotando asmãos emmeu colo enquanto um raio de sol batia nosmeus
olhos,fazendocomqueminhaspálpebrastremulassem.Eu estava quase na altura da grande janela saliente do outro lado do
cômodo.Osolcomeçavaasepôrnocéurosado—eudeviaterficadomuitotempoapagada.Davaparaverqueeuestavaapelomenosumandaracimado térreo.Do ladode fora, havia umvelho celeiro demadeira escondidoatrásdeumjardimcobertopor floresvibrantesqueseestendiamatéumcampo aberto. Dezenas de cabanas demadeira pontilhavam a grama emfileirasperfeitas.— Colmeias — percebi em voz alta. Eu podia ouvir levemente os
enxames de abelhas voando e havia pelomenos duas zunindo em algumlugardentrodocômodo.—Bemobservado,Persephone—disseFelice.Eleestavasentadocomas
costas retas em uma poltrona à minha frente, com uma pernaabsurdamentelongacruzadasobreaoutra.Revireiosolhosparaelee franziocenho.Tudonele—desdeocabelo
grisalhopenteadoparatráseostraçosmediterrâneos,atéoternocaroderiscadegiz—gritavacaramafiosoassustador. E, de acordo comminhasprimeirasimpressõessobreacasa,semfalardolocal,eleerarico.—MeunomeéSophie—rebati.— Aparentemente é mesmo. Se tivéssemos sabido disso mais cedo,
teríamossidopoupadosdeumaconfusãoetanto.Saberíamosqueeravocêdesdeoinício.Peloquepudever,estávamosasósnocômodo.Alémdosofádecouro
pretoondeeuestavasentada,nãohavianadaalémdeFeliceesuasabelhas.Elasvoavamemcírculossobreacabeçadelecomoseodefendessem,eavisãofezminhapeleformigar.—Devodizerqueestouimpressionadoquevocênãogritouainda.—Ele
apoiouosdoiscotovelosnosbraçosdapoltronaejuntouasmãosnomeiodocorpocomaspontasdosdedossetocando.—Porqueeugritaria?Elebalançouacabeça.— Estamosmuito longe da civilização. Aqui só tem você e as abelhas,
Persephone.Sentialgosemelhanteamedodentrodemim,masminhacabeçaainda
estavatontadoquehaviammedadoparadormir.Eradifícilentendermeussentimentosdeformacorretaeaindamaisdifícilnãodizeracoisaerrada.Eu sabia que havia sido sequestrada, mas não conseguia decidir o queresponder.EumeconcentreinasmarcasnorostoenopescoçodeFelice.Eramoleosasevermelhas,eemalgunslugaresborbulhavamraivosamente.
—Então,éaquiquemoracomsuasabelhas?Romântico.—Eusabiaquenãodeveriater faladoaquilo,masmeucérebrohaviadesistidode fazeracoisacerta.—Éumapenaqueelaspiquemtantovocê.Elelevantouassobrancelhas,mostrandoasrugasnatesta.—Éumaescolhapessoalnãousarumarededeproteçãoquandoestou
na companhia das minhas abelhas. Acho que nos mantêm afastadosdesnecessariamente; prefiro ficar perto e senti-las naminha pele.— Eledesviou o olhar para a abelha que voavamais próxima da sua cabeça esorriucomoumpaiorgulhoso.—Éumahonraserpicadoporcriaturastãonobres. É extraordinário que abrammão da própria vida por um rápidomomentodaminhaatenção.Nãoexistecriaturamaismajestosadoqueaabelha.— Se você acha— falei, sem entender o que quis dizer. Meu cérebro
estavatãoconfusoeozunidosópioravatudo.—Eurealmenteacho.Aabelhajáestáemextinçãoedigoquedevemos
fazerdetudoparaprotegerafilhamaisnobredanatureza.A filhamais nobre da natureza? Tive vontade de desmaiar de novo só
paranãoterquelidarcomaquelaloucura.—Oquevocêquerdemim?Feliceapertouoslábioseoqueixoficouestranhamentepontudo.Elenão
merespondeu.Apenasmeencarouetiveaimpressãodetê-loofendidoaointerromperaconversasobreabelhas.—Podepelomenosafrouxarasamarras?Estádoendomuito.—Meus
pulsosetornozelosestavamemcarne-vivaeardendo.Elebalançouacabeça;dessavezfoiquaseimperceptível.—Aindanão,Persephone.—MeunomeéSophie.NãochamovocêdeFabio.Felicejogouacabeçaparatráseriuatélacrimejar.—Comtodososmotivosquevocêteriaparaficarirritada...—disseele,
secandoosolhoscomascostasdamão.—Vocêéengraçada.Nãomesentiacômica,esimdrogada.—Recebiseumel,aliás.Muitoobrigada.— Acho que nós dois sabemos que não era para você, mas vou
esclarecer, uma vez que não consigo compreender se está se fazendo deburraouseéburra.Omeleraparaseutio.—Nãoachoqueeletenhagostado.—Ah,não?—Felicecontorceuorostodandoosorrisomaiselaborado
quejávi.Eraassustadorecínico.—Elequebrouopote—falei,séria.Minhavontadedeserengraçadinha
estavapassando.Voltavaaospoucosamimmesma.—Acontece.—Felicejogouamãoparaoalto.—Seiqueeunãodeveria
dardicasparaminhasvítimas,masnãoconsigoescondermeuamorpelodrama. E fique sabendoqueproduzo omel eumesmo e é absurdamentedelicioso,nãoquealguémdefatoprove.—Euprovei.Acheimeiosemgraça—menti.—Quegrosseria.—Felicefezumacaretaantesdeprosseguir.—Mesmo
assim,cumpreafunção.Acreditoquetodosmerecemumavisoparateremachancededeixartudoemordem.—Antesque vocês osmate?—perguntei. Embora já soubesse, queria
queeledissesseparaativarmeucérebroquezunia.—Claro.—Felicesorriu,mostrandoduas fileirasdedentesafiados.—
Comavisoousemaviso,semprenosencontramosnofinal.E,àsvezes,ousodizerqueaperseguiçãoéamelhorparte.Senti um calafrio na espinha. Enfim, e de forma desagradável, a
gravidadedasituaçãomealcançou;euprecisavapensaremoutraspessoasalémdemim.—PorquemandouumPresentedeMorteparameutio?—Minhavozvaciloueumaondademedopassoupormim.—Setemalgumacoisaavercomoquemeupaifez,nãofoidepropósito.Felicelevantouodedoparaeumecalar.—AmortedomeuqueridoirmãoAngelopelasmãosdoseupaifoi,claro,
umapena,masnãoacreditoqueelatenhasidodemáfé.Sentimeusombrosrelaxarem.—Quebom.— Isso não quer dizer, claro, que essa situação toda não seja sobre
vingança.Porque...—disseele,pondo-sedepé—éclaroqueé.AalturadeFelicederepentepareciabemmaisimponente.Elecomeçou
aandardeumladoparaooutroetiveaimpressãodequefaziaissotodahora—intimidaçãoatravésdeencenação.Deviaterumternoespecialparacada situação. A echarpe em seupescoço fazia uma cascata enquanto eledeslizavaparafrenteeparatrás.—Achoquejápossodeduzirquevocênãotemamenorideiadequeseu
tio, JackGracewell, éummembroessencialdomaior carteldedrogasdomeio-oeste. A Gangue Triângulo Dourado, como tão eloquentemente seautodenominam.Estoucertoemdeduzirisso?EncareiFelice, chocada.Nãopodiaserverdade.Tinhaqueserpartedo
teatrodele.— Entre outras ações, eles recentemente começaram a vender uma
drogahíbridaque,aosertomada,causaefeitosextremamenteintoxicantes
e podem causar uma série de efeitos colaterais desagradáveis, comoparanoia,perdadememória,paralisiae,meumenosfavorito,morte.—Elebalançouacabeçaviradoparaa janela, comoseospássaroseas floresotivessemdecepcionadotodosdeumasóvez.—Não—foitudoqueconseguidizer.Faltavampalavras.Estavapasmae
Felice podia ver; pior, ele se alimentava disso, como um parasita bem-vestido.Elevoltouacaminhardeumladoparaooutro.— É claro, estamos monitorando seu tio e os parceiros não muito
estimadosdeleháquasequatroanos.Desdeotempoemqueelecomeçouausar a lanchonete, o aconchegante estabelecimento da sua família, paraguardarcarregamentosdedrogasentreasentregas.—Oquê?—Voltei à vida.— Jackusou a lanchonetedomeupai para
traficardrogas?—Bem,imagineiqueseriafácilligarasduascoisas,mastalvezeuesteja
próximo demais da situação, então é mais fácil para mim. — Felice seagachou para ficar mais perto.— No início, havia apenas três membroscruciaisdaGangueTriânguloDouradoque faziamnegóciosdesse ladodoAtlântico,cadaumposicionadoemumpontochavedomeio-oeste;pontosque, quando ligados no mapa, formam um triângulo perfeito… — eledesenhouumtriângulocomosdedosnoar—…deimensolucro.Sentiumaabelhavoandopertodemaisdomeuouvidoevireia cabeça
porreflexo.—Cuidado—avisouFelice.Elese levantounovamente.—Comochefe
dos Falcone,meu irmãoAngelo era basicamente encarregadode liquidaressacadeiadeatividadesilícitas.Nãoeraumatarefafácil,masnóssempredissemos: “Umfalcãonãocaçamoscas.” Juntos,mudaríamososubmundodasdrogasnomeio-oeste.Os movimentos de Felice ficaram leves, uma das mãos estava enfiada
atrás das costas, melancólico, como se estivesse passeando por uma ruavazia.— Meu irmão coordenou de forma bem-sucedida a queda dos
fundadoresumedois da gangue emum tempo relativamente curto, semmencionaroutrosmembros importantesdecadaequipe.—Elearregalouosolhosclaroseencarouotetocomosefalassecomalguémnoalém.—Edevodizerqueafamíliafezumtrabalhomuitoartísticocomeles,masnãoquero ofender sua sensibilidade, Persephone, então não vou entrar emdetalhes.Eume lembrei da matéria do jornal com um susto. Ela mencionava a
Gangue Triângulo Dourado. Angelo Falcone tinha sido acusado pelosassassinatos — assassinatos brutais —, mas nunca condenado. Eu nãosabia se tinha a coragem de acreditar, mas antes que eu pudesse mecontrolar,falei:—EJackéonúmerotrês.— E Jack Gracewell é o esquivo terceiro ângulo do tal triângulo —
confirmouFelice,subitamentesombrio.Eleestalouosdedos,umporum,erepareiqueestavamtãopicadosquantoorosto.—Srta.Gracewell,nuncaconhecisujeitotãoescorregadioesemescrúpuloscomoseutio.Eu também, percebi comumenjoo subindodomeu estômago. Se tudo
que Felice dizia era verdade, eu não conheciamesmomeu tio. Certo, eusabiaque Jackera capazdeperder a linha: elebebiademais, tinhapaviocurto e a tendência a desaparecer de vez em quando. Mas aquelasacusaçõeseramcompletamentediferentes.— A gente quase conseguiu, sabe, acabar com todos eles e teríamos
encerradoo assunto,mas claroquenão foi assim.PorqueAngelodeudecara com o irmão errado naquela fatídica noite de dia dos namorados e,então,tudomudounumpiscardeolhos.Sentiogostodebilesubindopelagarganta.Penseinomeupaisozinho
no escuro do lado de fora da lanchonete e em como deve ter ficadoassustadoquandoAngeloFalconeoabordou,gritando.Elenão fazia ideiadequemera.Nãotinhacomo.Elejamaisseenvolveriaemalgodessetipo.Certo? Cerrei os punhos para impedir que minhas mãos tremessem.Quantaspessoasnaminhavidanãoeramquemdiziamser?—EunãosabiaqueJacktinhaumirmãotãoparecidocomeleatéanoite
emqueoviatirarnomeu irmão.Umapéssima investigação,certo?Possodizerquemuitas cabeças rolaramapósessa confusão infeliz.—Felice sepermitiuumsorrisoafetadoantesdeacrescentar:—Literalmente.—Vocêestavalá?Elesuspirou,oânimoteatralemqueda.—EstavaescuroeAngeloabordouoGracewellerrado.Oplanejadoera
quemeuirmãoapagasseJackeoarrastasseatéobecoatrásdalanchonetepara que pudéssemos atirar nele com mais privacidade; foi um pedidopessoalmeu,entende,masnuncachegamosaessapartee,pelomenosisso,vocêsabe.MeencolhisódepensarneleatirandoemJack.Felicebalançouodedo,parafrenteeparatráscomoummetrônomo,até
euquererarrancarodedoforaejogá-lodevoltanacaradele.—Vocênãodevemetaxardemonstro.FoiJackquemcontribuiu,eainda
contribui, como lado negro da sociedade da piormaneira possível. E foiJackquecolocouseupainaquelasituaçãotãoinfeliz.Sealgumdiaeufossevender drogas, o que é claro jamais faria, certamente não usaria umdosestabelecimentosfamiliaresdomeuirmãocomoestoque.— Jack não faz essas coisas. — A dúvida me fez vacilar. As palavras
saíramdaminhabocaoscilantese forçadas.—Meupai jamaisodeixariafazerisso.Nãoacreditoemvocê.Eu teria cruzadoosbraços e saídodo cômodo sepudesse.Nãoporque
estavacomraiva,masporqueestavacommedodaverdadeeoqueelamefariaentendersobreminhafamíliaesobrecertoeerrado.—Bem,felizmenteparamim,nãofazdiferençasevocêacreditaounão.
Nãomudaaverdadedasituação.Quantomaiseupensavanoassunto,maispendiaparaaversãodele.Até
porque era estranho pensar que Angelo Falcone estaria desarmadorondando uma pequena lanchonete no meio da noite. E ainda maisestranhoeramtodososnegóciosmisteriososqueJacktinhaemChicago.Etodo o dinheiro que ele aparentava ter, os carrosmodernos e os ternoscaros.Sempretevealgoestranhonele:algoquefaziaminhamãemantê-loaumadistânciasegura,algoqueoimpediadeteraprópriafamília.IssosemcontarcomoódiointensopelosFalcone.Quantomaiseujuntavaaspeças,menosridículosoava.—Então,seéverdade...—comecei.—Éverdade—Feliceesclareceu.—Bem,entãoporqueestouaquisenadadissotemavercommeupai?
Nãofiznadadeerrado.—Depoisdamorte tristedomeuquerido irmão, asoperaçõesde Jack
sofreramumdeclínio tãograndequepensamosqueaTriânguloDouradohouvesseacabadointeiramente.Claroquesemprepretendemosencerraroquecomeçamos;comumespaçodetempoparaoluto,claro.Masquandodescobrimos que nossa informação estava errada e que Jack agoracomandava a gangue inteira diretamente de Chicago, percebemos queteríamosdenoslivrarlogodele.AdquirimosumaresidênciaemCedarHille, apartirdali, começamosaeliminaros sócios-chavedo seu tio,umporum.Issoexplicavaoentregadorafogado—Luistambémfaziapartedisso?E
todososoutrosdesaparecimentosmisteriososquea sra.Bailey tinhamefaladocomtantaurgência—aquelesqueignoreitãodepressa?Todoessetempo,ebemdebaixodomeunariz,estavammatandogente.—Issoéhorrível—falei,confusa.
—Naverdadesechamacompetência—corrigiuFelice.—E,agoraquesabemosqueJackéaúltimapeçadoquebra-cabeça;enfraquecidosemseufielescudeiro,precisamoseliminá-loomaisrápidopossível,antesqueeleconsigasereorganizar.Estánahoradeencerrarmos issodamaneiraquemeuirmãoplanejou.EntreiempânicoaopensarnoquefariamcomJack,semsaberquantos
dos seus “sócios” haviam sido mortos nos últimos meses e tentei nãopensaremquantosdelesencontraramseufimnapontadaarmadeNic.—Entãovaimatá-lo.— Sim.— Felice se sentou lentamente na cadeira como se seus ossos
pudessemquebrar se não tivesse cuidado.—E é aí, queridaPersephone,quevocêentra.Eumeirritei.—Essenãoéomeunome.—Nãoentendoporquevocêodispensa.—Elefezumapausacomose
esperasse uma justificativa minha para algo que agora pareciainsuportavelmentetrivial.Quandonãorespondi,elecontinuou,chocadodemaneiravisível.—Porquenãogostade ser lembrada comoa gloriosa ebelaRainhadoSubmundo,a incrívele infernalDeusadaMorte?Sophieétãosemgraçaemcomparação.—Realmenteesperaqueeuresponda?— O significado desse seu nome me intriga. Você até encontrou seu
Hades.—Elesorriue tivea impressãodequeesperavame impressionarcomseuconhecimentodemitologiagrega.Nãohaviafuncionado.Quandonãofaleinada,elecontinuou:— Foi Dominico que descobriu quem você era, quando estava com
aquela garçonete britânica trivial tentando conseguir informações sobreJack. Quando Nicoli percebeu que você era, na verdade, PersephoneGracewell, tentou se afastar, mas era tarde demais. De repente, você setornouomeiomaisfácildechegarmosaonossoalvoquandojáestávamosficandosempaciência.Pensei em Nic e franzi o cenho. Esse tempo todo ele estava lutando
contraoprópriodesejoemnomedaminhasegurança,eestavaperdendo.Ementindo.—Masvocênãoenxergouoperigo,nãoé?Porquevêapenasaspartes
quedesejavereécegaparatodooresto.Euoencareifuriosa.—Não sou cega para nada.—A não ser pela vida secreta domeu tio
comoreidasdrogas.Epelavidasecretadaminhapaixonitecomomatador.
—Claro,claro—respondeuFelice,sarcasticamente.—Comoumvelhobobocomoeusaberiaqualquercoisasobreoassunto?Não tenhodúvidaalguma de que vocês estão completamente apaixonados e que contouafetuosamentetodasascicatrizesqueeletemnamãoondepuxaogatilho.Felicemeencaroumaliciosamenteeeuoodiavaporisso;mas,acimade
tudo, euoodiavaporqueestava certo.Eunão tinha feitopazes comessapartedeNic;tentavaignorá-la.Atéjustificá-la.—Então,vejabem—continuou,sentindoprazer—,quandoJackfugiu,
deixouvocêparatrás,aúnicacoisaqueofazperderacabeça.Esperávamosquefossenoslevaratéele.“Noentanto,comoseutioémaisinteligentequeumbandidoqualquere,
inexplicavelmente, tem se mantido fora do nosso alcance, precisamosadotar um plano mais improvisado, onde você é a isca. — Ele bateu asmãos. — Se Jack não aparecer no galpão abandonado de carros emHegewischantesdameia-noitedehoje,asituaçãovaiterumareviravoltamuitoinfeliz.”—Entãovaimematar?—perguntei,sentindo-mecompletamentevazia
pordentro.Eraesseofim?Euhaviacaídoemumpoçodementiraseagoratinhaumaarmaapontadaparaminhacabeça?Felicemeencarou,impassível.—Nãomeagradaaideiadematarumaadolescente,masachoqueteria
deperguntaraalguémmaisqualificadodoqueeu,Persephone.—Tipoquem?Feliceficoudepé.—Nossochefe.Meuqueixocaiu.—Vocênãoéochefe?—Eu?—Algosombriosurgiunorostodele,masantesqueeupudesse
tentar entender, ele se animou até parecer um personagem de desenhoanimado.—Nãosouochefe.Masobrigado.Ficohonrado.—Oquevocêé,então?—Eu?Souumsimplescriadordeabelhas.—Aofalarisso,umadesuas
abelhas voou na linha dos meus olhos, a apenas trinta centímetros dedistância,comoseeletivesseprogramadoaquilo.—Eummatador—euolembrei.—Realmenteachoquenãosomosdefinidosporapenasumacoisa.— A não ser que seja um matador. Nesse caso, é tudo que pode ser
mesmo.—Talvezdevessedizerissoaoseupai.OuaoseucharmosoHades,entre
umbeijoeoutro.Seeupudessepulardosofáearrancarorostodelefora,euoteriafeito.—Dequalquerforma—continuouele,demaneiracondescendente—,
souapenasoconsigliere dos Falcone.Dou conselhos, que geralmente sãoignorados. Buscarei alguém mais apto a responder sua pergunta.Sinceramente,estoucansadodoseusarcasmoadolescente.
CAPÍTULOVINTEESEIS
OCHEFE
Eu o ouvi antes de vê-lo — o piso de madeira rangia enquanto eledeslizava parameu campo de visão, asmãosmal tocavam as rodas paraque elas se mexessem. Ele se virou com uma série de movimentoscomplicadose ficoude frenteparamim.Ocorpoeramagro,masnão tãocorcundaquantoeumelembrava;estavavestidocomcalçaspretaseumacamisa de botão preta engomada e apertada nos ombros. A ocasiãoespecial?Meufim.Ele deslocou a perna esquerda para que ficasse esticada na minha
direção, tocando no chão. A perna direita, que era ossuda e virada paradentronaalturadoquadril,encostavanaoutraeelepareciacontorcidodacinturaparabaixo.Eletirouasmãosdasrodaseentrelaçouosdedossobreo colo. A primeira vez que o vi, ele estava sentado atrás de uma mesa,reproduzindoamemóriadosseusmodelosausentesememostrandoummundodiferente atravésdos lápis.Agora eleme encarava com seuolharazul-celesteeoslábiostensos.—Queriamever?—Aquelavozmusical.Tinhadificuldadesdeacreditar
quepodiaseraforçacomandantedeumafrotainteiradematadores.— Valentino — eu disse, com a voz surpreendentemente firme. Falei
como se o conhecesse há anos,mas a expressão dele não se alterou. Erailegível.—Porfavor,medigaquenãoéverdade.Elesemexeunacadeira,ajeitandoocorpo,ederepenteficoumaisalto,
osombrosmaislargosdoqueantes.Percebiquehaviasidobobadepensar
queeleerafraco.—Oquenãoéverdade?—cantarolouele.—Vocêéochefedessacoisatoda?—falei.Elelevantouassobrancelhasincrivelmentepretas.—Quandodiz“coisa”estáfalando“família”?—Sim.—Étãodifícilassimdeacreditar?—rebateuele.Eumeinclineiparafrente,comosetentasseromperabarreirainvisível
entrenós.—Sim.Édifícildeacreditar.Eleapontoucomodedoparaarodadireitadacadeiraderodas.—Porcausadisso?—Haviaumapontadadeamarguranaresposta.—Não.Porquepareceusertão...sensívelantes.— Eu sou sensível — respondeu ele. — É uma das minhas maiores
qualidades.—Masvocêmatapessoas.—Minhavozestavafalhando.Eleapontouparaarodadenovocomoexplicação.—Euordenomortes.—Issonãoémuitomelhor.— É ummal necessário para um bemmaior— respondeu ele.— As
coisassãocomosão.—Vocêvairealmentemematar?—Minhavozfraquejoueumacorrente
de lágrimas correu pela minha bochecha até meu pescoço, deixando-omolhadodeformaincômoda.Aindaassimmantiveorostoerguido.Apesardetudo,euseriacorajosa.Valentinodemorouaresponder.Desviouoolharparaajanela.—Sim.— Mesmo se Jack aparecer? — Eu não acreditava no que estava
perguntando;nãodeveriacogitarapossibilidadede trocarumavidapelaminha,mas aparentementemeu instinto de sobrevivência eramais crueldoqueeu.Valentinovoltouaolharparamim.Sorriulevemente.—Mesmoassim.Abriabocaparafalar,masumchorosufocadosaiunolugar.Tremendo,
enterreia cabeçanasminhasmãosatadase caínopranto, tentando tirartudodemimdeumavez.Euprecisavamecontrolarparaencontrarumasaída daquela situação, mas meus ombros sacudiam e minha respiraçãosaíaemfortesarquejos.—Semepermiteexplicar—disseele.Eunãoqueriaolharparaele,mas
seu tom permaneceu inabalado commeu surto emocional.—Não queroser nada senão justo nesse papel que foi dado a mim. Tento ser o maislógicopossívelquandotomodecisõessobrevidaemorte.—Masvocênãoé justo—solucei.—Nadadissoé justo.Nãosouuma
traficantededrogas!Souapenasumagarota!—UmagarotaGracewell.E,sintodizer,umapontasolta.Elemedeixouchorarempaz,enãofalounadaatéeufinalmentelevantar
acabeça.—Jacktemumadívidaporcausadasualucrativaatividadecomdrogase
seusefeitosdestrutivosdegrandealcance.Issoéóbvio.Masadívidadoseupaiconoscoexistepeloqueelefezaomeupai.—Seupaiestavatentandomatá-lo!—gritei.Eutremiatantoqueachei
quefosseentraremcombustão.—Éclaroqueelesedefendeu!Acoisatodafoiumacidente.AtéFeliceadmitequemeupainãofeznadadepropósito!—Comovocêsabe?—Apostura impassíveldeValentinomepegoude
surpresa. Por um momento risível me senti uma idiota por reagir tãoviolentamente,quandoeleconseguiateressaconversafalandodomesmojeitocomoseestivessepedindoumapizzaparaojantar.—Oquequerdizer?—Aspalavrastremeramnaminhagarganta.—Comosabequeseupaiéinocente?—perguntouele,estudandominha
reação.—Comosaberqueseutionãoconfiouosegredoaele?Queelenãoestavadispostoafazeronecessárioparadefenderafamília?—Porque...—vacilei.Valentinosemicerrouosolhose,derepente,mesentigelada.—Porquemeupaijamaismachucariaalguémdeliberadamente—falei,
comaconfiançarenovada.Eunãotinhacertezademuitacoisa,masestavacertadisso.—Elenãoécapazdeumacoisadessas.—Você achava, antes de hoje, que seu tio era capaz de comandar um
carteldedrogas?Hesitei.—Vocêachouqueeueracapazdecomandarumadinastiadematadores
antesdestasituaçãoemquenosencontramos?Desvieioolhar,maselenãocedeu.— Você achou na primeira vez que beijou Nic, que ele era capaz de
afogarumhomemnasuaprópriabanheira?—Pare— implorei, sentindoumavontadeesmagadoradevomitar.—
Apenaspare.— Máscaras — disse Valentino. — Veja o que acontece quando as
tiramos.
—Éhorrível.—Enterrei o rosto nasmãos para que ele não tivesse oprazerdeversuaspalavrasmequeimandopordentro.—Caosabsoluto—lembroucomcalma,comosenãotivesseacabadode
aniquilar a reputação da minha família.— Como é basicamente decisãominha,acreditoquequandotivermosapreendidoseutionogalpão,aformacorretadeprosseguiréacertar,deumavezportodas,adívidadesanguedoseupai.Levanteiacabeçanovamente,tontaeenjoada.—Entãovaimeusarparaatraí-loemematarmesmoassim?Valentinodeudeombros.—Éomelhorplano.Pensei na minha mãe e em Millie e precisei engolir mais um soluço.
Minhamãenãosobreviveriaaisso,elajámallidavacomtudocomoestava.E Millie — que abriu mão de várias amizades para ficar ao meu ladoquandomeupai foipreso.Elanão tinhamaisninguém.Tínhamosapenasumaaoutra.QuandoValentinoabriuabocaoutravezavozeracínica,emboraotom
musical permanecesse, cantarolando uma por uma as palavras que meferiam.—Nicnãoviráatrásdevocê,Sophie.Elenãosabedenadadisso.Não falei nada.Apenas fiquei ali, sentindo o vazio aumentar dentro de
mim.—Querumlenço?—Elepuxouumpanovermelhodesedadobolsoda
camisa.Asiniciaisdeleestavambordadascomlinhapretanocanto.Ignoreiogesto.—Acheiquegostassedemim.Acheiqueagenteseentendia.—Eugostodevocê.—Eledevolveuolençoparaobolso,inabaladopela
rejeição.—Seascircunstânciasfossemoutras,achoqueseríamosamigos.—Masestádispostoamematar?Elefaloucomconvicção:—Fuiescolhidopelomeupaiparaocuparessaposiçãoporquesempre
fui capaz de separar meus sentimentos pessoais da missão dos Falcone.Tenhoahabilidadedecompartimentalizar.—Parabéns—ironizei.—NãotenhocertezadoqueNicfalousobremim.—Apernaesquerda
dele tremeu contra a direita em um espasmo súbito. — Mas Luca e eufomos nomeados juntos, sabia? Dois chefes. Foi uma decisão inédita nomeiodosubmundo,masparaafamíliafaziasentido.Semprefizemostudojuntosdesdeantesdenascermos, somosduasmetadesdeum inteiro.Eu
permaneceria calmo e controlado, tomando decisões de longe e ele secertificaria de que elas seriam obedecidas da forma correta. Era essa aideia. Juntos seríamos o chefe perfeito: justos e eficientes. Afastados ecompletamenteenvolvidos.—Maselenãoéochefe.Éobraçodireito—argumenteisemmotivo.Se Valentino ficou surpreso com meu conhecimento da sua
infraestrutura,nãodemonstrou.—Estácerta.—Elesorriu,revelandoosdentesderelance.—Eleabriu
mãoda posição logo após amorte do nosso pai. Afastou-se da sua partenessepapel.— Por quê? — perguntei, chocada. Entre os cinco irmãos, Luca se
encaixava perfeitamente no papel de chefe da máfia. Ou era o que eupensava.Valentino levantouasmãos,gesticulandoparaocômodoe tudodentro
dele:eu,ele,umsofápretodecouro,minhamorteiminente.—Talvezporcausadisso.Essestiposdemanobrassãoparticularmente
difíceis de digerir. — Ele fez uma pausa, ponderando algo. — Ou —aventurou-se —, quem sabe ele achou que me devia isso. — Valentinoapontou com casualidade para a perna deformada, mas o rostodemonstrava outra coisa. — De qualquer forma, Luca e eu sempretrabalhamos juntos em perfeita harmonia, até o momento em que estasituaçãoseapresentouparanós.ÉclaroquebrigocomNictodahora,entãonãoénenhumasurpresaqueagenteotenhadeixadodeforadisso,masfoia primeira vez emminha vida que discordei domeu irmão gêmeo sobrequalquercoisa.EofatodesersobreodestinodeumagarotaGracewellqueelenemconhecenãofazsentidoparamim.Sentiumpesoinesperadonomeupeito.—Maseu souo chefe—resumiuValentino, como lirismoda suavoz
encobrindo a franqueza da declaração. Tive a impressão de que ele nãoqueriaqueacentelhadeesperançadentrodemimcrescesse.—Entãoadecisãofinalésua—percebi.—Éminha—disseele,solene.—ELucavairespeitarisso.E,semmaisnemmenos,acentelhaseapagou.—Tevenotíciasdomeutio?—Desejeipoderligarparameutioefalar
paraquenãosedesseotrabalhodeiraomeuresgate.Sepretendiammematardequalquerjeito,asituaçãotodaeraumaarmadilha.—Édifícilconvencerumbarãodasdrogas,egoístapornatureza,atrocar
suavidaporoutra,mesmoque seja ade alguémmuitoqueridopara ele.Mastenhocertezadequeassimqueeleassistiraoseuvídeovaientendera
gravidadedasituação.—Quevídeo?Valentinoabaixouacabeça,desviandodemim.—SejavalentecomCalvinoouelevaipegarmaispesado.Elesaiuefiqueisozinhanovamente.
CAPÍTULOVINTEESETE
OVÍDEO
Algumtempodepois,umaportaabriuefechouatrásdemim,eosomdepassos pesados marcou o silêncio. Um homem careca, com aparênciaimpiedosaeumgrossobigodenegroentrounocômodo.Eume lembravadeledaqueledianorestaurante—Calvino.Ele se sentou na poltrona livre contorcendo o rosto anguloso até que
parecesseartificial,emeencaroucomumsorriso.—VivocênoEateryalgumassemanasatrás—falei,torcendoparaque,
aoiniciarumaconversa,eudescobrisseumasaídaparaoquequerqueeleestivesseplanejandofazercomigo.—Vocêmatouaabelha.Osorrisosetransformouemumacareta.—Eaindaestoupagandoporisso.—Avozdeleeraroucaegrossa.De
forma absurda,me ocorreu que ele seria umbom locutor de rádio. Querdizer,seonegóciodeassassinatosnãofuncionasse.—Oquevaifazercomigo?—Basicamenteamesmacoisa.—Orostodeleficousombrioeoolharse
desviouparaaportaatrásdemimquandoelaseabriu.Ummeninodeuns12 anosparou atrásdeCalvino, pousandoasmãos
nosombrosdelecomoumaposenaquelaspinturasbizarrasde família.Omeninoeraobviamenteseufilho.Elestinhamomesmoqueixopontudo,oslábiosfinosepálidoseonarizaquilinoquedominavaseusrostos.Osolhoseramescuros,compálpebraspesadase,comotodososFalcone,apeledosdoiseramorena.
Calvinogesticulouparaogaroto,eemrespostaelesacouumtelefone—omeutelefone—dobolso.—Ei!—gritei, assustando até amimmesma.Osdois se virarampara
mim, com a mesma cara de surpresa alongando seus rostos. — Essetelefoneémeu,seumerdinha!Devolve!—Não—provocouogaroto.—C.J.—opaiavisouaele.—Euaviseiparanãofalarcomela.C.J.franziuatesta.— Diga quando quiser que eu comece a gravar — falou para o pai,
ligandoacâmeradocelularefazendocomquealuzdoflashseacendesse.Claro.Eles iriammandarovídeodomeu telefonepara Jack.Calvinose
levantouesubiuasmangaspretasdacamisa,mostrandoapontadeumatatuagemnobícepsdireito.Oinstintofezeumeencolhernosofáelevanteiaindamaisaspernasdobradasnafrentedocorpo.—Possocomeçaragora?—C.J.pulavadeumpéparaooutro.— Sim. — Calvino sacou um canivete do bolso e abriu a lâmina.
Reconheciocanivetedafamília;eraidênticoaodeNic.— Ele pode ver isso? — Gesticulei para o garoto quando ele se
aproximou.—Ésóumacriança.Calvinoergueuasgrossassobrancelhasquecombinavamperfeitamente
comobigodedelagarta.—EleéumFalcone.Calvinomanteveaexpressãodechoqueporcincosegundosparadeixar
claroaofensacausadaporminhapergunta.Useiotempoparameencolhernocantodosofá:erguiaspernas,escondendoabarriga,etenteilevantarocorpoenquantooloucodocaniveteeseufilhovinhamnaminhadireção.—Querfazeraintrodução?—perguntouofilho.CalvinopareciasurpresocomaaparenteengenhosidadedeC.J.—Boaideia.Umsorrisolargoseespalhoupelorostocheiodeespinhasdogaroto.Eu me encolhi no sofá, com os pés amarrados, enquanto Calvino me
olhava casualmente, como se soubesse que, não importava o quanto eutentasse,eleaindapoderia fazeroquequisesse.Eleguardouocaniveteeagarroumeubraço.Deslizeidevoltaparaomeiodosofáemumsópuxão.Eleentãoseapertouaomeulado,paraquenósdoisficássemosdentrodoalcancedacâmera.CalvinoseagachouemepuxoupelagoladacamisetaparaqueC.J.pudessedarumzoom.O cheiro forte de loção pós-barbame acertou. Reparei, aterrorizada e
com uma pontada incontrolável de curiosidade, uma cicatriz grossa que
cruzavaatestapertodaraizdocabeloqueumdiaexistiu.QuandoCalvinoseaproximou,acicatrizbrilhou,fazendocomquesuacabeçaparecesseterumatampa.— Jack Gracewell. — Cada sílaba era rascante como garras de metal
arranhandoumtambor.—Esperoqueestejaterrivelmentemal.C.J. fez sinal de positivo atrás do telefone. Tenteime afastar da cabeça
brilhosadohomem,maseleapertouminhanucaatéarranharapelecomasunhas,mefazendogritardedor.— Como pode ver, estamos com a sua amada sobrinha, a srta.
Persephone Gracewell. — Ele acariciou meu cabelo em um só longomovimento.Tenteidesviar a cabeça,masele agarrouminhamandíbula emepuxoudevolta com tanta forçaqueouviumestalo.Fecheiosolhosetenteinãogritaraofecharabocacomumúnicocliqueagonizante.—Como você sabe— continuou ele para a câmera, acertandominhas
mãosagitadascomumúnicoedolorosogolpe—,nãoficamosfelizescomanossaconversamaiscedo,eachamosquearespostadevidaàsuahesitaçãoéumendurecimentodanossaparte.Endurecimento?Apalavra zuniunaminha cabeça comoumalarmede
carro.Calvino agarrou meu cabelo e o entrelaçou nos dedos, puxando com
brutalidade.Estiqueiosbraços,socandoopeitodeleomaisfortepossível,maseledesvioudosmeusgolpeseacabeisóacertandooar.—Porfavor!—gritei.Ele continuou a puxar meu cabelo, tão forte que senti como se fosse
arrancarocourocabeludo.— Você tem até meia-noite para aparecer, sozinho e desarmado, no
galpão abandonado perto da antiga Hegeswich, onde vamos conversarsobreseusnegóciosealibertaçãodagarota.Então eles estavam enganandomeu tio duas vezes: sobre seu próprio
destinoesobreomeu.—Malditosmentirosos—reagi.Calvinomedeuumtapanorosto.Ogolpemearrancouaslágrimasdos
olhos.Chorandocopiosamente,soquei-onoombro;eleseencolheuesoltouum palavrão baixinho. Aproveitando omomento de distração, rolei paraforadosofáeluteiparaficardepé,pulandoemdireçãoàporta.Calvinosaltouparafrenteeagarroumeusombros,mepuxandodevolta
paraaquelesofámaldito.Cobriorostocomasmãosatadasenquantoeleme segurava, respirando ofegante pelo nariz. Ele se curvou, perto osuficiente para que eu sentisse sua respiração no cabelo, assoprando-o
paratrásenquantoelemeforçavaatirarasmãosdorosto.Elebateunomeunarizcomabasedamão,mefazendomorderaparte
de dentro do lábio. O gosto de sal e ferrugem tomou minhas gengivas,misturadoàtorrentedesanguequesaíadonariz.Meesforceipararespirarenquantoosangueescorriapeloslábiosatéoqueixo.—Pare!—implorei.Comeceiaescalarosofá,masCalvinomepuxoude
volta.Minhacabeçacaiunopeitodelecomumbaqueeeleasegurouali.—Sevocênãoaparecer,Jack—elevoltouànarraçãopsicóticadovídeo
—,vamosmatá-la.Depoisvamosatrásdevocêcomtodososhomensquetemosatétedeixarmospenduradonotetodoseuapartamento.Elemeempurrouecaínosofá,doloridaetremendo.C.J.correueparoucomacâmeraatrintacentímetrosdemimepudever
cadaespinhacheiadepusnoseurostoensebado.—Viuoquemeobrigoua fazer,Gracewell?—Calvino fezumapausa,
comoseesperasseumarespostadeJack.Meuchoropreencheuosilêncio.Eunemtinhapercebidoqueestavachorandoatémeouvir.ElefezumgestoparaC.J.desligaracâmera.— Isso aí!—comemorouo filho.—Ficouótimo.—Pareciaque tinha
tiradodezemumaprova,emvezdeteracabadode filmarumvídeocomumagarotaindefesade17anossendoagredida.CuspiumapoçadesanguenacamisadesedadeCalvino.—Vocêéummonstro!Elelevantouamãonaminhadireçãoemeencolhi.—Cuidadocomessalíngua—avisou.—Ouvouarrancá-ladasuaboca.
— Ele então se levantou e botou amão no ombro do filho.—Mostre ovídeoparaFeliceeenvie.ElesairálogoparaseprepararparaachegadadeGracewell.Voulogodepoiscomagarota.—Possoirtambém?—perguntouC.J.animado.—Dapróximavez.ErabomsaberqueessetipodecoisaerarecorrentenafamíliaFalcone.Ogarotosumiuefiqueisozinhacommeutorturador.Senteiemeencolhi
toda,braçosepernasencolhidosaomeuredor.— Nem quebrou nada — informou Calvino, de um jeito que dava a
entender que achava que eu estava sendo dramática. Ele flanou de voltaparaapoltronaeseacomodou,relaxandocomumsuspiroprofundo.Eu queria gritar ummonte de palavrões para ele, mas minha energia
desapareciaumpoucomaisacadarespiração.Eusabiaqueprecisavafugir,se não por mim, por minha mãe, minha melhor amiga e meu pai. Atémesmo pelo meu tio Jack. No fundo, ainda tinha esperanças de que
houvesseumaexplicação,algoquetornariatudoaquilomenospavorosodoqueparecia.Calvino me observava com o olhar fixo. Concentrei minha atenção no
cômodoemvolta.Eupodiapularpelajanela,masprovavelmentequebrariauma perna na queda. E ainda teria que me preocupar com as abelhas.Mesmoseeuconseguisse,dealgumjeito,melivrardasamarras,precisariacorrerpelocampoaofundooumearriscarpelafrentedacasa.Eunãosabiaquantas pessoas estavam ali ou qual o tamanhodo lugar. A porta estavaatrásdemim.Setivessesorte,quemsabeCalvinoficariaentediadoecairianosono.Jáestavadenoite,afinal.Minhamente aindagiravaquandoele se levantououtravez e voltoua
enrolarasmangasdacamisa.—Oque você está fazendo?—Tentei pular para fora do sofá,mas as
amarrasnaspernasmeimpediram.—Eunãotinhaterminado—respondeuelequandocaínochãoetentei
mearrastarparalonge,usandoobumbumeaspernascomoumalagarta.—Sóprecisavadeumdescanso.Calvino me cercou, e fui me arrastando com pressa até bater com a
cabeçanaparede. Ele levantouopé como se fosse chutarumabola,masroleiparaoladonosegundodecisivo.Continueimearrastandopelochãocomaajudadasmãos,masCalvino
voltouamechutar,dessavezacertandomeuladodireito.Sentiumestalodealgosequebrandoeperdioar.Viestrelas,avisãoficouembaçada,emeagarrei ao chão duro de madeira tentando escapar. Ouvi um gemidocansadoemalgumlugaracimademimemecontorciaorecebermaisumchute.Umaondadeenjoomedominou.Puxeiosjoelhosnaalturadopeitoeme
enrolei em posição fetal enquanto pontadas de dor incontroláveisperfuravammeucorpo.Calvinocomeçouamerodear,mas,destavez,emvez de chutar, eleme virou como sapato para que eu ficasse de bruços.Comosaltodosapato,pressionouasminhascostas.— Pare— chiei. Tenteime agarrar ao chão,mas ele fezmais força, e
entãoouviocanivetedeleseabrindo.—Por favor—pediofegante,masnão sabia para quem.Eu estava sozinha e precisava fazer algo antes quefossetardedemais.Elemerolounovamenteefiqueidebarrigaparacimaencarandoasluzes
ofuscantesdoteto,apertandoosolhosatéseurostoangularvoltarafoco.Calvinoergueualâmina,passandoopolegarpelofio.Devagar,empurrei
meucorpoparaoladoepuxeiaspernasparatrás,dobrandoumpoucoos
joelhos. Eraminha última esperança. Rezei para que ele não semexesseantesqueeulançasseaspernasparafrente,efoioqueaconteceu;Calvinoestavaocupadodemaisencarandocomafetoanavalhafaiscante.Eraminhaúnicachance:peguei impulsonochãocomasmãosatadase
lanceiaparteinferiordocorpoparafrentecomtodaaforçaqueconseguireunir, usando o cotovelo e os quadris como impulso. Minhas pernasgiraram em um semicírculo e, quando Calvino reparou o que eu tentavafazer,eujáestavanomeiodarasteira.Numa queda que pareceu em câmera lenta, ele despencou para trás,
tombandodasuatremendaaltura.Ocanivetecaiuaoladodomeuombro.Calvinobateuacabeçanaparedecomumbaqueensurdecedor,seencolheue escorregou para o chão a meio metro de mim e, então, com um leveespasmonaperna,ficoudeitadoaliemtotalimobilidade.Eumeesgueireipelaparedeatéconseguirsentar,mordendoolábiocom
forçaparasufocarosgritosdedorseacumulandodentrodemim,pegueiocanivete e iniciei o trabalho nas amarras das pernas. Cortei-as o maisrápidopossível,olhandoderelanceparaCalvinodevezemquandoparatercerteza de que ele não estava prestes a me atacar. Seus olhos estavamfechados,masopeitoaindasubiaedescia,entãoeusabiaquetinhapoucotempo.Asamarrasdaspernassesoltaram.Meesforceiparacortarasamarrasdasmãoscomocanivetedeponta-
cabeça,masnãoencontreioângulocertoeastentativasforaminúteis.Maseuhaviachegadolongedemaisparadesistir,mãosatadasounão.Segureiocanivetecomasduasmãosefuisubindoatéficardepé.Quando finalmente levantei, a dor no peito me queimou como uma
chama.Tivequemecurvar,apertandoocanivetenamão fechada.Comaparede como apoio, me arrastei para frente, um passinho de cada vez,intercalandogritoscomumchorosemfôlego.Aportaestavaquaseaomeualcance.Atrásdemim,arespiraçãodeCalvinoficavacadavezmaisestável.Devagar,comeceiaescorregarpelaparede.Aperteiminhascostelas,mas
sentiaforçaseesvairdomeucorpo.Eutremiadedore,derepente,fugirpareceuimpossível.Calvinoiriamealcançar.Eu não conseguia levantar a cabeça, não viamais a porta, mas estava
pertoosuficienteparasentiracorrentedearquemeatingiuquandoelafoiaberta. Usando cada gota remanescente de força, ergui a cabeça e olheiparafrente.—Sophie?Abriabocaparagritar,masaspalavrassaíramemarfadasofegantes.—Seu.Imbecil.
CAPÍTULOVINTEEOITO
AFUGA
Lucaeeunosencaramosporumlongoeagonizantemomento.Viaexpressãodelesefechar.Tenteifalarnovamente,masnãoconsegui.
Eusabiaquebeiravaa inconsciência;pontadasdedoratravessavammeupeito,ecadarespiraçãoeramaisdifícilqueaanterior.Mastambémsabiaque, semepermitisse cairna escuridãoque seduziaminhamente, talveznão voltasse a acordar— afinal, Luca era o braço direito de Valentino etinhaordensparacobrardemimumadívidadesangue.Apoiando a mão aberta na parede, me forcei a continuar em frente,
mantendo o canivete o mais longe possível do corpo e usando o ombrocomoapoioparamemanterdepé.—Saiadomeu caminho.—Exibi o canivete e tentei empurraropeito
delecomooutroombro.Luca apoiou uma das mãos nas minhas costas e, com a outra, tirou a
navalhademimcomfacilidade.Comumgesto,elefechoualâminaejogouocanivetenosofá,longedomeualcance.—Nãopodepassarpormim.Levantei o olhar, irritada. Eu já tinha visto aqueles olhos ofuscantes o
suficienteparaumavidainteira.—Melarga.Elenãolargou.Vasculhouocômodocomosolhosatéencontrarocorpo
imóveldeCalvino.—Vocêfezissocomele?—perguntouele,impessoal.
Assenti.Eleme estudou: primeiro viu o sangue seco nomeu queixo, depois, a
formacomoeutentavaapertarascostelas.—Cazzo—murmurou,balançandoacabeça.Minhas pernas fraquejaram,mas Lucame segurou. Eleme levou até o
chãoemeudeixou sentada.Desejeimandá-lo tirar asmãosdemim,masnãoofizporque,duranteummilésimodesegundo,sentiumalíviodetodaador.Quaseconseguiasuportá-lanaquelanovaposição,massabiaquenãopoderiapermanecernela.Precisavafugir.Sem tirarosolhosdemim,Lucapegouo celular,digitouumnúmeroe
levouotelefoneaoouvido.—Elaaindaestáaqui.—Umsilênciocurtoeentão:—Umahora.—Ele
desligouebotouotelefonedevoltanobolso.—Oquê,emumahora?—Minhavozestavaofegantedetantador.Lucanãorespondeu,emecontorciquandooutraondadedorcomeçoua
seespalharpelocorpo.EleselevantouefoiatéondeCalvinocomeçavaasemexerdeitadonochão.— Svegliati — disse ele, cutucando o ombro do outro com o sapato.
Calvino resmungou,mas não abriu os olhos.—Vou levá-la ao galpão—continuou Luca, como se fosse perfeitamente normal dialogar com umhomem semiconsciente. — Vou tentar disfarçar para os outros nãoperceberem que uma garota de 17 anos sem nenhum treinamento eamarrada conseguiu apagar você. Enquanto isso, é melhor você serecuperarporaqui.ApernadeCalvinotremeuenquantoLucaseafastavadele.—Pezzodimerda—murmurouele,antesdevoltaraatençãoparamim.—Nãovoualugarnenhumcomvocê—falei.—Nãotemescolha.—Nicnuncavaiteperdoar.Minhavozfalhoueamaldiçoeiaminhademonstraçãodefraqueza,mas
Lucanãopareceunotarouseimportar.ElevoltouoolharparaCalvino.—Nicnãoéaminhapreocupaçãonomomento.Ele espioupelaporta aberta o cômodoao lado.Quando se virou, eu já
estavadepédenovo,cambaleando.Manqueiemdireçãoàsaída.Lucaergueuacabeça.—Vocêvaicomigo,Sophie.—Não—protestei,mearrastandoparafrenteatéestarmosnaentrada.
— Eu já disse que não respeito sua autoridade. — Cambaleei e quasetropeceinovãodaporta.
Lucame segurou novamente. Tentei socar o ombro dele, mas perdi oequilíbrio, e ele me segurou pela cintura, escorando meu corpo e medeixandomeioflutuandoemeiodepé.—Issonãomudanada.Tenteimelivrar,maselenãolargava.—Odeiovocê—protestei.— Então isso não vai ajudar— respondeu ele. Antes que eu pudesse
rebater, ele levantou minhas pernas e me pegou no colo. Esperneei omáximo que pude,mas isso só serviu para queme segurassemais fortejuntoaoseupeito.Elemecarregoupassandoporumsegundocômodomaior,umasalade
estar mal iluminada cheia de caixas de pizza e latas de Coca-Cola. Umtorneio de pôquer estava passando nomudo na imensa televisão de telaplana,cercadaporgrandespoltronasdecouro.Continuei a lutar mesmo enquanto a dor agonizante tomava conta de
mim,deixandoescapargemidosincompreensíveis.—Calaaboca—ameaçoueleaoabriroutraportaparapenetrarmosa
escuridãodovãodaescadadosegundoandar.Nãoobedeci.Griteiatéavozfalhareagargantadoer.Chegamosaopédaescadariaquesedividiaemdoiscaminhosidênticos.
Luca desceu rápido, com os pés batendo nomármore até chegarmos aotérreo,ondeparamosemumsalãocircularcomochãodepedrabranca.Aocentro,umcandelabrodevidroiluminavaomosaicodobrasãodafamíliaFalcone gravado no piso sob nossos pés. Meus golpes ficavam cada vezmaisfracos.—Por favor—falei,olhandoparaele.Minhacabeçapousounoombro
deLucaquandofuitomadapelocansaço.—Porfavor,nãofaçaisso.Abocadeleestavatensa,esticandoafracacicatriznolábio.Elenãoolhou
paramim.Chegamosàportadafrenteesaímosparaanoite.Lucaapressouopasso
e começou a correr. A casa se erguia no céu escuro atrás de nós; umamansãogigantescadetrêsandaresconstruídaempedrabranca.Aocentro,o teto era abobadado e destacava-se do resto da casa, apoiado em umafileirasemicirculardecolunas.A entrada de carros era longa, escura e cheia de curvas. Quando
finalmenteparamos,Lucameafastoudocorpoeabriuaportadocarro,meacomodandonobancodocaronaefechandoaportaantesqueeutentasseescapar.Elepulounobancodomotoristaeligouomotorcomumrugido.Orelógiodopaineldizia10h04.
—Aonde estamos indo?— Eu já sabia. Apenas queria que ele falassecomigo,reconhecessesuasações.Atégritarseriamelhordoqueosilênciomortal instaurado entre nós. O silêncio significava que ele estavaconcentrado demais no que teria que fazer e que minhas súplicas nãoestavamsurtindoefeito.Dirigimos em silêncio por um bom tempo, atravessando ruas desertas
que não reconheci até finalmente voltar a enxergar traços de civilização.Tenteimemanteralerta,massabiaquemeuestadodeconsciênciaoscilavacomasondasdedorquetomavamomeucorpo.TenteidetudoparaamolecerLuca:chorei, implorei,gritei,maselenão
cedeu. Sequer olhou para mim. Apenas encarava a estrada à frente,trincandoosdentesesegurandoovolantecomtantaforçaqueosnósdosdedosficarambrancos.E, então, quando o relógiomarcava 10h57, quase uma hora depois de
termossaídodeLakeForest,paramos.Lucasaiudaestradaeestacionouaolado de uma pequena loja de conveniência. Pela primeira vez desde quetinhacomeçadoadirigir,eleolhouparamim.Euoencareidevolta,vendoseusolhosinacreditavelmenteazuis,eespereienquantoeleseremexianobanco. Luca tirou algodobolsode trás emeu estômago se contorceudemedoquando ele se inclinounaminhadireção, largandoo quequer quefossenomeu colo. Porummomentonão senti dor, apenas surpresa. Eraumanotadecinquentadólares.Foientãoqueelecomeçouafalar,rápidoecalmo:— Eu tirei você da casa do Felice contra a sua vontade. Quando
chegamosnacidade,pareiemumsinalvermelhoevocêfugiu.Correuatéalojadeconveniência.Eunãofuiatrásdevocêporquetinhamuitagenteládentro.Nãopodiacorreroriscodeserpego.Vocêligouparaumtáxi.FoiparacasadasuamãeevocêsduasfugiramdeCedarHillimediatamente.Comeceiatremer,primeironasmãosedepoisnocorpotodo.Eleestava
melibertando.Elenãoiamematar.—Masomeutio...—falei,comlágrimassurgindonosolhos.AexpressãodeLucapermaneceuinabalada,avozsombria.—Vocênãovaivoltarparacasaantesdoenterrodoseu tio.Valentino
nãovainosmanteremCedarHillsóporsuacausa.Nãovaigostardevocêter fugido,masvai superar isso assimqueadívidade JackGracewell foracertada.—Masse...—Sophie—Lucameinterrompeu.—Vocênuncamaisveráseutio.—Porfavor—sussurrei.—Porfavor,vocêprecisaajudá-lo.
—Algunserroseupossocometer—respondeuele,apático.—Outros,não.—Estáquerendodizerquematariamvocêsetentasseajudá-lo?Maséa
suafamília.—Quisdizerqueeunãotentaria—respondeuele,nomesmotom.Engoliminhaspalavras.LucanãosónãopoderiaajudarJack,comonão
queria fazer isso.Nofundo,eleacreditavaqueJackdeveriamorrer,enãohavianadaqueeupudessefazerarespeito.Comoumgarotoquetinhasidocriado para acreditar que pessoas más são inteiramente más poderiacompreenderoconceitodequedentrodamaldadepodeexistirabondadee, mais importante, o potencial para o bem? Luca e sua família viam omundoempretoebranco.Depoisdeumaolhadarápidaporcimadoombro,Lucatirouocanivete
dobolsoecortouasamarrasnomeupulso.Euasvicaindosemacreditar.Elemeempurrouaarmaefechoumeusdedosnocabo.— Você roubou meu canivete e levou com você, caso precisasse se
proteger.Olheiparabaixoeviainscrição:
Gianluca,20demarço,1995
Eleestavarealmentemedandoseucanivete,ocanivetepersonalizado.E,
maisdoqueisso,estavaconfiandoqueeunãoousariacontraele.Pareciafrioeartificialnasminhasmãos,masoguardeiemumdosbolsosdoshortjuntoànotadecinquentadólares.—Obrigada—falei,porquenãoconseguidizermaisnada.Nãosabiase
ficava grata ou apavorada. Estava exausta, confusa e trêmula. Mas eleestavamelibertandoe,mesmocomtudoqueaconteciaànossavolta,issosignificavaalgumacoisa.Ele estavaenfrentandoaprópria família.Estavamedandoavidadevolta.—Vocênuncamaisvainosver,Sophie.—Aspalavrasdelecarregavam
umaconclusãoarrebatadora,massuaexpressãopermaneciaamesma.Eleestava,comosempre,cuidadosamentecontrolado.Antesqueeupudesseresponder,aportadocaronaseabriuequandome
vireiviNic,paradoali,nopequenoestacionamentonos fundosda lojadeconveniência,segurandoaportaparamim.Saídocarro.Olhamosumparao outro e identifiquei cada milímetro de dor acumulado nos seus olhosescuros.
Eleme observou— omachucado no rosto emeu corpo encolhido, asmãos apertando as costelas. Ele fechou os olhos, soltou um suspiroprofundoe,eujuro,omeucoraçãoeodelesepartiramumpouconaquelemomento.—Sintomuito—falouele,voltandoaabrirosolhos.Eu não podia dizer que estava tudo bem. Estavamuito longe de estar
tudobem.Masofereciemtrocaalgopequeno:umsorrisolento,comolhosmarejados, para o garoto que haviame beijado comonunca antes.Haviabondade dentro dele, mesmo que estivesse enterrada lá no fundo doscódigossobosquaisconduziasuavida.Fiquei parada enquanto Nic passava por mim, tomandomeu lugar no
carroaoladodeLuca.Eleestendeuamãoeeuasegurei.Nicpegouaminhadelicadamente, comose fossedeporcelana,passouopolegarnasmarcasvermelhasnomeupulso,levantou-aeabeijou.—Riguardati—murmurouelejuntoàminhapele.E,assim,osirmãosFalconeforamembora,medeixandocurvadanochão,
chorandotantoquemalrespirava.
CAPÍTULOVINTEENOVE
OGALPÃO
Quantomaiseuchorava,maispensavasobretodososacontecimentose,devagar, minha determinação se tornou mais forte do que a dor. Se osFalcone só botavam gente na cova, como poderiam saber o que umasegundachancepodefazerporumapessoa?Quebemfaziamaoarrancaropotencialdeumhomemantesdeelepoderdescobrirobemdentrodesi?LucaeNictalveznãotivessemescolhaparamatarJack,maseusim.Eu
não sabia o número para ligar para ele — sem falar que meu telefoneestavasobacustódiadobandido-em-treinamento,C.J.—,massabiaaondeestavamindo.Eutinhaumaarmaedinheiroparairatélá.Seabandonassemeu tio agora, jamais me perdoaria, e jamais me lembraria de Nic comqualquersentimentoalémdedesprezo.Euhaviaprometidoaomeupaiquecuidaria de Jack e, se seu irmão morresse daquela forma, ele jamais serecuperaria.Elemalconseguiasobrevivercomoestavaagora.Masaindaexistiaumachance;euaindapoderia fazeralgo.Poderiame
colocar entre Nic emeu tio, poderia impedir um assassinato. Talvez nãoconvencesseLuca,massabiaqueNicmeescutaria.Elenãodizimariaminhafamília,nãodepoisdetudoquedividimos.Eumelevanteiefizopossívelparalimparorosto,esfregandoosangue
doqueixoe cobrindoo roxonosolhoscomocabelo.Forceimeucorpoaficar ereto, caminhei até a loja de conveniência e troquei a nota decinquentadólaresparaquepudesseterumamíseramoedade25centavospara chamar um táxi. Esperei no banheiro da loja até o táxi chegar,
estudandomeureflexo.Afasteiocabeloemaranhadodorostoereprimiaexpressão de horror. Manchas roxas fundas faziam bolsas sob os olhosinchados.Apontedonarizestavatorta,easbochechas,vermelhasondeeuhavialimpadoosanguecomasmãos.Agarreiapiaaosentirumapontadarepentina de dor nas costelas. Algumas semanas atrás, meu maiorproblemaeraoefeitodaumidadenomeucabelo.Comoeutinhachegadoàqueleponto?Em algum momento, um grande mal-entendido devia ter acontecido.
Tudo havia saído de controle. Era impossível pensar nas drogas, nodinheiroounospioresaspectosdaalmadomeutiosempensarnaspartesboas—aquelasqueeuconhecia.Meutionãoeraumvilãounidimensionalcomo os Falcone imaginavam — por que abriam exceções para elesmesmosenãoparaJack?Nãoeracerto.Mesmoquenãopudesseconvencê-losantesquefossetardedemais,precisavatentar.Vinteminutosdepois,paraaperplexidadedomotoristadetáxi,desciem
um terreno baldio nos arredores da Velha Hegewisch. No perímetro,sacolas de plástico voavam como fantasmas acima de carrinhos desupermercado.Ovelhogalpãodeautopeçasficavanomeiodoterreno;umaestrutura imensa sem portas, com paredes de concreto rachadas,manchadasdeferrugemecocôdepombo.Dooutrolado,haviacontêineresempilhadoscomogigantesLEGOsdascoreslaranja,begeeazul.Lánoaltoum letreiro desgastado, que se balançava no único prego restante, diziaAUTOPEÇASGREENE.Caminheicomcautelaemdireçãoaolocal,sentindomenosmedodoquedeveria.Estavaempépuramenteàbasedeadrenalinaesentiameucoraçãobatendonapontadosdedos.Andeipelafileiradecontêineresdeaçoatéencontrarumbecoumpouco
mais largo que um carro. Estava escuro como breu e completamenteescondido da entrada do terreno. No final do beco, virei à direita eencontreidoisSUVdosFalconeestacionadosesemninguém.Então,LucaeNicjátinhamchegado,masdequemeraosegundocarro?Omotivoparaaescolha do local era óbvio. Dava a eles uma entrada secreta e vantagemimediataquandoJackchegasse.Nos fundos do galpão, uma pequena porta ficava escondida atrás de
váriaspilhasdecaixotesdemadeira,eestavaentreaberta.A trancahaviasidoarrombada,masduvidoqueissofossenecessário—aportajáestavasedespedaçandonoscantoseprovavelmentepodiaserderrubadaatéporumacriança.Caminheinapontadospésentreoscaixoteseentreidisfarçadamente.O
espaçonointeriorestavaquasevazio,eeramuitoúmido.Ocheirodemofo
tomava conta do ar e nos cantos pilhas de mais caixotes corroídos porcupim se amontoavam, lotados de restos de embalagens plásticas.Pendendodentrodeumagaiola,umaúnicalumináriailuminavaumespaçocircularnapartedafrenteeoutralâmpadamenorhaviasidopenduradanocentro,ondeosFalconeestavamdepé,protegidosemparteporumapilhade caixotes até a altura do peito. Luca estava discutindo com Felice,enquantoGinoeDomobservavamàssuascostas,brincandocomasarmas.Nic estava distante, esperando logo na porta. Se eu chamasse a atençãodele,quemsabeelemeouviriasemserinfluenciadopelosirmãos.Comecei a seguirpelas lateraisdogalpão, apertandoas costelas aome
agacharatrásdascaixas.Ratosentravamesaíamcorrendodoscaixotes,epreciseime esforçar para não gritar toda vez que um passava pormeustênis.Parei de me mexer e ouvi o barulho de um carro distante se
aproximando.Amovimentaçãonogalpãocaiuemumsilêncioabsoluto.Omotor foidesligadoemalgumlugardooutro ladodaentrada.Ouvia
portasefechar.Jack.Meucoraçãobatiaforteerápidonopeito.Derepente,sópensavanorostodomeutioquandoeledessedecaracomasarmasqueestavamprestesaserapontadasparaasuacabeça.E,então,algoinesperadoaconteceu:ouviumaportasefechar,eoutra,e
finalmenteaquartaporta.Jacknãoestavasozinho.Nicespioupelaentradadogalpãoeretraiuacabeça,confuso.—Ele está acompanhado— anunciou aos outros, afastando-se da sua
posiçãoe juntando-seaLuca.Osdoispareciam inquietos,masnãomuitosurpresos. Não sei por que estava tão chocada: entrar sozinho em umgalpãoescuroerasuicídio.Jackeramaisespertodoqueissoe,paraminhatristeza,maisdoqueacostumadoaessemundoeacomoelefuncionava.—Elesvãoestararmados—disseDom,demaneiracasual.—TípicodoGracewell—disseFelice, comumarisada falsa.—Nunca
honra seus acordos. Sempre soubemos que ele viria com tudo. Quantossão?—Estáescurodemais,nãoconsigover.—AvozdeNicpareciafrustrada.
Elesacouaarmaesecertificoudequeestavacarregada.Comoeupoderiachegaratéeleagoraqueestavatãopróximodosirmãos?QuemsabeseeualcançasseJackantesdeeleentrar,poderiaimpedi-lodesequerpassarpelaporta.Aqueletempotodoeuhaviamepreocupadocommeutio,enãopareiparapensarqueeletambémchegariapreparado.IssosignificavaqueNiceLucanãoestavamnemumpoucomaissegurosdoqueele.
Vingançaidiota.Fiquei mais atenta aos meus passos quando notei que os caixotes
ficavam mais espaçados. Estava cada vez mais difícil me esconder atrásdeles e, como cada respiração parecia uma facada nas minhas costelasquebradas,eutinhadificuldadeemfazeresforço.Sepassassepelaportadafrenteantesdealguémentrar,quemsabeevitariaummassacre.—Eusabiaqueiaserumcaos—esbravejavaFelice.—Eseeleperceber
que não estamosmais com a garota, não vai hesitar em atirar primeiro.Precisamosficaratentos...Perdemosnossavantagem.AssombrasdeDomeGinoassentiram.Lucafaloubaixodemaisparaeu
escutar,maspelosseusgestos,deduziqueeledefendiasua inocência.Deondeeuestava,pareciaconvincente.Euesperavaquesim.—Enãoestãonemprotegidos.—FeliceapontouparaopeitodeLucae
Nic.— Saiam pelos fundos antes que alguém semachuque. Valentino jáestáirritadoosuficiente.Nãopodemoscorreroriscodeerrardenovo.Nenhumdosdoissemexeu.—Vamosprosseguircomaoperação—disseLuca.Nicestalouopescoço,ajeitouosombrosetrincouosdentes.Seeraassim
que ele ficava em combate, era bem eficiente, e fez comque eu quisessearrancarmeuscabelos;afinal,eleestavasepreparandoparamatarmeutio.OsFalconepararamdefalar;ninguémmaisqueriadiscutir.Ficaramem
silêncio,todosconcentradosnaporta,esperandoJackdaroprimeiropasso.Os Falcone sabiam que Jack estava do lado de fora; Jack sabia que osFalcone estavam do lado de dentro. Ambos tinham reforços e,provavelmente,armas.Eeuestavapresa,agachadaemmeioamijoderatoecaixotesmofadosemumgalpãonomeiodonada,pensandoemqualentequerido iriamorrer primeiro, e se eu sobreviveria tempo suficiente paratentar perdoar os que permanecessem vivos. Se isso não era o fundo dopoço,nãoquerianempensarnoqueseria.Eutentavaespiarpeloespaçoentredoiscaixotescaídosquandoaporta
dogalpãoseabriu,sóumpouquinhoe,depois,maisumtanto.Congelei.OsFalconeergueramasarmas.Eratardedemais.Euhaviafalhado.—Olá—chamouumavozbaixaetensa.Meucorpointeiroficougelado.Ninguémrespondeu.—Olá?— repetiu ela, a palavra uma simples gota naquela imensidão
vazia.Em cliques sequenciais, eles prepararam as armas para atirar e a
apontaramparaminhamãeenquantoelaentravanogalpão.
CAPÍTULOTRINTA
AESCOLHA
O cabelo caía em mechas despenteadas no seu rosto, e ela usava umcardigãvelhoporcimadopijama.Aindatinhapantufasnospés.Derepente,pareciaquetodososmeuspesadeloshaviamseunidoemum
sóeexplodido, formandoumúnicoespetáculohorrível.E isso? Issoeraomeufundodopoço.Seeuachavaqueestavacomraiva,aquelacenamudavatudo.Sentium
calor me atravessar e mal consegui segurar o grito. O que Jack estavapensando?Comoelepôdefazerissocomaminhamãe?Amulherdoirmãodele? Eume senti enjoada e, de repente, não sabiamais de que lado euestava. Luca estava certo; eudevia ter idopara casa.Devia ter fugidodeCedarHill comela. Eudevia tê-lamantido em segurança. Ela era aúnicapessoa na família com quem eu podia contar e fui boba por pensardiferente.Quandoviuasarmasapontadasparaela,minhamãesufocouumgrito.
Asmãoscobriramabocaeelacambaleouparatrás.OsFalconehesitaram,seentreolhando,masnãoabaixaramamira.Não
entendia comopodiamverqualquer coisapertode ameaçadoranela. Elamaltinha1,50m,cinquentaquilosetremiacomoumavara.Mordiascostasdamãoetenteimeconcentrar,masestavagritandopor
dentro. Cheguei mais perto — o mais perto que pude sem ficar com aproteção dos poucos caixotes que ainda sobravam. Ainda não era osuficiente. Eu queria desesperadamente pular das sombras e tirá-la dali,
massabiaquelevariaumtiroantesdechegarlá.Minhamãegirouocorpomaisumavezparafrente,apertandoosbraços
aoseuredor.— Vim buscar minha filha. — O medo havia deixado a voz dela
irreconhecível.—VimbuscarSophie.Lucaabaixouaarma.—OqueoGracewellachaqueestáfazendo?Osoutrosnãosemexeram.— Não abaixe a arma — avisou Felice. — Isso claramente é uma
armadilha.—É amãedela— insistiuNic, virando-separa cuspirno chão.—Ele
estáusandoamalditacunhada.—Temmaisgentedoladodefora—retrucouFelice.Elesemicerrouos
olhosecomeçouaanalisarminhamãecomosequisessetercertezadequenãoeraumailusão.—Nãoseioqueeleachaquevaiconseguircomisso,mas se Jack Gracewell pensa que não vamos atirar em você, estácompletamenteenganado.— Ca-cadê minha filha? — Minha mãe não estava conseguindo se
concentrar.Aatençãodelatinhasedispersadoaoverasarmaseagoraelaenxugavaatesta,osolhosvasculhandotodoogalpão.Àminhaprocura.—Cadêela?—perguntou,opânicotomandoolugardomedonavozofegante.—Eledissequeelaestavaaqui.Oquefizeramcomela?—Ondeestá JackGracewellnesteexatomomento?—Felicecaminhou
nadireçãodela,mirandonacabeça.—Digaoqueeleestáplanejandooumatovocêagoramesmo.—Pare!—gritouNic.EleesticouobraçonafrentedotioeFeliceparou
derepente.—Nicoli—sibiloueleemresposta.—Precisaaprenderaescolhersuas
batalhas.—Elanãotemnadaavercomisso—esbravejouele.—Éclaroquetem,estábemaqui!—Combinamosdenãoferirmaisinocentes.Vocêétãohorrívelquanto
Valentino!—Bobagem—disseFelice,indignado.—Éclaroquedevemosmatá-la.LucaentrounomeiodeNiceFelice.— Realmente deseja destruir ainda mais esta família, Felice? —
perguntouele,avozcuidadosamentecontrolada.—Nãoéassimquemeupailidariacomasituação,etodosnóssabemosbemdisso.— Então não deveria ter negado o último pedido dele. Certamente
estariaagoraemumaposiçãomelhorparareclamar.A expressão de Luca ficou levemente hostil, mas a voz permaneceu
inalterada.—Tenhocertezadequenãoprecisolembrá-lo,Felice,queindependente
daminhadecisão,aindaestouacimadevocê.Felicefezumacaretaeabaixouaarmadevagar.Avidavoltouàsminhas
pernasbambas.—So-Sophie?—Minhamãeseinclinouparafrente,torcendoopescoço
para tentar enxergar atrás dos caixotes.Mas eu não estava ali e, quantomaiselaseesforçava,maisdifícileravê-lafrustrada.Lágrimassilenciosascorriamporseurosto,reluzindonaluzbaixa.—Sophie?—Ondeestá JackGracewell?—repetiuFelice.Eleestavatãoobcecado
em estudá-la que não ouviu um ruído baixo vindo dos fundos do galpão.Nenhumdelesouviu.Deiumsaltodesustoeadornascostelassemultiplicou,comoseuma
mãoinvisíveltivesseresolvidorepuxarmeusórgãos.Eumeagacheieseguio barulho. Quatro pessoas estavam entrando pela porta dos fundos, semovimentandoporentreoscaixotes,abaixadosrenteaochão.Avisãodeuma cabeça ruivame alertou para a posição de Eric Cain. É claro que omelhoramigodeJackestavaenvolvidonisso,assimcomotodomundo.Aoseulado,reconheciospassosdomeutio,quesearrastavaemdireçãoaosFalcone.Comeceiaentrarempânico,indecisaentregritarechamaraatençãode
NiceLucaparaavisá-losdapresençadeJack,ouficarquietaparaqueJacksalvasseminhamãe damira cada vezmais instável de Felice. Talvez elemerecesse isso, talveznão.Chequeio canivetedeLucaemmeubolsoeapartemaisraivosademimimaginoualâminaseenfiandonocorpoJack.Deque adiantava aparecer nomeu resgate se estava disposto a usarminhaprópriamãe,mesmosabendoqueelapoderiasemachucar?— Chega! — Era Gino; Gino, o instável. Ele se atirou para frente,
passandobatidoporFeliceeNiccomaarmalevantada.Minhamãegritou,cambaleandoparatrásequasetropeçando.—Gino!—OgritodeNicabafouomeuepareciaqueninguémnotava
nossasvozesembaralhadas.Lucasaltounamesmahorae,emumsegundo,estavaparadona frente
daminhamãecomaspalmasestendidasparaoirmão.—Gino,não—faloutambém,porémmaiscalmo.—Elaéumadistração—disseGinocoma línguapresa,balançandoa
armaloucamentenoar.—EéamulherdeMichaelGracewell!Pelomenos
assimvamosacertaradívidadesanguequevocêeCalvinoestragaram.—Cuidadocomoquediz,Gino—disseLucasempestanejar.Assombrasnofundoseaproximavam.Avisteiapontadocortedecabelo
militardeJackaalgunscaixotesdedistância.Decidiiratéele.Sesoubessequeeuestavabem,talvezelepudessesairdefininho,eLucaosconvenceriaadeixarminhamãeirembora.Eumearrasteipelochãodeconcreto,olhandoporcimadoombroaome
aproximar o mais rapidamente possível. Minha mãe havia enterrado orostonasmãoseseuchoroecoavapelogalpão.ViLucasevirarecochicharalgoparaela.Elaseendireitouecomeçouaenxugarorostocomasmãostrêmulas. Disse algo a ele, que assentiu, e então minha mãe abriu umsorrisochoroso,comorostocontorcidopeloalívio.Elasabiaqueeuestavaviva.Quando me virei, Jack não estava mais no meu campo de visão, e as
sombrasrastejantesnãoerammaissombras:eramhomens.Estavamdepé,combraçosesticadosearmasempunho.Griteiomaisaltoquepude,maseratardedemais.Nosfilmesésempretãodramáticoquandoalguémlevaumtiro.Otempo
congela,amúsicaaumentaeenvolveomomento.Quandoabalaatingeocorpo, ele cede, cada membro reagindo em perfeita sincronia,cambaleando, quase flutuando no ar e, embora a intenção fosse seraterrorizante,sempreháalgoperfeitamenteartísticonacena.NãofoiassimcomLuca.Elesimplesmentecaiu.Umahoraestavadepé,
nafrentedaminhamãe,enaoutraestavacaídonochãoemumapoçadoprópriosangue.O som ainda ecoava nosmeus ouvidos quando ela começou a gritar, e
entãoseiniciouumadiscussão,eoportãodosinfernosseabriu.EricCain,ohomemquehaviaatiradoemLuca,atirou-senochãoerolou
emdireçãoaumapilhadecaixotesquebrados.Domcomeçouaatirarnele,abrindoburacosnoscaixotes,fazendocomqueeleselevantasseepulasseentre as caixas como uma gazela, mirando no fundo do galpão. Outrohomem— poucomais do que uma cortina de cabelo louro platinado—tentava desviar de Gino enquanto Felice encurralava o quarto membro,todosatirandoporentreoscaixotes.Nic foi direto na direção de Jack, com a arma em punho,mas foi Jack
quematirouprimeiro.AbalafoipararemumacaixaaoladodacabeçadeNic,queatiroudevolta,masJackdesviou,saltandoparatrásdeumatorredecaixotesedesaparecendodevista.Eunãoconseguiamaisvê-los,masosgritos,misturadosaocaos,aindaeramaudíveis.
Eumearrasteipelochãodecimento, seguindoo sanguedeLucacomoumatrilhaeignorandoadorquepulsavanascostelas.Minhamãejáestavaagachada, tentando tirá-lo do caos com uma das mãos e protegendo acabeçadasbalascomaoutra.Alguémgritoumeunomeemeprepareiparaoimpactodeumabalaquenãoveio.Atrásdenós,umaportabateuequasetodaagritariafoiparaoladode
fora. Quando alcancei Luca, apertei a cintura dele para parar osangramentoquejorrava.Osangueborbulhava,feroz,sobasminhasmãos,encharcandomeusdedosecobrindo-osdeumagosmaquente.— Sophie! — gritou minha mãe, agarrando meus ombros. — Sophie,
vocêprecisairembora!—Não!—Fizmaisforça,sentindoascostelasreclamarem.Aspálpebras
deLucatremulavameseurostoestavapálido.Eraestranhovê-loassim.—Chameumaambulância!Minhamãemesoltouecomeçouatatearocasacoagitadamente.—Estousemotelefone.Eunãopensei...—falouela, indecisa.—Tudo
aconteceutãorápido,Jackdissequeprecisávamossaircorrendoseagentequisesse ter alguma chance de... Ai, estava tão preocupada que malconseguiapensar...—Elasedistraiu,murmurandoincompreensivelmente.Agorajáestávamospertodasaídadogalpão.Elacomeçouapuxarcaixotesànossavolta;construindoumabarreiraimprovisada.NãohaviasinaldeNicoudeJack.Anteseuosouviagritando,masagora
não havia mais nada. Do lado de dentro, o tiroteio havia se encerrado.Alguémhaviatidoobom-sensodelevarocaosparalongedenós,eeunãotinhacertezadequalladohaviapensadonisso,nemseerapormimouporLuca, mas de qualquer forma naquele momento fiquei profundamentegrata.Doladodefora,trêsoutrostirosforamdisparadoseummotorfoiligado.
Alguémestava indoemborana frentedogalpão, e eunão sabia se ficavaaliviadaouapavoradaporisso.—Precisamos pedir ajuda.—Arrastei Luca emdireção à porta com a
mão livre. Ele gargarejou e um jato de sangue escorreu dos seus lábiospálidos,marcandoapelebrancacomogiz.—Éperigosodemais,Sophie—sussurrouminhamãe.—Nãosabemoso
queestáacontecendoláfora.O som de outro motor me assustou. Estava mais afastado, vindo dos
fundosdogalpão.PneuscantarameeusabiaquepelomenosumFalconeestavaindoembora.—Imbecis—xinguei.—Estãoabandonandoele.
—Provavelmenteachamqueelejáestámorto.—Omodocomoeladissetraíasuasprópriasexpectativassombrias.—Estáquase.As lágrimasardiamnosmeusolhos,maspisqueirapidamenteparaque
caíssemedesimpedissemminhavisão.—Sevocêseguraroferimento,possotentarachar...Alguém chutou a porta da frente. Jack entrou apressado no galpão, a
camisaencharcadadesuoreorostoinchadoevermelho.Eleempunhavaaarmaevasculhavacomosolhosogalpãobuscandopossíveisameaças.—Estásalva—disseelesemolharnemparamimnemparaminhamãe,
aindavistoriandoogalpão.—Temosqueir.—Ondeestãoosoutros?—perguntei.—Carterestámorto.Dois tirosnacabeça.Grantaindaestáporaícom
umdeles.Cainlevouumtironobraço,masresistiue...—OsFalcone—interrompi.—OndeestãoosFalcone?Jack não entendeu a aflição na minha pergunta; provavelmente achou
queeramedo.—Cainosatraiuparaumabuscavãatéooutroladodacidade;aqueles
manésachamqueestãomeperseguindo.Pensaramqueiaserfácil,masmesubestimarammaisumavez.Elesnãofazemideiadoquecomeçaram.Voucaçar aqueles merdinhas um por um. Ninguém bota a mão na minhasobrinhaesai impune.—Oorgulhonavozdeleeradesmedido;devesernormal no estranho submundo, onde a moral era completamentedistorcida.—Precisamostirá-lasdaquiantesqueosoutrosFalconevoltem.LigueiparaHamisheeleestáacaminho;vamosencontrá-lona frentedoterreno. Teremos que contabilizar Grant como uma baixa. Ele era novomesmo...Jackinterrompeuodiscursoinflamado.Pelaprimeiravezsuaatençãose
voltoupara nossopequenobunker atrás dos caixotes. Ele avistou Luca eseusolhossearregalaram.—Merda—xingou,fazendoumacareta.—Cheguemparaolado.EleapontouaarmaparaacabeçadeLuca.—Para!—berrei,movendoocorpoparaficarnamiradaarma.Jackseaproximou,pisandonosanguedeLucacomosefosseumapoça
dechuva.Elesuavizouavozemumatentativademeconfortar.—Nãoprecisaolhar.—Jack!—gritouminhamãehistericamente.—Nãoatirenogaroto!Jacknãocompreendia.Lucaeraapenasmaisumapeçaeliminadadoseu
jogo,nosdistraindodafuga.—Celine,seelanãovieragora,nãovamosconseguirlevá-laaumlugar
seguro.Lucaestava inconsciente,maseuaindaouviaumchiadosaindodoseu
peito. Protegi o corpo dele com o meu, deixando que nossas testas setocassememeucabelocaíssenorostodele,escondendo-o.Estendiminhamãolivreenquantoaoutraapertavaoferimento.—Não.—Eleprecisamorrer,Sophie.Éobraçodireitodeles.—Agentilezana
suavozestavasetransformandoemfrustraçãoeapaciência,emurgência.—Nãomefaçaarrancá-lodevocê.—Jack—minhamãetentououtravez.—Precisamosajudá-lo.Ouviseusjoelhosestalandoquandomeutioseagachouaomeulado.—Nãosejaridícula,Celine.Segurei-ocommaisforça.—Vamos, Soph.—Ele agarroumeu ombro eme afastou do corpo de
Lucaemumsómovimento.—Viredecostas.Eumejogueiparafrente,maselemepuxou,mearrastandopelochãoaté
minhaspernasficaremmanchadascomosanguedeLucaeeuestarlongedemaisparaimpedi-lo.Griteiaovê-loapontaraarmaparaacabeçadele.Ouvi um tiro estrondoso. Foimais alto dessa vez, e pareceu alterar as
partículas no ar àminha volta, fazendo-as vibrar umas contra as outras.Minha mãe e eu gritamos, mas Luca, que mal estava vivo, permaneciaintacto.Em vez disso, a arma voou damão de Jack e deslizou aomeu lado no
chão.—Filhodaputa!—xingouele,baixandoa cabeça comumaexpressão
confusa.Abalahaviaatravessadosuamão,eagoraoburacofaziaescorrersanguepelobraço.Jackseencolheunochão,respirandofundoeapertandoseus dedos ensanguentados. Chutei para longe a arma, que deslizoupelochão e parou entre dois caixotes destroçados pelas balas, longe do seualcance.Nofundodogalpão,Niccorriaparanós,orostocobertodeterra,aroupa
ensopada de algo que devia ser o sangue de outra pessoa. Ele aindasegurava a arma, apontada para o meu tio, como se planejasse atirarnovamente.Achoqueelenãoestavabrincandosobreterumamiraperfeita.—Seusamigosestãomortos!—gritouele.Jackcomeçouasearrastarparatrásemdireçãoàporta,levandoocorpo
pelochãocomamãoilesa.— Sophie!— gritou ele, mas ele não me olhava; não me via. Mas eu
estavavendo;seurostoestavapálidoetomadodemedo,eosanguedelese
misturavaaodeLuca.Nicparoudecorrerelevantouaarmanovamente.—Pare!—ordenou.—Nic,não!—gritei.—Elenãoestáarmado.Deixeeleirembora!AcabeçadeNic semexeucomosealgumacoisazunisseporperto.Ele
hesitou.Jackjáestavanaporta;segurouobatentecomamãoboaetentouselevantar.Estavaquaseconseguindo.EentãoNicatirounele.Minhamãeeeugritamos. Jackbateunaportaeumamanchavermelha
começouaseformardoladoesquerdodacamisa.NicparouaoladodeLuca,nemsequerolhouparaJack.Guardouaarmae
seagachouaoladodoirmão,checandoapulsaçãonopescoço.—Precisamoslevá-loparaohospital—disseeleparaminhamãe,que
tremiavisivelmente,mascontinuavapressionandooferimento.Eu estava anestesiada demais para me mover. Continuava encarando
meutioesuanovaexpressãodepânico.Eleaindaestavavivoemeolhavacomocorpometadedentrodogalpãoemetadefora.Observeioferimento— era logo abaixo do ombro esquerdo, não exatamente no coração,masbempoderiatersido.Delonge,deondeminhamãeeNicestavamjuntos,meutiopareciabemmorto,maseuviaoestadodealertanoseurostoeomedonosolhos.Nichaviaatiradopara ferirouparamatar Jack?Eseelesoubesseoqueeu jásabia—queabalanãohaviaatingidoocoraçãodomeutio—,seráqueterminariaoserviço?—Sophie—chamouminhamãe,comavozofegante.ElaeNichaviam
começadoalevantarLuca.—Podenosajudar?Precisoquevocêpressioneoferimentoenquantocarregamosele.Jack merecia meu perdão? Não. Ele merecia morrer? Não era uma
decisão minha nem de ninguém. Não tive tempo para pensar. Eu melevantei sem dizer nada, estendendo a mão para ajudar e bloqueando avisão do corpo do meu tio enquanto caminhava até eles. Então fomosrápidos, os três em sincronia, emdireção aos fundosdo galpão, longedetodoaquelesangue.NãomevireiparaverseJackaindaestavalá.MinhamãeeeucarregamosLucaatéoúltimocarrorestante,enquanto
eucambaleavaaoladodeles,apertandominhascostelascomumadasmãosepressionandooferimentodelecomaoutra.Eentãofomosembora,Lucaeeudeitadosladoaladonobancodetrás,minhamãosegurandocomforçaseutorsoenquantonossasrespiraçõespesadassemisturavam.Enquanto Nic acelerava pela escuridão, imerso em uma conversa
apressadacomminhamãe,eumeentregueiàdoreàescuridãoquehaviam
merondadoanoiteinteira.
CAPÍTULOTRINTAEUM
OHOSPITAL
Pela segunda vez no mesmo verão, acordei em uma cama de hospital.Tudo ao redor era estranho e sem cor. Imagens surreais dançavam naminhamenteenquantoeuficavaali,deitada,mesentindoaummilhãodequilômetrosdaTerra.Leveiamãoaopeitoesentiumalevepontada.—Sophie?—Umsinotilintanterompeuaminhabolha.Virei a cabeça para o lado direito, fazendominha bochecha dormente
pulsar, como se a dor pairasse fora do corpo, me observando. Tenteiresmungar, mas minha voz ficou presa na garganta e saiu em forma dearfadaspatéticaseinsignificantes.— Querida?—Minha visão se estabilizou e vi o rosto da minha mãe
tomando vulto a apenas alguns centímetros do meu. Os olhos estavammarejadoseorostoabatido.—Comoestásesentindo?Tenteifalar,masnãoencontravaaspalavrase,mesmoseasencontrasse,
não teria condições de botá-las para fora. Fiz uma careta e pisqueirepetidasvezes,osmovimentosdaminhamãedesconexos.—Omédicodeumorfinaparavocê.Estácomduascostelasquebradas,o
nariztambém.Nãosepreocupesevocêsesentirumpoucoestranha.—Elapegou a minha mão e apertou com força. Senti apenas um leveformigamento.Eu estava me sentindo eufórica e abatida ao mesmo tempo, e as
memórias passavam como flashes no meu cérebro aturdido enquantoficava deitada na cama do hospital. Eume lembrei da dor de cada golpe
dadopor Calvino; a discussão comLucanamansãode Felice; uma longaviagemdecarroa lugaralgum.Mexiasmãossobacobertae,aospoucos,comeceiaentenderqueestavavestindoumacamisoladehospital.Aomeulado, na mesa de cabeceira, minhas roupas estavam dobradas em umapilha. O cabo de um canivete saltava do bolso da frente. Tive mais ummomentodeconfusãoesóentãome lembreidealgo,maisumamemóriadesconexa.EraocanivetedeLuca.Masporqueeleestavacomigomesmo?Aperteiosolhosatésefecharemetenteientraremcontatocomaspartesmaisobscurasdaminhamente.Quando abri os olhos, Nic estava no quarto, com a aparência de quem
nãodormia haviamuito tempo; o cabelo estava caídona testa e olheiraspesadasmarcavam seus olhos. Ele entregouumcopodescartável de caféparaminhamãeesesentouaoladodela.Porumsegundo,pudejurarquenão eram nada além de cabeças flutuantes, e então a onda de morfinapassou o suficiente para que eupudesse compreender um certo nível derealidade.—Vocêestáacordada.—Eleabriuumlevesorriso.Respondicomumgemidoofegante.Nicse inclinouparapertoatéqueseusolhosescurosdominassemmeu
campodevisão.—Vocêéteimosa,SophieGracewell—repreendeuelecomavozgentil.
—Nãoseioqueeuteriafeitosealgotivesseacontecidocomvocê.Tenteime lembrarumpoucomelhordosacontecimentos.Meucérebro
foitomadoporumamemóriadistantemaspassageiradegritos.EncareiNiccom tanta vontade que senti lágrimas escorrerem dos olhos para meucabelo.Ele passou o dedo gentilmente sob meu olho inchado; eu estava
desesperadaparasentirseutoque,masnãoconseguia.—Vouconsertarisso—disseele.—Prometo.Fecheiosolhos,melembrandocomumsustodocheirodeumidadedo
galpão.Reviumafileiradecaixotesestendidadiantedemimnaescuridão.Niceseusirmãosestavamparadossobumaluzsolitária,discutindo.Quandoabriosolhosnovamente,Nic tinhatiradoamãodomeurosto,
massuaatençãocontinuavaemmim.—Meperdoe—sussurrouele.Pelocantodoolho,enxergueiminhamãe;lágrimascorriamsemcontrole
peloscantosdosolhosdela.— Querida, sinto tanto. Eu não sabia de nada disso. Pensei que você
estavacomaMillieatéJackbaternanossaporta.Eunãotinhaideiadoque
eleestavafazendo.Eunãosabiadenadadisso.Consegui vê-la então, em outra época, em outro lugar, chorando como
agora,vestindoomesmopijamaeasmesmaspantufasqueeutinhadadodeNatal.Estendi amão e segurei o braçodela emuma tentativa de confortá-la,
masmalsentisuapeleporcausadamorfina.Quandomedeiporsatisfeitapelatentativadesajeitada,tenteisentarnacama.— Pare—murmurou Nic, botando a mão na minha.— Não tente se
mexerainda,OK?Pare.Nichaviagritadoissonogalpão.LogoantesdeatiraremJack.Jack.— Jack— falei com dificuldade. O sommal saiu da minha boca, mas
minhamãeentendeu.— Parece que seu tio sobreviveu. — A voz dela não demonstrava
nenhumaemoção.Nãotinhacertezaseelaestavaaliviadaoudecepcionada.Cautelosamente, desviei o olhar para Nic. O rosto dele era ilegível. Nãosabiadizerseeleestavasurpresoounãopelanotícia,masnãoolhavamaispara mim. Desviei o olhar também, mas nossos dedos permaneceramentrelaçados.Quandominhacabeçapousoudevoltanotravesseiro,pareceuquetodaa
confusãonomeucérebrohaviasumido.Minhamemóriavoltouemflashes:balasvoavamàminhavoltaenquantoeumeencolhiacomaminhamãe.ViJack, primeiro segurando uma arma, depois agarrando a própria mãoenquantoosangueescorriapeloseubraço.Nochão,Lucareviravaosolhossem foco e arquejava com dificuldade. Estava deitado em uma poça desangue e meus dedos estavam dentro do corpo dele, tentando mantê-lovivo.Derepente,a imagemdeLucacaindonochãodominouminhamentee
cadamínimodetalhedanossafugaretornouaosmeuspensamentos.Fiqueitãosemarquemeupeitodoeu.Jogueiasmãosparaoalto,agitando-asemdesespero, até conseguir de novo a atenção de Nic. Ele agarrou minhasmãoseasbotououtravezaoladodomeucorpo,segurandomeusdedos.—Estátudobem—garantiuele.—Luca—arquejei.—CadêoLuca?Minharespiraçãoseacelerouparaacompanharmeubatimentocardíaco
e,derepente,oquartocomeçouarodar.Nicprocuravaalgonobolso.Adornas costelas tinha voltado e minha pele parecia se contorcer. Um gritoabafadosubiupelomeupeito.Minhamãeestavadepé,tentandometranquilizar.— Ele sobreviveu— afirmou ela.— Também está vivo, querida. Está
vivo.Nicabriuopedaçodepapelqueestavasegurando.— Está no final do corredor. Perdeu muito sangue, mas está se
recuperando.Conseguimostrazê-loatempo.—Você salvouele— falei, sentindoumsorriso seabrirnomeu rosto.
Eraumsentimentoincrívelnãotermaisquemepreocupar.—VocêatirounaarmadoJack.— Foi realmente impressionante— concordouminhamãe. Dava para
ver pelo tom da sua voz que ela não sabia se ficava impressionada oudecepcionada.—Vocêosalvou—corrigiuNic.Eleestavaenvergonhadoecomosolhos
sombrios.—Vocêparouosangramento.—Foi tão corajosa, querida.—Minhamãe começou a acariciarminha
testa.—Estoutãoorgulhosadevocê.— Tome.—Nicme entregou o bilhete que ele já tinha aberto.— Ele
ainda não consegue andar por aí, mas pediu que eu te entregasse issoquandovocêacordasse.Agarrei o bilhete commais força do que pretendia, quase rasgando o
papel. Era simples e curto, escrito emumabela caligrafia em tintapreta.Demoreiumtempoparaentender:
Faleiparavocêirparacasa.
Senti um sorriso se abrir. Nic me observava com atenção; rugas de
expressãomarcavamatestaeabocaestavatensa.Olheinosolhosdeleeaseriedadedesapareceu.Elesorriuparamimdeformaencorajadora.—Caneta?—pedi.Minhamãerevirouabolsaemeentregouoquepedira.Vireiobilhetee
escrevi na parte de trás. Demorei muito mais do que deveria e, quandoterminei, as linhas soba influênciadamorfinaeram tortas edesconexas,subindoedescendopelopapelcomosefossemescritasporumacriançadeseisanos:
Não está agradecido por eu não respeitar sua
autoridade?
DobreiopapelepasseiparaNic.—Vocêpodeentregarissoparaele,porfavor?A expressão séria voltou a seu rosto e, dessa vez, ele não tentou
esconder.—Claro—concordouele,olhandoparaopapelaosairdoquarto.—Já
volto.Minhamãeseinclinounaminhadireçãoebaixouavoz.— A polícia esteve aqui mais cedo fazendo algumas perguntas. Eles
devemvoltar.— Sem declarações — respondi, repousando de novo a cabeça no
travesseiro.Euqueriadizermais,masestavaficandosemenergia.Minhamãenãopareceusurpresacomaresposta,esóbalançouacabeça.—Não,nãoimaginoquetenhaoquedizertambém.— Bem-vinda a omertà — murmurei. Minha língua parecia pesada e
molenaminhaboca.—Omertà—repetiuela,calmamente,epudeverpeloseutomquesabia
oqueissoqueriadizer.
FIM