Cascaes e as Bruxas de Concreto - 46-1399-1-PB

9
O universo fantástico do desenvolvimento urbano Ana Paula Henrique Revista Santa Catarina em História - Florianópolis - UFSC - Brasil ISSN 1984- 3968, v.1, n.1, 2008. O universo fantástico do desenvolvimento urbano: Franklin Cascaes e as bruxas de concreto Ana Paula Henrique Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC [email protected] Resumo: A obra de Franklin Cascaes é geralmente associada ao universo fantástico na mentalidade das comunidades pesqueiras da Ilha de Santa Catarina. No entanto, em seus desenhos e esculturas há uma crítica implícita ao progresso trazido pelos governadores nas décadas de 1960 e 1970. Neste artigo, busca-se analisar e discutir esse aspecto da obra do artista, um culto à tradição que se perdia em detrimento da modernização. Palavras-chave: Cascaes; Modernização; Universo bruxólico; Tradição; Crítica Social Abstract: Franklin Cascaes’ opus is usually associated to the fantastic universe in the mentality of the fishing communities of the Island of Santa Catarina. However, there’s an implicit critique, in his drawings and sculptures, to the progress brought by governors in the sixties and seventies. This article seeks to analyze and discuss this aspect in the artist’s opus, a cult to the tradition that was being lost in detriment of the modernization. Keywords: Cascaes; Modernization; Witchcraft universe; Tradition; Social Critique The fantastic universe of the urban development: Franklin Cascaes and the concrete witches “As pessoas contam as estórias meio entruncadas, aos pedaços, meio com medo, receosas, cautelosas e de boca pequena. Têm medo de atrair a bruxa. Imagina falar nela?” 1 Freqüentemente citado como o pesquisador que mais ajudou na construção de uma identidade açoriana, bem como disseminador do folclore da Ilha de Santa Catarina, Franklin Joaquim Cascaes hoje faz parte da cultura portuguesa colonial que tanto preservou. Descendente de açorianos, Cascaes nasceu no bairro de Itaguaçu 2 , em 16 de outubro de 1908. 1 CASCAES, Franklin. O fantástico na Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Editora da Cultura Catarinense, 1997. 2 Em 1908, o bairro pertencia a cidade de São José mas atualmente faz parte da cidade de Florianópolis.

description

Artigo sobre o Artista Franklin CAscaes, de Desterro (Florianópolis) SC.

Transcript of Cascaes e as Bruxas de Concreto - 46-1399-1-PB

  • O universo fantstico do desenvolvimento urbano Ana Paula Henrique

    Revista Santa Catarina em Histria - Florianpolis - UFSC - Brasil ISSN 1984-3968, v.1, n.1, 2008.

    O universo fantstico do desenvolvimento urbano: Franklin Cascaes e as bruxas de

    concreto

    Ana Paula Henrique

    Universidade Federal de Santa Catarina UFSC

    [email protected]

    Resumo: A obra de Franklin Cascaes geralmente associada ao universo fantstico na mentalidade das comunidades pesqueiras da Ilha de Santa Catarina. No entanto, em seus desenhos e esculturas h uma crtica implcita ao progresso trazido pelos governadores nas dcadas de 1960 e 1970. Neste artigo, busca-se analisar e discutir esse aspecto da obra do artista, um culto tradio que se perdia em detrimento da modernizao. Palavras-chave: Cascaes; Modernizao; Universo bruxlico; Tradio; Crtica Social Abstract: Franklin Cascaes opus is usually associated to the fantastic universe in the mentality of the fishing communities of the Island of Santa Catarina. However, theres an implicit critique, in his drawings and sculptures, to the progress brought by governors in the sixties and seventies. This article seeks to analyze and discuss this aspect in the artists opus, a cult to the tradition that was being lost in detriment of the modernization. Keywords: Cascaes; Modernization; Witchcraft universe; Tradition; Social Critique

    The fantastic universe of the urban development: Franklin Cascaes and the concrete

    witches

    As pessoas contam as estrias meio entruncadas, aos pedaos, meio com medo, receosas, cautelosas e de boca pequena. Tm medo de atrair a bruxa. Imagina falar nela?1

    Freqentemente citado como o pesquisador que mais ajudou na construo de uma

    identidade aoriana, bem como disseminador do folclore da Ilha de Santa Catarina, Franklin

    Joaquim Cascaes hoje faz parte da cultura portuguesa colonial que tanto preservou.

    Descendente de aorianos, Cascaes nasceu no bairro de Itaguau2, em 16 de outubro de 1908.

    1 CASCAES, Franklin. O fantstico na Ilha de Santa Catarina. Florianpolis: Editora da Cultura Catarinense, 1997. 2 Em 1908, o bairro pertencia a cidade de So Jos mas atualmente faz parte da cidade de Florianpolis.

  • O universo fantstico do desenvolvimento urbano Ana Paula Henrique

    Revista Santa Catarina em Histria - Florianpolis - UFSC - Brasil ISSN 1984-3968, v.1, n.1, 2008.

    95

    Estimulado pela convivncia entre a comunidade pescadora e agricultora durante sua infncia

    e adolescncia, desenvolveu grande interesse pelos personagens e lendas que povoavam o

    imaginrio popular no qual estava imerso.

    noite os trabalhadores se reuniam no engenho, era uma casa de engenho muito grande, no me lembro se havia mais de um andar, mas sei que tinha sete janelas na frente. Eu me sentava l junto com os trabalhadores, eles faziam fogo, arrumavam o trempe de ferro e a faziam caf. Tinha muita fartura porque havia muito cuscuz, biju, aquelas coisas guardadas nas barricas, e eles ficavam ali, tomando caf, conversando e contando causos.3

    At os 20 anos de idade, Cascaes no teve acesso educao escolar. Quando

    finalmente conseguiu incentivo, estudou at se tornar professor da antiga Escola Industrial4.

    Quando foi realizado em Florianpolis, no ano de 1948, o I Congresso de Histria

    Catarinense, dentro das comemoraes do bicentenrio da colonizao aoriana no estado,

    Cascaes j desenvolvia um trabalho sistemtico de pesquisa nas comunidades pesqueiras da

    Ilha de Santa Catarina.5 O objetivo desse congresso era justamente resgatar e achar meios de

    valorizar a colonizao aoriana no litoral catarinense, bem como enfatizar o relato histrico

    que coroa os aorianos como primeiros colonizadores, antes dos alemes e italianos. Nessas

    pesquisas desenvolvidas, o pesquisador conversava, tomava nota, absorvia as lendas e

    histrias passadas de gerao a gerao atravs da cultura oral. Em uma das entrevistas

    concedidas a Raimundo Caruso, contou: De acordo com as histrias que eu escutei, que eu

    vi, que eu comeava a trabalhar a minha arte e as minha histrias6.

    Intitulada Elizabeth Pavan Cascaes, em homenagem esposa, colaboradora e grande

    incentivadora do trabalho de Cascaes, a coleo de sua obra chega ao sculo XXI pelos

    cuidados do Museu Universitrio Professor Oswaldo Rodrigues Cabral, nas figuras de seu

    diretor, Gelcy Jos Coelho, do pesquisador Hermes Jos Graipel Jnior e das muselogas

    Teathianni Cristina da Silva e Aline Carmes Krger. Alm das pinturas em nanquim sobre

    papel e esculturas de barro, o acervo do museu contm as anotaes de Cascaes, em forma de

    dirios. O artista usualmente lembrado por sua abordagem do universo mtico ilhu: bruxas,

    3 CASCAES, Franklin. Entrevista concedida a Gelcy Jos Coelho. Apud: SOUZA, Evandro Jos. Franklin Cascaes: uma cultura em transe. Florianpolis: Editora Insular, 2002. p. 29. 4 Disponvel em: . ltimo acesso em: 10/04/2007. 5 LOHN, Reinaldo Lindolfo. A guerra fria de Franklin Cascaes. Disponvel em: . ltimo acesso em: 25/05/2009. 6 CARUSO, Raimundo C. Franklin Cascaes: vida e arte e a colonizao aoriana. Florianpolis: EdUFSC, 1981. p. 50.

  • O universo fantstico do desenvolvimento urbano Ana Paula Henrique

    Revista Santa Catarina em Histria - Florianpolis - UFSC - Brasil ISSN 1984-3968, v.1, n.1, 2008.

    96

    boitats7, lobisomens, feitios e demnios tomam forma e ganham vida em sua obra, com

    mais de mil peas catalogadas, dirios e folhas avulsas. Entretanto, alm de talentoso artista,

    ele tambm foi um crtico exmio da sociedade moderna, do homem e sua ganncia, dos

    polticos e suas falsas promessas. No esporadicamente elaborou textos e poemas que

    tratavam da depredao do patrimnio histrico em prol do progresso.

    De modo geral, as dcadas posteriores Segunda Guerra Mundial, principalmente as

    de 1960 e 1970, estavam impregnadas por uma atmosfera de medo e admirao pelo poder

    militar que havia sido demonstrado por potncias como Estados Unidos e Unio Sovitica,

    pelas novidades espaciais promovidas pela Guerra Fria. Em sntese, o mundo observava com

    receio as novas tecnologias exploradas pelo homem. Tambm no cenrio local, mudanas

    significativas aconteciam em todo o estado de Santa Catarina. Em 1961, Celso Ramos assume

    o governo e dado nfase ao chamado desenvolvimento catarinense:

    [...] inaugura toda a estrutura que faltava ao desenvolvimento catarinense: um banco estatal (BESC), uma universidade (UDESC), uma concessionria de energia (CELESC) e um fundo de desenvolvimento (FUNDEC). Elaborou ainda o primeiro oramento plurianual de um estado brasileiro; foram construdas novas escolas e ginsios, e criadas a ERUSC (Empresa de Eletrificao Rural de Santa Catarina), bem como a secretaria dos Negcios do Oeste8.

    Outros governadores, como Antnio Carlos Konder (1975-1979) e Jorge Konder

    Bornhausen (1979-1982), tambm tiveram como plano de governo a construo e

    pavimentao de rodovias, como forma de encurtar distncias e facilitar a chegada do

    progresso.

    Pode-se concluir que Cascaes foi profundamente influenciado por esse contexto onde

    o processo de modernizao esbarrava na tradio, colocando esta ltima em risco. Segundo

    Evandro Andr de Souza, em seu livro j citado Fraklin Cascaes: uma cultura em transe

    (2002), o professor-artista sempre se mostrou preocupado com as comunidades que

    inspiraram seus desenhos e esculturas, e, principalmente, com a sua forma de expressar as

    situaes narradas pelos indivduos com quem mantinha contato. Podem-se distinguir dois

    aspectos da vida comunitria desses pescadores e agricultores representados nas obras de

    Franklin Cascaes. O primeiro diz respeito vida cotidiana dessas pessoas: as brincadeiras das

    7 Boitat uma espcie de serpente, com olhos de fogo, j referida por Jos de Anchieta em 1560, original da cultura indgena e assimilada pelos aorianos. 8 Disponvel em: . ltimo acesso em: 10/04/2007.

  • O universo fantstico do desenvolvimento urbano Ana Paula Henrique

    Revista Santa Catarina em Histria - Florianpolis - UFSC - Brasil ISSN 1984-3968, v.1, n.1, 2008.

    97

    crianas, os afazeres domsticos, as festas, o trabalho etc., para o qual o artista desenvolve

    uma soluo plstica que beira o ingnuo.9 Por outro lado, o artista tambm desenvolve uma

    forma diferente de representar o universo imaginrio multidimensional do mito, com traos

    mais fortes e vibrantes. na juno de ambos os tipos de desenho que se define o que se pode

    chamar, segundo Souza, de realismo fantstico10, ou seja, um registro que vai muito alm

    das impresses imediatas das comunidades e, at, das prprias pessoas. O fantstico uma

    manifestao das leis naturais, um efeito do contato com a realidade quando esta percebida

    diretamente e no filtrada pelo vu do sono intelectual, pelos hbitos, pelo conformismo,

    pelos preconceitos.11 Souza declara ainda que:

    [...] as representaes fantsticas feitas por Cascaes at meados da dcada de setenta expressam uma representao do mito totalmente ligada natureza e aos instrumentos de trabalho. A partir do final da dcada de sessenta, o mito passa a adquirir feies urbanas, mostrando mudanas substanciais ao nvel das formas e inspiraes e passa a constituir uma espcie de crtica aos avanos da modernidade em curso na Ilha de Santa Catarina.12

    As bruxas, antes seres estritamente ligados aos elementos da natureza, passam a

    carregar elementos novos incorporados pela intensa urbanizao da cidade. O que antes era

    folha de bananeira, instrumentos de trabalho, ondas do mar, vento, conchas, aps a dcada de

    1970 passa a ser asfalto, cercas de arame, fios que conduzem a eletricidade. A metamorfose

    das comunidades pesqueiras, dos costumes, tradies, inclusive das prprias pessoas quando

    entram em contato com a modernizao propalada no perodo, encontra correspondente nas

    obras de Cascaes.

    fcil constatar essa mudana na composio dos mitos ao se comparar dois desenhos

    feitos em dcadas diferentes. O nanquim sobre papel intitulado Bruxas Do N na Crina e no

    Rabo do Cavalo13 representa um conto popular recolhido nas comunidades visitadas que diz

    que as bruxas incomodam os cavalos durante a noite e, no outro dia, eles aparecem nos pastos

    com os rabos cheios de n. Um desenho posterior, A Bruxa Grande14, conforme Hermes

    Graipel, historiador e muselogo do Museu Universitrio:

    9 A representao ingnua, ou primitiva, pode ser entendida como um tipo de representao no erudita, que por vezes deixa transparecer um aprendizado auto-didtico por parte do autor e, geralmente, retrata um tema popular. 10 SOUZA, Evandro Jos, op cit., p. 61. 11 BERGIER, Louis Jacques. O despertar dos mgicos: introduo ao realismo fantstico. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1970. 12 SOUZA, Evandro Jos, op cit., p. 96. 13 Obra encontrada no Acervo Franklin Cascaes do Museu Universitrio. 14 Obra encontrada no Acervo Franklin Cascaes do Museu Universitrio.

  • O universo fantstico do desenvolvimento urbano Ana Paula Henrique

    Revista Santa Catarina em Histria - Florianpolis - UFSC - Brasil ISSN 1984-3968, v.1, n.1, 2008.

    98

    [...] utiliza-se da simbologia da bruxa, que na sua concepo est relacionada com o no compreensvel o novo sobrepondo-se ao antigo. As pernas da bruxa simbolizam os prdios que vo tomando o lugar do casario colonial portugus at a preocupao com a ecologia ali est representada. Frente a essa transformao motivada pela especulao imobiliria, o homem cede espao. Da bolsa da bruxa caem moedas, uma clara conotao ao dinheiro que tudo pode. A igreja destruda segue juntamente com a percepo de Cascaes, de um tempo que traz em seu bojo um horizonte desconhecido e que deve ser temido15.

    Como pesquisador, o professor Cascaes teve a oportunidade de conhecer o mundo

    fantstico do folclore trazido de Portugal, que aqui se misturou a antigas lendas indgenas e,

    em determinadas situaes, coincidiu com o mundo real. Em algumas dessas situaes, a

    crtica ao real camuflou-se no universo lendrio atravs de analogias, como no desenho A

    Bruxa Grande, evidenciando a preocupao em preservar o passado. Nesse aspecto, o artista

    vira um protestante em favor de uma causa. As transformaes e mudanas que ameaam o

    seu espao, antes pacato e contnuo, o intrigam e o fazem querer registrar o legado que est

    prestes a se perder. O sujeito busca ento se eternizar na memria dos outros sujeitos,

    guardando e arquivando testemunhas evocativas das suas obras e realizaes.16

    A pressa em registrar esse legado, antes disseminado pela cultura oral, foi ditada pelo

    rudo das mquinas que promovem o avano econmico da cidade. A fundao da

    Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) contribuiu muito para o crescimento

    populacional de Florianpolis, bem como a implantao da BR-101. A bruxa que antes

    aparecia nas noites de lua cheia para tomar o sangue dos recm-nascidos no batizados toma,

    agora, a forma do concreto que pavimenta avenidas, onde antes tinha lugar a flora e a fauna.

    Em um desenho intitulado Boitat do Rio Tavares, o artista mostra um boitat contemplando

    as cercas de arame farpado que comeam a aparecer na regio da Lagoa dos Jacars e que, em

    pouco tempo, destruiriam a beleza do local.

    Enquanto ampliava-se o processo de adensamento e verticalizao do centro da cidade, observava-se tambm transformaes em outras localidades da Ilha, por exemplo na Costa da Lagoa, uma das comunidades mais isoladas. Essa transformao vai atingir diretamente a populao nativa, fazendo com que buscasse novos mercados de trabalho: os homens na construo civil e as mulheres como domsticas, ou ainda no comrcio varejista da cidade.

    15 GRAIPEL Jr, Hermes Jos. Apud: BASTOS, Maria das Dores Almeida (org.). Atlas do municpio de Florianpolis. Prefeitura Municipal. Instituto de Planejamento Urbano de Florianpolis. Florianpolis: IPUF, 2004. 16 ABREU, Regina. A fabricao do imortal: memria, histria e estratgia de consagrao no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

  • O universo fantstico do desenvolvimento urbano Ana Paula Henrique

    Revista Santa Catarina em Histria - Florianpolis - UFSC - Brasil ISSN 1984-3968, v.1, n.1, 2008.

    99

    Muitos preferem vender suas terras, motivados pela especulao imobiliria, abandonando a atividade da pesca e da agricultura.17

    Em um conjunto de desenhos que expressam essa crtica modernidade que aniquila a

    tradio, v-se uma espcie de procisso religiosa de abandono feita pelos frutos da pesca e

    da agricultura no mais valorizados, como a tainha e a mandioca. Os desenhos so datados de

    1973 e chamam-se Saudosa Procisso das Tainhas da Barra da Lagoa da Conceio18, onde

    aparecem tainhas indo em direo cidade, representada por prdios e automveis. Logo

    abaixo do desenho encontra-se a seguinte frase: A grande fuga para o asfalto. Morreu a

    pesca artesanal. O mesmo ocorre no desenho Saudosa Procisso da Mandioca19, com os

    tubrculos abandonando o campo e partindo em direo cidade, novamente representada por

    prdios.

    Embora seus desenhos e esculturas constituam, talvez, os elementos mais famosos de

    toda a sua coleo, Cascaes tambm escrevia poemas e cartas s autoridades expressando seu

    ponto de vista a respeito do progresso sem freio em detrimento das comunidades e tradies

    que iam desaparecendo com o tempo. Quando foi demolida a Capelinha de Nossa Senhora da

    Conceio, localizada na Praa Getlio Vargas, o artista escreveu os seguintes versos:

    Ilha se Santa Catarina/ Conversa ao meo corao/ o homem que assim planeja/ Manter tal situao/ De demolir todo dia/ Tua linda tradio/ Eu no consigo entender/ Toda essa demolio/ Que vergasteia-te, minha Ilha/ Na tua bela tradio:/ Por espritos tosqueados/ Desde vesgo mundo co/ O Homem continua sendo/ A velha cpia de Ado/ Espumando caridade/ Andando com os dois ps no cho/ Pobre, expulso do paraso/ Por falta obrigao/ [...] Com herana do passado/ Construmos nosso presente/ No adiante negativismo/ O problema todos sentem/ Ambos formaro o futuro:/ Ponha em funo vossa mente/ Adeus, Capelinha, adeus/ Adeus at a eternidade/ Onde juntos estaremos/ Vivendo a mesma saudade/ Da nossa mui querida Ilha/ Sofrida, sim, de verdade20.

    notvel a preocupao do artista com o quadro de desmonte do patrimnio

    aoriano, como ele mesmo chama. A pequena Ilha estava sofrendo um bruxismo21, cuja

    17 GRAIPEL, Hermes. A fabricao da memria na obra de Franklin Cascaes. Projeto de pesquisa de doutorado. Apresentado ao professor Dr. Pedro Dias, Catedrtico de Histria da Arte da Universidade de Coimbra. Carta aceitao datada de 2002. 18 Obra encontrada no Acervo Franklin Cascaes do Museu Universitrio. 19 Obra encontrada no Acervo Franklin Cascaes do Museu Universitrio. 20 CASCAES, Franklin. Demoliram a Capelinha de Nossa Senhora da Conceio da praa Getlio Vargas de Florianpolis, Ilha de Santa Catarina. Acervo Franklin Cascaes do Museu Universitrio. 21 De acordo com a crena popular, o bruxismo ocorre quando uma pessoa, atacada por uma bruxa, comea a apresentar sintomas como febre, manchas pelo corpo, delrios etc. Diz-se, ento, que a pessoa foi embruxada.

  • O universo fantstico do desenvolvimento urbano Ana Paula Henrique

    Revista Santa Catarina em Histria - Florianpolis - UFSC - Brasil ISSN 1984-3968, v.1, n.1, 2008.

    100

    cura no se podia imaginar, pois no fazia parte do universo conhecido pelas pessoas simples

    descendentes da cultura aoriana. As angustiantes metamorfoses escapavam de seus

    conhecimentos, e as mudanas provocadas por esse bruxismo iam, aos poucos, fazendo as

    velhas tradies, bem como o prprio povo, minguar e perder valor diante da modernizao

    que assolava Florianpolis. Uma bruxa grande por demais que no fazia distino entre os

    que eram batizados e os que no eram.

    Cascaes menciona que a Ilha de Santa Catarina est embruxada pelo capitalismo e pelos gananciosos que exploram os pescadores artesanais, pagando preos insignificantes pelo fruto de suas pescarias e oferecendo quantias irrisrias pelas suas propriedades sem que estes tenham a noo real do verdadeiro valor destas. Queixa-se tambm da poltica chamando-a de madame poltica, uma espcie de fora maligna que atravs dos polticos engana a populao simples.22

    As novas prticas de sobrevivncia nada tinham a ver com a pesca artesanal, ou com a

    confeco das rendas de bilro. Durante essa expanso turstica imobiliria na qual a pequena

    Ilha estava imersa em meados dos anos 60 e 70, os novos costumes e o modo de vida que

    seduziam os antigos pescadores e a mudana em seu comportamento tambm eram alvo de

    crticas:

    A educao que o povo recebe agora, muito diferente da que se obtinha no passado; o homem alm de possuir uma responsabilidade espiritual maior do que a de hoje, tinha tambm condies de incentivo para desenvolver coisas prticas, trabalhos manuais do dia-a-dia. O que infelizmente atualmente no mais possvel de acontecer. Somo meros espectadores espera de que as fbricas nos enviem aquilo que julgamos estar precisando23.

    Os novos valores so vistos com insatisfao pelo artista, pois as mudanas no

    ocorrem apenas no plano socioeconmico. As pessoas so igualmente afetadas e, com elas, as

    prticas, a mentalidade, a perspectiva, o modo de encarar a vida, enfim, tudo sofre uma

    metamorfose que leva o antigo a ser reformulado e obrigado a se adequar a uma situao

    inteiramente desconhecida por ele.

    Pode-se salientar que, como folclorista, Franklin Cascaes obteve xito na tarefa de

    registrar uma cultura popular que at ento era passada oralmente de pai para filho, contando

    apenas com a memria dos indivduos para continuar existindo. Como artista no foi

    diferente, conseguindo representar o nativo ilhu em sua forma sofrida de viver, pesquisando

    22 SOUZA, op. cit., p. 99. 23 ARAJO, Hermetes Reis de. Cascaes: mito e magia da Ilha de Santa Catarina. Porto Alegre: Jornal Correio do Povo, 1981. p. 7.

  • O universo fantstico do desenvolvimento urbano Ana Paula Henrique

    Revista Santa Catarina em Histria - Florianpolis - UFSC - Brasil ISSN 1984-3968, v.1, n.1, 2008.

    101

    e ministrando elementos do barroco, adaptando-os ao seu ideal de pescador e, cima de tudo,

    criando tcnicas plsticas diferenciadas para cada aspecto da vida dessas comunidades.

    Obviamente, no poderia deixar de ser influenciado pelo meio e pelo tempo no qual estava

    inserido, elaborando crticas s mudanas que, do seu ponto de vista, eram nocivas s velhas

    prticas e costumes aorianos, o que justificava seu empenho em salvar esse legado. Sua obra,

    pela profundidade e paixo com que esto retratadas, desde a simples tarefa de bater caf at

    o fantstico folclore nativo, representa uma enorme contribuio memria cultural no s

    no mbito local, como tambm no estadual.

    Franklin Cascaes eternizou, atravs de seus desenhos, poemas e esculturas, toda uma

    complexa rede de ligaes e dependncias das comunidades ligadas ao mar, terra e,

    principalmente, ao imaginrio fantstico que esses elementos naturais podem produzir na

    mentalidade das pessoas. Sendo assim, classificar seu legado seria uma tarefa rdua e talvez

    at incompleta, tendo em vista a amplitude incalculvel de representaes e conotaes

    expressas em seus registros.

    Referncias Bibliogrficas

    ABREU, Regina. A fabricao do imortal: memria, histria e estratgia de consagrao no

    Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

    ARAJO, Hermetes Reis de. Cascaes: mito e magia da Ilha de Santa Catarina. Porto Alegre:

    Jornal Correio do Povo, 1981.

    BASTOS, Maria das Dores Almeida (org.). Atlas do municpio de Florianpolis. Prefeitura

    Municipal. Instituto de Planejamento Urbano de Florianpolis. Florianpolis: IPUF, 2004.

    BERGIER, Louis Jacques. O despertar dos mgicos: introduo ao realismo fantstico. So

    Paulo: Difuso Europia do Livro, 1970.

    CARUSO, Raimundo C. Franklin Cascaes: vida e arte e a colonizao aoriana.

    Florianpolis: EdUFSC, 1981.

    CASCAES, Franklin. O fantstico na Ilha de Santa Catarina. Florianpolis: Editora da

    Cultura Catarinense, 1997.

  • O universo fantstico do desenvolvimento urbano Ana Paula Henrique

    Revista Santa Catarina em Histria - Florianpolis - UFSC - Brasil ISSN 1984-3968, v.1, n.1, 2008.

    102

    GRAIPEL, Hermes. A fabricao da memria na obra de Franklin Cascaes. Projeto de

    pesquisa de doutorado. Apresentado ao professor Dr. Pedro Dias, Catedrtico de Histria da

    Arte da Universidade de Coimbra. Carta aceitao datada de 2002.

    SOUZA, Evandro Jos. Franklin Cascaes: uma cultura em transe. Florianpolis: Editora

    Insular, 2002.

    Fontes Online:

    www.sc.gov.com.br/conteudo/santacatarina/paginas/governadores

    www.pmf.sc.gov.br/franklincascaes/?site=101

    www.cce.udesc.br/cem/simposioudesc/anais/st5/st5reinaldo.doc