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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES CARTOGRAFIAS DO INVISÍVEL Para uma redefinição da serigrafia como meio operativo A dissimulação da repetição Paulo Manuel Pereira Lourenço de Sousa Dissertação Mestrado em Pintura 2015

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

CARTOGRAFIAS DO INVISÍVEL

Para uma redefinição da serigrafia como meio operativo

A dissimulação da repetição

Paulo Manuel Pereira Lourenço de Sousa

Dissertação

Mestrado em Pintura

2015

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

CARTOGRAFIAS DO INVISÍVEL

Para uma redefinição da serigrafia como meio operativo

A dissimulação da repetição

Paulo Manuel Pereira Lourenço de Sousa

Dissertação orientada pelo Professor Doutor José Quaresma

Mestrado em Pintura

2015

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RESUMO

Esta dissertação pretende explorar novas possibilidades na forma de operar com a

serigrafia, bem como as suas valências no contexto dos métodos operativos das artes

plásticas, com base num percurso e num projeto pessoal em pintura. Para esse efeito,

recorremos à cartografia e ao grafismo linear de mapas de cidades de forma a refletirmos

sobre a sua utilização na arte contemporânea. Relacionamos ainda o modo como estas se

organizam e as teorias rizomáticas de Gilles Deleuze e Félix Guattari; a cartografia e as

grelhas de Rosalind Krauss, com o propósito artístico de construir matrizes serigráficas; e

também a função no gesto de fazer “impressões” com as conjeturas de Didi-Huberman.

Investigamos ainda, as consequências artísticas e estéticas de um modo de fazer que

estabeleçam estreitas relações entre a serigrafia, a construção de objetos e a pintura

contemporânea.

Palavras-chave:

Serigrafia; Mapas; Matriz; Pintura, Rizoma.

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ABSTRACT

This dissertation searches for new possibilities into the way of operating with screen

printing, as well as its importance in the context of the operational methods of the visual

arts, based on a personal project of painting. To this end, we resource to the mapping and

the linear drawings of city maps as a way to reflect upon its use in contemporary art.

Also, we establish a connection between the way these cities organize themselves and the

theories of the rhizome by Gilles Deleuze and Felix Guattari; the cartography and the

grids of Rosalind Krauss, with the artistic aim to build screen printing matrixes; and also

the function in gesture of making ‘printings’ with the conjectures of Didi-Huberman. We

investigate also the consequences of a mode of doing by resourcing to screen printing

with respect to the construction of visual metaphors in painting.

Key Words:

Screen printing; Maps; Matrix; Painting; Rhizome.

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AGRADECIMENTOS

No decorrer da realização desta Dissertação de Mestrado tornou-se evidente a

devoção que exige a relação a estabelecer entre a serigrafia, a pintura e a construção de

objetos. No forçoso caminho solitário que se vai traçando, revela-se a grande importância

do apoio daqueles que nos rodeiam. Neste sentido, todos os agradecimentos nesta tese são

intimamente sentidos.

Gostaria de agradecer em primeiro lugar à minha esposa, Sandra Lourenço, pelo

seu sentido crítico e apoio nos momentos de maior agitação, mas, também, toda a

paciência e carinho que me possibilitou ultrapassar os momentos de maior cansaço.

Um agradecimento especial ao meu orientador, o Professor José Quaresma, pela

sua pronta disponibilidade na orientação deste projeto, pelo rigor e a segurança que

demostrou, desde o primeiro momento.

Um grande agradecimento ao incentivo de colegas de trabalho, nomeadamente a

Ana Caria Pereira, Conceição Tavares, Conceição Vieira entre outros.

Por fim, no âmbito da Faculdade de Belas-Artes, gostaria ainda de agradecer aos

meus colegas de Licenciatura e do Mestrado em Pintura, pela colaboração, apoio e

disponibilidade constante ao longo deste percurso académico. Aos alunos da disciplina de

Gravura, um grande bem-haja pela confiança depositada em mim, ao longo dos últimos

anos.

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ÍNDICE

ÍNDICE DE IMAGENS 8

INTRODUÇÃO 11

1.A CARTOGRAFIA 12

1.1.Etimologia da palavra: definição e conceito 12

1.1.1. Breve história da cartografia urbana 14

1.1.2. Pré-História da cartografia urbana 14

1.1.3. Civilizações Pré-clássicas e a cartografia 16

1.1.4. Civilizações clássicas e a cartografia 18

1.1.5. A Idade Média e a cartografia 23

1.1.6. O Renascimento e a cartografia 26

1.1.7. O século do Atlas 30

1.1.8. O século XVIII e XIX 32

1.1.9. A cartografia atual 33

2.Grelhas e Rizomas na Arte Contemporânea

2.1. Rosalind Krauss e a função da Grelha

35

35

2.2. Mille Plateaux de Gilles Deleuze e Félix Guattari 38

3. MATRIZES E IMPRESSÃO 46

3.1. Noção de matriz 46

3.2. Produção de matrizes 47

3.3. Diferentes formas de criar imagens para aplicar nas matrizes Serigráficas 47

3.3.1. Partindo de uma imagem-chave 47

3.3.2. Imagem composta por camadas que se relacionam 48

3.3.3. Abordagem redutora ou direta 48

3.3.4. Matrizes diretas 49

3.3.5. Matrizes indiretas: Recortes de papel e materiais autocolantes 49

3.3.6. Matrizes indiretas: Emulsões fotográficas 50

3.3.7. Matrizes em suportes transparentes 50

3.4. Matriz serigráfica 51

3.5. Impressão por semelhança e contato 52

4. A SERIGRAFIA 58

4.1. Etimologia da palavra e definição do conceito 58

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4.2. Breve história da origem e desenvolvimento do processo 58

4.3. Como opera – a impressão 61

4.4 Notas sobre o “Elemento Pictural” e a “Instalação de Pintura” 62

5. PROJETO PRÁTICO 67

5.1 Modo de fazer 67

CONCLUSÃO 86

REFERÊNCIAS: 88

BIBLIOGRAFIA 88

WEBGRAFIA 91

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ÍNDICE DE IMAGENS

Fig.1 - Representação gráfica do mapa de Çatal Hüyük. Disponível em

http://arthistoryworlds.org/wp-includes/images/Cities1.png

Fig.2 - Pintura mural egípcia com imagens de agrimensores. Disponível em

http://www.sofiaoriginals.com/agrimensor.jpg

Fig.3 - Papiro de Turin. Disponível em https://traveltoeat.com/wp-content/uploads

/2012/10/wpid-Photo-Oct-23-2012-844-AM1.jpg

Fig.4 - Mapa-múndi Babilónico. Disponível em http://ocw.unican.es/humanidades/

historia-del-proximo-oriente/modulo-1/imagenes/imagenes-tabla-modulo1/cuneiforme

.jpg

Fig.5 - Mapa chines impresso em 1155. Disponível em http://www.cartographic-

images.net/Cartographic_Images/220_Ti_Li_chih_Tu_files/droppedImage.png

Fig.6 - Planta da cidade de Mileto. Disponível em http://www.geocities.ws/rensl10/

grecia_arquivos/image004.jpg

Fig.7 - Representação do possível mapa mundial de Anaximandro. Disponível em

https://pt.wikipedia.org/wiki/Anaximandro

Fig.8 - Reconstituição do mapa de Ptolomeu. Disponível em https://pt.wikipedia.org/

wiki/Hist%C3%B3ria_do_mapa-m%C3%BAndi#/media/File: PtolemyWorldMap.jpg

Fig.9 - Fragmento da cópia da Tabula Peutingeriana. Disponível em http://cartographic -

images.net/Cartographic_Images/120_Peutinger_Table_files/ droppedImage_15.png

Fig.10 - Forma Urbis Romae (fragmento). Disponível em https://classconnection.s3

.amazonaws.com/295/flashcards/4635295/jpg/26-1446CB5C0 A4460D395F.jpg

Fig.11 - Mapa tipo T-O de Isidoro de Sevilha. Disponível em http://entrehistorias.com/

wp-content/uploads/2014/10/Mapa-O-T-Orbis-Terrarum-Cartograf%C3%ADa-

medieval.jpg

Fig.12 - Carta de Portulano, atribuída a Pedro Reinel datada de 1504. Disponível em

https://www.google.pt/search?q=cartas+portulanos&biw=1301&bih=620&tbm=isch&tbo

=u&source=univ&sa=X&ved=0CCEQsARqFQoTCK6Gs4r7jMcCFYa3FAod5eoA-

A#tbm=isch&q=cartas+portulanos+carta+pisana&imgrc=mLtYUHzlerfHuM%3A

Fig.13 - Mapa do mundo de Ptolomeu, 1ª versão impressa em Ulm em 1482-1486.

Disponível em https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f0/Claudius _Ptolemy-

_The_World.jpg

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Fig.14 - Mercator – Pai da Cartografia moderna. Disponível em http://users.telenet.be/

michel.vanhalme/mercatorets.jpg

Fig.15 - Projeção de Mercator de 1569. Disponível em https://upload.wikimedia.

org/wikipedia/commons/b/b2/Mercator_1569.png

Fig.16 - Mapa de Veneza de Jacopo de Barbari (1500). Disponível em https://commons.

wikimedia.org/wiki/File:Jacopo_de%27_Barbari_-_Venetie_MD_-_retouched.png

Fig.17 - Joan Blaeu, Africae Nova Descriptio, Atlas Major 1667. Disponível em

http://www.lessingimages.com/w2/320102/32010219.jpg

Fig.18 - Paulo Lourenço, Entangled Lines Opus # I, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre

papel, 34 x 34 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel Pinheiro.

Fig.19 - Paulo Lourenço, Entangled Lines Opus # III, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre

papel, 34 x 34 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel Pinheiro.

Fig.20 - Paulo Lourenço. Crossing Lines Paris I, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre papel,

70 x 70 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel Pinheiro.

Fig.21 - Paulo Lourenço. Crossing Lines Paris II, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre

papel, 70 x 70 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel Pinheiro.

Fig.22 - Paulo Lourenço. Crossing Lines Londres I, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre

papel, 70 x 70 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel Pinheiro.

Fig.23 - Paulo Lourenço. Crossing Lines Londres II, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre

papel, 70 x 70 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel Pinheiro.

Fig.24 - Paulo Lourenço. Crossing Lines New Orleans I, 2013, Gesso e tinta acrílica

sobre papel, 70 x 70 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel

Pinheiro.

Fig.25 - Paulo Lourenço. Crossing Lines New Orleans II, 2013, Gesso e tinta acrílica

sobre papel, 70 x 70 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel

Pinheiro.

Fig.26 - Paulo Lourenço, Crossing Lines Opus # I, 2014, Gesso e tinta acrílica sobre

madeira, 60 x 60 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel Pinheiro.

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Fig.27 - Paulo Lourenço, Crossing Lines Opus # II, 2014, Gesso e tinta acrílica sobre

madeira, 60 x 60 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel Pinheiro.

Fig.28 - Paulo Lourenço, Crossing Lines Black, 2014, Gesso acrílico e grafite em pó

sobre madeira, 60 x 60 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel

Pinheiro.

Fig.29 - Paulo Lourenço, Sem Título, 2014, Gesso e tinta acrílica sobre madeira, 6

módulos com 60 x 60 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel

Pinheiro.

Fig.30 - Paulo Lourenço. Linhas Cruzadas # Opus I, 2015, Gesso acrílico e grafite em pó

sobre papel, 70 x 70 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel

Pinheiro.

Fig.31 - Paulo Lourenço. Linhas Cruzadas # Opus II, 2015, Gesso acrílico e grafite em

pó sobre papel, 70 x 70 cm. Imagem de portfolio do artista. Fotografia: cortesia Daniel

Pinheiro.

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INTRODUÇÃO

A presente dissertação de mestrado consiste num trabalho de investigação teórico

que complementa uma prática que toma como ponto de partida o nosso percurso em

Pintura e em Gravura. Este percurso tem-se caracterizado pelo uso da serigrafia no

processo de construção dos objetos / pinturas ‘cartográficas’. Como tal, o objetivo desta

dissertação relaciona-se com uma nova possibilidade de operar com a serigrafia,

contradizendo os cânones habituais que estipulam e utilizam a serigrafia como técnica

meramente gráfica e plana, da qual não resultam relevos do ato da impressão, e

convertendo-a em técnica ágil e propiciadora de tridimensionalidade, e objetos com força

instalativa.

Neste sentido, no primeiro capítulo pretendemos fazer um levantamento da

história da cartografia, analisando como esta ciência se desenvolveu ao longo dos tempos.

Com o recurso a diversas referências estabeleceremos ligações entre as representações

gráficas das estruturas das cidades e a análise do texto The Grid (1979), da historiadora

de arte Rosalind Krauss. Tentaremos, também, encontrar paralelismos entre a forma

como as cidades se expandem e desenvolvem no espaço e as estruturas rizomáticas,

através do estudo do texto Mille Plateaux (1980) de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

No segundo capítulo, tomamos o conceito de matriz como ponto de partida,

investigando-o não só num leque alargado de aceções, mas, também, procurando

aproximá-lo ao âmbito da nossa prática artística. Posteriormente, indicaremos diferentes

tipologias de desenhos/matriz e a forma como estes se convertem numa matriz de

impressão serigráfica. Concluiremos este capítulo com a abordagem à noção de

impressão e como a matriz é pensada a partir do paradigma do gesto de gerar semelhança

por contacto, explorando as reflexões de Georges Didi-Hubermann no seu livro La

ressemblance par contact: archéologie, anachronisme et modernité de l’empreinte

(2008).

O terceiro capítulo será dedicado à serigrafia. Neste iremos proceder à sua

definição, investigar a sua origem, como se desenvolveu e evoluiu, apontando os

momentos mais marcantes da sua história, desde os seus primórdios até aos nossos dias.

No final deste capítulo exporemos a forma de operar da serigrafia durante o ato de

impressão, relacionando-a com a noção de ‘painterly’ desenvolvida por José Quaresma,

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12

procurando estabelecer paralelismos entre este conceito e categoria subjacentes à

produção dos nossos objetos.

No quarto capítulo será feita uma reflexão sobre o nosso trabalho prático,

nomeadamente sobre os aspetos em foco nesta dissertação. Procuraremos deixar em

aberto neste projeto de investigação, a possibilidade do nosso trabalho teórico-prático se

constituir como forma inovadora de pensar, ver e executar a serigrafia no contexto

artístico, que não exclui uma relação de continuidade entre problemáticas ancestrais e

contemporâneas da prática da Pintura e da reprodutibilidade.

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1.A CARTOGRAFIA

A cartografia impõe-se no horizonte da nossa investigação teórico-prática devido às

seguintes preocupações estéticas e artísticas: pelas qualidades gráficas encontradas em

alguns mapas, pelas composições obtidas pela repetição de grelhas tão características da

arte contemporânea, e o crescente fascínio que os mapas exercem nos artistas plásticos

desde o início do Século XX.

1. 1. Etimologia da palavra: definição e conceito

Etimologicamente Cartografia é uma palavra derivada do grego graphein, que

significa escrita ou descrição, e do latim charta, com o significado de papel, mostra,

portanto uma estreita ligação com a apresentação gráfica da informação, através da sua

descrição sobre papel.

O termo Cartografia foi pela primeira vez empregue em 1839 pelo 2º Visconde de

Santarém, Manuel Francisco de Leitão e Carvalhosa (1791-1856) para referenciar a

“ciência que trata da conceção de mapas e a utilização de cartas”, (Gaspar, 2004: 42). O

termo Cartografia surge assim referenciado numa carta escrita em Paris e dirigida ao

Historiador Brasileiro Adolfo Varnhagem. Antes do termo Cartografia era

tradicionalmente utilizada a palavra Cosmografia, que tem como significado, astronomia

descritiva.

A necessidade de conhecer o espaço onde habitamos, de forma a que nos

possamos localizar e movimentar dentro do mesmo, estimulou o surgimento e o

desenvolvimento da cartografia. Com a cartografia nós somos capazes de documentar o

conhecimento sobre a superfície terrestre. Este conhecimento engloba todos os

elementos, conceitos ou fenómenos cuja localização em relação à superfície terrestre é

conhecida. O que é então a Cartografia? Numa definição um pouco mais tradicional, a

Associação Cartográfica Internacional, publica em 1973 que a cartografia “ Resulta de

um conjunto de estudos e operações científicas, de técnicas que intervêm a partir dos

resultados das observações diretas ou da exploração de documentação variada, com vista

à elaboração e obtenção de mapas, plantas e outros modos de expressão, assim como a

sua utilização.” (Dias, 2007: 27)

Numa definição mais recente, proposta pela International Cartographic

Association em 2003. A Cartografia traduz-se na “Habilidade singular para a criação e

manipulação de representações, visuais ou virtuais, do espaço geográfico – mapas –

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permitindo a exploração, análise, compreensão e comunicação de informação acerca

desse espaço”.

1. 1.1 Breve história da cartografia urbana

A Cartografia é uma área do conhecimento que sempre esteve presente na vida

dos seres humanos. Desde a pré-história até aos nossos dias, os mapas têm ligações

íntimas com a evolução da humanidade e a sua necessidade e desejo de registar e

delimitar o espaço que nos envolve, compreende-lo e representá-lo com grafismos mais

ou menos elaborados. Ao substituírem o espaço real por uma representação de um espaço

analógico (processo básico da cartografia), os homens adquiriram um domínio intelectual

do universo que teve como resultado inúmeras consequências. Os mapas procederam à

escrita e a noções básicas de matemática em muitas sociedades. Esta tem sido uma

necessidade das sociedades desde os primórdios da humanidade até aos nossos dias. Eles

reproduziram e mostraram as mudanças do mundo neles representados, ao longo dos

tempos, desenhando e cartografando a geografia, a economia, a política, o poder e a

evolução urbana das nações. Os mapas representam, assim, a necessidade de descrever,

entender e controlar o mundo.

1.1.2. Pré-História da cartografia urbana

A moderna antropologia prossupõe, segundo Morales, que “as ideias geométricas

de espaço e a sua representação esquemática podem ter surgido na Pré-História”.

(Morales, 2001: 16) Estes povos desconheciam a escrita, mas registavam nas suas

gravuras e pinturas cenas do seu quotidiano, sendo o tema da caça o mais representado.

Várias dessas pinturas apresentam uma preocupação em representar noções de distância e

profundidade, outras a tentativa de mostrar o tempo através da representação de uma

sucessão de acontecimentos, e desenhos que tentam mostrar uma noção de espaço. Só no

Paleolítico Superior, devido a mudanças climáticas e às alterações das rotas migratórias

dos animais entre outros fatores, o homem sentiu a necessidade de se organizar em grupo

para subsistir e ter maior segurança. Passando assim de um estado de nomadismo à sua

fixação em locais específicos. Esta fixação levou ao surgimento da pastorícia e da

agricultura. Neste período civilizacional o homem passa também a organizar o espaço em

que habita, a selecionar sementes, a irrigar o solo, a fabricar objetos de cerâmica, a

conhecer as estações do ano e consequentemente a modificar o seu meio ambiente.

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Aproximadamente à 4000 a.C., no final do Neolítico com aumento da densidade

populacional as aldeias transformam-se, e começam a formar-se as primeiras cidades, o

que consequentemente provoca alterações na esfera da organização social.

Miller e Morales concordam que o mapa mais antigo representando uma cidade, é

o artefacto descoberto em 1963, por James Mellaart, durante uma escavação arqueológica

em Çatal Hüyük (fig.1), na região centro-ocidental da Turquia, e que tem a sua origem há

cerca de 6.200 anos a.C. Segundo a sua descrição, “o mapa é, na verdade, a planta do

povoado neolítico de Çatal Hüyük. Nele encontramos representados os traçados de ruas e

um conjunto de cerca de 80 edificações, visualizando-se também e em plano de fundo o

vulcão Hasa Dag em erupção.” (Miller, 2000: 12) e (Morales, 2001: 18). Este mapa

primitivo apresenta algumas semelhanças com o traçado das plantas das cidades

modernas.

Fig.1 - Representação gráfica do mapa de Çatal Hüyük

Somente há alguns anos, mapas como os de Çatal Hüyük, e gravações similares

em rocha e outros suportes como a argila e as peles de animais ou o papiro, oriundos da

África, das Américas, da Ásia e Europa, começaram a ser estudados como uma categoria

da pré-história da cartografia. Isto reflete não apenas as dificuldades em identificar mapas

das sociedades primitivas, mas também a tendência na história da cartografia em tornar

rígidos os cânones dos mapas considerados “aceitáveis”.

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1.1.3. Civilizações Pré-clássicas e a cartografia

Uma das mais antigas civilizações do mundo é a egípcia, tendo surgido há mais de

quarenta séculos no fértil vale do rio Nilo, no continente africano. O estudo do urbanismo

no Egito tem apresentado algumas dificuldades aos arqueólogos, uma vez que, os registos

mais antigos terão sido eliminados pelas enchentes daquele rio. As grandes cidades do

antigo Egito, caracterizam-se pelo registo da existência de habitações modernas,

monumentos e complexos de templo em pedra com grandes avenidas e alamedas, bem

como pela existência de grandes palácios nivelados ao longo do rio, bem como a

existência de grandes necrópoles com túmulos e pirâmides reais.

Seguindo a cronologia da Cartografia, no Egito, durante o antigo império (2.780-

2.380 a.C.) é de registar o elevado conhecimento da geometria visíveis pelas grandes

estruturas construídas, as pirâmides. Os egípcios inventam e desenvolvem a medida

agrária (fig.2), pois após as cheias do rio Nilo, era necessário reconstruir os limites dos

campos a cada nova inundação, sendo essencial a criação de registos cadastrais, ou seja

registos cartográficos. Este foi o povo que fez o primeiro mapa topográfico-geológico

conhecido, o Papiro de Turim (fig.3). Encontrando-se nele representado o percurso de

acesso às minas de ouro situadas na região da Núbia.

Fig.2 - Pintura mural egípcia com imagens Fig.3 - Papiro de Turim.

de trabalhadores a medirem os campos.

A Mesopotâmia é a região onde viveram os sumérios, os acádios e os assírios.

Localizada entre os rios Tigre e Eufrates foi nesta região que por volta de 3.500 a.C. terão

surgido os primeiros povoados desta zona. Inicialmente formaram-se aldeias isoladas,

junto às ricas margens destes rios, o que permitiu o rápido desenvolvimento da

agricultura e o surgimento de grandes cidades-estado. Nos seus aspetos físicos, estas

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cidades encontravam-se circundadas por uma muralha e um fosso, como medida de

proteção, no centro e em destaque pela sua volumetria encontramos os templos e os

palácios desenvolvendo-se em sua volta o casario de uma forma desordenada e irregular.

Dos povos da Mesopotâmia, e do seu legado sobre a capacidade de cartografar,

encontram-se registos em inúmeras placas de argila. Sobre estas encontramos

representações de cidade e de territórios por eles dominados, podemos observar um

Mapa-múndi (fig.4), que segundo a Historia da Cartografia. Este mapa “a ideia que os

Babilónios têm do mundo, concebido como uma massa circular, cujo contorno define o

seu mar, sob a abobada celeste”. (Aguilar, 1967: 16)

Fig.4 - Mapa-múndi Babilónico.

Tratando-se aqui de uma sintese da história da Cartografia, não podemos deixar de

referenciar a obra dos cartografos da civilização chinesesa, como um claro exemplo da

utilização prática dos conhecimentos cartográficos, referindo a sua utilização pelo poder

contituído, desde a antiguidade, sempre com o objetivo de registar em mapa os recursos

naturais e as suas potencialidades

“Já se comprovou, por exemplo, a utilização dos mapas da China antiga como

instrumentos de poder, quer se tratasse de mapas cadastrais ou demarcatórios de

fronteiras, documentos burocráticos ou protocolos diplomáticos, planos para a

conservação de linhas de água, meios de fixar impostos, ou documentos

estratégicos da logística militar”. (Harley, 1991: 8)

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Na Cartografia antiga da China destacamos o nome de Pei Hsiu, que viveu entre

223 e 271 d.C. tendo desenvolvido importantes princípios da Cartografia, como a

localização de pontos através da utilização de quadrículas, o uso da escala para

determinar distâncias, a indicação da latitude.

É também de referir outro marco importante da Cartografia chinesa, o surgimento

do primeiro mapa impresso (fig.5) conhecido e datado de 1155. Nele encontra-mos

representado cerca de um quarto do território chinês, com a Grande Muralha, rios e

montanhas.

Fig.5 - Mapa chines impresso em 1155.

No Século XV, o Almirante da frota imperial chinesa Zheng He (1371-1433)

elaborou um mapa náutico contendo informações sobre as rotas marítimas do Oceano

Índico, desde o sul da Ásia até à costa leste africana. O mais interessante é reconhecer

que os chineses, muito antes de os europeus terem dado os primeiros passos na direção da

Cartografia científica, já tinham alcançado avanços significativos no processo de registar

em mapas o seu vasto território.

1.1.4. Civilizações clássicas e a cartografia

A união de várias tribos e dos seus povoados, estarão na origem da organização

política da antiga Grécia e o surgimento das primeiras cidades-estado com características

próprias: a existência de uma Acrópole, templo construído numa elevação; a Ágora, a

existência de uma praça central como local de reunião dos seus habitantes e o Asty,

mercado onde se realizavam trocas de produtos. Em Atenas Pisístrato (560 a 527 a.C.)

durante o seu governo da cidade fez várias reformas de caráter urbanístico: dividiu as

propriedades; determinou a participação dos cidadãos nas Assembleias e nos Tribunais;

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realizou várias obras públicas, como a construção de portos, templos, canais, aquedutos,

esgotos, bibliotecas públicas, entre outros equiparados. Esse período é muito importante

para a história da cidade, devido ao aparecimento dos traçados urbanos ortogonais, da

realização das primeiras tentativas sistemáticas de planeamento e realização de

melhoramentos na cidade.

A partir do século VI a.C. encontramos os primeiros esboços desta conceção nas

colonias fundadas pelos gregos na Sicília e no Mar Negro; mas‚ só na primeira metade do

século V, com a reconstrução da cidade de Mileto (fig.5), destruída pelos persas em 494

a.C., é que assistimos verdadeiramente à construção de um plano ortogonal. Em Mileto, o

traçado ortogonal adapta-se bem ao contorno sinuoso do promontório que avança pelo

mar a dentro, local onde se fixou a cidade. (Goitia, 1992: 55)

Fig.5 - Planta da cidade de Mileto.

A Grécia Antiga legou-nos grandes avanços sobre o conhecimento geográfico da

terra e da matemática necessário para o desenvolvimento da representação Cartográfica.

Os gregos, segundo Morales, “Deram um impulso decisivo para o progresso da ciência ao

criarem as bases para o posterior desenvolvimento cartográfico, com conceções muito

mais profundas, abstratas e racionais que os povos precedentes”. (Morales, 2001: 32)

O urbanismo helénico, fruto deste período, criou as chamadas cidades

hipodâmicas1, caracterizadas pela sua rigorosa simetria, em contraste com a liberdade das

cidades clássicas gregas caraterizadas pelo seu traçado irregular ou radíocêntrica.

Nos seus estudos sobre os problemas existentes nas cidades gregas, o filósofo

grego Hipócrates encarava a cidade de maneira real, observando os efeitos do ambiente

1 Hipódamo viveu em Mileto na Jónia (atual Turquia) no séc. VI a. C. Sócrates refere-se-lhe como o

fundador do urbanismo. Foi o divulgador, senão mesmo o inventor, do sistema urbanístico de malha regular

que se tornou conhecido por Sistema Hipodâmico. Este sistema consiste na organização das cidades através

de ruas dispostas numa matriz ortogonal, criando blocos habitacionais entre elas (insulæ) e em que todos os

edifícios públicos e religiosos ou praças se encaixam nessa malha.

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urbano sobre os habitantes, tanto no aspeto físico quanto no aspeto moral. Mas foi preciso

chegar nos Platão e Aristóteles, nos séculos IV e V, para se instaurar uma verdadeira

reflexão urbanística. Aristóteles (384 a.C. a 322 a.C.) torna-se o grande teórico do

urbanismo da Grécia antiga. Ele aconselha a escolha de um sítio, não apenas salubre, mas

que permita um abastecimento fácil, devendo a cidade tirar partido, tanto do mar como do

campo. No que diz respeito à estrutura urbana, defende uma especialização dos bairros

segundo a sua função: comercial ou artesanal, residencial, administrativo e religioso.

Aristóteles recomenda especialmente a criação de duas praças bem distintas, uma

reservada à vida pública e outra consagrada às atividades comerciais. Quanto às ruas,

Aristóteles imagina-as retas e perpendiculares, dispostas regularmente ‘segundo o sistema

de Hipódamo’.

Das antigas civilizações, a que terá dado um maior contributo para o

desenvolvimento da Cartografia, pelas suas aplicações práticas e pelo seu legado ao

mundo ocidental, terá sido a civilização grega. A ela devemos os conhecimentos básico

da atual Cartografia como, a conceção da forma esférica da Terra, a noção de polos e dos

círculos máximos da Terra, além da ideia de latitude e longitude, sendo dela também o

desenvolvimento das primeiras projeções.

Analisemos alguns nomes que se destacaram na antiga Cartografia grega, como:

Anaximandro de Mileto, que viveu entre 611 e 547 a.C. e que terá sido o autor do mais

importante mapa do mundo da sua época (fig.6); e Hecateu que, nasceu por volta de 500

a.C. e deu continuidade à obra de Anaximandro, atualizando o seu mapa.

Fig.6 - Representação do possível mapa mundial de Anaximandro.

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É também considerada decisiva para o desenvolvimento da Cartografia o trabalho

de Eratóstenes de Cirese (276-196 a.C.). Era astrónomo, filósofo e matemático, foi

“diretor” da Biblioteca de Alexandria, onde terá recolhido elementos sobre o método

Egício de medir os campos, um dos grandes contributos deste povo para o

desenvolvimento da Geodesia2. Foi baseando-se nestes métodos que Eratóstenes de

Cirese terá feito o cálculo da medida circunferência da Terra.

Mas, a maior contribuição para a Cartografia dada pelos gregos deve-se a Cláudio

Ptolomeu (fig.7), astrónomo e matemático (90-168 d.C.).

Fig.7 - Reconstituição do mapa de Ptolomeu.

Na sua obra Geografia, composta por oito volumes, dedica importantes capítulos

ao estudo da cartografia, como o cálculo de projeções cartográficas com detalhes sobre as

técnicas de elaboração para a criação de um mapa-múndi, onde se encontravam registadas

a localização de mais 8.000 lugares, existindo uma relação entre estes e as suas

coordenadas. Ptolomeu foi um dos primeiros cartógrafos, a usar escalas na criação de

mapas. Na obra Planisphaerim encontramos a sua tentativa de projetar e representar a

passagem da tridimensionalidade da esfera terrestre, para um só plano. Fazem parte da

Geografia de Ptolomeu a criação de um mapa-múndi e outros 26 mapas temáticos que

teriam constituído o primeiro Atlas Universal. Ptolomeu é considerado “o pai” da

Cartografia, os seus mapas são executados com base no seu “tratado”, A Geografia.

Viveu em Alexandria onde dirigiu a famosa biblioteca entre 150 e 127 a.C.

2 GEODESIA - É a ciência que estuda a superfície da terra com a finalidade de conhecer a sua forma

quanto ao contorno e ao seu relevo, como também à sua orientação, tendo em consideração a sua curvatura.

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Dos Romanos, poucos exemplos cartográficos chegaram até aos nossos dias, e

mesmo estes têm um carácter eminentemente pragmático, Roma quebra a evolução do

pensamento grego, deixando de parte a preocupação com as questões sobre a

representação da terra por projeções mais adequadas. “Os romanos transladaram ao

plano, tal como a descobriram na sua falsa ótica, arriscando mesmo a situar os povos em

lugares errados” (Aguilar, 1967: 37). Temos como exemplo os mapas convencionalmente

chamados, “itinerários”, temos os “numéricos”, compostos por listas de lugares com as

respetivas distâncias entre eles, e os “gráficos”. Dentro dos que chegaram até nós, o mais

famoso é um mapa de Itinerários chamado Tabula Pentingeriana (fig.8) atribuído a

Cartorius que o teria executado no Século IV e do qual existe uma cópia do Século XII ou

XIII.

Fig.8 - Fragmento da cópia da Tabula Peutingeriana

Na Cartografia urbana a regra estabelecida por todo o império, era a da

organização das cidades em Insulae, ou Quadras. Ou seja por um sistema de quadrículas,

correspondendo cada fragmento ou a um quarteirão – esta tarefa era atribuída aos

topógrafos do império. O exemplo de uma planta com este tipo de traçado é o da famosa

Forma Urbis Romae (fig.9). Uma planta da cidade de Roma da qual são conhecidos

fragmentos, dos quais encontramos representações de edifícios importantes.

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Fig.9 - Forma Urbis Romae (fragmento).

Do ponto de vista urbanístico, as cidades do Império Romano têm a sua origem na

herança das cidades gregas, das quais “copiaram” todas as características técnicas:

esgotos, aquedutos, água corrente, balneários, pavimentos, serviço de incêndio,

mercados, etc. Havia-as, como é natural, de vários tipos, conforme a sua evolução

histórica, condições do solo, clima e características locais. Em relação ao traçado, Goitia

Assinala que este, ou representava o desenvolvimento das povoações locais, ou terá sido

ampliado e enriquecido, ou tinha origem numa cidade grega romanizada criada a partir do

sistema hipodâmico, ou eram ainda cidades de implantação recente, como as que

provinham de antigos acampamentos militares. (Goitia, 1992: 59)

1.1.5. A Idade Média e a cartografia

Apesar da importância de Ptolomeu para o desenvolvimento da Cartografia

enquanto ciência, a sua obra permaneceu ignorada durante a época romana, e

desconhecida na Idade Média. Este foi um período marcado por grandes retrocessos na

ciência, na cultura e nas Artes, resultante de um predomínio dos conceitos religiosos e de

todo o saber estar subordinado às interpretações bíblicas. A visão cosmológica medieval,

concebe assim Jerusalém como o centro da terra, o que originou o surgimento de mapas

tipo O-T (fig. 10). Nesta visão simplista da Terra, o O é a circunferência que envolve

todo o mapa e representa a terra rodeada por mar. O T representa os três rios que saiam

do paraíso terreno dividindo a Terra nos três continentes conhecidos da época. Europa,

Ásia e a Africa, tendo como o seu centro a cidade de Jerusalém.

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Fig.11- Mapa tipo T-O de Isidoro de Sevilha

Existiam também mapas de Itinerários que referenciavam percursos e distâncias

entre dois pontos, geralmente entre cidades. Os grandes desenvolvimentos desta época

foram os mapas Portulanos, desenvolvidos pelos avanços técnicos da navegação

marítima. Por volta do Século XV, a necessidade de se deslocarem por mar, num mundo

pouco conhecido e cada vez mais disputado. O recurso às cartas marítimas ou Portulanos

caracterizadas pela representação gráfica das linhas de costa, e alguns elementos

geográficos reconhecíveis do mar, serviam de referência aos navegadores que raramente

perdiam a linha de costa do seu campo de visão. As cartas Portulanos (fig.12) não

possuíam coordenadas geográficas, mas sim linhas direcionais (linhas de rumo) que

partiam de uma rosa-dos-ventos principal e que se cruzavam com outras em redor da

primeira. Este traçado permitia calcular pontos para diferentes rotas com o auxílio de uma

bússola, uma novidade tecnológica para a época.

Fig.12- Carta de Portulano, atribuída a Pedro Reinel datada de 1504

As principais escolas a produzirem este género de mapas são Italianas e Espanholas.

Segundo Buisseret, entre os cartógrafos e os artistas estabeleceram-se uma serie

de relações ao longo da história da Cartografia. Os primeiros artistas cartógrafos terão

sido os irmãos Limbougs e os irmãos Van Eick, que executaram vários Livros de Horas,

contendo, uma coleção de textos litúrgicos para cada hora do dia, continham um

calendário das estações do ano, e a ilustrar cada mês uma pagina ricamente ornamentada

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com representações de edifícios ainda hoje identificáveis. Podemos declarar, que a partir

desta época grande parte dos mapas passam a ser ricamente ornamentados, sendo por

vezes difícil separar as ligações do trabalho cartográfico da criação artística. Podemos

também afirmar, que este é um período em que a Cartografia se encontra restrita aos

detentores do poder, aos homens cultos e aos navegadores. A principal razão para que

isto tenha acontecido foi a inexistência da impressão, o que tornou difícil a divulgação de

livros e mapas, todas as cópias são de execução minuciosa e dispendiosas. (Buisseret,

2003: 30)

Sob o aspeto urbanístico, além do decrescimento da qualidade de vida nos centros

urbanos e da falência de infraestruturas das cidades, a época medieval reflete-se, tanto

nos elementos que compõem a cidade, quanto no seu desenho, de caráter

predominantemente orgânico.

Segundo Goitia, a cidade medieval apresenta uma forte característica no que diz

respeito ao seu aspeto físico. Por necessidades de defesa, a cidade medieval “ fica

geralmente situada em locais de difícil acesso ou expugnáveis: colinas ou sítios abruptos,

ilhas, imediações de rios, procurando principalmente as confluências ou sinuosidades, de

modo a utilizar os leitos fluviais como obstáculos para o inimigo”. (Goitia, 1992: 96) Em

relação ao traçado medieval, o autor afirma que o “ fato de ter, muitas vezes, que se

adaptar a uma topografia irregular condicionou a fisionomia especial e o pitoresco da

cidade medieval. O traçado das ruas tinha que resolver as dificuldades da localização, o

que fazia com que elas fossem irregulares e tortuosas. As ruas importantes partiam em

geral do centro e dirigiam-se radialmente para as portas do recinto fortificado. Outras

ruas secundárias, frequentemente em círculo a volta do centro, ligavam as primeiras entre

si. Em linhas gerais, este padrão, chamado radiocêntrico3, que se repete muito nas cidades

medievais”. (Goitia, 1992: 97)

Além do elevado número de cidades com planta radiocêntricas existentes na

europa medieval, existe ainda uma variedade de esquemas planimétricos para ilustrar as

cidades medievais. Para Goitia, Alguns dos tipos fundamentais que ilustram a planta da

cidade medieval são: cidades lineares (as construídas ao longo dos caminhos); cidades em

cruz (as que possuem duas ruas básicas que se atravessam perpendicularmente uma à

outra); cidade nuclear (as formadas em torno de um ou mais pontos dominantes: igreja,

3 Planta Radio Centrica carateriza-se por ruas circulares e radiais à volta de um centro (rotunda, castelo,

igreja, praça, mercado ou um centro de negócios.

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catedral, castelo, etc.); cidade espinha de peixe (possuem uma rua principal de onde saem

outras secundárias, paralelas entre si mas oblíquas em relação à principal); cidade

acrópoles (as que utilizam eminências topográficas) e cidades esquadria (semelhantes à

cidade em cruz). Em relação a morfologia, o autor aponta para três tipos fundamentais,

que abarcam todas as variantes e diversidades: as irregulares, as radiocêntricas e as

regulares ou ortogonais, quadriculares e tabuleiro de xadrez (Goitia, 1992: 99)

1.1.6. O Renascimento e a cartografia

Para o desenvolvimento da Cartografia Renascentista contribuíram vários fatores.

Podendo destacar-se a redescoberta de Ptolomeu, com a tradução da sua obra Geografia

para o latim em 1405. O surgimento da imprensa na Europa, o que permitiu a difusão de

livros e mais tarde dos mapas. As viagens ultramarinas levadas a cabo pelos europeus, e

um abrandamento das tensões do pensamento científico e do domínio da Igreja.

Em Portugal, a criação da Escola Náutica de Sagres, em meados do século XV, foi

um importante passo para o desenvolvimento das viagens marítimas facilitando a

ampliação do conhecimento do mundo, permitindo a formação de pilotos, marinheiros e,

sobretudo, promovendo avanços científicos na área da cosmografia, resultando numa

melhoria da segurança das atividades náuticas. Com o recurso a este método astronómico

que permite uma orientação mais segura, com a introdução de um meridiano graduado

nos mapas Portulanos, o que possibilita a leitura das latitudes, o uso do astrolábio e a

redescoberta da bússola possibilitaram um grande impulso da navegação, pelo aumento

da sua segurança no traçado de novos rumos.

No que diz respeito à Cartografia das cidades e à redescoberta dos mapas e das

ideias geográficas de Ptolomeu, tanto Lúcia Nuti como Naomi Miller sublinham que

“uma das primeiras coleções conhecidas de mapas de cidades, surgiram em três

manuscritos da Geografia de Ptolomeu. Produzido em Florença, na segunda metade do

século XV, estes mapas de cidades foram anexados ao mapa-múndi e a outros mapas

regionais” (Nuti, 1956: 23; Miller, 2000: 34). Estes três documentos com o nome de,

Vaticanus, Urbinas e o Parisinus, terão sido traduzidos param o latim em 1406, e foram

complementados com novos mapas de representações de cidades do mundo mediterrâneo.

Este conjunto de documentos pode ser assim, um embrião para o primeiro esboço de um

Atlas de cidades.

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Com o aparecimento da imprensa em Ulm, de 1482-1486, surge o primeiro mapa

de Ptolomeu (fig.13) impresso da Europa. Destacando-se nesta primeira edição, uma

representação do mundo onde se pode observar a utilização de uma projeção mais

elaborada e uma melhoria dos detalhes geográficos.

Fig.13 - Mapa do mundo de Ptolomeu, 1ª versão impressa em Ulm em 1482-1486.

Apesar deste avanço tecnológico, a disseminação da imprensa terá sido lenta,

tendo os cartógrafos desta época continuado a produzir mapas recorrendo às técnicas

medievais, nomeadamente os mapas Portulanos, que conviveram com a projeção de

Ptolomeu e, mais tarde, com a de Mercator. Gerhard Kremer, ou Mercator foi um dos

mais importantes cartógrafos desta época, considerado o percursor da Cartografia

moderna, Mercator (fig.14).

Fig.14 - Mercator – Percursor da Cartografia moderna

O seu grande projeto foi a execução de um mapa-múndi publicado em 1569

(fig.15). Este reproduzia as costas da América Central e uma representação mais exata da

Ásia, incluindo o sudeste deste continente. A inovação deste mapa encontra-se na

aplicação e uso da projeção cilíndrica. Com este método Mercator traçou um mapa onde

as linhas de meridianos e paralelos formam ângulos retos, ou seja, os meridianos

aparecem como linhas retas perpendiculares ao Equador. Este é o motivo pelo qual, este

tipo de projeção permitia a representação reta da linha loxodrómica, ou seja, a linha dos

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rumos magnéticos, facilitando sobretudo a navegação marítima. Esta qualidade da

projeção cilíndrica tornou-se popular entre os cartógrafos e a sua disseminação espalhou-

se pelo mundo, apesar das distorções de algumas áreas, em especial nas regiões polares.

Fig.15 - Projeção de Mercator de 1569.

Vejamos a relação de alguns artistas com a cartografia em diversos pontos da

Europa, poderíamos traçar uma história particular da pintura partindo da evolução da

própria Cartografia. Artistas como Leon Battista Alberti (1404-1472), Leonardo da Vinci

(1452-1519), Raphael (1483-1520), Michelangelo (1475-1564), Albrecht Dürer (1471-

1528), Pierre Pourbus (1524-1584) e Cornelis Anthonisz (1499-1556), terão dado o seu

contributo para a Cartografia, realizando e projetando mapas de cidades, que mostram a

crescente preocupação e consciência na representação das relações de escalas. Existindo

um que se demarca das restantes representações cartográficas da época: trata-se do mapa

de Veneza de Jacopo de Barbari (fig.16), de 1500. Com as dimensões de 122x275 cm, é

constituído por seis blocos de madeira, portanto uma xilogravura.

Fig.16 - Mapa de Veneza de Jacopo de Barbari, 1500

Este mapa de Jacopo de Barberi é uma xilogravura que prima pelas suas qualidades

estéticas, pela graciosidade da sua composição, pela segurança da projeção da perspetiva

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mostrando-nos a cidade de Veneza de um ponto de vista nunca alcançado pelos seus

contemporâneos.

Como já referimos a partir do século XVI tem início o período das grandes

descobertas marítimas, a princípio reservadas às duas nações ibéricas: Portugal e

Espanha. No século seguinte, juntam-se a elas: Holanda, Inglaterra e França, dando

continuidade à expansão mundial da civilização europeia.

Na Europa, durante o período do renascimento, de acordo com Goitia, este afirma

que a principal “ atividade urbanística durante o século XV e XVI consiste, em grande

parte, em alterações no interior das velhas cidades e, geralmente, modificando muito

pouco a estrutura geral”. Ainda segundo o autor, a “abertura de algumas ruas novas, com

edifícios solenes e uniformes, e sobretudo a criação de novas praças, regulares ou quase

regulares, para enquadramento de um monumento destacado, uma estátua para honrar um

rei ou um príncipe, ou para representações ou festejos públicos, são os empreendimentos

urbanos mais apoiados, que o período barroco irá continuar ainda em maior escala”.

(Goitia, 1992: 116)

O pensamento utópico vigente da época idealiza cidades geométricas perfeitas,

com predominância dos traçados regulares e apresentando simetrias e proporções rígidas

na execução das vias e praças. Para Benevolo, “as novas cidades seguem um modelo

uniforme: um tabuleiro de ruas retilíneas, que definem uma série de quarteirões iguais,

quase sempre quadrados; no centro da cidade, suprimindo ou reduzindo alguns

quarteirões, consegue-se uma praça, sobre a qual se debruçam os edifícios mais

importantes: a igreja, o paço municipal, as casas dos mercadores e dos colonos mais

ricos”. (Benevolo, 1993: 97)

O modelo em tabuleiro, idealizado pelos espanhóis no século XVI para traçar as

novas cidades da América Central e Meridional, é aplicado pelos franceses e pelos

ingleses no século XVII e no século XVIII, para a colonização da América Setentrional,

ou como no caso da reconstrução de Lisboa e outras cidades portuguesas após a sua

destruição pelo terramoto em 1755. Segundo o historiador e crítico de arte, José Augusto

França, após este cataclismo o rei D. José I terá incumbido o seu secretário de Estado dos

Negócios Estrangeiros e da Guerra, Sebastião José de Carvalho e Melo, também

conhecido por Marquês de Pombal, a implementar medidas urgentes para a reconstrução

da cidade de Lisboa. Pelo que terá surgido passado um mês pela mão do general Manuel

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da Maia, engenheiro-mor do Reino, um estudo contendo várias hipóteses para a

reconstrução de Lisboa. Optou-se por arrasar e renovar toda zona baixa da cidade, sobre o

qual transcrevemos:

[…] arrasar o que restava da cidade velha, na sua parte central, ou baixa, mais

danificada pelo terramoto, e planificá-la com inteira e conveniente liberdade.

(França, 1989: 16)

Manuel da Maia apresenta então um conjunto de seis propostas de plantas, criadas por

equipas de engenheiros e arquitetos para a reconstrução da parte central da cidade à

apreciação do rei ou de Pombal e, ainda, quatro modelos de fachadas, um deles destinado

ao Terreiro do Paço. Foi selecionada a proposta da planta de Eugénio dos Santos:

“É constituída por uma malha assaz complexa de ruas que garante dinamização

do conjunto. Os dois pólos da Baixa, o Terreiro do Paço e o Rossio… do Terreiro

do Paço, mas nascem três quarteirões acima. Isso permite activar o ritmo da

malha urbana, evitando a sua monotonia — para o que igualmente contribuem as

ruas transversais, sete no total, mas três intervindo de maneira particular, pois

definem blocos de casas de diferente configuração. A variação da largura das ruas

e a variação de forma e da orientação dos quarteirões (quarenta alongando-se no

sentido S.-N., doze no sentido E.-O. e três quadrados) determinam um processo

urbanístico dinâmico”. (França, 1989: 25-28)

1.1.7. O século do Atlas

O século XVI dá início à fase do Atlas. O primeiro Atlas a ser publicado tem por

autor Abraham Ortelius e foi chamado, Theatrum Orbis Terrarum sendo a primeira

edição de 1570, foi traduzido em seis línguas e até 1612 teve cerca de quarenta edições.

Outros cartógrafos publicaram também os seus atlas, como: Hondius, Janssonius, Blaeu,

Visscher entre outros. Em 1635, surge o Atlas Major (fig.17) que foi executado pela

família Blaeu, um dos Atlas mais ricamente decorado do século XVII tendo surgido de

uma parceria entre cartógrafos e artistas.

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Fig.17 - Joan Blaeu, Africa e Nova Description, Atlas Major, 1667

Um dos mais famosos Atlas de cidades, é o Civitates Orbis Terrarum de Georg

Brun e Franz Hogenberg, composto por seis volumes editados entre 1572 e 1617,

contendo 546 vistas de olho de pássaro e perspetivas de cidades quase todas europeias.

Joan Blaeu (1569-1673) também produziu um Atlas de Cidades que foi publicado

em dois volumes na Holanda, em 1649.

No século XVII voltamos a encontrar mais parcerias entre cartógrafos e pintores

na criação de Atlas como no caso de Jacques Callot (1592-1635), David Vingboons

(1576-1632), Johannes Vingboons (1616/17-1670), Jan Van Goyen (1595-1656), Pieter

Saenredam (1597-1665) e Gaspar Andriaans Van Wittel (1653-1736).

No final do século dos Atlas, surgiu em França, pela mão do abade J. Picard

(1620-1682), a geodesia moderna. O seu trabalho permitiu fazer a primeira determinação

rigorosa do raio da Terra, numa operação que efetuou entre 1668 e 1670. Outro

contributo importante veio do livro publicado por Gian Domenico Cassini, onde

explicava como obter a longitude dos lugares a partir dos satélites de Júpiter. Cassini foi

nomeado em 1671 diretor do observatório de Paris. Para a Real Academia de Ciências de

Paris, existiam dois grandes objetivos: um a medição do raio da Tera e o outro a revisão,

correção e aperfeiçoamento das técnicas cartográficas. Estas duas questões encontram-se

interligadas. A medição mais exata do raio da Terra, permitiria que se determinasse a

amplitude de um grau da Terra, a dimensão da longitude. Com o tamanho exato da

longitude, do 1º arco da Terra, os mapas poderiam ser executados de uma forma mais

precisa. O Abade Picard, David Vivier e Gilles Personne de Roberval foram encarregados

de fazer uma Carta da Ile de France. Cassini sob proteção real, foi incumbido de fazer um

levantamento cartográfico de toda a França, sendo que a partir de 1670 estes

levantamentos apresentam já todas as medições corretas.

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1.1.8. O século XVIII e XIX

Caraterizado por um aperfeiçoamento das técnicas de levantamento topográfico, o

século XVIII mostra-nos uma produção de mapas cada vez mais exatos, mais científicos.

No início do século, assiste-se a desenvolvimentos científicos para a medição de solos e o

aperfeiçoamento dos instrumentos de levantamento topográfico – que permitem fazer

medições mais exatas, baseadas em triangulações. A cartografia urbana fica também mais

precisa e mapas de grande escala passam a ser produzidos.

Em relação aos seus aspetos físicos, o traçado das cidades barrocas não apresenta

diferenças significativas em relação às cidades clássicas. A cidade barroca é a herdeira

dos estudos teóricos do renascimento onde os seus traçados, são baseados na pura

harmonia geométrica com autonomia da perceção visual. Os principais alicerces do

urbanismo barroco são: a linha reta e a perspetiva monumental. Durante o período

barroco, a França destaca-se em matéria de urbanismo. O urbanismo francês deste século

possui um tema que será largamente adotado pelo barroco: a praça monumental dedicada

a servir de quadro à estátua do rei. A praça de Concórdia, em Paris é um exemplo deste

estilo.

No século XIX, o crescimento experiencial das cidades levou à proliferação da

quantidade e no tipo de mapas. Os mapas passaram a fazer parte do dia-a-dia das cidades

e dos seus habitantes. Foram levadas a cabo novas formas de utilização para os mapas:

mapas das condições sociais, das zonas de incidência de doenças, registos de epidemias e

análise de locais, zonas de comércio – não deixando de produzir os outros mais comuns,

tais como, os mapas militares, cadastrais, do território e das estradas. A nova arte de

governar populações exigia um conhecimento e uma investigação minuciosa dos seus

segmentos e individualidades, com o fim de garantir a sua administração de uma forma

racional. As ciências humanas e a cartografia urbana tornaram-se, então, nos seus

principais instrumentos.

A revolução demográfica da era industrial modifica radicalmente a distribuição da

população das cidades, transformando-a em aglomerados populacionais ao serviço das

indústrias. A elevada concentração de habitantes nas cidades, acarreta consequências que

merecem ser estudadas. No final os problemas urbanos são de tal monta que surgem

propostas e justificações para projetos e ações que procuram resolver estes problemas.

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O urbanismo é então a disciplina que procura entender e solucionar os problemas

das cidades. Segundo Harouel, o termo “urbanismo”4 é relativamente recente (Harquei,

2004: 7). No entanto, conforme Benevolo, pode-se dizer que o urbanismo moderno

nasceu até mesmo antes de se utilizar este termo, isto é, entre 1830 e 1850. (Benevolo,

1993: 105)

O desenvolvimento das cidades e do urbanismo desta caraterizam-se pelo

desenvolvimento das primeiras leis sanitárias, que evoluíram mais tarde para uma

legislação especificamente de natureza urbanística, definindo as densidades, os critérios

para a implantação de loteamentos, a distância entre edificações, e sua altura, e até a

característica de cada edificação, isto é, espaços, aberturas e materiais a serem empregues

na construção dos edifícios.

Em Paris as preocupações urbanas, levaram ao surgimento do que se pode chamar

de urbanismo estético com grandes preocupações rodoviárias. O grande mentor desta

tendência é o barão Haussman que foi Presidente da Câmara de Paris, no período de 1853

a 1870, durante o reinado de Napoleão III. Neste período renovou o aspeto de Paris, com

a abertura de grandes espaços urbanos e avenidas, modificando os velhos quarteirões

ainda medievais. Na prática, sobrepõe à cidade existente, uma nova rede de avenidas,

com edifícios de caráter monumental, incluindo as principais sedes de poder

governamentais e civis. Esta visão urbanística de Haussmam viria a influenciar outras

cidades francesas e europeias, como Turim, Viena, Bruxelas e algumas cidades das

colonias francesas.

1.1.9. A cartografia atual

A história da Cartografia no século XX encontra-se profundamente vinculada ao

desenvolvimento científico e técnico das áreas do saber ligadas ao Estado, espacialmente

à geopolítica. As duas Grandes Guerras Mundiais e os seus desdobramentos, como a

Guerra Fria e a corrida espacial, acabaram canalizando e aumentaram as pesquizas

destinadas ao levantamento cartográfico sistemático de todo o planeta, com o uso de

tecnologias como a fotografia aérea, as imagens de satélite e radar, o uso do computador

4 Este termo foi criado em 1867 pelo arquiteto espanhol Cerda, na sua Theorie generále de l’urbanisation,

tradução francesa, Paris, 1979.

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e todos os avanços a ele vinculados, como a Internet e os Sistemas de Informação

Geográfica.

Nos anos setenta, a NASA lançou o LANDSAT, um satélite que permitiu executar

mapas a partir das fotos por ele recolhidas, esta é uma fase de grande mudança e evolução

da cartografia, a passagem para a era do digital. Em 1974, foi feito um dos primeiros

mapas via satélite, o mapa gráfico dos relevos dos EUA.

O desenvolvimento da informática, permitiu o surgimento de uma nova forma de

conceber mapas, o que veio a revolucionar a Cartografia tradicional. O surgimento de

novos programa como o CAD (Computer Aided Design). CAM (Computer Aided

Mapping), AM/FM (Automated Mapping/Facility Management), que permitem a

conversão de mapas analógicos para o meio digital, transformando uma base cartográfica

impressa em papel, numa base cartográfica magnética.

Nos anos 80, surge um novo satélite o SPOT (Systeme Probatoire d’Observation

de la Terre), que capta imagens e as combina com diferentes padrões espectrais como os

infravermelhos, permitindo fazer um levantamento e registo das zonas de ocupação

humana, demarcar zonas de poluição, a áreas de desflorestação, o avanço da erosão dos

solos. A captação de imagens por sinal remotas está assim, na vanguarda da prática do

levantamento cartográfico e no controle das sociedades contemporâneas.

Em 1995, após décadas de estudos e desenvolvimento surge o GPS (Global

Positioning System). O GPS funciona a partir de uma rede de 24 satélites que se

encontram distribuídos em seis planos, próximos a órbita do planeta Terra. Estes satélites

enviam sinais para um recetor (o aparelho de GPS), permitindo ao aparelho interpreta

esses sinais localizando assim a nossa posição num determinado momento.

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2. Grelhas e Rizomas na Arte Contemporânea

2.1. Rosalind Krauss e a função da Grelha

Em 1979, a historiadora e crítica de arte norte-americana Rosalind Krauss publicou o

livro “The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths”, incluindo neste o

ensaio “Grids”, onde faz uma análise da aplicação e do uso da grelha na pintura

modernista, classificando-a como “esquizofrénica” por possuir um comportamento

ambíguo e praticamente simultâneo na sua funcionalidade.

Para o exemplificar, Krauss elege a figura da grelha como ilustração do que os artistas

modernos viram como uma afirmação contra as heranças do passado: a grelha moderna

era um vislumbre sem precedentes, nada se lhe assemelhava. Krauss relaciona a sua

génese com os tratados escritos no século XIX sobre a relação entre a ótica e a psicologia.

Pelas suas características espaciais (materialista, geometria regular, plana), a grelha

declara o espaço da arte como sendo autónomo e autotélico5 e, a veicular alguma coisa,

então será o seu ‘anti naturalismo’, ‘anti mimetismo’ e ‘antirreal’. “It is what art looks

like when it turns its back on nature” (Krauss, 1986: 9) Por todas estas qualidade que a

caracterizam, a grelha ao contrário da perspetiva – que é a projeção pictórica do mundo

exterior – faz uma rejeição do natural, do real, e dá primazia à superfície da pintura

através do uso da repetição e da modulação. Neste sentido, o poder da grelha é

ambivalente: esse poder reside na sua capacidade de se “esconder” e de se “revelar”

simultaneamente, apresentando-se assim como uma “bandeira da liberdade” ou

autonomia do artista (Krauss, 1986: 12). Por outro lado, é por analogia “esquizofrénica”.

Acaba por ser uma restrição a essa liberdade devido à sua tendência peculiar para a

repetição. Mas em nenhum momento Krauss desconsidera a pintura em virtude das

‘limitações’ impostas pela grelha. Os diversos movimentos artísticos – Futurismo,

Dadaísmo, Construtivismo e Cubismo – cada um com as suas particularidades, tornaram

a grelha modernista num “emblema” do seu tempo, da modernização e da

industrialização. A nosso ver, ela reflete ironicamente a uniformização e a produção em

massa. Por outras palavras, a grelha coloca a cultura contra a natureza e o corpo: “ela vira

as costas à natureza”.

5 Designa aquilo que tem sentido apenas para si mesmo, que não precisa ter um resultado, uma finalidade

além dele próprio.

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Retícula centrífuga e retícula centrípeta

Para Rosalind Krauss, a grelha pode ser entendida de maneira esquizofrénica.

Não se trata aqui de uma esquizofrenia patológica, ou negativa em qualquer aspeto. Essa

leitura é feita de duas maneiras: centrífuga e centrípeta. Na perspetiva centrífuga, a grelha

é uma representação diminuta do mundo exterior, ela continua para além dos limites da

tela, sendo um fragmento do mundo real. Por exemplo, algumas obras de Mondrian, por

mais que pareçam simplesmente retas e planos coloridos, são na verdade a expressão

máxima do abstracionismo. Na intenção do pintor, o que se procurava era a simplificação

radical de todas as formas e cores da natureza, além de exaltar as propriedades físicas da

cor e da perceção ótica. Já na perspetiva centrípeta, a obra deixa de ser uma ‘janela para o

mundo’, e faz a total separação entre o mundo e a arte, tornando-se uma projeção de si

mesma e uma leitura auto-referencial da obra de arte (Krauss, 1986: 21-22). Todas essas

condições acabaram por colocar a grelha como um discurso simultaneamente estético, e

não como um elemento estrutural da imagem.

A grelha é na sua essência formal uma matriz de conhecimento em termos

comparativos. No caso dos tratados de ótica, relaciona a parte com o todo, ou um

elemento e o seu universo. Transpondo este conceito para a formalização do espaço

urbano, a grelha é naturalmente útil à sociedade, pois geometriza, planeia e ordena tudo.

A sua aplicabilidade universal é uma das características da grelha ou usando a

terminologia de Krauss, a sua direção centrífuga. A direção centrífuga da grelha é um

efeito das operações da ciência e a sua influência na arte, um desejo de acrescentar e

organizar uma estrutura ao mundo. A direção centrífuga estende-se em todos os sentidos

até ao infinito, os limites de que o observador percebe são meramente arbitrários. A

grelha, tomando esta forma é um fragmento de uma pequena peça arbitrária/aleatória

cortada ao infinito.

No outro extremo do conceito de grelha, como já analisámos, está a direção

centrípeta, isto é, a grelha concentrada na superfície do trabalho como algo completo e

internamente organizado. Esta aceção da grelha não tende para a desmaterialização da

superfície, mas converte-a antes no objeto de visão, funcionando como representação dos

limites do mundo.

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É a direção centrífuga que mais está incorporada na criação do traçado urbano, pois a

grelha permite a evolução da urbanização segundo parâmetros cartesianos. A grelha com

características centrífugas é também a matriz que melhor ilustra a parte prática desta

dissertação. Os objetos por nós executados têm a sua origem em pequenas secções de

plantas e mapas de cidades, construídos a partir de composições formadas por retículas e

quadrículas que se estendem para além do limite do suporte, não tendo um início nem um

fim, podendo ser observados de diferentes ângulos, podendo o espectador ‘entrar’ ou

‘sair’ do objeto por qualquer das suas arestas.

A propósito de grelhas, forças centrípetas, estruturas “latentes e patentes”, José

Quaresma, num capítulo da sua obra Instalar e Habitar Picturalmente o Mundo, afirma

o seguinte:

“Contudo, antes de nos envolvermos no gesto tão performativo quanto proto-instalativo

daquela exposição de pinturas em Petrogrado, pretendemos fazer referência à criação de

algumas grelhas “cubo-futuristas” e “alogistas” que a precedem, interligando-as aos

contributos de Rudolf Arhneim, The Power of the Center (1982), de Hannah Higgins,

The Grid Book (2009), mas sobretudo à investigação de Rosalind Krauss, Grids (1979).

Queremos ainda explorar nas grelhas, a sua função simbólica de mediação entre duas ou

mais instâncias, independentemente de se encontrarem inscritas em superfícies e

volumes de maneira ‘bem patente’ ou ‘muito latente’, tanto as ortogonais como outras,

contando-se também entre estas as que têm natureza não euclidiana. Por grelhas não

ortogonais entendemos aqueles entrecruzamentos de linhas, mas também de módulos,

planos e espaços, dos quais resultam supressões e descontinuidades, fragmentações

surpreendentes, por vezes aparentemente caóticas e orgânicas, outras vezes

verdadeiramente caóticas, mas rizomáticas e conjugadas em horizontes que podemos

antecipar, ou então, grelhas curvas não euclidianas.”6

Pensamos que algumas destas modalidades de grelha são exploradas no nosso

trabalho artístico e fazem corpo com o conjunto de preocupações estéticas que temos

6 Nota: Referências Bibliográficas incompletas. Este e-book será publicado em 2016, acesso à pré-

formatação por cortesia do Professor Doutor José Quaresma.

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vindo a apresentar, sejam as de natureza mais modernista, sejam as mais

contemporâneas. Vejam-se agora algumas das possibilidades de reticulação rizomática

propostas por Deleuze e Guattari.

2.2. Mille Plateaux de Gilles Deleuze e Félix Guattari

A análise deste texto tem como objetivo explorar algumas das potencialidades da

noção de rizoma, não apenas como um conceito, mas sobretudo, como um método de

pesquisa, evidenciando as suas ressonâncias com a temática contemporânea da

construção de grelhas e redes. Tendo por base os conceitos formulados por Gilles

Deleuze e Félix Guattari acerca do rizoma no texto Mille Plateaux, procuraremos

mencionar algumas ideias centrais dos autores sobre aquilo em que consiste o método

rizomático, dando particular atenção aos princípios de decalcomania e de cartografia,

procurando consubstanciar a sua aplicação na construção dos nossos objetos/pinturas.

A estrutura em árvore o livro-raiz. Biunívoco

As estruturas arbóreas estão sempre ligadas à unidade. A unidade inicial, o tronco,

estabelece um princípio unitário indivisível. Toda a estrutura é restrita à ideia de unidade

e às suas ramificações, os ramos. Cada elemento é chamado nó, e faz assim, parte de uma

estrutura sempre condicionada ao uno e ao múltiplo, não à multiplicidade.

Este sistema pressupõe uma hierarquia, ou seja, a apreensão de algo está dependente do

elemento que o precede e cada elemento está submetido a uma cadeia: o que antecede e o

que lhe sucede. Este é um modelo que apresenta limitações, pois, os ramos só comunicam

com o tronco e nunca entre si de forma autónoma, representando por isso o sistema em

árvore uma estrutura sistemática de exposição de conteúdos. É uma estrutura hierárquica

que compreende centros de significação e de subjetivação, sendo por isso um modelo

organizado excessivamente centralizado.

É necessário ter presente que nas classificações científicas o que é afirmado para

os elementos que se encontram num nível superior é também válido para os seus

subordinados, enquanto que o inverso não se verifica. Isto representa apenas um exemplo

das restrições deste sistema. Tentaremos ver como no domínio artístico estas

condicionantes se tornam constrangimentos criativos, tanto a jusante como a montante, a

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par do domínio da árvore na realidade e pensamentos ocidentais “de la botanique à la

biologie,l’anatomie, mais aussi la gnoséologie, la théologie, l’ontologie, toute la

philosophie…: le fondement-racine, Grund, roots et fundations.” (Deleuze & Guattari,

1980: 27-28)

O sistema-radícula

Neste sistema, a raiz originária foi abortada, há um espaço vazio e, no entanto, o

dualismo (sujeito/objeto, homem/natureza) permanece. Ainda que ausente, o texto-raiz é

retomado no sistema-radícula, é repetido à exaustão em partes menores.”Cette fois, la

réalité naturelle apparaît dans l’avortement de la racine principal.” (Deleuze & Guattari

1980: 12). O objeto é agora o elemento que está no centro da atenção. Deleuze e Guattari

elegem tal lógica de raiz fasciculada, onde se retira o tronco principal (ou pivô) que

caracterizava o sistema arborescente. Esta forma de pensar aceita o múltiplo em relação

aos objetos. Parte-se aqui do objeto e não do sujeito. Contudo, apesar de eliminar o

tronco principal e aceitar o múltiplo das coisas, este sistema remete sempre a uma

unidade que é vista como uma solução. Portanto, se as estruturas arborescentes admitem a

hierarquização como prioridade do sistema, a radícula, apesar de abortar o tronco

principal, trás consigo uma solução totalmente ordenada por uma escala de valores.

O Rizoma em Mille Plateaux

Para encontrar uma forma mais contemporânea que desse campo às diferentes

fases da estrutura do pensamento, foi necessário a Gilles Deleuze e a Guattari saírem do

modelo arborescente, remissivo e essencialista, para um modelo que proporcionasse uma

representação mais próxima da superfície, do pensamento que se propaga pela vastidão,

tendo para tal os autores produzido o modelo rizoma.

O conceito de rizoma tem sua origem na biologia e representa alguns tipos de extensões

subterrâneas do caule, para armazenamento de nutrientes, que se alongam

horizontalmente, mas que não são raízes nem tubérculos (Petit Larousse, 1965). Estas

extensões do caule correspondem à imagem de um emaranhado de linhas que se

interligam, onde não se distingue início, nem o fim ou o centro, a imagem é de linhas que

se propagam ad infinitum, incorporando cada uma o seu próprio devir. Os filósofos

franceses recorrem a esta imagem para explicar como se processaria o pensamento. Para

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cada elemento constitutivo deste modelo, existe um conceito ou outra imagem

complementar e explicativa, que se relaciona com a imagem-rizoma e com outros

conceitos do sistema circunstancial dos autores.

Um destes conceitos-imagens que explicam o rizoma são as linhas. As linhas dentro de

um rizoma são elementos que comportam no seu devir uma rotura da dicotomia

uno/múltiplo, as linhas de um rizoma são uma multiplicidade, pois cada individualidade

carrega em si a heterogeneidade. Cada indivíduo e cada objeto encontram-se repletos de

potencialidades, que só se realizarão de acordo com os encontros com outros objetos

exteriores, promovendo saltos, ruturas e conexão com outros devires, com outras linhas,

produzindo agenciamentos. Os agenciamentos são as ligações entre os diferentes estratos

da ‘realidade’, impulsionados pelo desejo. “On n’a plus une tripartition entre un champ

de réalité, le monde, un champ de representation, le livre, et un champ de subjectivité

[...]” (Deleuze & Guattari, 1980: 34), tudo pode ser alcançado bastando para tal que haja

vontade, aumentando, assim, a sua dimensão, modificando a sua natureza e

potencializando a sua diversidade no acontecimento. O agenciamento é um grande

conjunto de relações. Todo o agenciamento existe dentro de uma Territorialidade, plano

de imanência do agenciamento; cada agenciamento provoca um esforço territorializante,

cria um mapa que representará o agenciamento, as suas múltiplas ligações. Uma linha de

fuga, que se propague em qualquer direção fora deste território é o que os autores

chamam de Desterritorialização. Porém, este processo carrega em si virtualmente um

intuito territorializante, cada Desterritorialização provocará o início de um novo

Território Existencial, como referem os autores:

“Un rhizome ne commence et n’aboutit pas, il est toujours au milieu, entre les

choses, inter-être, intermezzo. L’arbre est filiation, mais le rhizome est alliance,

uniquement d’alliance.” (Deleuze & Guattari, 1980: 36).

Não designando uma correlação ou reciprocidade, mas um movimento transversal.

Se o rizoma deve expressar os agenciamentos que se produzem nos acontecimentos, esse

mesmo rizoma não pode ter uma estrutura definida, pois, assim, aconteceria um

aprisionamento, como na árvore. O rizoma transforma-se em novas formas a todo o

momento, escapando às configurações prévias. Deleuze e Guattari dão-nos algumas

indicações sobre a produção de um rizoma e fazem isso elaborando seis princípios, que

visam justamente reafirmar a falta de uma configuração prévia para um rizoma.

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O primeiro princípio trata da conexão, num rizoma um ponto pode ligar-se a outro

independentemente da sua origem, não existindo no rizoma nenhum esquema de oposição

ou binaridade que não possam ser ligados. Assim, o esquema rizomático não tem em

conta as genealogias (esquema arborescente) ou evolucionismos; pensar multiplicidades é

saber que, ao contrário de definições fechadas e de conceitos prévios, o que se tem são

agenciamentos, ligações entre todos os lados, hibridismos que mudam de acordo com os

novos acontecimentos que se criam. As entradas de um rizoma são múltiplas, fazendo

com que este não tenha um centro e que o mesmo tome qualquer direção e forma. Não

existe uma forma prévia, nem determinismos, as ligações são feitas por contágio ou

contato.

“Dans un rhizome au contraire, chaque trait ne renvoie pas nécessairement à un

trait linguistique: des chaînons sémiotiques de toute nature y sont connectés à des

modes d’encodage très divers, chaînons biologiques, politiques, économiques,

etc., mettant en jeu non seulement des régimes de signes différents, mais aussi

des statuts d’états de choses. Les agencements collectifs d’énonciation

fonctionnent en effet directement dans les agencements machiniques, et l’on ne

peut pas établir de coupure radical entre les régimes de signes et leurs objects.”

(Deleuze & Guattari, 1980: 13)

O segundo princípio trata da heterogeneidade e afirma que o rizoma não se reduz

à linguagem. A língua é uma das linhas do rizoma, mas não a única. Um rizoma vai além

das ligações puramente linguísticas, sendo atravessado por cadeias biológicas, políticas,

materiais, culturais, económicas, em todas as suas modalidades. Não existe superioridade

de uma área em relação à outra, mas apenas agenciamentos que ligam coisas de natureza

diferente num mesmo plano.

O terceiro princípio é o de multiplicidade. A verdadeira multiplicidade é

heterogénea, não existindo por isso qualquer relação com a unidade, com o centro. A

multiplicidade muda de natureza à medida que aumenta o número de conexões. A

multiplicidade é constituída por linhas e não por pontos como na árvore (termo que os

autores preferem ao de o múltiplo) cuja inexistência de unidade seria a sua característica

principal (n-1). Assim, na instância da multiplicidade não faz sentido falarmos de sujeito

ou de objeto, já que se trata aqui de grandezas e determinações que se expandem de

acordo com os seus agenciamentos: “Un agencement est précisément cette croissance des

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dimensions dans une multiplcité qui change nécessairement de nature à mesure qu’elle

augmente ses connexions” (Deleuze & Guattari, 1980: 15)

No quarto princípio, o de rutura a-significante, o rizoma é estranho a qualquer

tentativa de significação e de hierarquia. As linhas de um rizoma nunca param de remeter

informação umas para as outras, o que exclui a possibilidade do Uno se transformar em

dois. Podem fazer-se ruturas, as linhas de fuga são ruturas, todavia, estas linhas podem

reterritorializar o conjunto, pois, transportam informações da estrutura, sendo que o

rizoma é sempre um esboço contínuo, um devir, uma cartografia a ser traçada sempre e

novamente, a cada instante.

O quinto e sexto princípios são a cartografia e a decalcomania

O rizoma produz agenciamentos múltiplos, configurando um mapa que a todo o

instante está em mudança. E desta maneira, ao reproduzirmos este mapa, estamos a criar

um decalque de um determinado instante dele. O método cartográfico é utilizado como o

instrumento que vai ‘fotografar’ o acontecimento. É disto que tratam o quinto e sexto

princípios do rizoma, isto é: a cartografia e a decalcomania.

“ […]un rhizome n’est justiciable d’aucun modèle structural ou generative. Il est

étranger à toute idée d’axe génétique, comme de structure profonde.” (Deleuze &

Guattari, 1980: 19)

Nestes dois últimos pontos, Deleuze e Guattari vão opor o mapa ao decalque

como imagens do rizoma e da árvore. O decalque pode ser interpretado, neste contexto,

como o refazer de algo que já foi feito. Quando nos colocamos na estrutura arbórea

seguimos apenas caminhos pré-estabelecidos, sem qualquer possibilidade de subversão.

Voltamos às ideias tranquilizantes, à estrutura. Em Mil planaltos são feitas analogias com

a psicanálise ou a linguística, no sentido em que se procura encontrar um objeto

inconsciente cristalizado, como forma de poder descodificar qualquer trama. O mapa, em

oposição ao decalque, é um rizoma. “ La carte est ouverte, elle est connectable dans

toutes ses dimensions, démontable, renversable, susceptible de recevoir constamment des

modifications.” (Deleuze & Guattari, 1980: 20)

Deleuze e Guattari dizem-nos que o mapa não reproduz um inconsciente fechado

sobre si mesmo, mas que antes o constrói. O inconsciente apresenta entradas e saídas, o

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próprio desejo ou os sonhos não podem ser explorados em absoluto por uma estrutura,

são mapas que se constroem, desmontam, reconstroem, rasgam, invertem não sendo por

isso decalques.

“Elle peut être déchirée, renversée, s’adapter à des montages de toute nature, être

mise en chantier par un individu, groupe, une formation sociale. On peut la

dessiner sur un mur, la concevoircomme une ceuvre d’art, la construire comme

une action politique ou comme une méditation. C’est peut-être un des caractères

les plus importants du rhizome, d’être toujours à entrées multiples; le terrier en ce

sens est un rhizome animal, et comporte parfois une nette distinction entre la

ligne de fuite comme couloir de déplacement, et les strates de reserve ou

d’habitation.” (Deleuze & Guattari, 1980: 20)

A cartografia e a decalcomania são princípios que se encontram subjacente à parte

prática da nossa investigação. Entrar pelo meio, estar sempre no meio, interromper e

voltar ao mapa de entradas e saídas múltiplas, resulta quase como descrição do que

acontece durante o processo de construção dos desenhos que irão dar origem às matrizes

de gravação do ecrã serigráfico. Estes desenhos são planos de cidades que vão sendo

construídos a partir de composições de quadrículas e reticulas, atravessados por linhas

que se propagam até ao limite do suporte. A construção destes desenhos bem como o

princípio de cartografia são metodológicos, ambos acompanham os movimentos e as

retrações, são processos de invenção e de captura que se expandem e se desdobram,

desterritorializando-se e reterritorializando-se no momento em que o mapa/desenho é

projetado. Ao produzi-lo, estamos no plano da invenção e não da representação. Portanto,

assim como o rizoma é sempre criador, mapear ou desenhar um acontecimento é um

processo de invenção, onde se segue o devir.

Por outro lado, a apropriação de imagens do ciberespaço, que representam o

recorte da ilha de Manhattan, com a sua malha uniforme de vias ortogonais e

perpendiculares concebidas no século XIX, apresenta todas as características do princípio

da decalcomania. Estas plantas representam um acontecimento. Elas são um decalque,

pois, aprisionam e cristalizam um determinado momento da projeção da cidade. Mas

estas plantas são sempre retrabalhadas, elas sofrem alterações na sua estrutura inicial. o

princípio da cartografia é posto em prática de novo: quarteirões são apagados, surgem

novas avenidas, o nome de ruas e avenidas são anulados, todo o mapa volta a estar em

mutação, em reconstrução, aberto a novos pontos de entrada e novas saídas. Mas quando

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o mapa é interrompido e é dado como terminado para servir de matriz de gravação de um

ecrã de serigrafia ele incorpora o princípio da decalcomania; funciona como uma

‘fotografia’ fixa de um acontecimento, é um acontecimento que reproduz um

determinado momento do rizoma:

“Le calque a déjà traduit la carte en image, i la déjà transformé le rhizome en

racines et radicelles. Il a organisé, stabilisé, neutralisé les multiplicités suivant des

axes de signifiance et de subjectivation qui sont les siens. Il a généré, structuralisé

le rhizome, et le calque ne reproduit déjà que lui-même quando il croit reproduire

autre chose. Cést pourquoi il est si dangereux. Il injecte des redondances, et les

propage .” (Deleuze & Guattari, 1980: 21)

Deleuze e Guattari alertam-nos para o perigo que pode haver ao utilizarmos o decalque,

pois este pode paralisar um rizoma. A questão aqui não é de oposição entre mapa e

decalque, pois ambos estão diretamente relacionados entre si (o decalque como foto do

mapa). Contudo, para não cristalizarmos o mapa “il faut toujours repórter le calque sur

la carte” (Deleuze & Guattari, 1980: 21), ou seja, este deve estar sistematicamente

submetido ao plano de imanência e não ao contrário. O mapa encontra-se em constante

mudança, está sempre a reconfigurar-se através de movimentos de territorialização e

desterritorialização: em expansão e retração, produzindo novas linhas de fuga, assim

como novas árvores no rizoma.

Do mesmo modo que o decalque e o mapa não são opostos, o rizoma e a raiz também não

o são (até porque se os autores afirmassem esta oposição não faria sentido a

multiplicidade do rizoma). Logo, de um rizoma podem surgir cadeias de hierarquias,

assim como da árvore pode surgir um rizoma. Como ressaltam Deleuze e Guattari, “Il

existe des tructures d’arbre ou de racines dans les rhizomes, mais inversement une

branche d’arbre ou une division de racines peuvent se mettre à bourgeonner en rhizome.”

(Deleuze & Guattari, 1980: 23). Portanto, a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem

como modelo: enquanto a primeira forma age como modelo e decalque transcendentes, o

rizoma é um processo imanente que transforma o modelo, desenhando um mapa. A

aparente dualidade que encontramos no texto de Deleuze e Guattari é imediatamente

recusada por ele. A questão não é classificar (“isto é um rizoma, aquilo é uma árvore”),

mas sim demostrar que o processo de produção e os agenciamentos são fluxos que

englobam tanto um como o outro processo, como referem os autores “Il s’agit du modele,

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qui ne cesse pas de s’ériger et de s’enforcer, et du processos qui ne cesse pas de

s’allonger, de se rompre et reprendre.” (Deleuze & Guattari, 1980: 31).

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3. MATRIZES E IMPRESSÃO

3.1. Noção de matriz

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia

das Ciências de Lisboa (Casteleiro, 2001: 2048), o étimo ‘matriz’ tem a sua origem no

latim matrix,icis e é dele que surgem múltiplos significados na língua portuguesa:

origem, mãe, ventre, útero, fêmea que está a cuidar dos filhos, que amamenta; árvore que

deita rebentos; tronco; metrópole; registo público. Estes significados variam conforme a

área de conhecimento a que são aplicados, podendo assim ser reunidos em dois grupos.

1º. Lugar: onde alguma coisa se forma; como é o caso da matriz aurífera; (equivalente à

nascente de água, mina, fonte, mãe-d’água); igreja matriz (a primeira de uma determinada

circunscrição religiosa).

2º A congregação de fatores que estão na origem de um acontecimento ou de uma

realidade; raiz, molde.

Neste sentido, matriz é o molde a partir do qual se reproduzem cópias ou exemplares

semelhantes. A matriz é o lugar onde se gera algo, ou o ponto de partida para algo que

nasce, brota, irrompe.

O substantivo ‘matriz’, é utilizado em muito campos do conhecimento humano,

como o da anatomia, geologia, agronomia, linguística, psicanálise, informática,

matemática, bem como a área da organização fiscal; ou como no contexto das artes em

que o subjetivo ‘matriz’ é aplicado essencialmente ao processo de reprodução técnica de

imagens, ou objetos, e em particular como método de impressão. A matriz como molde

ou original a partir do qual se produzem cópias ou exemplares idênticos – a matriz

assume diferentes formas conforme a área da reprodução a que se destina.

Outros exemplos da utilização do conceito de matriz. Na tipografia as matrizes

são usadas como moldes na criação de caracteres através da fundição, e estes serão

organizados em blocos ou colunas com composições de texto prontos a serem impressos

mecanicamente.

“Os tipos móveis, depois de fundidos, eram ordenados em caixas de madeira,

convenientemente subdivididas, onde eram armazenados até ao momento da

composição.” (Heitlinger, 2006: 59)

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Na fotografia, a matriz pode ser física, como no caso do analógico, em que ela se

apresenta na forma de um negativo da imagem e que pode existir em diferentes materiais

(desde o papel, o metal, o vidro, a película fotossensível, etc.); ou no caso da fotografia

digital em que a matriz não é palpável, mas sim imaterial, pertencendo ao mundo

intangível. A matriz digital resulta de uma combinação de várias fontes e sinais,

organizadas em linhas e colunas que através de um “cálculo” se combinam para dar

origem a uma imagem fotográfica e sua posterior impressão.

No caso da relação “matriz-coisa reproduzida” se basear no par arcaico “Uno-

Múltiplo”, os processos de impressão/reprodução de imagens caracterizam-se “pela

interdependência estabelecida entre a matriz e as provas micro – diferenciadas.”

(Quaresma, 2008: 93) No contexto da gravura a multiplicidade de técnicas conduz a

variadíssimas formas de gravação de matrizes, o que corresponde a múltiplos processos

de ‘tintagem’ e impressão, sendo que a imagem a reproduzir pode obter-se “a partir do

gesto ancestral de sulcar uma superfície de madeira ou metal até ao processo de gravação

fotomecânica” em que a primeira mantém a condição de “negativo”. (Quaresma, 2008:

93) Ela assume-se como um negativo ou ante – positivo, ou ainda, como o original a

partir do qual se reproduzem cópias, ela é feita de diferentes materiais e assume variadas

formas dependendo da técnica utilizada. A matriz é o elemento base de uma impressão,

seja por que processo for, no qual é gravada uma imagem a reproduzir.

3.2. Produção de matrizes

3.3. Diferentes formas de criar imagens para aplicar nas matrizes Serigráficas.

Existem diferentes formas de gerar imagens para serem aplicadas na superfície do ecrã

serigráfico e as alternativas de que dispomos são múltiplas.

3.3.1. Partindo de uma imagem-chave

O método da imagem-chave tem com base uma composição com características

lineares e a uma só cor, que serve como referente e controla a separação de todas as

outras áreas da composição a colorir. Ela serve de referência dos limites das áreas a

separar e das camadas que formam a imagem-chave, sendo semelhante aos livros para

colorir.

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3.3.2. Imagem composta por camadas que se relacionam

Esta é uma imagem composta por um conjunto de elementos e signos que se

relacionam entre si, em diferentes aspetos formais ou temáticos, como a linha, a cor, a

textura, a forma, que se justapõem e sobrepõem entre si. Neste método de funcionamento

pode haver uma articulação hierárquica na combinação e na ordem dos elementos que

compõem a imagem segundo os nossos objetivos.

Na serigrafia a imagem em camadas é construída a partir de vários ecrãs,

correspondendo cada um deles a signos ou elementos a imprimir numa determinada cor.

São elementos independentes mas que se relacionam entre si, ao contrário das imagens

derivadas a partir de uma fonte comum. Quando conceptualizamos uma imagem para

serigrafia, é útil visualizá-la e trabalhá-la em camadas. No caso das imagens trabalhadas e

criadas analogicamente é de particular importância a utilização de uma mesa de luz,

como forma de auxiliar a decomposição da imagem nas diferentes camadas. Já no caso

das imagens com origem numa fonte digital essa separação por camadas é feita através de

programas de computador. O seu tratamento e decomposição são feitos com layers,

permitindo que se trabalhe de uma forma mais célere, dando origem a uma maior

otimização do volume de trabalho.

3.3.3. Abordagem redutora ou direta

Este método consiste no bloqueio sistemático de determinadas áreas do ecrã, no

decurso da evolução das impressões das camadas que compõem uma imagem. A

existência prévia de uma forma simples sensibilizada no quadro serigráfico dará origem a

todas as outras manchas que compõem o grafismo de uma imagem, através do bloqueio

sucessivo de áreas pré-determinadas na mancha original.

Este processo é feito tradicionalmente através do preenchimento a lápis de cera,

que funciona como um bloqueador da passagem da tinta. Esta operação será aplicada nas

áreas que se pretende suprimir, repetindo-se sucessivamente na criação de uma nova

mancha ou área a imprimir. Assim, a imagem é impressa por camadas e vai evoluindo

sucessivamente partindo de uma mancha que vai continuamente reduzindo a sua área de

impressão entre cada camada impressa.

Na impressão de matrizes de cariz serigráfico encontramos duas grandes

categorias. Os processos diretos e os indiretos. As imagens criadas por um método direto,

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como vimos anteriormente, são desenvolvidas diretamente na tela. No processo indireto

as matrizes de gravação são previamente executadas sobre diferentes suportes, que darão

origem a múltiplos ecrãs a serem impressos.

Os acetatos, os fotolitos, as mangas plásticas, bem como o papel vegetal são os

suportes mais comuns na elaboração de matrizes de gravação.

Imagens de cariz fotográfico permitem uma maior riqueza de detalhe, mas as imagens

criadas diretamente na tela ou outras que surgem do recorte de papéis têm características

muito próprias e ricas que se podem adotar na criação de novos projetos.

3.3.4. Matrizes diretas

Nas matrizes diretas, as imagens são executadas diretamente sobre a superfície da

tela. Desenhando e pintando através de um produto bloqueador que é posteriormente

removido. As imagens impressas resultantes são o negativo da mancha desenhada no

ecrã. A cobertura do ecrã em determinadas áreas com o bloqueador, ou com lápis de cera

é especialmente apropriado para este processo bem como na abordagem redutora, como

já foi anteriormente descrito. As matrizes diretas são efetuadas em duas etapas: Numa

primeira fase executa-se o desenho na superfície do ecrã, utilizando um médium que seja

solúvel em água ou por um solvente. Uma vez o desenho seco, este é coberto com um

material que irá isolar toda a superfície, bloqueando assim todas as áreas abertas do ecrã.

Quando o material se encontra seco, passamos à remoção da matéria solúvel original, a

que foi usada na execução do desenho, removendo-a com o solvente adequado. Se o

desenho foi executado com um material aquoso, a passagem de água fria rapidamente o

dissolverá. Se, por outro lado, usamos o lápis litográfico, lápis de cera ou outro riscador

com base oleosa, o desenho deverá ser removido com white Spirit ou outro solvente. O

resultado será uma área aberta na tela que irá permitir a passagem da tinta durante a fase

de impressão.

3.3.5. Matrizes indiretas: Recortes de papel e materiais autocolantes

As matrizes em papel recortadas à mão estão diretamente ligadas ao processo do

Pochoir7 que historicamente antecede o processo da serigrafia. O papel de cera, os

7 Técnica em que são usadas folhas de papel, cartão, plástico ou metal; ou com desenhos recortados para

serem coloridos a pincel ou rolo.

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diferentes tipos de fita-cola, bem como o papel autocolante, são os materiais mais

adequados para este propósito, uma vez que as suas características não serão alteradas

pelo teor da água da tinta (este método é mais adequado se usarmos tintas de impressão

de base aquosa). Todos estes materiais podem ser rasgados ou cortados com determinadas

formas para serem aplicados sobre o ecrã, podendo assim criar matrizes eficazes.

3.3.6. Matrizes indiretas: Emulsões fotográficas

Estas são matrizes versáteis e fáceis de executar. Após o revestimento da tela com

emulsão fotossensível, expomos o ecrã à luz ultravioleta através de uma transparência

contendo uma imagem opaca e positiva. A luz vai “endurecer” a emulsão em toda a

superfície do ecrã, exceto na área correspondente ao desenho feito sobre a transparência.

A lavagem do quadro com água abundante permite remover a emulsão que não sofreu

alterações fotoquímicas, revelando-se assim uma imagem por onde é possível fazer

passar a tinta graças à permeabilidade da seda.

As matrizes criadas a partir de imagens fotográficas permitem reproduzir qualquer um

dos métodos até agora referidos – como tal o uso de emulsão fotossensível é o processo

mais usado na abertura de imagens em ecrã e na criação de matrizes serigráficas.

3.3.7. Matrizes em suportes transparentes

A matriz transparente corresponde a uma imagem feita com materiais opacos

sobre uma superfície transparente ou translúcida – e pode ser executada de variadíssimas

maneiras. Em geral estas imagens têm uma leitura positiva, assim como as provas

impressas com origem nestas matrizes. As imagens devem ser criadas com médium de

boa cobertura e bastante opacos para que a matriz tenha um bom desempenho.

Vejamos algumas abordagens:

- Uma fotocópia em papel comum pode ser uma solução económica. Se a borrifarmos

com óleo vegetal, ela ficará translúcida e pode ser usada como matriz na gravação de um

ecrã.

- Os acetatos são completamente transparentes, económicos, e permitem a criação de

matrizes de diferentes origens. Podem ser criadas analogicamente, pelos diferentes

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métodos já referidos, ou pela combinação de vários processos tendo ainda a possibilidade

de acomodarem imagens com origem nos processos digitais.

- Os fotolitos permitem reproduzir ecrã com imagens de grande formato e de elevada

qualidade, produzidas e tratadas por computação.

3.4. Matriz serigráfica

Na criação de matrizes serigráficas existe uma série de requisitos a considerar. Em

primeiro lugar temos que selecionar o ecrã e a emulsão serigráfica que melhor se

adequam às especificidades de cada imagem e às características das tintas ou pigmentos,

bem como o suporte sobre o qual iremos mais tarde fazer as impressões.

Comecemos pelo ecrã. Este é constituído por dois elementos, o bastidor ou

moldura que pode ser construído em madeira ou em metal (alumínio) e um tecido de seda

ou polyester que se encontra esticado em tensão e colado aos limites da moldura. A seda

é o elemento mais importante do ecrã, sendo construído pelo cruzamento de fios de

polyester com o sentido de criarem uma trama. É a quantidade de fios que se cruzam por

centímetro quadrado que definem as características da imagem, o tipo de tintas ou o

suporte a usar. Se a imagem for rica em detalhes e possuir pormenores muito minuciosos,

teremos que usar um ecrã constituído por uma seda com uma trama bastante apertada,

logo composta por um maior número de fios. Quanto maior for o número de fios de

polyester que se cruzam num centímetro quadrado, maior será a definição e o detalhe da

imagem reproduzida. Por outro lado, o tamanho das partículas que compõem as tintas e

os pigmentos a imprimir ditam a seleção do ecrã a utilizar. Tintas metálicas ou compostas

por partículas maiores requerem o uso de ecrãs com uma maior permeabilidade, isto é,

com menor número de fios a compor a trama da seda. Esta será a nossa opção, pois, o

material que iremos usar como médium a imprimir é o gesso acrílico composto por

partículas médias grandes - usaremos, então, ecrãs com sedas entre 66 e 77 fios que se

cruzam por centímetro quadrado.

Outro fator importante na reprodução serigráfica são as características da emulsão

fotossensível. Existindo uma diversidade de oferta no mercado, é necessário estar atento

às características fotoquímicas que cada marca tem para nos proporcionar. Umas servem

só para tintas aquosas, outras são para tintas com características oleosas e mais resistentes

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a todo o tipo de solventes, existindo ainda as mistas, as mais versáteis e persistentes à

agressão da impressão de todo o género de médios.

As emulsões fotossensíveis, durante a sua manipulação, requerem ambientes com

determinadas características. Elas são compostas regra geral por dois componentes. A

emulsão base, que se encontra num estado inerte, e ao qual se mistura o segundo

elemento, o catalisador, para ativar as características que a tornam sensível à luz.

Algumas emulsões só podem ser manuseadas e aplicadas no ecrã em ambiente de câmara

escura – noutras é permitido o uso de luz amarela ou vermelha durante a sua

manipulação. No processo de gravação de imagens nos ecrãs, os tempos de exposição à

luz ultravioleta e a intensidade de luz produzida por cada insuladora são da máxima

relevância para um bom resultado na definição das imagens reproduzidas nos ecrãs.

Após a lavagem, desengorduramento e secagem do ecrã, aplica-se uma camada fina e

uniforme de emulsão fotossensível sobre a tela, e deixamos secar. Sobre o tampo de vidro

da fonte de luz da insuladora, posicionamos a nossa imagem executada sobre o suporte

transparente. Esta imagem tem uma leitura positiva e é sobre esta que sobrepomos o ecrã

com a emulsão já seca. Fechamos o tampo da insuladora e ligamos a função de “vácuo”

da máquina para um melhor contato entre a imagem e o ecrã. Por fim, expomos o

conjunto à luz ultravioleta, aproximadamente durante um minuto. Neste procedimento

toda a seda é exposta à luz, exceto as áreas protegidas pelo desenho inscrito sobre a

transparência que não sofreu alterações fotoquímicas, podendo de seguida ser removida

pela lavagem da seda com bastante água. Após a sua secagem obtemos uma matriz

serigráfica pronta a ser montada na mesa de impressão e iniciar a reprodução da imagem.

3.5. Impressão por semelhança e contato

Atualmente, a multiplicidade de tecnologias para a impressão de imagens faz

refletir sobre a ideia de ‘impressão’ e as possibilidades de criar imagens com cruzamento

de diferentes meios e procedimentos. Por um lado, percebemos que algumas técnicas de

impressão vêm revestidas pelo tempo e pela memória, nas quais nem sempre o avanço

tecnológico está presente. Por outro lado, as fronteiras entre os meios estão cada vez mais

esbatidas e redefinem constantemente parâmetros que provocam novos questionamentos

na arte.

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No livro de George Didi-Huberman, La ressemblance par contact: archéologie,

anachronisme et modernité de l’empreinte, a noção de matriz e o gesto de gerar

semelhança por contacto encontram-se relacionados. O autor dedicou especial atenção às

questões da semelhança produzida pelo contato: é a sua tentativa de conceber uma

história, ou melhor, de executar a arqueologia de um processo de produção de imagens

com origens antropológicas imemoriais, a que Didi-Huberman chamou impressões

(empreintes). Pegadas, moldes em gesso, fotografias nas suas inúmeras tipologias, a

impressão consiste sempre numa imagem obtida a partir do contato de um corpo com

uma superfície, das quais pelo menos um dos elementos é a ‘matriz’. Para o autor, a

noção de matriz revela-se particularmente importante: a sua forma pode ser côncava ou

convexa, mas também plana, o que permite gerar uma nova forma a partir do contato –

que será semelhante à precedente. De acordo com Didi-Huberman,

La matrice nous dit le lieu où se forme – où se coagule – la ressemblance. En elle

se pérennise l’Autrefois des ancêtres et surgit le Maintenant de l’Enfant qui naît.

En elle l’institution des images trouve un modèle – un fantasme – de formation

naturelle, de embryogenèse. Ce modèle est tout en même temps physiologique,

technique et mythique : il infléchit à chaque fois ce que l’empreinte peut

connoter, en tant que paradigme, dans l’ordre du discours. Il nous apprend

surtout, et c’est là une première surprise, ce que le mot » forme » veut dire. (Didi-

Huberman, 2008: 53)

Neste contexto, a matriz está na origem de um processo operativo em que o ato de

‘formar’ compreende uma união de forma e contra forma. (Didi-Huberman, 2008: 54)

Segundo o autor, a história das impressões corre paralelamente à história da arte, em

subterrâneos, entendidas nas suas contrapartidas: aqui a oposição entre o ótico e o tátil,

entre visão e contato, traduz-se na eterna disputa entre artes miméticas e reprodução

mecânica.

No entendimento de George Didi-Huberman, o gesto de fazer impressões remete

para ‘um gesto técnico’ indicando-nos um campo operatório que nos leva a pensar sobre

o paradigma da impressão. Para este autor, “a impressão supõe um gesto que se cumpre

num ato. Um gesto que dá margem a uma marca durável e um resultado mecânico que se

transforma em negativo ou num relevo. Trata-se, então, de um dispositivo técnico

completo”. Definindo o gesto de impressão enquanto modo operativo, o autor refere:

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Quoi qu’il en soit, l’empreinte suppose un support ou substrat, un geste qui

l’atteint (en général un geste de pression, au moins un contact), et un résultat

mécanique qui est une marque, en creux ou en relief. Il s’agit donc d’un dispositif

technique complet. (Didi-Huberman, 2008: 27)

Entre as mais antigas impressões provenientes de um modo operativo, resultantes

de um “gesto”, o autor vai analisar e identificar de um ponto de vista antropológico as

pinturas de “mãos positivas” e “mãos negativas” pré-históricas, que remontam a cerca de

30.000 a.C. (Didi-Huberman, 2008: 45-46). Embora, atualmente, já se referencie a

descoberta de pinturas com as mesmas características, com pelo menos 40 mil anos. O

achado foi feito numa gruta situada na ilha de Celebes, na Indonésia.8

Para o autor a noção de matriz no contexto da impressão caracteriza-se

essencialmente pela forma côncava que origina objetos, sendo neste caso “a mão” a

forma originária a partir da qual se geram imagens dentro de um modo rudimentar de

fazer. A mão surge assim como a matriz que produz a matriz.

Os diferentes procedimentos de impressão correspondem geralmente ao processo

de reproduzir de maneira inversa o que está gravado na matriz, e as imagens resultantes

revelam as especificidades deste fazer. Por sua vez, estas operações vão além do controle

técnico e as impressões tanto podem ser resultantes de um gesto direcionado, como de

uma ação casual, de meios rudimentares, ou mesmo provenientes de técnicas mais

elaboradas. Segundo Didi-Huberman, os meios de impressão envolvem,

“[…]une espèce paradoxale d'efficacité ou de magie – celle, notamment, d'être à

la fois singulière comme emprise corporelle et universalisable comme

reproduction sérielle ; celle de produire des ressemblances extrêmes qui ne sont

pas mimèsis mais duplication ; ou encore celle de produire ces ressemblances

comme négatives, contre-formées, dissemblables.” (Didi-Huberman, 1997: 3)

O duplo que se origina da impressão pode ser caracterizado como um dispositivo

‘fiel’ de reproduzir e conservar a referência de uma imagem gravada sobre uma matriz.

Nesta ação de imprimir, acontece o encontro entre duas superfícies, as quais devem aderir

para existir o contato de um corpo sobre outro, permitindo que sejam transferidas as

semelhanças físicas da imagem gravada sobre a matriz. É neste movimento de

8 Disponível em http://www.publico.pt/ciencia/noticia/a-mao-mais-velha-do-mundo-poe-em-duvida-que-a-

arte-tenha-nascido-na-europa-1672526

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transferência e reprodução que a impressão incorpora aprisionamentos e perdas,

aproximações e afastamentos, gerando pontos de contato entre matriz e suporte. Nesse

sentido, a impressão envolve duas questões fundamentais: por um lado é um

procedimento aberto à experimentação permitindo inúmeras inserções e alterações, por

outro, é um meio que possibilita a captura e a apreensão de algo que resulta numa

semelhança. Conforme podemos ler,

“Le geste de l’empreinte (…) il est avant tout l’expérience d’une relation, le

rapport d’émergence d’une forme à un substrat « empreinté,”. Sa grande

ouverture heuristique comporte en fait le corollaire d’une impureté procédurale

liée à la concomitance, dans toute empreinte, du hasard et de la technique (…)

l’empreinte se fait un principe, qui aboutit au non-principe suivant : on ne sais

jamais exactement ce que cela va donner. La forme, dans le processus

d’empreinte, n’est jamais rigoureusement ‘pré-visible’: elle est toujours

problématique, inattendue, instable, ouverte”. (Didi-Huberman, 2008: 33)

Nas impressões de matrizes tradicionais (na gravura em relevo e na calcografia,

por exemplo), deparamo-nos com a previsibilidade da imagem gravada, bem como com

os seus acasos e aspetos imprevisíveis. Num primeiro momento, percebemos a duplicação

de uma semelhança; porém, o que ocorre são diferenças entre áreas gravadas e não

gravadas. O côncavo transforma-se no convexo e o convexo resulta no côncavo e, mesmo

tendo equivalências nas semelhanças, ocorrem diferenças durante o processo mágico e

singular do momento da transferência da imagem através da impressão.

Para Didi-Huberman, a impressão é um paradigma antropológico que nos permite

colocar a questão da transmissão. A impressão procede da reprodução que remete à

origem da forma e da contra forma, que pela semelhança, transmite e duplica as marcas e

as mensagens gravadas sobre uma matriz. A impressão transmite fisicamente e não

apenas visualmente a semelhança de algo gravado sobre uma matriz, ou seja, surge

enquanto corpo produzido pela operação da impressão. Poderíamos dizer que a impressão

é imagem dialética, alguma coisa que nos fala tão bem do contato, ou seja: A

interpenetração entre impressão e matriz envolve a produção de imagens que podem ser

capturadas através de gestos elementares, como o esfregaço ou decalque de texturas de

um soalho, ou a produção de marcas de corpos na areia: o pé que se afunda na areia,

quando retirado resulta numa perda, ficando o registo da sua ausência na impressão que

ficou na areia.

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Nesse sentido, os vazios e os cheios presentes nas diferentes técnicas de gravura,

encontram inevitavelmente indícios e complementaridade entre positivos e negativos,

entre presença e ausência. Na relação entre a matriz e a impressão existem

transformações que estão sujeitas ao acaso, que são colocadas à prova num processo de

criação flexível durante as etapas de gravação, que envolvem aspetos físicos e químicos

de impressão. O momento do contato entre a matriz, a tinta e o papel é impregnado de

fluxos imprevistos e acasos que ocorrem entre os materiais em jogo. Por sua vez, na

impressão física, a remediação da tinta (cor) potencializa a imagem no momento da sua

transposição para o suporte. Porém, na impressão de uma matriz-imagem ocorrem

modificações em relação ao espaço-plano, pois a unicidade e a tridimensionalidade da

matriz desaparecem.

Nas suas indagações sobre a impressão, já entre preocupações estéticas,

tecnológicas e filosóficas, Didi-Huberman questiona-nos ainda sobre se o processo da

impressão resultaria do contato com a origem ou da perda da origem. Ela manifesta a

autenticidade da presença (com o processo de contacto), ou pelo contrário, a perda de

unicidade que leva sua possibilidade de reprodução? Contudo, é sobretudo nesta

capacidade de reproduzir múltiplos que o autor realça o poder da impressão, não se

perdendo este na disseminação que possibilita. Completa assim o raciocínio de Walter

Benjamin, acrescentando que o elemento de contacto garante unicidade, autenticidade e

poder (em suma, aura) à obra para além da sua reprodutibilidade:

“Ce n’est pas la reproduction en soi qui fait «disparaeître» l’aura, comme on

l’affirme trop souvent; plutôt la perte de contact que supposerait une repetition

sans matrice et sans processus d’empreinte”. (Didi-Huberman, 2008: 73)

Didi Huberman cita Walter Benjamin sem, no entanto, criar um forte

comprometimento entre a noção de impressão, a ‘reprodutibilidade sob o ponto de vista

técnico’ e o ‘simbólico’ que esta pode adquirir na era da “reprodução mecanizada”.

Partindo da frase de Waiter Benjamin “por princípio a obra de arte sempre foi

reprodutível, através da cópia das obras dos grandes mestres”. (Benjamin, 1992: 75) Didi-

Huberman refere que o gesto que protagoniza a impressão existe antes e depois dessa era,

traduz-se pelo seu carácter (in) temporal. O autor distingue ainda a ideia de “cópia” ótica

que corresponde a um mimetismo, a uma imitação alegórica de um referente, acabando

por se afastar do mesmo apenas refletindo semelhanças com o original. No caso

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específico da impressão as cópias tem características tácteis, resultantes do contato com o

elemento físico que é a matriz.

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4. A SERIGRAFIA

4.1. Etimologia da palavra e definição do conceito

Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das

Ciências de Lisboa, (Casteleiro, 2001: 3394) o termo ‘serigrafia’ tem a sua origem no

latim sercum, com o significado de seda e na palavra grega graphé que significa escrever

ou desenhar. Podemos assim definir a serigrafia como o processo de reprodução de

imagens sobre diferentes suportes, recorrendo ao emprego de uma tela de nylon ou seda,

na qual existem áreas obstruídas com um produto isolante, deixando ficar zonas a

descoberto que permitem a passagem de tinta no ato de impressão.

4.2. Breve história da origem e desenvolvimento do processo

A serigrafia é um modo operativo que tem a sua origem nos princípios básicos da

criação do stencil. Um suporte plano com imagens recortadas, usado como uma matriz

negativa, que permite a reprodução dessas imagens sobre diferentes superfícies através da

aplicação de tinta nas áreas vazadas da matriz. Assim sendo, e com o intuito de situarmos

as origens deste modo operativo, recorreremos aos vestígios arqueológicos da utilização

do stencil deixados por algumas culturas desde o Paleolítico Superior, nomeadamente as

primeiras imagens impressas com representações de mãos existentes em muitas pinturas

rupestres. A mão como matriz ou a forma originária a partir da qual se geram imagens

pelo processo de contato pela transferência/bloqueio de tinta entre a mão e a superfície a

ser impressa, fosse por contato direto ou pela pulverização de tinta com um osso ou outro

objeto tubular.

Devemos destacar igualmente alguns exemplos históricos do mundo oriental. Por

exemplo, os tecidos impressos descobertos nas ilhas Fiji. Recorrendo a folhas de

bananeira com recortes de imagens em negativo, os habitantes das ilhas Fiji, decoravam

os seus vestidos através da aplicação de tinta nas áreas vazadas das folhas. Também os

Egípcios por volta 300 a.C. recorreram ao uso do stencil nas suas pinturas murais, na

aplicação da escrita hieroglífica nos seus templos e no interior de túmulos e pirâmides.

Outro exemplo diz respeito à ancestralidade do “reprodutível” na China. Durante a

dinastia Song (960 - 1279 d.C.), a serigrafia foi difundida por toda a China, tendo

atingido níveis notáveis de impressão e execução em tecidos com padrões coloridos. Já

no Japão surge o processo de impressão por stencil chamado Kappazuri-e, (Grabowski,

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2009: 55) extremamente complexo. Este processo caracteriza-se pelo uso de máscaras

executadas a partir do sistema de stencil, recorrendo a fios de cabelos humanos para

unirem pequenos fragmentos soltos correspondentes às reservas no interior de uma matriz

de base. Mais tarde, durante o século XVII, terá sido Some Ya Yu Sen que construiu o

primeiro ecrã de serigrafia, a partir de uma moldura de cartão, no qual aplicou uma rede

de cabelos em que foram coladas e isoladas pequenas silhuetas de papel que impediam a

passagem da tinta aplicada com uma pequena escova. Deste modo, terá sido descoberto o

princípio do modo operativo da serigrafia.

Na europa, durante o período romano, encontramos também vestígios da

utilização do stencil para a reprodução de imagens de caráter decorativo. Já na arte

Bizantina e na Idade Média em países como a Alemanha, Itália, Espanha, Inglaterra e

França o uso do stencil surge combinado com xilogravuras em imagens religiosas e

profanas bem como na criação de naipes de cartas de jogar. Neste modo de fazer o

stencil, encontramos o que é fundamental no processo serigráfico: tapar, bloquear uma

zona do ecrã, e aplicar a tinta nas restantes. Entre os séculos XVII e o XIX, este processo

foi usado no fabrico de tecidos e papéis de parede, em diferentes países da europa.

Os Estados Unidos da América lideraram a expanção e a promoção da serigrafia

como técnica artística, mas foi em Manchester, Inglaterra, que em 1907, Samuel Simón

registou a primeira patente baseada neste procedimento de impressão, tal como o

conhecemos hoje em dia, ou seja, a utilizasão de uma moldura de madeira à qual se

aplicou uma trama de seda em tensão, sobre a qual se montaram máscaras que impedem a

passagem da tinta – que antes estariam soltas – mas que neste caso se mantêm fixas,

utilizando-se também pela primeira vez um rodo de boracha durante o processo de

impressão. Assim nasce a serigrafia contemporânea.

Até meados do século XX, a serigrafia teve um desenvolvimento relativamente

lento, com avanços e recuos sem grandes separações entre as suas diferentes áreas de

execução. Esta serigrafia ‘primitiva’ servia então para a impressão de textos, tecidos e

artigos ligados à decoração. Durante a 2ª Guerra Mundial, a serigrafia difundiu-se

exponencialmente graças à sua utilização pelo exército americano, que a usou como

forma de impressão rápida na criação de etiquetas, folhetos de instruções, bandeiras,

embalagens de produtos e na realização de mapas. O exército americano transportava

consigo pequenas unidades especializadas neste tipo de trabalho que eram colocados no

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terreno à medida que os territórios aliados eram reconquistados. A partir deste momento a

disseminação e o desenvolvimento da serigrafia viria a ser muito rápido na Europa e no

resto do mundo. Nos anos 50, o processo da serigrafia encontra novas aplicações na

indústria do pós-guerra: a impressão sobre plástico, os produtos têxteis, o surgimento da

impressão circular sobre objetos tridimensionais, entre outras possibilidades. Esta

evolução foi constante até aos nossos dias, tornando a serigrafia a mais versátil de entre

as técnicas de impressão. A serigrafia permite imprimir sobre muitas superfícies, sem

grandes limitações quanto à dimensão ou à forma dos objetos; por exemplo, a partir de

imagens impressas sobre papel de transporte com tintas compostas por pigmentos de alta

qualidade e numa variedade de cores e brilhos de grande durabilidade, resistentes às mais

adversas condições climatéricas, bem como resistentes a múltiplas lavagens. Ao contrário

de outros métodos de impressão, a serigrafia garante excelentes resultados quando

impressa sobre papéis, tecidos, plásticos e metais, bem como sobre outros suportes mais

exóticos como o couro, o vidro, a cerâmica, a madeira ou mesmo nas placas de circuitos

eletrónicos, abrangendo “nichos de mercado” muito diversificados.

A produção de serigrafia não separou a sua vertente artística da comercial até 1940,

ano em que o diretor do Philadelphia Museum of Fine Art, Karl Zigrosser emprega o

termo serigrafia artística para designar o trabalho gráfico desenvolvido pelos artistas

plásticos, distinguindo-o dos produtos produzidos pela indústria. A história da serigrafia

artística regista as suas primeiras experiências na Europa no período entre as duas

Grandes Guerras, a partir de pequenos ensaios feitos por pintores franceses que usaram

processos fotográficos na criação de ecrãs serigráficos. Mas a história real da serigrafia

iniciar-se-á nos E.U.A. O desenvolvimento da serigrafia artística será um dos grandes

contributos dos E.U.A. para o mundo da arte, sobretudo com o advento da Pop Art, cujo

desenvolvimento está intimamente ligado à evolução desta técnica. Nos anos 60 e 70 este

processo de impressão, pela sua celeridade e “pragmatismo”, assim como o uso de cores

vibrantes com a possibilidade de reproduzir imagens de diferentes origens e sobre uma

grande diversidade de suportes, rapidamente atraiu jovens artistas como Eduardo

Paulozzi, Andy Warhol, Robert Rauschenberg, Richad Hamilton, Ronald Brooks Kitaj e

Joe Tilson, entre muitos outros, que se interessaram por este processo, incorporando-o

nos seus trabalhos de imagens de origem fotográfica, impressas serigraficamente sobre

tela ou papel. Neste período, a serigrafia artística tem também algum protagonismo na

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Europa ocidental. Esta é criada com relativa independência da influência Norte

Americana, destacando-se os trabalhos produzidos na R.F.A. inicialmente por Fritz

Winter e Willi Baumeister. Destaca-se ainda Otto Piene e Gerd Winner pelas suas

participações e prémios atribuídos em bienais de gravura. Já em França, mencionamos

autores como Vasarely, Edgard Pillet, Jean Dewasne, António Dias, Jean Deyrolle, e

Lean Leppien que 1954 participaram numa grande exposição em Paris, com trabalhos

desenvolvidos a partir do processo da serigrafia. Tendo sido inicialmente apropriada

pelos artistas da Pop Art, a serigrafia atingiu uma grande difusão por todo o mundo, e tem

sido explorada intensivamente pelos artistas que a souberam adaptar aos movimentos

artísticos que emergiram durante os séculos XX e XXI. Mas na serigrafia, como em

outras técnicas de impressão gráfica, existem ainda outras possibilidades de

desenvolvimento a explorar, não só pelos artistas mas também pelas escolas e

universidades. Neste âmbito a serigrafia pode abrir perspetivas pedagógicas e artísticas

até agora insuspeitáveis. (Weichardt, 1990: 342-345) De entre as diferentes técnicas que

compõem o mundo da gravura, a serigrafia foi a que mais marcou e se destacou durante o

século XX. Podemos mesmo afirmar que ainda não foram alcançados os seus limites de

exploração e evolução.

4.3. Como opera – a impressão

Após a gravação e secagem de uma imagem num ecrã, este é fixado aos braços da

mesa de impressão, ou encostado numa guia previamente defenida sobre uma bancada de

trabalho, caso não exista a maquinaria de impressão. Dentro de um recipiente prepara-se

a tinta, mexe-se e dilui-se com o solvente adequado com a ajuda de uma espátula. A tinta

não poderá ser muito líquida nem muito espessa, devendo ter uma consistência viscosa,

mas fluída, colocando-se de seguida uma pequena porção sobre a tela. Com o auxílio de

um rodo posicionado num ângulo de 45 graus, fazemos uma primeira passagem da tinta

com uma ligeira pressão para que esta vá preencher as zonas porosas da tela. Colocamos

o suporte a imprimir na zona de registo previamente definida e executamos uma segunda

passagem, aplicando uma pressão firme e constante no rodo durante a passagem deste

sobre a tela, assim, a tinta é pressionada através da trama e transferida para o suporte de

impressão. Este processo de impressão deve ser ritmado e constante de forma a evitar a

secagem da tinta nas áreas abertas da tela. Caso isto suceda, poder-se-á perder a nitidez e

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definição da imagem impressa. Teremos então de proceder à limpeza da tela com um

pedaço de tecido húmido com solvente, sendo noutros casos necessário remover a tinta,

lavar e secar a tela, para recomeçar o trabalho de impressão.

Outro aspeto importante diz respeito às caraterísticas de cada suporte. Os suportes

lisos são mais fáceis de imprimir, e permitem uma melhor definição de detalhes. Os

suportes mais texturados, como os tecidos, podem necessitar de uma impressão dupla ou

tripla para termos uma impressão nítida. Para evitar que a tinta entupa a tela deve usar-se

uma quantidade muito maior do que seria necessário para a simples impressão. O

processo de trabalho deve ser feito de forma organizada e concentrada, todos os suportes

a imprimir e as tintas como o carro de secagem têm que localizar-se junto da área de

impressão, de forma a que este processo decorra de uma forma eficaz, sem grandes

paragens. Após a impressão, recolhe-se a tinta existente na tela para o recipiente e o ecrã

deve ser lavado cuidadosamente com água ou com um solvente, usando um trapo,

aplicando-se de seguida um jato de água para remover qualquer vestígio de tinta aplicada.

Se esta matriz for reutilizada mais tarde, teremos de guardá-la com cuidado numa zona de

secagem. Caso não seja necessário, procedemos então à sua limpeza. Com o auxílio de

uma esponja limpa, aplicamos um pouco de removedor de emulsão, deixamos atuar, e

esfregamos de seguida até esta estar completamente dissolvida. De seguida, aplica-se um

jato de água para remover todos os resíduos. Com outra esponja e detergente da loiça

lava-se muito bem toda a superfície da tela, passando água em abundancia, e deixando-a

a secar para uma utilização futura.

4.4. A Pintura Contemporânea no Barco de Teseu – A Instalação de Pintura

Devido à multiplicidade e ao cruzamento dos médiuns utilizados na execução dos

nossos objetos/pinturas, e à possibilidade de os inserir em espaços “instalativamente

cuidados”, sentimos desde o início desta dissertação alguma dificuldade em os classificar

numa das categorias de expressão artística. Para tal, e na tentativa de adensar estas

interrogações, recorremos à análise de alguns fragmentos do livro, A Pintura

Contemporânea no Barco de Teseu – A Instalação de Pintura, de José Quaresma.

Neste livro, José Quaresma começa por introduzir uma reflexão sobre as

diferentes tipologias da pintura contemporânea, e a sua expansão e contaminação

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rizomática sobre outros médiuns, adquirindo um posicionamento forte sobre as outras

formas de expressão artística. Este contágio entre diferentes médiuns resulta numa

proliferação rica para a pintura na criação de espaços e objetos complexos (por vezes

híbridos) que caracterizam a arte contemporânea. Devido à multiplicidade de médiuns

que se cruzam com a pintura e à necessidade/urgência de clarificação e sistematização,

José Quaresma aponta três teses para escorar o seu projeto: a primeira considera que “A

pintura (que se afirmará como elemento pictural) tem uma força irrestrita de assimilação

e interferência crítica na esfera das artes”. (Quaresma, 2015: loc. 365 de 2362)

Na segunda tese intitulada “A natureza multímoda da pintura (elemento pictural)

contemporânea […]” (Quaresma, 2015: loc. 380 de 2362), o autor recorre ao paradoxo do

Barco de Teseu, para analisar a natureza multímoda da pintura. Este é um texto que

permite entrever que o mesmo constitui um problema ontológico decisivo, bem como o

problema da identidade, das modificações básicas e acidentais. De acordo com Stéphane

Ferret existem dois tipos de mudança, uma que preserva e outra que rompe a identidade.

Na sua obra dedicada ao barco de Teseu, deparamo-nos com 3 barcos: o original

(primitivo) o renovado (com novas tábuas) e o terceiro que se poderia construir com as

tábuas originais. Pretende-se entender qual a mudança essencial que põe em causa a

identidade da embarcação de Teseu. Na terceira tese, José Quaresma evoca diferentes

anúncios da “morte da pintura,” que ocorreram ciclicamente ao longo da sua história, que

o autor declara serem inadequados em particular, mas essenciais no seu todo – como que

fazendo parte das mudanças fundamentais, como uma espécie de introspeção que a

pintura realiza pontualmente de si mesma e do sistema das artes com as quais se

interconecta. A necessidade de experimentar e pensar a pintura de uma forma crítica,

identificar os seus objetos artísticos e questionar a identidade da pintura será sempre

controverso. Estes são tópicos que identificamos nesta introdução, como necessários para

refletir e legitimar a pintura atual, a qual o autor irá classificar de elemento pictural.

No primeiro capítulo do seu livro Pintura, erosão e elemento pictural, José

Quaresma sugere-nos uma definição lata (quase irrestrita) para a noção de instalação.

Algo tão abrangente como as realizações proto-artísticas produzidas antes do surgimento

dos conceitos de arte, até à contemporaneidade, a partir de uma condição a que o autor

chama de homo pictural.

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“[…] um espaço inicialmente vivido de forma experimental, mas que, ao ser

sinestésica e prolongadamente interiorizado, “ruminado” e perscrutado, se deixa

finalmente habitar e enformar, permitindo vir à luz a maneira de nos fazermos às

coisas, tateando e mapeando a sua tectónica, compreendendo a sua profundidade

cromática, exigindo-se para tal todas as dimensões de um moroso habitar,

propiciadoras de uma temporalidade de marcas corporais e simbólicas em muito

similares aos remotos vestígios (pelo menos naquilo que o gesto de instalar

/habitar/ riscar/ empastar tem de menos epocal e óbvio ) dos homens habilis,

erectus, sapiens, aestheticus, mas sobretudo, àquele a quem decidimos chamar de

homo pictural.” (Quaresma, 2015: loc. 643 de 2362)

É este homo pictural com os seus aspetos radicais e diferentes sobre a identidade

múltipla da pintura contemporânea, o responsável “pelo espírito do barco de Teseu” e

pelos sucessivos “anúncios de morte” que recaem sobre a pintura. O autor encontra

também analogias entre o habitar das proto-instalações do primeiro homo pictural,

protagonizadas pelo gesto ancestral através da aplicação ou aspersão de pigmento

soprado através de um osso nas suas pinturas rupestres (às quais também já nos referimos

a propósito do stencil das mãos) e os disparos picturais de Anish Kapoor na sua obra

Shooting into the Corners. Nesta relação, Quaresma encontra claros exemplos para aquilo

a que chama “ um gesto de alcance imemorial”, um gesto de sentido instalativo e

imemorável do homo pictural. Por outro lado, as obras de monocromáticas de Kapoor,

dada a natureza dos materiais empregues dão ênfase à matéria mas também à cor. “[…]

as obras são simultaneamente uma intensa experiência para a sensibilidade cromática e

sinestésica:” (Quaresma, 2015: loc. 720 de 2362). É esta duplicidade ou até mesmo

triplicidade do habitar, da dimensão da cor e do instalar de um objeto ou uma imagem de

pintura que são tão características na obra de Kapoor.

Sobre a questão do habitar “ picturalmente o mundo”, José Quaresma salienta um dos

objetivos do livro:

“ideia de pintura como algo que, previamente a tudo – incluindo neste tudo as

artes disponíveis - é um ato de instalação derivado de uma orientação primordial

para com o mundo, sendo que, só num segundo momento, mas de modo

reversível, se engendra uma expressão artística especifica.” (Quaresma, 2015:loc.

761 de 2362)

No II capítulo, na tentativa de reinterpretar e atualizar a noção ‘painterly’, José

Quaresma evoca o historiador Suíço Heinrich Wölfflin, que em 1888 já tinha recorrido a

esta expressão para distinguir algumas qualidades formais que a pintura adquiriu no final

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do Renascimento e em particular durante o período Barroco. A necessidade de encontrar

uma noção mais atual para a definição de painterly, irá levar Quaresma a encontrar

afinidades e discordâncias interpretativas no trabalho de investigação sobre este mesmo

tema da autoria do artista e investigador Bart Geerts. Assim, na sua atualização da noção

de ‘painterly’, Quaresma encontra e anuncia três linhas de orientação: a primeira é

inspirada nas teorias Heinrich Wölfflin e de outros historiadores de Arte, que se

depararam com “qualidades picturais” em áreas como a arquitetura e até mesmo na

escultura, onde encontram uma contaminação entre estes médiuns influenciados pelo

surgimento de uma nova forma de compor e distribuir os mecanismos da pintura, “[…]

libertando-a dos excessos de centralidade e simetria, clareza e isolamento espacial das

formas, e introduzindo elementos de perturbação espacial como oblíquas indutoras de

movimento” (Quaresma 2015: loc. 902 de 2362). Por outro lado, Quaresma encontra

também ele novas características na nova forma de representar na pintura desta época,

“[…] o contato entre visibilidade e invisibilidade […] Agora imersos em atmosferas

cromáticas, contornos evanescentes, espaços desconstruídos […]” (Quaresma, 2015: loc.

909 de 2362.). Estas são características encontradas pelos autores que marcam outra

noção da forma de congregar novos dispositivos da pintura desta época

A segunda modalidade tem pontos de contato com a primeira, mas esta encaminha

o conceito para a atualidade, estruturando algumas características da arte contemporânea

como a instalação. Nesta modalidade referem-se certas características que alguns objetos

e instalações de arte devem incorporar para se inserirem num dos campos do ‘painterly’.

Estes devem congregar qualidades estéticas e ter como médium dominante na sua

constituição a pintura, caso queiramos, como é óbvio, falar de instalação de pintura, e não

de outras tipologias de instalação.

“Ou seja, sempre que chegamos à evidência estética de se estar perante uma peça

ou uma instalação de arte que tem uma ancoragem, uma matriz, ou “marcas” –

expressas ou subtis, mas pelo menos predominantes – da pintura e não de outro

medium isoladamente considerado […]. (Quaresma, 2015, e-book, loc. 979 de

2362.).

A terceira etapa da definição de ‘painterly’ relaciona-se com o know how artístico

da manipulação das cores e dos elementos que a experiência humana adquiriu ao longo

dos tempos. Esta é também uma noção que se cruza com a ideia de homo pictural. A

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necessidade imemorial do homem em registar o espaço que o envolve gravando,

desenhando e pintando desde a caverna até à contemporaneidade. Quaresma encontra

paralelismos entre os homens pré-históricos (homo “blombus”) e os artistas

contemporâneos (homo pictural) através da ponte exercida pelo elemento pictural na

forma de atuar, fazer e apresentar, bem como na utilização do espaço para dispor o seu

trabalho de reconfiguração simbólica da experiência quotidiana Devido ao grau de

abrangência e intemporalidade das suas características o elemento pictural acaba por

conter também todas as noções de ‘painterly’.

Entre as indicações sugeridas no livro A Instalação de Pintura. A Pintura no

Barco de Teseu, é possível descortinar uma relação entre os nossos objetos / pinturas,

(com possibilidades acrescidas de inserção num espaço que as acomode de forma

instalativa), e a abrangência do elemento pictural, nomeadamente: os jogos plásticos de

continuidade e descontinuidade espacial, por intermédio de acréscimo (adensamento) ou

supressão de territórios; o ênfase matérico (mas delicado) dos relevos matizados de

grafite, pérola, e brancos diversos, que funcionam como ecrãs que recebem a

“temperatura de cor” dos espaços em que estão imersos.

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5. PROJETO PRÁTICO

5.1. Modo de fazer

Esta investigação prático-teórica tem como ponto de partida uma experiência

profissional e um percurso pessoal (e processual) desenvolvido durante a Licenciatura e o

Mestrado em Pintura, que se refletiu na forma de pensar e fazer pintura. Este processo

tem-se caracterizado por uma procura e prática na qual o conceito/meio operativo

adquiriu gradualmente uma grande importância. Como modalidade preferencial e

recorrente da construção dos nossos objetos/pinturas optamos pela serigrafia

questionando permanentemente os seus limites tecnológicos e plásticos, procurando

outras possibilidades e estéticas que esta técnica ainda tem para nos oferecer. O projeto

prático que iremos apresentar consiste na realização de um conjunto de pinturas/objetos

que tem como referente o grafismo de “plantas” ou mapas de cidades, executados a partir

da exploração alargada da técnica serigráfica.

A parte prática desta dissertação é composta de três fases distintas. A primeira

fase consiste na seleção e preparação dos suportes dos objetos/pinturas, que variam entre

o papel e o folheado de madeira, quase sempre num formato quadrado e cobertos com

pinceladas matéricas de gesso acrílico aplicadas com alguma aleatoriedade. Estes fundos

monocromáticos, geralmente brancos da cor do gesso acrílico, ou em cinza antracite

muito escuro e metalizado, devido à aplicação de pó de grafite, remetem o trabalho final

param algo que associamos a um material plástico ou de borracha, ou mesmo ao alcatrão

que reveste o pavimento das cidades. Numa segunda fase, iniciamos a construção dos

desenhos/matrizes que servirão para gravar as matrizes de impressão: os ecrãs.

No início do projeto prático, as matrizes cartográficas de cidades foram recolhidas

do arquivo da coleção digital, da biblioteca pública da cidade de Nova York. Partimos de

uma seleção com características específicas – estas deveriam ter uma representação linear

para facilitar a sua vectorização, e mais tarde serem manipuladas artisticamente por

intermédio do programa Photoshop. Utilizámos uma determinada área do plano de uma

cidade, ampliando-o e aumentando o contraste do mesmo para ser impresso em papel

vegetal numa escala predefinida e com uma resolução de 300dpi. A imagem resultante

não sofreria alteração no que diz respeito ao seu grafismo inicial. Esta “arte final” virá a

servir como matriz para a sensibilização de uma tela serigráfica.

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Num segundo momento, as imagens construídas passaram por todas as fases da

descrição anterior, mas sofreram uma manipulação maior. Parte dos grafismos foram

alterados e até anulados, pois, recorrendo ao programa Photoshop, removemos algumas

porções dos fragmentos análogos aos referentes que identificavam as cidades

representadas – o nome de determinados bairros, das avenidas, das ruas e dos rios. Estes

elementos identificativos deixaram, assim, de estar representados, tornando estas cidades

quase anónimas, limpas dos seus referentes identificáveis.

Por último, estas composições das imagens matrizes que serviram para

sensibilizar os ecrãs serigráficos converteram-se em cidades imaginárias, (mas, não

necessariamente as de Italo Calvim). Assim sendo, as imagens deixaram de representar

cidades reais. Elas passaram a ser compostas a partir de imagens de grandes viadutos,

onde fomos construindo e completando os espaços vazios em seu redor – adicionando

grafismos previamente trabalhados, em separado, que representam áreas ajardinadas,

grandes avenidas, quadrículas e retículas que simulam a ideia de quarteirões e de grandes

bairros. Desta forma tentamos construir imagens de cidades resultantes de “uma manta de

retalhos” que originaram composições dinâmicas e completamente imaginárias, sem

referentes nem ligações a outras já existentes. Estes mapas encontram-se em constante

mudança, e são metamórficos, estão sempre a reconfigurar-se através de movimentos de

territorialização e desterritorialização; em expansão e retração; produzindo novas linhas

de fuga, assim como novas extensões arborescentes no rizoma, sendo que esta ideia

encontra ecos da obra Mille Plateaux da autoria de Deleuze & Guattari.

Num sentido informal, aquilo que é afirmado por Aristóteles em A Política “A

city is a perfect and absolute assembly or communion of many towns or streets in one.”

Uma cidade abriga muitas outras cidades: a cidade que vemos, a cidade onde vivemos – à

imagem de um emaranhado de linhas que se interligam, de quadrículas e reticulas onde

não se distingue o início, nem o fim ou o centro, que se propagam ad infinitum – é a

grelha como representação diminuta do mundo exterior, é a grelha que, tal como o

rizoma, continua para além dos limites da tela, como na perspetiva centrífuga em The

Grid de Rosalind Krauss. A cidade que contém outra ou muitas outras – cidades mortas,

cidades soterradas, “cidades árvore” ou raiz que lançaram rebentos no rizoma do

presente. Mas estas cidades do passado são sempre pensadas através do presente, que se

renova continuamente no tempo do agora, seja através da memória/evocação individual

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ou coletiva. Sendo assim, cada cidade é um conjunto de desconstruções histórias contadas

sobre si mesmas, que revelam algo sobre os tempos das suas construções e

desconstruções. A cidade apresenta-se como um palimpsesto, como um enigma a ser

decifrado. O palimpsesto é uma imagem arquetípica para a leitura do mundo. É uma

palavra que tem a sua origem na língua grega, e terá surgido no século V a.C., após a

adoção do pergaminho como suporte da escrita. Palimpsesto resulta da tentativa de raspar

um pergaminho com o intuito de apagar um primeiro texto para reaproveitamento e

reciclagem do mesmo, com o fim de inscrever um novo texto. A título de curiosidade

histórica e tecnológica, a escassez de pergaminhos os séculos de VII a IX generalizou o

recurso ao palimpsesto.

Esta definição fornece-nos a chave para olharmos a cidade, para desvendarmos os

seus passados. Há uma grelha que se oculta debaixo de outra, mas que deixa revelar

traços; há um tempo que se escoou mas que deixou vestígios que podem ser recuperados.

Há uma sobreposição de camadas de experiência de vida que incitam ao trabalho de um

desvelamento, de uma espécie de arqueologia do olhar, para a obtenção daquilo que se

encontra oculto, mas que deixou pegadas, talvez impercetíveis, que é preciso descobrir.

A fase seguinte consistiu na gravação destas imagens nos ecrãs. Selecionada uma

tela de 77 fios (com maior porosidade) devido às características do médium que se irá

usar, o gesso acrílico. Este é composto por partículas de maior dimensão, e porque

pretendemos que o ecrã permita a transferência de uma maior quantidade de gesso

acrílico para o suporte durante o ato da impressão. Com o apoio de uma espátula

aplicamos uma camada fina e uniforme de emulsão fotossensível na superfície da seda,

deixando secar posteriormente. Colocamos o desenho matriz no tampo da insuladora, e

sobre este o ecrã com a emulsão já seca; de seguida, expomos à luz cerca de um minuto,

retiramos e lavamos com água abundantemente, secamos o ecrã, montamos o mesmo na

prensa, e passamos à fase de impressão.

Nesta última fase é importante fixar o ecrã aos braços da mesa de impressão e

fazer coincidir o desenho da tela com o suporte que será fixo ao tampo da mesa. Estando

todos os acertos concluídos, iniciamos o processo de impressão. Mexemos o gesso

acrílico com o auxílio de uma espátula e colocamos uma boa porção do mesmo sobre o

ecrã. Com o quadro no ar, empurramos o gesso acrílico com o auxílio do rodo, fazendo

uma ligeira pressão para que o gesso se deposite nos poros do desenho em aberto na seda.

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Baixamos o quadro, apanhamos o gesso com o rodo posicionando-o a 45 graus, fazemos

pressão e deslizamo-lo no nosso sentido, transferindo o gesso acrílico da matriz para o

suporte. Secamos rapidamente toda a área de impressão intercalando entre o quente e o

frio a temperatura dos secadores.

É com este gesto de imprimir, que acontece o encontro entre as duas superfícies, o

ecrã serigráfico e o suporte, os quais devem aderir para existir o contato de um corpo

sobre outro, permitindo que sejam transferidas para outros suportes as semelhanças

físicas da imagem gravada sobre a seda matriz. É durante este momento de transferência

e reprodução que a impressão agrega aprisionamentos e percas, aproximações e

afastamentos, gerando pontos de contato entre matriz e suporte, o que abre o processo de

impressão à experimentação. É esta abertura que nos permite explorar o ato de impressão

de uma forma pouco convencional; um gesto trabalhado e repetido exaustivamente na

construção dos nossos objetos pictóricos.

Assim sendo, todo o processo de impressão é repetido sucessivamente num ritmo

constante durante cerca de 3 horas, alternando as impressões de gesso acrílico, com a sua

secagem, o que nos permite obter uma boa definição do recorte da imagem, mas também,

uma nova característica que nos leva a questionar e a querer redefinir o conceito de

serigrafia. No processo tradicional cada ecrã/matriz é impresso uma única vez sobre todos

suportes que constituem a edição do múltiplo. No nosso modo operandis todas as

impressões são executadas sobre o mesmo suporte e sempre sobre a mesma área,

dissimulando-se assim, o gesto da repetição que permite criar o múltiplo na criação da

prova única. Tal como no pensamento de Didi-Huberman, o ato de impressão é um

procedimento aberto à experimentação que permite inúmeras inserções e alterações, mas

também pode ser um meio que permite a captura e apreensão de algo que resulta numa

semelhança.

[…]une espèce paradoxale d'efficacité ou de magie – celle, notamment, d'être à la

fois singulière comme emprise corporelle et universalisable comme reproduction

sérielle ; celle de produire des ressemblances extrêmes qui ne sont pas mimèsis

mais duplication. (Didi-Huberman, 1997: 3)

A cada impressão é depositada uma nova camada fina e uniforme de gesso

acrílico na superfície do suporte. É a contínua repetição deste gesto e a sucessiva

acumulação de camadas que são cópias com características tácteis e carnais num mesmo

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registo que permitem os nossos desenhos/mapas sobressaírem do plano que lhes serve de

fundo, particularidade que carateriza a nossa forma de operar. Os objetos resultantes

deste modo de fazer, mesmo quando apresentam características da bidimensionalidade,

revelam-se também como baixo-relevo, conferindo-lhes assim atributos e especificidades

que os instalam no território da tridimensionalidade – contrariando assim a ideia pré-

estabelecida de que a serigrafia se encontra estanque no grupo das técnicas de gravura

planográficas, caracterizada por impressões planas, aquelas que não deixam vestígios de

textura ou relevos detetáveis nas superfícies impressas.

Pretendemos assim demonstrar nesta investigação teórico-prática uma nova

característica da serigrafia: a possibilidade ainda pouco explorada que esta oferece para

produzir objetos que saem do campo da bidimensionalidade para se instalarem numa

outra dimensão, através da repetição obsessiva mas dissimulada do ato de impressão, que

resulta numa acumulação que no entanto se torna leveza e depuração.

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Fig. 18 - Paulo Lourenço. Entangled Lines Opus I, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre papel, 34x34 cm.

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Fig. 19 - Paulo Lourenço. Entangled Lines Opus II, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre papel, 34x34 cm.

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Fig. 20 - Paulo Lourenço. Crossing Lines Paris I, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre papel, 70 x 70 cm.

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Fig. 21 - Paulo Lourenço. Crossing Lines Paris II, 2014, Gesso e tinta acrílica sobre papel, 70 x 70 cm.

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Fig. 22 - Paulo Lourenço. Crossing Lines Londres I, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre papel, 70 x 70 cm.

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Fig. 23 - Paulo Lourenço. Crossing Lines Londres I, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre papel, 70 x 70 cm.

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Fig. 24 - Paulo Lourenço. Crossing Lines New Orleans I, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre papel, 70 x 70

cm.

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Fig. 25 - Paulo Lourenço. Crossing Lines New Orleans II, 2013, Gesso e tinta acrílica sobre papel, 70 x 70

cm.

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Fig. 26 - Paulo Lourenço. Crossing Lines Opus I, 2014, Gesso e tinta acrílica sobre madeira, 60x60 cm.

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Fig. 27 - Paulo Lourenço. Crossing Lines Opus II, 2014, Gesso e tinta acrílica sobre madeira, 60x60 cm.

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Fig.28 - Paulo Lourenço, Crossing Lines Black, 2014, Gesso acrílico e grafite em pó sobre madeira, 60x60

cm.

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Fig.29 - Paulo Lourenço, Sem Título, 2014, Gesso e tinta acrílica sobre madeira, 6 módulos, 60 x 60 cm.

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Fig. 30 - Paulo Lourenço. Linhas Cruzadas # Opus I, 2015, Gesso acrílico e grafite em pó sobre papel, 70 x

70 cm.

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Fig. 31 - Paulo Lourenço. Linhas Cruzadas # Opus II, 2015, Gesso acrílico e grafite em pó sobre papel, 70

x 70 cm

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CONCLUSÃO

Na presente dissertação investigámos uma nova forma de operar com a serigrafia.

Esta investigação foi fundamental para iniciar uma averiguação sobre a pertinência do

conceito de cartografia pictural que cremos como operativo, no âmbito das artes plásticas

e, sobretudo, de uma forma pessoal de fazer pintura. Deste modo, tomamos como ponto

de partida características gráficas que algumas “plantas” e mapas de cidades encerram na

sua maneira de organizar o espaço territorial através do uso da repetição e da modelação

de reticulas e quadrículas, umas ortogonais outras menos. Reticulas e grelhas que na

definição de perspetiva centrífuga de Rosalind Krauss são uma representação diminuta do

mundo exterior, que se propaga além dos limites da tela, sendo a simbolização de um

fragmento do mundo real. Estas são características que encontramos incorporadas nos

nossos objetos/pinturas, mas que também se cruzam com as conjeturas do

desenvolvimento das cidades e as teorias rizomáticas de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

O princípio da cartografia está bem latente, no momento em que construímos os nossos

desenhos/matrizes para gravar no ecrã serigráfico. Mas é após a impressão e a finalização

das nossas pinturas que o “rizoma” se transforma num decalque, pois estas passam a

representar um momento da evolução de um mapa, servindo assim, não como modelo,

mas como a referência que temos de um determinado momento do desenvolvimento de

um “rizoma”. Estas são características que recebem ecos da noção de prova de estado9 em

gravura, pois ambos são registos cristalizados de um momento da evolução de um

trabalho impresso.

Concluímos, também, a partir da análise das reflexões de Didi-Huberman que uma

“matriz” é o lugar onde alguma coisa é gerada, criada ou formada. Ou seja, a matriz é o

ponto de partida para algo que nasce a partir do contato com ela, originando um processo

de proliferação, mas também, o paradigma de gerar “semelhança por contacto” implícito

no gesto que preconiza a impressão. A impressão deflagra física e visualmente à

semelhança de algo gravado sobre uma matriz, ou seja, surge enquanto corpo produzido

pela operação da impressão com as suas diferenças e semelhanças resultantes do contato

9 Prova de Estado - Fazem-se com a intenção de ver o estado em que se encontra a imagem e de poder

retificar ou acrescentar o que o gravador sente como necessário para satisfazer os seus objetivos.

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da matriz e do suporte, mostrando que a impressão é um procedimento aberto à

experiência, permitindo alterações e novas explorações durante o ato da sua execução. É

neste contexto que a nossa investigação encontra uma nova possibilidade de operar da

serigrafia. A possibilidade de imprimir exaustivamente uma imagem sobre a mesma área

de um único suporte, o que permite salientar a imagem impressa do plano que lhe serve

de base, criando assim uma terceira dimensão – o que na prática nos indica o surgimento

de um relevo, criado pela dissimulação da repetição da impressão de uma imagem na

criação da prova única.

Concluímos, também, pela análise dos textos de José Quaresma, que os nossos

objetos/pinturas se encontram na categoria dos objetos híbridos da arte contemporânea,

devido às suas características que os inscrevem num plano tridimensional, e pela

contaminação de médiuns que resultam da sua execução. Estes são objetos que encerram

qualidades estéticas tridimensionais que resultem da combinação de vários médiuns

embora partam de um médiun dominante: a pintura. Estes objetos incorporam-se, assim,

no campo da noção de ‘painterly’, contida pelo elemento pictural devido ao seu grau de

abrangência e intemporalidade.

Sobre a serigrafia podemos extrair ainda algumas conclusões fundamentais. De

entre todas as técnicas de impressão, a serigrafia foi a técnica que experimentou mais

mediações e comportou a maior evolução e desenvolvimento tecnológico. Com a sua

origem em simples stencils aplicados a tramas de fios de seda que serviam para fazer

impressões rudimentares, expandiu-se nos nossos dias de forma rizomática, tornando

expansivas as suas aplicações a variadíssimos médios – áreas que vão da simples

estamparia artesanal, a outras tão sofisticadas como a impressão de microchips, ou

utilizada em obras de instalação como as de Jessica Stockholder entre outras aplicações.

De facto o seu trajeto é tão rico na acumulação experimental de procedimentos técnicos,

que permitiu à serigrafia converter-se num extraordinário meio de expressão artístico do

nosso tempo. Os seus limites de exploração não se encontram fechados, havendo ainda

abertura para a sua expansão a novas áreas de produção, e a novas formas de a manipular.

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