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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA
Programa de Pós-Graduação em Economia
Carlos Vilela Porto Silva
O CLUSTER DE ENTRETENIMENTO DA LAPA
Uma análise do processo de inovação na economia da música da região
da Lapa ─ RJ.
Rio de Janeiro
2010
Carlos Vilela Porto Silva
O CLUSTER DE ENTRETENIMENTO DA LAPA
Uma análise do processo de inovação na economia da música da região
da Lapa ─ RJ.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Economia do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do título de Mestre em Economia. Orientador: Dr. Fábio de Silos Sá Earp.
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Rio de Janeiro
2010
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FICHA CATALOGRÁFICA
Carlos Vilela Porto Silva
O Cluster de Entretenimento da Lapa:
Uma análise do processo de inovação na economia da música da região da Lapa ─ RJ.
_____________________________________________________
Dr. Fábio de Silos Sá Earp (orientador) – UFRJ
______________________________________________________
Dra. Lia Hasenclever – UFRJ
_______________________________________________________
Dra. Renata Lèbre La Rovere – UFRJ
______________________________________________________
Dra. Fania Fridman – UFRJ
Rio de Janeiro, 27 de setembro de 2010.
Dedico esta dissertação à região da Lapa!
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AGRADECIMENTOS
Quero agradecer primeiramente à minha família, pelo suporte dado a mim
neste período de Mestrado, com toda a loucura que o acompanha.
Quero também agradecer ao meu orientador, Prof. Fábio Sá Earp, que desde
o começo me auxiliou nesta empreitada, através de seus conselhos, seus
conhecimentos, e, principalmente, seu bom humor, tão necessário para aplacar o
estresse que me acompanhou neste caminho.
Quero ainda agradecer o apoio da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
em especial aos professores que, com suas aulas, conseguiram me passar um
conhecimento de Economia que, eu, engenheiro de formação, certamente carecia.
Dentre estes, quero destacar aqueles que mais tempo passaram comigo nesta fase,
a saber: Profa. Lia Hasenclever e Prof. Luiz Martins de Melo, que muito me
ensinaram sobre a questão da inovação tecnológica e seus processos, e Prof. Mário
Possas, a quem devo não somente o conhecimento de Economia Evolucionária que
utilizei no presente trabalho, mas também que muito me ajudou a assumir de forma
radical minha verve heterodoxa, o que certamente vai bem além mesmo do escopo
desta dissertação. A estes professores, com quem tive a honra de ser aluno por um
ano (em cada caso), meus agradecimentos sinceros por este aprendizado.
Quero agradecer também à ajuda dos meus “entrevistados”, que muito me
ajudaram na obtenção das informações necessárias para que eu fizesse este
trabalho. Assim, agradeço a: Rodrigo Fróes, Rafael Fleury, Ítalo Vianna, Leo Feijó e
Luciana Nadalutti, pela ajuda e compreensão durante as entrevistas.
Por último, quero agradecer a todos os meus amigos que me acompanharam
neste processo, e que muito me auxiliaram na criação desta dissertação. A estes,
agradeço pela ajuda.
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“Nada do que foi será/
De novo do jeito que já foi um dia/
Tudo passa/
Tudo sempre passará”
(Lulu Santos – Como uma Onda (Zen-Surfismo)).
RESUMO
A presente dissertação tem como objetivo analisar como se dá o processo de
inovação tecnológica na Economia da Música, particularmente no caso da região em
estudo: a região da Lapa, localizada no Centro da cidade do Rio de Janeiro.
Este estudo se fará à luz de um modelo baseado na economia evolucionária,
em especial o modelo desenvolvido por Richard Nelson e Sidney Winter, onde estes
autores oferecem os elementos e a discussão necessários para uma visão
evolucionária da mudança econômica.
O trabalho buscará criar uma caracterização de quais agentes e forças
econômicas estão presentes no processo de inovação na região, para em seguida
sintetizar este processo em um esquema geral que tente analisar de que forma se
dá a inovação na indústria da música, em especial, mas não somente, na região.
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PALAVRAS-CHAVE: Inovação, Cluster, Economia do Entretenimento, Lapa,
Economia Evolucionária, Economia da Música.
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ABSTRACT
The objective of the present dissertation is to analyze how the process of
innovation happens in the industry of music, particularly in the case of the region
analyzed: the region of Lapa, on the city of Rio de Janeiro.
This study will be done based on the evolutionary economies, especially the
model developed by Richard Nelson and Sidney Winter, where this economists offer
the elements and the analysis of the evolutionary vision for the economic change.
This dissertation will seek the characterization of which economic agents and
forces are present in the process of innovation in the region of Lapa, so it can be
synthesized in a general overview of how the innovation actually occurs, especially,
but not only, in the region.
KEYWORDS: Innovation, Cluster, Entertainment Economy, Lapa,
Evolutionary Economics, Music Industry.
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LISTA DE FIGURAS E TABELAS
Figura 1 – Cadeia Produtiva da Música: visão esquemática:.....................................43 Tabela 1 – Dimensões e subdimensões para a região da Lapa:...............................60 Tabela 2 – Quadro geral das mudanças na Economia da Música:............................87
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................13 CAPÍTULO I A ECONOMIA DA MÚSICA.................................................................................... 20 I.1. Características Gerais..........................................................................................25 I.2. Demanda..............................................................................................................27 I.2.1. Produtos........................................................................................................29 I.2.1.1. Discos....................................................................................................29 I.2.1.1.1. A inovação no caso dos discos.......................................................32 I.2.1.2. Espetáculos ao vivo................................................................................33 I.2.1.2.1. A inovação no caso dos espetáculos ao vivo..................................36 I.2.1.3. Boates....................................................................................................37 I.2.1.3.1. A inovação no caso das boates.......................................................39 I.3. Oferta....................................................................................................................40 I.3.1. Cadeia Produtiva...........................................................................................40 I.3.2. A Oferta na indústria do disco......................................................................43 I.3.2.1. Majors.................................................................................................... 44 I.3.2.2. Indies......................................................................................................47 I.3.3. A Oferta na indústria dos "espetáculos ao vivo".............................................47 I.4. As mudanças na indústria da música...................................................................48 I.5. Uma visão evolucionária da economia da música...............................................51 CAPÍTULO II A REGIÃO DA LAPA..............................................................................................55 II.1. Caracterização da Região...................................................................................55 II.1.1. Histórico Geral..............................................................................................55 II.1.2. Caracterização da região pelo referencial dos "cenários" (´scenes')...........58 II.1.3. Discussão "A Lapa para o Rio"....................................................................61 II.2. Clusterização: motivos para a mesma................................................................61 II.3. Os atores envolvidos...........................................................................................67 II.3.1. Consumidores..............................................................................................67 II.3.2. Músicos........................................................................................................68 II.3.2.1. Carreira e formação do músico.............................................................70 II.3.3. Empresários.................................................................................................71 II.4. O processo de inovação da Lapa.......................................................................73 II.4.1. A relação músico-empresário.......................................................................73 II.4.2. A relação empresário-consumidor................................................................79 II.4.3. A relação músico-consumidor......................................................................80 II.4.4. A relação músico-músico.............................................................................81 II.4.5. A relação empresário-empresário................................................................82 II.4.6. A relação consumidor-consumidor...............................................................83 II.4.7. O papel da Internet no processo de inovação da Lapa................................84 CAPÍTULO III CONTEXTUALIZAÇÃO E PERSPECTIVAS DO CLUSTER..................................86 III.1. Introdução...........................................................................................................86
III.2. Mudanças em curso na Lapa.............................................................................86 III.3. O papel da região da Lapa no processo de inovação na economia da música........................................................................................................................88 CONCLUSÕES E QUESTIONAMENTOS FUTUROS...............................................91 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................94 ENTREVISTAS REALIZADAS (NOME DOS ENTREVISTADOS)...........................100
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objeto de estudo a inovação na economia da
música, com foco na região da Lapa (cidade do Rio de Janeiro).
Nesta região, está presente um cluster de entretenimento, se tornando um
referencial para toda a cidade. Assim, destaca-se sua importância crescente para a
indústria do entretenimento de todo o Grande Rio.
Além disso, como a economia da região se insere em um contexto mais
amplo da economia da música como um todo (e não somente restrito
especificamente à região), se torna claro que uma análise deste processo de
inovação na região acaba por resultar numa compreensão mais profunda do
processo de inovação na economia da música como um todo.
Para isto, primeiramente, proceder-se-á a um estudo da economia da música
como um todo. Neste, serão discutidas as características econômicas básicas (tais
como: estrutura de custo, tipos de produto, caracterização da oferta, da demanda,
tipos de empresas existentes, bem como sua estrutura geral, natureza geral do
processo de inovação, etc.).
Além disso, será feita uma análise do processo de inovação da região, com
base no modelo da economia evolucionária, baseado principalmente no trabalho de
Nelson e Winter (1982). Através deste, será feito um estudo de como os elementos
deste modelo se adequam ao estudo da economia da música.
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No capítulo seguinte, será feito um estudo mais amplo da região da Lapa.
Primeiramente, será apresentado um histórico da região, de forma a se analisar o
processo histórico pelo qual se formou a economia da música local. A seguir, será
feita uma análise das características urbanas da região, através do modelo das
„scenes‟ (baseado nos trabalhos de Silver, Clark e Rothfield, 2005), bem como numa
análise de como a Lapa se coloca no contexto da cidade do Rio de Janeiro.
A partir disso, será feita uma análise de como se formou o cluster de
entretenimento na região, como forma de se compreender quais forças econômicas
levaram e têm levado à clusterização da economia da música no local.
Após este estudo, será criado um esboço de quais são os tipos de agentes
econômicos presentes na região, bem como os fatores que governam seu
comportamento microeconômico. Com isto, se procede a seguir uma análise de
como ocorre a interação entre estes agentes econômicos, de forma a caracterizar
como esta interação impacta e caracteriza o processo de inovação na região.
No capítulo que se segue, então, será feita uma síntese da análise anterior,
de maneira a se caracterizar de forma mais ampla como ocorre o processo de
inovação na economia da música, através da contextualização desta inovação na
economia da música no caso específico da Lapa. Com isto, pretende-se chegar
tanto a como a economia da música tem afetado a região, bem como o inverso:
como o cluster da região da Lapa afeta e se encaixa no quadro mais geral da
economia da música como um todo.
Finalmente, será feito um último capítulo, com a conclusão do presente
estudo, bem como serão propostos encaminhamentos para estudos futuros.
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1. Metodologia
Abaixo será vista a metodologia utilizada no presente trabalho. Para isto, será
exposto o referencial teórico utilizado no mesmo, com os principais conceitos
econômicos que serviram de base à sua realização. Em seguida, descreve-se como
foi realizado o estudo de caso que serve de base ao presente trabalho.
1.1. Referencial Teórico
O presente trabalho procura realizar um estudo da inovação na economia da
música, com especial destaque à inovação realizada na região em estudo, a região
da Lapa (Centro da cidade do Rio de Janeiro).
Primeiramente, temos que a economia da música é formada tanto por
produtos ligados ao setor secundário (basicamente, os “discos”, isto é, CDs/DVDs, e
a música registrada sob a forma de partituras, sejam elas escritas ou em meio
digital, entre outros), quanto por serviços, isto é, ligados ao setor terciário
(basicamente, os espetáculos ao vivo e as boates).
Além disso, temos, também, que o presente trabalho utiliza a visão
heterodoxa, baseada, principalmente, no conceito de racionalidade limitada1, como
1 O conceito de “racionalidade limitada”, em oposição ao conceito neoclássico de racionalidade perfeita, se
refere aos casos em que os agentes econômicos operam em ambientes de incerteza radical. Neste caso, ao
invés de buscarem comportamentos maximizadores, estes buscariam alguma forma de padrões de
comportamento (“rotinas”, segundo a visão evolucionária de Nelson e Winter, 1982), ou seja, a uma forma de
“racionalidade procedural” (para uma discussão mais apurada sobre esta questão, ver Simon, 1955).
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forma de compreensão de como os agentes processam a sua realidade, e, portanto,
como tomam suas decisões em ambientes de incerteza.
A partir disso, utiliza-se o conceito de “mercados organizados” de Lundvall
(1998), onde, nos mercados, oferta e demanda fazem uso de canais de informação
entre si para as suas transações.
Nota-se que este conceito pode também ser utilizado junto ao conceito
de “custos de transação”. Assim, pode-se pensar que a “organização dos mercados”
atua diminuindo os custos de transação envolvidos na transferência da informação
entre produtores e usuários, facilitando o processo de inovação. No entanto, cabe
destacar (Lundvall, 1998), que, ao contrário da abordagem original de Williamson
(1985), a análise do presente trabalho não utilizará este conceito de “custos de
transação” para buscar qualquer tipo de “ótimo” neoclássico. De fato, por ser
baseado na visão evolucionária do processo de inovação na economia da música, o
atual estudo se baseia na noção de que, num mundo de inovação permanente, um
quadro institucional “ótimo” não será buscado. De fato, o conceito de “custos de
transação” será utilizado somente para analisar o processo de tomada de decisão de
cada agente frente a um ambiente caracterizado por um alto nível de incerteza.
De forma a se pensar a questão da organização dos mercados na economia
da música, foi criado o conceito de “padrões”. Estes padrões seriam, na verdade,
categorias existentes na economiada música, que se referem não somente aos aos
produtos/ serviços da economia da música, mas também para vários de seus outros
aspectos, tais como o processo de contratação (ou seja, o mercado de trabalho dos
músicos também seria um mercado organizado pelos “padrões”), alguns aspectos
na carreira da música, entre outros. Na verdade, como categorização da realidade
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externa incerta, os “padrões” acabam por funcionar como uma linguagem comum
entre os agentes econômicos na indústria da música.
Assim, tais padrões não afetam somente o processo de venda (e consumo),
mas tem impacto inclusive na produção, e, portanto, em todo o processo de
inovação existente. No caso da economia do espetáculo, em sendo este parte do
setor de serviços, fica claro, portanto, que estas questões estão necessariamente
interligadas. Mas mesmo no caso da economia do disco, parte do setor secundário,
portanto, se torna claro, na exposição a ser feita, o impacto que estes padrões têm
no processo de produção e de inovação. Desta forma, será analisado como se dá o
processo produtivo, bem como a estrutura de custos, no caso de cada um dos
produtos/ serviços existentes na economia da música.
Na realidade, de uma forma geral, podemos conceituar, ao longo deste
presente trabalho, inovação como um processo de criação de novos (e destruição
dos velhos) padrões existentes na economia da música.
Para avaliar este processo de inovação, portanto, será utilizado o modelo
evolucionário, em especial tal como desenvolvido por Nelson e Winter (1982), para
avaliar, dentro da ótica evolucionária, como ocorre este processo de constante
inovação dentro dos “padrões” da economia da música. Neste caso, se mostrará
como o conceito dos “padrões” se encaixa dentro do modelo evolucionário como
sendo justamente o fator replicador (isto é, na analogia biológica, o “gene” do
modelo para o caso da economia da música).
A partir daí, será visto como ocorre o processo mais específico dentro do
cluster de entretenimento da região da Lapa. Para isto, primeiramente, iremos
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examinar como ocorreu o processo de formação desse cluster2, de forma a entender
que fatores regem seu funcionamento.
Além disso, parte-se de uma análise da região com base no estudo de três
principais tipos de agentes econômicos: o músico, o empresário e o consumidor.
A partir do comportamento de cada um destes agentes, bem como da inter-relação
entre eles, será determinado como ocorre, de fato, o processo de inovação na
economia da música na região específica da Lapa.
Por fim, será feita uma pequena digressão, com base no anteriormente visto,
sobre o impacto da economia da música (mais especificamente sobre suas
mudanças futuras) sobre a região da Lapa, bem como o papel da região da Lapa (e
do seu processo de inovação) no caso particular do processo de inovação na
economia da música.
Por fim, conclui-se, com proposta para questionamentos e estudos futuros.
1.2 – As Entrevistas
Ao longo do presente trabalho, além das fontes bibliográficas consultadas,
foram realizadas algumas entrevistas, junto a músicos e empresários.
2 De acordo com a literatura sobre o conceito de cluster, este pode assumir diversas definições (Ketels, 2003).
Para os propósitos deste trabalho, cluster será definido como grupos de empresas localizados em uma mesma
região geográfica (no caso do trabalho, a região da Lapa), e onde ocorra alguma forma de interação entre estas
firmas, seja na produção, na inovação, na aprendizagem, no consumo ou em qualquer outro aspecto
econômico destas firmas.
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Estas entrevistas, por sua vez, não foram realizadas com o intuito de se
buscar qualquer tipo de análise estatística, mas sim como forma de se obter
informações sobre alguns pontos particulares que não foram abordadas na literatura
vista sobre a região da Lapa. Por isso (e também como forma de não se constranger
os entrevistados na divulgação de diversas informações), optou-se por não ser feita
a gravação (e, portanto, a transcrição) das entrevistas realizadas. Ao invés disso,
foram extraídos das entrevistas especificamente os pontos considerados
importantes à realização do presente estudo.
Assim, após uma análise de como ocorre o processo de inovação na
economia da música de uma forma geral, e diante da compreensão do caso
específico de como esta inovação se dá no caso da Lapa, as entrevistas serão
utilizadas como forma de se investigar alguns pontos específicos3 que não são
abordados na literatura tradicional sobre a região da Lapa.
.
3 Em particular, serão vistos como ocorrem os contratos entre músicos e donos dos estabelecimentos, como
estes últimos planejam sua agenda de eventos, entre outros pontos específicos a serem vistos ao longo do
trabalho.
20
CAPÍTULO I
A ECONOMIA DA MÚSICA
A música é um conjunto de sons articulados de forma harmoniosa, de sorte
que esta harmonia aí presente, por ser agradável ao ouvido humano, possa gerar
uma sensação prazerosa no ser humano.
A música, ao longo da história, foi caracterizada por ser uma atividade
vivencial, isto é, alguma coisa “a ser experimentada” pelo ser humano. Sons que, ao
serem ouvidos, despertavam as sensações (prazerosas ou não) a serem buscadas
na música.
Assim, inicialmente, a música era uma experiência coletiva, onde, em um
determinado local e momento específico, um músico (ou grupo de músicos) tocava
para uma platéia, desejosa de experimentar as sensações prazerosas causadas
pela música.
Desta forma, a música aparecia na sociedade (incluindo a economia) no seu
formato mais primitivo de espetáculos ao vivo, muito antes, portanto, de que
qualquer outra forma de difusão e divulgação da música pudesse aparecer. Estes
espetáculos, na Idade Média, podiam ocorrer de duas formas principais: uma, onde
os músicos trabalhavam nos castelos, como empregados dos senhores feudais. A
outra forma eram os “músicos de feira”, isto é, músicos que trabalhavam nas feiras
medievais, onde em geral as músicas eram executadas conjuntamente a peças de
teatro da época.
21
Interessante notar que, enquanto o primeiro tipo ainda exibia características
claramente feudais, no segundo tipo, por ser de artistas que se exibiam nas feiras,
juntamente com as peças de teatro, já se caracterizava como uma “mercadoria”,
sendo, portanto, um dos primeiros sinais de aparecimento de características
capitalistas na música.
No seu desenvolvimento na Europa ao longo dos séculos, porém, a música
tomou um formato extremamente formalizado, com a elaboração gradual de uma
forma de escrita musical, levando à criação de “partituras”4, isto é, documentos que
registrassem o conjunto de sons criados pelo compositor (criador de uma
determinada música). Com isso, uma determinada música pôde ser difundida para
diversos locais além daqueles onde ela era criada. Assim, ocorre uma separação no
processo e no locus da criação da música e de sua execução para o público
consumidor.
O surgimento da partitura como mercadoria, porém, foi gradual. Inicialmente,
como o trabalho do músico era dedicado principalmente à nobreza, não havia, ainda,
o surgimento da música (seja como partitura ou mesmo em outros formatos, como
“espetáculos musicais”) como mercadoria.
No entanto, aos poucos, ao longo do século XVIII e XIX, a música começa a
ganhar contornos capitalistas. Primeiramente, temos o gradual afastamento dos
músicos de um trabalho como empregado da aristocracia européia (o “sistema de
patronato”) para um trabalho para um mercado capitalista da música.
Um dos fatores essenciais para esta mudança foi o surgimento dos primeiros
sistemas de “Direitos de Propriedade Intelectual” (DPI) (Attali, 1996). Tendo 4 Ver DeNora (1995) , Attali (1996) e Elias (1995), Scherer, (2006) e Requião (2008).
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aparecido, inicialmente, na indústria do livro, estes DPIs foram passados para o caso
da música como direitos sobre a impressão de partituras (que lentamente ganhavam
força na Europa, com o gradual surgimento da escrita musical européia). Assim, os
direitos de cópia existentes levaram ao surgimento do monopólio sobre a
reprodução, mas não sobre a composição. (Attali, 1996) Esta situação só começa a
mudar a partir do século XIX, quando o surgimento de uma demanda solvável por
espetáculos públicos (isto é, não restritos a uma nobreza, mas sim de acesso a
todos os que pudessem pagar os ingressos ao mesmo) torna viável
economicamente o surgimento de um „enforcement‟ que apoiasse o aparecimento
de um sistema de DPIs ligados também à composição, e, portanto, que protegesse
também o trabalho do músico, permitindo, com isto, o surgimento de fato da partitura
como uma mercadoria, a ser produzida pelos músicos.5
Por sua vez, a separação anteriormente citada entre o locus da criação da
música e de sua execução para o público consumidor teve alguns efeitos, dos quais,
para o presente trabalho, podemos destacar três. Primeiramente, com a
possibilidade de registrar uma execução musical, um músico poderia, assim,
perpetuar sua criação para além do momento em que ela foi executada. Ou seja,
ocorre a separação entre compositor e intérprete, onde o primeiro criaria, então, todo
o conjunto de padrões musicais que poderiam ser executados não somente em
outros momentos, mas mesmo por outras pessoas.
Este primeiro efeito se intensificou no fim do século XIX e início do
século XX, tanto com o advento dos meios de comunicação de massa (rádio, TV,
etc...), quanto com o surgimento e aperfeiçoamento dos processos fonográficos, que
5 Ver Attali (1996) e Scherer (2006).
23
permitiram a gravação dos sons executados pelo músico. Com isso, foi possível criar
o que hoje se entende como “a música”, isto é, o conjunto de padrões sonoros
gravados em meio de reprodução apropriado (fitas cassete, discos, CDs, DVDs,
entre outros). Assim, com a criação da “música“ como alguma coisa separada da
simples vivência sonora de um instrumento musical sendo tocado por alguém, torna-
se possível o surgimento da música como um “produto”, ou seja, como “mercadoria”.
Assim, os meios de comunicação de massa, bem como as tecnologias fonográficas,
levam ao surgimento da produção e do consumo de música em massa. (Scherer,
2006).
Além disso, um segundo efeito desta separação é que, para aqueles músicos
que criavam suas próprias “partituras”, isto é, que elaboravam os seus próprios
conjuntos de sons a serem tocados (os acima denominados “compositores”), se
abria também a possibilidade, como meio de vida, de se vender as “partituras” assim
criadas, de forma que outros pudessem, então, executá-las (DeNora,1995, Elias,
1995). Em outras palavras, a partir dali, a “partitura” surge, dentro da economia da
música, como uma mercadoria, a ser comercializada, e cujo ganho daí decorrente
poderia ser, então, apropriado pelo músico. Esta mercadoria encontrou, no século
XIX, uma demanda crescente, em especial constituída por mulheres de classe
média, que demandavam partituras para execução doméstica, geralmente feita em
pianos, mas também em outros instrumentos musicais. (DeNora,1995)
Por outro lado, como terceiro efeito da separação entre criação e execução da
música, temos que a forma tradicional de execução musical se manteve em boa
parte também, paralelamente ao mercado de consumo de massa. Eles aparecem na
forma de apresentações e performances musicais ao vivo (denominados no
presente trabalho de “espetáculos ao vivo”, dos quais se falará mais tarde).
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Aproveitando-se das “músicas” compostas no mercado de consumo de
massa, os “espetáculos ao vivo” se mantiveram na economia da música como uma
forma de divulgação do trabalho do músico, bem como uma oportunidade para o
trabalho dos intérpretes (que podem ou não compor as músicas que executam). Em
outras palavras, ao lado do aparecimento, por parte dos compositores, de uma
crescente comercialização das “músicas” por eles produzidas, constata-se, em
paralelo, um mercado (não de bens, mas de serviços) dos “espetáculos ao vivo”.
Uma forma de aparecimento dos “espetáculos ao vivo”, que, inclusive, é
objeto de estudo do presente trabalho, é a execução das performances musicais
junto a outras atividades econômicas paralelas. O exemplo disso que será
destacado no presente trabalho é a atividade concomitante dos “espetáculos ao
vivo” em estabelecimentos da indústria de entretenimento, ou, mais precisamente,
bares e restaurantes da região analisada (a Lapa).
Assim, podemos colocar que a música pode aparecer tanto sob a sua
forma de execução musical (os “espetáculos”, a serem conceituados
posteriormente), surgindo como “mercadoria” na forma de um serviço, como na
forma de produtos, onde a música aparece como registrada em algum tipo de
suporte físico. Este suporte, inicialmente, era através do registro escrito (partitura) da
música, para, com o advento da indústria fonográfica, surgir também na sua forma
“sonora”, isto é, gravados sob a forma do “disco”.
I.1. Características Gerais
25
No presente capítulo, estudaremos as principais características da indústria
da música.
Uma das principais características observadas nesta é a existência de uma
grande incerteza, com todos os impactos que isso represente no processo de
inovação.
Uma das causas desta incerteza é a questão dos custos de transação (ver
Williamson, 1985) existentes, em especial entre artistas e o seu público (as “pontas”
do processo inovativo), mas também entre cada uma das etapas de sua cadeia
produtiva.
De fato, uma das principais funções das empresas existentes neste setor é
diminuir estes custos de transação existentes, de forma a possibilitar que os artistas
(no caso do espetáculo ao vivo) e as suas obras (no caso da música gravada)
possam encontrar-se com o seu público consumidor, de forma que o consumo da
música possa, de fato, ocorrer.
No entanto, é marcante que, em ambos os lados, existe uma taxa muito
grande de inovação e mudanças econômicas. No caso dos artistas, estes estão a
cada momento criando novas músicas, discos, performances, etc, enfim, criando
novas mercadorias (ou insumo para estas) no mercado.
Do lado do consumidor, além disso, existe um contínuo surgimento de novos
gostos, tendências, preferências, etc, que levam à necessidade de um mercado que
atenda a estas demandas.
26
Estas tendências, por sua vez, aumentam ainda mais a questão da incerteza
presente neste mercado. Além disso, a estrutura de custos existentes na indústria da
música também acaba por acirrar esta incerteza existente.
Esta estrutura de custos, por sua vez, está ligada a forma como é produzida a
música (seja como disco, espetáculo, etc.): seus bens e serviços possuem baixo
custo de reprodução, mas altos custos fixos iniciais. Estes últimos estão ligados ao
fato de que seus produtos/serviços necessitam de projetos de criação (a serem
detalhados posteriormente) que exigem altos custos. Assim, uma vez incorridos
estes custos para a produção, a reprodução (e, portanto, sua difusão para o
consumo de massa) se torna extremamente barata (Towse, 2010 e Connolly e
Krueger, 2005).
Ora, como o custo fixo (custo da produção) é elevado, e seu custo variável
(custo da reprodução) é quase nulo, seu custo médio se torna bastante sensível à
quantidade vendida de mercadorias6.
Assim, se torna essencial, neste mercado, que cada empresa busque
alcançar um amplo mercado para os seus produtos, de forma a atenuar os altos
custos fixos iniciais existentes. Dado que este “acesso ao mercado” é caracterizado
pelos altos custos de transação mencionados anteriormente, fica claro que esta
estrutura de custos existentes nesta indústria torna essencial que o problema do
acesso ao mercado possa ser resolvido.
6 Podemos ver isso da seguinte forma:
CMe = CT/Qtd = (CF/Qtd) + CV =~ CF/Qtd (já que CV =~0); Onde: CMe = Custo Médio; CT = Custo Total; CF = Custo Fixo; CV = Custo Variável; Qtd = Quantidade.
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A seguir, será feita uma análise do mercado da música, tanto em termos da
demanda, quanto em termos da oferta.
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I.2. Demanda
Analisemos, portanto, agora, a indústria da música, pelo lado da demanda.
Conforme dito, este mercado se constitui por uma demanda com gosto
altamente flutuante e heterogêneo, o que aumenta sobremaneira a incerteza para o
lado da oferta (a ser vista a seguir).
De forma a lidar, porém, com este alto grau de incerteza, o mercado passou a
se organizar (Lundvall, 1998) de forma a criar padrões, que visam balizar tanto o
comportamento do consumidor (demanda) quanto das firmas produtoras dos bens e
serviços musicais (oferta).
Estes padrões consistem em pequenas “categorias” ou “agrupamentos” dos
produtos/ serviços e até dos artistas existentes. Assim, quando uma música nova é
lançada no mercado, esta é classificada de acordo com diversas categorias
existentes, em especial: “gênero musical” (rock, pop, MPB, etc, com todas as suas
subdivisões) e “músico” (muitas músicas são consumidas simplesmente por ser
composta/realizada por um determinado músico). Mas também outras categorias
existem, tais como (no caso das performances musicais): “tempo” (o momento em
que uma música é tocada/cantada, por exemplo: noite, tarde, fim de semana, etc.),
“lugar” (o local da performance), etc.
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Estas categorias vão não somente balizar a troca de informações entre oferta
e demanda, mas vão reger toda a organização da indústria da música. Assim,
podemos destacar, como um dos efeitos disso, a constituição da carreira dos
músicos, baseada na popularização de seu próprio padrão, com a constituição (se
possível) de uma base de fãs (ou, ao menos, consumidores mais “fidelizados”).
Outro efeito, também, é que os artistas também, no seu processo de aprendizado,
vão se referenciar nestes padrões. Assim, por exemplo, um cantor de rock vai
procurar, em sua formação profissional, referências distintas da de um músico que
se identifica com o hip-hop ou com o samba, por exemplo.
Por último, podemos destacar um dos padrões citados acima, de especial
relevância para o presente estudo: o “lugar”. Este assume especial importância no
presente trabalho, pois a Lapa se tornou outra possível referência existente na
indústria da música, o que, conforme veremos mais adiante, tem impactos inclusive
no surgimento do próprio cluster de entretenimento que lá se formou.
Interessante destacar, inclusive, que a criação deste padrão relacionado ao
lugar, prática já bem comum em certos distritos culturais7, tem se tornado uma das
reivindicações dos empresários da região em estudo no presente trabalho
(Herschmann, 2007).
I.2.1. Produtos
7 Ver Santagata (2006) para maiores referências sobre esta prática de criação de “marcas locais”, bem como
seu papel no desenvolvimento cultural da região.
29
Destacaremos, a seguir, de forma geral, alguns dos principais produtos e
serviços existentes na economia da música, dando, primeiramente, sua definição
geral, suas principais características econômicas, destacando, nestas, a estrutura de
custos particular de cada produto ou serviço.
A seguir, será feito, também para cada caso estudado, uma definição mais
específica e acurada do que se pode entender como o processo de inovação em
cada caso.
De maneira geral, porém, pode-se conceituar a inovação da economia da
música com base na estrutura mencionada anteriormente dos padrões criados
dentro da economia da música. Assim, dentro desta estrutura conceitual, podemos
definir inovação como a criação de novos padrões dentro da economia da música.
I.2.1.1. Discos
O primeiro produto a ser analisado é denominado, no presente trabalho, de
“disco”.
O “disco”, neste caso, se refere a um bem, que, em si, guarda as informações
relativas à música. Assim, o disco, com algum equipamento apropriado, leva à
execução musical por parte do consumidor, sem que, para isso, se precise da
presença do músico em questão. Além disso, cada “disco” poderá armazenar um
certo conjunto (o “álbum”) de músicas (denominada, neste caso, de “faixas”),
quantidade esta que poderá variar dependendo do tipo específico de disco a que
30
está se referindo8. Assim, o produto em questão não se limita a somente uma
música composta e gravada, mas a um conjunto específico das mesmas. Pode-se
notar, ainda, conforme dito por um dos entrevistados9, que a reunião destas “faixas”
em um “álbum” permite que a este conjunto seja aplicado um tema. Este tema pode
ser desde um tema geral criado pelo artista compositor (em especial, no caso de
músicas novas), ou mesmo temas que expliquem a reunião de músicas já
previamente compostas10, entre outros casos.
A produção do disco é, como visto, caracterizada por ser uma produção
(assim como distribuição e consumo) de massas, onde, portanto, se torna
importante a presença de economias de escala, de forma a diminuir os custos do
produto.
Estes custos, por sua vez, seguem a lógica mencionada acima, segundo a
qual o custo fixo inicial se torna mais relevante que o custo de reprodução. De fato, o
custo fixo inicial, na produção de um disco, se refere a todos os custos incorridos
(por parte das gravadoras, no caso) tanto na composição (incluindo o pagamento
aos músicos, que, na visão da gravadora, também se constitui um custo), quanto na
gravação e mesmo na divulgação e distribuição dos mesmos. Mesmo nos casos, de
terceirização dos processos de gravação a „indies‟ ou „home studios‟, o custo
8 No caso do CD, por exemplo, temos um “álbum”, isto é, um conjunto de músicas disponíveis como variando
normalmente de 10 a 15 “faixas”, exceto no caso dos ‘singles’, que contem apenas uma “faixa”. Para um DVD,
porém, este número pode ser ainda maior.
9 Entrevista concedida por Rodrigo Fróes.
10 Como é o caso das “coletâneas”, que são inclusive formas de algumas gravadoras conseguir lançar novos
produtos, mesmo sem a composição de fato de músicas novas, mas apenas com a reunião (sob novo tema) de
músicas já previamente compostas. (Para uma análise mais aprofundada do fenômeno, ver Requião, 2008).
31
incorrido na contratação destes serviços se torna, portanto, parte dos custos fixos
iniciais incorridos na produção do disco.
Por outro lado, o custo de reprodução é não somente baixo, mas, a cada nova
tecnologia, cada vez menor. Assim, além de baixo no caso dos LPs e fitas cassete,
se tornaram ainda menores no caso dos CDs e DVDs.
De forma que vale, nestes casos, a anteriormente mencionada necessidade
de busca de mercados consumidores amplos, de forma a se obter uma diluição
destes custos fixos iniciais em um custo médio mais baixo.
Neste ponto, pode-se notar o importante papel desempenhado pelas grandes
gravadoras („majors‟) no processo de comercialização, marketing e difusão dos
discos, já que estas, por contar com economias de escala comuns a grandes
empresas, podem diluir estes custos fixos iniciais em uma grande quantidade de
discos vendidos. Inclusive, um destes custos fixos mais importantes ao processo de
inovação é aquele ligado às perdas com os fracassos de novos músicos (e mesmo
novas músicas de músicos já estabelecidos).
Assim, o papel principal das grandes gravadoras no processo de inovação na
economia do disco é a possibilidade de arcar com os custos de inovação
associados. No entanto, este papel tem sido, ao longo dos últimos anos,
severamente prejudicado pelas mudanças observadas nestas gravadoras, em
especial aquelas relacionadas com as transferências dos custos e incertezas
relacionados ao processo de inovação das gravadoras para os artistas. Com isto, a
contribuição das „majors‟ no processo de inovação da música tem sido cada vez
mais precário.
32
I.2.1.1.1. A inovação no caso dos discos
No caso da indústria do disco, a inovação pode ser conceituada de diversas
maneiras. Como cada músico irá gravar (e compor, se for, além de intérprete,
compositor) diversas “faixas”, isto é, músicas, ou versões de músicas, de forma que
um conjunto deles forme um “álbum” (correspondente a um novo tipo de disco a ser
comercializado), temos, portanto, três tipos diferentes de inovações:
a) Criação de uma nova música (“faixa”): Surgimento de uma nova “faixa”,
que poderá tanto ser uma composição nova, quanto uma nova versão de uma
composição antiga (um novo arranjo musical, pequenas alterações melódicas, um
„pot-pourri‟ de diversas músicas anteriormente compostas, etc).
b) Criação de um novo álbum: Reunião de um pequeno conjunto de “faixas”
(em geral, 10 a 15, na maioria dos álbuns, ou mesmo uma única faixa, no caso dos
„singles‟), de forma a que se construa um protótipo no qual serão produzidos e
comercializados os novos discos. Existem também, no caso do vinil, além do formato
„long play‟, que seguia a estrutura acima, também os formatos “compacto simples”
(que persistiu com o advento do CD no formato dos „singles‟) e “compacto duplo”
(que consistia em uma música para cada lado do disco).
c) Surgimento de um novo músico: Como o mercado de trabalho dos músicos
é dinâmico, e cada músico define, conforme dito anteriormente, um novo “padrão” na
economia da música, podemos definir que o surgimento de um novo músico no
cenário musical também se trataria de uma inovação, na medida em que se cria,
33
então, um novo padrão. Interessante notar, inclusive, que o mesmo se aplica ao
caso do surgimento de uma nova banda. Neste caso, ainda que haja uma
composição de diversos músicos (e esta composição possa mudar), a lógica desta
inovação é basicamente a mesma para a inovação do surgimento de um músico em
carreira solo.
Embora este último caso não seja o foco do presente estudo, será analisado
no presente trabalho no que diz respeito aos seus efeitos e interações com os outros
tipos de inovação.
I.2.1.2. Espetáculos ao vivo
Ao contrário do que ocorre com os discos, os espetáculos ao vivo não são
bens, mas sim serviços, o que, em si mesmo, já é um primeiro fator de diferença
com o caso anterior.
Podemos definir o “espetáculo ao vivo” como um serviço fornecido por
músicos e outros profissionais ligados à performance musical, que consiste no
encontro, em um determinado local e momento (dia e hora) específicos. Nestes, o
publico consumidor (a “platéia”) se reúne junto aos músicos, e estes executam suas
performances musicais, de forma a propiciar a esta platéia o desfrute da música
executada (Towse, 2010 e Connolly e Krueger, 2005).
Interessante observar que o “espetáculo ao vivo” pode ser pensado, tanto em
termos operacionais, como, portanto, em termos de sua estrutura de custos e
receitas, como constituído de duas “partes” separadas. A primeira, constituída pela
34
organização e produção do espetáculo, ligada principalmente ao “lado da oferta”, é a
responsável pelos custos do espetáculo. A segunda parte, ligada à “demanda”, se
refere principalmente ao público consumidor e é a responsável pela receita do
espetáculo. Assim, podemos perceber que, no caso dos espetáculos, a receita se
torna independente do custo, já que a primeira se liga ao público consumidor e o
último está ligado à produção de fato do espetáculo.
Economicamente, portanto, temos que, no espetáculo ao vivo, aparece a
mesma estrutura de custos vista na economia da música, mas de uma forma
diferente. Temos, também neste caso, um alto custo fixo inicial, relacionado tanto à
preparação do local onde será executada a performance musical, quanto
relacionado à montagem e ensaio dos músicos e seus instrumentos musicais.
Sendo, portanto, um evento que não pode ser “reposto”11 (por ser específico no
tempo e no espaço), o ensaio se torna necessário para garantir que, no momento
em que o espetáculo é executado, seja mantida a qualidade desejada para este
serviço.
Além disso, também em termos do custo variável (ou custo marginal),
também temos que o seu valor, seguindo o que foi dito anteriormente, também é
bastante baixo, vale dizer praticamente nulo. Isto ocorre porque, como os custos
estão quase todos eles relacionados à montagem e execução da performance
musical, e não à quantidade “vendida” (o tamanho do público que assiste à
performance), ou seja, como os custos estão relacionados, na prática, somente ao
lado da “oferta” do espetáculo, podemos afirmar que o custo de execução para n
11
Para uma análise mais detalhada sobre esta questão, ver Towse (2010).
35
pessoas (n>0) é o mesmo que o custo para n+1 pessoas, o que leva o custo variável
ou marginal a ser nulo neste caso.
Uma ponderação deve ser feita neste caso, porém: a quantidade vendida
sofre de outra limitação, diferente da questão dos custos. Esta limitação está ligada
ao fato de que, por ser o espetáculo executado em um local específico, com
dimensões determinadas, este não pode exceder, em quantidade vendida, à
capacidade do mesmo local.
Isto tem um impacto muito claro na questão da produtividade dos artistas que
realizam a performance musical do espetáculo. Dado que o número de artistas que a
executa, como dito, não varia, de forma geral, com o tamanho da platéia, a
produtividade de cada artista (medida em termos de número de consumidores/
número de artistas) se torna limitada pela capacidade do espaço onde este realiza o
seu espetáculo.
Esta questão se relaciona, por sua vez, com o efeito econômico denominado
“doença de custos de Baumol” (para uma análise da doença de custos de Baumol,
ver Towse, 2010 e Connolly e Krueger, 2005). Segundo este, o fato dos salários
nominais dos músicos acompanharem a média agregada, mas sua produtividade
(pelos motivos mencionados) ser limitada, isto geraria um custo crescente nos
serviços oferecidos por estes artistas, e, portanto, no preço dos concertos musicais.
No caso estudado no presente trabalho, algo um pouco distinto ocorre. Dado
que os preços, na região analisada, não podem subir de acordo com a “doença de
custos de Baumol”, sem prejudicar seriamente o seu mercado consumidor, e, em
última instância, inviabilizar o processo, o que acaba ocorrendo na região é que os
salários nominais dos artistas acabam não acompanhando o nível geral de salários
36
nominais, de forma a manter o custo do artista (e, portanto, o preço do serviço) em
níveis considerados de acordo com a demanda.
Em resumo, podemos destacar a seguinte estrutura geral de um espetáculo:
a) “Lado da Oferta”: responsável pela execução e performance musical, bem
como da escolha e manutenção do local e horário escolhido para aquela. Em termos
econômicos, está relacionada aos custos envolvidos na produção.
b) “Lado da Demanda”: composto pelo público consumidor, isto é, a platéia do
espetáculo. Em termos econômicos, está ligada à receita envolvida no espetáculo,
sendo esta receita limitada pela capacidade do local (em termos de pessoas).
I.2.1.2.1. A inovação no caso dos Espetáculos ao vivo
No caso dos espetáculos ao vivo, em sendo ele parte do setor de serviços, a
inovação não pode ser separada dos processos de produção e consumo12. Em
outras palavras, cada novo espetáculo realizado é, em si mesmo, um processo de
inovação, a ser considerado no presente trabalho13.
12
Para uma discussão da questão do setor de serviços e suas particularidades, ver Miles (2008).
13 Na verdade, ainda que possa haver uma relativa homogeneidade entre alguns espetáculos, ainda assim
podemos considerar cada espetáculo como uma inovação de produto, já que este sempre terá alguma
diferença marcante, mesmo que esta seja somente em relação ao momento e local onde é realizado.
Além disso, embora estas “semelhanças” entre os espetáculos seja uma possibilidade teórica na
economia da música como um todo (como no caso de um turnê de uma grande artista, por exemplo), neste
trabalho dificilmente se coloca, dada a alta heterogeneidade vista na região em estudo (a Lapa).
37
Assim, podemos considerar que existam, também neste caso, certos
“padrões”, na execução de cada um destes espetáculos. Estes padrões se referem,
portanto, à forma como o músico executa sua performance musical. A cada
espetáculo, o músico pode alterar em parte estes padrões de espetáculo, o que
pode ocorrer de forma planejada (nos ensaios) ou por improviso.
Desta forma, podemos avaliar a inovação, neste caso, como existente no
próprio processo de criação e planejamento do espetáculo (que ocorre antes da
execução do mesmo), bem como na execução propriamente dita.
I.2.1.3. Boates
Outro serviço oferecido na economia da música é denominado, aqui, de
“boate”. Este se refere a um caso “híbrido” entre os outros dois, pois, se por um lado
é também um serviço, de natureza vivencial e, portanto, limitado tanto no espaço
como no tempo, tal como ocorre no caso dos “espetáculos ao vivo”, por outro lado,
ele não depende da performance musical de artistas presentes no momento, mas
sim da execução, em meio apropriado, de música gravada (em outras palavras, este
serviço seria o “espetáculo da música gravada”). Além disso, dentro deste ambiente
onde ocorre a execução da música gravada (a “boate”), pode ocorrer também, em
determinados momentos, a performance de espetáculos ao vivo, bastando para isso
Desta forma, a cada espetáculo realizado, uma nova configuração dos “padrões” é colocada, de
maneira a se ter, de fato, uma inovação. Daí a conclusão de que cada produção de um novo espetáculo ser
considerado, por si só, uma inovação.
38
que a execução da música gravada ceda lugar à apresentação de um músico
presente ao local.
Outra diferença importante, em relação às boates, é o fato de que a música,
do ponto de vista do consumidor, não se torna o foco principal do serviço, tal como
costuma ocorrer com os outros dois casos anteriores. Neste caso, o principal fator
que constitui este serviço é a possibilidade de se criar um ambiente de socialização
para os seus consumidores.
Todos os outros elementos presentes neste ambiente, incluindo a música,
mas também outros (como a presença de bebidas e comida, por exemplo), se
tornam uma forma de tornar o ambiente mais eficiente para a socialização, e,
portanto, atrair mais consumidores.
Em termos de estrutura de custos, é bastante semelhante aos espetáculos,
com a diferença de que não se incorre em nenhum custo relacionado à alocação do
músico e de sua equipe de produção (já que esta está ausente neste caso). Os
únicos custos incorridos são o da utilização das músicas em questão, bem como o
custo de uma redecoração periódica do ambiente onde ocorrem. Este último custo,
aliás, está ligado a uma mudança do “estilo” ou “clima”, sendo, portanto, um custo da
inovação, nos termos a serem vistos abaixo.
I.2.1.3.1. A inovação no caso das Boates
Neste caso, a inovação ocorre no planejamento do evento, em especial na
decisão de quais músicas serão tocadas. Interessante notar que esta escolha
39
reflete, em parte, a estrutura existente de padrões na economia da música, bem
como sua adequação (no entender de quem planeja seu portfólio de músicas) ao
“clima” desejado à boate, isto é, às características específicas que se deseja criar
neste caso.
Assim, o planejamento desta alocação das músicas começa com a escolha
do “estilo” ou “clima” que se deseja adotar no ambiente (por exemplo: músicas
românticas, funk, forró, músicas para adolescentes, etc.), daí passando para a
escolha dos artistas e gêneros musicais e, a partir daí, as músicas que serão de fato
tocadas durante a execução.
Outra questão das boates foi que, com o aparecimento de profissionais
especializados na criação do repertório musical das boates (os „disck jockeys‟, ou
“DJs”), estes se tornaram, de forma análoga ao caso dos artistas nas indústrias do
disco e dos espetáculos, mais uma forma de “padrão”, como referência a ser
utilizada pelos consumidores na busca das boates. Assim, no caso das boates, os
DJs se tornaram, com isto, mais uma forma de padrão dentro da economia da
música.
I.3. Oferta
A seguir, a indústria da música será analisada do ponto de vista do lado da
Oferta, isto é, serão analisadas as empresas que a constituem.
Primeiramente, será analisado como se constitui a cadeia produtiva da
economia da música, de uma forma geral.
40
I.3.1 Cadeia Produtiva
A cadeia produtiva da música, de uma forma geral, pode ser colocada através
dos seguintes componentes:
a) Produção da Música (Composição e Arranjo):
Trata-se da etapa onde a música é produzida, isto é, composta, arranjada,
gravada e registrada. O „output‟ desta etapa é a música registrada, seja em forma
escrita (partitura), seja em forma sonora (música gravada), e o seu „input‟ é a força
de trabalho do próprio músico e de outros profissionais envolvidos no processo de
criação da música registrada.
b) Produção de discos
Nesta etapa, ligada apenas à indústria do disco, consiste na produção em
massa dos diversos discos (isto é, CD ou DVD, mas em épocas anteriores, também
vinil, cassete, entre outros formatos).
41
Portanto, através desta produção, é que são manufaturados os bens a serem
comercializados na indústria do disco. Assim, o principal „input‟ deste processo é a
música registrada e o seu „output‟ é o disco gravado, produzido em massa.
c) Produção do espetáculo
Neste processo, são produzidos os diversos espetáculos ao vivo, sendo
ligado, portanto, obviamente, somente à indústria do espetáculo. Envolve como
„input‟ não somente a música registrada e, por vezes, também o disco, mas mesmo
outros „inputs‟, como o “contexto apropriado” (caracterizado por um segmento
específico tanto do espaço, ou seja, de um local onde será realizado o espetáculo,
quanto do tempo, isto é, um momento específico a ser definido, em geral segundo
um contrato com o dono em questão do local).
Por sua vez, como „output‟, produz a vivência do espetáculo, a ser vendida
através de ingressos (ou outro acesso) ao local especificado, dentro do momento
particular onde ocorrerá o espetáculo.
d) Divulgação e comercialização
Neste processo, tanto o disco quanto o espetáculo são oferecidos ao público,
mediante a divulgação dos mesmos. Interessante notar que, dados os altos custos
de transação, mencionados anteriormente, na economia da música, um grande
42
processo de divulgação se faz necessário para que a informação acerca da
variedade de bens e serviços existentes possa chegar aos consumidores e que esta
seja, por sua vez, consumida.
No caso dos discos, portanto, faz-se mister que haja um processo de
divulgação dos discos lançados, de forma que o consumidor possa ter acesso aos
mesmos. Além disso, em sendo um produto, a comercialização envolve todo um
processo logístico que garanta que o produto em questão esteja disponível aos
consumidores.
No caso dos espetáculos, a divulgação se faz necessária por motivos e
formas similares ao caso da indústria do disco. No entanto, por ser um serviço, ele
não precisa de qualquer logística para chegar até o consumidor. Antes, pelo
contrário, é o consumidor que se transportará até o local e momento (data/hora)
especificados para o espetáculo. No entanto, é necessária alguma forma de logística
para a venda dos ingressos como forma de acesso ao espetáculo. Esta logística,
antes baseada quase que completamente em vendas de ingressos em bilheterias,
passou a ser oferecida via Internet, juntamente com a divulgação, através da venda
de ingressos online.14
e) Esquema geral
14
Como exemplo destes sites, podemos citar: http://www.ingressofacil.com.br/,
http://www.ticketmaster.com.br/, http://www.ticketronic.com.br/, http://www.ingressorapido.com.br/ (sites
visitados em 13/07/2010), entre outros.
43
Resumidamente, portanto, podemos esquematizar o dito acima da seguinte
forma (ver Figura 1):
Figura 1 – Cadeia Produtiva da Música: visão esquemática (Fonte: elaboração própria)
I.3.2. A Oferta na indústria do disco
No lado da oferta, podemos destacar, de maneira geral, dois tipos de firmas
que atuam na indústria do disco: as denominadas „majors‟ e „indies‟. A principal
diferença entre elas estaria, a princípio, no tamanho da empresa em questão: as
„majors‟ seriam as grandes gravadoras (muitas vezes de porte internacional) e as
„indies‟ se refeririam às pequenas gravadoras. No entanto, conforme será visto a
seguir, existe também outras diferenças entre elas, baseadas numa divisão dentro
da cadeia produtiva da música.
I.3.2.1. Majors
44
As „majors‟, em sendo uma corporação tradicional, seguem uma divisão
departamentalizada, onde cada departamento seria referente a uma das etapas
necessárias na indústria do disco.
Estes departamentos podem ser assim definidos15:
a) O „board‟ da empresa:
Assim como acontece com a grande maioria das grandes corporações, uma
„major‟ possui um „board‟ de diretores, responsáveis pela administração geral da
empresa
b) O departamento de A&R (Artista e Repertório):
Um dos departamentos mais importantes da firma, o A&R tem como função
encontrar as músicas e artistas necessários para a criação dos discos. Assim, o
departamento busca, em primeiro lugar, encontrar novos artistas e, a seguir,
procurar gravar e promover este artista.
Assim, o A&R seria o principal departamento responsável pela inovação no
caso das „majors‟, já que toda prospecção de novos artistas, bem como criação de
novas músicas, estaria ligada a este departamento.
15
Adaptado de Barrow e Newby (1995).
45
c) O departamento de marketing
Situado entre o departamento de produção e o de A&R, está este
departamento de marketing, podendo até mesmo (dependendo do porte em questão
da „major), ser terceirizado ou mesmo ligado a um único funcionário.
Sua principal função é, junto com o A&R, o „board‟ e a gerência artística,
organizar e coordenar as diversas aparições de um artista nas diversas mídias
divulgadoras do trabalho do mesmo.
d) O departamento de “serviços criativos” (´creative services‟).
Responsável pela criação e design dos pôsteres e cartazes publicitários
necessários à divulgação e constituição da imagem do artista, inclusive, em alguns
casos, intervindo até mesmo na criação de alguns dos vídeos dos artistas.
e) O departamento de produção
O termo “produção” aqui não se refere à gravação do disco, mas sim a tudo
aquilo que precisa ser feito para garantir que os discos gravados possam ser
46
manufaturados, empacotados e entregues no tempo correto. Isto é feito em trabalho
conjunto com o setor anteriormente mencionado do A&R (Artista e Repertório).
f) Departamento de distribuição e venda
Responsável pela logística adequada para o departamento de produção, tanto
em termos da relação com os fornecedores deste último, assim como,
principalmente, em termos de garantir o completo abastecimento dos discos de um
determinado artista nos pontos de venda.
g) Departamento internacional
Responsável pela difusão dos discos em países diferentes do país onde os
discos foram originalmente produzidos. No caso de „majors‟ de menor porte (não
internacionalizadas), este departamento é substituído por um sistema de
licenciamento dos discos.
I.3.2.2. Indies
Sendo de menor porte, as „indies‟ não possuem boa parte dos departamentos
existentes numa 'major'. De fato, muitas das „indies‟ se focam na gravação de
47
discos, não tendo estrutura para promover boa parte dos artistas e músicas
existentes.
Isto gera uma divisão dentro da cadeia produtiva entre „majors‟ e „indies‟.
Estas últimas, muitas das vezes, por seu menor porte e conseqüente maior
especialização, acabam por realizar parte do trabalho tanto do A&R das „majors‟,
quanto mesmo da gravação dos discos. Com a tendência à terceirização das
„majors‟ (a ser discutida posteriormente de forma detalhada), estas últimas tem se
especializado cada vez mais no setor de marketing, vendas e distribuição (para os
quais o porte das „majors‟ gera significativas economias de escala), enquanto deixa
para as „indies‟ o trabalho dos outros departamentos.
I.3.3. A Oferta na indústria dos “espetáculos ao vivo”
No caso dos “espetáculos ao vivo”, o lado da oferta é constituído,
basicamente, por empresas ligadas à promoção e realização destes eventos.
Interessante destacar que, em muitos casos, como no caso da região em
estudo no presente trabalho (a Lapa), muitos dos “espetáculos ao vivo” podem ser
realizados de forma concomitante a outras atividades comerciais.
Assim, por exemplo, na região em estudo, boa parte dos “espetáculos ao
vivo” se realiza em bares e restaurantes da região, que, juntamente com os
“espetáculos ao vivo”, exercem atividades comerciais no setor de alimentação.
48
I.4. As mudanças na indústria da música
De maneira geral, podemos destacar duas grandes mudanças na indústria da
música.
A primeira delas se refere ao processo de terceirização ocorrido em grande
parte nas duas últimas décadas do século XX, e constituiu na terceirização cada vez
maior, por parte das „majors‟, dos processos de gravação e produção, ficando estas
com seu foco cada vez maior na divulgação e distribuição dos discos produzidos. A
produção e a gravação, por sua vez, ficaram cada vez mais sob a responsabilidade
das „indies‟, as pequenas gravadoras independentes, ou mesmo, em alguns casos,
diretamente dos próprios músicos, que passaram a realizar estas etapas em seus
próprios „home studios‟.
Esta mudança ocorreu, em boa parte, devido ao processo de intensificação
da concorrência internacional, tal como visto em outros setores da economia, que
levou a um intenso processo de reestruturação produtiva, sentido não somente na
indústria da música.
No caso desta, esta reestruturação, portanto, significou buscar diminuir os
riscos e os altos custos existentes na economia da música, passando as atividades
produtivas para as mãos das „indies‟. Além disso, esta transformação contou com o
auxílio das novas tecnologias, que tornaram cada vez menos custoso realizar as
gravações em espaços cada vez menores, chegando ao já mencionado caso dos
„home studios‟, onde os músicos realizam todo o processo de gravação e produção
dos seus discos em suas próprias residências (ver Requião, 2008 e Herschmann,
2007).
49
No entanto, as novas tecnologias também levaram a outras mudanças na
indústria da música. Ao baixar ainda mais os já antes baixos custos de reprodução
da música gravada, tornou cada vez mais difícil manter o atual sistema dos direitos
de propriedade, já que, com o barateamento e facilidade cada vez maior (sob as
novas tecnologias) de reprodução da música já gravada, o custo do „enforcement‟ na
economia da música se tornou cada vez maior, a ponto de quase inviabilizar a
continuidade da economia do disco. Em especial, com o avanço das tecnologias
P2P („peer-to-peer‟, isto é, tecnologias que permitem a transferência de músicas em
formato digital de um computador pessoal a outro) fez com que houvesse a
reprodução da música digital por uma via que, até o presente momento, não passa
pelas „majors‟. Com isto, mesmo a etapa (na cadeia produtiva) da distribuição e
comercialização, ainda sob a responsabilidade das „majors‟ (mesmo após a
terceirização antes mencionada) passa a ser ameaçada no final do século XX e
início do século XXI.
Além disso, uma das principais conseqüências na economia da música, em
especial no âmbito deste presente estudo, dos efeitos desta mudança é a transição
gradual do foco principal da economia da música, antes na economia do disco, para
a economia dos espetáculos. Isto ocorre porque, dado que o espetáculo, enquanto
uma “experiência”, não é facilmente reprodutível, sua apropriação por parte da
empresa que o produz é muito mais facilitada.
Desta forma, fica cada vez mais clara a transição de um dos tipos de produto/
serviço ofertado pela economia da música (o disco) para o outro (o espetáculo),
como forma de se proteger deste aumento constante do „enforcement‟ contra o
download ilegal de músicas.
50
Por último, como outro efeito das mudanças acima destacadas, podemos citar
o advento do efeito denominado de “Cauda Longa”16. Isto foi tanto tornado possível
pela primeira grande mudança citada (a terceirização na cadeira produtiva da
música), quando esta permitiu que uma grande quantidade de „indies‟ passasse a
inovar numa escala que não seria interessante de ser feita somente por umas
poucas „majors‟, como se tornou mesmo necessária pelo surgimento das tecnologias
P2P, como uma forma de, mesmo na indústria do disco, ainda se manter a salvo das
cópias ilegais da música digital (por sua própria constituição, baseada em troca entre
clientes, a cópia via tecnologia P2P só se torna interessante economicamente para
músicas que possuam uma escala mínima de consumo/vendagem; para músicas
pouco vendidas, o P2P, portanto, deixa de ser uma ameaça).
Interessante que estes dois últimos efeitos interagem de forma positiva entre
si, com impactos claros na região em estudo, pois, tanto a indústria do espetáculo,
quanto a cada vez mais “pulverizada” indústria do disco, passam a contar cada vez
mais com artistas que fogem ao formato “grande estrela”, passando cada vez mais a
um formato, visível na região da Lapa, onde o artista passa a atuar na indústria do
espetáculo, relegando a indústria do disco a um mercado secundário (ver sobre
mercado secundário de música em Towse, 2010), onde as baixas vendagens teriam
como papel primário a divulgação do artista perante o público (Herschmann, 2007).
I.5. Uma visão evolucionária da economia da música
16
O fenômeno da “Cauda Longa” pode ser definido como a “pulverização” do mercado musical, antes
constituído por alguns poucos artistas (e, portanto, músicas), vendidos em grande quantidade, por uma bem
maior diversidade, mas em menores quantidades. Para uma análise mais apurada deste conceito de “Cauda
Longa”, ver Anderson (2006).
51
Podemos, a seguir, esboçar uma visão evolucionária da economia da música.
Assim, de acordo com a visão evolucionária17, temos os seguintes elementos
presentes:
No caso dos elementos de replicação, estes se referem ao correspondente,
na analogia biológica da teoria evolucionária, aos “genes” do processo, ou seja, ao
elemento que será objeto da inovação.
Em outras palavras, trata-se de determinar, em um sistema onde ocorre a
inovação, o que exatamente “é inovado”. No caso dos textos de Nelson e Winter
(1982), os autores definem estes elementos, estes “genes”, como “rotinas”, ou seja,
como padrões de comportamento e decisão ou procedimentos. No caso do presente
trabalho, conforme será visto mais adiante, o elemento de “replicação” seriam os
“padrões” vistos na economia da música18.
Dentro do modelo evolucionário, os elementos relacionados à busca
representam, por sua vez, na analogia biológica, as mutações efetuadas, isto é, as
mudanças nos “genes” do processo. Ou seja, no caso da “busca”, trata-se
justamente dos processos que vão levar à criação de novos “genes”, de forma a se
garantir a diversidade dentro do processo.
17
Ver Nelson e Winter (1982) ,além de Possas et al. (2001), Dosi e Nelson (1994), entre outros.
18 Desta forma, é importante entender que, ainda que o conceito de “padrões” esteja sendo substituído pelo
conceito de “rotinas”, este último nada tem a ver com o conceito de “padrões”. De fato, definindo-se “rotinas”
como padrões repetitivos e reconhecíveis de ações interdependentes, realizada por inumeráveis atores
(Feldman e Pentland, 2003), conceito este que nada tem a ver com o conceito de “padrões” criado aqui. Os
“padrões” não se referem à ação e, assim, não são realizadas por ações interdependentes, nem mesmo por
diversos atores. Na verdade, os “padrões” são apenas categorizações mentais da economia da música, que, por
serem compartilhados pelos diversos agentes econômicos (artistas, empresários e consumidores, entre
outros), se torna uma forma bastante clara de organização dos mercados relacionados.
52
Este processo de busca, portanto, se refere a todos os mecanismos
existentes que levam a uma mudança nas rotinas, padrões e aptidões existentes
dentro do sistema, bem como o resultado deste processo, no sentido de criação de
novos “genes” (no sentido do exposto acima) no sistema.
Por último, temos os processos de seleção que, seguindo também a analogia
biológica, se refere ao processo pelo qual certos “genes” são eliminados do sistema,
bem como os critérios pelos quais estas eliminações ocorrem. Assim, enquanto o
processo de busca se refere à criação de novos “genes”, o processo de seleção se
refere à sua destruição.
No caso da indústria da música, podemos ver, dado o exposto acima, que
podemos traçar um paralelo entre esta concepção evolucionária e o que foi visto
sobre a indústria da música.
Assim, primeiramente temos que o fator a ser replicado (os “genes”, segundo
a analogia biológica presente na concepção evolucionária) seriam justamente as
músicas produzidas, assim como os “padrões” (no sentido visto anteriormente)
existentes na indústria da música (o que inclui, nesses, o próprio artista enquanto
um “padrão” reconhecido pelo público).
Além disso, o processo de busca seria justamente o trabalho realizado, nas
„majors‟, pelo departamento de A&R, na medida em que este serviria para a
prospecção de novos artistas e músicas. Na verdade, os próprios artistas, em sua
busca pessoal pela constituição de uma carreira profissional na área, e, com isso,
pela busca de uma “base de fãs e admiradores”, buscam, portanto, se tornar um
“padrão” reconhecido dentro da economia da música.
53
No caso dos espetáculos, o processo de busca pode ser realizado pelo
próprio artista (em geral feito pelo artista iniciante, através de “festivais de música
independente”, que tem justamente como objetivo o de divulgar novos talentos), ou
(no caso de artistas mais “estabelecidos”), feito pelos empresários, que buscam
artistas muitas vezes em espetáculos já realizados em outros estabelecimentos. Em
alguns casos, também existe a presença de um produtor musical do artista, que
realiza este trabalho. Além disso, em qualquer um dos casos, é grande a utilização
tanto de formas mais tradicionais (como fitas „demo‟, por exemplo), quanto formas
novas (em especial, a Internet, com o uso de sites de demonstração do artista) do
artista mostrar seus trabalhos anteriores. Com isto, busca-se amenizar as incertezas
existentes por parte do empresário na contratação de novos artistas. Por último,
podemos destacar que, muitas vezes, uma das estratégias de um empresário
também pode ser simplesmente organizar novos espetáculos, mas com músicos
“antigos” (isto é, que já tenham se apresentado anteriormente no mesmo
estabelecimento em questão).
No caso da seleção, conforme a concepção evolucionária, esta seria exercida
pelo mercado (definido justamente como o locus do processo de seleção). Este
seria, então, mutável segundo a moda e os cambiantes gostos e preferências dentro
da economia da música.
Interessante notar que os processos de busca e seleção não são
completamente separáveis entre si. Isto ocorre porque, dado que qualquer novo
artista ou músico precisa testar continuamente sua aceitação pelo mercado, a cada
etapa, o músico estabelece a sua carreira continuamente inovando e recebendo (via
a seleção) um „feedback‟ do mercado.
54
Podemos ver este processo, por exemplo, no caso da região em estudo (a
Lapa). Neste caso, uma região constituída predominantemente por “espetáculos ao
vivo” pode ser visualizada como, ao mesmo tempo, responsável por uma seleção
inicial de mercados dos artistas que obtém maior aceitação pelo mercado local, e,
com isso, também fornece o “insumo” para que as gravadoras („indies‟ e também
„majors‟) possam realizar seu processo de busca via A&R. Assim, um artista que
obtenha algum grau de reconhecimento local (isto é, começa a se tornar um padrão
mais ou menos bem aceito pelo mercado), passa então a ser buscado pelas
gravadoras para, a partir daí, obter acesso ao mercado de consumo de massa. Este
processo será visto a seguir, quando detalharemos as características da região. .
55
CAPÍTULO II
A REGIÃO DA LAPA
II.1. Caracterização da Região
Nesta seção, será feita uma caracterização da região a ser estudada: a região
da Lapa, localizada no Centro da cidade do Rio de Janeiro (RJ). Esta caracterização
será conduzida através de seu histórico, de forma a se contextualizar o presente
estudo na dinâmica observada nas últimas décadas.
A seguir, como forma de descrever o espaço urbano e suas características,
será utilizada uma ferramenta de estudos urbanos: os “cenários” („scenes‟).
Por último, será feita uma breve exposição de como a Lapa se insere no
contexto geográfico de toda a cidade do Rio de Janeiro, de forma a que se possa
compreender como este posicionamento interfere na questão da formação de um
cluster de entretenimento na região.
II.1.1. Histórico Geral
56
O presente trabalho procura analisar como se dão os processos de produção,
inovação e distribuição no Cluster de Entretenimento da Lapa (bairro localizado no
Centro da cidade do Rio de Janeiro).
De fato, ao longo das últimas décadas, o local tem sido conhecido pela sua
atividade boêmia, sendo, desde o começo do século passado, um dos locais de
encontro dos moradores da cidade do Rio de Janeiro, em especial dada a sua
localização, situado no Centro da cidade, ponto de passagem, portanto, de vários
habitantes da região.
No entanto, este local tem sido caracterizado pela presença de
empreendimentos de natureza bem diversa ao longo das décadas. Em boa parte do
século XX, ficou notória por ser um local especialmente destinado à prostituição e à
boemia, ainda mal-vista na época.
A partir de 1950, porém, ela experimentou um processo de decadência,
graças ao advento do Estado Novo e da II Guerra Mundial, que levaram a bruscas
mudanças nos hábitos e na movimentação econômica da Lapa19. Este processo
durou até 1980, quando, então, alguns fatores (como a instalação do Circo Voador
no Largo da Lapa, em 1982 e o surgimento do Projeto Corredor Cultural pelo poder
público, em 1984) levaram a região a passar por um processo de revitalização
urbana, passando a contar novamente com o espírito boêmio da região, mas, desta
vez, caracterizado muito mais por um público jovem20, interessado na Lapa como
local de consumo de produtos culturais, em especial tanto os shows, como os bares
19
Para uma análise mais aprofundada, ver Requião (2008) e
http://www.etur.com.br/conteudocompleto.asp?idconteudo=14095, visitada em 03/12/2009.
20 Segundo Araújo (2009), 67% dos freqüentadores do local possuem entre 19 e 30 anos.
57
e restaurantes (dos quais muitos com música ao vivo, sendo, portanto, também
locais de apresentações de músicos ao público da região).
Na segunda metade da década de 1990, em especial, ocorreu uma
revitalização dos circuitos de samba e choro, que muito contribuíram para o
ressurgimento comercial da Lapa, que pôde ser experimentado nos anos seguintes.
(Herschmann, 2007). De fato, não é à toa que estes dois ritmos têm se caracterizado
como um dos “padrões” mais dominantes nos estabelecimentos locais.
Outros pontos destacados pelo mesmo autor acima (Herschmann, 2007)
foram: a recuperação da Rua do Lavradio (inaugurada no dia 04/05/2002),
inauguração do RioScenarium (em 28/10/2001), entre outros, como parte do mesmo
projeto anteriormente citado do “Corredor Cultural”.
A importância cultural da Lapa para a cidade do Rio de Janeiro dificilmente
pode ser superestimada. De fato, o local conta com uma grande diversidade de
estabelecimentos culturais, que servem a um público de diversas regiões da cidade
e, portanto, também a diversas classes sociais. Além disso, mesmo no plano
simbólico, o local, portanto, traz em si, enquanto entretenimento, quase tudo que a
cidade concebe como os traços mais marcantes da sua identidade: a boemia, o
samba, o espírito “malandro”, etc, sendo, portanto, uma região de extrema
importância para a identidade coletiva urbana da região.
Devido a esta importância, portanto, é que tem havido uma tentativa
constante do poder público de trazer uma maior revitalização à região. Assim,
coloca-se cada vez mais como questão como, de fato, se pode trazer esta maior
atividade econômica ao local.
58
II.1.2. Caracterização da região pelo referencial dos “cenários” („scenes’)
Uma possível caracterização da região da Lapa pode ser feita através do
estudo de Silver, Clark e Rothfield (2005). Neste trabalho, os autores propõem a
descrição de uma determinada região urbana através do seu exame por meio de
três dimensões (legitimidade, teatralidade e autenticidade), sob as quais pode se
desenvolver o processo de consumo em uma região. Estas dimensões podem ser
assim definidas:
a) legitimidade: prazer de deter crenças e intenções morais, onde nos
baseamos para formar nossos conceitos de “certo” ou “errado”;
b) teatralidade: ligada ao prazer das aparências, onde o indivíduo se mostra
aos outros e os observa em retorno;
c) autenticidade: prazer de possuir uma identidade, e, portanto, de nos
colocar através da afirmação do que é verdadeiro ou falso („phony‟).
Segundo os autores, podemos considerar estas três dimensões como as
principais nas quais os consumidores de uma determinada região tomam para
realizar o seu ato de consumo.
Aplicando estas três dimensões à região da Lapa, pode-se perceber que esta
se conceitua, principalmente, em termos de teatralidade (no caso de boa parte do
entretenimento, voltado para a socialização) e, em parte, pela autenticidade (quando
59
se trata de um determinado grupo tentando se colocar como uma expressão de uma
determinada forma de ver o mundo, através das diversas “tribos” existentes no
local).
A seguir, os autores propõem uma subdivisão de cada uma das dimensões
acima, de forma a gerar uma caracterização mais pormenorizada (para mais
detalhes sobre esta subdivisão, ver Silver, Clark e Rothfield, 2005). Assim, dando
seqüência à caracterização desse local, podemos definir a região da forma como se
segue: .
60
Tabela 1 – Dimensões e subdimensões para a região da Lapa
Dimensões Subdimensões Pontos
Legitimidade
Tradicionalismo 2
Auto-expressão 4
Carisma 0
Utilitarismo 1
Igualitarismo 1
Teatralidade
Vizinhança 3
Transgressão 3
Exibicionismo 4
Glamour 2
Formal 0
Autenticidade
Local 4
Étnico 1
Estado 2
Corporativo 0
Racional 0
Tabela 1 – Dimensões e subdimensões para a região da Lapa (Fonte: elaboração própria).
A pontuação da tabela acima foi feita com números variando de 0 a 5 (ou
seja, do menor ao maior grau), com base em uma estimativa pessoal do autor do
presente trabalho, tendo em vista a comparação entre os conceitos apresentados no
artigo sobre “cenários” (Silver, Clark e Rothfield, 2005) e a região da Lapa. Note-se,
porém, que esta análise, ainda que careça de maior objetividade (como, de fato, o
conceito de “cenários”, de fato, carece), pode ser usada como ferramenta conceitual
preliminar para uma conceituação panorâmica da região.
61
Desta forma, através desta tabela, e com base no que dizem os autores do
texto, podemos conceituar a Lapa como um cenário boêmio, com certa dose de
exibicionismo (devido a ser um local de socialização) e um pouco de tradicionalismo
(dada sua posição dentro do referencial histórico ligado à região).
II.1.3. Discussão “A Lapa para o Rio”
Situada na cidade do Rio de Janeiro, na região do Centro, a Lapa conta com
uma posição geográfica privilegiada, responsável pelo seu sucesso na formação do
cluster de entretenimento analisado no presente trabalho.
De fato, por ser localizada no “eixo central” da cidade, o acesso à região vindo
de qualquer lugar da cidade do Rio de Janeiro e mesmo de outros lugares (Baixada
Fluminense, Niterói, etc.) é extremamente facilitado.
Como se verá, na próxima seção, tal fato tem profundas conseqüências para
o estabelecimento da região da Lapa como referência de entretenimento no Grande
Rio, e, portanto, para o aparecimento do cluster de entretenimento naquela região.
.
II.2. Clusterização: motivos para a mesma
Conforme vimos, existe, na região em estudo da Lapa, a formação de um
cluster de entretenimento, isto é, de uma aglomeração produtiva de
62
estabelecimentos ligados à indústria do entretenimento, dentre os quais a maioria
constituída de bares e restaurantes com músicas ao vivo.
Vários motivos podem ser apresentados para explicar o surgimento deste
cluster dentro da região analisada. Primeiramente, temos que a questão do uso do
tempo, tal como exposto por Sá Earp (2002), como um dos principais motivos para a
clusterização, pelo menos em um primeiro momento.
Segundo este autor, a alocação do tempo se torna essencial para a análise
do entretenimento segundo a ótica do consumidor. Como a busca pelo
entretenimento leva, em si mesma, um determinado custo de transação, ligado ao
tempo necessário para a busca do tipo de entretenimento desejado, se torna
interessante a aglomeração produtiva de diversas formas de entretenimento, pois
estas, ao reduzir este tempo, tornam tais formas de entretenimento mais atraentes
ao consumidor, o que leva a um estímulo da demanda em relação ao que
aconteceria caso os diversos estabelecimentos estivessem dispersos.
Interessante ressaltar também que o mesmo autor, em trabalho posterior (Sá
Earp e Sroulevich, 2008), cria o conceito de “combos de entretenimento”. Os autores
começam, inicialmente por adicionar à sua análise anterior (Sá Earp, 2002) do
consumo do entretenimento a variável “acessibilidade”, definida como:
“função da proximidade entre a residência do consumidor e o local de entretenimento,
da facilidade de transporte e da segurança do trajeto” (Sá Earp e Sroulevich, 2008).
Na região estudada da Lapa, pode-se constatar a importância deste conceito
de “acessibilidade” para a formação da aglomeração na região, já que isto nos
63
permite descrever como se deu a formação do cluster na região específica em
estudo.
De fato, por se situar no eixo central da cidade do Rio de Janeiro, e, portanto,
em região de fácil acesso para todas as regiões da cidade (Zona Norte, Zona Sul,
Zona Oeste e Centro), bem como para outras cidades da Grande Rio (Baixada
Fluminense, Niterói, etc.), fica claro que a região se tornou privilegiada no tocante ao
acesso de uma demanda de todo o Grande Rio21.
Com isto, fica também claro que o fato da região ser bastante “acessível”, no
sentido de que o transporte dos consumidores do Grande Rio à região em questão
ser bastante facilitada (seja em custo monetário ou em tempo), bem como a grande
variedade de entretenimento existente na região, permitindo não somente que a
escolha do entretenimento possa ocorrer sem a incursão em altos custos de
transação (conforme explicado em Sá Earp, 2002), mas também que o consumo
apresente grande variedade, é que se pode caracterizar a região como um “combo
de entretenimento”22.
Desta forma, podemos compreender, em um primeiro momento, a
clusterização da Lapa, destacando como esta aglomeração pode trazer vantagens
em termos de atrair o público consumidor aos estabelecimentos da região. Esta
caracterização, por sinal, também explicaria um pouco por que foi nesta região
específica onde ocorreu este processo de clusterização. Na medida em que o
principal fator envolvido foi economizar os custos de transação e transporte
21
Para uma visão mais apurada das características sócio-econômicas da Lapa, ver Requião (2008) e Araújo
(2009).
22 Ver Sá Earp e Sroulevich (2008) para uma discussão da importância da variedade na busca do
entretenimento pelo consumidor, bem como o conceito de “combos de entretenimento”.
64
envolvidos na busca do entretenimento, fica claro que a região do Centro do Rio de
Janeiro, por ser de fácil acesso a boa parte da população da cidade, se torna
bastante desejável para o estabelecimento deste tipo de cluster, ao facilitar ainda
mais o aparecimento de denso público consumidor na região. Além disso, uma vez
que haja um conjunto de empresas já previamente estabelecidas na região, existe
também um maior incentivo a que novas empresas também venham a buscar este
mesmo local. Isto ocorre porque a proximidade entre os estabelecimentos onde
ocorrem os espetáculos ao vivo se torna um atrativo ao diminuir em grande medida
os custos de transação e de transporte incorridos na escolha do estabelecimento
específico a ser escolhido pelo consumidor. Este, uma vez decidindo ir à Lapa, sabe
que pode contar com grande variedade de entretenimento, podendo assim escolher
aquele de sua preferência sem que este processo de escolha o leve a incorrer em
mais indesejados custos de transação23.
Podemos, no entanto, aprofundar esta análise, de forma a se contar com uma
explicação que também se baseie na idéia de economia dos custos de transação.
Primeiramente, é possível pensar na idéia do aparecimento da “marca Lapa”, como
forma de caracterizar o “distrito cultural” ali presente (para uma discussão acerca da
questão do desenvolvimento dos “distritos culturais”, ver Santagata, 2006). Assim,
podemos pensar que o fato do cluster, ter, primeiramente, se estabelecido na região
da Lapa pelos motivos expostos acima, fez com que se esta se tornasse uma
referência de entretenimento para a cidade, estimulando um processo ainda mais
complexo de clusterização.
23
Para uma análise mais aprofundada, ver Sá Earp (2002) e Sá Earp e Sroulevich (2008).
65
Isto ocorre porque, conforme vimos, a economia da música se estabelece
pela criação de mercados organizados por padrões, que diminuem os custos de
transação envolvidos na busca por produtos e serviços na mesma. Em particular, um
destes padrões (particularmente interessante para o caso dos espetáculos ao vivo) é
o de “lugar”, isto é, um determinado local que pode ser referenciado a um
determinado tipo de serviço de entretenimento.
No caso da Lapa, podemos pensar a clusterização precisamente desta forma.
Não somente a proximidade física pode ser apontada, como é mencionado em Sá
Earp (2002) e Sá Earp e Sroulevich (2008), mas mesmo todo o processo de criação
de um padrão “Lapa”, que facilitaria a busca do consumidor pelo entretenimento
desejado. Assim, a consolidação desta “marca Lapa” no imaginário carioca pode ser
apontado como um fator a explicar também a clusterização no local.
Inclusive, este fator não se limitaria somente ao mercado de bens e serviços
na região, mas também ao mercado de trabalho. Isto é, na medida em que os donos
dos estabelecimentos também incorrem em custos de transação na busca por
artistas que lá executem seus espetáculos, a consolidação da “marca Lapa” também
pode ser apontada como um fator a diminuir também estes custos de transação
(agora no mercado de trabalho destes estabelecimentos), na medida em que muitos
artistas buscam, na Lapa, uma forma de construção de suas carreiras.
Desta forma, o que começa como uma forma de diminuir os custos de
transação dos consumidores na busca pelo entretenimento acaba por se tornar um
processo bem mais complexo de criação de uma “marca local”, com vistas, em
última instância, a criar um novo padrão local (da cidade do Rio de Janeiro) na
economia da música.
66
Com isto, a região experimenta um intenso desenvolvimento urbano, onde o
surgimento de uma grande massa de consumidores leva a um aumento, na região,
das “amenidades” („amenities‟, em inglês), estas por sua vez engendrando um
desenvolvimento urbano ainda maior, e este, por sua vez, estimulando a vinda de
mais e mais consumidores à região, em um círculo virtuoso (Glaeser, Kolko e Saiz,
2001). Assim, a aglomeração de diversos consumidores na região pode levar a
diversas externalidades, tanto econômicas strictu sensu, como mesmo urbanas
(estas, por sua vez, também com impactos indiretos na economia local).
Podemos também citar a questão de que o próprio produto/serviço ofertado
na região, isto é, o espetáculo ao vivo, tem como base do seu valor percebido pelo
consumidor o próprio fato de existirem outros consumidores “consumindo” no local.
Assim, gera-se um “efeito de rede”24 no consumo destes espetáculos, baseado na
socialização ocorrida no local entre os consumidores.
Como se pode notar, este fato leva a mais uma externalidade positiva
existente na região, já que esta, ao atrair uma grande quantidade de consumidores à
região, acaba por se tornar uma referência de “local com muita gente”, atraindo
ainda mais consumidores, num processo auto-reforçador.
Por último, conforme foi dito em uma das entrevistas25, a própria região da
Lapa possui alguns favorecimentos ao empresário no que diz respeito ao
estabelecimento de algum empreendimento no local. Dois destes favorecimentos
são: o custo dos imóveis (por ser uma região com imóveis menos valorizados, os
24
Para uma análise mais apurada deste conceito, ver Liebowitz e Margolis (1998) e Farrell e Klemperer (2007)
25 Entrevista concedida por Leo Feijó.
67
custos fixos, como o IPTU, são menores). O outro motivo apontado foi a legislação
local, que favorece os empreendimentos ligados à indústria do entretenimento26.
II.3. Os atores envolvidos
Na presente seção, procuraremos definir, de maneira sucinta, qual o
comportamento de cada agente na região. Assim, procuraremos, na subseção
posterior, sintetizarmos qual seria o comportamento geral dos mesmos dentro do
cluster de entretenimento da Lapa.
II.3.1. Consumidores
Podemos conceituar o papel do consumidor no cluster da Lapa, de forma
geral, como ligados aos anteriormente citados processos evolucionários de seleção.
Baseado em seus gostos e preferências, definidos de acordo com os padrões
existentes na economia da música, o consumidor, na região da Lapa, se vê diante
de uma gama bastante extensa de estabelecimentos, estes se definindo não
somente pelos seus serviços “centrais” (isto é, seus serviços como bares e
restaurantes), mas também pelos espetáculos de música ao vivo que lá são
executados.
26
A comparação, feita na própria entrevista, foi com locais como Botafogo, onde moradores da vizinhança aos
empreendimentos proibiram a realização de eventos de música no local após certo horário, pois o barulho e as
aglomerações de pessoas os incomodam.
68
Com isto, os consumidores se colocam como aqueles que vão, neste
processo, definir seus gostos, e, através da sua escolha, favorecer ou dificultar o
processo de criação de carreira musical de algum músico em particular.
Além disso, conforme se verá mais adiante, existe, no tocante ao consumo,
um “efeito de rede”, baseado na socialização.
Isto ocorre porque a economia do espetáculo tem na socialização um dos
seus principais elementos. Assim, se torna evidente que uma maior densidade de
consumidores em um determinado espetáculo torna mais atraente para um
consumidor adicional a escolha deste espetáculo em questão, já que a vivência do
espetáculo pressupõe que os consumidores estarão reunidos em grande quantidade
no local onde se dá o espetáculo.
Isto tem efeitos, principalmente, conforme se verá a seguir, na questão da
clusterização, já que um cluster de entretenimento, como é o caso em estudo da
região da Lapa, possui como uma das principais atrações o de ser um referencial de
local para “encontrar muita gente”, isto é, por gerar uma externalidade positiva aos
olhos dos consumidores, já que, justamente, possui em si uma grande quantidade
dos mesmos.
II.3.2. Músicos
Em relação aos músicos, temos, primeiramente, que o seu papel inicial no
processo de inovação é fornecer todo o amplo espectro de padrões musicais (vale
dizer, no presente estudo, todo o conjunto de músicas, gravadas ou executadas) que
69
formarão o principal “insumo” para a criação dos produtos (discos) e serviços
(espetáculos), isto é, para a inovação em estudo neste trabalho.
De fato, segundo a ótica evolucionária exposta anteriormente, fica claro que
estes agentes são os responsáveis pelo processo de busca realizado. Em outras
palavras, o processo de “busca”, seja na região estudada, seja em qualquer outro
segmento da indústria da música, consiste em realizar uma prospecção dos músicos
existentes, bem como das músicas compostas (ou executadas) por estes.
Em outras palavras, é este agente que vai criar todo o arcabouço de músicas
existentes (ou em processo de composição) que será “filtrado” e “buscado” pelos
agentes que atuem como intermediários entre estes músicos e os consumidores.
Além disso, também é importante ressaltar que, na medida em que o músico
pode, enquanto referência para suas obras, se tornar um novo “padrão” na
economia da música (conforme dito anteriormente), também existe inovação (no
sentido de criação de um novo padrão) quando do aparecimento, na economia da
música, de um novo músico, em início de carreira.
Desta forma, é importante, para uma correta compreensão do processo de
inovação no caso destes agentes, que realizemos uma análise de como se dá o
processo de construção da carreira profissional de um músico, já que a gestão desta
se torna intrinsecamente ligada à questão da criação de um novo padrão musical
ligado a este mesmo músico.
Assim, podemos compreender o processo de inovação na economia da
música, ou, mais exatamente, compreender o processo de “busca” (dentro do
quadro evolucionário segundo Nelson e Winter, 1982) como o processo pelo qual os
agentes que atuam como intermediários entre os músicos e os consumidores
70
realizam uma prospecção destes músicos, bem como de suas obras (músicas). A
partir daí é que passam a ser criados os novos padrões a serem utilizados na
economia da música.
II.3.2.1. Carreira e formação do músico
Um aspecto que merece uma análise mais cuidadosa é a questão da
construção da carreira profissional de um músico, bem como a relação desta com a
inovação em si na indústria da música.
Primeiramente, temos que um músico, em sua formação, vai buscar dentre os
padrões existentes, aquele(s) no(s) qual(is) ele procurará se encaixar, definindo,
com isso, quais as aptidões e o repertório de possibilidades que ele procurará criar.
Interessante observar que muitos destes padrões, por definir em geral a própria
identidade pessoal do músico em questão, terão impactos não somente na inovação
da indústria da música, mas mesmo influenciarão toda a identidade visual do
músico, bem como certos aspectos de sua vida pessoal. Assim, por exemplo, um
músico de rock buscará, dentro das referências existentes deste padrão musical,
não somente uma criação musical, mas mesmo um estilo pessoal (se refletindo na
sua vestimenta, seu modo de falar, etc.), bem diferente de um músico, digamos,
ligado à música sertaneja.
Juntamente a isso, tem a própria carreira do músico como a criação de um
padrão ligado às suas próprias músicas. Como a incerteza por parte do público
consumidor na compra dos discos e acesso aos espetáculos é bastante elevada,
71
este reconhecimento do público (traduzido no surgimento deste “padrão” ligado ao
músico em questão) auxilia na diminuição da incerteza e dos custos de transação
associados na compra dos discos e dos acessos aos espetáculos deste músico. Em
última instância, portanto, ao se tornar um “padrão” crescentemente reconhecido no
mercado musical, o músico consegue cada vez mais diminuir a incerteza e os custos
de transação entre ele e o seu público consumidor, e, portanto, consegue almejar
vendas maiores.
II.3.3. Empresários
No caso dos empresários, podemos conceituar seu papel na região em
estudo como o principal intermediário entre os músicos e os consumidores. Assim,
eles se tornam responsáveis, dentro o quadro evolucionário exposto, tanto pelo
processo de busca (em sua relação com os músicos) quanto de seleção (em sua
relação com os consumidores).
Em sua relação com os consumidores, os empresários, na região estudada,
são donos de estabelecimentos onde ocorre a realização dos espetáculos ao vivo.
Por serem, também, donos de bares e restaurantes, estes empresários ofertam aos
consumidores comidas e bebidas a serem oferecidas durante a execução do
espetáculo. Assim, o serviço “espetáculo” se junta aos tradicionais produtos dos
bares e restaurantes, de forma a formar um serviço mais específico na região, onde
o consumidor pode, com isto, desfrutar não somente de ambos, mas também, de
forma geral (semelhante ao que foi descrito anteriormente no caso das boates), de
72
um espaço de socialização, o que, no fim das contas, é o que atrai boa parte dos
consumidores para a região27.
Esta relação entre empresários e consumidores leva, por parte destes
últimos, a uma aproximação dos mesmos às músicas e, de forma geral, ao trabalho
do músico executante do espetáculo. Isto coloca este músico mais perto do seu
mercado, auxiliando no processo de seleção e, portanto, na inovação da economia
da música.
Em relação aos músicos, os empresários auxiliam, como dito anteriormente,
no processo de busca das inovações. Isto ocorre porque, já que os empresários se
tornam os criadores da “ligação” entre músicos e consumidores, a escolha do
repertório e mesmo dos músicos a serem apresentados no espetáculo ao vivo se
torna crucial para entender como se dá o processo de “busca” e mesmo o de
“seleção” (já que, se um empresário desiste de manter um músico, ele auxilia este
último a ser “selecionado para fora do mercado”).
Na verdade, o processo de escolha do repertório, conforme visto nas
entrevistas, dá-se através da combinação do papel dos músicos e empresários. Aos
primeiros, cabe definir quais músicas pretende tocar em um local (portanto, este
ficaria mais ligado ao processo de “busca”), enquanto aos últimos caberia o papel
(mais ligado ao processo de “seleção”) de escolher, com base nos padrões
estabelecidos na economia da música, qual será a “agenda” de espetáculos a ser
apresentado em um período de tempo, e, com isso, quais serão os músicos que
tocarão em cada momento.
27
Conforme ressaltado por um dos entrevistados (Luciana Nadalutti), isto torna ainda mais importante para o
empresário a questão de se obter um público numericamente razoável.
73
Assim, para entender o processo de inovação na economia da música da
região, uma das questões-chave nesta análise é entender como e por quais critérios
são selecionados os músicos a serem apresentados na região da Lapa.
II.4. O processo de inovação da Lapa
A seguir, será analisado o processo de inovação na região da Lapa, através
de uma análise da interação entre os três tipos de agentes analisados
anteriormente.
Ou seja, serão analisadas as seguintes interações: a relação músico-
empresário, a relação empresário-consumidor, a músico-consumidor, a músico-
músico, a empresário-empresário e a consumidor-consumidor.
II.4.1. A relação músico-empresário
Para a compreensão da relação músico-empresário, é necessário,
primeiramente, que se lembre que, em ambos os lados, existe uma escala de
“crescimento” destes agentes, seguindo também a analogia biológica da economia
evolucionária.
Assim, do ponto de vista do músico, conforme visto, existe um processo de
carreira profissional, onde ele começa como um músico iniciante, sem nenhuma
“fama” perante o público, e que pode terminar no advento de uma “estrela”.
74
Analogamente, existe, por parte do empresário, uma escala de empresas,
dada principalmente (também conforme já visto) pela capacidade do
estabelecimento (em termos de público máximo), mas também por outras
características, como a “movimentação” do local (dada em termos de público médio)
e até mesmo o preço (que também influi, portanto, na receita total do lugar). Com
isto, podemos constatar, na região, desde pequenos até grandes estabelecimentos,
com grande notoriedade local e alta capacidade máxima de lotação (como, por
exemplo, o RioScenarium).
Assim, podemos, então, analisar a relação músico-empresário, tendo como
base a analogia biológica, muito comum na visão da economia evolucionária, como
um processo de “crescimento”, onde é vista uma correspondência entre a escala dos
estabelecimentos, e a “fama” dos músicos.
Esta correspondência, obviamente, se dá primeiramente sob a ótica do
critério comum aos dois lados: o tamanho do público consumidor. Isto gera uma
possibilidade de demanda solvável para que torne lucrativa a criação de novos
“espetáculos” e mesmo o lançamento de novos “discos” por parte de um artista em
questão (inclusive no caso do artista em questão também ser iniciante de carreira,
constituindo a criação de um “novo músico” como um novo padrão dentro do
mercado de música).
Adicionalmente, conforme visto em algumas das entrevistas28, existe uma
correspondência deste “crescimento” no que diz respeito aos contratos realizados.
Desta forma, podemos dividir estes contratos de trabalho em termos dos seus
acordos de pagamento, da seguinte forma:
28
Entrevistas realizadas com Rodrigo Fróes, Rafael Fleury e Ítalo Vianna.
75
a) Pagamento por “couvert artístico”: trata-se do pagamento realizado por um
valor fixo sobre o pagamento dos clientes, isto é, cada cliente do estabelecimento
deve pagar um valor fixo a cada vez que assiste ao espetáculo. Em geral, este valor
fixo é pago ao final da noite, juntamente com o total consumido pelo músico.
b) Percentagem sobre bilheteria: no caso, o músico recebe um valor
estipulado como uma determinada percentagem sobre o total da bilheteria. Com isto,
caso o público seja pequeno no espetáculo em questão, o músico receberá um
pagamento menor pela sua apresentação.
c) Remuneração Fixa: neste último caso, o músico recebe uma parcela fixa
sobre o seu trabalho. Neste caso, fica evidente que todo o risco do negócio é
tomado pelo dono do estabelecimento, tornando-o para este último, um contrato de
mais alto risco.
Em termos da escala de crescimento dos contratos, temos que o risco da
inovação é repassado, de uma forma geral, para o músico. Assim, os contratos por
“couvert artístico” e por “percentagem sobre bilheteria”, por apresentarem maior
repasse dos riscos para os músicos, são em geral mais utilizados no caso dos
músicos iniciantes, que, por sua vez, costumam se apresentar em estabelecimentos
de menor capacidade. Com isto, o risco destes últimos (que é reforçado justamente
por sua menor capacidade) fica por conta em especial dos músicos. Os contratos de
76
remuneração fixa, por sua vez, só ocorrem em casos de músicos que já possuem
um maior tempo de trabalho e reconhecimento do público, e, com isso, uma maior
poder de barganha. Estes, além disso, também contam com um acesso aos locais
de maior público, já que os donos dos estabelecimentos maiores, justamente por
contarem com uma maior capacidade de lotação, estão mais interessados em
músicos que possam lhes garantir um público maior.
Além disso, também no caso dos músicos iniciantes, os empresários lançam
mão de alguns meios de repassar o risco total ou quase totalmente para o músico
iniciante. Um destes meios, conforme um dos entrevistados29, é o uso de contratos
onde o músico recebe uma quantidade fixa de ingressos, sendo responsável pela
venda dos mesmos. Caso não consiga cumprir a cota mínima de ingressos30 (esta
determinada pelo empresário), tem que arcar com toda a diferença em termos de
perda de receita. Em troca, caso venda mais, pode também receber a diferença em
ganhos. Com isto, o dono do estabelecimento pode contar com um “público fixo”,
pré-determinado, já que a diferença da receita deste para a receita do público
efetivamente realizado é totalmente coberta pelo músico.
Outra forma contratual de repassar o risco, segundo outros entrevistados31, é
o chamado “cheque caução”. Este consiste no pagamento inicial, pelo músico, de
um cheque num valor pré-estabelecido32. Este, por sua vez, será devolvido caso os
ganhos do estabelecimento ultrapassem este valor. Caso contrário, o valor fica
29
Entrevista realizada com Rodrigo Fróes.
30 O valor padrão atualmente vigente (2010), de acordo com o avaliado na entrevista, é de um mínimo de 30
pessoas, para os casos dos estabelecimentos de pequeno porte, onde foi observada esta prática.
31 Entrevistas realizadas com Ítalo Vianna e Leo Feijó.
32 Segundo esta entrevista, o valor atual (2010) do valor do “cheque caução” é de R$1.500,00.
77
retido pelo dono do estabelecimento33. Assim, neste caso, o músico, caso não
consiga um público mínimo, perderia por duas razões: a própria perda de receita do
público baixo, bem como a não-devolução do “cheque caução”.
Por último, conforme citado por uma entrevistada34, existe uma evolução na
carreira do músico mesmo na questão do dia escolhido para sua apresentação.
Assim, de acordo com esta, os dias de 5ª feira a sábado são os “dias nobres”
(reservados para músicos que já estão com uma carreira mais evoluída), sendo
reservados os dias de 3ª e 4ª feira para os músicos iniciantes, visto que, como são
dias de menor movimento, o custo de oportunidade de realizar um espetáculo ruim é
bem menor.
Assim, podemos constatar que o leque de contratos existentes segue uma
escala de crescimento que reflete não só a inter-relação entre a escala do
estabelecimento e a “fama” do músico (isto é, o crescimento em sua carreira), mas
também uma relação onde o risco associado ao processo de inovação é repassado
quase que totalmente aos músicos (especialmente no caso destes serem iniciantes).
Como este último, de uma forma geral, não conta com estrutura e recursos capazes
de dar conta de forma razoável destes custos, fica claro que este se torna um dos
principais entraves à inovação.
Por outro lado, outro aspecto que é interessante ressaltar do ponto de vista da
realização dos contratos, é como ocorre o processo de “busca”, no sentido
33
Esta informação foi repassada por um dos entrevistados (Rodrigo Fróes). No entanto, de acordo com outro
entrevistado (Leo Feijó), tal prática não seria feita pelo dono do estabelecimento em si, mas sim por um
intermediário (produtor musical), que alugaria o espaço do empresário, organizaria os espetáculos (em geral
festivais) e contrataria os músicos de acordo com o referido contrato. No entanto, o principal aqui no texto é
entender como estas diferentes relações contratuais se combinam com a questão da carreira do músico.
34 Entrevista concedida por Luciana Nadalutti.
78
evolucionário explicado anteriormente, isto é, como se dá o processo de inovação no
cluster35 da Lapa em termos do “mercado de trabalho” dos músicos36.
De fato, conforme dito pelos entrevistados37, o processo38 pelo qual tanto os
músicos quanto seus repertórios são escolhidos é através de criação de espetáculos
“temáticos”, isto é, o processo de “busca” dos músicos (e repertórios) é realizado
através do padrão “estilo” ou “tema”, discutido anteriormente. Assim, por exemplo, se
o tema escolhido for “rock”, qualquer músico cujo trabalho se identifique com este
“estilo” (mesmo que parcialmente, no caso deste estilo se referir somente à parte do
repertório do músico) se apresentará neste local, escolhendo seu repertório também
de acordo.
Além disso, esta “busca” dos músicos é auxiliada em grande parte pela
Internet (ver mais a seguir), bem como pela rede de informações (o popular “boca-a-
boca”) que surgem nas relações pessoais dos músicos. Através destes meios é que
boa parte dos músicos fica conhecendo quais são e onde encontrar os diversos
espetáculos onde se apresentar.
II.4.2. A relação empresário-consumidor
35
Interessante notar que o próprio processo de clusterização, conforme será visto mais adiante, através de sua
contribuição para o adensamento no local de músicos e empresários, contribui para o mercado de trabalho dos
músicos, e, por este meio, para o processo de inovação na região, ao aproximar os dois lados (músicos e
empresários) numa mesma região.
36 Para uma análise do mercado de trabalho dos artistas, ver Towse (2010).
37 Aqui, a fonte consiste em todos os entrevistados.
38 Segundo as entrevistas, o processo de seleção ocorre, mais detalhadamente, da seguinte forma:
primeiramente, o empresário escolhe uma “agenda” de eventos, com a especificação combinada de local,
dia/hora e o “tema” do espetáculo. A seguir, com base nisso, é que é feita a escolha dos músicos/bandas que
tocarão em cada um destes espetáculos.
79
A relação empresário-consumidor, conforme visto, está ligada, primeiramente,
à questão da formação do cluster de entretenimento, como forma de se ter uma
demanda que viabilize aos empresários a apresentação de um amplo espectro de
produtos/serviços da economia da música.
Assim, a alta densidade de consumidores no local torna viável o aparecimento
de uma grande diversidade que, não fosse justamente por esta demanda, não
poderia ser tão “pulverizada” sem correr o risco de não garantir, à boa parte dos
empresários (e também aos músicos), a quantidade mínima de consumidores capaz
de pagar os custos fixos incorridos.
Além disso, a relação empresário-consumidor também se baseia na criação
dos “padrões” da economia musical antes mencionados, na medida em que a
“agenda” de espetáculos é criada pelo empresário com base em “temas”, que
servem justamente como um padrão capaz de diminuir as incertezas39 (e, portanto,
os custos de transação) incorridas pelo consumidor ao escolher qual espetáculo
será consumido em uma determinada noite.
Com isso, estes “temas” tornam, ao diminuir as incertezas e os custos de
transação do consumidor no processo de escolha do entretenimento, a ser
consumidos, e, com isso, facilita o próprio processo de consumo em si, o que acaba
por auxiliar também no aspecto anterior de garantir uma alta demanda pelos
produtos/serviços da região.
39
De fato, como, conforme Sá Earp (2002), o uso do tempo se torna essencial no processo de consumo do
entretenimento, a criação de “temas” como padrões que vão balizar a escolha do consumidor, permite
diminuir enormemente os custos de transação que este último incorre neste processo.
80
Assim, de acordo com um dos entrevistados,40 o empresário local costuma
escolher um “tema” de acordo com cada dia da semana, de forma a não somente o
estabelecimento ser conhecido pelos consumidores pelos mesmos, como também
estabelecer uma base de programação já conhecida pelo público.
II.4.3. A relação músico-consumidor
No caso da relação músico-consumidor, temos que esta, ao contrário das
outras, raramente se dá de forma direta, mas, em geral, através de algum outro
agente econômico, que atue como “intermediário”.
No caso da região em estudo, conforme se pode facilmente observar, este
“intermediário” em questão é justamente o empresário, que disponibiliza o seu
estabelecimento para a realização do espetáculo onde o músico se apresentará.
Cabe, no entanto, ressaltar que esta relação também se torna facilitada no
caso do cluster de entretenimento da Lapa justamente pela já referida alta
densidade de consumidores na região, favorecendo, ao diminuir as incertezas
associadas à inovação, a possibilidade de aparecimento de novos músicos na
economia da música.
II.4.4. A relação músico-músico
40
Entrevista realizada com o empresário Leo Feijó.
81
A relação músico-músico pode dar-se de diversas formas. Primeiramente,
temos a questão da formação dos músicos, onde esta interação é bastante evidente,
quando os músicos costumam buscar sua própria formação musical inicial junto aos
outros músicos. Mesmo aqueles que não buscam uma educação musical
formalizada acabam por buscar para o aprendizado da arte musical, se não outros
músicos, ao menos cursos voltados para tal, que não existiriam não fosse uma
grande quantidade de músicos formados/ em formação41. Sem contar que boa parte
dos músicos busca nos trabalhos dos outros músicos inspiração para sua própria
criação musical.
Além disso, como muitos músicos se organizam em bandas, o processo de
escolha dos componentes das bandas pode variar bastante de acordo com o
desenvolvimento desta “rede de contatos” estabelecida.
Desta forma, podemos resumir o acima exposto colocando que a interação
músico-músico estabelece principalmente como se dá o “insumo” dos espetáculos:
as músicas, as bandas, etc., de forma que este se encaixaria dentro do modelo
evolucionário como parte do processo de “busca” da economia da música.
II.4.5. A relação empresário-empresário
Em termos da relação empresário-empresário, temos os diversos tipos de
cooperação existentes entre cada estabelecimento.
41
Conforme visto ao longo das entrevistas, existem na região tanto músicos já formados, como músicos muita
das vezes sem mesmo uma formação básica em música.
82
Além daqueles já mencionados na discussão sobre o processo de formação
do cluster na região, temos também que a própria criação de sua “agenda”, por parte
de cada empresário, conta com uma colaboração por parte dos outros empresários.
De fato, conforme constatado nas entrevistas42, boa parte do recrutamento de novos
músicos por parte dos empresários se dá pela visibilidade que um músico ganha em
um espetáculo de outro empresário. Ou seja, trata-se de uma interação empresário-
empresário com impacto na relação músico-músico.
Além disso, através desta interação, pode-se perceber o surgimento de
associações entre empresários, tais como a Accra (Associação Comercial do Centro
do Rio Antigo), bem como, através desta, o surgimento de parcerias também com
algumas instituições públicas (Sebrae, Senac, etc.). (Herschmann, 2007).
Por último, deve-se destacar o importante papel do Estado no tocante à
questão da segurança no local, essencial para a sobrevivência de qualquer
empreendimento de entretenimento na cidade do Rio de Janeiro. (Herschmann,
2007).
II.4.6. A relação consumidor-consumidor
Conforme já foi discutido anteriormente na questão da clusterização na
região, um dos principais elementos na relação consumidor-consumidor é a
importância da “socialização” na valoração dada pelo consumidor à vivência do
espetáculo ao vivo.
42
Entrevistas realizadas com Ítalo Vianna, com Rodrigo Fróes e com Leo Feijó.
83
Em busca desta socialização, muitos consumidores acorrem à região, de
forma que parte do processo de surgimento de consumidores na região estaria
ligada a este “efeito de rede”.
A partir daí é que se estabelece o processo de consumo. Ou seja,
primeiramente temos o aparecimento de consumidores na região, atraídos pelas
diversas opções de entretenimento, que envolveria o consumo de comidas e
bebidas, além do espetáculo e, com estes, a socialização. Como conseqüência, se
estabelece, nesta relação, o processo de consumo em si, com a escolha, por parte
dos consumidores (e levando em conta todos os fatores antes citados) do
produto/serviço específico para consumo.
Assim, de uma forma mais geral, fica evidente que uma análise mais
aprofundada do processo de consumo na região tem que levar em consideração,
necessariamente, uma visão da interação conjunta entre cada consumidor e destes
com a gama de produtos/serviços locais ofertados.
II.4.7. O papel da Internet no processo de inovação da Lapa
Dentro da indústria do espetáculo, é cada vez maior o papel da Internet.
Conforme visto anteriormente, seu papel é em grande parte ligado à divulgação do
trabalho dos músicos, embora este papel adquira certas nuances que serão vistas a
seguir.
Primeiramente, temos o papel exercido pela Internet na divulgação rápida e
direta (no sentido de sem intermediários entre o músico e seu público consumidor)
84
do trabalho do músico e de sua banda, em especial através de diversas
“ferramentas” consagradas para isso.43
Outro papel também muito importante da Internet no processo de inovação,
tal como citado por um dos entrevistados (e comentado anteriormente), é o contato
músico-empresário, em especial no processo de “busca”. Em outras palavras, a
Internet surge como uma forma dos empresários divulgarem também, aos músicos,
os espetáculos onde estes últimos poderão se apresentar.
Além disso, a Internet contribui inclusive na relação entre empresários e
consumidores, já que existem também diversos sites com programação e lista de
eventos que ocorrerão na região da Lapa (como exemplo, podemos citar o site
http://www.lanalapa.com.br/, visitado em 05/05/2010).
Desta forma, a Internet tem adquirido cada vez mais um papel de ferramenta
facilitadora do processo de inovação, na medida em que contribui não somente
como divulgadora strictu sensu, mas sim como uma forma de diminuir os altíssimos
custos de transação envolvidos entre cada um dos agentes envolvidos no cluster de
entretenimento da Lapa.
Por fim, não podemos deixar de destacar o já mencionado impacto da Internet
nas mudanças que surgiram na indústria da música nos últimos anos. Em particular,
a crise do sistema de direitos de propriedade nesta indústria, com a conseqüente
43
Como exemplo, temos os principais sites utilizados para isso, segundo um dos entrevistados (Rodrigo Fróes),
que são: MySpace (http://br.myspace.com/), Trama Virtual (http://tramavirtual.uol.com.br/), Youtube
(http://www.youtube.com/), Orkut (http://www.orkut.com), Twitter (http://twitter.com/), Fotolog
(http://www.fotolog.com.br/), Tosembanda.com (http://www.tosembanda.com/), HDs Virtuais, entre outros
(visitados em 15/08/2010). Além disso, segundo uma entrevistada (Luciana Nadalutti), outra possibilidade, é a
utilização de ‘mailing lists’ prontas, como forma de se ter uma lista pré-existente de possíveis consumidores.
85
mudança do núcleo da mesma dos discos para os espetáculos (conforme será visto
na seção 4.1).
.
86
CAPÍTULO III
CONTEXTUALIZAÇÃO E PERSPECTIVAS DO
CLUSTER
III.1. Introdução
Nesta seção, parte-se para a análise geral do cluster, ou seja, parte-se
para uma perspectiva mais ampla de como ele evolui e quais as conclusões a
respeito do mesmo.
III.2. Mudanças em curso na Lapa
De forma geral, podemos realizar um prognóstico de qual será o
comportamento futuro da economia da música na região da Lapa, através de uma
análise sucinta de como tem se dado as mudanças na economia da música em
geral, e, a partir daí, como estas mudanças podem vir a impactar o caso particular
da economia da música na região da Lapa.
A principal mudança prevista na economia da música, de uma forma geral, é
a questão da passagem do foco da sua produção da economia do disco para, cada
vez mais, um foco na produção dos espetáculos ao vivo. Este último, por sua vez,
87
antes ligado à divulgação e marketing dos discos, além de se tornar o “produto/
serviço foco”, passa contar, por sua vez, com a Internet como forma principal de
divulgação. E a Internet, por sua vez, leva, com a crise no atual sistema de DPIs
(Direitos de Propriedade Intelectual) na Internet, a uma crise na economia do disco,
levando, provavelmente, a um fim ou severa diminuição da mesma. Todos estes
efeitos estão resumidos, a seguir, na Tabela 2:
Tabela 2 – Quadro geral das mudanças na Economia da Música.
Mudanças na
Economia da Música
Produto Divulgação
Antes Disco Espetáculos ao vivo
Depois Espetáculos ao vivo Internet
Fonte: Elaboração própria
.
Em termos dos impactos desta mudança na região, a principal a ser
destacada é certamente a mudança do papel dos espetáculos ao vivo (principal
sustentáculo da economia da região) de uma forma de divulgação de discos para o
produto central em si.
Pelas entrevistas realizadas, pode-se perceber que o cluster atualmente se
encontra em plena transição dos dois papéis do espetáculo, apresentando ainda
características híbridas de ambos os sistemas. É de se esperar, portanto, que, com
o tempo, se realce cada vez mais o sistema futuro esboçado (ver linha “Depois” na
Tabela 2).
88
III.3. O papel da região da Lapa no processo de inovação na economia da
música
De forma geral, o cluster de entretenimento da Lapa pode ser pensado como
mais uma forma de ligação entre os músicos e seu público consumidor. Conforme
discutido anteriormente, a alta taxa de inovação e a grande heterogeneidade na
indústria da música levam a um alto grau de incerteza na mesma, bem como a altos
custos de transação envolvidos no seu mercado. Estes custos de transação são,
porém, atenuados pela criação de “padrões”, de acordo com os quais os mercados
passam a ser “organizados” (Lundvall, 1998). Um destes padrões, que merece
destaque, é o padrão ligado ao próprio músico, como forma deste conseguir
consolidar sua carreira junto ao seu público consumidor.
Assim, podemos pensar o papel da Lapa na inovação da economia da música
como uma forma de se estabelecer uma ligação entre o músico e seu público
consumidor, diminuindo os custos de transação e, portanto, a incerteza envolvida no
processo.
Considerando que, conforme visto, os músicos se tornam cada vez mais
responsáveis por assumir estes riscos e custos associados neste processo de
inovação, esta se torna cada vez mais problemática, já que este agente é
justamente aquele que conta com a menor capacidade de financiar e sustentar o
processo de inovação.
Com isso, o papel da Lapa se torna cada vez mais importante como forma de
atenuar estes custos e incertezas no processo de inovação. Esta contribuição se
torna ainda maior quando se considera que, conforme visto, a economia da música
89
tem se baseado cada vez mais na economia dos espetáculos, na qual se baseia boa
parte da economia da região.
Tal papel ocupado pela Lapa foi possível graças à clusterização ocorrida no
lugar, que levou à formação de uma região que, conforme discutido anteriormente,
pode servir em si mesma como um “padrão” dentro da economia da música, ao
servir como referência de entretenimento para toda o Grande Rio (Rio de Janeiro,
Niterói, Baixada Fluminense, etc.) além de pessoas fora do Estado do Rio de Janeiro
(Araújo, 2009), atraindo, com isto, um grande contingente de consumidores, mas
também de músicos e empresários, permitindo assim que ocorram diversas
interações entre estes agentes que facilitem o processo de inovação na região.
No entanto, também existem alguns fatores dentro do cluster de
entretenimento da Lapa que desfavorecem a inovação dentro da economia da
música. Um destes fatores, apontado por uma entrevistada44, é a questão (presente
na verdade ao longo de toda a Economia da Música), de se precisar constantemente
de um público mínimo, e da dificuldade de se obter isso em um contexto de
incertezas. Assim, isto cria uma resistência à inovação dentro da economia da
música a se adotarem novos padrões cujo “sucesso” não pareça minimamente
garantido. Assim, por exemplo, de acordo com a mesma entrevistada, uma tentativa
recente de se introduzir shows ligados ao frevo45 nos estabelecimentos da Lapa,
encontrou uma grande resistência por parte dos empresários locais, por ser a região
(também de acordo com a mesma entrevistada) um local ainda muito associado ao
samba e ao choro como “padrões” musicais do local.
44
Entrevista concedida por Luciana Nadalutti.
45 Ritmo musical comum no estado de Pernambuco.
90
De fato, esta crítica encontra sua confirmação, mas também sua amenização,
no fato de que este obstáculo à inovação se encontra em quase toda a economia da
música. Assim, a Lapa pode ser vista como um cluster de entretenimento que
diminui os obstáculos à inovação na economia da música, mas que, em alguns
casos, não os resolve de todo, podendo ainda assim vir a apresentar alguns destes
empecilhos à criação de novos “padrões” dentro da economia da música.
De fato, o maior problema ao aumento da taxa de inovação na economia da
música continua sendo basicamente este: como lidar com a incerteza dos seus
empreendimentos quando se trata de lançar no mercado um novo tipo de produto,
serviço, músico ou ”padrão”. Dada a escala mínima exigida para estes
empreendimentos, e dada a incerteza quase radical de se estes podem ou não ser
alcançados, muitas das inovações potenciais são simplesmente abandonadas por
não satisfazerem minimamente este critério, ou seja, por não apresentarem
garantias, dentro dos conceitos e expectativas formuladas pelos empresários, a de
que o lançamento destas inovações possa ser comercialmente frutífera. Com base
nesta análise, algumas propostas de políticas públicas podem ser pensadas como
forma de se tentar atuar nestes fatores, de forma a se procurar obter uma maior taxa
de inovação.
.
.
91
CONCLUSÕES E QUESTIONAMENTOS
FUTUROS
No presente trabalho, foi analisado como ocorre o processo de inovação na
economia da música, com especial atenção para o caso da região em estudo: a
região da Lapa (cidade do Rio de Janeiro).
Este estudo foi feito seguindo os fundamentos teóricos da economia
evolucionária, de acordo com o exposto nos modelos de Nelson e Winter (1982).
Esta visão, sustentada pelos autores, dá fundamento ao processo de inovação como
baseado em três fatores (ligados à analogia biológica presente na economia
evolucionária): busca, seleção e replicação.
Em especial, em relação a este último fator (replicação), utilizou-se o conceito
de “padrões”, como forma de organização do mercado da música (de acordo com o
conceito também de “mercados organizados”, de Lundvall, 1998). Através destes
“padrões”, não somente seriam organizados todos os mercados, mas também estes
balizariam (dentro do conceito, presente também na visão evolucionária, de
“racionalidade limitada”) o comportamento dos agentes econômicos dentro da
economia da música e, em particular, na região estudada.
Estes agentes econômicos foram divididos em três tipos principais:
consumidores, músicos e empresários. Através da análise do comportamento de
cada um deles, bem como da interação entre os mesmos, tudo isso dentro da lógica
92
evolucionária, pode-se chegar a uma compreensão de como ocorre o processo de
inovação no cluster de entretenimento da Lapa.
Além disso, também foi analisado o próprio processo em si de clusterização,
isto é, os fatores econômicos por trás do aparecimento do cluster de entretenimento
da Lapa. Através desta compreensão, pode-se entender melhor os comportamentos
de cada agente, chegando a uma compreensão mais pormenorizada do processo de
inovação na região da Lapa.
Em particular, pode-se pensar mesmo a clusterização como o aparecimento
de um novo padrão ligado à região, o “padrão Lapa”, já que a região tem cada vez
mais se destacado como uma referência de entretenimento em toda a região do
Grande Rio.
Além disso, também se pode sugerir que, dado que o atual trabalho se
concentrou em uma exposição mais descritiva (e não normativa) da região, sejam
feitos mais estudos acerca de possíveis políticas públicas para a região.
Dentre estas políticas públicas, pode-se destacar, em especial, dois tipos que
parecem bastantes promissores como continuação do presente trabalho: a primeira,
pensar na questão de como fomentar e estimular o processo de inovação na
economia da música, em especial na região da Lapa. Assim, dada a descrição
acima, de que forma pode o Poder Público intervir para garantir que o processo de
inovação ocorra de forma mais eficiente?
Além disso, outra questão também pertinente, dentro desta perspectiva de
políticas públicas, é a respeito de como se pode fomentar o surgimento, o
93
crescimento e o desenvolvimento de regiões similares já existentes46, fora da região
da Lapa (o que foi denominado, nas entrevistas, de „off-Lapa‟). Desta forma, tendo
em vista o que foi exposto no presente trabalho a respeito de como ocorre o
processo de inovação na região da Lapa, como pensar uma atuação do Poder
Público para difundir isso por outras regiões?
Por último, podemos destacar que, apesar deste trabalho estar focado na
questão da inovação, como este estudo foi feito à luz de outros processos
econômicos, tanto da região como da economia da música em geral, pode servir de
base para que outros estudos sobre estes assuntos sejam feitos em outras áreas do
pensamento econômico. Como exemplo, poderíamos citar um estudo mais
aprofundado de como ocorre a distribuição das rendas geradas no cluster de
entretenimento da Lapa.
Desta forma, pretendeu-se, com o presente trabalho, que novas linhas de
trabalho sejam desenvolvidas, tanto sobre a economia da música, quanto sobre a
região estudada da Lapa (cidade do Rio de Janeiro).
.
46
Ao longo das entrevistas, foram discutidas algumas regiões que possuem características similares à região da
Lapa. O que se propõe aqui é como pensar, com base no presente estudo, formas de se desenvolver também
estas regiões.
94
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ANDERSEN, B. (2004) „If “Intellectual Property Rights” is the Answer, What is the
Question? Revisiting the Patent Controversies‟. Economics of Innovation and New
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ENTREVISTAS REALIZADAS (NOME DOS
ENTREVISTADOS)
- Rodrigo Fróes (músico da banda “Tijolo de Vera”).
- Rafael Fleury (músico e produtor cultural)
- Ítalo (“Tito”) Vianna (músico, da banda “Turbilhão Carioca”)
- Leo Feijó (empresário da Casa da Matriz)
- Luciana Nadalutti (ex-produtora cultural)
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